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  • Leituras

    AA

  • 1 3 52 0 0 7 - jul.-dez. - v. 16 - A L E T R I A

    ENTRE EU E O OUTRO

    u m a a n l i s e d a p r e s e n a e s p e c u l a ru m a a n l i s e d a p r e s e n a e s p e c u l a ru m a a n l i s e d a p r e s e n a e s p e c u l a ru m a a n l i s e d a p r e s e n a e s p e c u l a ru m a a n l i s e d a p r e s e n a e s p e c u l a r

    d o o u t r o e m B o r g e sd o o u t r o e m B o r g e sd o o u t r o e m B o r g e sd o o u t r o e m B o r g e sd o o u t r o e m B o r g e s

    Devair Antnio FiorottiUERR

    RRRRR E S U M OE S U M OE S U M OE S U M OE S U M OEste estudo visa discutir a forma como Jorge Luis Borgestrabalha a relao entre o eu e o outro, partindo da questoespecular. Incomodado pela repetio com que o autor lidacom esse tema, analiso as conseqncias de se pensar aseparao de um eu que tambm seria o outro, j que alinguagem construtora tanto de um quanto do outro.

    PPPPP A L A V R A SA L A V R A SA L A V R A SA L A V R A SA L A V R A S ----- C H A V EC H A V EC H A V EC H A V EC H A V EBorges. Eu e o outro. Linguagem.

    O vidro nos espreita.Jorge Luis Borges

    Talvez no seja possvel fugir de certa angstia ao lidar com o conceito dealteridade. Afirmaes comuns a esse meio geralmente levam-me a um confronto entreaquilo que me vejo sendo, que penso ser, e aquilo que efetivamente sou ou virei a ser.Nesse sentido, torna-se compreensvel a relao conflituosa entre Derrida e o gato,tanto o de Alice quanto aquele a olh-lo nu, em seu quarto.1 O gato, visto como o outroa question-lo em sua animalidade: a do gato e a do prprio Derrida. O gato, na linguagemdesse autor, possibilita o surgimento da estranheza, daquilo que estava oculto, o outro,que de repente se revela, se v l. na linguagem, dela, por ela, que possvel esse tipode questionamento, como acentua o prprio Derrida.2

    Busco enveredar-me por esse campo de estranheza, guiado, num primeiro momento,por Manoel de Barros mas, principalmente, por Jorge Luis Borges. Nesse caminho, procuroidentificar e analisar a presena de um construto retrico que tenta estabelecer apresena de outro a partir de um eu. Objetivo instalar-me no centro dessa discusso,norteado pela repetio, na obra de Borges, da presena especular como meio deestabelecer um outro. Este trabalho a respeito da linguagem potica e algumas de

    1 DERRIDA. O animal que logo sou.2 DERRIDA. O animal que logo sou, p. 62.

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    suas possibilidades de imbricamento com o conceito de alteridade. Linguagem que sempreescapa, deixando-nos, como tericos, como leitores, estranhados. Conceito de estranhoque ser relacionado forma como Borges cria um eu e um outro onde, a princpio,teramos somente o eu.

    NNNNNOOOOO PROBLEMAPROBLEMAPROBLEMAPROBLEMAPROBLEMA

    Diz Manoel de Barros:

    Eu sou dois seres.O primeiro fruto do amor de Joo e Alice.O segundo letral: fruto de uma natureza que pensa por imagens,Como diria Paul Valry.O primeiro est aqui de unha, roupa, chapue vaidades.O segundo est aqui em letras, slabas, vaidadesfrases.E aceitamos que voc empregue seu amor em ns.3

    J de incio, Barros se posiciona como dois; dois seres. O primeiro verso instaura amatriz anagramtica que guiar a estrutura smica do poema: um eu igual a dois.Barros tenta separar um, o filho de Joo e Alice, do outro, o letral: o que filho da letra.

    No poema, essa tentativa de separar um do outro vai sendo problematizada peloverbo estar e seu locativo aqui. Enquanto o primeiro est aqui, no texto, no poema, osegundo tambm est aqui, no poema. Essa estrutura atualiza o paradoxo do primeiroverso: o um que dois. O aqui, com esse tipo de construo, pode ainda estar sereferindo ao momento em que o poeta est a escrever o poema, contudo essa leitura questionada por algo inevitvel: o nico lugar em que os dois esto, com o ato de ler, no enunciado e no leitor, nesse complexo enredamento criado pela leitura.

