14 - clonagem e cuidado criativo (versão final publicada on line nepc)
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clonagem humanaTRANSCRIPT
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II COLQUIO INTERNACIONAL NEPC/IEAT Biotecnologias e Regulaes
IIII CCOOLLQQUUIIOO IINNTTEERRNNAACCIIOONNAALL NNEEPPCC//IIEEAATT
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II COLQUIO INTERNACIONAL NEPC/IEAT Biotecnologias e Regulaes
Colquio Internacional de Biotecnologias e Regulaes (2.: 2011: Belo Horizonte, MG). Anais / Anna Carozzi (org.)... et al. - Belo Horizonte: Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas, 2011.- 312 p. - Colquio organizado pelo NEPC e IEAT/UFMG.
Inclui bibliogrfia. ISBN: 978-85-62707-08-7
1. Biotecnologia 2. Cincia e tica. I. Carozzi, Anna.
CDD:660.6063
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ORGANIZAO DOS ANAIS Anna Carozzi Nara Pereira Carvalho Vanessa di Lego COMISSO ORGANIZADORA Anna Carozzi Ivan Domingues Nara Pereira Carvalho Vanessa di Lego COMISSO CIENTFICA Brunello Stancioli Ivan Domingues Leonardo Ribeiro Lilian Fonseca Rogrio Lopes Telma Birchal Yurij Castelfranchi
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AAPPRREESSEENNTTAAOO
O Ncleo de Estudos do Pensamento Contemporneo
(NEPC), sediado na Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas /
UFMG, em Belo Horizonte, realizou em parceria com o IEAT/UFMG
(Instituto de Estudos Avanados Transdisciplinares), nos dias 27-
28-29 de abril de 2011, o seu 2 Colquio Internacional
Biotecnologias e Regulaes.
O Colquio teve por objetivo criar um espao de reflexo
interdisciplinar acerca do desenvolvimento e das aplicaes das
novas biotecnologias, em especial aquelas ligadas gentica e
biologia molecular. Dois grupos de questes circunscreveram as
atividades: a questo da racionalidade tcnica e normativa, levando
tanto aproximao quanto demarcao da tecnologia
relativamente a outros campos da cognio e ao humanas, como
a cincia, a filosofia, o saber emprico, a moral e o direito; a
questo da regulao das biotecnologias, focalizando os aspectos
ticos, polticos e jurdicos. Para tanto, as implicaes
antropolgicas foram consideradas, recobrindo as diferentes faces
da reengenhagem do ser humano (corpo e mente), bem como as
controvrsias relacionadas necessidade de controle dos processos
e sistemas tecnolgicos.
O evento contou com Conferncias e Mesas-redondas
proferidas e coordenadas por especialistas brasileiros e
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estrangeiros, dentro das quais foi reservado tempo para debate
aberto ao pblico. Alm destas atividades, houve as Sesses
Coordenadas - sesses paralelas organizadas mediante a
submisso de trabalhos -, que trataram de questes e abordagens
sob diversas perspectivas e reas do saber, e que se destinaram a
estudantes de ps-graduao e a diferentes profissionais
provenientes de vrios pontos do Brasil.
Tanto as Sesses quanto as Conferncias e as Mesas foram
organizadas em torno de quatro eixos: I- Biotecnologias,
Regulaes e Direitos Humanos, II- Racionalidade Tecnolgica e
Normativa, III- Biotecnologia e Poltica: Risco, Incertezas e
Participao Pblica, IV- Princpios ticos e Aplicaes nas
Regulaes Biotecnolgicas.
A publicao destes Anais assim como a do livro, que vir a
lume em 2012, pereniza a discusso ocorrida durante o evento e
proporciona o compartilhamento dos resultados com um pblico
mais amplo. O objetivo do Ncleo de Estudos do Pensamento
Contemporneo (NEPC) e o do Instituto de Estudos Avanados
Transdisciplinares (IEAT) dar continuidade a este trabalho
colaborativo inter e transdisciplinar com as mais diversas reas de
conhecimento. Pensamos que esta publicao e o Colquio
representam um marco dos muitos frutos e passos em direo a
este caminho.
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SSUUMMRRIIOO
1. EIXO TEMTICO I - BIOTECNOLOGIAS, REGULAES E DIREITOS HUMANOS
08
1.1 A REGULAO DE UM PROCESSO DE TRABALHO EM
BIOMEDICINA NO BRASIL: O USO DE ANIMAIS NA PRODUO DE CONHECIMENTOS SOBRE AS DOENAS E NO DESENVOLVIMENTO DE MEDICAMENTOS E VACINAS - Carlos Jos Saldanha Machado, Ana Tereza Pinto Filipecki e Mrcia de Oliveira Teixeira.
08
1.2 AS DEFICINCIAS DO ARGUMENTO DA
POTENCIALIDADE CONTRA O USO DE EMBRIES HUMANOS - Lincoln Frias.
35
1.3 UM OLHAR DE GNERO SOBRE O CARTER
POLTICO DAS TECNOLOGIAS DE MUDANA CORPORAL - Leonel Cardoso dos Santos
58
2. EIXO TEMTICO II - RACIONALIDADE TECNOLGICA
E NORMATIVA 80
2.1 CONTINGNCIA, PS-MODERNIDADE E DISPOSITIVO
TCNICO - Wellington Lima Amorim e Sergio Ricardo Silva Gacki
80
2.2 BIOLOGIA MOLECULAR, REDUCIONISMO E O
FNOMENO DA INSTANCIAO MLTIPLA (MULTIPLE REALIZABILITY) Celso Antnio Alves Neto
111
2.3 HABERMAS: QUESTES NORMATIVAS SOBRE A
PRXIS CIENTFICA - Leno Francisco Danner 135
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3. EIXO TEMTICO III - BIOTECNOLOGIA E POLTICA: RISCO, INCERTEZAS E PARTICIPAO PBLICA
158
3.1 DO PONTO DE VISTA DO SUJEITO DE PESQUISA: A
EXPERINCIA DO CONTROLE SOCIAL NA PESQUISA CIENTFICA BRASILEIRA - Rui Harayama
159
3.2 INOVAES TECNOLGICAS PARA
MELHORAMENTOS HUMANOS - O PAPEL DA UNIVERSIDADE - Mariana Alves Lara e Paulo Vtor Guerra
177
3.3 A REGULAO POLTICA DE NOVAS
BIOTECNOLOGIAS: UM DESAFIO CIENTFICO E TICO - Antnio Cota Maral e Daniel Mendes Ribeiro
196
4. EIXO TEMTICO IV - PRINCPIOS TICOS E
APLICAES NAS REGULAES BIOTECNOLGICAS 213
4.1 A ARTICULAO DOS PRINCPIOS DA AUTONOMIA E
DA BENEFICNCIA EM FACE DA LAICIZAO DA VIDA HUMANA DITADA PELAS QUESTES BIOTECNOLGICAS: UMA CONTRIBUIO POSSVEL DO PRAGMATISMO KANTIANO Nomia de Sousa Chaves
