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Leitura fundamental...TRANSCRIPT
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Da teoria dos fragmentos pedagogia das machas: reencontrando Freire na educao popular.
ResumoO texto parte da elaborada indignao de Freire em relao ao momento pelo qual passava o Brasil (anos 90), apontando a pedagogia das marchas. central destacar, desde logo, que Freire no viveu o desenvolvimento do capitalismo na virada do milnio, para ver a grande marcha que encontrou espaos na escola (por exemplo) ou ao se consolidar no discurso nas universidades, nas marchas que parecem ser manifestaes dos oprimidos. Isso impe pensarmos que a leitura da Pedagogia do Oprimido deve ser contnua, ao contrrio de sua defesa, sem reinveno. E mirando nosso tempo histrico, com significativas parcelas da populao caminhando pelas cidades e pelo campo do nosso Brasil, uma questo se impe: as carimbadas marchas contemporneas expressam resistncias nova pedagogia produzida pelo hegemnico modelo capitalista, o projeto poltico da burguesia mundial? Pensamos que boa parte delas no, mas entendemos que existem possibilidades pedaggicas que podem atuar na direo da construo contra-hegemnica atravs do que denominamos contramarcha. Ou seja, h uma nova pedagogia que se apresenta no tanto para contestar a pedagogia das marchas, mas para, ento, reinventar a marcha indicada por Freire, qual seja, a marcha da humanizao de todos os homens e todas as mulheres. A discusso aqui proposta, questionando universais e fragmentos, quando isolados, toma o caminho da educao popular como campo articular da unidade na diversidade, categoria central, em Freire, para aproximar educao e poltica.
Palavras-chave: Paulo Freire. Fragmentos. Pedagogia das Marchas. Pedagogia da Contramarcha.
Explicitando surpresas contemporneas...
Para dar conta da discusso acima proposta, o escrito parte de trs registros: o primeiro extrado
do texto Anotaes sobre unidade na diversidade (Freire, 1997). Freire inicia a discusso
refletindo unidade dialtica nas obras dos anos 60-70 (1979, 1981, 1982, 1983), perodo de
exlio. Unidade na diversidade tema que aparece em obras dos anos 90 (1993, 1994, 1995,
1997), reflexo organizada aps ter estado frente da SME/SP, contexto para ser considerado na
exposio e na anlise dos escritos acerca da relao entre unidade e diversidade.
O segundo registro tomado da obra Metafilosofia de Lefebvre (1967). Da inevitvel
convivncia humana, no para poucos enfadonha e enjoada, mas sempre desafio existencial da
maior grandeza na constituio do humano, imperativo optar por encontros que possam
aproximar fragmentos (revolucionrios, na sua origem, por natureza), presentes nas pessoas e
grupos que conservam a capacidade da indignao ante a sociedade que se organiza
endogenamente excludente, acreditando que, embora vivendo num mundo despedaado, h
algo que resiste alienao: (...) o resduo (...), o que h de mais precioso. O resduo seria o
ponto de partida, o despertar, e a mobilizao dos resduos a esperana de uma metamorfose do
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cotidiano (...) (CORBESIER, in LEFEBVRE, 1967, p.53). central, para tanto, reconhecer que
cada sistema deixa um resduo, que lhe escapa, que lhe resiste, e de onde pode partir uma
resistncia efetiva (prtica) (LEFEBVRE, op.cit., p.373). Com tal indicao, Lefebvre busca
(...) detectar os resduos -nles apostar - mostrar nles a preciosa essncia - reuni-los - organizar
suas revoltas e totaliz-los. (id, p.375).
Por fim, um terceiro registro: Freire, ao fechar seu ciclo entre ns, provvel um tanto inquieto
com a precria recepo ao tema da autonomia (FREIRE, 1996), escreve Cartas Pedaggicas,
bem mais tarde publicadas na obra Pedagogia da Indignao (FREIRE, 2000), organizada pela
Professora Ana Maria Arajo Freire. Os temas que Freire aborda nas Cartas Pedaggicas
(ltimos escritos/97) expressam a sua importncia para a educao, o seu legado sociedade no
seu conjunto e as urgncias do nosso tempo. A centralidade a indignao: cinco adolescentes
mataram hoje, barbaramente, um ndio patax, que dormia tranquilo (...). Disseram polcia que
estavam brincando. A indignao com a brincadeira de jovens, que j no sabem o que fazer
com tanta liberdade que presumem ter, revela temas com os quais Freire se ocupa na fase final de
sua vida. Para Freire, a indignao central para que se possa trabalhar com o acolhimento ao ...
outro, o respeito ao mais fraco, a reverncia vida, no s humana, mas vegetal e animal, o
cuidado com as coisas, o gosto da boniteza, a valorao dos sentimentos ... (FREIRE, 2000,
p.66). Para a elaborao da indignao, aponta as marcha (FREIRE, 2011) como diretriz
pedaggica e poltica que ganha importncia num tempo bastante tomado por incertezas e vazios.
