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153 Resumo Entre 1975 e 1976, o quadrinista Moebius (Jean Giraud) lançou uma história que, pode-se dizer, revolucionaria as histórias em quadrinhos. Totalmente “silenciosa”, sem inferências gráficas a textos e sem falas, Arzach investia em um universo profundamente onírico e que realizava um aproveitamento máximo da imagem muda para desenvolver um sofisticado sistema de declinação icônica. A partir de autores como Barthes, Groensteen e Chion, além de uma comparação com o cinema silencioso, procuramos neste artigo pensar os efeitos da ausência quase total da palavra escrita em Arzach e seus desdobramentos para uma etiologia dos quadrinhos mudos. Palavras-chave: Moebius. Arzach. Quadrinhos silenciosos. ARZACH E O DESPONTAR DA NARRATIVA GRÁFICA SILENCIOSA Arzach and the dispontation of the Silent Graphic Narrative Arzach y el Despuntar de la Narrativa Gráfica Silenciosa Ciro Inácio Marcondes Doutor em Comunicação pela Faculdade de Comunicação da UnB, com passagem por Paris IV-Sorbonne. Mestre em Literatura pelo Departamento de Teoria Literária e Literaturas da UnB. Professor de curso de Comunicação do UniProjeção (DF). E-mail: [email protected] Abstract Between 1975 and 1976 the comic book artist Moebius (Jean Giraud) launched a story that, one might say, would revolutionize comics. Totally “silent”, without graphic inferences to texts and without speach, Arzach invested in a universe deeply dreamlike and that realized a maximum use of the silent image to develop a sophisticated system of iconic declination. From authors like Barthes, Groensteen and Chion, in addition to a comparison with silent cinema, we seek in this article to think about the effects of the almost total absence of the written word in Arzach and its unfolding for a etiology of silent comics. Key words: Moebius. Arzach. Silent comics. * Trabalho apresentado durantes as 3as Jornadas Internacionais de Histórias em Quadrinhos da ECA-USP, em 2015 Resumen Entre 1975 y 1976 el cuadrinista Moebius (Jean Giraud) lanzó una historia que, se puede decir, revolucionaría los cómics. Totalmente “silenciosa “, sin inferencias gráficas a textos y sin palabras, Arzach invirtió en un universo profundamente onírico y que realizaba un aprovechamiento máximo de la imagen silenciosa para desarrollar un sofisticado sistema de declinación icónica. A partir de autores como Barthes, Groensteen y Chion, además de una comparación con el cine silencioso, buscamos en este artículo pensar los efectos de la ausencia casi total de la palabra escrita en Arzach y sus desdoblamientos para una etiología de los cómics mudos. Palabras-clave: Moebius. Arzach. Cómics silenciosos.

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Resumo

Entre 1975 e 1976, o quadrinista Moebius (Jean Giraud) lançou uma história que, pode-se dizer, revolucionaria as histórias em quadrinhos. Totalmente “silenciosa”, sem inferências gráficas a textos e sem falas, Arzach investia em um universo profundamente onírico e que realizava um aproveitamento máximo da imagem muda para desenvolver um sofisticado sistema de declinação icônica. A partir de autores como Barthes, Groensteen e Chion, além de uma comparação com o cinema silencioso, procuramos neste artigo pensar os efeitos da ausência quase total da palavra escrita em Arzach e seus desdobramentos para uma etiologia dos quadrinhos mudos.

Palavras-chave: Moebius. Arzach.Quadrinhos silenciosos.

ARZACH E O DESPONTAR DA NARRATIVA GRÁFICA SILENCIOSA

Arzach and the dispontation of the Silent Graphic Narrative

Arzach y el Despuntar de la Narrativa Gráfica Silenciosa

Ciro Inácio Marcondes

Doutor em Comunicação pela Faculdade de Comunicação da UnB, com passagem por Paris IV-Sorbonne. Mestre em Literatura pelo Departamento de Teoria Literária e Literaturas da UnB. Professor de curso de Comunicação do UniProjeção (DF).

E-mail: [email protected]

Abstract

Between 1975 and 1976 the comic book artist Moebius (Jean Giraud) launched a story that, one might say, would revolutionize comics. Totally “silent”, without graphic inferences to texts and without speach, Arzach invested in a universe deeply dreamlike and that realized a maximum use of the silent image to develop a sophisticated system of iconic declination. From authors like Barthes, Groensteen and Chion, in addition to a comparison with silent cinema, we seek in this article to think about the effects of the almost total absence of the written word in Arzach and its unfolding for a etiology of silent comics.

Key words: Moebius. Arzach. Silent comics.

* Trabalho apresentado durantes as 3as Jornadas Internacionais de Histórias em Quadrinhos da ECA-USP, em 2015

Resumen

Entre 1975 y 1976 el cuadrinista Moebius (Jean Giraud) lanzó una historia que, se puede decir, revolucionaría los cómics. Totalmente “silenciosa “, sin inferencias gráficas a textos y sin palabras, Arzach invirtió en un universo profundamente onírico y que realizaba un aprovechamiento máximo de la imagen silenciosa para desarrollar un sofisticado sistema de declinación icónica. A partir de autores como Barthes, Groensteen y Chion, además de una comparación con el cine silencioso, buscamos en este artículo pensar los efectos de la ausencia casi total de la palabra escrita en Arzach y sus desdoblamientos para una etiología de los cómics mudos.Palabras-clave: Moebius. Arzach. Cómics silenciosos.

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Introdução

Um misterioso cavaleiro alienígena vestindo um chapéu de inspiração inca, portando um facão todo ornamenta-do e um chicote, monta uma espécie de pterodátilo bran-co, biomecânico, que voa sob céu obscuro e anis, através de estranhas montanhas de cor ocre, sendo uma delas espécie de torre construída por rústica inteligência. No canto supe-rior esquerdo, em uma fonte branca, expressiva, desenha-da à mão e em caixa alta, a misteriosa palavra: ARZACH. É esta a descrição da primeira página (FIG. 01) de uma obra que chama logo a atenção por sua dedicação na criação de referências visuais que, desconexas de qualquer contexto, funcionam como valises de suas próprias possibilidades re-presentacionais. Imagens que são universos em si, que tra-tam do incognoscível em qualquer representação visual, que funcionam, enfim, como imagens das próprias imagens.

A história segue: este cavaleiro, que lembra um beduíno de um mundo ao mesmo tempo alienígena e ancestral, passa pela janela de uma destas torres e observa uma mulher se desnudando, sem ver seu rosto. Isso desperta a ira de um ser masculino humanoide todo vermelho, que sobe até o topo da torre gritando. O cavaleiro então astuciosamente o laça e o carrega, voando por este cenário antípoda, até um gi-gantesco esqueleto de uma criatura oriunda de pesadelos, e o pendura sob uma de suas costelas. Pelo caminho, voando, eles passam por outra rústica formação rochosa, cujo topo abriga centenas de humanoides verdes e nus. O cavaleiro então retorna à torre original, em busca da mulher que ha-via espionado. Ele invade a torre pelo teto e encontra sua donzela olhando por uma janela redonda. Porém, quando ele se aproxima e ela se vira, sua face é monstruosa: os olhos são glóbulos amarelos, o nariz é um focinho e a língua tem viscoso aspecto reptiliano. O cavaleiro se vira, monta em seu pterodátilo e parte. O homem vermelho agoniza, pendurado no esqueleto do leviatã morto (FIG. 02).

