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  • J A C Q U E S L A C A R R I E R E

    DO DESERTO HOMENS EMBRIAGADOS DE DEUS

    Eltes Loyola

  • Material com direitos autorais

    Ttulo original:

    Les hommes ivres de Dieu

    Librairie Arthme Fayard, 1975.

    Edies Loyola Rua 1822 ny 347 - Ipiranga

    04216-000 So Paulo, SP Caixa

    Postal 42.335 04218-970 So

    Paulo, SP

    (0**11) 6914-1922 $ (0**11) 6163-4275 Home

    page e vendas: www.loyola.com.br Editorial:

    [email protected] Vendas:

    [email protected]

    Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e / o u quaisquer meios (eletrnico ou mecnico, incluindo fotocpia e gravao) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permisso escrita da Editora.

    ISBN: 85-15-01278-2

    2a edio: agosto de 2002

  • Material com direitos autorais

    EDIES LOYOLA, So Paulo, Brasil, 1996

  • PADRES DO DESERTO

    Material com direitos autorais

    4

    PREFCIO ......................................................................................................... 13

    INTRODUO ................................................................................................. LZ

    Primeira parte O FIM DE

    UM MUNDO

    1 O FIM DOS TEMPOS ..................................................................... 23 Crena no fim iminente do mundo no tempo de Jesus e nos trs

    sculos seguintes: so Paulo, santo Hiplito de Roma, Baslio de Ancira,

    Tertuliano, so Cipriano.

    Suas conseqncias: a ruptura com o mundo. Santo do deserto e

    bom selvagem. Relaes entre o anacoretismo e a ascese. A partida para

    o deserto.

    2 A GRANDE TRANSIO ............................................................ 33

  • Material com direitos autorais

    Os textos sobre a vida no deserto. A ocupao grega e romana no

    Egito. Dois mundos estranhos um para o outro. O exotismo egpcio em

    Roma. Primeiros assaltos contra o paganismo. A "morte" do deus egpcio

    Serpis.

    A cristianizao do Egito. Sincretismo dos meios citadinos helenizados.

    O meio rural. A aventura copta. Tornar-se cristo permanecendo egpcio.

    Panorama da heresia monofisita. As perseguies. O fim de um mundo.

    Partida de Anto para o deserto.

    Segunda parte OS HOMENS BRIOS DE DEUS

    3 A ESTRELA DO DESERTO ........................................................... 51

    Santo Anto existiu? A Vida de Anto e a tradio aretolgica. Onde

    comea e onde termina a histria? O Chamado: Anto se instala junto de um

    ancio.

    A experincia das trevas. Permanncia de Anto num tmulo. Suas

    primeiras tentaes. O bestirio fantstico do Egito antigo. Crenas

    funerrias e Livro do Am-Duat.

    A experincia da luz. Anto parte para a montanha de Colzum. Seus

    vinte anos de solido. Seus primeiros ensinamentos e seus primeiros

    discpulos.

    ltimos anos de Anto. Suas vises ednicas. Sua

    morte.

    4 A PRADARIA DOS SANTOS ....................................................... 71

    Um santo entre os anjos: Paulo de Tebas. A Vida de Paulo de Tebas por so

    Jernimo. O problema de sua historicidade. Vida de Paulo de Tebas no

    deserto. Sua gruta, o po de Deus, seu encontro com Anto, sua morte

    milagrosa.

    Um santo entre os homens: Pacmio. As Vidas coptas de Pacmio. Sua

    vocao. Sua ascese perto de Khenobskion com o apa Palamo.

    NDICE

    Seu encontro com o anjo. Primeiros discpulos e primeiras tentaes.

    Fundao do primeiro mosteiro em Tabenesi. A regra do anjo e os mosteiros

  • PADRES DO DESERTO

    Material com direitos autorais

    6

    pacomianos. Sua organizao. Sua disciplina. Tcnicas de asceses coletivas.

    A lngua do anjo. Morte de Pacmio.

    5 OS ATLETAS DO EXLIO (I) ........................................................ 93

    O Imprio romano se torna cristo. Reconhecimento do cristianismo

    pelo imperador Constantino. Suas conseqncias sobre o destino do

    cristianismo. A Igreja dos militantes e a recusa do temporal. Vida econmica

    do Egito do sculo IV. Prestgio dos primeiros eremitas. Uma nova Terra

    Santa. Os primeiros peregrinos do Egito cristo: Paldio, Rufino, Cassiano.

    Nos desertos do Alto Egito. Mosteiros e anacoretas. A curiosa viagem

    de um monge no deserto.

    A Tebaida. Port-Royal e a redescoberta do deserto. As tradues de

    Arnauld d'Andilly. Mosteiros e eremitas da verdadeira Tebaida. Os

    discpulos de Anto: Paulo o Simples e so Sisos.

    Ao encontro de anacoretas estranhos. Precaues indispensveis da

    parte do leitor: no confiar nas aparncias. Vida de Joo do Egito, o recluso.

    Santo Apoio e seus milagres. Pafncio e seu anjo. A converso de Tais. Um

    mito de antes da Graa.

    6 OS ATLETAS DO EXLIO (II) ..................................................... 119

    Os desertos do Wadi-an-Natrun. Suas paisagens fantsticas. Os perigos

    que ali se corre.

    Homens em tocas de hienas. O deserto da Ntria e o deserto das Celas.

    Macrio o Jovem. Sua vida e suas asceses incrveis. Macrio e o mosquito.

    Seus discpulos. O po e a alma.

    Os homens mais humildes do mundo. Macrio o Antigo e o deserto de

    Skete. Suas vises. Macrio e o

    9

    querubim. Macrio e o cadver. O ensinamento e os discpulos de Macrio o

    Antigo: Moiss e os ladres, Bessario, Poimm e a esttua. Joo o Pequeno e

    a vara milagrosa. Arsnio, o preceptor.

    7 O FIM DOS DOLOS ....................................................................... 141

  • Material com direitos autorais

    Proibio oficial de praticar os cultos pagos. Controvrsia entre

    pagos e cristos. As violncias dos cristos: pilhagens, incndios dos

    templos, execues dos sacerdotes. Motins em Alexandria. A ltima

    mensagem do pensamento pago.

    Vida e vocao de Cancio de Atrip. Seus mosteiros. Suas regras

    implacveis. Sua divisa: forar os homens a amar a Deus. O porrete e a

    salvao da alma. Expedies de Cancio contra os templos e os sacerdotes

    pagos. Fim do paganismo no Egito.

    8 FICAR MAIS PERTO DO CU ..................................................... 159

    A Palestina e a Sria crists. Autores e viajantes cristos: Teodoreto de

    Ciro, Joo Mosco.

    Na Palestina. Santo Hilario, primeiro eremita palestino. Sua vida

    singular. O Sinai e seus anacoretas errantes. Eremitrios do mar Morto. Santa

    Maria Egipcaca e sua estranha histria. Uma prostituta arrependida. Os

    contos cristos do deserto.

    A Sria crist. Breve histria do cristianismo siraco.

    Os reclusos. Viver no interior das rvores e das grutas. Santo

    Acpsimo, so Talelo e sua jaula, so Maro e sua rvore de espinhos.

    Pastadores e estacionrios. O testemunho de santo Efrm. Natureza

    dessas estranhas asceses. Fechar os olhos para o mundo. As lgrimas de

    santa Domnina.

    Esttis e dendiitas. Natureza e origem possvel do estilitismo. As Vidas

    de so Simeo o Antigo. Sua vocao. Sua temporada num poo. As

    correntes. Sua primeira coluna. Suas asceses e seus milagres. Morte de so

    Simeo. Fascnio dos visitantes. Outros cstilitas clebres. Os dendritas. Estar

    brio de cu e de Deus.

    Terceira parte MORRER PARA O

    MUNDO

    9 0 ROSTO DE SAT ..................................................................... 195

  • PADRES DO DESERTO

    Material com direitos autorais

    8

    As tentaes, formas agressivas do mundo demitido. As Tena^es na

    pintura. A obra de Hieronymus Bosch. As iluses do deserto.

    Anjos carrascos. O inferno copta. Nova conversa de Macrio com um

    crnio.

    Os rostos de Sat. Diferentes aspectos do demnio. Origem do Diabo

    e de Sat. Papel do Egito no nascimento do Diabo. O Diabo-monstro e o

    Diabo-sedutor.

    A voz das eras. Aparncia monstruosa do Diabo no deserto. A parte

    tenebrosa do homem. A Serpente. O Drago. As vozes do passado.

    O Diabo-sedutor. As tentaes de so Paco e de Joo do Egito. "Uma

    mulher vagando neste deserto..." O Diabo como duplo do asceta.

    10 A CARNE DOS ANJOS ................................................................. 215

    O paraso copta.

    Operrios das chamas. Natureza, aspectos e funes dos anjos. Seu

    papel no pensamento e nas vises crists dos primeiros sculos. Os anjos no

    deserto.

    Os anjos e os milagres. Reflexes sobre os milagres do deserto. O

    paraso perdido e o paraso recuperado. Fraternidade dos ascetas com os

    animais. O leo de so Gersimo. A hiena de Macrio. O crocodilo de santo

    Heleno. A condio de Ado no paraso terrestre. Como fulminar um

    drago.

    Ser contemporneo de Cristo. Ressurreio dos mortos. Cura dos

    doentes. Conservao dos corpos.

    Outros milagres particulares. Os milagres cinticos: levitao,

    transporte a distncia, imobilizao a distncia. O homem glorificado. O

    deserto como prefigurao do paraso.

    11 PARA ALM DA ASCESE .......................................................... 221

    O ensinamento do deserto e suas ambigidades. Santidade e

    masoquismo. O silncio dos grandes anacoretas. Aprender olhando.

  • Material com direitos autorais

    Papel do contexto cultural na gnese de certos "milagres". Que

    significa morrer para o mundo? As etapas da ascese e as vias da

    contemplao: apatheia, hcsychia. O ensinamento de Joo Clmaco,

    Evgrio Pntico, Didoco de Foticia. "Estar atento a si mesmo."

    - Os paradoxos da ascese. Renunciar prpria santidade. Os santos

    simuladores. Os santos loucos. Histria de Simeo Slos. Uma taberna em

    Antioquia.

    EPLOGO ........................................................................................................... 249

    Vestgios contemporneos dos "homens brios de Deus". Os

    mosteiros coptas do Egito. O castelo de Simeo na Sria. As igrejas

    rupestres na Capadcia. Os ltimos anacoretas do monte Atos.