O caminho indicado juntar descobertas, reflexes singulares e escritos de autores diversos, com
as diversas leituras de realidade que se realiza. Ou seja, Freire aponta o caminho das marchas1
como mpeto da vontade amorosa de mudar o mundo.
Tomando as referncias acima apontadas, a reflexo aqui proposta parte de uma posio: a
inconformidade em relao imposio de universais e ditadura de fragmentos base terica
que perpassa a biobibliografia de Freire. Sob tal compasso, o texto tem a pretenso de provocar
engajamento em processos de transformao da escola e da educao em geral relativamente ao
debate contemporneo que travado em torno de diversidade e educao, indicando as
marchas como pedagogia que Freire aponta em seus ltimos escritos.
1http://www.youtube.com/watch?v=MZQtP-7Ezbw , em 5/10/http://www.youtube.com/watch?v=MZQtP-7Ezbw, em 5/10/2011, s 15h08.s 15h08.
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Ante tal desafio, Freire coloca uma questo central educao no mundo contemporneo: tendo
presente a democratizao da sem-vergonhice, quais possibilidades tm a escola e o professor de
atuarem na perspectiva da produo de subjetividades (e intersubjetividades) crticas? Estaro
fadados a reforar a individualizao das pessoas na luta por espaos (fragmentos econmicos e
afetivos) que o mundo da cultura capitalista tanto preza, ou podem atuar na contramo das ondas
do mercado...? Atada s provocaes que abrem este texto, escola e educador no estaro ora
tomados por universais, impostos pelos modelos de produo e consumo, ora atuando sob o
embalo de fragmentos...? A reflexo de Freire sugere questionamentos: ante a diferena com a
qual cada educando vai para a sala de aula, por exemplo, como atuar a favor da mudana do
complexo momento cultural exposto, quando pares conceituais como universal e fragmento,
identidade e diferena, so, de forma maniquesta, postos em irreconcilivel oposio? De que
maneira atuar a favor do reconhecimento das diferenas quando estas acentuam desigualdades ou
inferiorizam pessoas? Para Freire, pelo dilogo, os diversos fragmentos podem ser publicizados,
em confronto com outros fragmentos, objetivando novas snteses, sempre provisrias, sem o que
no acontece projeto poltico alternativo. No campo educativo, o desafio considerar o que cada
um sabe, reconhecendo que o conhecimento ultrapassa os limites expostos, a partir de novos e
renovados objetivos (epistemolgicos e polticos), passando, sempre, pelo crivo da reflexo tica.
Desafios educao popular? Sim, e por isso, caminho para indicarmos uma perspectiva
pedaggica que aponte para a contramarcha enquanto movimento, no apenas para acolher o
diferente, mas com ele organizar encontros de diferentes em busca de unidade mnima para,
assim, atuar a favor da dignidade de todos os humanos.
Rastreando as marchas em Freire e entendendo-as na atualidade enquanto potencialidade
na construo da contramarcha.
Freire, em vrios momentos de seus textos, aponta o tema das marchas. Ele aponta para a
escola como ... aventura, que marcha, que no tem medo do risco, por isso que recusa o
imobilismo. A escola em que se pensa, em que se atua, em que se cria, em que se fala, em que se
ama, se adivinha, a escola que apaixonadamente diz sim vida. (1993, p.63).
Mirando a escola, tambm questiona a marcha acertada, nos trilhos como afirma. Alerta a
escola que treme ... de medo s em ouvir falar de liberdade, de criao, de aventura, de risco.
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Para ela o mundo no devia mudar e (...) jamais deveramos sair dos trilhos que bitolam nossa
passagem pelo mundo. Marchar nos trilhos j postos para ns, eis o nosso fado, a nossa
sina.Fazer os caminhos caminhando, recriar o mundo, transform-la, jamais! (id., p.143).