Assim é a atmosfera de Arzach, e as três histórias seguintes vão repetir o mesmo modelo arquetípico, cujos elementos, isolados em seu solipsismo estético, tocam uns aos outros em instâncias que não competem àquelas de uma narrativa tradicional, impulsionadas por um começo e um fim, um destacamento da realidade, mudanças de tempo e espaço, etc. Ao invés de se fundar em uma vetorização narrativa tra-

zida à tona pelo caráter ordinativo das palavras, Arzach, uma história em quadrinhos silenciosa2, baseia sua progressão em elementos totalmente outros, que serão abordados ao longo deste artigo: a declinação icônica (variações em torno de uma mesma “tonalidade” imagética), a isotopia (termo usa-do por Greimas [Cf. MILLER, 2007, p. 97] para designar elementos em cadeia, dispersos pelo texto, que tenham con-teúdos semânticos em comum), o trançado (tressage – segun-do Groensteen, a maneira com que um requadro prefigura outros requadros espacialmente distantes, fundamento de sua artrologia geral para os quadrinhos enquanto meio de comunicação).

Mas o que é Arzach? Entre 1975 e 1976, o quadrinista francês Moebius (pseudônimo de Jean Giraud) lançou, nos primeiros números da revista Métal Hurlant, uma série de his-tórias que, pode-se dizer, revolucionariam as histórias em quadrinhos (a partir de agora, “HQs”). Silenciosa, pratica-mente sem inferências gráficas a textos e falas, Arzach investia em um universo profundamente onírico, cujos desdobra-mentos de sua importância apontam para vários aspectos da cultura de quadrinhos como um todo: o lançamento das quatro histórias reunidas em álbum em 1976 seria, segundo o próprio Moebius (Cf. MOEBIUS, 1981, p. 14), o primeiro álbum de HQ silenciosa; além disso, a fantasia adulta pensa-da nos mundos imaginários de Moebius nesse álbum passa-ria a configurar um gênero próprio, com grande influência não apenas na França (Phillipe Druillet, Jean-Pierre Dionet, Enki Bilal), mas também nos Estados Unidos (Richard Corben, Jim Starlin) e no Japão (Hayao Miiazaki)3; por fim, Arzach, em sua enxuta simplicidade, alavancaria também a carreira do próprio Moebius, que, até então conhecido ape-

2 Ainda que em alguns casos seja útil usar a terminologia “história em quadrinhos muda”, a fim de modelar o discurso teórico, vamos privilegiar aqui o termo “silen-cioso” porque é o que tem sido usado correntemente, em relação ao cinema, desde que os pesquisadores em língua portuguesa passaram a utilizar as inovações teóricas trazidas pela escola anglófona de Brighton, definindo o cinema dos anos ente 1895-1927 como silent cinema.

3 O pesquisador Jessi Bi (Cf. 2000) explica a continuidade da influência de Arzach nas histórias em quadrinhos nos anos 1970 e 1980: nas revistas Métal Hurlant, Heavy Metal e Epic Illustrated, na Marvel Comics, nos quadrinhos japoneses e no cinema. “Se a influência de Moebius nos Estados Unidos e também no Japão durou tanto, é porque ela não se deu apenas no âmbito das histórias em quadrinhos e ilus-trações. Ela se deu de maneira mais indireta, por intermédio do cinema fantástico e de ficção-científica que começou a interessar novamente os estúdios holywoodianos depois do sucesso de George Lucas.”

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nas como Jean Giraud (ou sua abreviação, Gir), fizera fama ilustrando a clássica série de western francesa Blueberry, cujos roteiros eram escritos por Jean-Michel Charlier.

Este artigo não tem intenção de exaurir a influência e importância histórica de Arzach, que se reflete na enorme in-fluência de Moebius nas HQs mundiais (além do cinema e da televisão4). Nossa intenção aqui é tão simplesmente voltar a este ponto nevrálgico, de convergência estética, das HQs dos anos 1970, e pensá-lo a partir de três frentes no que tange à sua relação com uma teoria da narrativa: em primeiro lugar, a tensão entre imagem e palavra (considerando o silêncio de Arzach, excetuando-se única e justamente a presença desta mesma palavra ao longo das histórias), e em especial sua ma-nifestação nas HQs; uma análise das próprias possibilidades narrativas de Arzach; e por fim estabelecer uma relação entre uma etiologia da imagem silenciosa em quadrinhos e a ima-gem silenciosa no cinema.

4 Moebius trabalhou na elaboração visual de diversos sucessos do cinema de ficção--científica de fantasia, como Alien (1979, de Ridley Scott), Tron (1982, de Steven Lisberg) e O quinto elemento (1997, de Luc Besson), além de um ambicioso e abortado projeto de adaptação (juntamente com Alejandro Jodorowsky) do clássico Duna, de Frank Herbert.

Os limites paradoxais da relação entre imagem e texto nas HQs

O suíço Rudolph Töpffer é um caso curioso na história das HQs. Suas “histórias em estampas”, primeiramente pu-blicadas em 1833 (Histoire de M. Jabot. FIG. 03), são frequen-temente citadas como as primeiras HQs europeias, quando não do mundo5. Töpffer não utilizava balões, apenas textos em letreiros (recitativos), o que não o impediu de escrever a respeito de seu processo de composição, tornando-o tam-bém, desta forma, o primeiro teórico das HQs. Entre suas ideias constava já o embrião dos tropos que seriam ampla-mente debatidos na elaboração teórica posterior sobre esta forma de arte e linguagem: a problematização das relações entre texto e imagem, vistas como fundamentais e inextri-cáveis, algo pertencente a uma “essência” que foi buscada pela teorização das HQs até o seu abandono recente (Cf. GROENSTEEN, 2007, pp. 12-17):

5 Conforme veremos, o estabelecimento de uma obra de origem para as HQs de-pende de uma conceituação do medium, profundamente problemática, a ponto de hoje em dia ser quase um consenso a sua impossibilidade, tornando este mito de origem cada vez mais desimportante.

Figuras 1 e 2

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Este pequeno livro é de uma natureza mista. Ele é composto por uma série de ilustrações. Cada um destes desenhos está acom-panhado de uma ou duas linhas de texto. Os desenhos, sem este texto, teriam apenas uma significação obscura; o texto, sem os desenhos, não significaria nada. O todo forma um tipo de ro-mance tão original que ele não se parece mais com um romance quanto com qualquer outra coisa. (TÖPFFER apud PEETERS, 1993, p. 26).

