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  • 2

    Fundamentao terica

    No presente captulo, abordo os modelos tericos adotados como base para

    este trabalho, que so a teoria dos polissistemas elaborada por Itamar Even-Zohar

    (1978, 1990) e os DTS Estudos Descritivos da Traduo, em especial, o

    conceito de normas de Gideon Toury (1995), que se refere s coeres

    comportamentais internalizadas que regem e moldam as tradues em uma

    determinada cultura. Apresento, ainda, os conceitos de reescrita, manipulao

    literria e patronagem formulados por Andr Lefevere (1992) e a questo das

    transcendncias textuais de Gerard Genette (1997a, 1997b), que incluem os

    paratextos e metatextos.

    2.1

    A estrutura da disciplina Estudos da Traduo e os DTS

    Em seu artigo The name and nature of Translation Studies (1988), que

    reproduz o trabalho que apresentou em 1972 no 3 Congresso Internacional de

    Lingstica Aplicada, em Copenhague, James S. Holmes props a criao de uma

    nova disciplina a que chamou de Estudos da Traduo, voltada para os problemas

    relacionados ao fenmeno da traduo como processo e como produto. Seria uma

    disciplina emprica, com o objetivo de descrever os fenmenos no mundo de

    nossa experincia e estabelecer princpios gerais por meio dos quais os mesmos

    possam ser explicados e preditos (Holmes, 1988, p.70-71).

    Holmes montou o arcabouo da futura disciplina, dividindo os Estudos da

    Traduo em dois grandes grupos, a saber, o dos estudos da traduo puros e o

    dos estudos da traduo aplicados, que por sua vez geram novas subdivises,

    com a observao de que todos os grupos e subgrupos so inter-relacionveis. O

    estudioso Gideon Toury, da Universidade de Tel-Aviv, traduz o chamado mapa

    da disciplina de Holmes no diagrama a seguir (1995, p. 10):

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    Figura 1 Mapa de Holmes dos Estudos da traduo

    Toury, ento, parte da teoria dos polissistemas formulada por Even-Zohar,

    e da definio e da estrutura da disciplina Estudos da Traduo propostas por

    Holmes em especial, do subgrupo de estudos descritivos, inserido no ramo de

    estudos da traduo puros para desenvolver seus estudos descritivo-

    explanatrios, por natureza empricos e indutivos (Martins, 1999, p. 55). Esses

    estudos configuraram uma nova abordagem para o estudo das tradues literrias

    que ficou conhecida pelo mesmo nome do subgrupo correspondente no diagrama

    de Holmes, ou seja, Descriptive Translation Studies (DTS).

    No modelo de Holmes (1988, p. 71-72), os DTS constituem o ramo da

    disciplina que mantm contato mais prximo com os fenmenos empricos que se

    encontram sob estudo e que, por sua vez, podem ser subdivididos em trs grandes

    tipos, conforme seu foco de interesse: (a) produto, que descreve as tradues

    existentes, onde o ponto inicial a descrio de tradues individuais ou focadas

    no texto, com uma segunda fase comparando descrio de tradues de um

    mesmo texto, seja na mesma lngua seja em lnguas diferentes; b) processo,

    voltado para a elaborao da traduo em si, procurando descobrir o que se passa

    na mente do tradutor, comparada pelo autor a uma caixa-preta; c) funo, que

    no tem interesse na descrio das tradues em si mesmas, mas na descrio dos

    lugares sistmicos que elas ocupam na cultura de chegada, sendo mais um estudo

    de contextos do que de textos.

    A interrelao entre produto, processo e funo assim descrita por

    Martins:

    Translation Studies

    'Pure' Applied

    Theoretical Descriptive

    General Partial Product Oriented

    Process Oriented

    Function Oriented

    Translator Training

    Translation Aids

    Translation Criticism

    Medium Restricted

    Area Restricted

    Rank Restricted

    Text-Type Restricted

    Time Restricted

    Problem Restricted

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  • 21

    [E]m princpio, a funo potencial de uma traduo no sistema que determina sua realizao lingustico-textual, ou seja, o produto, o qual, por sua vez, governa tanto as estratgias atravs das quais o texto-alvo gerado a partir de um texto-fonte quanto as relaes que os mantm integrados, ou seja, o processo. (2002, p.38-39)

    Segundo relata Theo Hermans, no comeo dos anos 1970, um grupo de

    pesquisadores de vrios pases sem muita ligao entre si comeou a desenvolver

    um novo paradigma para o estudo das tradues literrias, tomando por base uma

    teoria abrangente e uma pesquisa prtica contnua (1985, p. 10). Para Hermans,

    esse grupo geograficamente disperso, que no constitua propriamente uma

    escola, compartilhava de alguns pressupostos importantes: a) uma viso da

    literatura como um sistema complexo e dinmico; b) uma convico de que

    deveria existir uma interao contnua entre modelos tericos e estudos de caso; c)

    uma abordagem da traduo literria que fosse descritiva, orientada para o texto-

    alvo, funcional e sistmica; e d) um interesse pelas normas e restries que regem

    a produo e a recepo de tradues, pelas relaes entre a traduo e outros

    tipos de reescrita e, por fim, pelo lugar e funo das tradues, dentro de uma

    determinada literatura ou na interao entre literaturas (Hermans, 1985, p.10-11).

    O modelo dos DTS veio contrapor-se ao prescritivismo que caracterizava a

    grande maioria das abordagens anteriores, pois no impe diretrizes para a

    realizao de tradues supostamente ideais, nem emite juzo de valor sobre as

    tradues escolhidas como objeto de pesquisa, tratanto o texto traduzido as it is.