    Outro relevante aspecto o processo analgico montado por Barros na busca dedeslindar as diferenas entre os dois que so um: unha est para letras, assim comoroupa est para slabas e chapu e vaidades est para vaidades frases. Na analogiafinal, h uma inverso. Nesse arranjo, o primeiro ser refere-se ao fruto do amor deAlice e Joo, agora tambm personagens textuais, alm de sua relao com a biografiado autor; j o segundo, refere-se ao fruto da existncia da escrita.

    No entanto, o sintagma anagramtico da poesia de Barros, em questo, que ofato do eu ser dois, guia a anlise a uma estrutura altamente retrica, pois quando oautor tenta separar um do outro, incluindo-os no poema, estabelece-se uma instnciafigurativa em que duas personagens so estabelecidas. Isso ocorre porque, como mileBenveniste4 e Roland Barthes5 destacam, o pronome eu um instituidor do paradoxo

    3 BARROS. Poemas rupestres, p. 45.4 BENVENISTE. Problmes de linguistique gnrale.5 BARTHES. O rumor da lngua.

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    textual, em que sua presena no enunciado escrito, necessariamente, no recupera oenunciador, mas estabelece uma instncia discursiva em que ele criado na linguageme remete linguagem. No poema de Barros, o pronome eu o embreante que abre opoema, e o ns o encerra. Essa estrutura estabelece um caminho do eu (o um) aons (que dois, no poema).

    Nesse ponto, abre-se uma vereda para se pensar a alteridade em sua relao coma linguagem potica, em seu estatuto ficcional, em sua relao com as presenas dosembreantes de primeira pessoa e mesmo com a questo do jogo de personagens. A questoque at esse momento posso articular a de como afirmar que h um processo de alteridadena linguagem potica se, por um lado, o que temos uma encenao da linguagem.

    O O O O O OUTROOUTROOUTROOUTROOUTRO, , , , , OOOOO MESMOMESMOMESMOMESMOMESMO

    Vejo Jorge Luis Borges como um mestre em problematizar a relao do artista com suaobra, num jogo de linguagem. Isso pode ser visto no ttulo do livro de poemas O outro, omesmo,6 ou como no conto intitulado O outro.7 Nesse conto, Borges se inclui comopersonagens.8 Como personagens, no plural, porque so criados dois Borges, que esto ali,nas palavras enigmticas do autor, um sonhando e o outro na viglia.9 Como acentua Borges,eles eram demasiado diferentes e parecidos e no poderiam enganar um ao outro.10 Elesse apresentam num momento de fidelidade e angstia. A princpio, temos uma instnciainstalada de um eu, o Borges narrador, at um outro, um terceiro, que seria outro Borges.

    Num texto sobre a constituio do sujeito no Ocidente, aps uma incurso histrica,Marcel Mauss declara: no lhes falarei da questo lingstica que seria necessrio abordar,para fazer o trabalho [de anlise] completo [da noo de eu].11 O fato lingstico dizrespeito destacadamente questo da relao desse sujeito com a linguagem. Esse indcio encontrado posteriormente ao recalque mencionado. O autor alude relao dosindivduos com os pronomes, com o eu-mim.12 Fala, principalmente, da problemticaresidente entre o sujeito que fala e o objeto de que fala.13 O pensador conclui de formaparadoxal, aparentemente assustado com as possveis conseqncias de suas proposies:a palavra mim onipresente e, entretanto, no se exprime pela palavra mim e nempela palavra eu. Porm no vasto domnio da lngua sou bisonho. [E encerra:] Minhapesquisa ser totalmente uma pesquisa de direito e de moral.14

    6 BORGES. Obras completas, v. 2. As tradues usadas por mim aqui foram confrontadas com o original,principalmente pelo site sololiteratura: literatura hispanoamericana.com.7 BORGES. Obras completas, v. 3.8 BORGES. Obras completas, v. 3, p. 10.9 BORGES. Obras completas, v. 3, p. 15.10 BORGES. Obras completas, v. 3, p. 14.11 MAUSS. Sociologia e antropologia, p. 211.12 MAUSS. Sociologia e antropologia, p. 211.13 MAUSS. Sociologia e antropologia, p. 211.14 MAUSS. Sociologia e antropologia, p. 211.