216
4.2 O LUGAR DE PRINCPIOS TICOS NA REGULAO
DAS BIOTECNOLOGIAS: SOBRE O PRINCPIO DA AUTONOMIA - Solange de Moraes Dejeanne
244
4.3 CLONAGEM E CUIDADO CRIATIVO - Wendell
Evangelista Soares Lopes 263
4.4 EPISTM-LOGIA OU DOXA-LOGIA?
CONTRIBUIES DA FILOSOFIA DA CINCIA DE POPPER PARA A (BIO)TICA EM (BIO)TECNOCINCIA - Mrcio Rojas da Cruz
282
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1. EIXO TEMTICO I - BIOTECNOLOGIAS, REGULAES E
DIREITOS HUMANOS
1.1. A Regulao de um processo de
trabalho em biomedicina no Brasil: o uso de
animais na produo de conhecimentos
sobre as doenas e no desenvolvimento de
medicamentos e vacinas.1
Carlos Jos Saldanha Machado2
Ana Tereza Pinto Filipecki3
Mrcia de Oliveira Teixeira4
1 Os autores agradecem ao CNPq pelo financiamento do projeto de pesquisa Cincia, tecnologia e inovao em biomedicina numa organizao pblica de pesquisa brasileira: uma abordagem sociolgica da Fundao Oswaldo Cruz em termos de regimes de produo e de regulao de conhecimentos e de tcnicas [Proc. No 474039/2008-0], concludo em dezembro de 2010, que permitiu alcanar os resultados aqui apresentados. 2 Pesquisador em Sade Pblica da Fundao Oswaldo Cruz / Ministrio da Sade e Professor dos Programas de Ps-Graduao em Informao e Comunicao em Sade e Biodiversidade e Sade da Fundao Oswaldo Cruz e em Meio Ambiente da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Endereo: Av. Brasil, 4365, Pavilho Moussatch, 206A, Manguinhos, Rio de Janeiro/RJ CEP 21045-900. E-mail: [email protected] Pesquisadora em Sade Pblica da Fundao Oswaldo Cruz / Ministrio da Sade e Doutoranda do Programa de Ps-Graduao em Meio Ambiente da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Endereo: Av. Brasil, 4365, Escola Politcnica de Sade Joaquim Venncio / LIC-PROVOC, sala 308, Manguinhos, Rio de Janeiro/RJ CEP 21045-900. E-mail: [email protected].
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Resumo O objetivo deste trabalho descrever e analisar o processo de construo e implementao do novo arcabouo institucional-legal que disciplina o trabalho de pesquisa em biomedicina no Brasil. Quais so as caractersticas e as diferenas entre o atual regime regulatrio do uso de animais em experimentao e o que se praticava anteriormente? Em que medida o novo regime regulatrio atua como agente de mudana e reorganizao de espaos e processos de trabalho de produo de conhecimentos biomdicos e de desenvolvimento de insumos em sade, como vacinas e medicamentos? Com base numa metodologia qualitativa de leitura de documentos diversos, conjugada com uma observao participante num instituto pblica de pesquisa em sade, conclumos chamando a ateno para o modelo de pesquisa cientfica em biomedicina que o governo federal est instituindo atravs do novo marco regulatrio. Palavras-Chave: Biomedicina; Metodologia qualitativa; Regulao da prtica cientfica.
Abstract In this paper we describe and analyze Law n.11794/2008, which regulates the use of animals in biomedical research. The differences and similarities between the ethical use of human and non human animals in research is our point of departure. Based on participant observation and document analysis, we frame the ethical, legal and operational issues presented in the life of an
4 Pesquisadora em Sade Pblica da Fundao Oswaldo Cruz / Ministrio da Sade e Professora do Programa de Ps-Graduao em Informao e Comunicao em Sade da Fundao Oswaldo Cruz. Endereo: Av. Brasil, 4365, Escola Politcnica de Sade Joaquim Venncio / LIC-PROVOC, sala 308, Manguinhos, Rio de Janeiro/RJ CEP 21045-900. E-mail: [email protected].
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ethics committee belonging to a public biomedical research institution. We argue that as the regulatory process progresses, the right to translate the clauses of the Law may create asymmetries among research institutions and weaken the ties between non human animals and human animals present in biomedical research chain. Keywords: Biomedicine; Regulation of scientific practices; Qualitative methodology.
INTRODUO
O objetivo deste trabalho descrever e analisar o processo
de construo e implementao do novo arcabouo institucional-
legal que disciplina o trabalho de pesquisa em biomedicina no
Brasil. A escolha de um dos temas que compem as polticas
pblicas de cincia e tecnologia reside no pressuposto de que uma
Lei uma das formas atravs da qual os seres humanos regulam
as relaes entre sociedade e estado. um instrumento de poltica
pblica de manuteno do status quo ou de implementao de
mudanas (BRACEY, 2006). No caso do uso de animais em
experimentao cientfica para o conhecimento das doenas e
desenvolvimento de medicamentos e vacinas para cur-las,
observa-se que a legislao dos pases ocidentais tem variado
enormemente em funo das caractersticas histrico-culturais de
cada um deles (KUROSAWA, 2007; KONG & QUIN, 2010). No caso
brasileiro, aps 13 anos de debate parlamentar (MACHADO,
FILIPECKI, OLIVEIRA, KLEIN, 2009), o governo federal instituiu em
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8 de outubro de 2008 uma nova ordem jurdico-administrativa
atravs da Lei 11.794, que foi regulamentada em 15 de julho de
2009 com o Decreto 6.899.
