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VIII COLÓQUIO PAULO FREIRE EIXO TEMÁTICO: Educação e Cultura O lugar da criatividade no ensino da linguagem visual ou como o Livro Educação como Prática da Liberdade proporcionou inquietações e um (re) pensar/ressignificar a relação entre a criatividade e o ensino da Linguagem visual Beatriz de Barros de Melo e Silva 1 Muitos são os caminhos possíveis para se chegar a uma mudança real, expressa na prática, a partir de suporte teórico. A primeira grande mudança na nossa prática pedagógica se deu a partir da leitura de Freire dos livros Educação como Prática da Liberdade, Pedagogia do Oprimido e Pedagogia da Autonomia. E ao longo da nossa vida profissional, como professora da linguagem visual, muitas vezes voltamos a esses textos, repensando, reconsiderando e, finalmente, reorientando o trabalho. Este escrito é um recorte da experiência de gestar uma tese de doutorado em Educação. É registro das buscas iniciais para resolver problemas práticos da leitura de mundo a partir do conhecimento da linguagem visual, baseadas na perspectiva teórica que por fim perseguimos: a humanização do ser humano. No livro Educação como Prática da Liberdade encontramos uma preocupação que se relaciona também com o ensino da linguagem visual. Freire (1999, p 51, 52) nos lança em rosto: Uma das grandes, se não a maior, tragédia do homem moderno, está em que é hoje dominado pela força dos mitos e comandado pela publicidade organizada, ideológica ou não, e por isso vem renunciando cada vez, sem o saber, à sua capacidade de decidir. Vem sendo expulso da órbita das decisões. As tarefas de seu tempo não são captadas pelo homem simples, mas a ele apresentadas por uma “elite” que as interpreta e lhas entrega em forma de receita, de prescrição a ser seguida. E quando julga que se salva seguindo as prescrições, afoga-se no anonimato nivelador da massificação, sem esperança e sem fé, domesticado e acomodado: já não é sujeito. E Freire continua a afirmar que o homem simples é convertido a puro espectador. O que isso pode significar exatamente? Que conseqüências futuras isso pode proporcionar não só ao ser humano como indivíduo, mas a uma sociedade? Esse trecho é impactante para os que almejam uma educação para a liberdade. E é também grande responsabilidade colocada diante do professor de qualquer disciplina, porém, mais ainda para a professora da linguagem visual, a arte-educadora, como nos consideramos. Ora, o objetivo de Freire (1999) para a educação seria o de levar o ser humano da coisificação para a humanização, de espectador a percebedor 2 , de passivo a interferidor de seu entorno. A educação, para ele, seria a via de saída do panorama apresentado anteriormente. Mas como esse percurso poderia se dar? 1 Colégio de Aplicação do C.E./ UFPE. Doutora em Educação/UDELMAR, Chile. [email protected]

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O lugar da criatividade no ensino da linguagem visual oucomo o Livro Educação como Prática da Liberdade

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VIII COLÓQUIO PAULO FREIRE EIXO TEMÁTICO: Educação e Cultura

O lugar da criatividade no ensino da linguagem visual ou como o Livro Educação como Prática da Liberdade proporcionou inquietações e um

(re) pensar/ressignificar a relação entre a criatividade e o ensino da Linguagem visual

Beatriz de Barros de Melo e Silva1

Muitos são os caminhos possíveis para se chegar a uma mudança real, expressa na prática, a partir de suporte teórico. A primeira grande mudança na nossa prática pedagógica se deu a partir da leitura de Freire dos livros Educação como Prática da Liberdade, Pedagogia do Oprimido e Pedagogia da Autonomia. E ao longo da nossa vida profissional, como professora da linguagem visual, muitas vezes voltamos a esses textos, repensando, reconsiderando e, finalmente, reorientando o trabalho.

Este escrito é um recorte da experiência de gestar uma tese de doutorado em Educação. É registro das buscas iniciais para resolver problemas práticos da leitura de mundo a partir do conhecimento da linguagem visual, baseadas na perspectiva teórica que por fim perseguimos: a humanização do ser humano.