A ideia de que texto e imagem são coextensivos às HQs enquanto medium aparece em várias definições clássicas, como as de Fresnault-Deruelle (1977, p. 34) e Benoît Peeters (1993, p. 18). Basicamente, conforme aponta Töpffer, é nesta mesma relação, e em sua indivisibilidade, que residiria a própria causa aristotélica6 das HQs, ou seja, a antiga discus-são sobre o específico de um medium. Imaginar uma história em quadrinhos sem os balões, que fazem parte de sua iconogra-fia mais memorável, pode, realmente, aos olhos de um leigo, fazer parecer que estamos diante de algo mutilado ou in-completo. Uma história em quadrinhos muda ou silenciosa acaba surgindo como uma espécie de antípoda que coloca em risco toda definição do que poderia ou deveria ser a expressivi-dade deste meio de comunicação. A comparação mais ime-diata acaba sendo, como que em uma lógica de aliterações e similitudes entre meios, aquela com o cinema silencioso,

6 “[...] a chamada filosofia é por todos concebida como tendo por objeto as causas primeiras e os princípios [...].” (ARISTÓTELES, 1984, p. 13).

também visto como algo em processo e incompleto7 dentro de um debate não-especializado. A diferença reside nas marcas de nascença. Considerando o fato de que não se pode preci-sar aonde começam e terminam as características específicas das HQs enquanto medium (e logo tornando difícil encon-trar uma origem confiável para sua incidência), autores de diferentes épocas e nacionalidades divergem em relação ao quê definiria uma HQ e quando e onde ela efetivamente tem início. Por infrutífera que possa ser esta discussão hoje em dia, o exercício de genealogia8 vale para fundamentar uma comparação com o cinema. Dividida conceitualmente entre “possuir imagens unidas a palavras” e “narrativa de imagens justapostas”, a origem das HQs, para autores americanos como George Perry (Cf. 1971), se foca na aparição do có-digo verbal e em sua inserção em um contexto industrial e reprodutível, com a publicação do Yellow Kid, de Richard Outcault, em 1895. Seguindo a mesma linha, mas recuan-do a um contexto europeu, Peeters e Thierry Groensteen encontram justamente em Töpffer (Cf. 1994) o seu “san-to graal”, atribuindo muito valor justamente à relação que o autor suíço estabelecia entre imagem e palavra. Thierry Smolderen, privilegiando a narrativa gráfica, vai até as telas em série do pintor britânico William Hogarth (Cf. 2009) para fundamentar seu mito de origem. Já o americano Scott McCloud (Cf. 2005, pp. 2-17) vasculha na história mani-festações que caibam na sua definição de quadrinhos: ma-nuscritos em imagens pré-colombianos, a tapeçaria Bayeux, a pintura egípcia antiga. Sua teorização sobre as HQs e sua história resvalam em uma iconografia arquetípica (e por-tanto não-peirciana9) que aproxima este medium das formas de expressão mais antigas e intuitivas ao ser humano. Neste sentido, não é um exagero recuar até as pinturas paleolíticas de cavernas como Lascaux, Chauvet ou Altamira. A lingua-gem (muda) dos quadrinhos estaria na própria aurora da cognição e da cultura humanas. Arzach, conforme veremos, certamente deve seu imaginário a isso e, talvez mais impor-

7 Para um debate completo a respeito da inteireza ontológica do cinema silencioso, confira Du litteraire au filmique: système du récit. (GAUDREAULT, 1999).

8 Este exercício de genealogia está muito bem elaborado em A invenção dos quadri-nhos. (Cf. VARGAS, 2015, pp. 23-64).

9 McLoud não considera o ícone como fazendo parte de uma tríade semiótica com-posta também pelo símbolo e pelo índice, conforme indica a base da ciência da linguagem a partir de Peirce.

Figura 3

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de ajuste técnico (o som sendo uma obsessão concretizada apenas cerca de 30 anos depois da invenção do medium), fo-mentando uma divisão radical entre duas formas de comu-nicação que se baseiam em princípios ativos quase opostos (a imagem muda no cinema silencioso; o som, o verbo e a imagem falante no cinema falado), nos quadrinhos silenciosos, isentos da transformação tecnológica, mas abertos a uma variabilida-de na utilização de formas de linguagem, a supressão da pa-lavra parece fazer o medium derreter-se novamente em suas origens difusas, em sua ancestralidade cognitiva. Enquanto o cinema silencioso acabou se aprisionando em sua cultura e época, gerados pela racionalidade econômica e técnica que o produziram, trazendo à tona uma estética profundamente vinculada às vicissitudes particulares deste contexto, o qua-drinho silencioso surge como manifestação da alta maleabi-lidade do meio, sendo um dos mais claros exemplos da fa-mosa “definição impossível” que Groensteen atribui às HQs. Logo no início de sua formulação, o teórico belga afirma que é necessário reconhecer-se que toda HQ “apenas atua-liza certos potenciais do medium, em detrimento de outros que são reduzidos ou excluídos.” (GROENSTEEN, 2007, p. 12).

A argumentação de Groensteen é simples: várias mar-cas de linguagem estão presentes nas HQs. Mas é impossível encontrar uma HQ que utilize todas elas ao mesmo tempo. Logo, é impossível conceituar os quadrinhos a partir destas marcas de linguagem. Balões, falas, recitativos, onomato-peias, etc., tudo isso faz parte do imenso campo em que a atividade verbal ocorre nas HQs, e nosso questionamento aqui é procurar entender em que medida a ausência destes elementos (que são gráficos, visuais, conceituais, etc.) pro-voca uma reconfiguração tal na produção e na recepção da HQ pelo leitor que se possa afirmar que há a adoção de um modelo narrativo radicalmente diferente, e quais as impli-cações deste modelo tanto na compreensão do medium quan-to na própria capacidade humana de formular narrativas. A questão é que, tanto para Groensteen (2009, pp. 6-7), quanto para Peeters (2013, p. 187), quanto para um teórico oriundo das artes visuais como David Carrier (2000, p. 6), a imagem possui uma prevalência sobre o texto nos quadri-nhos. Töpffer já afirmava partir do desenho (e não do texto) no momento em que formulava seus quadrinhos:

tante, deve sua estrutura narrativa, que existe como forma de uma alucinação permanente que tange a origem do pen-samento humano.