A nova legislao introduziu modelos de condutas que antes
no existiam (FILIPECKI; MACHADO; VALLE; TEIXEIRA, 2010),
criou o Conselho Nacional de Controle de Experimentao Animal
(CONCEA) e tornou obrigatria a implantao de Comisses de
tica no Uso de Animais (CEUAs) pelas instituies que criam ou
utilizam animais para ensino e pesquisa. Mas quais so as
caractersticas e as diferenas entre o atual regime regulatrio do
uso de animais em experimentao e o que se praticava
anteriormente? Em que medida o novo regime regulatrio atua
como agente de mudana e reorganizao de espaos e processos
de trabalho de produo de conhecimentos biomdicos e de
desenvolvimento de insumos em sade, como vacinas e
medicamentos? A legislao valoriza a promoo de mtodos
alternativos e a eliminao ou reduo ao mnimo de qualquer
possibilidade de dor, sofrimento, angstia ou dano duradouro
infligidos aos animais?
Essas trs questes sero respondidas atravs da descrio
e anlise de trs fontes secundrias de informaes (documentos
jurdicos lei, decreto e resolues que disciplina a experimentao
animal; apreciaes do CONCEA; pareceres do Consultor Jurdico
do Ministrio de Cincia e Tecnologia [MCT] sobre o aspecto tico-
legal da pesquisa), complementadas com a observao participante
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realizada entre janeiro e agosto de 2010 na CEUA de um grande
instituto pblico de pesquisa em sade [IPPS]. Os resultados
alcanados sero apresentados em cinco sees, alm desta
Introduo e uma Concluso. Inicialmente faremos uma breve
descrio da ligao ente o uso de animais no-humanos e
humanos na pesquisa biomdica para que o leitor entenda a
relao entre produo de conhecimentos e aplicao desses
conhecimentos no desenvolvimento tecnolgico de tratamento de
doenas. Em seguida, aps uma definio do termo que est
associado pesquisa pr-clnica, o modelo animal, e introduzido a
questo da tica na pesquisa biomdica no cenrio internacional,
apresentamos o sistema brasileiro de avaliao tica das pesquisas
com humanos, o princpio internacional de uso de animais em
experimentao e a institucionalizao brasileira da tica no uso de
animais na pesquisa. Na terceira seo, aps recuperar a legislao
anterior e situar os traos marcantes do jogo dos atores no
processo de formulao e promulgao da Lei 11.794/2008, feita
uma caracterizao do atual marco regulatrio de uso de animais
em ensino e pesquisa, destacando os temas mais importantes que
foram regulados e esto em processo de implementao. A quarta
seo baseia-se em observaes sobre as modificaes dos
protocolos de pesquisa sugeridas pelos membros do rgo
responsvel, dentro da organizao administrativa local, pela
proteo e bem-estar dos animais de pesquisa no-humanos, a
CEUA, de uma Instituio Pblica de Pesquisa em Sade (IPPS),
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antes da aprovao dos projetos de pesquisa para a concesso de
licena, para desenvolvermos o argumento de que o perodo de
transio para a consolidao do novo marco regulatrio,
conjugado s fragilidades e complexidades dos dispositivos
jurdicos analisados nas sees anteriores, influenciam
diretamente a dinmica das CEUAs. Finalmente, antes de concluir
nossa descrio e anlise do processo regulatrio de uso de
animais no ensino e uso de animais em experimentao cientfica,
apresentamos na ltima seo o movimento sui generis de
desregulao dentro da regulao da pesquisa biomdica em dois
ambientes institucionais, o acadmico e o industrial. Conclumos
tecendo algumas consideraes sobre o processo de implementao
da poltica pblica observada e chamando a ateno para o modelo
de pesquisa cientfica que o governo federal est dirigindo na
prtica.
O USO DE ANIMAIS HUMANOS E NO-HUMANOS NA PESQUISA
BIOMDICA
A pesquisa biomdica tem como objetivo principal o estudo
da fisiologia normal do organismo e dos mecanismos
fisiopatolgicos das enfermidades, alm dos tratamentos seguros e
efetivos para prevenir, tratar e erradicar essas doenas (GOMEZ &
TOMAZ, 2007). A produo do conhecimento biomdico e sua
aplicao no desenvolvimento de produtos como vacinas e
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medicamentos no pode prescindir dos animais humanos e no-
humanos. Nesse processo, o elo que liga animais no humanos e
animais humanos a transio da pesquisa pr-clnica para a 1
fase do ensaio clnico.
Na pesquisa pr-clnica, animais vivos servem para fornecer
sangue, modelar o comportamento de doenas, frmacos e
imunobiolgicos em sistemas biolgicos, estabelecer tcnicas
cirrgicas, dentre outros usos. O modelo animal, isto , o modelo
de uma doena humana em um animal no-humano, permite
avaliar a resposta do organismo a uma droga, a um tratamento ou
a uma interveno mecnica, como, por exemplo, o funcionamento
do crebro aps uma coliso intensa. De acordo com o Cdigo de
Nuremberg5, primeiro documento internacional desenhado para
proteger a integridade dos seres humanos que participam de
pesquisas, o experimento (com humanos) deve ser baseado em
resultados de experimentao com animais e no conhecimento da
evoluo da doena ou outros problemas em estudo; dessa
maneira, os resultados j conhecidos justificam a conduo do
experimento. A Declarao de Helsinki, que orienta atualmente a
formulao de legislaes e de cdigos de conduta internacionais,
regionais e nacionais sobre tica em pesquisa6, tambm adota
como princpio bsico que a pesquisa biomdica que envolve seres
5 Promulgado em 1947, o documento foi publicado em resposta s atrocidades cometidas na II Guerra Mundial, pelos mdicos pesquisadores nazistas, cujos crimes foram revelados nos julgamentos realizados na cidade de Nuremberg. 6 Promulgada em 1954, encontra-se na sua 8a reviso.
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humanos deve basear-se na experimentao animal,
adequadamente conduzida. Um aspecto da Declarao de Helsinki
pouco mencionado o fato de possuir um artigo que salvaguarda o
bem-estar dos animais (GALLEY, 2010). A 1 fase do ensaio clnico
o incio da experimentao em humanos, geralmente sadios. O
pressuposto bsico a ser cumprido para o incio da experimentao
em humanos a disponibilidade de conhecimento sobre o benefcio
potencial de uma interveno proveniente de estudos pr-clinicos
(ROMERO, 2007).