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    O paradoxo de um mim que no possvel de se exprimir com um mim nemcom um eu aponta para o centro da problemtica deste artigo: o estabelecimento deum outro que um mesmo, ao mesmo tempo em que se diferencia da pessoa pelo estatutoliterrio. Mauss anuncia justamente a existncia de um abismo entre o sujeito que falae seu estabelecimento pela e na linguagem.

    Borges se indaga no Poema dos dons:

    Qual de ns dois escreve este poemaDe uma s sombra e de um eu plural?O nome que me assina essencialSe indivisso e uno esse antema?15

    A primeira pergunta localiza uma relao conflituosa no poema: uma s sombra,mas que problematizada pelo poeta como possuidora de um eu plural. H um nsainda a abrir o questionamento, indicando que o poeta no seria uno, alm da dvida arespeito de quem estaria a escrever o poema. Na segunda interrogativa, ele se perguntaa respeito de quem assina o poema, se ele seria essencial com isso imutvel.

    O nome que assina visto como um antema, uma expurgao, uma condenao.Essa palavra, oriunda do meio sacro, aponta para o nome como uma priso, a prenderesse ns, como fruto do gldio existente em quem escreve o texto e deve abandon-locomo objeto. Na perspectiva lingstica, um Borges que no est como indivduo alipresente. Resta o ns: um indivduo e a linguagem com suas possibilidades, eu, mim,ns. Isso num mbito provisrio e insustentvel j que, como apontarei no final, alinguagem cria tambm o indivduo.

    Borges se coloca na posio do outro: Sinto s vezes com vago horror sagrado /que sou o outro, o morto, habituado / Aos mesmos passos e nos mesmos dias.16 O outro localizado nesse ponto com um distanciamento. Mas, o que mais chama ateno nosversos o estado em que o poeta se diz encontrar com vago horror sagrado. A palavrasagrado possui uma reverberao no poema: a palavra antema. Ambas lembram osacro: a primeira modificada pela palavra horror; j antema, por si s, remete ao horror, aoque foi excomungado no mbito sagrado. O que pode estar causando o horror sacro ofato de o poeta se ver tambm como esse outro, morto, habituado aos mesmos passos.

    Percebo no texto de Borges uma relao abismtica entre o eu e o outro, esse ns.A palavra ns, esse embreante, no resolve a questo levantada por Borges; ao contrrio,ela camufla o conflito. As perguntas so lanadas e no h uma resposta (pelo menos euno as reconheo). Fica no ar, ou melhor, no texto, a angstia desse vazio.

    Esse abismo levantado por Borges pode ser posto a dialogar com a problemticamoderna em relao aos marcadores discursivos, concernentes linguagem e suareferencialidade/no-referencialidade. Em outras palavras, tanto Borges quanto Maussanunciam a problemtica da relao do sujeito com sua representao e com sua criaopela e na linguagem; sujeito que se relaciona, ainda, a um ser biolgico. Mauss traz

    15 BORGES. Obras completas, v. 2, p. 208.16 BORGES. Obras completas, v. 2, p. 208.

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    tona a questo de um sujeito que se v, de alguma forma, representado por um marcadoreu. Borges problematiza tambm essa relao, incluindo-se como um eu e como umoutro, a princpio sendo o mesmo.

    Contudo, defendo que, em Borges, temos personagens (o eu e o outro: ns) assimcomo se apresentam em Manoel de Barros. Isso se deve grande encenao criadoraque a literatura representa. H esse logos, como em Joo,17 criando todas as coisas. emsentido similar que Barthes anuncia, baseado na psicanlise, a existncia de um sujeitosustentado por uma sucesso de linguagens.18 esse carter linguageiro da existnciahumana que vejo representado nos textos de Borges e de Barros, apontando para oaspecto constitutivo do que h de mais humano: sua constituio pela e como linguagem.