No livro Educação como Prática da Liberdade encontramos uma preocupação que se relaciona também com o ensino da linguagem visual. Freire (1999, p 51, 52) nos lança em rosto:

Uma das grandes, se não a maior, tragédia do homem moderno, está em que é hoje dominado pela força dos mitos e comandado pela publicidade organizada, ideológica ou não, e por isso vem renunciando cada vez, sem o saber, à sua capacidade de decidir. Vem sendo expulso da órbita das decisões. As tarefas de seu tempo não são captadas pelo homem simples, mas a ele apresentadas por uma “elite” que as interpreta e lhas entrega em forma de receita, de prescrição a ser seguida. E quando julga que se salva seguindo as prescrições, afoga-se no anonimato nivelador da massificação, sem esperança e sem fé, domesticado e acomodado: já não é sujeito.

E Freire continua a afirmar que o homem simples é convertido a puro espectador. O que isso pode significar exatamente? Que conseqüências futuras isso pode proporcionar não só ao ser humano como indivíduo, mas a uma sociedade?

Esse trecho é impactante para os que almejam uma educação para a liberdade. E é também grande responsabilidade colocada diante do professor de qualquer disciplina, porém, mais ainda para a professora da linguagem visual, a arte-educadora, como nos consideramos.

Ora, o objetivo de Freire (1999) para a educação seria o de levar o ser humano da coisificação para a humanização, de espectador a percebedor2, de passivo a interferidor de seu entorno. A educação, para ele, seria a via de saída do panorama apresentado anteriormente. Mas como esse percurso poderia se dar?

1 Colégio de Aplicação do C.E./ UFPE. Doutora em Educação/UDELMAR, Chile. [email protected]

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A resposta de Freire para alteração deste cenário de tragédia é tecida ao longo do livro estudado: a partir da conscientização, da criação e recriação, da decisão. Sem esses aspectos, não se pode esperar um sujeito que leia o mundo para daí poder intervir criadoramente.

Sendo nossa preocupação também essa “passagem” de espectador para percebedor, de sujeito passivo a produtor/autor pela especificidade da linguagem com que trabalhamos, procuramos, desde as nossas primeiras leituras de Freire, estabelecer as ligações das respostas dele com as nossas vivências no ensino da linguagem visual. E, mais recentemente, na experiência de produção de um trabalho científico que, partindo desse quadro de tragédia, perguntava sobre a criatividade desse homem simples, a criatividade do cotidiano e sua relação com o ensino da linguagem visual.

Desde já precisamos deixar claro que criatividade é esta de que vamos tratar. Mitjáns Martinez (2009, p. 14) nos lembra que na literatura científica, duas são as acepções de criatividade. A Criatividade, iniciando com letra maiúscula, “produção de novidade que tem um impacto significativo em um determinado campo e que é amplamente reconhecida e valorizada pela sua significação social” e a iniciada com letra minúscula, que “também se define pela significação social do produzido, porém, numa outra escala, ou seja, pela significação que pessoas conferem ao produzido em um âmbito reduzido (professores, pais, terapeutas, por exemplo)”.

Assim, como base da pesquisa de um doutorado, usamos o termo criatividade na acepção da palavra com letra minúscula, aquela que pode proporcionar a possibilidade de um viver mais rico para cada um de nós. Não sendo este relato sobre a pesquisa, mas um pensar sobre como o livro Educação como Prática da Liberdade nos apoiou na nossa discussão sobre o tema, passamos a acompanhar as proposições de Freire para saídas dessa “tragédia do homem moderno”.

Lemos que ele estabelece insistentemente a sua ideia de educação que tem como fim a participação democrática do homem em sua sociedade. Uma educação “que, por ser educação, haveria de ser corajosa, propondo ao povo a reflexão sobre si mesmo, sobre seu tempo, sobre suas responsabilidades, sobre seu papel no novo clima cultural...” “Uma educação que lhe propiciasse a reflexão sobre seu próprio poder de refletir” ... “Educação que levasse em consideração os vários graus de poder de captação do homem brasileiro da mais alta importância no sentido de sua humanização”. (FREIRE, 1999, p. 67). Segundo o autor (Idem, p. 96): “Necessitávamos de uma educação para a decisão, para a responsabilidade social e política”.