    FONTES F. TEXTOS .......................................................................................... 251 ^exa c i o

    ero os desertos do Oriente Mdio deixado de ser hoje em dia o lugar das

    experincias soberanas? E, porque se busca neles antes de tudo o ouro

    negro que encerram, tem-se deixado de buscar ali a Deus, o sentido do mundo

    ou simplesmente uma imagem mais verdadeira de si mesmo? Durante

    sculos, sua nudez pareceu rechaar a histria para os confins de suas areias:

    ali aparentemente nada se mexia, nada parecia "progredir". Eles eram o lugar

    do imutvel, de uma virgindade perptua onde o homem acaba por se

    assemelhar aos anjos. Ei-los hoje tornados fontes de vida e morte porque dali

    se extrai a energia combustvel. Mas talvez assim s faam continuar essa

    vocao de fogo que os lanou por todo o tempo na direo das margens

    grvidas da histria.

    Tenho pouca prtica do deserto. Alguns dias somente no Baixo Egito, no

    Wadi-an-Natrun, h dezoito anos. Aqueles que conhecem esta regio e que a

    atravessaram em todo o esplendor do fogo solar me compreendero se eu

    T

  • PADRES DO DESERTO

    Material com direitos autorais

    10

    disser que ela me pareceu de imediato, estranhamente, um mar de gelo.

    Porque este deserto ocidental do Egito no de areia, mas de sal. Mar mineral

    e branco, cuja crosta endurecida insensvel aos ventos e ressoa em alguns

    lugares sob os ps como uma abbada de cristal. Oceano atapetado de

    sedimentos fossilizados, de cascas imemoriais, como se as batalhas das guas

    e da terra, a alternncia dos elementos tivessem encontrado a o seu campo de

    repouso. Num tal mundo, o homem quase excrescncia intil,

    13

    presena absurda. E ele s pode viver ali tornando-se tambm peso morto do tempo,

    hibernando-o num perptuo inverno. Eis por que durante tantos sculos esse lugar

    extremo s abrigou fantasmas hirsutos, sombras andrajosas, engodos de seres

    humanos que as testemunhas de ento designaram os atletas do exlio e que eu

    chamei os homens brios de Deus.

    Este livro foi escrito e publicado h treze anos. Mas ele nasceu bem mais

    cedo em meu esprito, gerado por uma viso noturna. Eu estava ento no

    monte Atos, no mosteiro da Grande Laura, onde jantava, aps o ofcio da

    noite, no grande refeitrio cheio de monges e eremitas para a festa anual de

    santo Atansio o Atnita. As paredes eram cobertas de afrescos antigos, cuja

    faixa inferior representava, alinhados lado a lado, os grandes santos do

    deserto: Anto, Paulo de Tebas, Pacmio, Macrio, Onofre, Poimm. Silhuetas

    nuas, longos corpos esqulidos vestidos de barbas e de cabelos caindo at os

    ps, com grandes olhos negros cavados na ossatura do rosto. luz das velas,

    suas aurolas realavam a padez de seus traos e todos aqueles santos

    retomavam vida, repentinamente, distantes e familiares ao mesmo tempo,

    como se, dos continentes seculares de seu afresco, eles surgissem da borda

    luminosa daquela refeio noturna. Aquela noite, compreendi que eles no

    estavam pintados somente para figurar uma experincia insubstituvel, para

    se ancorar num tempo passado, mas para surgir tambm a cada instante no

    presente dos homens. E naquela noite senti vir a mim todo um povo da

    sombra, cuja existncia e histria eu havia ignorado at ento. Quis

    conhec-los, encontrar um a um os habitantes desse mundo desconhecido do

    deserto. Li as Vidas dos santos, os relatos e os testemunhos dos que os

    conheceram, inventariei dezenas de textos gregos e coptas que, mais tarde, me

    levaram ao Egito. E foi l, no corao do Wadi-an-Natrun, que decidi escrever

    um livro para o qual s tinha, por enquanto, o ttulo: Les hommes ivres de Dieu.

  • Material com direitos autorais

    Hoje, no sei muito bem o que pensar deste livro. Ele foi o testemunho de uma

    poca e de uma vida que me levaram mais freqentemente ao Oriente que ao

    Ocidente. O que ento me fascinava continua a me interessar, mas me diz menos

    respeito. Nada tenho de asceta e nunca busquei aprofundar melhor aquilo que,

    durante anos, me conduziu procura daqueles homens. Alm do mais, sinto-me

    totalmente ateu e escrevi a histria desses homens sem jamais compar-

  • PREFCIO

    Material com direitos autorais

    tilhar sua opo e sua f. Empreendimento sempre incerto, j que ele recusa a

    identificao sem que o recuo implicado seja por isso revelador. Isto explica

    por que, ao lado de um grande nmero de reaes entusiastas e muito

    elogiosas, este livro tenha sido criticado, vilipendiado em alguns meios

    catlicos. De minha parte, no me preocupava muito com isso, pois na histria

    no existe domnio reservado. Se os crentes fossem os nicos habilitados a

    falar de sua f, se s os monges tivessem de escrever sobre o monaquismo, a

    histria do pensamento no passaria de uma eterna tautologia. Como no

    tenho, alis, nenhuma pretenso de historiador, encontrei-me mais uma vez

    rejeitado diante de mim mesmo. Porque este livro no um tratado de

    histria, uma hinologia ou uma critica pretensamente objetiva do fenmeno

    que ele estuda. Os homens bnos de Deus o dirio de um encontro inteira-

    mente pessoal com uma poca e com homens que at hoje no sei se foram

    loucos ou se foram santos. E no sei igualmente se eles foram e ainda so

    para mim os indgenas de um outro mundo ou os irmos desconhecidos de

    um continente que o meu. Este estudo tambm um livro-testemunha,

    quero dizer, o relato de um testemunho pessoal, termos contraditrios para um

    ocidental, mas que sempre se confundiram estreitamente em todo o domnio

    oriental. Testemunha, em grego, se diz martyr, que tambm significa mrtir.

    Como, enfim, meu objetivo em todos os meus livros nunca foi redigir

    teses de pretenso universitria nem marcar data para a posteridade, mas

    simplesmente, organicamente eu diria, comunicar-me com meus

    contemporneos, relatar o que vivi e pensei, para que outros o vivam e o

    pensem por si mesmos, reivindico particularmente as insuficincias at

    mesmo as ignorncias deste livro: como as tentativas e os erros das amebas

    e dos paramcios, elas so a marca dos titubeios sem os quais nenhuma

    verdade faz sentido. assim que surge finalmente este livro, aps tantos anos:

    um ensaio para interrogar, pressentir ou delinear os limites do homem. Pois

    foi isso, sem dvida alguma, que me atraiu outrora para a experincia desses

    santos do deserto: esse desafio lanado ao nosso destino de homindeo, essa

    recusa visceral da nossa casca antiga e essa busca ltima de um homem

    diferente.

    Sacy, setembro de 1974.

  • PREFCIO

    Material com direitos autorais

    15

    *t- solar-se do mundo, romper com a sociedade do seu V^/ tempo, pensar, como

    fizeram os eremitas, que s fora dela se encontra a resposta ao problema do destino

    humano no tem por si s nada de inslito. uma atitude das mais naturais na

    medida em que toda sociedade altamente civilizada engendra inevitavelmente uma

    franja anti-social onde figuram como irmos o eremita e o fora-da-lei. Que ningum

    se espante ao ver aqui estas duas atitudes marginais colocadas no mesmo plano,

    pois de fato nada as distingue radicalmente em seu comportamento com relao

    comunidade: refratrio dos homens ou refratrio de Deus, cada um deles antes de

    tudo um rebelde frente a uma ordem julgada intolervel ou caduca.

    Digamos mesmo que, a partir do momento em que esse passo decisivo

    for dado, ser mais fcil para o anti-social passar de um estado refratrio ao

    outro do que reintegrar-se a um grupo com o qual ele rompeu definitivamente.

    uma evidncia que as tradies populares e a histria oficial tm confirmado

    desde sempre, como atestam os inmeros contos do Bandido que virou monge e

    os textos das Vidas dos Padres do deserto, nos quais vemos constantemente

    ex-bandidos que se tornam eremitas.

    Romper com a sociedade de seu tempo , pois, uma atitude natural, que

    no de forma alguma privilgio da nossa gerao, a tal ponto que a histria

    de cada civilizao poderia comportar tambm a

    17

    histria das "anti-sociedades" que ela engendra. Se escolhi ilustrar esse fenmeno

    limitando-me a uma poca e a um lugar preciso, o Egito cristo do sculo IV,

    porque ele atingiu ali uma nitidez e uma amplitude excepcionais, raramente

    igualadas na histria, e porque teve at nossa poca conseqncias duradouras, ao

    suscitar os primeiros mosteiros conhecidos da histria crist.

    Uma palavra basta para definir esse fenmeno: anacorese. O termo grego

    anachresis significa uma retirada, uma fuga para longe do mundo cotidiano.

    Trata-sc antes de mais nada de uma opo anti-social que s bem mais tarde ganhar

    um significado religioso. Das centenas de camponeses, de escravos, de ladres que,

    no Egito greco-romano, fugiam para o deserto para escapar do fisco, de seus amos ou

    da justia, dizia-se que praticavam a anacorese. Em suma, ganhavam o deserto, como

    se diz em francs moderno que um parsan ganha o maquis*. E o termo anacorese

    nunca perder totalmente mesmo quando, bem mais tarde, se aplicar unicamente

  • PREFCIO

    Material com direitos autorais

    aos eremitas e aos santos este sentido original de refratrio, de "maquisard" dos

    homens ou de Deus.

    Atitude negativa na aparncia, j que antes de tudo uma fuga, uma recusa,

    uma ruptura radical com toda a sociedade organizada. Mas sabemos que no basta

    fugir para a solido do deserto (ou, hoje em dia, para a do mato) para romper com os

    valores de seu tempo. O anacoreta cristo foge, no deserto, da comunidade temporal

    a que pertence, mas para juntar-se ali comunidade espiritual, invisvel, que rene

    todos os cristos, mortos ou vivos, os santos, os mrtires. Ele s se isola de seus

    contemporneos, das delcias ou dos horrores de seu tempo para encontrar a

    comunidade ideal e atemporal de seus irmos dos outros sculos, dos outros lugares.

    assim que este comportamento anti-social culminar paradoxalmente na

    constituio, pouco a pouco, nas solides do Alto e do Baixo Egito, de uma nova

    sociedade

    INTRODUO

    margem da antiga, verdadeiras comunidades do deserto que, com o nome de

    lauras, skites, coenobia, mosteiros, se tornaro o modelo da cidade futura ou da

    cidade celeste. Paradoxo que se encontra na histria da palavra "monge", do grego

    mnachos, que significava na origem um homem vivendo s e que acabou por

    designar todo homem vivendo no seio de uma comunidade religiosa e organizada.