Embora a escola, sob a perspectiva da classe dominante, trabalha para preservar a status
quo, para Freire, ela (a escola) ... se d tambm, independentemente do querer dominante, a
outra tarefa que contradiz aquela. Tarefa de desvelamento do real. Esta tarefa, sem dvida,
pertence queles educadores que esto aderindo, marchando, na direo dos interesses na
realidade, portanto, de desmistificao da ideologia dominante. (FREIRE, in GADOTTI e
outros, 1986, p.78). Freire reconhece, porm, que quem se bate para desocultar a realidade
desmistificando a reproduo da ideologia dominante nada contra a mar. Da a necessidade de
usar manhas a que j me referi. (ibid.).
Percebendo que o jeito humano de viver ser mais, Freire aponta para a marcha que
nos convoca ao [...] necessrio alargamento de horizontes que nasce da tentativa de resposta
necessidade primeira que nos fez refletir sobre a prtica tende a aumentar seu espectro. O
esclarecimento de um ponto aqui desnuda outro ali que precisa igualmente ser desvelado. Esta a
dinmica do processo de pensar a prtica. (ibid.)
No percurso da histria de exlio, mirando sistemas polticos como o chileno, depara-se
com a retorno da marcha e com a certeza que a marcha um caminho que, sendo feito
caminhando, faz bem. Assim fala acerca dos que, arrependidos, abandonavam a marcha: de
novembro de 1964 a abril de 1969, acompanhei de perto a luta ideolgica. Assisti, s vezes
surpreso, aos recuos poltico-ideolgicos de quem, tendo proclamado sua opo pela
transformao da sociedade, assustado, arrependido, voltava medroso do meio do caminho e se
tornava ferrenhamente reacionrio. (1994, 3.ed., p.40) E fala dos que continuavam a marcha:
mas vi tambm o avano de quem, confirmando seu discurso progressista, marchava coerente,
sem fugir da histria. Vi igualmente a caminhada de quem, de uma posio inicial mais do que
tmida, buscou, se firmou e se afirmou numa radicalidade que jamais se alongou em sectarismo
(ibid.)
Sem temer classificaes, Freire fala de converso, apontando, sempre, para a idia de
marcha: evidentemente, quando usei a palavra converso por que negar? , eu a usei
condicionado por minha formao crist. A converso no fundo uma caminhada, e nesse
sentido aqui usado uma caminhada que se d na esfera do plo dominante para o plo
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dominado, mas s se completa na travessia mesma, s se d na marcha. No no gabinete. (id.
p.81). E falando em converso, elementos individuais, alm do que ningum faz a sua travessia
em termos totais, porque ela no acontece simplesmente por um ato de vontade, Paulo afirma
que tal perspectiva se d na ... caminhada mesma, na marcha: no susto, no medo, na dvida, na
coragem, no desprendimento. Afinal de contas tudo isso so momentos, o momento do medo, do
desprendimento, etc. Os momentos da travessia. (ibid.).
Servindo-nos de fontes do mundo virtual, localizamos uma entrevista reveladora e de
sntese dos principais temas de Freire. Indica, pouco antes de sua partida (para continuar
caminhando conosco!), as necessrias marchas dos que no tm escola, dos reprovados, dos
que se recusam a uma obedincia servil, dos que querem amar e no podem, dos que se
rebelam, dos que querem ser e esto proibidos de ser. Por isso afirma: eu morreria feliz se
visse o Brasil cheio, em seu tempo histrico, de marchas, tomando o MST como referncia para
tal pedagogia, pedagogia esta, alis, propulsora de uma perspectiva de formao das pessoas
contra uma vontade reacionria, histrica, implantada no Brasil. Ou seja, com a conclamao
da passagem da indignao s marchas, Freire nos convoca realizao de uma nova pedagogia:
da superao da sem-vergonhice e a favor da decncia, uma pedagogia que atua a favor da
dignidade de todas as pessoas.2
Nas linhas acima, lemos premissas freirianas inseridas a um contexto histrico referente a
meados dos anos 1990. Paulo Freire no viveu o desenvolvimento do capitalismo na virada do
milnio atual. No viveu para ver e escrever sobre a consolidao da ideologia da Terceira Via3,
sendo a grande marcha que encontrou espaos ociosos na escola ao se consolidar no discurso nas
universidades, nas marchas (nas contramarchas?) que, aparentemente, parecem ser manifestaes
dos oprimidos, mas que, no entanto, evitam que estes enfrentem os conflitos sociais com os quais
convivem. E isso nos impe pensarmos que a leitura que a Pedagogia do Oprimido traz deve ser
ao contnua, ao contrrio de sua defesa, sem reinveno.