Teorias sobre as origens das HQs divergem, portanto, em duas vertentes claras: ou ela se origina com a palavra (nos filactérios da pintura gótica e bizantina, nas histórias em es-tampas de Töpffer, nos balões das charges britânicas do sécu-lo XIX, no jornal diário com Yellow Kid), ou sem ela, baseada na sequencialidade pura, no desdobrar orgânico das imagens em sua própria narratividade, em um código desvinculado da palavra que o absorve, o remodela e o redefine. Se os estu-dos sobre cinema também possuem suas incertezas a respeito de suas origens (os teatros de lanterna mágica? Os aparelhos ópticos do Séc. XIX? O teatro de vaudeville? Novamente, Cf. GAUDREAULT, 1999) ou sobre seus inventores (Os ir-mãos Lumière? Os irmãos Skladanovksy? Thomas Edison?), é certo que a explosão da cultura cinematográfica tem início na última década do Séc. XIX e vai seguir – silenciosa – até o final dos anos 1920. Vale, logicamente, a ressalva de que a palavra e o som estiveram sempre presentes no universo do cinema durante estes quase quarenta primeiros anos, sempre buscando uma afinação narrativa (no caso dos letreiros)10, um emparelhamento técnico (a busca pela sincronização so-nora, fosse com vozes ou música) e uma multitude de possí-veis combinações expressivas entre estas variáveis, tornando o cinema deste período muito maleável e passível de assumir formas e conteúdos distintos. Apesar disso, o que sedimen-ta o primeiro cinema e as várias formas que o medium atinge nos anos 1910 e 1920 é sua expressão muda, marcada pela impossibilidade técnica, sempre à espera de uma atualização dos meios, de um upgrade tecnológico. Portanto, o silêncio no cinema ocorre com uma demarcação histórica, uma expres-siva variedade estética e uma limitação midiática. Nos qua-drinhos, a impossibilidade de se demarcar o limite entre pa-lavra e imagem pode levar suas origens ao limiar da cognição humana, à origem da narrativa e à bifurcação do pensamento entre um mundo iconográfico e um mundo verbal.

Esta diferença não pode ser desprezada. Se o cinema si-lencioso produz sua expressividade a partir de uma questão

10 Para um detalhamento maior a respeito de como os letreiros compuseram, pouco a pouco, um padrão de narrativa cinematográfica no período silencioso, confira American Silent Film (EVERSON, 1998).

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Mesmo sendo também um escritor, Rodolphe Töpffer, ao contrário da maioria dos teóricos posteriores das histórias em quadrinhos, não parte de um modelo literário, mas sim do desenho, verdadeira fonte da narração, ainda que mantendo relações indissociáveis com o texto. (PEETERS, 2013, p.185).

O próprio Moebius gostava de lembrar sempre que o método de composição narrativa de Arzach era espontâneo, a partir de um metamorfosear livre das imagens que rever-beram suas próprias elaborações visuais: “eu desenho da mesma forma com que outros fazem escrita automática.” (MOEBIUS, 1981, p. 13). Groensteen chega a afirmar que há uma submissão do código verbal ao código visual nos qua-drinhos, reversão de uma hierarquia semiótica que perdura nos outros meios de comunicação:

Um trabalho cujo conteúdo verbal está confinado a “simples” diá-logos não é nada escandaloso em si: é o caso dos filmes e do teatro. Mas filmes e shows aos vivo apresentam-se oralmente, enquanto os quadrinhos precisam ser lidos. Porque são impressos, os quadrinhos parecem ser relacionados como mais próximos da literatura; além disso, em relação às crianças, há a expectativa de que eles façam uma contribuição para a educação delas, ajudando-as a aprender a ler e encorajando-as a amar “belas letras” e “grandes autores”. O apri-sionamento da expressão verbal em um sistema visual [...] constitui uma revolução simbólica, uma reversão completa da hierarquia co-mumente aceita entre sistemas semióticos. (GROENSTEEN, 2009, pp. 6-7. Grifo nosso).

Ainda que um teórico como W.J.T. Mitchell vá enfatizar que “todas as artes são artes compostas; todos os media são media compostos” (Cf. 2009, p. 118), elaborando inclusive um termo específico (“imagemtexto11”, fazendo eco ao “es-paçotempo” de Einstein) para demonstrar que imagens são discursivas, e que textos são visuais, a maioria dos teóricos dos quadrinhos enfatiza mais uma co-ocorrência, uma for-çada colaboração ou mesmo o choque entre os códigos da imagem e do texto na maneira com que aparecem nesse me-dium. Charles Hatfield, também em sua tentativa de encon-trar certo “específico” para os quadrinhos, vai defini-los a

11 “Escrever, em sua forma física e gráfica, é uma sutura inseparável do visual e do verbal, a ‘imagemtexto’ encarnada.” (MITCHELL, 2009, p. 118).

partir de diversas tensões: códigos versus significação; imagem simples versus imagem-em-série; sequencia narrativa versus superfície da página; a leitura como experiência versus o texto como objeto material, etc. Uma destas tensões que fundam a potência narrativa das HQs é, obviamente, a tensão en-tre texto e imagem, desdobrada neste mapeamento dos ele-mentos dos quadrinhos enquanto função narrativa. “Em seu nível mais amplo, o que chamamos de tensão visual/verbal pode ser caracterizado como o conflito e a colaboração de códigos diferentes de significação, sendo utilizadas ou não as pala-vras escritas.” (HATFIELD, 2009, p. 134. Grifo do autor).

Esta tensão entre códigos dificilmente pode ser resolvida em termos absolutos. O sistema de funcionamento de um medium como os quadrinhos claramente abre concessões para uma parceria entre imagem e texto, às vezes amalgamando--os em situações literovisuais, aproveitando o caráter icôni-co do texto em si, ou ancorando a imagem na função siste-mática, eminentemente conceitual, do signo simbólico que é a palavra. Portanto, a rigor, conforme demonstra Mitchell, palavra e imagem, especialmente em um medium com os qua-drinhos (e, também a rigor, em todos os media) confluem--se como ouroboros: estão inextricavelmente relacionados, sendo um a extensão do outro. É fácil pensar desta forma se considerarmos o limite difuso entre iconicidade e sim-bólico12 em um signo como a palavra. Instrumentalmente, porém, esta condição amalgamada dos elementos consti-tuintes do texto em quadrinhos pouco serve para que a quí-mica entre eles seja compreendida separadamente. Uma HQ como Arzach serve para isolarmos artificialmente a palavra da imagem, o que nos permite avaliar a condição narrativa e semiótica do quadrinho silencioso. Neste caso, o termo an-coramento, de Barthes, é particularmente útil:

Em uma discussão a respeito de textos que ocorrem com imagens, Barthes faz uma referência específica às histórias em quadrinhos. Ele afirma que o texto pode tanto “ancorar” o significado de uma imagem, já que as imagens tendem a ser polissêmicas (suscetíveis a mais de uma interpretação), ou retransmiti-la, trazendo significados adicionais, sendo a função de retransmissão a dominante em uma história em

12 Basta pensar em como as palavras se originaram, na escrita sumérica, a partir de signos icônicos, e portanto, imagens representacionais, que aos poucos foram se deformando a ponto de se tornarem abstrações simbólicas.

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quadrinhos. (MILLER, 2007, pp. 100-101).