    Dos milhares de homens que escolheram, assim, viver fora do mundo e do

    tempo, a histria guardou sobretudo dois nomes: santo Anto e so Pacmio. Anto

    foi, segundo a tradio, o primeiro que teve a idia de abandonar o mundo para se

    consagrar no deserto meditao e orao. Pacmio, por seu lado, partiu para os

    desertos do Alto Egito no para viver sozinho, mas para fundar ali uma comunidade

    monstica. Se imaginarmos que meio sculo aps a morte destes dois precursores

    contavam-se s centenas e, um sculo depois, aos milhares os anacoretas e os

    monges vivendo nas grutas e lauras do deserto, que em seguida este movimento se

    estendeu Palestina, Sria, Prsia, Capadcia, Armnia e, mais tarde ainda, a

    * maquis: nas regies mediterrneas, o maquis uma configurao vegetal composta

    de moitas, arbustos e touceiras. A expresso francesa prendre le maquis significa

    "refugiar-se, aps ler cometido um delito, numa zona pouco acessvel coberta pelo

    maquis". Durante a Segunda Guerra Mundial, chamavam-se maquis os grupos de

    resistentes (partisans) que lutavam na clandestinidade contra a ocupao alem da Frana;

    os membros destes grupos eram chamados maquisards (N. do T.).

  • PREFCIO

    Material com direitos autorais

    todos os pases do Ocidente, a distncia parece incomensurvel entre a aventura

    aleatria, afinal de contas destes dois homens e suas repercusses na histria. Eis

    um fato que, por enquanto, me contento em assinalar, sem pretender em momento

    algum explic-lo. Sublinhemos apenas que logo de sada o anacoretismo se apresenta

    como um fenmeno ao mesmo tempo individual e coletivo, um impulso sentido por

    cada um como a livre escolha de sua conscincia, mas que rapidamente se

    transformou em algo que hoje chamaramos um movimento de massa. Ora, a maioria

    dos textos que possumos sobre a vida destes ascetas relata essencialmente o aspecto

    individual do fenmeno.

    Eles se consagram a seguir, cada um em sua vida eremuica, seus

    jejuns, suas oraes, seus milagres e suas tentaes sem nunca entrever ou mesmo

    suspeitar a amplitude futura e o significado histrico da fuga para o deserto. r

    E por isso que me parece til, antes de acompanhar no Baixo e Alto Egito a vida

    e a aventura excepcionais desses homens, investigar as razes desse estranho

    fenmeno. No foi sem razes imperiosas, sem profundas motivaes, que milhares

    de cristos romperam com sua poca, seus bens, sua vida familiar, com o que todos

    os textos chamam "o sculo" ou "o mundo". Parece que assistimos ali a um

    19

    esforo consciente ou inconsciente? para realizar, margem do mundo

    profano, uma sociedade ideal e santa, as comunidades mons-ticas, e um tipo ideal

    de ser humano, o homem novo ou o santo do deserto.

    "O mosteiro um cu terrestre e, assim, ns todos devemos ser como

    anjos", escreve Joo Clmaco, autor asctico do sculo VII. Foi ento para se

    tornarem anjos, seres no limite do humano, que Anto, Pacmio e todos os

    que os imitaram um dia desertaram as cidades e a histria para enfrentar a

    provao do deserto?

  • Material com direitos autorais

    Primeira Parte

    CD j-im de. um

  • PADRES DO DESERTO

    Material com direitos autorais

    17

    W\IAV\C\O

  • Material com direitos

    1 .

    o m d os temp

    uando os primeiros monges e os primeiros anacoretas se ^ instalaram,

    no sculo IV, nos desertos do Egito, o cristianismo praticamente j se tornara a

    religio oficial do Imprio romano. As perseguies cessam, as converses se

    multiplicam e o famoso edito de Milo, proclamado alguns anos antes pelo

    imperador Constantino, permite que os cristos celebrem livremente seu

    culto. O paganismo deixar de ser pelo mesmo ato a religio representativa do

    Imprio, cuja histria se confunde doravante com a da Igreja. A quinze sculos

    de distncia, nada aparentemente mais natural que esta emergncia do

    cristianismo na histria. Na verdade, ela tem razes para surpreender se

    pensarmos que, na origem, nada era mais contrrio sua primeira vocao.

    Tal como foi pregada por Jesus e propagada pelos Apstolos, a religio

    nova, de fato, no tinha de forma alguma o objetivo de conquistar o mundo

    temporal, mas de pregar o advento prximo do Reino dos Cus e a morte da

    Histria. Como todas as grandes religies, foi primeiro modificando

    profundamente as relaes do homem e do tempo que o cristianismo se imps

    a seus primeiros fiis. Para os gentios em outras palavras, os pagos ,

    vivendo num Tempo cclico em que as cerimnias religiosas, as festas, os

    sacrifcios recomeavam infatigavelmente os mesmos eventos primordiais, no

    seio de um universo que se repete, logo, de um universo eterno, o cristianismo

    trazia a brusca, angustiante revelao de um Tempo que progride,

    23

    O

  • Material com direitos

    evolui, se consuma, de um universo em transformao e, portanto, suscetvel

    de acabar um dia. Um dos temas que encontramos freqentemente nos lbios

    de Jesus no a evidncia e a iminncia do fim do mundo? O universo logo

    vai se acabar, pois Jesus, vindo uma primeira vez sobre a terra "para cumprir

    as profecias", retornar a ela uma segunda vez e dentro de pouco tempo

    para pr um termo sua histria profana1.

    difcil imaginar a repercusso que tais idias poderiam ter nas

    multides da poca, quer se trate dos judeus, cuja sensibilidade tinha sido

    amplamente preparada h geraes para este acontecimento pelos profetas e

    autores de Apocalipses, quer se trate dos gentios, que nelas descobriam

    bruscamente a viso insuspeitada de um universo submetido ao Tempo.

    Repercusso tanto maior porque no se trata de uma simples advertncia, mas

    do anncio do fim iminente do mundo. A gerao dos que escutam Jesus "no passar sem que tudo isto acontea", e o evento

    ser to repentino que "aquele que estiver no terrao e tiver pertences na casa"

    no ter tempo de descer para busc-los. O Filho do Homem aparecer "como

    o relmpago que pane do oriente e brilha at o ocidente".

    Como viver, ento, neste temor perptuo da aniquilao de todas as

    coisas? Como no espreitar, dia e noite, os sinais precursores do Apocalipse e

    sobretudo j que se espera, de um momento para o outro, pelo fim do

    mundo como no abandonar todas as preocupaes, os afazeres, os valores

    deste mundo? Tanto mais porque esta crena no deixar de ser apregoada,

    alimentada, ao longo de todo o sculo I, pelos pregadores cristos, inclusive

    so Paulo. queles que lhe perguntam quando e como ocorrer o Juzo Final,

    so Paulo responde, na Primeira Epstola aos Tessalonicenses:

    [.../ ns os vivos, que houvermos ficado at a vinda do Senhor, no precederemos de modo nenhum os que morreram. Porque o Senhor em pessoa, ao sinal dado. a voz do arcanjo e ao toque da trombeta de Deus, descer do cu: ento os mortos em Cristo ressuscitaro primeiro; em seguida ns, os vivos que tivermos ficado, seremos arrebatados com eles sobre as nuvens, ao encontro do Senhor, nos ares... (ITs 4,15-17)".

    O FIM DOS TEMPOS

    1. Para evitar acumular citaes conhecidas, dou apenas a referncia das passagens

    essenciais: Mateus 24,29-31; Marcos 13,24-27; Lucas 21,25-28.

    * Todas as citaes de trechos bblicos nesta obra se basearo na edio brasileira

    da Traduo Ecumnica da Bblia, So Paulo, Edies Loyola, 1994. (N. do T.)

  • Material com direitos

    Esta profecia encontrar tal eco nos meios evangelizados pelo Apstolo,

    que alguns cristos cessaro todo trabalho e vivero ociosos, espera do dia

    iminente.

    Esse clima escatolgico e exaltado no deixar de se ampliar nos sculos

    seguintes e com toda certeza est na origem de muitos comportamentos

    irracionais e excessivos, como a vocao para o martrio, a obsesso da

    virgindade e da ascese, a fuga para os desertos. Todos esses comportamentos

    tm entre si o trao essencial de serem antes de tudo uma recusa radical do

    mundo, recusa que se compreende facilmente uma vez que este mundo est

    destinado a desaparecer de um dia para o outro. Que numa poca a nfase seja

    dada ao mrtir e, na outra, ao asceta ou ao anacoreta, tanto faz! Pois todas

    essas atitudes se prendem a uma mesma e total desafeio para com o mundo

    aqui de baixo, conseqncia das conturbaes, dos traumatismos operados

    nos espritos pelo medo, pela angstia, pela exaltao do Fim dos Tempos.

    Um exemplo disso? Posto que Jesus disse, a propsito dos sinais

    precursores de sua segunda Vinda: "Ai das que estiverem grvidas ou

    amamentando nesse dia!", muitas jovens permanecero virgens e inmeros

    casais praticaro os casamentos virginais ou apotcticos (consistindo em viver

    juntos, mas renunciando s relaes sexuais), para no serem surpreendidos

    impuros no momento do Juzo Final1. Se for necessria uma prova

    suplementar desta ligao, operada em muitos espritos, entre o zelo da

    virgindade e o temor do fim do mundo, eis um texto muito revelador de santo

    Hiplito, bispo de Roma, extrado do seu Comenio sobre Daniel, escrito no

    incio do sculo III:

    Um bispo, homem piedoso e modesto, mas que tinha excessivo confiana em suas vises, tivera trs sonhos e se ps a profetizar: "Sabei, meus irmos, que o luizo Final ocorrer em um ano. Sc o que vos digo no acontecer, no creiais mais nas Escrituras e agi como vos aprouver". Ao cabo de um ano, nada aconteceu, ele ficou confuso, os irmos escandalizados, as virgens se casaram e 05 que tinham vendido todos os seus bens foram reduzidos mendicncia.

    1. Apotctico significa, em sentido prprio: remmciante. Servia tambm para

    designar, durante os primeiros sculos, todos aqueles que praticavam a ascese onde quer

    que fosse, inclusive em casa, que renunciavam, em suma, vida dita mundana.