    O objetivo descrever as tradues para poder entend-las e explic-las, tentando

    no s determinar os vrios fatores que podem influenciar sua natureza (Hermans,

    1985, p. 12-13) mas tambm compreender como uma dada traduo funciona no

    sistema receptor, que lugar ocupa nesse seu novo ambiente. Para Hermans, o

    pesquisador deve trabalhar sem noes pr-concebidas do que se constitui uma

    traduo ou onde exatamente se situa a linha divisria entre o que e o que no

    traduo, posto que tais noes terminam por se revelarem normativas e

    restritivas. Em outras palavras, todo texto que circulou em uma dada comunidade

    cultural como traduo, mesmo que por um perodo curto, um objeto de

    pesquisa legtimo dos estudos da traduo a partir da abordagem descritivista.

    Como consequncia disso, o trabalho de pesquisa passa a ter tambm uma

    natureza historiogrfica.

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    2.2

    A teoria dos polissistemas de Itamar Even-Zohar e o conceito de

    normas de Gideon Toury

    Segundo Shuttleworth e Cowie em seu Dictionary of Translation Studies

    (1997, p.176), a teoria dos polissistemas teve origem nas ideias de Itamar Even-

    Zohar, da Universidade de Tel Aviv, durante seus trabalhos de pesquisa sobre o

    desenvolvimento e traduo da literatura hebraica nos anos de 1970. Tomando as

    contribuies dos formalistas russos, que consideravam o texto um sistema

    fechado, do qual se deveria fazer uma anlise interna, tendo como pressuposto

    adjacente a imanncia da obra (Martins, 2002, p. 36), Even-Zohar elaborou uma

    teoria incorporando as ideias do terico formalista russo Tynianov5, que levavam

    em conta as realidades sociais e a perspectiva histrica. Para Even-Zohar (2005,

    p.2), as vantagens de se introduzir o conceito de sistema so evidentes. Antes de

    Saussure, o foco situava-se na mudana histrica concebida em termos nada

    sistmicos, e isso era um obstculo observao do modo como uma lngua ia se

    alterando ao longo de diferentes perodos de tempo (ibidem, p.2). Dessa forma,

    para Shuttleworth e Cowie, o termo cunhado por Even-Zohar polissistema

    enfatiza a natureza dinmica e mltipla de sua concepo de sistema,

    distanciando-se da tradio saussuriana de um sistema totalmente fechado e

    preconizando no um sistema nico, mas um agregado de sistemas (1997, p.176).

    Como modelo terico, a teoria dos polissistemas proporciona, de acordo com

    Theo Hermans, um arcabouo adequado para o estudo da literatura traduzida, por

    se mostrar simples e robusta o bastante para ser atraente como ferramenta

    cognitiva e, ainda assim, flexvel e inclusiva o suficiente para adaptar-se a

    diferentes casos e situaes (1985, p. 12).

    Os elementos desse conglomerado heterogneo e hierarquizado de

    sistemas que interagem de forma dinmica entre si (cf. Shuttleworth e Cowie,

    1997, p.176-177) 5 A noo fundamental da evoluo literria, da substituio de sistemas, e o problema das tradies devem ser reconsideradas de outro ponto de vista [...]. Para analisar esse problema fundamental, devemos convir primeiramente que a obra literria constitui-se num sistema e que a literatura igualmente se constitui em outro. unicamente na base dessa conveno que podemos construir uma cincia literria que, no se satisfazendo na imagem catica dos fenmenos e das sries heterogneas, se prope a estud-las [...]. Tynianov, J.: Da evoluo literria. Em: Teoria da literatura formalistas russos. Traduo de Ana Mariza Ribeiro et alli. Rio de Janeiro: Editora Globo, 1971.

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    [...] esto em contnua luta, na medida em que so hierarquicamente posicionados; alguns ocupam uma posio mais central do que outros, sendo considerados centrais ou perifricos, primrios (inovadores) ou secundrios (conservadores). [...] O que mantm uma cultura, portanto, so as tenses dinmicas, por permitirem a evoluo (no sentido de transformao) do sistema. (Martins, 2002, p.37)

    Segundo Hermans, a teoria dos polissistemas de Even-Zohar v a traduo

    literria como um desses muitos elementos que esto em constante luta pela

    posio dominante entre as diversas camadas e subdivises de um sistema (1985,

    p. 11). Assim, existe um estado de tenso contnua entre o centro e a periferia, no

    qual diferentes gneros literrios tentam dominar o centro, posio privilegiada

    em termos de poder em relao s margens. Nas palavras de Even-Zohar,

    [i]sso significa que qualquer seo de uma cultura que se possa tomar em separado pode ser estudada em correlao com outras sees, de forma a que se compreenda melhor sua natureza e funo. Por exemplo, a cultura oficial requer o estudo da(s) cultura(s) no-oficiais; a linguagem padro pode ser melhor compreendida ao ser posta no contexto de variedades que no sejam padro; textos que tenham certo prestgio podem ser relacionados com aqueles que tenham menos prestgio, e assim por diante. (2005, p.4)

    O crtico e escritor norte americano Harold Bloom (1994) define os

    autores cannicos como sendo os que tm mais autoridade em nossa cultura (p.1).

    O cnone, uma palavra religiosa em suas origens, tornou-se uma escolha entre

    textos e livros em uma instituio de ensino, que lutam entre si para sobreviver.