    Borges joga com essas possibilidades da linguagem, questionando a organizaoda identidade autoral, bem como a existncia da alteridade no arranjo das personagens.Em situao anloga ao poema de Barros, ele diz em Borges e eu:

    Ao outro, a Borges, que sucedem as coisas. Eu caminho por Bueno Aires e me demoro,talvez j mecanicamente, para olhar o arco de um vestbulo e o porto gradeado; deBorges tenho notcias pelo correio e vejo seu nome em uma lista trplice de professores ouem um dicionrio biogrfico.19

    A relao de identidade presente no texto, entre o um que ao mesmo tempo ooutro, leva a uma dimenso de estranhamento. Tal estranhamento encaminha a umestado de horror, como aponta o texto de Borges. Desta forma concluda essa ltimanarrativa do poeta: No sei qual dos dois escreve essa pgina.20 Na realidade, nenhumdos dois escreve o texto; eles esto e so escritos nele. Com muita liberdade interpretativa,digo que o sujeito biolgico Borges anatemado do texto, com o abandono que aescritura provoca.

    No poema, a palavra antema refere-se ao nome que me assina, que Borges sepergunta se essencial, imutvel. Ponto fulcro a localizao objetival na qual o poetase inscreve: o nome que o assina, no o contrrio. O nome prprio, por excelncia,remete ao carter voltil, acoplador da linguagem, seu carter arbitrrio, para lembrarSaussure. Metonimicamente, o nome remete linguagem. No escolhemos o nome;como uma cicatriz, uma imposio, somos levados por ele. Os significados vo seacoplando ao nome prprio e, geralmente de modo impositivo, somos representados porele, nele.

    Nesse sentido, antema pode ser visto no poema como aquilo que expurga acomplexidade aludida pelo texto de Borges, causando horror: o nome, paradoxalmente,d e no d conta do sujeito. Ao mesmo tempo em que o nome Jorge Luis Borges dconta da multiplidade de um e um outro no poema ( esse o nome que o assina), oprprio texto questiona essa capacidade de representao.

    17 JOO 1, 1.18 BARTHES. O rumor da lngua, p. 41.19 BORGES. Obras completas v. 2, p. 206.20 BORGES. Obras completas v. 2, p. 206.

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    O O O O O ESTRANHOESTRANHOESTRANHOESTRANHOESTRANHO DEDEDEDEDE F F F F FREUDREUDREUDREUDREUD EEEEE OOOOO OUTROOUTROOUTROOUTROOUTRO DEDEDEDEDE B B B B BORGESORGESORGESORGESORGES

    Num texto de 1919, Freud discute o Unheimlich, traduzido para a lngua portuguesapor estranho. O estranho estaria relacionado com o que assustador, com o que provocariamedo e horror.21 Seria aquela categoria do assustador que remete ao que conhecido,de velho, e h muito familiar.22 O centro da discusso de Freud estaria em mostrarcomo o familiar revela-se o oposto, o estranho, o no familiar.

    Ponto importante da argumentao freudiana a possibilidade de ter o oposto deUnheimlich, isto , Heimlich, familiar, significando o que se faz s escondidas, o que secreto.23 Com isso, percebe-se uma coincidncia de sentido entre termos que, a priori,teriam sentidos opostos: Heimlich e Unheimlich. Segundo Schelling, Unheimlich seria onome de tudo que deveria ter permanecido secreto, oculto, mas que viria luz.24

    Na modernidade, quando pensamos a presena do outro, principalmente enquantouma organizao textual literria, como em Borges, no raramente nos deparamosjustamente com uma instncia causadora de uma espcie de desamparo, levando aoque foge compreenso imediata, pois o estranho surgiria de algo familiar ao indivduo.25

    Ele surgiria de algo como o outro em Borges que, de alguma forma, o mesmo; como ocaminho de linguagem proposto por Barros de um eu at um ns.

    Maria Ins Frana, discutindo o Unheimliche freudiano, ressalta o duplo comomeio propulsor para o surgimento do estranho, o momento em que a coincidncia darepetio de algo suscitaria angstia. Diz ela que a angstia o motor inquietante deuma ameaa annima, impossvel de suprimir.26 E o estranho surgiria, por exemplo,quando a imagem do duplo se revelasse ao indivduo, como uma imagem no espelho.