MODELO ANIMAL E OS PRINCPIOS TICOS DA
EXPERIMENTAO ANIMAL
H muito tempo, modelos de animais so utilizados para
testar vacinas candidatas para doenas como leishmaniose,
dengue, febre amarela e tuberculose. No caso da tuberculose, por
exemplo, os animais mais frequentemente utilizados so:
camundongos, porquinhos-da-ndia (cobaias) e coelhos. Cada um
desses modelos tem seu mrito e nenhum deles mimetiza
completamente a doena humana. Diferentes modelos animais so
utilizados em funo de diversos fatores, dentre eles, a
disponibilidade de espao fsico e o treinamento da equipe
responsvel pela manuteno dos animais e pelos procedimentos
experimentais.
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Algumas vezes, tanto na linha de produo de animais de
laboratrio7 quanto nos biotrios de experimentao8, o animal
associado ao atributo de insumo biolgico, reagente biolgico ou
tubo de ensaio. De modo similar, sujeitos que participam das
pesquisas biomdicas so associados figura de cobaias humanas.
Essas imagens, que muitas vezes se cristalizam no processo de
enculturao das prticas da pesquisa, expressam a naturalizao
do uso dos animais humanos e no-humanos. As relaes
homem-animal e homem-homem na pesquisa biomdica traduzem
prticas de ensino-aprendizagem da investigao experimental,
associadas aos diferentes nveis de integrao das dimenses
cientfica, tica, econmica e legal. Os limites no uso de animais
humanos e no-humanos so estabelecidos pelo repertrio de
valores, cdigos, regras, normas, costumes e leis que realizam o
controle social da prtica da pesquisa biomdica. No Brasil, os
animais humanos que se submetem a experimentao so
protegidos pela Resoluo 196/1996, do Conselho Nacional de
Sade. O sistema brasileiro de avaliao tica das pesquisas com
humanos consiste, basicamente, de uma Comisso Nacional de
tica em Pesquisa (CONEP) que coordena a rede de Comits de
tica em Pesquisa (CEPs) instaurados no pas. As diretrizes deste
Sistema harmonizam os princpios bioticos da autonomia,
7 O termo animal de laboratrio designa qualquer animal utilizado em pesquisa ou ensino. 8 Biotrio de experimentao o local em que os experimentos com animais so realizados.
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beneficncia, no-maleficncia e justia, que subsidiam a avaliao
tica das pesquisas submetidas aos CEPs. Os princpios da
confidencialidade, privacidade, voluntariedade, equidade e no-
estigmatizao representam salvaguarda adicional para proteger os
participantes da pesquisa e garantir direitos e deveres de
cientistas, instituies, patrocinadores e Estado.
No caso dos animais no-humanos, as pesquisas so
eticamente orientadas pela adoo do princpio dos trs erres
(3Rs), elaborado pelo zoologista William M.S.Russel e o
microbiologista Rex L. Burch, em 1959, em seu livro Principles of
Humane Experimental Technique. Consiste em reduzir o nmero de
animais utilizados nos experimentos (R1) sem comprometer a
integridade cientfica da investigao, refinar as tcnicas de
criao, manuteno e utilizao dos animais (R2) e repor ou
substituir os animais mais sensveis dor, stress e sofrimento por
outros menos sensveis ou por mtodos alternativos, in vitro e in
silico (R3). No Brasil, o Colgio Brasileiro de Experimentao
Animal (COBEA/SBCAL) adaptou esses princpios e os divulgou
para as instituies de pesquisa e ensino no incio da dcada de
1990, sob o ttulo de Princpios ticos na Experimentao Animal.
No Brasil, as primeiras Comisses de tica no Uso de
Animais (CEUAs) comearam a ser implantadas pelas
universidades e instituies de pesquisa em meados da dcada de
1990. Fundamentadas nos Princpios ticos na Experimentao
Animal, as CEUAs iniciaram suas atividades defendendo um papel
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educativo, cujas aes e resultados eram dependentes do grau de
apoio dos nveis estratgicos das instituies (direo, presidncia,
reitoria). At o incio do sculo XXI, porm, a influncia das CEUAs
sobre as prticas cientficas da pesquisa biomdica brasileira era
tmida. Saul Goldenberg, fundador e editor da Revista Acta
Cirrgica Brasileira at meados dos anos 2000, registrou essa
situao por meio da anlise dos artigos submetidos a este
peridico (GOLDEMBERG, 2000). Para Goldenberg, no bastava
instruir os autores sobre a necessidade de cumprir os preceitos
ticos na experimentao animal, era necessrio tambm exigir
carta de aprovao do Comit de tica em Experimentao Animal.
O autor cobrava tambm, semelhana da pesquisa em seres
humanos, uma Resoluo Nacional para proteo dos animais
envolvidos em pesquisas.
A evidncia de que a anlise de protocolos de pesquisa com
animais no humanos pelos CEPS uma prtica familiar em
algumas instituies de pesquisa e ensino brasileiras a consulta
feita ao CONCEA sobre a obrigatoriedade da comisso de tica
animal estar separada da humana. A resposta publicada em Nota
Tcnica (001-2009/SEPED/MCT) afirma que no h impedimento
desde que as comisses de tica atendam regulamentao sobre
o uso cientfico de animais.
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A LEI 11.794/2008 E SUA REGULAMENTAO
Embebidas nesse quadro jurdico esto questes
relacionadas fiscalizao das atividades cientficas com animais,
ao exerccio profissional, formao de tcnicos e pesquisadores e
busca de mtodos alternativos experimentao animal, como
obriga a Lei de Crimes Ambientais.
A Lei Arouca estabelece as condies de uso dos animais na
pesquisa, torna obrigatria a implantao de CEUAs pelas
instituies que criam ou utilizam animais para ensino e cria o
CONCEA.
No Brasil, a primeira lei para normatizar a prtica didtico-
cientfica da vivisseco de animais foi sancionada em 8 de maio de
1979 (Lei no 6.638/1979). Contudo, sua implementao foi
debilitada por falta de regulamentao. O uso de animais na
pesquisa cientfica foi regulado na Constituio Federal (CF/1988)
e em outros dispositivos jurdicos relacionados s noes de
crueldade e maus-tratos e preservao da fauna (incluindo o
trfico de animais). O artigo 225 da CF/1988 estabelece que a
coletividade e o Poder Pblico (Unio, estados e municpios) so
responsveis por sua proteo, e o Poder Judicirio tem a tutela
genrica da fauna como elemento da natureza. A Lei 9.605/1998
(Lei de Crimes Ambientais) estabelece pena de deteno, de trs
meses a um ano, e multa para quem praticar ato de abuso, maus-
tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domsticos, nativos ou
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exticos (art.32), especificando que incorre nas mesmas penas
quem realiza experincia dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda
que para fins didticos ou cientficos, quando existirem recursos
alternativos (1).