    De acordo com Bloom, um teste antigo para se determinar a canonicidade de uma

    obra permanece vlido at hoje: se ela no demanda uma releitura, no se

    qualifica como cannica. O cnone existe para impor limites e estabelecer um

    padro de medida. Para Bloom, a estranheza uma marca da originalidade que

    assegura status cannico a uma obra literria, e que ns ou nunca a assimilamos

    ou que dada de uma forma que ficamos cegos s suas idiossincrasias (p.4). A

    estranheza cannica pode existir, conforme entende o crtico norte-americano,

    sem que seja capaz de provocar um choque devido a sua audcia; porm, a

    originalidade deve ser sempre um aspecto inaugural de qualquer obra que venha a

    ser associada ao cnone (p. 6). Para talo Calvino (2005), a leitura de um

    clssico

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    [d]eve oferecer-nos alguma surpresa em relao imagem que dele tnhamos. Por isso, nunca ser demais recomendar a leitura direta dos textos originais, evitando o mais possvel bibliografia crtica, comentrios, interpretaes. A escola e a universidade deveriam servir para fazer entender que nenhum livro que fala de outro livro diz mais sobre o livro em questo; mas fazem de tudo para que se acredite no contrrio. (p. 12)

    Segundo Even-Zohar, as diversas instituies culturais, no seu esforo

    permanente para promover seus repertrios preferidos, frequentemente

    propagavam a ideia de que as opes indesejadas so inferiores e lhes negava

    qualquer tipo de status (2005, p. 6). Para o terico israelense, foi o formalista

    russo Viktor Chklovski quem, nos anos 1920, formulou a hiptese de uma

    oposio entre as formas (ou opes) canonizadas e no canonizadas para a

    dinmica literria, conceituando as distines scioculturais da produo textual

    em termos de sua estratificao. Dessa forma, para Even-Zohar, o termo

    cannico aplica-se s normas e obras (modelos e produtos) que so aceitos

    como legtimos pelos grupos dominantes dentro de uma instituio literria. E,

    para aquelas normas e produtos rejeitados pelos grupos dominantes, aplica-se o

    termo no cannico. Esses ltimos, se no modificarem o seu status, tendem a

    ser esquecidos e a desaparecer com o decorrer do tempo. O terico argumenta que

    a canonicidade no uma caracterstica inerente a uma atividade, mas, sim, um

    efeito das relaes de poder dentro de um sistema (2005, p.5-6).

    Even-Zohar estabelece que, para que uma literatura traduzida possa ocupar

    uma posio central em um polissistema, ela deve participar ativamente da

    configurao do centro do polissistema, o que implica no haver distino clara

    entre originais e tradues. Em tal situao, continua o terico, quando novos

    modelos literrios esto surgindo, a traduo torna-se uma forma de introduzir na

    literatura nacional caractersticas at ento inexistentes, como uma nova forma de

    linguagem potica ou novos modelos textuais. Para que tal acontea, Even-Zohar

    identifica trs condies: (a) quando um polissistema ainda no se encontra

    totalmente cristalizado, ou seja, quando ainda relativamente jovem; (b)

    quando uma literatura nacional perifrica (ou seja, est inserida em um grupo

    maior de literaturas correlatas) ou fraca, ou mesmo as duas coisas; e (c) quando

    uma literatura nacional enfrenta momentos de crise ou vcuos literrios (1990,

    p.46-48).

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    Martins (1999) observa que no Brasil ocorreu um exemplo do caso (b),

    com a importao de romances estrangeiros no sculo 19. Naquele momento, um

    grande interesse pela narrativa de fico gerou um desequilbrio entre a procura e

    a produo nacional, despertando enorme interesse pelo romance estrangeiro

    (p.46), situao descrita pelo historiador literrio Antonio Soares Amora como

    uma invaso [...] frequentemente em ms tradues, o que infelizmente o grande

    pblico nem sempre percebe (apud Martins, ibidem).6

    Para a pesquisadora brasileira Else Vieira, o modelo dos polissistema de

    Even-Zohar revelou-se extremamente benfico disciplina emergente dos

    Estudos da Traduo, permitindo que ela se desenvolvesse e superasse a

    estagnao das abordagens anteriores para a descrio das tradues, [...]

    normativas e centradas no autor (1996b, p. 128). Entretanto, analisa a

    pesquisadora brasileira, a teoria dos polissistemas um instrumento til

    descrio do papel das tradues apenas quando ela for uma fora inovadora,

    geralmente associada s grandes mudanas histricas e literrias (ibidem, p. 129).

    As ideias sobre a teoria dos polissistemas, desenvolvidas por Even-Zohar,

    foram expandidas por Gideon Toury em seu livro Descriptive Translations

    Studies and beyond, de 1995. Na introduo, Toury observa que uma disciplina

    emprica deve ser capaz de descrever, de forma sistemtica e controlada,

    determinadas partes do chamado mundo real (grifo do autor). Dessa forma,

    descrever, explicar e predizer fenmenos relativos ao objeto de estudo deve ser o

    objetivo principal de tal disciplina, chamada por Toury de Estudos da Traduo,

    cujo objetivo principal so os fatos da vida real ao invs de entidades meramente

    especulativas resultantes de hipteses pr-concebidas e modelos tericos (1995,

    p.1).

    Para Toury, sendo a traduo uma atividade regulada por normas que

    envolve pelo menos duas lnguas e duas tradies culturais, ela deve preencher

    espaos vazios numa cultura alvo, espaos esses que no existem na cultura

    original na qual a cultura alvo muitas vezes pode estar buscando a sua inspirao.