    A relao de Borges com o espelho conflituosa, parecida com a relao de conflitoentre o eu e o outro. Em O espelho, ele diz:

    Quando menino, eu temia que o espelhoMe mostrasse outro rosto ou uma cegaMscara impessoal que ocultariaAlgo na certa atroz.Temi tambm que o silencioso tempo do espelhoSe desviasse do curso cotidianoDos horrios do homem e hospedasseEm seu vago extremo imaginrioSeres e formas e matizes novos.(No disse isso a ningum, menino tmido.)Agora temo que o espelho encerreO verdadeiro rosto de minha alma,Lastimada de sombras e de culpas,O que Deus v e talvez vejam os homens.27

    21 FREUD. Edio standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud, v. 17, p. 237.22 FREUD. Edio standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud, v. 17, p. 238.23 FREUD. Edio standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud, v. 17, p. 241.24 FREUD. Edio standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud, v. 17, p. 242.25 FREUD. Edio standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud. v. 17, p. 262.26 FRANA. Psicanlise, esttica e tica do desejo, p. 77.27 BORGES. Obras completas, v. 3, p. 211.

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    Nesse poema, desde a infncia, o poeta lida com o espelho de modo no muitopacfico. A palavra outro apresenta o medo de se deparar com um rosto diferente doconhecido. Um rosto que, paradoxalmente, e no o mesmo, sendo a imagem refletida. a luz criadora que orienta a reflexo e o assusta. Refletir encaminha a um olhar para trse, de repente, a um encontro com a alma lastimada de sombras e de culpas. Depois, omedo aterrorizador de se ver revelado enquanto alma, de t-la ali to familiarmentevislumbrada. No espelho, a imagem que olha olhada, a princpio, pelo mesmo. Todiferentes e iguais como as palavras Heimlich e Unheimlich. Ora, o medo desse outro que o mesmo est nitidamente em consonncia com a idia freudiana do estranho.

    Nesse contexto, o estranho seria o prprio familiar, a sua re-velao. Essa experinciado estranho seria a suspenso do juzo de existncia e da prova de realidade.28 Poucascoisas talvez sejam to irreais como a nossa imagem no espelho. Como num oximoro, hum choque, de forma muito complexa: o eu e o outro que so o mesmo. De formaborgeana, diante do espelho, perderamos nossa relao familiar com o mundo, pois oestranho emergiria do familiar. Seria algo que no poderia ser visto, mas que seria visto,levando angstia ou ao horror sagrado, para usar as palavras de Borges. O desconhecidoseria conhecido e estaria ali, usando o termo da psicanlise, recalcado.

    Quando penso a relao dessa instncia do familiar que causaria estranhamentoem relao organizao da linguagem potica, vislumbro um caminho profcuo deentendimento para o jogo estabelecido por Barros e, mais incisivamente, por Borges:talvez a linguagem seja a coisa mais familiar a ns humanos: somos estabelecidos por ela emseu poder criador. Ao mesmo tempo, o que a linguagem potica vem estabelecer, lembrandoesse poder criador, a dimenso de criatura qual pertencemos na ordem do discurso.Cria-se um outro, um mesmo, um terceiro Borges. Cria-se um eu que fruto de um outroeu e que forma um ns, que no diz muita coisa a respeito do que efetivamente se .

    UUUUUMMMMM EUEUEUEUEU OUTROOUTROOUTROOUTROOUTRO DODODODODO TEXTOTEXTOTEXTOTEXTOTEXTO

    Principalmente a forma central com que nos apresentamos num texto (tanto opoeta, seu outro, seu eu: eu) remete a uma complexa instncia discursiva. O eu, porexemplo, ao mesmo tempo eu, escritor deste texto, como tu, eu leitor do texto. Bemcomo, todos os eus existentes, simultaneamente. Esses marcadores discursivos soembreantes, uma classe de palavras cujo sentido varia de acordo com a situao; comotais palavras no tm referncia prpria na lngua, s recebem um referente quandoesto includas numa mensagem.29