A Lei n. 11.794/2008 regulamenta o Captulo VI, art. 225,
1, inc. VII, da CF/88, estabelecendo procedimentos para o uso
cientfico de animais vertebrados (no-humanos) e vivos. A Lei no
11.794/2008, que revogou a Lei no 6.638/1979, resulta de um
projeto de lei (PL) apresentado pelo deputado Srgio Arouca
Cmara dos Deputados, em 1995. O PL no 1.153/1995 tramitou
por 13 anos pelo Congresso Nacional antes de ser aprovado.
Durante este perodo, dois projetos de lei e trs emendas foram
adicionados ao PL original e analisados pela Cmara dos
Deputados. Ao longo desse processo, em meados da dcada de
2000, a oposio experimentao animal aumentou.
Simultaneamente, nesse perodo, as sociedades cientficas
preocupadas com as leis municipais rigorosas que ameaavam a
utilizao de animais na pesquisa (ENSERINK, 2008)
intensificaram as presses para que o PL fosse votado e aprovado.
Os interesses de atores envolvidos na proteo e no uso cientfico
de animais e o jogo parlamentar configuraram o atual regime
regulatrio da experimentao animal no Brasil. Contudo, o texto
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final do que veio a ser a Lei Arouca no mantm qualquer
semelhana com o PL original, a no ser o seu sumrio9.
Logo aps ter sido sancionada, os pesquisadores
consideraram a sano da Lei Arouca um avano inestimvel
(MARQUES; MORALES; PETROIANU, 2009). Entretanto, como
mencionamos em outros trabalhos (MACHADO; FILIPECKI;
TEIXEIRA, 2009), o texto legal deixou em aberto questes
desafiadoras. Uma delas a necessidade de integrar a Lei no
11.794/2008 ao amplo quadro jurdico relacionado utilizao de
animais selvagens e animais de laboratrio, que forma um sistema
de regulao importante para a investigao biomdica (FILIPECKI;
MACHADO; VALLE; TEIXEIRA, 2010). Embebidas nesse quadro
jurdico esto questes relacionadas fiscalizao das atividades
cientficas com animais, ao exerccio profissional10, formao de
tcnicos e pesquisadores e busca de mtodos alternativos
experimentao animal, como obriga a Lei de Crimes Ambientais.
A Lei Arouca estabelece as condies de uso dos animais na
pesquisa, torna obrigatria a implantao de CEUAs pelas
instituies que criam ou utilizam animais para ensino e cria o
CONCEA, que um Conselho normativo, consultivo, deliberativo e
de apelao sob a presidncia do Ministro de Cincia e Tecnologia.
9 Para uma anlise detalhada das mudanas sofridas no texto do Projeto de Lei ao longo do processo legislativo de tramitao na Cmara dos Deputados e no Senado Federal, at chegar redao do texto final da Lei sancionada pelo Presidente da Repblica, ver Machado et al. (2010). 10 Por exemplo, de acordo com o Conselho Federal de Medicina Veterinria todos os procedimentos anestsicos e/ou cirrgicos devem ser realizados exclusivamente pelo mdico-veterinrio.
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O Decreto que a regulamenta (Decreto 6.899/09) define as normas
de funcionamento do CONCEA, altera o texto sobre as atribuies
da CEUA e cria o Cadastro das Instituies de Uso Cientfico de
Animais (CIUCA), base de dados eletrnica na qual as instituies
de criao e pesquisa com animais devem se registrar a fim de
requerer acreditao do CONCEA. A Resoluo Normativa n. 01
(RN1) do CONCEA, publicada em 9 de julho de 2010, dispe sobre
a instalao e o funcionamento das CEUAs. A RN1 amplia as
regras sobre a composio da CEUA e intensifica suas atribuies.
Permite que a Instituio estabelea um convnio especfico com
outra credenciada no CONCEA, quando encontrar restries
materiais ou humanas para criar sua prpria CEUA. Desse modo,
torna possvel que uma instituio que utilize animais vertebrados
solicite o seu credenciamento ao CONCEA sem criar previamente
uma CEUA desde que se vincule previamente a outra instituio
credenciada. Alm disso, a RN1 cria um mecanismo de contorno
com relao obrigatoriedade de um representante (e seu
suplente) das sociedades protetoras na composio da CEUAs. As
entidades podem convidar consultores ad hoc, com notrio saber e
experincia em uso tico de animais, enquanto no houver
indicao formal de sociedades protetoras de animais, legalmente
constitudas e estabelecidas no Pas, para represent-las na
CEUA11.
11 Para uma anlise detalhada da Resoluo Normativa N. 01/10 ver Filipecki e Machado, 2010.
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O Decreto 6.899/2009 atribuiu a CEUA a incumbncia de
estabelecer programas preventivos e de inspeo para garantir o
funcionamento e a adequao das instalaes sob sua
responsabilidade, dentro dos padres e normas do CONCEA (art.
44, VII), e a RN1 definiu a periodicidade anual das inspees (art.
6, VIII). Dirigentes, criadores e usurios de animais de pesquisa
no devem, portanto, ignorar as implicaes do novo marco
regulatrio para a instituio e, particularmente, seus efeitos sobre
o modo de funcionamento das CEUAs.
O PAPEL DA CEUA NA PROTEO DO BEM-ESTAR ANIMAL
Dentro da organizao administrativa local, a CEUA o
rgo responsvel pela proteo e bem-estar dos animais de
pesquisa no-humanos. De modo similar aos CEPs, as CEUAs
devem examinar previamente os protocolos experimentais ou
pedaggicos aplicveis aos procedimentos de ensino e projetos de
pesquisa cientfica a serem realizadas na instituio qual esteja
vinculada. Contudo, as CEUAs so obrigadas a cumprir e fazer
cumprir, no mbito de suas atribuies, as disposies da Lei e
das demais normas aplicveis utilizao de animais para ensino
e pesquisas, especialmente nas resolues do CONCEA. Portanto,
alm dos aspectos ticos, a CEUA deve determinar a
compatibilidade entre os procedimentos de criao, manuteno e
utilizao e a legislao aplicvel.