Retransmitir o significado de uma imagem (hoje em dia poderíamos dizer “remediar”) parece ser o eixo de funciona-mento mais normativo quando texto e imagem trabalham em coordenação, produzindo um ciclo virtuoso que se assemelha a uma nuvem de significados possíveis que nascem a partir da relação (a imagemtexto), e não de cada elemento de significação isoladamente. Para além desta dinâmica, explorada em quase todo texto teórico sobre quadrinhos, porém, interessa-nos a posição de conflito entre estas instâncias, também guardada em potência em cada momento em que uma palavra aparece associada a uma imagem. A retransmissão e o ancoramento, procedimentos opostos, dizem muito a respeito do que pode ou não uma HQ silenciosa. Ao contrário do balé semiótico da retransmissão, o ancoramento estabelece uma hierarquia, cria uma cicatriz na imagem, e vetorializa a leitura da mes-ma, paralisando seu potencial polissêmico. É esta a ambi-guidade fundamental do paradoxo imagemtexto: ao mesmo tempo em que produz a harmonia, produz o contratempo. Uma imagemtexto pode ser lida sempre em direções opostas. No caso da função de ancoramento, o texto em quadrinhos opera como uma legenda para um filme estrangeiro ou um letreiro explicativo para um filme silencioso: arrebata a aber-tura incognoscível de toda imagem, interrompendo a cadeia semiótica que nos leva até as imagens em série originárias do paleolítico, e a ancora no universo racional do conceito, domesticando-a e funcionalizando-a.

Então, o procedimento do ancoramento finca raízes e submete o enigma que representa toda imagem à lógica da escrita linear13, operacionalizando a relação entre palavra e imagem em uma HQ como se fosse uma espécie de centrífu-ga: a palavra é a aresta que a liga a imagem (os tubos na extre-midade da aresta) ao procedimento violento da amalgamação dos elementos. A imagem é processada por uma ebulição de choques e estímulos vindos da palavra, ficando eletrizada, afetada diretamente pelas contingências sígnicas da palavra. Uma HQ como Arzach procura não apenas reverter este pro-cesso, ou seja, desfibrilar os elementos do medium, como pro-cura submeter, desta vez, a própria palavra às condições de representação operadas pela imagem.

13 Conforme terminologia de Flusser. (Cf. 2008).

Nas quatro histórias originais de Arzach, Moebius utili-za apenas uma única palavra, grafada de maneira diferente na primeira página de cada uma delas: Arzach, Harzack, Arzak e Harzakc (FIGs 04, 05 e 06). Não há hermenêutica possível para este procedimento. Arzach é uma onomatopeia. Através dos anos e de abordagens posteriores de Moebius sobre o personagem, convencionou-se a atribuição do nome da obra ao cavaleiro retrofuturista, mas não há nada em qualquer das quatro histórias originais (Cf. BI, 2000) que indique se tratar “Arzach” de um nome próprio. Há aqueles que su-gerem que se refere à montaria do cavaleiro, outros às terras que percorre, ou à sua vestimenta, ou à guerra travada na quarta história, ou ao paralelepípedo misterioso revelado na última página, etc. A grande armadilha é justamente querer ancorar esta palavra às imagens da maneira com que se faz em uma HQ convencional. “Arzach” não se ancora, ou seja, não produz uma vetorização hermenêutica, justamente porque não está prenhe de significado. É apenas um significante, em toda sua potência de significante. É carregado de energia vocal, sendo uma palavra profundamente sonora, que evoca o ancestral e o contemporâneo, o futuro e o passado. Não à toa, Moebius brinca com a imagem da palavra (o significan-te), e, em cada início de história, a palavra não apenas apa-rece com grafia diferente, mas também com uma tipologia nova, misturando-se à estética visual da história, à maneira de Will Eisner em Spirit14 (FIG. 07).

Pensar como a palavra é inserida em Arzach é funda-mental para compreendermos sua compleição narrativa por dois motivos: primeiro, porque Moebius reverte o proces-so de ancoramento, transformando a palavra em um ícone e abrindo-a para toda expansão icônica, que marca o deli-neamento visual do mundo, mas o põe fora de contexto, fa-zendo-nos experimentar curiosa redução fenomenológica. Como uma imagem solta, a palavra “Arzach” não diz nada de específico, mas nos transporta para a pura visualidade, a pura vocalidade, a palavra universal, como se fosse a última palavra-valise, condensada como em um sonho freudiano15,

14 Em Spirit, história em quadrinhos noir publicada entre os anos 1940 e 1950, Eisner costumava trabalhar o título de cada história, assim como o logotipo do herói de série, como se estivesse presente dentro da diegese (apesar de não estar). Assim, o personagem Spirit aparecia saltando o logotipo da história, ou o título da história aparecia como uma placa de sinalização ou título de jornal, por exemplo.15 O sonho, para Freud, constitui-se de um reprocessamento do material recalcado

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Figuras 4 e 5

Figuras 6 e 7

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inesgotável. Moebius então carrega essa palavra de significado místico, por meio de sua grafia, tal qual o “YHWH”, tetra-grama da bíblia hebraica. Em segundo lugar, a metamorfose de um tropo imagético (a grafia da palavra) em suas dife-rentes representações nas quatro histórias anuncia a meta-morfose da narrativa para cada uma delas: a psicose a que o autor submete a representação simbólica da palavra carrega também seu procedimento de narrar, e a própria narrati-va se transforma em uma alucinação metalinguística sobre si própria, conforme veremos. Não à toa, após carregar sua HQ com estes elementos disruptores da ordem tradicional dos quadrinhos, Moebius, no último requadro (o próprio hiperquadro), se permite utilizar finalmente o balão de fala, desta vez desterritorializado (para utilizar o termo de Deleuze). A palavra, proferida em meio a um secto de cavaleiros semelhantes ao herói ao qual já estamos ha-bituados, não poderia ser outra: “Harzach.” (FIG. 08) Desta vez, entre aspas e com um ponto final, afirmando o código verbal como um processo agora inteiramente imagético, concluindo sua reversão semiótica e rever-tendo a metáfora da centrífuga.

A psicose da narração em Arzach

do sonhador a partir de dois procedimentos operacionalizados no inconsciente: a condensação e o deslocamento deste material. (Cf. FREUD, 2001).

A ausência do balão de fala em Arzach (excetuando-se o único caso do último quadro, conforme apontamos acima) é um índice de como podemos pensar a organização da nar-rativa de uma história em quadrinhos silenciosa. Além dos fatores mais evidentes, como a oclusão de um campo sonoro para a narrativa e a ausência do significante simbólico (no-vamente, excetuando-se os casos já analisados), a falta de balões transforma a paisagem visual da HQ (Cf. CARRIER, 2000, p. 28). O que nem todos percebem, em geral, é que, apesar de o balão não pertencer à diegese (ele não é “visto” pelos personagens, a não ser em histórias metalinguísticas), ele pertence à materialidade visual de uma HQ. Groensteen (Cf. 2013, p. 106) separa o material visível (montré) do ma-terial legível (advenu) de uma HQ, esquecendo-se da liga-ção íntima das palavras com a visualidade, e, mais que isso, esquecendo-se que os balões certamente funcionam como advenu no sentido de ocuparem o espaço da imagem no re-quadro, deslocando e realojando os signos icônicos (as ima-gens em si) para que o balão possa dividir o espaço com eles. Qualquer um que já tenha tido a experiência de roteirizar uma história em quadrinhos em thumbnails sabe a dificuldade em se alojar os espaços de fala de maneira que eles não des-truam a paisagem visual de uma página, ao mesmo tempo em que compõem a estrutura clássica, organizada e reconhecí-vel de uma história em quadrinhos, com equilíbrio entre as imagens icônicas e as imagens dos balões em si. Quadrinhos do período clássico (anos 40 e 50) da bande dessiné francobel-ga, como Blake e Mortimer (de Edgar P. Jacobs) e Alix (de Jacques Martin) costumavam utilizar um grande contingente de diá-logos em suas páginas enormes, fossem de jornal ou de ál-buns, criando uma grade absolutamente repleta de falas e que, para os padrões contemporâneos, poderia ser conside-rada poluída. Da mesma época, mas antecipando a tendên-cia que se demonstraria mais adaptada às HQs modernas, a série Spirit, de Will Eisner, procuraria um equilíbrio maior entre balões de fala e imagens nos requadros, criando uma fluidez de leitura mais dinâmica, inserindo a imagem do balão como um componente ativo no visual da página. Isso sugere que, quanto mais visual o balão é, mais ele se torna um componente icônico, aproximando-se de uma narrativa em que o simbólico (as palavras) é cada vez menos relevante.