    Nas palavras de Toury,

    6 AMORA, Antonio Soares. Histria da literatura brasileira (sculos XVI-XX). So Paulo: Saraiva, 1955.

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    [...] no a mera existncia de alguma coisa em outra cultura/lngua, mas seria a observao que alguma coisa est faltando na cultura alvo, e que deveria estar l, e que, por sorte, j existe em outro lugar. (1995, p.27)

    Assim, para Toury, em consonncia com as ideias de Even-Zohar j

    apresentadas, um sistema cultural pode vir a ser afetado por uma traduo,

    especialmente se for jovem ou estiver em formao ou, ainda, estiver passando

    por uma crise (Toury, 1995, p.27; 56).

    Nenhuma traduo costuma durar para sempre, estando sujeita a revises

    devido a mudanas nos padres estticos e culturais vigentes. Sem que tenha um

    perodo de vida pr-determinado, com o passar do tempo ela vai perdendo grande

    parte de sua vitalidade e de sua capacidade de se comunicar com seus leitores de

    uma forma contempornea, havendo a necessidade de uma nova traduo de

    tempos em tempos para que se mantenha uma relao de leitura articulada. Cada

    texto traduzido uma entidade nova, podendo estar mais ou menos em sintonia

    com modelos anteriores, mas uma novidade em si.

    Para Toury (1995, p. 54), uma traduo, considerando-se sua dimenso

    sciocultural, pode ser descrita como sendo o resultado de vrios fatores. Ao

    traduzirem textos, os tradutores geralmente adotam estratgias diferenciadas que

    se tornam visveis nos diferentes produtos.

    As vrias coeres scioculturais, em termos de seu potencial, podem ser

    alinhadas em uma escala imaginria delimitada por dois polos extremos: de um

    lado, esto as regras, vistas como gerais, e do outro, as puras idiossincrasias. No

    intervalo, encontram-se fatores intersubjetivos que so denominados normas. Por

    norma, Toury entende

    [...] a traduo de valores gerais ou ideias compartilhadas por uma comunidade o que certo ou errado, adequado ou inadequado - em instrues de desempenho apropriadas e aplicveis a situaes em particular, especificando o que prescrito e o que proibido, bem como o que tolerado e permitido em uma certa dimenso comportamental. (1995, p.54-55)

    Toury divide as normas em trs categorias: norma inicial, normas

    preliminares e normas operacionais.

    A norma inicial governa a deciso bsica do tradutor de fazer uma

    traduo adequada (reproduzindo as relaes textuais do texto-fonte) ou aceitvel

    (adotando as normas lingusticas e literrias da cultura de chegada), sendo que os

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  • 27

    o tradutor pode optar por uma soluo intermediria, recorrendo a uma

    combinao de normas.

    As normas preliminares regem a seleo dos textos a serem traduzidos e

    as estratgias globais adotadas para a realizao da traduo e a sua insero do

    sistema alvo, decises que muitas vezes no so tomadas pelo tradutor mas, sim,

    por outros agentes. Martins observa que,

    [c]omo os conceitos de traduo sofreram mudanas, para estabelecer o contexto cultural que emoldura o processo tradutrio analisado preciso obter certas informaes, tais como: qual a poltica tradutria da cultura-meta? No perodo em pauta, havia uma distino entre traduo, imitao e adaptao? Aceitavam-se ou permitiam-se tradues indiretas (a partir de um texto-fonte que j era, por sua vez, uma traduo)? Caso afirmativo, quais as lnguas mediadoras mais aceitas? (1999, p. 56-57)

    Por fim, as normas operacionais dizem respeito a decises tomadas

    durante o processo tradutrio e podem ser de dois tipos:

    (a) matriciais - determinam a matriz do texto traduzido, ou seja, os

    acrscimos e omisses feitos;

    (b) textuais - revelam preferncias lingusticas e estilsticas.

    importante destacar que a norma inicial tem precedncia sobre as

    normas matriciais e textuais visto que, se for consistente, influencia quase todas as

    decises operacionais (Martins, 1999, p. 57).

    Para o presente trabalho, portanto, as normas preliminares tm especial

    importncia, visto tratarem da maior ou menor receptividade de uma cultura s

    tradues indiretas. Como tem sido constatado, a tendncia atual privilegiar e

    valorizar as tradues diretas, depois de tantos anos de ampla aceitao das

    tradues indiretas de clssicos como os romances russos que so tematizados

    aqui.

    Com relao s tradues indiretas, Toury considera que so fruto de uma

    atividade governada por normas da mesma forma que as tradues diretas:

    [A] utilizao de tradues j existentes, prtica utilizada por muitos tradutores, est longe de demonstrar inabilidade por parte do tradutor. O recurso a esta prtica, especialmente se padres regulares podem ser detectados, deve ser tomado como evidncia das foras as quais moldaram a cultura em questo em conjunto com seu conceito de traduo. (1995, p. 129)

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  • 28

    A traduo indireta, segundo o terico israelense, alm de ser um

    fenmeno culturalmente relevante, representa um modo conveniente de

    observao de fenmenos subjacentes em uma dada cultura, j que as

    manifestaes externas so mais fceis de serem observadas. Sobre elas, Toury

    afirma que nenhum estudo historicamente baseado de uma cultura onde a

    traduo indireta foi praticada com regularidade pode ignorar este fenmeno e

    deixar de examin-lo (ibidem, p.130). Para Toury, por esse motivo que tanto as

    tradues mediadas, como os textos e as prticas que as originaram, devem ser

    estudados, buscando-se o ponto onde os relacionamentos sistmicos e as normas

    historicamente determinadas se interseccionam e se correlacionam, de forma a se

    determinar precisamente tais normas e inter-relacionamentos (1995, p.130).