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A avaliao tica de um protocolo de pesquisa que utiliza
animais pressupe uma anlise do domnio de conhecimento que o
responsvel pelo projeto de pesquisa detm sobre o modelo animal
que utiliza e sobre o desenho experimental que prope. Portanto, a
anlise reside na observao da associao entre a formao
acadmica, a prtica cientfica e a preocupao do pesquisador
sobre o bem-estar do animal que utiliza. Como no poderia deixar
de ser, o perodo de transio para a consolidao do novo marco
regulatrio, conjugado s fragilidades e complexidades dos
dispositivos jurdicos, apontadas anteriormente, tem influncia
direta sobre a dinmica das CEUAs. Nosso argumento baseia-se
em observaes sobre as modificaes dos protocolos de pesquisa
sugeridas pelos membros da CEUA de uma Instituio Pblica de
Pesquisa em Sade (IPPS) antes da aprovao dos projetos de
pesquisa para a concesso de licena12. Identificamos uma srie de
dificuldades enfrentadas pelos membros da CEUA em seu trabalho
de avaliao dos projetos de pesquisa, sintetizadas a seguir. Os
pesquisadores tendem a traduzir os questionamentos e/ou as
recomendaes feitas pela CEUA sobre o projeto submetido
avaliao como uma interveno em suas prticas de pesquisa.
Assim, a necessidade de um estudo piloto ou a realizao de uma
etapa anterior de pesquisa in vitro, ou a reviso do modelo animal,
ou a reviso do desenho experimental e dos procedimentos,
visando o bem-estar animal, so interpretadas como julgamento de
12 Para uma anlise detalhada ver Filipecki; Machado; Teixeira 2010.
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mrito cientfico, desconhecimento do relator sobre a rea e, at
mesmo, incompetncia. De modo anlogo, quando os membros da
CEUA recebem os protocolos e encontram uma redao truncada,
pouco precisa, confusa, sugerindo o desconhecimento do
pesquisador sobre a etologia do animal e sobre os efeitos que a
manipulao precria do animal traz para os resultados da
pesquisa, as crticas ao proponente do projeto so igualmente
contundentes. Em termos administrativos, para os pesquisadores,
a lentido ou a falta de agilidade da CEUA implica em limitar sua
possibilidade de competir em um mercado cientfico cujo ciclo de
produo de informaes e publicao dos resultados se torna
cada vez mais curto, sendo a reduo do tempo desse ciclo vital
para se manter na concorrncia entre grupos, laboratrios e
instituies de pesquisa pela precedncia de novos conhecimentos
sobre o tema pesquisado e novas tcnicas de laboratrio.
Pressionado por uma lgica de produo cientfica acelerada,
imposta pelas agncias de fomento e avaliao das pesquisas e
pesquisadores, quanto maior a dificuldade que o pesquisador
encontrar no conjunto das atividades que realiza, maior sua
intolerncia e impacincia com as demandas e o ritmo de trabalho
da CEUA. No Brasil, a resistncia dos pesquisadores maior em
funo de outras dificuldades enfrentadas, tais como, limite nos
valores dos recursos que podem ser solicitados na compra de
insumos e equipamentos para a pesquisa, mirade de legislaes e
normas a serem observadas na realizao do projeto muitas vezes
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conflituosas entre a compra, a importao, o envio de material
para anlise no exterior, coleta e transporte de animais
acrescidas das fragilidades e limitaes referentes qualidade dos
animais criados para a pesquisa e a gesto local de insumos e
produtos.
Alm disso, o pesquisador sabe que precisa coordenar a
submisso do projeto de pesquisa agncia de amparo e fomento
com a submisso e aprovao do projeto pela CEUA. Mais ainda, a
realizao de projetos de pesquisa sem a aprovao da CEUA, ou
que tenha sido suspensa pela CEUA, representar uma ameaa
para os pesquisadores tendo em vista que est previsto no art. 23
da Lei 11.794/2008 que o CONCEA recomendar s agncias de
amparo e fomento pesquisa o indeferimento de projetos por esses
motivos.
A operacionalizao das determinaes legais de controle e
monitoramento das atividades de criao e uso cientfico de
animais pelas CEUAs, conforme estabelecido pela RN1 do
CONCEA, depende, de modo similar s regras de biossegurana
(Resolues Normativas 1 e 2 da CTNBio), de procedimentos
padronizados, da capacitao dos usurios (e dos membros da
CEUA) e de infraestrutura adequada. Por exemplo, quando a CEUA
solicita que o responsvel pelo projeto de pesquisa descreva como
ser realizada a conteno do animal, a eutansia, e outros
procedimentos em que o animal ser submetido dor, ao
sofrimento e a angstia, o que est em jogo, em ltima anlise, a
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convergncia (ou a divergncia) entre a capacidade e habilidade do
usurio e a infraestrutura local.
A DESREGULAO DENTRO DA REGULAO: PESQUISA
BIOMDICA ACADEMIA CONTROLADA E PESQUISA BIOMDICA
INDUSTRIAL LIVRE
Na descrio e anlise do processo regulatrio de uso de
animais no ensino e uso de animais em experimentao cientfica,
digno de nota o movimento sui generis de desregulao dentro da
regulao da pesquisa biomdica a ser abordado nesta ltima
seo.
Em 15 de dezembro de 2009, foi encaminhada ao Consultor
Jurdico do MCT uma nota tcnica elaborada pela Assessoria do
CONCEA (Nota Tcnica No 001/2009/SEPED/MCT). Tratava-se de
um conjunto de 20 questes, abrangendo diversas dvidas
relacionadas criao de CEUAs e registro no CIUCA, enviadas por
mensagem eletrnica em 11 de setembro de 2009, pelo presidente
do COBEA/SBCAL, para a Secretaria de Polticas e Programas de
Pesquisa e Desenvolvimento (SEPED), Coordenao Geral de
Biotecnologia e Sade. A Nota Tcnica continha os esclarecimentos
solicitados e recebeu o Parecer No 083/2009/LML/COMJUR do
Assistente Jurdico do MCT. O Parecer foi aprovado em 01 de
fevereiro de 2010 pela Consultoria Jurdica do MCT, Advocacia-
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Geral da Unio, e os esclarecimentos foram comunicados ao
solicitante em 5 de fevereiro de 2010.