Aqui, ento, se faz necessrio um questionamento: as marchas contemporneas so
resistncias nova pedagogia da hegemonia do capital4, o projeto poltico da burguesia mundial?
2http://www.youtube.com/watch?v=MZQtP-7Ezbw , em 5/10/2011, s 15h08.3 Constitui um programa poltico mundial, cuja premissa bsica corresponde s foras sociais anticapitalistas, que foram enterradas com os escombros do Muro de Berlim (GIDDENS, 2001).4 Ver: A Nova Pedagogia da Hegemonia: estratgias do capital para educar o consenso, de Lcia Maria Wanderley Neves (Org.). So Paulo: Xam, 2005.
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Pensamos que a maioria, no. Porm, entendemos que existem possibilidades pedaggicas que
possam atuar na direo da construo contra-hegemnica, a contramarcha.
Avanando: a diversidade na unidade constituindo a pedagogia da contramarcha
Lendo o acima dito, leituras de Paulo Freire podem nos levam a uma fecunda discusso
acerca da estreita relao entre unidade e diversidade, apontando pedagogia da contramarcha.
Como anunciado acima, Freire escreve sobre unidade dialtica acentuadamente nas obras
escritas nos anos 60-70, perodo de exlio, e sobre unidade na diversidade, nas obras dos anos 90.
Referenciados nas discusses freirianas indicadas acima, advogamos que se torna principal
apontar questionamentos acerca das atuais discusses que envolvem diferena, diversidade,
igualdade, unidade e educao. Tais questionamentos nascem de uma constatao: a cultura
capitalista impe modelos aos quais os novos atores sociais tm acesso por ritos de iniciao, que
no pouco garantem hegemonia ao molde dominante e dificultam insero crtica de quem inicia
trajetria social. o caso de jovens, por natureza portadores de impulsos mudana, no raro
reveladores de umbilical dependncia ao modelo cultural vigente.
Cabe adiantar que tomamos, aqui, diversidade no sentido da percepo da alteridade, da
diferena e da dessemelhana, dimenso, assim, que se contrape identidade. Seguindo Souza
(in TIBURI et al., p.241), se partirmos da idia da falncia da mera identificao entre
identidade e subjetividade, possvel concluir que aberto est o [...] espao de
imponderabilidade, a ser preenchido pelo diferente, a ser construdo como significante para alm
das determinaes da mera identidade, ou seja, como no determinvel a priori pela identidade.
E ante tal debate, qual contribuio Freire traz ao debate para a decifrao das afirmaes
acima, com a particular indicao de elo entre unidade, diversidade e pedagogia das marchas
(contramarchas?)? Freire no bblia, no assina dogmatizaes, no quer ser lido de forma
laudatria ou passar por crtica uniforme, sob pena de atuarmos a favor da negao do movimento
que ele sempre adensou sua biobibliografia.
Refletir a relao entre diversidade, fragmentos e pedagogia das marchas (aqui da
contramarcha) demanda admitir, inicialmente, que as diferenas culturais no podem ser
concebidas separadamente de relaes de poder (SILVA, 1999) e, estas, separadas de universais
(provisrios), historicamente fundantes. Na obra Poltica e Educao, j citada, Freire aponta
para quatro temas com poder de indicao de referncias fundantes construo da pedagogia da
contramarcha. Inicia afirmando que a) as diferenas interculturais existem e apresentam cortes:
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de classe, de raa, de gnero e, como alongamento destes, de naes. Avana lembrando que b)
essas diferenas geram ideologias, de um lado, discriminatrias, de outro, de resistncia. Que
c). impossvel compreend-las (as diferenas) sem a anlise das ideologias e a relao destas
com o poder e com a fraqueza. E conclui apostando que d) impossvel pensar, pois, na
superao da opresso (...), primeiro, sem uma compreenso crtica da Histria, na qual,
finalmente, essas relaes interculturais se do de forma dialtica (...). Segundo, sem projetos de
natureza poltico-pedaggica no sentido da transformao ou da re-inveno do mundo (1997a,
p.31-2), bem indicando, aqui, a contramarcha como caminho para seguir caminhando.