    Toury prossegue sua teorizao afirmando que, a partir da anlise dos

    textos traduzidos, vistos como produtos nos quais aparece o resultado de uma

    ao regida por normas, possvel reconstruir as prprias normas. As normas

    reconstrudas ou depreendidas podem ser denominadas normas prticas, em

    oposio a normas tericas, que seriam pronunciamentos prescritivos ou

    formulaes pr-sistemticas. Pode-se, tambm, acompanhar as mudanas de

    normas atravs, por exemplo, da comparao de um nico texto-fonte com

    diversas tradues que dele se originaram.

    Para o terico israelense, as normas tradutrias podem ser reconstrudas ou

    depreendidas para fins de estudo a partir de duas fontes principais:

    (i) fontes textuais: os prprios textos traduzidos (ou seja, produtos

    primrios de comportamento regido por normas); e

    (ii) fontes extratextuais: formulaes semitericas ou crticas feitas por

    tradutores, editores, crticos e outros, comentrios esses que podem

    ser classificados como paratextos (prefcios e notas que

    acompanham uma traduo) e metatextos (comentrios, resenhas e

    crticas publicadas em revistas, jornais, livros e obras de referncia

    em geral).

    Este trabalho privilegiar o segundo tipo de fonte de reconstruo de

    normas, a saber, fontes extratextuais, visto que se basear, como apresentado na

    Introduo, em comentrios elaborados por tericos e estudiosos da literatura,

    crticos e tradutores, para determinar a imagem de autores russos e de suas

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  • 29

    respectivas obras que foi construda pelas tradues, inicialmente feitas a partir de

    uma transposio anterior para o francs ou para o ingls e, mais recentemente,

    realizadas a partir do prprio original russo.

    2.3

    Andr Lefevere e o conceito da patronagem

    Enquanto Itamar Even-Zohar e Gideon Toury so identificados como os

    formuladores do modelo polissistmico e dos estudos descritivos da traduo,

    respectivamente, o belga Andr Lefevere, prematuramente falecido em 1996,

    argumenta que o processo que resulta na aceitao ou rejeio, na canonizao ou

    no canonizao de obras literrias dominado por fatores situados fora do ncleo

    dos estudos literrios, compreendendo questes como poder, ideologia,

    instituio e manipulao. As reescritas conceito de Lefevere que inclui as

    tradues, as antologias, as resenhas, os ensaios crticos so a fora motriz por

    trs da evoluo literria, vindo da a necessidade de estud-las mais a fundo

    (1992, p.2).

    A questo do poder qual se refere Lefevere est, para os tericos

    Gentzler e Tymoczko (2002), associada ao fato de ser um processo tanto

    metonmico como metafrico. As tradues, para esses tericos, so

    inevitavelmente parciais, j que o sentido de um texto sempre sobreterminado e,

    portanto, o texto fonte sempre trar mais informaes do que uma traduo pode

    transmitir (p. xviii). Por outro lado, a lngua e a cultura do receptor exibem

    caractersticas obrigatrias que moldam as possveis escolhas tradutrias,

    estendendo os seus significados em outras direes que no aquelas inerentes ao

    texto-fonte. Como consequncia disso, para Gentzler e Tymoczko, os tradutores

    devem fazer escolhas, selecionar aspectos ou partes de um texto a serem

    transpostas ou enfatizadas. Tais escolhas, por sua vez, servem para criar

    representaes do texto-fonte que tambm so parciais. Essa parcialidade no

    deve ser considerada um defeito, uma falha ou uma ausncia numa traduo,

    tratando-se simplesmente de uma condio necessria do ato de traduzir.

    tambm um aspecto, segundo os mesmos autores, que torna esse ato

    inevitavelmente engajado, quer implcita quer explcitamente.

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  • 30

    Para Lefevere, os leitores no profissionais esto cada vez mais lendo

    literatura no da forma como foi escrita por seus autores mas, sim, da forma como

    foi reescrita pelos reescritores. Nos dias de hoje, assim como no passado, os

    agentes de reescrita podem criar imagens de um escritor, um perodo, um gnero,

    ou at mesmo de toda uma literatura, muitas vezes bem diferentes da leitura

    cannica, mas que tm um alcance muito maior do que esta. E quando esses

    leitores no profisionais e aqui o estudioso belga esclarece que no est

    formulando um juzo de valor, e, sim, referindo-se maioria dos leitores atuais

    dizem ter lido um livro, eles esto construindo uma dada imagem daquele livro

    em suas mentes. Essa construo formada por trechos e passagens do livro que

    aparecem em antologias e outros textos que reescrevem o texto de certa forma,

    como, por exemplo, resumos em manuais de literatura ou obras de referncia,

    artigos em jornais, revistas ou peridicos especializados, artigos crticos e

    tradues (1992, p.5-6).