    25

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  • O UM DOS TEMPOS Material com direitos autorais

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    So Cipriano de Cartago, numa Carta a Dimitriano (mais um texto

    notvel que valeria a pena comparar com os textos ecolgicos

    contemporneos), escreve:

    Quem no v que o mundo caminha para seu declnio, que j no tem as mesmas foras nem o mesmo vigor de antigamente? No preciso prov-lo com a autoridade da Santa Escritura. O prprio mundo o diz e testemunha que se aproxima de seu fim pela decadncia de todas as coisas. Cai menos chuva no inverno para alimentar as sementes. O sol no mais to quente no vero para alimentar os frutos. A primavera no mais to agradvel nem o outono to fecundo. As pedreiras, como se estivessem cansadas, fornecem menos pedras, e as minas de ouro e de prata j esto esgotadas. As terras ficam incultas, os mares sem pilotos, os exrcitos sem soldados. H menos inocncia no tribunal, menos justia entre os juizes, menos unio entre os amigos, menos indstria nas artes, menos disciplina nos costumes... Vemos crianas que j so totalmente brancas. Seus cabelos caem antes de nascerem e comeam pela velhice em vez de terminar por ela. Assim, todas as coisas, desde agora, se precipitam rumo morte, sofrem do esgotamento geral deste mundo1.

    Em outros termos, o fim do mundo j no aparece ento como um objeto

    de terrores ou de esperanas insensatas, mas, ao contrrio, como uma fonte de

    meditaes, de reflexes racionais sobre os fins ltimos do homem.

    Compreende-se melhor agora como (e por que) os primeiros cristos deram

    tanta importncia ao mrtir, ao asceta e depois ao anacoreta. Cada um deles,

    por esse comportamento anti-social, essa recusa de um mundo moribundo,

    aparecia a um s tempo como um modelo e um profeta, como a nica

    "resposta" possvel angstia de um mundo que lia em si mesmo os sinais de

    sua prpria agonia.

    1. Ressaltemos esta frase de aparncia sibilina: "crianas que j so totalmente

    brancas". Devia tratar-se com toda certeza de bebs germanos que so Cipriano deve ter

    visto pela primeira vez nesta poca, na frica, onde vivia. Seus cabelos, inteiramente

    brancos ao nascer, s se tornam louros com o tempo. Observemos tambm que Plato, na

    Poltica, j tinha imaginado esse tema dos homens que nascem ancios e rejuvenescem

    pouco a pouco, para retornar ao ventre materno da terra. Essa inverso do tempo, Plato

    explicava-a pela retirada dos deuses de sua criao. O universo, abandonado a si mesmo,

    v suas formas e seus seres regredirem at que cada coisa se dissipe. Ora, idias anlogas

    nasciam ento nos espritos cristos: Deus havia se retirado do mundo, deixando o

    universo entregue a si mesmo, isto , regresso, morte.

    29

  • O UM DOS TEMPOS Material com direitos autorais

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  • 2.

    ^ande t^arasio

    Vir um tempo em que parecer que os egpcios adoraram seus deuses em vo. Da terra esses deuses retornaro ao cu, e o Egito ser deixado no abandono. Essa terra santa, ptria dos santurios, se cobrir de sepulcros e de morte. Egito! Egito! Das tuas crenas s subsistiro fbulas que parecero incrveis s geraes futuras, s restaro palavras sobre as pedras que contam teus atos de piedade!

    Asclpio

    branca, serena abstrao dos desertos. A Palestina, a Sria, a Lbia, o Egito

    podiam oferec-la aos que renunciavam ao mundo. Por que foi o Egito que

    venceu e se tornou a terra de predileo da ascese e da anacorese?

    Antes de abordar essa questo, ressaltemos um ponto importante: os

    textos que relatam a vida no deserto dos "homens brios de Deus", e aos quais

    apelaremos neste livro, so em sua maioria textos gregos escritos por gregos: a

    Vida de Anto, pelo bispo de Alexandria, Atan-sio; a Histria lausaca de

    Paldio, a Histria dos monges do Egito de Rufino de Aquilia. Os dois outros

    textos mais importantes, a Vida de Paulo de Tebas, primeiro eremxa, de so

    Jernimo, e as Conversas com

    33

    Material com direitos autorais

    A

  • os monges do Egito, de Cassiano, foram escritos em latim. Mas escrever em grego

    significa tambm pensar em grego. Todos os textos em questo, redigidos com vistas

    a um pblico cultivado que fala grego e latim, naturalmente transpuseram em sua

    prpria lngua os ensinamentos, as palavras, a mentalidade particular dos homens

    dos desertos do Egito. Ora, estes homens no eram nem gregos nem romanos, mas

    egpcios: Anto, Pacmio, Macrio o Antigo, Poimm, Pior, Serapio, Hor, Pafncio,

    Onofre, Cancio, Pisntios, todos esses grandes nomes do cristianismo copta* eram

    de raa egpcia, nascidos no Egito de pais egpcios (e mesmo pagos, muitas vezes).

    No falavam nem grego nem latim, mas copta, forma demtica da lngua egpcia

    tradicional. Alm disso, eram em sua maioria de origem camponesa, pertenciam

    quela classe dos fels que nunca teve qualquer contato (a no ser pelas revoltas

    constantes) com os ocupantes gregos e romanos e que perpetuou por longo tempo as

    tradies, os cultos, a mentalidade do Egito faranico. essencial estabelecer desde

    j esta distino, pois do contrrio sujeitamo-nos a no captar em toda a sua

    originalidade o fenmeno singular que foi o nascimento do mona-quismo no Egito.

    Na sua gnese e no seu alcance, um fenmeno puramente egpcio o ressurgimento

    com outras formas de um passado e de uma cultura que se acreditavam mortos mas

    que, de fato, nunca deixaram de existir nem de crescer, apesar dos sculos de

    ocupao estrangeira.

    & $r ifc

    Quando Anto e Pacmio partiram para o deserto, o Egito tinha deixado de

    ser h mais de oito sculos um pas independente. O

    * Como o autor falar com insistncia dos captas, parece-nos interessante traar aqui

    um rpido perfil deste povo. Os coptas so os cristos do Egito e da Etipia. So

    atualmente os descendentes mais autnticos da populao do Egito antigo, e sua

    continuidade racial se deve sua religio, que no admite casamentos mistos. Falam uma

    lngua da famlia camito-semltica que a continuao do egpcio falado na poca dos

    faras (os egpcios muulmanos falam rabe). Esta lngua se escreve num alfabeto prprio,

    baseado no grego. O hierarca supremo da Igreja copta o Patriarca, que vive no Cairo.

    Celebram a liturgia de so Baslio. Do ponto de vista doutrinai, a Igreja copta est

    desligada da igreja catlica romana e das Igrejas ortodoxas por ter permanecido na

    heresia do monofisismo. O termo copta provm de gyptus, alterao do nome grego do

    Egito, Aegypus. (N. do T.)

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  • PADRES DO DESERTO

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    31

    tamanho descomunal de certos animais, os gregos reagiram com zombaria, escrnio

    e esse esprito mordaz que os egpcios no apreciavam muito. Eles lhes retriburam,

    alis, a gentileza e captamos, nesses jogos da linguagem, todas os abismos que

    separam dois povos que esto lado a lado durante sculos sem se compreenderem.

    Para os egpcios, os gregos eram gente turbulenta, superficial e pouco sria, um

    povo irresponsvel e infantil. Recordemos esta frase atribuda por Plato a um

    sacerdote egpcio frase cuja justeza permanece mais que nunca vlida a trinta

    sculos de distncia e que poderia aplicar-se aos gregos de hoje: "Vs outros, gregos,

    permanecereis sempre crianas. Quando que os gregos se tornaro um povo

    adulto?"

    A presena romana no Egito foi menos sensvel ainda que a dos gregos.

    Roma tratou o Egito como uma terra parte, um pas cujos costumes, modos

    de vida, deuses e o lugar excntrico que ocupava nos confins do mundo o

    diferenciavam das outras provncias do Imprio. Se os gregos se justapuseram

    aos egpcios sem realmente misturar-se a eles, os romanos s fizeram ocupar o

    Egito. Seno, vejamos um mapa do Egito romano. Que vemos a? Cidades

    gregas: Alexandria, Nucratis no' Delta, Arsnoe no Faium; depois, medida

    que subimos o Nilo, Afroditpolis, Oxirrinco, Hermpolis, Licpolis,

    Ptolomaida, Coptas, Tebas, Siena. Algumas dessas cidades eram evi-

    dentemente de origem egpcia, mas elas usaram durante muito tempo e com

    mais freqncia seu nome grego. Uma nica cidade tem um nome e uma

    origem devidos a Roma: Antino, fundada por Adriano aps a morte de seu

    favorito, Antnoo. que, de fato, a penetrao romana no foi muito alm do

    Mdio Egito. Nada de limes, faixa-fronteira como em tantos outros pases do

    Imprio, nada de fortifica-es, de vias, de implantaes duradouras. Antes

    uma presena espordica, nos limites do deserto hostil, que obrigou os

    romanos a se servirem de dromedrios; presena limitada a algumas

    guarnies de militares, algumas dezenas de funcionrios e cidados

    confinados unicamente no Delta e nos burgos importantes. Roma ocupa

    militarmente o Egito, mas no constri nada ali, no funda nada, no

    compreende nada. Contenta-se em reprimir as revoltas que estouram a todo

    momento e, como diz com acerto um historiador do Egito romano, "em fazer o

    pas suar trigo e prata para alimentar os romanos".

  • PADRES DO DESERTO

    Material com direitos autorais

    32

    Diro que estamos fazendo o jogo do mistrio e do exotismo, mas isso seria

    ignorar o papel singular que o Egito desempenhou para a cultura romana. Pois este

    pas to desconhecido e to pouco apreciado pelos que o ocuparam suscitou

    uma verdadeira febre entre os romanos da Itlia. Visto de Roma ou de Pompia, o

    Egito no mais uma terra de trigo povoada de indgenas embrutecidos, mas o pas

    da sabedoria e do conhecimento, o reino das tradies ocultas e dos poderes

    mgicos. Ele cristaliza, em torno de seus enigmas, seus smbolos indecifrveis, seus

    monumentos misteriosos, toda uma carncia de exotismo e de maravilhoso de que

    as culturas antigas se ressentiam tanto quanto as nossas. Pode-se ver uma prova

    disso na moda que fizeram os cultos egpcios (os de sis, principalmente) a partir do

    sculo I antes de nossa era. Toda uma aristocracia culta se entusiasma com sis, seus

    mistrios, seus sacerdotes, com esses cultos estranhos e at ento desconhecidos, a

    ponto de obrigar o imperador Tibrio a suprimi-los, a mandar crucificar alguns

    sacerdotes como exemplo e a deportar alguns milhares de fiis de sis para a

    Sardenha. Tudo isso, junto com os relatos mais ou menos fantsticos trazidos pelos

    viajantes (pois a moda ento a dos relatos de viagem fabulosos, onde tudo

    pitoresco e fcil, exotismo de bazar, prodgios e milagres, relatos que Luciano de

    Samosata parodiar na sua Histria verdadeira1), acaba formando no esprito do

    profano uma imagem convencional do Egito que se encontra nessas pinturas de

    paisagens nilticas que "causam furor" na mesma poca nas casas de Roma e de

    Pompia. Templos e cabanas de juncos beira do Nilo, barcos e barqueiros, bis e

    crocodilos se reproduzem ali ao infinito, tal como naqueles papis pintados de nossa

    infncia onde, numa paisagem oriental estereotipada deserto, camelos, mesquita

    , mulheres com vus apanhavam gua sombra das palmeiras. Os romanos, nos

    primeiros sculos de nossa era, tero o seu Egito, tal como o sculo XVI teve as suas

    ndias ocidentais e o sculo XIX a sua Polinsia: terras paradisacas onde se

    cristalizam essa amargura inconsciente e essa nostalgia da inocncia que afetam as

    civilizaes nas pocas de xito material e de conquista.