E Freire faz avanar a reflexo acima ao retomar a concepo de Histria que sempre o
acompanhou, da mesma forma, base para a pedagogia da contramarcha: pensar a Histria como
possibilidade reconhecer a educao tambm como possibilidade. reconhecer que se ela, a
educao, no pode tudo, pode alguma coisa. Sua fora (...) reside na sua fraqueza. E conclui
apontando desafios: uma de nossas tarefas (...) descobrir o que historicamente pode ser feito
no sentido de contribuir para as transformaes do mundo, de que resulte um mundo menos
redondo, menos arestoso, mais humano, e que prepare a materializao da grande Utopia:
Unidade na Diversidade. (id., p.32), indicao, cabe reafirmar, bem provocadora ideia de
pedagogia da contramarcha.
A leitura de Freire nos leva a Lefebvre (1967, p.373), para quem fundamental trabalhar
para juntar fragmentos, auscultar experincias, construir (conceitualmente) totalidades, universais
histricos e snteses provisrias, abrindo a possibilidade de descobrir novos horizontes do fazer
das pessoas e produzir sentido vida e luta por ultrapassar limites do tempo presente,
enfrentando relativismos culturais. Tal desafio pode dar-se pela retomada do conceito de classe
social, no s dimenso de anlise do lugar onde os humanos produzem o que produzem, mas
condio de possibilidade de sua compreenso como seres que amam e so amados, que
exploram ou so explorados (MARTINS, 1996, p.23). Coerente com sua histria, classe, para
Freire, um conceito que no eliminado do dicionrio da vida por decreto ou discurso
contrrio: os discursos neoliberais, cheios de modernidade, no tm fora suficiente para
acabar com as classes sociais e decretar a inexistncia de interesses diferentes entre elas, bem
como no tm fora para acabar com os conflitos e a luta entre elas. (1994, p.43), conceito, alis,
bem caro ao tema das marchas/contramarcha.
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Uma leitura que cabe nessa aposta ao retorno do conceito de classe, enquanto organizador
da pedagogia da contramarcha, questionarmos contra o que estamos lutando: a favor de quem j
no parece suficiente... Pois, sabemos, concordando com Wood (2003), que o capitalismo
aproveita em benefcio prprio toda a forma de explorao extraeconmica disponvel em
qualquer conjuntura e a transforma em novas formas de equilbrio hegemnico. E pode
sobreviver, inclusive, mesmo que fossem eliminadas todas as formas de opresso, exceto ao fim
da explorao de classe.
nesse contexto que cabe perguntar como se organizam as relaes em geral, em
particular a educao, a partir do que, com Freire, a aposta juntar fragmentos, buscando, como
mtodo, descobrir o seu potencial de mudana dos mesmos, indicador central para a realizao da
educao popular, apontando, assim, elementos instituio da pedagogia da contramarcha.
O ponto de partida o intricado momento pelo qual passam a humanidade e a organizao
das relaes sociais: produo e acumulao flexvel, desregulamentao da relao capital-
trabalho, automao acentuada da produo e da vida, desemprego estrutural, degradao do
meio ambiente, desperdcio, venerao ao suprfluo e ao descartvel...
Os humanos, por sua vez, lutam para a elucidao cada vez mais tensa e intensa das
diferenas, pois carregam consigo a sua origem, a sua formao, a sua cultura, a sua capacidade
de reconhecer e nomear o mundo e nele agir. Mais ainda: cada humano tem entendimentos
diversos do seu contexto. As prticas, por conseqncia, so diversas. No obstante sua
idiossincrasia, o humano, ao atuar no mundo, constitui relaes. As mensagens sociais, recebidas
de maneira diferenciada, encerram a definio de normas de conduta aguardadas de todos
quantos vivem em sociedade. So moralidades que caminham cada vez mais por frgeis
referncias. E a sociedade, por suas instituies, atua para formar e consolidar conceitos e
representaes que ajudam a estabelecer regras que condicionam (determinam?) o
comportamento das pessoas, nem sempre por elas aceito, pois tais regramentos assumem, no
raro, carter impositivo. Ao descartar imperativos morais impostos, as pessoas so consideradas
desviantes, pois transitam margem de comportamentos esperados. Aos marginais reservam-se
penas corretivas na escola, nas instituies especializadas ou no seio da prpria famlia.