Mas o que acontece, portanto, quando mesmo o balão de

Figura 8

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sentido de torná-lo necessariamente ficcional; e, por fim, deve promover uma passagem do tempo e uma mudança de espaço. Mesmo que Chion considere o som como vetor principal de uma potencialização narrativa de um medium como o cinema, ele não chega a excluir a possibilidade de que a narrativa, em imagens, possa ocorrer sem palavras ou vozes. Talvez esta narrativa apenas perca sua referência temporal primeira. Mas, neste caso, em que se transforma a narrativa não-veto-rializada pelo som e pela imagem? Como se dá a percepção temporal quando o fator que inscreve a cronografia está au-sente do medium? Veremos isso mais adiante.

Arzach em quase tudo se enquadra nos preceitos narra-tivos apontados por Gaudreault e Jost. Como todo o Arzach original se compõe de quatro histórias contadas separada-mente, é difícil pensar em um discurso fechado que unifique todas as histórias, até porque a ausência de linearização entre elas não permite que identifiquemos aonde elas co-meçam a acabam quando relacionadas entre si, apesar de existir uma ordem de leitura (que obedece à ordem de pu-blicação). Sendo assim, segundo um teórico da narratologia como Rick Altman, os quatro arcos de Arzach comporiam não uma narrativa, mas sim algo contendo alguma narrativa, como se fosse um folhetim (Cf. ALTMAN, 2008, p. 17-18). Para Altman, o enquadramento (“framing” – ou seja, o processo de estabelecer início e fim para algum material narrativo) é es-sencial para que se considere uma narrativa como comple-ta. Não que isso importe para a experiência narrativa em si. Folhetins, novelas, séries de TV e histórias em quadrinhos seriadas raramente completam seu enquadramento, o que não quer dizer que elas não se apresentem para nós como narrativas. Apenas, segundo Altman, não seriam uma narrati-va, mas conteriam narrativa.

Este seria o primeiro ponto para apresentar Arzach como um tipo diferente de experiência narrativa: ele não é um dis-curso fechado (não possui enquadramento) e não é conclusivo. Poder-se-ia dizer que é também cíclico ou até aleatório: as qua-tro histórias não parecem obedecer a uma ordem sequencial

inscreveria nelas, pelo intermédio da montagem, seu próprio percurso de leitura, consecutivo ao olhar que ele teria inicialmente posto sobre essa narrativa primeira – os planos. Em um nível superior, a ‘voz’ dessas duas instâncias seria de fato mo-dulada e regrada por esta instância fundamental que seria, então, o ‘meganarrador fílmico’, responsável pela ‘meganarrativa’ – o filme.”

natureza dinâmica é suprimido? A resposta lógica é uma in-tensificação deste impacto visual da HQ. Se, antes, “ajeitar” o balão dentro do requadro parecia uma improvisação para que ele e as imagens encontrassem certa harmonia indepen-dente da presença “inconveniente” da palavra, no caso de uma HQ sem falas este problema, com “alívio”, se dissolve. Um caso parecido ocorre entre som e imagem no cinema. Em seu extenso estudo sobre as propriedades sonoras na percep-ção fílmica, Michel Chion enfatiza algumas relações que nos podem ser úteis para ressaltar o papel do som e da palavra na linearização de uma narrativa, e como a imagem desvincu-lada deste estímulo possui bem menor potencial de vetori-zação neste sentido. Chion (Cf. 2005, p. 9-10) afirma, de princípio, que o cinema funciona segundo certo vococentrismo ou verbocentrismo, ou seja, que se projeta cognitivamente para a palavra e para a fala, e que isso norteia não apenas a cons-trução perceptiva de um medium como o cinema, mas também sua compleição narrativa. Ele não hesita em afirmar (Ibidem, p. 19) que o cinema sonoro é uma cronografia, ou seja, que a escrita do tempo neste medium é realizada pela banda sonora. A ordenação racional do filme é causada pela fala, em três frentes de linearização: a animação temporal, em que o som es-tabelece a temporalidade do filme; a linearização temporal, em que o som coloca uma cronografia no filme, ou seja, deter-mina uma ordem de leitura; e, por fim, a vetorização temporal, em que faz perceptível a passagem do passado ao futuro e do futuro ao passado. Sem o som, o cinema perde a referência temporal, o que fez Chion afirmar que o cinema silencioso “simplifica a imagem ao máximo, para limitar a percepção espacial exploratória, a fim de facilitar a percepção tempo-ral.” (Ibidem, p. 14).

Ora, a passagem do tempo é essencial a qualquer nar-rativa. Gaudreault e Jost, em A Narrativa Cinematográfica (Cf. 2009), conceituam uma narrativa qualquer a partir de cinco parâmetros: ela deve ser um discurso fechado (ou seja: deve ter começo e fim); deve pressupor um narrador (ainda que, em um medium misto como o cinema, ele possa se acumular, tornando-se meganarrador16); deve des-realizar um evento, no

16 Conforme GAUDREAULT e JOST (2009, p. 75): “Assim, para se chegar a produzir uma narrativa fílmica pluripontual, seria necessário primeiramente fazer apelo a um mostrador, que seria essa instância responsável, no momento da filma-gem, pelo ‘encaixe’ dessa multitude de ‘micronarrativas’ que são os planos. Inter-viria, em seguida, o narrador fílmico, que, apoderando-se dessas micronarrativas,

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e sequer demonstram relações entre si que não estejam no nível da variação e declinação icônica, ou seja, de estarem assimi-ladas entre si a partir de aliterações visuais:

Uma página fundada sob a variação justapõe “elementos de uma mesma classe paradigmática”, ou seja, “qualquer amostra das diversas formas que se apropriam, na natureza, de tal mo-tivo particular”. [...] A declinação icônica “repete um mesmo motivo que o artista faz receber, em cada tira, um tratamento diferente”. (GROENSTEEN, 2013, p. 106).