    A existncia de um sujeito de primeira pessoa desinencial remeteriaanaforicamente, a princpio, a um nome presente no texto ou, se tivssemos diante doelaborador do texto, ouvindo-o pronunci-lo, remeteria deiticamente a tal elaborador.No poema, geralmente no existe o nome presente no texto; quase sempre, somente nacapa, contracapa; ao mesmo tempo em que no estamos diante do criador do texto apronunci-lo. Como destaca Dominique Maingueneau,

    28 FRANA. Psicanlise, esttica e tica do desejo, p. 76.29 DUBOIS et al. Dicionrio de lingstica, p. 208.

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    O leitor de um romance, de um poema, o espectador de uma pea de teatro no tmcontato com o sujeito que escreveu o texto, a pessoa do autor. No somente por razesmateriais, mas sobretudo porque da essncia da literatura no pr em contato o autor eo pblico seno atravs da instituio literria e de seus rituais.30

    Ressalvando a literatura oral, como a dos cantadores nordestinos, o autor tocaem algo simples, mas essencial, da recepo dos textos literrios: a ausncia do autor noato da leitura. A leitura de um texto literrio est inserida num mbito ritualsticoprprio de seu objeto. Nessa propriedade, por esse tipo de ausncia, ele comunica, porm,pervertendo as regras do intercmbio lingstico.31

    Essa perverso diz respeito principalmente ao fato de o texto literrio construirsuas cenas enunciativas por meio de um jogo de imbricaes internas ao prprio texto.32

    Contudo, no caso do poema de Barros e das citaes de Borges, possvel recuperar deforma ditica o referente para desinncias de primeira pessoa de um texto potico. Comessa recuperao, geralmente resta, como referente, a presena de um nome prprio nacapa e uma inacessvel ausncia, incomensurvel, no encarnvel. Essa ausnciarelaciona-se principalmente perverso relativa ao intercmbio lingstico. No poemade Barros, como embreante, essa marcao desinencial de primeira pessoa no apontapara fora do texto mas, como j mostrado com Barthes, para uma coerncia interna.

    O eu, num texto potico, leva-nos a novas dimenses. um eu que tenta darconta da presena, da existncia do nome de autor na capa e que se acopla ao leitor.Pervertendo a prpria gramaticalidade da lngua portuguesa, o leitor somos um mim quese julga desconhecedor. Barthes diz que residiria um escndalo nesse tipo de organizao:o pronome, por exemplo, que sem dvida o mais vertiginoso dos shifters,33 pertenceestruturalmente (insisto) fala.34 No poema, o eu pertence escrita, no mais fala.No poema escrito, no temos um falante, mas um enunciado e um leitor impossibilitadode ter consigo o emissor do poema. No entanto, o significante eu se presencia no textoindependente da presena do emissor, inclusive no texto do prprio Barthes e de Mauss.

    Diz Barthes que o sujeito da enunciao nunca pode ser o mesmo que agiuontem.35 Nesse sentido, o sujeito da enunciao se atualizaria num presente e semprenum presente com a leitura. Com isso, se ele s existe nesta atualizao da leitura, sexiste no ato de ler. Barthes conclui, afirmando que o eu do discurso j no pode ser olugar onde se restitui inocentemente uma pessoa previamente guardada.36 O advrbioinocentemente, nesse contexto, traz um pressuposto esclarecedor ao texto bartheano: aquesto no que no se possa restituir, por exemplo, um eu ao referente-nome nacapa de um livro. Isso pode ser feito, s que no inocentemente.

    30 MAINGUENEAU. Elementos de lingstica para o texto literrio, p. 16.31 MAINGUENEAU. Elementos de lingstica para o texto literrio, p. 16.32 MAINGUENEAU. Elementos de lingstica para o texto literrio, p. 16.33 O mesmo que embreante.34 BARTHES. O rumor da lngua, p. 24. Com itlicos e comentrio entre parnteses no original.35 BARTHES. O rumor da lngua, p. 20.36 BARTHES. O rumor da lngua, p. 20.