Vivemos um tempo histrico no qual as pessoas tm suas identidades esfaceladas e
multiculturalizadas, com aparente validade, mas onde as diferenas sociais, por gnero e etnia,
por exemplo, continuam gritantemente desiguais. O reconhecimento do multicultural,
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particularmente no mbito da institucionalizao de polticas pblicas, no a condio de
possibilidade de reunio de vrias culturas para pensar a constituio da unidade, mas, no raro, a
instaurao de novas lutas fratricidas e fragmentadoras.
O ponto de partida desde o qual retomamos Freire para pensar o tema da diversidade e a
pedagogia da contramarcha a historicidade da sua concepo de dilogo. A filosofia freiriana
revela a condio histrica na qual os humanos esto inseridos (no determinados, mas
condicionados), e desde a qual constroem, nos limites das possibilidades que experienciam, o
jeito que descobrem de ser, a cada dia, mais livres. S possvel, porm, navegar pelas incurses
filosficas de Freire se assumirmos a necessria condio histrica da existncia, se admitirmos
que as circunstncias desumanizam muitos homens e muitas mulheres e que, pela mesma, a mo
humana, esperta, deve interferir na formao das pessoas para a prtica da humanizao.
E, por que Freire aposta que do fragmento que possvel construir snteses, sempre
provisrias, agora na perspectiva da indicao de uma pedagogia da contramarcha? Freire atua,
por primeiro, para rechaar construes culturais essencialistas e estticas e coloca-se a favor da
concepo de cultura dinmica. Por isso (2000, p.58) tem a histria como possibilidade,
quando reconhece (...) a importncia da conscincia no processo de conhecer, de intervir no
mundo. A Histria como tempo de possibilidade pressupe a capacidade (...) de observar, de
conhecer (...), de avaliar, de decidir (...), de ser responsvel (...), tico, assim como de transgredir
a prpria tica. Para ele, no possvel educar para a democracia, para a liberdade, para a
responsabilidade tica na perspectiva de uma concepo determinista da Histria. E assim que
Freire mostra que no esqueceu que a histria tarefa humana, desafio permanente
reconstruo do j construdo e edificao do novo.
Freire afirma que a partir do contexto que construmos nossas marchas, do que derivam
os fundamentos (ticos e polticos) que ajudam a sustentar a defesa, por um lado, do
reconhecimento e do respeito diversidade; e, por outro, da ao coletiva a favor da
transformao das atuais relaes sociais e produtivas, quando todos e todas, homens e mulheres,
tm direito vida plena. Transformao aqui entendida enquanto processo de supresso de uma
sociabilidade de ordem burguesa.
Ao indicarmos que central juntar fragmentos em tempos to modernos, torna-se
necessrio problematizar os temas da diversidade e das marchas na atualidade, a fim de
evitarmos uma leitura relativista da histria. Abordar a diversidade em Freire, desconsiderando o
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antagonismo de classes, dar voz e vez pedagogia do modelo capitalista contemporneo.
Embora o circuito acadmico tea colchas de fragmentos tericos muitas vezes antagnicos
para defender diversidade, igualdade..., entre outras Paulo Freire no o fez em termos de
escritura. H clareza em algumas de suas passagens em relao unidade na diversidade,
principalmente em seu penltimo livro, Sombra dessa Mangueira. A diversidade conclamada
por Freire a diferena no antagnica: Se sou progressista, no posso juntar s minhas as
foras de quem nega o direito de voz s classes populares. Impe-se a coligao entre foras que,
mesmo diferentes, no se antagonizam e com as quais se pode partilhar a responsabilidade de
governar (FREIRE, 1995, p.48).
E Freire (1995) ainda vai mais adiante, defendendo que a esquerda precisa lutar pela
unidade na diversidade para vencer a direita e, portanto, democratizar a sociedade. Claro que
aponta, ao mesmo tempo, as dificuldades que a esquerda tem de fugir dos velhos sectarismos.
Essa passagem de sua obra sugere, inclusive, potencial criativo aliado perspectiva gramsciana
de partido revolucionrio e seu vnculo com as prticas educativas.
Acima de tudo, Freire mostra sensibilidade para captar movimentos que envolvem a
discusso em torno de diferena, de alteridade e de identidade, em tensa negao/afirmao ante
universais com jeito hegemnico e imutvel, indicando, assim, elementos para a composio da
pedagogia da contramarcha.