    1. Histria chamada "verdadeira" por ser, justamente, fruto de pura imaginao e

    por ser o primeiro modelo de uma literatura antiextica, diramos hoje

    desmistificadora, contra todos os viajantes, autores de relatos fabulosos e fceis, der-

    ramados nas "salas Pleyel" da poca.

    37

  • A GRANDE TRANSIO Material com direitos autorais

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    entre vs, ou em qualquer outro lugar, tudo o que se produziu de belo, de

    grande, de notvel sobre a terra, tudo isso est escrito, aqui, de longa data em

    nossos templos e salvo do esquecimento. Nossas leis, basta olhar para elas, e

    nossa maneira de viver e nossos conhecimentos: vers que elas tm mais de

    oito mil anos de idade". Outra prova ser encontrada num relato de Herdoto

    (anterior, portanto, ao de Plato) que tambm estabelece em oito mil anos a

    antigidade do Egito. Quando Herdoto visitou o templo de Amon-R, em

    Carnac, c perguntou aos sacerdotes desde quando os deuses reinavam sobre o

    Egito, eles o levaram ao interior do santurio e lhe enumeraram

    nomeando-as uma a uma trezentas e quarenta e uma esttuas de madeira:

    "pois cada sumo sacerdote, em vida, manda erguer sua esttua e, por uma

    enumerao metdica, os sacerdotes me mostraram que eles se sucediam

    assim, como os reis, de pai para filho, desde as origens". Trezentas e quarenta

    e uma geraes: isso d quase oito mil anos, o nmero citado por Plato.

    Mesmo dividindo por dois os nmeros dados por Herdoto (para ficarmos de

    acordo com os dados da arqueologia), eles permanecem bastante eloqentes.

    Diante da idade que supunham para seus deuses, diante da perenidade de

    suas crenas e de sua civilizao, os sacerdotes egpcios deviam sentir uma

    espcie de vertigem essa vertigem que arrebatava o visitante estrangeiro

    viso das trezentas e quarenta e uma esttuas alinhadas na penumbra do

    templo, sendo cada uma delas um elo do tempo. O Egito viveu durante quatro

    mil anos nessa vertigem da eternidade, nessa certeza de que o tempo era

    imvel, de que os deuses egpcios reinavam desde sempre sobre a terra.

    E ento, um dia, essa vertigem acabou, pois os deuses egpcios morreram. "Morreram" uma maneira de dizer, pois dificlimo descrever e mesmo compreender , na sua complexidade, a morte de um deus. Quando se pode dizer que um deus morreu? Quando deixa de ter um culto oficial? Mas nada prova, s por isso, que seus flis deixam de crer nele, de crer em sua presena e em seu poder oculto. No sculo VI de nossa era, ou seja, dois sculos depois da proibio oficial do paganismo pelo imperador Teodsio, ainda havia no mundo romano homens filsofos msticos que continuavam a crer na verdade dos deuses egpcios. Um deles escreve: "Sabemos que os deuses viveram e continuam a viver l".

    39

    Uma questo que toca to de perto a alma humana no pode ser resolvida com

    base nos vestgios externos que os deuses e seus cultos sempre deixaram na terra,

    1. Este episdio foi descrito com algumas variantes por Sozmeno, Histria

    eclesistica (VII, 15), e Scrates, Histria eclesistica (XI.29).

  • A GRANDE TRANSIO

    Material com direitos autorais

    sobretudo no Egito. De tal sorte que o nico critrio que permite dizer que um deus

    acaba de morrer ainda aquele fornecido por seus prprios fiis, quando tomam

    conscincia de que ele morreu neles, de que deixaram de crer nele. Ora, tal fenmeno

    se produziu no Egito, em Alexandria, na ltima dcada do sculo IV, no dia em que o

    patriarca Tefilo foi autorizado a instalar uma igreja num templo de Dioniso.

    Descobre ali estatuetas obscenas (ou melhor, que ele acha obscenas), as destri e lana

    seus pedaos multido dos cristos. Os pagos, furiosos, se revoltam, atacam os

    cristos e, tomados de pnico, correm a se trancar no Serapeu o grande templo de

    Serpis. Este templo era de uma magnificncia excepcional, que j impressionara,

    dois sculos antes, um cristo como Clemente de Alexandria. Mas nem a hora nem o

    sculo se prestavam mais admirao dos templos pagos. Os cristos, excitados por

    Tefilo, sobem os cem degraus que levam entrada do santurio, penetram no seu

    interior e se detm de chofre, tomados de assombro, de pavor, medo, diante da

    imensa esttua do deus. A tal ponto que ningum ousa atac-la. Finalmente, a uma

    ordem de Tefilo, um soldado se apodera de um machado, trepa a uma escada e

    comea a golpear a cabea do deus. O dolo balana, desaba, a multido lana um

    grito de medo enquanto... uma enxurrada de ratos sai do buraco aberto na esttua!

    Ento, passado todo o medo, os cristos arremetem contra o dolo. Os prprios

    pagos esto consternados: no havia um orculo muito antigo anunciando que o

    mundo desmoronaria no dia em que Serpis fosse profanado? Serpis qucbrou-se e o

    mundo no desmoronou. Os cristos ento arrastam os escombros vontade por toda

    a cidade e os queimam1. E cada um deve ter lido, ento, na viso daquele colosso

    arruinado de onde escapavam ratos, daquele deus esquartejado que era arrastado

    pelas ruas, a imagem mesma do paganismo dilacerado, moribundo. O cristianismo

    tinha conseguido no Egito pela violncia aquilo que nem os persas, nem os

    gregos, nem os romanos tinham podido fazer: suprimir as divindades seculares do

    pas e dar a ele um novo deus.

    0 * tr

    Os primeiros documentos seguros que atestam a existncia de uma

    comunidade crist organizada, em Alexandria, datam do final do sculo II.

    tambm por esta poca que um filsofo grego, Panteno, antigo estico

    convertido ao cristianismo e que teria viajado at a ndia seguindo as pegadas

    do apstolo Bartolomeu (segundo Eusbio de Cesaria), funda em Alexandria

    a clebre Didasclia, escola crist de exegese que ser dirigida depois dele por

    Clemente de Alexandria e Orgenes. O sucesso encontrado por esta escola

    prova em todo caso que, data de sua fundao, j havia nesta cidade

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    comunidades crists suficientemente numerosas e organizadas decerto

    desde os meados do sculo II. Mas quem so estes primeiros cristos? Antes de

    tudo, gregos, judeus, romanos, egpcios helenizados, membros da sociedade

    cosmopolita e culta de Alexandria. no seio desta ineligensta que o

    cristianismo se difunde a princpio pela simples razo de que s pregado

    em grego e no pode atingir a massa egpcia propriamente dita, que fala copta.

    O que no deixa de criar dificuldades: esta sociedade refinada , por natureza,

    pouco fantica, mais tolerante e aberta a todos os cultos e deuses novos. J

    tinha aceitado os deuses gregos, romanos e as divindades orientais srias e

    zorostricas a ponto de "amalgam-las" s do Egito. , por excelncia, uma

    classe que favorece o sincretismo religioso, onde se recrutaro os mais

    fervorosos adeptos do gnosticismo, do neoplatonismo, do neopitagorismo, das

    doutrinas hermticas e de todas as seitas religiosas e filosficas que se

    multiplicam na Alexandria do sculo II. Para tomar s um exemplo, aquele

    Serpis cuja "morte" retratamos um pouco mais acima e que foi o grande

    deus da poca greco-romana , aquele Serpis era uma "mescla" de

    Zeus-Jpiter, Hades, Osris, pis, Dioniso e mesmo de um pouco de Amon-R!

    Alm de seu santurio de Alexandria, ele possua um outro, clebre, onde

    podia ser adorado segundo o rito egpcio ou o rito grego e cujas alias eram

    ornadas com esfinges egpcias, sereias gregas, esttuas de Ptndaro, Protgoras

    e Plato! Tal flexibilidade no sincretismo tem qualquer coisa de fascinante.

    difcil hoje em dia, aps vinte sculos de cristianismo, imaginar que as

    divindades pudessem associar-se desse modo sem se excluir, amalgamar-se em

    pantees incessantemente enriquecidos. A facilidade com que ento se

    "fabrica-

    41

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  • A GRANDE TRANSIO Material com direitos autorais

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    ramente dizem respeito ao meio que nos interessa aqui, o do campons copta.

    O que certo que tornar-se cristo, no sculo III, para um campons do Egito

    no significava apenas adotar uma religio nova; implicava tambm renunciar

    mais ou menos religio antiga, a imagens, a smbolos, a ritos ancestrais.

    Entre este mais e este menos se situa todo o verdadeiro alcance do cristianismo

    naquela poca, e a necessidade que ele teve de se acomodar com este passado

    prodigioso, de no romper com algumas de suas exigncias, em suma, de dar

    ao copta a impresso de que ele podia tornar-se cristo permanecendo egpcio1.

    Vale dizer que os termos cristianismo e oisto tinham para um campons

    copta um sentido bem diferente do que tem para ns. De um extremo a outro

    do orbis romanus, cada um dos pases convertidos teve, alis, com bastante

    rapidez a sua prpria viso de Cristo, a ponto de a histria dos seis primeiros

    sculos da Igreja ter sido uma luta constante contra as heresias, um esforo

    perptuo para impor a todos uma viso idntica de Cristo. O peso do passado

    se exerceu profundamente sobre a sensibilidade religiosa do Egito cristo, e e

    evidente que haver sempre, na maneira como um campons copta era

    cristo, algo de estranho nossa prpria experincia. A prova disso que no

    dia em que ele puder, com toda liberdade, escolher o seu cristianismo,

    escolher um cristianismo todo equivocado, hertico: o monofisismo, que se

    tornar, a partir do final do sculo V, a religio nacional do Egito2.