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    Principalmente, no se pode fazer isso inocentemente porque o eu presentenuma leitura, a priori, preenchido pelo antes tu e agora eu leitor. Outro problema que, mesmo restituindo o eu ao nome prprio presente na capa, esse nome umacriao da existncia da obra de arte. Muitas vezes, um eu a dialogar com o indivduo,a dialogar com o nome na capa, instaurando um tipo diferenciado de intertextualidade,uma intertextualidade biogrfica. No caso especfico de Borges, podemos falar de umaintertextualidade biobibliogrfica, enraizada destacadamente numa cultura livresca.

    DDDDD IANTEIANTEIANTEIANTEIANTE DODODODODO OBSCENOOBSCENOOBSCENOOBSCENOOBSCENO

    Em outro poema intitulado Os dons, Borges enumera vrias coisas (msica,amor, infmia, a linguagem, etc.) que a ns teriam sido ofertadas, e principalmente aele. Pelo menos, esse o entendimento que tenho a partir do final do poema: Foi dignodo sabor de cada dia; esta a tua histria, e a minha, todavia.37 Disse principalmentea ele, porque o final do poema extremamente ambguo. O embreante tua remete amim leitor, mas tambm instncia outra do prprio Borges, j analisada no Poema dosdons e mesmo em Borges e eu. Nessa ambigidade, ele pode estar referindo-se relao Borges e eu, em que um eu se v tambm como outro. Ao mesmo tempo, comoleitor, h o Borges criador do texto, e esse eu pode ser o leitor exercendo seu papelsubversor, principalmente pelo carter escandaloso do pronome eu.

    A estrofe localizada no centro do poema Os dons diz:

    Foi-lhe dada a linguagem, essa mentira,E foi a carne argila outro desvelo;Foi-lhe dado o obsceno pesadeloE, no cristal, o outro, o que nos mira.38

    Nessa estrofe, algo me chama muito a ateno: o aposto essa mentira a relacionar-se com a palavra linguagem. Apesar de ser vista como mentira, a linguagem foi dadacom desvelo, com cuidado, carinho. Isso denuncia a palavra outro, no segundo verso.Mas, mentira, a priori, no vista como algo positivo. Ela geralmente estigmatizada.Com isso, a linguagem entra no poema como algo diferente da verdade, com uma cargano muito atraente.

    Na estrofe, pelo carter negativo da palavra mentira , ela se comunicaanagramaticamente com a palavra pesadelo e, tambm, com a adjetivao dessa palavra:obsceno. Borges no nos diz que pesadelo esse, mas como desenvolve Vicentini de Azevedo,39

    obsceno lembra aquilo que est fora de cena. possvel vislumbrar, no poema, umainferncia ao obsceno inconsciente. A palavra pesadelo trabalha metonimicamente como mundo do sonho. O inconsciente que o pesadelo re-vela, interpreta, possui o seuoutro, o consciente: o domnio mais comum da linguagem humana. Talvez esse caminho

    37 BORGES. Obras completas, v. 3, p. 464.38 BORGES. Obras completas, v. 3, p. 463.39 AZEVEDO. A metfora paterna na psicanlise e na literatura.

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    de anlise no seja to inslito, principalmente se levarmos em conta a ltima estrofedo poema Os espelhos:

    Deus inventou as noites que se armamDe sonhos e as formas do espelhoPara que o homem sinta que reflexoE vaidade. Por isso nos alarmam.40

    Nessa estrofe, as noites, como sujeito, se armam. Observe o vocabulrio oriundodo mundo belicoso, das guerras. Mais revelador o que se segue: as noites se armam desonhos e as formas do espelho. Os sonhos, aqui, so nitidamente uma infernciametonmica ao inconsciente, como coisas que se pertencem. A mesma relao feitacom espelho. Ambos apontam para o mundo do reflexo, da existncia assustadora dooutro. Tanto o sonho quanto o espelho possibilitam que o outro surja. Talvez, para Borges,surja o desconhecido do eu, to perseguido pelo poeta. O final da estrofe mais reveladorainda e aponta para o estranho freudiano. O estranho que familiar e, por isso, causaangstia ou, em Borges, alarma, aciona a sineta para o que efetivamente seramos.