    Segundo Lefevere, enquanto a literatura comparada estava restrita

    Europa, era possvel encontrar estudiosos que dominavam trs, quatro ou at

    cinco lnguas, mortas ou modernas. Contudo, medida que a literatura comparada

    expandiu-se para alm das fronteiras europeias (como no caso da Rssia), as

    tradues tornaram-se necessrias. Durante os anos 1970 e 1980, com o advento

    de uma linha de pensamento sobre a literatura que enfatizava a recepo de

    textos, em oposio sua produo, e o advento da desconstruo, houve uma

    maior reflexo sobre o fenmeno da traduo. A teoria da recepo, qual no

    iremos nos deter, deixou claro que a influncia que uma obra literria tem em sua

    prpria cultura , em grande parte, um atributo da recepo daquela obra, ou seja,

    da imagem que os crticos criaram dela. O vnculo com as tradues, para

    Lefevere, bvio: o impacto de uma obra literria traduzida depende no apenas

    da imagem criada por seus crticos, mas primeiramente da imagem produzida

    pelos tradutores. Assim, a teoria da recepo postula que os tradutores so

    responsveis pela fama e pela influncia de uma obra, de um gnero, ou at

    mesmo de uma literatura inteira na mesma extenso do escritor que primeiro os

    criou. Sem Constance Garnett, por exemplo, no haveria a literatura russa do

    sculo 19 em ingls, e nem a poesia chinesa existiria sem Ezra Pond e Arthur

    Waley (Lefevere, 1995, p. 2-10).

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  • 31

    Lefevere partiu dos formalistas russos, para quem a literatura um dos

    sistemas que constituem um sistema de sistemas conhecido como cultura.

    Entretanto, acabou seguindo um caminho diferente ao adotar pontos de vista de

    Ludwig Wittgenstein, Michel Foucault e Siegfried Schmidt, alm da sociologia da

    literatura e da histria cultural. O terico belga compartilha das ideias de Even-

    Zohar e de Toury, que tm o polo receptor como referencial, mas acrescenta-lhes

    uma nova dimenso, que a de poder (Martins, 1999, p. 67-68). Em um dado

    sistema social, o sistema literrio e outros sistemas influenciam-se mutuamente,

    numa interao determinada pela lgica da cultura qual pertencem (Lefevere,

    1992, p. 14). Para Lefevere, nessa lgica da cultura existem dois fatores que

    atuam como mecanismos de controle da mesma. O primeiro desses mecanismos

    opera a partir de dentro do sistema literrio; composto pelos profissionais do

    sistema, que so os crticos, revisores, professores e tradutores, que empregam sua

    competncia para a realizao de um servio, o que lhes confere autoridade e

    status. Segundo o autor belga, ocasionalmente esses profissionais podem

    reprimir certas obras literrias que se oponham ao conceito dominante a respeito

    de como a literatura daquele sistema deve ser, e temos ento a questo da potica.

    Podem, tambm, se opor ao conceito dominante de como a sociedade deve ser, e

    temos ento a questo da ideologia.

    O segundo mecanismo de controle, que atua de fora do sistema literrio,

    o que Lefevere denomina de patronagem, e que define como sendo os poderes

    (pessoas, instituies) que podem facilitar ou impedir a leitura, escrita e a reescrita

    da literatura (1992, p. 14-15). A patronagem, segundo Lefevere, est mais

    interessada na ideologia da literatura do que em sua potica, podendo ser exercida

    por pessoas, como os mecenas, por partidos polticos, por classes sociais, por um

    grupo de pessoas, por entidades religiosas, por uma classe social, por editores e

    pela prpria mdia impressa, falada e televisionada. Os patronos tentam, atravs

    das instituies que controlam, regular o relacionamento entre o sistema literrio e

    outros sistemas os quais, em conjunto, constituem uma sociedade e uma cultura.

    No regulam o que escrito, mas, sim, sua distribuio atravs da academia,

    departamentos de censura, jornais de crtica literria e do que Lefevere considera

    como sendo o mais importante: o establishment educacional (1992, p.15).

    De acordo com Lefevere, a patronagem consiste basicamente em trs

    componentes que interagem de vrias formas: o componente ideolgico, o

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  • 32

    econmico e o de status. O ideolgico, que no est limitado ao sentido poltico,

    compreende convenes e crenas; o econmico aquele atravs do qual os

    patronos proporcionam um meio de subsistncia aos escritores e reescritores,

    inclusive empregando profissionais como professores e revisores e pagando

    royalties pela venda dos livros; e, por fim, o componente de status implica a

    integrao a um grupo e a seu estilo de vida (1992, p.16).

    Lefevere tambm nos diz que, entre os que trabalham com traduo,

    parece existir um consenso de que tal atividade, que envolve pelo menos dois

    cdigos lingusticos, deve observar certas regras durante a reformulao do texto

    no cdigo 1, tambm chamado de texto-fonte, para o cdigo 2, tambm chamado

    de texto-alvo. Tais regras, antes tidas como imutveis e centradas na questo da

    fidelidade, so hoje, segundo estudiosos do assunto, aceitas como impostas por

    aqueles que solicitam ou viabilizam as tradues os patronos. As tradues so

    efetuadas por outras pessoas que trabalham em situaes concretas e com

    objetivos definidos em mente, o que, em suma, significa que as regras a serem

    observadas durante o processo de transposio dependem da situao da traduo,

    de sua funo, de quem a est executando e do pblico-alvo (1999, p.75).

    Para o terico belga, ao se traduzir um texto, o pensamento inicial no se

    d no nvel lingustico, ou seja, no nvel das palavras e frases, mas em termos do

    que ele denomina de grades. A imagem das grades til para demonstrar o que

    seria um processo de socializao. Uma das grades chamada de conceitual e a

    outra chamada de textual, no havendo supremacia de uma sobre a outra, mas,

    sim, uma interligao entre as duas (1999, p.76).