Caminhando constituio da pedagogia da contramarcha
Da leitura dos textos de Freire, ento, aparece um indicador metodolgico para organizar
a atuao a favor da contramarcha, no complexo mundo acima parcialmente desenhado: falamos
da construo de uma condio para que os oprimidos se reconheam atores da histria. Para
tanto, fundamental optar por tarefas tericas que possibilitem tomar o mundo das diferenas e
dele capturar, compreender e fazer falar o mundo da multiculturalidade, para, ento, atuar a favor
da constituio da unidade. Por isso, retomando idia j expressa, central colocar s cincias da
educao, centralmente, uma tarefa e com ela atuar como pesquisadores e pesquisadoras: refletir
o presente, com as referncias do passado e convocar os humanos humanidade para (a)
reconhecer as diferenas, (b) faz-las dialogar com outras diferenas ... e (c) produzir consensos
mnimos para a produo da felicidade para todos. o caminho da marcha na construo
contramarcha.
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fundamental, ento, trazer mapeamento acerca de tentativas de elaborao de matrizes
para a construo de marco terico compreensivo do fenmeno educacional multicultural. O que
parece urgente fazer avanar a avaliao da compreenso da questo, possibilitando, assim,
certa limpeza de terreno, ou seja, separando a literatura que no passa de moda, de mero desfile,
de mera produo de novas categorias, para que, ento, os oprimidos tenham acesso passarela
da histria. O fundamental evitar elaboraes que se entregam produo de abstratos. O
central, apostamos, fazer densa compreenso dos lugares onde as pessoas produzem sua
sobrevivncia material e simblica e suas configuraes culturais.
A tarefa desenvolver uma leitura crtica, comprometida, que aguce a sensibilidade para
constatar, escutar e refletir com as diversas manifestaes que se apresentam (TORRES, 2000,
p.85). Para Freire, o imediato incompreensvel (...) fora de seu contexto histrico: espao e
tempo, fazendo dele (o imediato) uma referncia privilegiada para construir o terico.
(ROSAS, 1996, p.560). A opo aqui proposta tem a realidade concreta envolta numa dialtica
entre objetividade e subjetividade, realidade esta composta pelos fatos e dados e mais a
percepo que deles esteja tendo a populao neles envolvida (FREIRE, in BRANDO, 1982,
p.35). O sonho, a denncia e a reflexo aqui expostos colocam a tarefa de pensar possibilidades e
limites da escola, onde justia social e superao de desigualdades atreladas a classe, sexo e raa
podem ser experiencialmente superadas. Ou seja, algo necessrio produzir em termos de
inteligibilidade dos fenmenos isolados. Conforme McLaren, tal exerccio ser possvel se as
escolas ajudarem suas alunas e alunos a analisar o modo como suas subjetividades foram
ideologicamente formadas, no interior das foras e das relaes de explorao do capitalismo ...
(MCLAREN, 1999, p.39). Em dilogos formativos, superando qui, na expresso de Kurz o
pessimismo cultural reacionrio e ideologia liberal progressista (1999, p.5), fundamental
transgredir cdigos culturais do capitalismo, quando o que urgente problematizar e/ou
investigar visa produzir solidariedades, com novas orientaes simblico-culturais, pela crtica a
uma ordem social exaurida, com destaque a que acentua, seguindo Cirigliano, la naturaleza
misma del capitalismo que se asienta en el egosmo. (CIRIGLIANO, 2000, p.10).
Para atuar a favor da contramarcha, fundamental trabalhar para a superao do
individualismo, solitrio e narcsico, e das leis do mercado que querem organizar a vida,
fragilizando, pela globalizao, individualidades, responsabilizando-as por descontextualizados
fracassos presentes em suas histrias e conjunturas. O sofrimento, material e simblico, pode
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produzir resistncias em forma de redes de solidariedade, instaurando processos de produo de
prticas, inicialmente fragmentadas, que, ajuntadas, podem instalar contra-hegemonia. pelo
contraditrio ento que possvel reagir e criar alternativas ao estado social posto, caminhando
na direo da mudana, ou seja, apontando para a contramarcha como concepo poltica e
pedaggica. O dilogo, ontolgico companheiro, a base instalao de processos de
compreenso e explicao, contando com a complexidade que lhe prpria. A indignao e no a
resignao ao status quo, colonizado e conformista (que procura justificar perversamente a
dominao e a reduo da diferena sua explicitao), produz argumentos a favor da
convivncia intercultural, o que requer aprendizagem, tarefa esta novamente posta escola e aos
educadores, ressalvando: a educao pode algo, mas no messinica instituio na qual toda a
perspectiva de mudana est contida, apontando, assim, pedagogia da contramarcha.