    1. Permanecer egpcio, para um copta, no significava apenas continuar a pertencer

    ao Egito enquanto nao, mas enquanto cultura, perpetuando a crena nos smbolos

    religiosos milenares. Assim, na Vida copta de Teodoro, o discpulo de Pacmio, conta-se

    que Teodoro, tendo visto no campo um touro que possua os sinais externos dos touros

    sagrados de pis, "mandou-o matar para que seus monges no se pusessem a ador~lo"\

    2. O monofisismo foi uma heresia que afirmava que o Pai e o Filho tinham

    somente uma natureza inteiramente divina e, portanto, que a natureza humana de

    Cristo no passava de uma aparncia. Essa doutrina j havia sustentado certo nmero de

    seitas dos sculos anteriores, bem como algumas seitas gnsticas e tambm os marcionitas

    e os docetistas. Na doutrina monofisita, Cristo s tem uma carne aparente e pode mudar

    vontade de forma e de aspecto. Para explicar a Crucifixo (j que seria impossvel

    crucificar um fantasma), os monofisitas admitiram que Cristo no foi realmente

    crucificado, sendo substitudo in extremis por Simo, o Cireneu. Essa heresia devida a

    um monge de Constantinopla chamado utico se difundiu em todo o Oriente Mdio e

    ganhou o Egito, a Sria e a Armnia, onde subsistir, apesar da condenao do concilio de

    Calcednia, em 4 5 1 .

    45

  • A GRANDE TRANSIO Material com direitos autorais

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    book.

    Segunda Parte

    Material

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  • PADRES DO DESERTO

    47

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    poca. Nestas Vidas, os sbios, como mais tarde os santos, de fato comandam os

    elementos, afastam os flagelos, domam as bestas selvagens, operam curas

    milagrosas, exorcisam os posscssos. O que j permite situar em seu verdadeiro

    contexto todos esses milagres, essas diabruras e esse maravilhoso que fervilham na

    Vida de Ano. Eles s tm sentido em funo do objetivo visado pelo autor: escrita

    para edificar, no para descrever, concebida como um retrato exaltador da vida no

    deserto e no uma reportagem minuciosa das faanhas e proezas do santo, a Vida de

    Anto no poderia abrir mo das convenes literrias indispensveis a toda Vida

    edificante: milagres surpreendentes, grandes discursos retricos sobre a virtude e a

    sabedoria, recurso ao maravilhoso e ao sobrenatural, assaltos dos demnios. Em

    suma, o "por qu" da Vida de Anto que explica o "como", no o inverso. Todo esse

    arsenal de milagres e de tentaes, de conversas com os anjos ou de poderes

    exaltantes nada tem de cristo. Para o pblico da poca, pago

    ou cristo, nenhuma Vida de sbio ou de santo podia ter virtude edificante

    se no tivesse primeiramente um poder de assombro, se no obedecesse s leis do

    romance aretolgico, to rigorosas e imperativas quanto as que presidem hoje em

    dia, por exemplo, o romance-folhetim.

    Dito isto, uma vez bem admitida esta ganga fabuladora, esta inteno

    edificante das Vidas dos santos, no se pode concluir, porm, que elas no

    contenham nenhuma parte de histria ou de verdade. Ningum sonha em

    negar a existncia de Pitgoras ou dos sofistas gregos, ainda que sua vida,

    escrita por Jmblico e Eunpio, contenha mais de maravilhoso e de fantstico

    que de real. Tudo leva a crer que Anto de falo existiu. dito em sua Vida que

    ele fez duas viagens a Alexandria, que tomou posio contra a heresia ariana, e

    estes fatos puderam ser confirmados por outras fontes. Existiu seguramente,

    no sculo IV, no deserto do Egito, um personagem chamado Anto, copta

    iletrado mas dotado de grande sabedoria, que se consagrou a uma ascese

    espetacular o bastante para impressionar seus contemporneos e incitar um

    bispo a escrever sua vida. Mas certo que o personagem histrico tem pouca

    relao com o da Vida de Anto. A parte de histria que esta Vida contm,

    temos de busc-la contra o prprio texto, contra o autor s vezes, em tudo o

    que lhe pde escapar sobre os fatos, os lugares, as coisas que ele descreve.

    ali, nessa parte obscura, inconsciente da obra, que a histria real de Anto (a

    quem os sinaxnos

  • PADRES DO DESERTO

    49

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  • PADRES DO DESERTO

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    que fugiam dos lugares habitados para escapar das corvias, dos impostos, de

    seus amos ou da justia. Mas sua temporada no deserto era apenas passageira.

    No caso de Anto, esta partida tomava um sentido bem diferente, pois o que o

    atrai no a realidade concreta, e sim a realidade simblica do deserto.

    Como todos os anacoreias que o imitaro a seguir, Anto viveu numa

    poca e num meio profundamente impregnados de smbolos e de imagens

    bblicas. Toda a realidade material circundante (o deserto, o cu, os sons, as

    luzes, as sensaes mais quotidianas) possui um valor e um sentido

    simblicos, por ter servido, de uma maneira ou de outra, a este ou aquele

    episdio da histria divina. O deserto, antes de tudo, um lugar inspito,

    trrido, onde ningum poderia levar uma existncia normal. L o homem est

    nu, apanhado entre a terra e o cu, entre os dias extenuantes c as noites

    glidas, prisioneiro de uma paisagem abstrata, que no a imagem de

    nenhum mundo familiar. O deserto um lugar inumano. Mas que quer dizer

    inumano para um copta? Quer dizer um lugar habitado por outras criaturas

    que no homens: por anjos e demnios. No deserto, nenhum homem pode

    viver se no for ajudado por Deus ou por seus anjos, ningum pode morar ali

    sem enfrentar mais cedo ou mais tarde os assaltos do Diabo: tem de viver ali

    com os milagres e as tentaes. Mas, de tanto freqentar os anjos, acaba-se

    parecendo com eles. O que os homens do deserto perdem em humanidade

    ganharo em angelismo, e compreende-se que os pintores bizantinos que

    representaro estes homens do Egito nos afrescos dos mosteiros da Capadcia

    ou da Grcia os tenham pintado sob este duplo aspecto de selvagens c de

    anjos: rosto emagrecido, trajes esfarrapados, cabelos que caem at os ps, mas

    tambm olhares perdidos na contemplao de uma outra realidade, carne que

    quase no mais carne. Todas as convenes da arte bizantina tero como

    meta fazer dos grandes ascetas no criaturas impassveis, fantasmas ou

    iluses, mas seres que j pertencem a uma outra espcie de humanidade, a

    meio caminho do outro mundo. O deserto o lugar de uma experincia

    suprema, uma provao que conduz fatalmente o homem para alm de si

    mesmo, rumo ao Anjo ou Besta, rumo ao Diabo ou a Deus.

    Orgenes que dirigiu por muito tempo a clebre Didasclia de

    Alexandria e foi um dos espritos mais eminentes do sculo III

  • PADRES DO DESERTO

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  • PADRES DO DESERTO

    55

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    serpentes "com rostos de centelha, fogo na face e fogo no olho", o senhor do

    cetro, o que est no pas, o falco macho e o falco fmea. De cada lado da margem,

    assistindo passagem do cortejo divino, aparece uma multido de criaturas:

    numa das margens, esto todos aqueles que "criam o Oceano e fazem a

    marcha do Nilo"; so, na ordem, trs deuses, quatro mulheres, quatro mmias

    chifrudas e aladas, quatro nobres, um objeto de aparncia estranha

    (provavelmente uma haste de papiro), mas que na realidade um ser vivo, j

    que se chama aquele que cheio de magia, um homem ajoelhado chamado

    aquele que traz o despertar, Anbis, um carneiro chamado o matador de seus

    inimigos, um carregador e uma carrcgadora de olhos, o deus-orictropo* Set e

    um cinocfalo** (na mitologia egpcia, os cinocfalos abrem e fecham as portas

    do Reino dos Mortos). Na outra margem se erguem aqueles que cortam as

    almas e apnsionam as sombras. Dtstinguem-se o deus rion, um deus chamado

    o Ocidental, uma deusa que est sobre a chama, cinco criaturas com cabea de

    pssaro carregando facas, mais oito Osris e o deus-carnero Khnum. E isso se

    repete em cada uma das doze horas do Am-Duat! Alm disso, s

    mencionamos aqui os deuses e as criaturas mais aparentes, as que esto nas

    margens do rio. Ao longe, nas trevas desse mundo estranho, o brilho do

    deus-Sol ilumina de passagem, como um projetor varrendo a noite, criaturas

    de pesadelo: mortos sepultados na areia, dos quais s a cabea emerge,

    serpentes montadas em patas to altas quanto pernas-de-pau, o drago Apfis

    enroscado num penhasco que ele envolve com suas espirais, homens

    estendidos na terra, decapitados ou manietados (os "inimigos" do Sol), outras,

    enfim, que mal adivinhamos, sepultadas sob montculos de areia.

    Essa imaginao funerria no era somente visual, mas sonora. Nesta ou

    naquela hora do Am-Duat, os textos descrevem os rudos mltiplos que

    acompanham a passagem da barca divina: gritos de alegria dos mortos

    enquanto o Sol atravessa sua "hora", gemidos e

    * Qrictropo: gnero de mamferos tubultdentados, com aparncia geral de um

    porco, mas dotado de uma boca em forma de tubo, por onde se alimenta de cupins e

    formigas; chamado na frica do Sul aardvark ("porco da terra"). (N. do T.)

    * * Cinocfalo: nome grego que significa "cabea de co", aplicado a um gnero de

    macacos cuja cabea lembra a de um co. (N. do T.)

  • PADRES DO DESERTO

    57

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  • PADRES DO DESERTO 59

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    ele apareceu fora daquele castelo queles que vinham at ele, e ficaram cheios de assombro ao v-lo num vigor maior do que jamais tivera. No tinha nem engordado pela ausncia de exerccio nem emagrecido por tantos jejuns e combates sustentados contra os demnios. Tinha o mesmo rosto de antes, a mesma tranqilidade de esprito e o humor agradvel. No estava nem abatido de tristeza nem numa excessiva alegria. Seu rosto no era nem demasiado jovial nem demasiado severo. No dava mostra nem de desagrado de se ver rodeado de tamanha multido nem de satisfao de ser saudado e reverenciado por tanta gente. Era de uma perfeita igualdade de alma, num estado conforme natureza.