Estas declinações icônicas ou “isotopias” são perceptíveis em Arzach em vários âmbitos. Elas fazem parte daquilo que Groensteen classificou, em seu sistema para as histórias em quadrinhos, como artrologia geral, ou seja, “a maneira com que cada requadro pode lembrar ou prefigurar outros espacial-mente distantes.” (MILLER, 2007, pp. 82-3). Basicamente, esta é a maneira mais sutil, delicada e invisível com que os quadros se relacionam em uma história em quadrinhos. Ela não está diretamente relacionada à narração em si, mas sim à maneira com que o todo de uma HQ produz um efeito es-tético geral, uma combinação de elementos provocados pelo “trançado” (“tressage”) entre os quadros que reverbera de volta em todas as instâncias da história, algo muito próxi-mo do que o cineasta e teórico do cinema Sergei Eisenstein chamou de montagem polifônica: o detalhamento completo da superfície da imagem e sua potência de representação de um tema geral a partir da justaposição dos planos cinematográ-ficos. (Cf. EISENSTEIN, 2002, p. 54).

Em Arzach a declinação icônica provocada pela ação do trançado ocorre em duas frentes: pela utilização de cores sa-turadas em alta resolução que criam rimas visuais e motivos que se repetem no decorrer das quatro histórias, “orques-trando” a HQ como se em uma tonalidade mais musical; e alterando a cada momento o modelo de ocupação da página (aquilo que Peeters chama a “grade”) de acordo com as ne-cessidades de produção de significação das histórias. A ideia de Eisenstein para o cinema não estava longe deste tipo de realização: ele queria que o cinema funcionasse como uma sinfonia que estivesse submetida a um tema maior, e que cada elemento do filme fosse lido como tonalidade e exer-cesse a função de tempo e contratempo, algo meticuloso, complexo. É mais útil guardar a noção de que cada elemen-

to de composição do filme (cenografia, atuações, fotografia, etc.) servisse a um propósito unificador.

Na segunda história (“Harzak”), por exemplo, temos um modelo de composição a partir de declinações icônicas. Em uma das páginas da segunda história (FIG. 09), a grade é composta por seis requadros, com duas linhas horizon-tais e três verticais. O modelo de grade desta página é o que Peeters chamaria de retórica (Cf. PEETERS, 1993, p. 24), ou seja, cuja organização do espaço depende da prioridade da narrativa. Moebius a desenhou de maneira que a sigamos na leitura habitual (esquerda-direita e cima-baixo), mas o pa-reamento icônico entre os requadros segue uma ordem ver-tical. O quadro um se declina no quadro quatro. O dois se declina no cinco. E o três, no seis. Este tipo de composição, que embaralha a ordem visual do texto em quadrinhos, traz à tona uma estrutura pensante que vai além do simples acom-panhamento quadro-a-quadro de uma leitura ordinária (que Groensteen chamaria de artrologia restrita). O que vemos é um jogo sutil de similitudes e tropos que se afetam, criando uma estrutura visual elegante e maior do que o conteúdo em si da narração. É um primeiro passo para pensarmos que, em Arzach, a narração tem a autonomia de experimentar com seus próprios limites, como se não estivesse sendo simples-mente impulsionada pelos seus elementos básicos (ação, per-sonagem, enquadramento, etc.). A própria cronografia da palavra desaparece, permitindo que a passagem do tempo seja ela-borada dentro da confecção dos requadros. O mesmo efei-to ocorre na terceira história, mas a declinação não ocorre necessariamente na morfologia dos requadros, mas sim em sua utilização das cores. Moebius produziu Arzach a partir de um modelo cromático simples, o da saturação. As quatro histórias complementam-se e dialogam entre si a partir da utilização chapada de verdes, vermelhos, amarelos e azuis que geralmente dominam a paisagem visual de cada requa-dro, e estas associações livres entre os elementos cromáticos das histórias acabam forçando o leitor a criar padrões visuais subconscientes, impulsionando uma orientação da narrativa a partir da declinação das cores.

Neste caso, na terceira história, acompanhamos um per-sonagem até então inédito que invade, dirigindo um carro vintage, uma espécie de cidadela (amarela) habitada por se-res humanoides que mais se assemelham a zumbis (verdes, da mesma cor do personagem), que o agridem até que ele

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consiga entrar dentro de um prédio fortificado. Dentro da uma sala neste prédio, podemos ver uma tela que mostra o cavaleiro das duas primeiras histórias andando, em círculos, ao redor de seu pterodátilo, inanimado. Moebius compõe a restauração do animal biomecânico a partir de duas páginas (MOEBIUS, 2000, pp. 43-44. FIGs. 10 e 11), em seis qua-dros horizontais (três em cada página). Na primeira página, vemos dois requadros vermelhos (nas pontas) e um requadro azul (no meio). Na segunda, a organização cromática se in-verte: dois requadros azuis (nas pontas) e um requadro ver-melho (no meio). Moebius traz, ao espaço apertado aonde vemos o homem misterioso mexer em um mecanismo capaz de fazer reviver o animal biomecânico, um ambiente aba-

fado e febril, chapado em vermelho. Ao mostrar, porém, o exterior onde aguarda o cavaleiro e seu animal, a paisagem é de um azul lunar, claramente mais frio e desolador. Mais do que simples aplicação de uma semiótica elementar das cores, porém, estas páginas mostram o quão orientado pela cor é o impulsionamento narrativo da HQ, como se fôssemos con-duzidos mais pela potência natural de cada cor do que pro-priamente pelos elementos diegéticos da história.

Dentro da atividade narracional proposta por Altman (em uma definição mais aberta e menos sistemática do que a de Gaudreault e Jost), além do enquadramento, que estabe-lece princípio e fim à narrativa, há o ato de seguir (following), componente essencial para se transformar o material narrativo cru (ação e personagem: uma cidade ou uma batalha, por exemplo), em uma narrativa em si. Seguir um personagem, em qualquer meio que seja, é o que vai ativá-lo enquanto es-trutura narrativa, assim como vai também ativar o narrador:

O processo de seguir, assim, simultaneamente ilumina o personagem e o narrador, a diegese e a narração. É precisamente esta ênfase simultânea em dois diferentes níveis que constitui a narra-tiva. Sem o seguir, temos apenas o caos não-veto-rializado, capaz de produzir uma narrativa, mas ainda não efetivamente fazendo isso; com o ato de seguir, nós não apenas concentramos a aten-ção no personagem e nas ações do personagem, satisfazendo assim as primeiras condições para a existência de uma narrativa, mas também impli-citamente revelamos a existência de um segundo nível, o nível narracional. (ALTMAN, 2008, p. 16).