A opo central para dialogar com a unidade na diversidade , como afirma Torres (1998,
p. 96), a busca permanente da fuga da prtica de focalizar a educao partindo das classes
hegemnicas: o trabalho de Freire, ao contrrio, tem mostrado outra perspectiva: a necessidade
de redefinir a educao partindo das classes subordinadas.
Para desenvolvimento dessa nova cultura, a ser desenvolvida pela classe oprimida e
atravs de seus intelectuais orgnicos, algumas premissas de Freire so importantes, concordando
com Torres (1998): (1) crucial estudar o processo educacional partindo de dupla perspectiva:
usando a lente da classe hegemnica (reproduo de relaes sociais) e usando a lente das classes
subordinadas (a contra-hegemonia); (2) a educao enquanto conhecimento compreendido como
instrumento de luta a favor da contra-hegemnica; (3) designar prticas educacionais autnomas
inseridas em comunidades urbanas e rurais expropriadas pode ajudar a ampliar a organizao e o
poder do oprimido; (4) a relao dialtica entre lideranas e massas tem um terreno rico para
desenvolver a liderana de jovens trabalhadores.
As premissas freirianas apontadas por Torres nos remetem seguinte ideia: ler e escrever
sobre os oprimidos no corresponde, necessariamente, estar com eles. E aqui talvez esteja o peso
da educao popular, ou seja, no pouco se escreve sobre os oprimidos, mas no se est com eles,
embora o lcus de trabalho sejam fronteiras com espaos marginalizados.
Assim, a investigao, no campo da explicitao das relaes entre diversidade e unidade,
um ato de criao e no de consumo, porque dialgica, comunicativa e participante, razo pela
qual o pressuposto desafiadoramente antropolgico e tico: no posso investigar o pensar do
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povo se no penso. Porm, no posso pensar autenticamente se o outro tambm no pensa.
Simplesmente, no posso pensar pelo outro, nem para o outro, nem sem o outro (FREIRE, in
TORRES, 1979, p.133). As pessoas com as quais temos dialogado para pensar
multiculturalidade, interculturalidade, diversidade e unidade, ao explicitarem fragmentos de suas
memrias, de suas biografias, de suas compreenses de mundo, reconstituem experincias e
localizam situaes episdicas ao longo de suas inseres na escola e na sociedade, gerando
representaes que contam percepo, compreenso e fundamentao de sua prpria
identidade ante o diverso. Outras situaes, tomadas desde o mundo da escola, carregam consigo
interdies prprias de uma cultura hegemnica que busca perpetuao da identidade
padronizada. Outras prticas escolares de cultura dominante apresentam, porm, quebras em
relao a modelos de produo de subjetividades. Por aqui, penso, passa algo instigante em
relao s tarefas dos educadores: a construo de um discurso explicativo, procurando levar a
cabo uma reflexo tico-terica acerca dos dados que tm origem no encontro intercultural que a
escola propicia.
Ficamos, em sntese, com a indicao de tarefa ao pesquisador-educador: observar o
anterior, recolher material e elaborar reflexes que nos aproximem da compreenso da complexa
realidade socieducativa que vivem as pessoas das mais diversas comunidades, interculturalmente
constitudas, e avanar, pelas contramarchas, na provocao mudana, mudana esta que nada
mais aponta a no ser humanizao inteira de todos os humanos. Para tanto, a sempre atual
Pedagogia do Oprimido, indica os centrais elementos da pedagogia da contramarcha: a co-
laborao, a unio, a organizao e a sntese cultural (FREIRE, 1982), sistematizando,
assim, a instituio da unidade na diversidade. a travessia proposta por Freire, na perspectiva
da construo da liberdade para todos os humanos. Nada, porm, est pronto: caminho que faz
caminhando (FREIRE e HORTON, 2003).! Porm, por ora, em tempos de desfiles, andamos
ainda sem marcar o caminho...
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