    Ele forma ento seus primeiros discpulos, que decidem renunciar ao mundo

    e se agrupar em torno dele. Desta poca que podemos situar aproximadamente

    em 305 data a fundao da primeira comunidade crist no Egito. Ainda no um

    mosteiro, mas, no mximo, uma laura, um agrupamento de anacoretas, submetidos

    a uma ascese e a um modo de vida relativamente livres. Esta primeira comunidade,

    Anto a estabelecer s margens do Nilo, no longe da fortaleza de Pispir, perto da

    atual aldeia de Deir-el-Maimum.

    A reputao de Anto, nesta data, j enorme no Egito. Ela atinge todas

    as camadas da populao e no mais apenas um punhado de devotos e

    admiradores. Uma multido de pessoas aflui ao "mosteiro" de Pispir, deita-se

    ao longo da entrada, na esperana de ver o asceta aparecer para lhes falar,

    cur-las ou exorciz-las. J corre o boato de que basta se aproximar do

    "mosteiro" de Anto para voltar de t imediatamente curado. Mas Anto no

    suporta nem a multido, nem os milagres, nem a glria e decide partir de

    novo para mais longe no deserto, "num lugar onde no fosse conhecido de

    ningum".

    ^ 0 m

    A ltima parte da vida de Anto, da idade de sessenta anos at sua

    morte, apesar de alguns detalhes concretos, mal pertence histria humana.

    Aps ter deixado seus companheiros de Pispir, Anto se deteve s

    margens do Nilo, sem saber muito para onde iria, quando, de repente, ouviu

    uma voz celeste lhe dizer que se dirigisse "para o deserto interior". Naquele

    exato momento, passavam bedunos; ele os

  • PADRES DO DESERTO 61

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  • PADRES DO DESERTO

    63

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    assava seu po duas vezes por ano e fazia-o secar ao sol. Ningum podia

    entrar onde ele morava, mas ficava-se do lado de fora e ouvia -se sua palavra".

    E quando Anto morreu, no monte Colzum, aos cento e cinco anos de

    idacle, o sinaxrio acrescenta:

  • PADRES DO DESERTO

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    65

    "Viveu at a boa velhice sem que sua fora diminusse. Nenhum de seus

    dentes caiu".

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  • PADRES DO DESERTO

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    69

    Sinai, ainda que estivssemos a mais de vinte lguas. O mar fica a oriente deste mosteiro. s pontas do Sinai ficam a leste do mar. Avistamos algumas montanhas do lado do ocidente com um pouco de mata, mas muito distante de l, e todo o conjunto do que podamos vislumbrar era inteiramente rido e causticado.

    ali que Paulo de Tebas viver durante cem anos. Cem anos de uma existncia

    quase milagrosa, ainda que so jernimo, no que lhe diz respeito, ache tudo muito

    natural:

    A palmeira de que falei lhe fornecia tudo o que era necessrio sua alimentao e sua vestimenta, o que no deve ser visto como impossvel, j que Jesus Cristo e seus anjos so testemunhas de que, nesta parte do deserto que pertence s terras dos sarracenos e se junta Sria, tenho visto solitrios dos quais um, recluso h trinta anos numa caverna, s vivia de po de cevada e de gua lodosa, e um outro, trancado numa velha cisterna, vivia de cinco figos por dia.

    Paulo de Tebas viver decerto com menos que isso. Levar nesta gruta

    uma existncia anglica que o universo teria ignorado se, pouco antes de sua

    morte, Deus no tivesse avisado Anto da existncia de Paulo. Anto tinha j

    noventa anos, mas decidiu imediatamente pr-se a caminho, procura dele.

    A partir deste episdio, a Vida de Paulo de Tebas torna-se uma espcie de

    sonho acordado em pleno deserto.

    Para comear, onde vive Paulo de Tebas? Anto no sabe e parte s

    cegas. Mas s cegas, quando algum se chama Anto e vive no deserto, quer

    dizer o olho de Deus. A Providncia guarda o caminho do asceta e nele coloca

    estranhas balizas:

    Ao despontar o dia, santo Anto comeou a caminhar sem saber aonde ia e o sol, chegado o meio-dia, j tinha escaldado o ar de tal sorte que parecia todo inflamado quando ele viu uma criatura que tinha em parte o corpo de um cavalo e era como aquelas que os poetas chamam Hpocentauros. To logo o vislumbrou, Anto ar-mou sua fronte com o sinal salutar da cruz e lhe gritou: "Ol! Em que lugar da terra mora aqui o servo de Deus?" O monstro, ento, murmurando no sei o que de brbaro e entrecortando suas palavras mais do que proferindo-as distintamente, esforou-se por fazer sair uma voz doce de seus lbios eriados de plos e, estendendo a mo direita, lhe mostrou o caminho to desejado. Depois, dissipou-se diante dos olhos daquele a quem tinha enchido de espanto. Quanto

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    73

    A Vida de Pacmio chegou at ns num grande nmero de verses

    escritas nos diferentes dialetos coptas: bohirico e menfitico (Delta e Baixo

    Egito), akhmnico e sub-akhmnico (no Mdio Egito) e sahdico (no Alto

    Egito). Estas Vidas apresentam entre si certo nmero de variantes, mas todas

    concordam no essencial: os principais episdios da infncia de Pacmio e sua

    regra so, em todas elas, os mesmos. Por eles, podemos reconstituir com bases

    histricas bastante seguras a espantosa existncia do primeiro dos monges.

    Pacmio nasceu em 286 na aldeia de Esneh (atualmente Isna), no Alto

    Egito, a uns cinqenta quilmetros de Tebas. Ao contrrio de Anto, teve uma

    infncia paga. Mas, como no se poderia admitir que um futuro santo

    pudesse, mesmo inconscientemente, adorar os dolos, sua Vida toma o

    cuidado de assinalar que ele s os adorava na aparncia. Vomitava a cada vez

    o vinho dos sacrifcios, seu estmago se recusava a ingurgitar alimentos

    oferecidos aos dolos. Anto, aos vinte anos, teve a revelao de uma vida

    consagrada a Deus. Em Pacmio, o fenmeno invertido: ele consagrado a

    Deus sem ao menos saber disso. Inverso que se opera at nos detalhes mais

    concretos: Anto ouvia o chamado de Jesus; Pacmio, ao penetrar num

    templo pago, aos oito anos de idade, no ouve voz alguma; ao contrrio, so

    os dolos que param de falar ou de profetizar. A vocao de Pacmio essa

    voz paga que se cala em sua presena.

    Em nada surpreso com tantos prodgios, Pacmio continua a crescer:

    aos vinte anos, alistado fora no exrcito romano e parte um belo dia para

    a guarnio, em Antino. L, pela primeira vez, fica sabendo que existem no

    mundo seres chamados cristos, que se devotam voluntariamente aos outros

    e se deixam martirizar, em vez de renegar sua f. Tocado por sua

    generosidade e sua gentileza, Pacmio os freqenta assiduamente e decide,

    nesta poca, consagrar-se ao Deus dos cristos.

    Assim que foi dispensado, dois ou trs anos mais tarde, ele regressou ao

    sul e chegou um belo dia a Sheneset (em grego Khenobskion),

    aldeia deserta e causticada pela intensidade do calor. Ento, ps-se a considerar aquele lugar: no tinha muitos habitantes, apenas alguns. Foi at o rio, num pequeno templo chamado pelos antigos Psampisarapis (lugar de Sarpis), ps-se de p, orou, e o esprito de

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  • PADRES DO DESERTO

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    77

    orao ali... Como se prolongasse na orao, uma voz lhe veio do cu e lhe disse: "Pacmio, instala-te aqui e constri tua morada. Uma multido de homens vir a ti, e isso lhes beneficiar a alma".

    Nas verses posteriores, o episdio mais preciso ainda: um anjo aparece a

    Pacmio, lhe d suas instrues e lhe entrega, numa tabuleta de bronze, a Regra de

    seus futuros mosteiros.

    Este deserto da Revelao como poderamos cham-lo situava-se perto da

    aldeia de Tabenesi, na margem ocidental do Nilo, nas proximidades da antiga cidade

    de Denderah. Foi l que Pacmio se instalou para obedecer s instrues anglicas.

    l que ele fundar, algum tempo depois, seu primeiro mosteiro.

    Esse episdio do anjo ilustra de maneira direta as observaes feitas no

    incio do captulo precedente. Cada vez que uma descoberta ou uma iniciativa

    humana teve grandes conseqncias para os homens, eles tenderam

    imediatamente a atribuir-lhe a paternidade a um deus, a um anjo ou a um

    heri. Aos casos j mencionados (escrita, fogo. linguagem) acrescentemos

    aqui o das leis. A origem das leis foi quase sempre atribuda a deuses, e esta

    tendncia se encontra nas tradies hebraica e crist. Nelas, os Dez

    Mandamentos e a Regra de Pacmio so de inspirao divina. Moiss, no

    cume do Sinai, e Pacmio, no corao do deserto de Tabenesi, recebem das

    mos de Deus ou do anjo as tbuas de pedra ou de bronze contendo a Lei sob

    a qual os homens devero viver. No caso de Pacmio, a influncia tanto

    mais ntida quanto o episdio do anjo justamente tardio. Foi inventado

    numa poca em que os mosteiros pacomianos se haviam multiplicado ao

    longo do Nilo, em que Pacmio, to venerado quanto os maiores fundadores,

    tinha se tornado o Moiss dos copias. Rapidamente, a lenda ratificou pelo

    episdio da Tbua do anjo esse destino paralelo dos dois homens. De toda

    maneira, o fato essencial que, num dado momento de sua vida, Pacmio

    teve a revelao ou a idia de sua vocao: arrastar os homens para fora

    do mundo por seu exemplo, agrup-los em torno de si, instituir no deserto

    comunidades que repousariam em regras e princpios absolutamente novos.

    Eis o mago do problema, a prodigiosa originalidade da empresa pacomiana:

    fundar uma sociedade de homens "partindo de novo do zero", organizar a

    vida deles e suas relaes segundo um sistema origi

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  • PADRES DO DESERTO

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    de salvao, como uma sorte de ascese aniartsca na qual a recusa da beleza

    teria o mesmo papel que a recusa do corpo na ascese fsica?