    No ltimo verso da estrofe j citada, est novamente l: o outro, no cristal, quenos mira. Jorge Luis Borges insiste no espelho; possvel ler essa repetio. Ela no traztranqilidade mas, como algo do mbito do pesadelo, aponta para um desdobramentodo eu para o mbito do outro, o que a imagem especular propiciaria. O estranho queest a se repetir no texto de Borges, essa possibilidade da reflexo que o espelho aciona,esse outro, no algo distante, mas paradoxalmente sua imagem. com o espelho, etambm com o sonho, que estamos diante da possibilidade do reflexo. A imagem noespelho indica, em Borges, a presena do outro, pois se entre as quatro / Paredes doquarto existe um espelho, / J no estou sozinho.41 Contudo, como indica o conto Oaleph, parece que esse outro assusta mais como uma possibilidade de encontro do quea vivncia efetiva dessa impossibilidade, j que estamos falando de um desdobramentodo eu para um outro. Diz o poeta no conto: vi todos os espelhos do planeta e nenhumme refletiu.42

    ***

    O olhar do gato incomoda Derrida e incomoda, ainda, o leitor do texto que sedepara tambm sendo visto pelo animal. Que animal esse? O prprio Derrida responde:Que animal? O outro.43 No podemos esquecer que o olho funciona de modo especular. um espelho a refletir quem imagina estar somente olhando. Derrida est refletido noolhar do animal, onde o gato se apresenta como aquele que instaura o outro. Vejo ooutro do texto de Borges de modo anlogo a esse outro apontado por Derrida. umoutro possuidor de uma verdade assustadora. Aquilo que representaria a identidade, oeu, questionado pela presena desse outro que e no o mesmo.

    40 BORGES. Obras completas, v. 2, p. 214.41 BORGES. Obras completas, v. 2, p. 214.42 BORGES. Obras completas, v. 3, p. 695.43 DERRIDA. O animal que logo sou, p. 15.

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    Ao mesmo tempo, esse imbricamento s pode ser pensado pela linguagem. bviaessa afirmao. Contudo, a prpria linguagem que estabelece o pensamento, queestabelece o eu e o outro, seja ele o olhar do gato ou mesmo a repetio especular dooutro em Borges. Nesse sentido, tanto o eu quanto o outro esto e so, na linguagemhumana. nessa direo que me questiono, aps ter sido literalmente passado pelalinguagem de Borges neste texto. Pensar a relao moderna de alteridade, da presenado outro, no pode ignorar essa instncia linguageira que o texto potico insiste emdenunciar.

    No caminho que leva ao outro, est a linguagem. Mais que isso: ela estabelece oprprio caminho. Os embreantes, como o eu, lembram essa dimenso. Mauss no seassustou por algo irrelevante. Ele anunciou justamente que do eu at o mim h umlongo caminho a ser percorrido, um caminho de linguagem; um caminho de alteridade.Talvez esse seja um bom entendimento para a insistncia de Borges em, no mnimo,problematizar a existncia desse mim, que a presena do outro especular, ou doinconsciente, denuncia.

    Dessa relao complexa, surge um estranho, esse outro Borges. Surgeproblematizando os textos analisados, porque ele est imbricado com o mais familiar: ooutro Borges que o mesmo. Na realidade, segundo Freud, esse estranho o prpriofamiliar que se re-vela. Nesse caminho, o outro do espelho causa angstia porque seapresenta em sua familiaridade, ocultado justamente por ser o que h de mais familiar.Como seres culturais estabelecidos pela linguagem, na linguagem, somos frutos dela. Aliteratura (com seus eus, seus outros) , num mbito de linguagem, assim como o autor,esse outro que tambm sou, que agora se funda.

    AAAAA B S T R A C TB S T R A C TB S T R A C TB S T R A C TB S T R A C TThis study aims at discussing the means through which JorgeLuis Borges works the relation between the I and the other,based on issues about specular images. Bothered by therepetition of this theme in the authors works, I analyze theconsequences of thinking the separation of an I that wouldalso be the other, considering the fact that languageconstructs both one and the other.

    KKKKK E Y W O R D SE Y W O R D SE Y W O R D SE Y W O R D SE Y W O R D SBorges. I and the other. Language.

    RRRRR E F E R N C I A SE F E R N C I A SE F E R N C I A SE F E R N C I A SE F E R N C I A S

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