Em novembro de 2010, na 10 Reunio Ordinria do
CONCEA, a Nota Tcnica foi colocada na pauta na rubrica Outros
Assuntos pelo prprio autor da Consulta (quando era Presidente
da SBCAL), e membro do CONCEA, sob a justificativa de que em
um encontro cientfico em Recife, que contou com a participao de
integrantes do CONCEA, foi apontado nos debates que algumas
das respostas dadas pelo Parecer no estavam coerentes com a
realidade. O tema suscitou uma discusso acalorada e foi
deliberado que o assunto seria pautado na prxima reunio do
CONCEA. Na 10 Reunio um dos membros do Conselho havia
ponderado que o CONCEA no deveria interromper o andamento
de suas atividades em funo de um equvoco passado. Em
seguida, na 11 Reunio Ordinria do CONCEA, foi ratificado o
Parecer da CONJUR de que a produo comercial de quaisquer
produtos ou insumos 17 questo da Consulta no de
competncia legal do CONCEA. A concluso baseou-se em um
Paralelo com o PLS No 73/2007 e consideraes sobre a definio
de atividades de pesquisa cientfica contida no Decreto n.6.899, de
2009. A esse respeito, duas observaes se impem. A primeira,
que na poca da Consulta, a Coordenao do CONCEA ainda no
havia sido instalada. A segunda sobre a pergunta da Consulta e a
resposta do Parecer que deram origem ao debate apresentadas a
seguir.
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Pergunta:
Tenho uma empresa que produz soro antiofdico.
Utilizamos cobras, cavalos e roedores para produzir o soro.
Precisamos da CEUA e cadastro no CIUCA.
Resposta:
A Lei 11.974/08 [e no Lei 11.794/08] em seu artigo 1
dispe: Art. 1 A criao e a utilizao de animais em atividades de
ensino e pesquisa cientfica em todo territrio nacional, obedece aos
critrios estabelecidos nesta Lei. Portanto, a criao de animais
para a produo comercial de soro antiofdico ou de qualquer outro
imunobiolgico no consta como atividade contemplada pela Lei
11974/08. Por essa razo, instituies cuja finalidade a produo
comercial de imunobiolgicos, no precisam criar uma CEUA, nem
cadastrar-se no CIUCA.
A resposta do Parecer no faz meno ao pargrafo, do
mesmo artigo, que define atividades de pesquisa cientfica como
todas aquelas relacionadas com cincia bsica, cincia aplicada,
desenvolvimento tecnolgico, produo e controle da qualidade de
drogas, medicamentos, alimentos, imunobiolgicos, instrumentos,
ou quaisquer outros testados em animais, conforme definido em
regulamento prprio (2). O Decreto 6.899/2009, art. 2, inciso
III, repete a definio de atividades de pesquisa cientfica da Lei e a
complementa com o Pargrafo nico: o termo pesquisa cientfica
adotado neste Decreto inclui as atividades de desenvolvimento
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tecnolgico, de acordo com a definio constante do 2 do art. 1
da Lei no 11.794, de 2008, e a do inciso III deste artigo.
Mesmo que as empresas fizessem uso dos animais apenas
para o controle da qualidade da produo de frmacos e
imunobiolgicos, o texto da Lei obriga a criao da CEUA e a
submisso de protocolos. Alm disso, as empresas do setor
biotecnolgico so as que lideram o desenvolvimento de novos
produtos, por exemplo, no caso da indstria farmacutica. O
processo de desenvolvimento envolve experimentao com animais
(fase pr-clnica) e no humanos (fase clnica). H casos em que os
efeitos adversos ocorridos na fase I obrigam uma reviso da fase
anterior, e at mesmo identificar as fragilidades do projeto e a
responsabilidade dos envolvidos na anlise.
CONSIDERAES FINAIS
Ao buscar responder s questes que esto na origem deste
trabalho, constatamos que um dos grandes desafios do CONCEA
o de contribuir para o aperfeioamento do processo legislativo
harmonizando os inmeros e entrelaados dispositivos legais sem
prejudicar a investigao biomdica e de acordo com o que
disciplina a Lei Complementar no 95/98 sobre a elaborao, a
redao, a alterao e a consolidao das leis, conforme determina
o pargrafo nico do artigo 59 da Constituio Federal.
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II COLQUIO INTERNACIONAL NEPC/IEAT Biotecnologias e Regulaes
Nesse sentido, sugerimos que o primeiro passo do CONCEA
seja a adoo de procedimentos de verificao da boa tcnica
legislativa de redao de textos nos quais fossem conceituados os
diversos termos introduzidos no novo marco regulatrio e
apresentasse, ao mesmo tempo, as suas polticas e programas para
a experimentao animal. Ironicamente, esse no foi o caso da
definio de atividades de pesquisa, apesar de sua abrangncia. As
prticas zootcnicas relacionadas agropecuria foram
explicitamente excludas desse conjunto (3). O Parecer que
justifica tal excluso desonera as indstrias produtoras e as
instituies que realizam testes de controle de qualidade dos
custos operacionais e administrativos embutidos na conformao
de suas prticas ao novo marco que regulamenta o uso de animais
no-humanos. Significaria, portanto, que estamos diante do
enfraquecimento do elo entre a pesquisa pr-clnica e a fase I da
pesquisa clnica? Com certeza tal iseno da cadeia de produo
biotecnolgica enfraquece os investimentos em mtodos
alternativos pesquisa com animais. Mas, ao mesmo tempo, pode
atrair empresas internacionais do setor que enfrentam em seus
pases o peso da sobrecarga legal. Quem sabe as assimetrias
geradas entre as atividades de pesquisa e ensino, o
desenvolvimento tecnolgico e a produo comercial acabem
acelerando o deslocamento do mundo da pesquisa "sem fins
comerciais" para o mundo da atividade econmica. Assim, a
poltica cientfica e tecnolgica do governo federal estaria
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caminhando efetivamente na direo do modelo norte americano
dominante de produo de conhecimentos cientficos e de
tecnologias que aproximou de forma intensa, ao longo das ltimas
quatro dcadas, o mundo da pesquisa e o mundo da economia.
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REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS BRACEY, D. H. Exploring Law and Culture. Illinois: Long Grove, 2006. BRASIL. Decreto no 6.899, de 15 de julho de 2009. Disposio sobre a composio do Conselho Nacional de Controle de Experimentao Animal - CONCEA, estabelece as normas para o seu funcionamento e de sua Secretaria-Executiva, cria o Cadastro das Instituies de Uso Cientfico de Animais - CIUCA, mediante a regulamentao da Lei no 11.794, de 8 de outubro de 2008, que dispe sobre procedimentos para o uso cientfico de animais, e d outras providncias. Disponvel em: . Acesso em: 14 agosto 2010. BRASIL. Lei no 11.794, de 08 de outubro de 2008. Regulamenta o inciso VII do 1o do art. 225 da Constituio Federal, estabelecendo procedimentos para o uso cientfico de animais;
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1.2. As Deficincias do argumento da
potencialidade contra o uso de embries
humanos.