    Os problemas de traduo, para Lefevere, so causados pelas discrepncias

    tanto entre as grades conceitual e textual como entre as lnguas envolvidas. Esse

    fato, que pode, na opinio do terico, ter passado despercebido no processo de

    traduo entre lnguas pertencentes cultura ocidental, torna-se flagrante quando

    confrontado com o problema de traduzir textos de uma cultura ocidental para

    outra no ocidental, e vice-versa7.

    O conceito de grade de Lefevere tem duas implicaes. A primeira delas

    que tanto o autor do original como o tradutor precisam visualizar as mesmas duas

    grades mencionadas a contextual e a textual e atuar em conformidade com

    7 o caso da literatura russa, que est inserida em uma cultura oriental e que teve de adotar caractersticas ocidentais para se tornar conhecida e aceita no Ocidente.

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  • 33

    elas. Sob esse aspecto, mais do que o nvel de conhecimento lingustico, importa a

    criatividade do tradutor, que tambm precisa encontrar formas para as

    mencionadas grades tornarem a comunicao no s possvel como tambm

    interessante e atraente. A segunda implicao que a conjugao dessas grades

    pode determinar como a realidade construda para o leitor, no apenas a partir da

    traduo, mas tambm a partir do original. Para Lefevere, isso de extrema

    importncia na anlise dos primeiros textos escritos por culturas ocidentais sobre

    culturas no ocidentais, quando as primeiras construram (e ainda constroem), a

    partir de suas grades prprias, imagens das outras, estrangeiras e no familiares

    (1999, p.76-77).

    Para finalizar essa apresentao sucinta de algumas das ideias de Lefevere

    que interessam para fins deste trabalho, lembro que, para o terico, a traduo ,

    como aponta Martins,

    a principal forma de reescritura, pois est sujeita a todo tipo de coero. Alm disso, h o efeito cumulativo, porque a maioria das tradues vem acompanhada de paratextos e comentada em metatextos o que representa, na verdade, vrias reescrituras de um mesmo texto, embora em modalidades diferentes. (1999, p.73) Essas reescrituras ou reescritas, como estamos chamando aqui

    constroem imagens de obras e autores, ou mesmo de perodos, gneros ou

    literaturas como um todo, e por meio delas que a literatura atinge os leitores no

    profissionais, como Lefevere denomina aqueles que no agem no contexto de uma

    instituio (editora, jornal ou universidade, por exemplo).

    Apesar de todos os cuidados que a maioria dos tradutores procura ter, e

    que se pode observar pelas opinies recolhidas nos paratextos e metatextos que

    fazem parte deste trabalho, o Brasil parece seguir na contramo do que Lefevere

    ensina. As editoras e o pblico no costumam valorizar a traduo,

    [s]eja por no se acreditar que se trate de um trabalho complexo, seja por querer manter a iluso de que se est lendo uma obra verdadeiramente original, e no mediada por algum que no o autor. Consequentemente, a maioria dos livros traduzidos no trazem o nome do tradutor na capa, salvo em casos como o de obras pertencentes a colees das prprias editoras quando o nome do tradutor confirma o selo de qualidade daquela coleo e o de tradutores renomados, premiados, ou de autores e poetas-tradutores, que constituem um chamariz para as vendas e um aval qualidade do novo produto (isto , o livro traduzido). As tradues de obras do chamado cnone ocidental costumam receber tratamento especial, que se evidencia atravs de um maior cuidado editorial, que passa pela

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  • 34

    escolha criteriosa dos tradutores, embora sempre haja excees. (Martins, 1999, p.197-8)

    2.4

    Os paratextos e os metatextos

    Em seus livros Seuils (Paris: Seuil, 1987) e Palimpsestes: La littrature au

    second degr (Paris: Seuil, 1982), o pesquisador e terico francs Grard Genette

    desenvolve uma anlise dos componentes que fazem a intermediao entre o texto

    e o leitor, buscando compreender o que existe entre a crtica literria e a crtica

    textual e bibliogrfica. Em seu livro Palimpsestes, Genette afirma que, entre os

    tipos de transcendncia textual propostos, os paratextos seriam os elementos que

    se encontram menos explcitos e de relacionamento mais distante com o texto

    propriamente dito, levando-se em conta a totalidade da obra literria. Para o

    terico, os elementos paratextuais podem incluir um ttulo, um subttulo,

    interttulos, prefcios, posfcios, observaes, notas introdutrias, notas de

    rodap, epgrafes, ilustraes, capas, contracapas, sobrecapa e vrios outros tipos

    de sinais secundrios, acrescentando ao texto um contexto varivel e por vezes um

    comentrio, oficial ou no, que no pode ser desprezado. J os metatextos, mais

    conhecidos como comentrios, tm a funo de unirem um dado texto a outro

    sem necessariamente fazer citao dele (1997a, p.3-4). Em Seuils, Genette amplia

    seu conceito de paratextos, ao afirmar que uma obra literria consiste de um

    texto definido como uma sequncia mais ou menos longa de declaraes verbais,

    mais ou menos revestidas de significncia (1997b, p.1). Entretanto, esse texto

    raramente apresentado sem adornos ou sem algum reforo, e desacompanhado

    de certo nmero de produes verbais ou de outro tipo como, por exemplo, o

    nome do autor, ttulo, prefcio e ilustraes, que so, para Genette, o paratexto da

    obra (ibidem). Na presente dissertao, conforme explicado na introduo, o foco

    encontra-se na anlise dos paratextos e metatextos, e no nas tradues em si.