    * m

    A partir da fundao do primeiro mosteiro de Tabenesi at sua morte,

    ocorrida, em 348, durante uma epidemia de peste, Pacmio se consagrou por

    inteiro organizao da vida cenobtica. Empregamos aqui de propsito o

    termo cenobtico. O cenobita (do latim coenobium: "comunidade"*) designava

    na poca todo homem que vivia em comunidade, ao passo que monge ainda

    tinha o sentido de homem que vivia s. Com o tempo, o termo monge passou a

    designar tambm todo homem que vivia em comunidade c tornou-se

    sinnimo de cenobita. Mas no tempo de Anto e Pacmio a distino ainda

    era muito ntida entre estes dois modos de vida. O termo mosteiro, que os

    tradutores das Vidas de Anto e Pacmio empregam quase sempre, no deve

    nos iludir: ele designa, no mais das vezes, uma gruta ou uma simples cabana

    de gravetos onde vive um solitrio. Dito isso, e para a comodidade da

    linguagem, ns empregaremos sempre aqui o termo mosteiro em seu sentido

    corrente de edifcio onde monges vivem em comunidade.

    At sua morte, portanto, Pacmio cumpriu sua obra cenobtica e fundou

    nove mosteiros. Todos se situavam entre Tebas, ao sul, e Akhmin, ao norte,

    tendo como centro a regio de Khenobskion e Tabenesi, onde Pacmio fizera

    suas primeiras experincias. Depois dos de Tabenesi e de Pabau, fundou

    sucessivamente os mosteiros de Sheneset (que o nome copta de

    Khenobskion, j citado), de Tmusus (tambm chamado Moncoso), prximo

    do precedente, na margem esquerda do Nilo, e depois, mais ao norte, os de

    Tbeu e de Tesmine, perto de Akhmin, enfim, bem mais ao sul, nas cercanias de

    Tebas, o de Fnenum. Tambm fundou, perto de Pabau e de Tesmine, dois

    mosteiros de mulheres. Se situarmos por volta de 318 a construo do

    primeiro mosteiro, veremos que durante trinta anos Pacmio viveu uma

    existncia puramente cenobtica. A experincia da solido, dos tmulos e dos

    anjos estava encerrada. A seus olhos, era possvel doravante ser um asceta

    vivendo no seio de uma comunidade.

    * Na verdade, o termo latino coenobium, apresentado pelo autor, de origem grega,

    formado de hoine ("comum") + bios ("vida"), "vida comum". (N. do T.)

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  • PADRES DO DESERTO

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    85

    monges usarem um capuz bastante amplo para que cada um pudesse cobrir com ele

    o seu prato e comer ao abrigo dos olhares indiscretos, sem ele mesmo saber o que seu

    vizinho fazia. Assim, durante as refeies comuns, todos os capuzes baixados se

    tornavam, no sentido prprio como no figurado, um testemunho de humildade!

    Alis, como regra geral, Pacmio no gostava dos jejuns demasiado freqentes

    ou exagerados. Num domnio em que to delicado traar a fronteira entre o

    orgulho e a humildade, o prprio fato de recusar um bocado de po ganhava um

    sentido equivocado: era por orgulho ou por ascese? E Pacmio chegou logo a exigir

    que cada monge comesse em cada refeio "quatro ou cinco bocados de po para evitar

    a vaidade".

    No trabalho, a ascese tambm era regulamentada. A cada monge cabia

    trabalhar e fazer, alm dos trabalhos de sua casa, uma esteira de juncos

    tranados por dia, que ele depositava diante da porta de sua cela. Um dia, por

    vaidade, um monge depositou duas. Diante disso, Pacmio trancou-o cinco

    meses em sua cela, obrigando-o a fazer duas esteiras por dia.

    Obviamente, essas reprimendas sobre a alimentao, o sono, o trabalho

    eram s um meio destinado a facilitar a ascese mental do monge, permitir-lhe

    dominar sobretudo o homem interior, "matar o homem mundano", segundo a

    expresso de um anacoreta. A essas repreenses fsicas correspondiam,

    portanto, repreenses de outro gnero destinadas a matar a sensibilidade, as

    reaes afetivas, a individualidade do monge. Por exemplo, o riso era

    formalmente proscrito e o silncio era de regra durante a refeio, no trabalho

    e ao longo de todo o dia. "Aprende a calar" era uma das regras essenciais das

    comunidades pacomianas. Mas ningum estava "ao abrigo da lngua", de uma

    palavra deslocada, de uma frase infeliz e que traa preocupaes profanas. Um

    dia, Teodoro, o principal discpulo de Pacmio, avistou um monge que

    retornava de viagem. "De onde vens?", perguntou-lhe. Pacmio estava

    presente. Disse a Teodoro: "Teodoro, apressa-te em controlar teu corao.

    Habitua-te a nunca perguntar a algum de onde vens? ou aonde vais?, a no ser

    para saber aonde vai sua alma".

    O temperamento dos monges coptas evidentemente se dobrava bem mal

    quela disciplina de ferro. As querelas, as disputas, as lutas

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    Os ATLETAS DO EXLIO

    No entanto, no mesmo momento em que os antigos "resistentes da era

    das perseguies descobrem as delcias da colaborao com o poder, eis que

    um movimento inverso leva para os desertos e a vida asctica um grande

    nmero de cristos de todas as condies: camponeses, primeiro, e

    foras-da-lei, escravos, pequenos artesos, depois cidados ricos, "gente do

    mundo" e mesmo altos dignitrios do Imprio. Em outros termos, ao passo

    que uma parte da Igreja tem acesso histria, uma outra parte recusa-a

    violentamente, refugiando-se na vida atemporal do deserto. No se trata a de

    uma simples coincidncia. Entre estas duas ordens de fato, h uma relao de

    causa e eleito, ressaltada por todos os historiadores de Ferdinand Lot a

    Louis Bouyer. "A Igreja, imensamente ampliada", escreve Ferdinand Lot em La

    Fin du monde anque, "no pode mais permanecer na sociedade dos puros, dos

    santos que esperam o fim dos tempos. Identificada ou quase com o 'mundo1, a

    Igreja sofre profundamente a influncia degradante da vida. Para escapar

    dela, uma nica via de recurso: viver fora do mundo, artificialmente,

    buscando o deserto ou a solido, enclausurando-se sozinho ou coletivamente.

    No por puro acaso que o ascetismo eremtico e depois monacal surge no

    Oriente no momento mesmo do triunfo da Igreja." Porque o monaquismo

    justamente, como escreve por sua vez Louis Bouyer, "a reao instintiva do

    sentimento cristo contra uma falaciosa reconciliao com o presente que a

    converso imperial podia parecer justificar", reao a qual preciso, para

    compreend-la, "situar no contexto da Igreja constantiniana fazendo a paz

    com o mundo"1. Por qu? Porque, antes da converso do imperador

    Constantino, permanecer cristo significava arriscar-se a perder tudo: a vida,

    os bens, o emprego. Aps a converso, ser possvel permanecer cristo

    conservando tudo. A fuga para o deserto , ento, uma resposta quela

    seduo nova, tentao do mundo, do poder e do temporal.

    Na perspectiva deste livro, esse fenmeno ganha tambm um outro

    sentido: o fim das perseguies significa, para a sociedade crist, o fim do

    modelo ideal que era o santo-mrtir. A necessidade de um novo "modelo" se

    faz sentir; atravs dele aquela sociedade poder perseguir seu sonho

    anti-social. Pois o fim da clandestinidade e o

    1. Louis Bouyer, UAscse chrtienne et le Monde contemporain (Ed. du Cerf).

    95

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    OS ATLETAS DO EXLIO

    E compreende-se tambm por que tantos escravos buscaro asilo nos

    mosteiros e terminaro, eles tambm, como monges ou eremitas. A tal ponto

    que essa fuga para o deserto provocar graves distrbios sociais e a Igreja ter

    de reagir desde o sculo IV O concilio de Gangres, por exemplo (que ocorreu

    em 342), excomungou o bispo Eusttio e seus discpulos por terem

    aconselhado aos escravos que abandonassem seu amo e se tornassem ascetas.

    Bem depressa, alis, como era de se esperar, a Igreja tomar a defesa da ordem

    social e dos interesses dos amos e dos poderosos. "Ns no permitiremos

    jamais", diz um Cnon dos santos Apstolos do sculo IV, "coisa semelhante

    que cause mgoa aos amos aos quais pertencem os escravos e que semeia o dis-

    trbio nos lares..." Mais tarde, um edito do imperador Valente chega a ordenar

    que "sejam trazidos fora os escravos que se escondem entre os monges".

    Estas disposies acabaram por influenciar a prpria hagiografia, j que um

    santo do sculo IV, Teodoro, "tinha o poder milagroso de prender os escravos

    com laos invisveis que tornavam toda fuga impossvel. Se, apesar dessa

    precauo, o amo perdia seu escravo, tinha a possibilidade de vir dormir

    noite no tmulo do santo. Esse mostrava em sonho o lugar onde o escravo se

    refugiara. Parece bem claro que so Teodoro preferia os amos aos escravos"1.

    Assim, por ter suscitado o modelo do santo-anacoreta, atleta do exlio e

    novo mrtir do deserto, empreendido e desenvolvido ao longo do Nilo as

    prodigiosas "sociedades artificiais" que foram os mosteiros pacomianos, o

    Egito se tornar bem depressa, a partir do incio do sculo IV, uma "segunda

    Terra Santa" onde "o igualitarismo cristo, apoiado nos textos do Novo

    1 . Anne Hadjinicolaou, Recherches sur la vie des esdaves dans le monde byzann

    (Institui Franais d'Athnes), 1950.

    99

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    Testamento, a idia da Cidade celeste e

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    OS ATLETAS DO EXLIO

    Vimos tambm no Egito muitos outros solitrios. Que poderamos dizer desses homens admirveis e dessa multido infinita que esto nos arredores de Siena, na Alta Tebaida, cuja virtude pode passar por incrvel tanto ela se elevou acima da condio dos homens? Pois ainda hoje eles ressuscitam os mortos e caminham sobre as guas como so Pedro...

    O fato de estes mosteiros serem longnquos parece ter contribudo muito

    para sua lenda. Os desertos do Alto Egito, praticamente inacessveis aos

    viajantes, passavam por conter anacoretas mais prodigiosos ainda que os das

    outras regies do pais, e os relatos que comearo a circular sobre os ascetas, a

    partir do sculo V, esto entre os mais arrebatadores da literatura copta. O

    anacoreta se torna, nesses textos, um personagem quase no-humano, que

    vive no mais das vezes em meio aos animais e foge at do "cheiro de homem".

    Um desses textos, descoberto e traduzido por Robert Amelineau, intitula-se A

    viagem de um monge egpcio no deserto, e podemos consider-lo o modelo do g