Freire (1999) estabelece etapas para o caminho da captação até a intervenção, percurso de emancipação e liberdade. A partir da leitura do livro tema do Colóquio estudamos as possíveis respostas de Freire.

A primeira fase da trajetória para um outro cenário possível – considerando que na época ele já pensava/sonhava com um outro mundo possível3 - foi a discussão da problemática vivida pelo homem, que não poderia ocorrer sem uma captação, sem uma

2 O termo é utilizado por Gardner (1997), a partir do estudo dos três sistemas: fazer, perceber e sentir, destacando a importância da palavra, que denota sujeito ativo, diferente de espectador, que assiste algo, que se relaciona a um caráter mais passivo.

3 Referência ao Fórum Social Mundial, iniciado em 2001. Informações emhttp://www.forumsocialmundial.org.br/index.php?cd_language=1

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leitura de mundo. É importante observar que a discussão e a compreensão de estar inserido nela, deveriam levar ao “diálogo constante com o outro”. Mas que não parasse por aí: que chegasse a “analise critica de seus ‘achados’, que o identificasse com métodos e processos científicos”. (Idem, p. 98)

Como segundo aspecto, sobre o caminho pensado por Freire demarcamos a conscientização. Para o autor, ajudar o homem é fazê-lo ajudar-se, tornar-se consciente de sua problemática e nela intervir. “É pô-lo numa postura conscientemente crítica diante de seus problemas” (FREIRE, 1999, p. 66). E, segundo Freitas (2008, p.101): “a conscientização requer o desenvolvimento da criticidade, que, aliada à curiosidade epistemológica, potencializa a criatividade da ação transformadora ante as situações-limite”.

Assim, como terceiro aspecto tratado por Freire, assinalamos a ação, que pressupõe criação e recriação: “captado um desafio, compreendido, admitidas as hipóteses de resposta, o homem age. A natureza da ação corresponde à natureza da compreensão. (FREIRE, 1999, p. 114)

Na relação com a nossa área de atuação, perguntávamos como vinha se dando a educação - o ensino e a aprendizagem – na linguagem visual hoje, e percebíamos que estávamos muito longe de apoiar essa educação almejada por Freire, pois, apesar do discurso mais contemporâneo de ser a arte linguagem, o que traz conseqüências e grandes mudanças pedagógicas, em sala de aula ainda podíamos encontrar abordagens tecnicistas e tradicionais das “belas artes”, com prioridade do fazer artístico técnico acima da expressividade e da construção de significados.

O percurso criador na linguagem visual se daria também neste mesmo movimento. A partir da percepção da necessidade de se resolver um problema, do movimento de conscientização da problemática levantada e das possibilidades possíveis para uma resolução, o ser humano se lança na aventura de chegar a um produto – objeto, ideia, proposição - que seja novo dentro de uma área de conhecimento ou novidade para si mesmo. Assim, criando e recriando, ele passa a intervir em seu entorno.

A pesquisa se deu a partir desse corpo teórico explicitando-se através da pergunta problematizadora – qual o lugar da criatividade – seu percurso e seus resultados em produtos – no ensino da linguagem visual?

Chegar a essa proposição de pergunta não foi tarefa fácil. A leitura do livro nos inquietou/levou /ensinou, a fazer a pergunta, ressignificando o que deveria ser o propósito do ensino da linguagem visual na contemporaneidade.

ReferênciasBODEN, Margaret A. Dimensões da Criatividade. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 1999.

FREIRE, Paulo. Educação como Prática da Liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999.

FREITAS, Ana Lúcia Souza. Conscientização. In Dicionário Paulo Freire.

GARDNER, Howard. Arte e Desenvolvimento Humano. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.

MITJÁNS MARTÍNEZ, A. Vygotsky e a criatividade: novas leituras, novos desdobramentos. In Giglio, Z.G; Weschsler, S.M.; Bragotto, D. Da criatividade à Inovação. Campinas, S.P.: Papirus, 2009.