    A importncia de se estudar os paratextos, segundo a estudiosa Romy

    Heylen, citada por Martins (1999), est em que o estudo insere as obras traduzidas

    num dado contexto sociocultural:

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  • 35

    [o] estudo das tradues deve abranger tambm a anlise de metatextos e paratextos como, por exemplo, prefcios, introdues, crticas e textos afins que revelem as concepes vigentes sobre o que uma traduo bem feita ou sobre as normas tradutrias que esto operando numa dada literatura num dado momento. (Heylen8 apud Martins, 1999, p. 49)

    O paratexto , para o terico francs, o que permite que um texto se torne

    um livro e como tal seja oferecido ao pblico leitor. Embora nem sempre os

    elementos que constituem o paratexto sejam facilmente relacionados como parte

    do texto, eles esto em torno dele e se estendem para mais alm, de modo a

    assegurar que o texto esteja presente no mundo e seja consumido sob forma de um

    livro. O prefixo para-, para o terico francs, por si s dotado de ambiguidade,

    podendo, ao mesmo tempo, significar:

    [p]roximidade e distncia, similaridade e diferena, interioridade e exterioridade [] algo que est simultaneamente do lado de c de uma linha demarcatria, de um limiar ou margem, podendo estar tambm do lado de l, equivalendo em status e sendo secundria ou subsidiria, submissa, como um convidado em relao ao seu anfitrio, um escravo para com seu dono. Algo que se enquadre como sendo para no s est simultaneamente em ambos os lados da linha demarcatria, entre o interno e o externo. a prpria demarcatria tambm, a tela que atua como membrana permevel, conectando o interior ao exterior. (1997b, p.1-2)

    O paratexto o que Genette chama de zona indefinida, algo que est

    dentro e o que est de fora, ou seja, uma regio fluida entre o que leva em direo

    ao texto e o que leva em direo ao discurso do mundo sobre o texto. O paratexto

    tambm serve para transmitir um comentrio autoral ou legitimado pelo autor,

    sendo uma regio de transio entre o texto e o no texto, mas tambm de

    transao, um espao privilegiado onde existe uma pragmtica e uma estratgia

    para influenciar o pblico, sempre a servio da melhor recepo para o texto e de

    uma leitura mais pertinente do mesmo (1997b, p. 1-2).

    Para Genette, o paratexto um grupo heterogneo de prticas e discursos,

    sem apresentar um comportamento uniforme e sistemtico em relao a um texto.

    H autores que, por exemplo, resistem a serem entrevistados, e h livros que no

    apresentam prefcio. Em alguns perodos da histria, no era obrigatrio pr o

    nome do autor ou mesmo do livro, como na Idade Mdia, onde circulavam os

    8 HEYLEN, Romy. Translation, Poetics and the Stage: Six French Hamlets. London/New York: Routledge, 1993.

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  • 36

    manuscritos. E, assim como no obrigatria a presena uniforme de elementos

    paratextuais, o leitor, por sua vez, tambm no obrigado a ler um prefcio que

    no deseje. Os efeitos paratextuais tambm podem ser causados pela transmisso

    oral, que causa uma materializao grfica ou fnica do texto. Nesse aspecto, para

    o pesquisador francs, no possvel existir ou ter existido um texto sem um

    paratexto, embora seja possvel existir um paratexto sem um texto, como ocorre

    com obras da Antiguidade clssica das quais s conhecemos os ttulos (1997b,

    p.2-3).

    Um elemento paratextual, para Genette, consiste de uma mensagem na

    forma material, situada em uma determinada localizao em relao ao prprio

    texto. Os elementos da mensagem que esto situados no mesmo volume do texto

    so chamados de peritextos e compreendem o ttulo, a folha de rosto, as orelhas,

    as quatro capas, o prefcio e s vezes certos elementos inseridos nos interstcios

    do texto, como notas de rodap e ttulos de captulos. Os elementos da mensagem

    que esto situados fora do volume do texto so chamados de epitextos, e

    compreendem os gerados com o auxlio da mdia, como entrevistas e palestras, e

    os de carter privado, como cartas, dirios e outros, sendo o paratexto composto

    pela unio do peritexto com o epitexto (1997b, p.4-5).

    A combinao dos elementos paratextuais que constam da capa, capas

    internas, contracapa, lombada e sobrecapa, quando existe uma, fornece, para o

    pesquisador francs, elementos que ajudam o leitor a criar expectativas em relao

    ao livro e buscam estimular a sua leitura. O nome do autor, da editora, o ttulo,

    comentrios elogiosos, trechos de crtica, notas biogrficas, indicao de gnero

    (um romance) e informaes do editor predispem os leitores a opinarem sobre

    a obra literria antes mesmo de comearem a leitura da obra propriamente dita

    (1997b, p.23-32). No presente trabalho, so considerados paratextos todos aqueles

    elementos que fazem parte do livro e que foram produzidos para o mesmo. Os

    metatextos compreendem todos os elementos situados fora do texto, tais como os

    descritos por Genette, bem como as crticas e comentrios publicados em outros

    meios.

    Ao longo deste captulo, foram apresentados os fundamentos tericos que

    informam a investigao sobre as tradues diretas e indiretas das obras dos

    autores russos Tolsti e Dostoivski para o portugus. O captulo seguinte

    abordar, de forma sucinta, a histria da Rssia e a gnese da literatura russa

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  • 37

    dentro desse contexto histrico, propiciando uma viso panormica dos caminhos

    que levaram ao surgimento dos autores e obras aqui estudados.

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