Evidentemente, encontrar o ato de seguir não é uma das maiores dificuldades em Arzach. Cada requadro de cada his-tória, praticamente, seleciona um ou um conjunto de per-sonagens que concentram nossa atenção em um processo de seguir que seleciona, edita e costura o mundo criado por Moebius dentro de um processo narracional que nos per-mite encadear as histórias do início ao fim. Seguimos, por exemplo, o cavaleiro em suas andanças errantes, sem saber de onde ele veio ou para onde vai. Da mesma forma que se-guimos os coadjuvantes dele: o humanoide ciumento, as mu-

Figura 9

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lheres misteriosas, o monstro isolado, o motorista salvador, etc. Cada um destes personagens desloca a narratividade para si no momento em que são enquadrados no requadro. Até aí, Arzach obedece a um processo convencional de nar-ração. Porém, em uma narrativa silenciosa, ausente de uma cronografia, e especialmente em Arzach, seguir não parece ser o suficiente para separar o material narrativo cru do caos ve-torializado mencionado por Altman. Na verdade, o processo de seguir em Arzach parece potencializá-lo no sentido de que o caos do mundo ganha certa ordem vetorial, mas nunca deixa de ser caos. Em nenhuma das quatro histórias conhecemos qualquer aspecto do contexto delas. Não sabemos por que as mulheres misteriosas estão dentro das casas rústicas. Não

sabemos por que o monstro isolado está residindo em cima de uma pedra. Não sabemos por que o motorista salvador precisa salvar o cavaleiro. Não sabemos o que é o paralele-pípedo vermelho. Não sabemos por que o assecla pronuncia “Harzakc” na última página. Não sabemos, enfim, por que o cavaleiro segue em suas errâncias. Sabemos, apenas, que ele segue, e isso basta.

O fato de a errância em Arzach não nos levar a lugar algum, ou seja, não conduzir a um aprofundamento da diegese em si, diz muito a respeito do propósito narrativo desta obra. Sem um enquadramento definido (uma instância narrativa que propriamente comece e termine as histórias), sem um propósito para o ato de seguir cada personagem, o

Figura 10 Figura 11

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que resta de narrativa nesta obra senão o propósito de narrar sem um vínculo específico com a diegese, ou seja, o propósi-to de narrar a própria narrativa? A imagem da HQ, sem a ocupa-ção visual que representa a presença do balão, sem a vetoriza-ção proposta pela palavra e pelo recitativo, o que ela se torna senão um transmutar alucinatório de padrões e ferramentas de contar histórias que reporta, de maneira centrípeta, a si própria, ao ato livre de se declinar a partir de suas cores, suas formas, suas contingências específicas? A narrativida-de em si, longe da convencionalidade operada pela presen-ça da palavra, está solta em suas molduras, e se assemelha a um sonho de narratividade, a uma alucinação e exercício de pura narratividade. Este sentido fluido, alucinatório, que Arzach adquire, não apenas manifesta a “escrita automática” à qual Moebius se refere ao revelar seu método de composição, como está totalmente de acordo com a ausência de lógica for-mal das histórias em si, que perdem seu eixo argumentativo, sua condução técnica, e se transformam em algo que não está no passado e nem no futuro, cujos personagens não preci-sam de um histórico e nem de uma continuidade. A própria ação, componente essencial a toda narrativa, se torna mínima no sentido de que ela é tão pontual que suas consequências podem ser desprezadas ou esquecidas. Arzach se centra em um presente infinito, de ações mínimas, cujo propósito é não mais que revelar seu próprio mecanismo de ação. Mais uma vez, o puro efeito da narratividade em imagens silenciosas. Talvez seja neste vértice, na divisória entre a fabulação que se abstrai e a poesia, que Arzach se situe com mais propriedade. Ali, em uma fronteira para onde se dirige a narratividade não-vetorializada, pode ser o local aonde começa o discurso poético, em sua ausência de referentes e mergulho profundo em figuras de linguagem.

Talvez por isso a quarta e última história de Arzach seja já um completo esfacelamento de qualquer possibilidade de enlaçarmos sua narrativa em um discurso fechado. Nas primeiras duas páginas (Cf. MOEBIUS, 2000, pp. 45-46), parecemos estar diante de um processo semelhante ao das outras três histórias, ou seja, seguimos algo errante e sem di-reção, mas podemos compreender o encadeamento do seguir em si sem problemas. O cavaleiro desce de seu pterodátilo em um misterioso local que, novamente, mistura tecnologia e ancestralidade, e passa a espiar uma mulher seminua atra-vés de um visor. Até aí, esta história parece ecoar a primeira,

revelando-nos mais uma vez o caráter reiterativo desta nar-rativa. A partir deste momento, porém, a cada virar de pá-gina parecemos ser transportados para uma porção aleatória de uma história diferente, como se Arzach tivesse se transfor-mado em uma máquina quebrada que nos transporta para flashes de mundos distintos: vemos o cavaleiro caminhar sobre uma caveira gigante; sobrevoar um apocalíptico cenário de guerra; caminhar, junto a outros dois homens, em direção a uma fortaleza retrofuturista; vemo-lo sentar-se, nu, em uma estranha câmara fechada; e, por fim, o misterioso último quadro e página: a reunião de asseclas ao redor do parale-lepípedo vermelho ouvindo um líder central pronunciar a palavra “Harzach.”

Neste momento, Moebius não apenas quebra a possi-bilidade de se estabelecer um drive narrativo, ou seja, que o leitor possa conceber em sua mente que aquelas imagens jus-tapostas componham uma narrativa (Cf. ALTMAN, 2008, p. 19), como radicaliza o que Altman chama de modulação hi-perbólica, (Idem, p. 25), que é o instrumento narrativo cuja função é juntar personagens ou núcleos narrativos sem o encontro entre eles dentro da diegese (a modulação metonímica) ou por meio de letreiros, recitativos ou outros modelos de narração delegada (modulação metafórica). Na modulação hiper-bólica, a transição entre personagens e núcleos narrativos é abrupta, sem justificativa, como se fosse um passe de mágica operacionalizado pelo narrador em si. Nesta quarta histó-ria, a radicalização deste processo é tamanha que o próprio senso de narratividade se perde e o leitor já não é mais capaz de seguir. Como conclusão de um processo que desde o iní-cio parece conduzir a uma espécie de psicose do modelo de narrar em si, Arzach termina desfazendo-se enquanto história para se tornar uma conjunto de imagens puras, de visões, de aparições. Aqui, a imagem muda se desvincula de qualquer racionalidade e a organização dentro do medium quadrinhos parece perder seu sentido. Retornamos ao sentido paleolíti-co, mágico e encantado das imagens e as soltamos no fluxo li-vre e aleatório da psicose original da formação dos signos no mundo. Não à toa, ao retornar a este âmago, a este caos não--vetorializado, a ordem parece realmente mostrar sinais de se restabelecer apenas quando, finalmente, após uma descida ao inferno da imagem sem referente, uma palavra é profe-rida. A palavra “Harzach” surge, então, como espécie de fiat lux do medium, trazendo a história em quadrinhos novamente

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à tona, refundando esta arte e forma de comunicação, fina-lizando o processo de lavagem semiótica ao qual a própria narratividade esteve submetida durante todo o processo de composição da história. Trata-se da ascensão, queda e renas-cimento da narrativa em quadrinhos. O triunfo da narrativa silenciosa por meio do recrudescimento da palavra.

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