Lincoln Frias1
Resumo O artigo identifica as principais falhas do argumento de que embries humanos no devem ser descartados ou destrudos porque eles tm o potencial para se tornar uma pessoa. A primeira falha supor que a pessoa em potencial de alguma maneira j existe de alguma maneira no embrio. A segunda a suposio de que o que est em potencial tem tanto valor quanto o que foi efetivado. A terceira falha que nem todos os embries tm o potencial para se tornar pessoas. Estima-se que de 45 a 75% de todos os embries fecundados naturalmente no conseguem chegar at ao final da gestao seja por anomalias cromossmicas seja por falta de condies uterinas adequadas. Mesmo deixando esse aspecto de lado, parece equivocado considerar que embries in vivo e in vitro esto na mesma situao, pois enquanto os primeiros se desenvolvero a menos que haja alguma interveno, os ltimos no se desenvolvero a menos que haja alguma interveno, isto , que recebam o meio de cultura adequado e sejam implantados apropriadamente. Isso serve tambm para questionar a distino entre potencial extrnseco e intrnseco, com a qual os defensores do argumento procuram evitar a objeo de que os gametas tambm tm potencial para ser pessoa. A quinta falha do argumento colocada pelo caso da gemeao e fuso de embries, o que mostra que a potencialidade 1 Professor da Unifenas e pesquisador do NEPC.
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uma propriedade to imprecisa que os embries tm o potencial para se tornar seja mais de uma pessoa seja menos de uma pessoa. Diante de tudo isso, razovel dizer que o Argumento da Potencialidade invlido e no merece a aceitao pblica que tem. Palavras-chave: Embries; Potencialidade; Clulas-tronco.
Abstract The article identifies the main flaws of the argument that human embryos should not be discarded or destroyed because they have the potential to become a person. The first flaw is to assume that the potential person already exists in some way in the embryo. The second is the assumption that what exists in potential is as valuable as what is accomplished. The third flaw is that not all embryos have the potential to become persons. It is estimated that 45-75% of all naturally fertilized embryos fail to reach the end of pregnancy - either due to chromosomal abnormalities or due to lack of adequate uterine conditions. Even leaving this aspect aside, it seems a mistake to consider that embryos in vivo and in vitro are in the same situation, because while the former will develop unless there is some intervention, the latter will not develop unless there is some intervention, that is, to receive the appropriate culture medium and to be implanted appropriately. This also serves to question the distinction between extrinsic and intrinsic potential, with which the proponents of the argument seek to avoid the objection that the gametes have the potential to be a person. The fifth flaw is the argument raised by the case of twinning and fusion of embryos, showing that the potentiality is a property so inaccurate that embryos have the potential to become both more and less than one person. Given all this, it is reasonable to say that the Potentiality Argument is invalid and not worthy of the public acclaim it has. Keywords: Embryos; Potentiality; Stem cells.
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Muitas pessoas consideram imoral que embries humanos
sejam destrudos para pesquisa, fertilizao in vitro ou derivao de
clulas-tronco. comum que justifiquem sua opinio dizendo que
o embrio j um ser humano. Porm, por mais que aquele
conjunto de clulas contenha os cromossomos que definem a
espcie homo sapiens sapiens, isso no basta para garantir que ele
merea considerao moral. Se o que garantisse valor moral aos
humanos fosse apenas o pertencimento espcie humana, isso
seria apenas uma preferncia injustificada pelo prprio grupo, uma
forma de discriminao injusta, chamada pelos defensores dos
direitos dos animais no-humanos de especismo (em analogia com
o racismo e o sexismo). preciso que se indique qual (ou quais)
propriedade dos seres humanos faz com que meream que tenham
seus interesses respeitados.
O fato de que seres humanos em geral so pessoas (seres
que possuem racionalidade, autonomia e autoconscincia em
nveis considerveis) o candidato mais votado entre os filsofos,
pois imprescindvel para que se seja um agente moral pleno. Os
embries humanos, entretanto, certamente no so pessoas, pois
esto longe de possuir as caractersticas que constituem a
personalidade moral. Por isso, aqueles que se opem destruio
de embries (os concepcionistas) focam no potencial que esses
organismos tm de se tornarem pessoas. Isso d origem ao
Argumento da Potencialidade: embora os embries humanos ainda
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II COLQUIO INTERNACIONAL NEPC/IEAT Biotecnologias e Regulaes
no sejam pessoas, eles so pessoas em potencial. Quer dizer,
dadas as condies necessrias, todos os embries se
transformaro em pessoas. Mesmo que matar embries no seja
errado por no ser equivalente a matar uma pessoa (porque o
embrio no uma pessoa) e, portanto, no pode ser considerado
errado por este motivo, ainda assim errado porque destri o
potencial do embrio (de se tornar uma pessoa). Se o status dos
adultos deriva do fato de que so pessoas, o dos embries deriva do
fato de que tm o potencial para serem pessoas, so pessoas em
potencial ou pessoas potenciais. Em resumo, o que h de errado
em matar embries a frustrao de uma potencialidade, no a
morte de uma pessoa. Esse argumento soa intuitivo para muitas
pessoas. Mas isso no impede que ele tenha deficincias
suficientes para torn-lo incuo. O restante desse artigo procura
apresentar essas falhas2.
DUAS CONFUSES
Porm, antes de apontar as deficincias mais srias,
preciso evitar duas confuses. A primeira a ideia de que a pessoa
em potencial j existe de alguma maneira no embrio.
Embora haja muita hostilidade da literatura liberal biotica
contra o argumento da potencialidade, ele tem muito apelo
popular. Talvez a hostilidade dos especialistas a esse argumento se
2 Esse artigo se baseia em (FRIAS, 2010).
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justifique porque provvel que boa parte de seu apelo derive da
idia de que a pessoa j existe como embrio, restando a ela
apenas se desenvolver. Isso se baseia em crenas no-morais no-
falsificveis, p.ex., a ideia de que temos uma alma, de que ela j
est presente desde a concepo e de que as pessoas j existem
antes mesmo de sua concepo. Por detrs dessas crenas podem
estar raciocnios invlidos, tais como:
se existir bom, no existir ruim; logo, errado evitar
que uma pessoa exista;
a pessoa em potencial j existe, mat-la prejudic-la;
se foi melhor para o adulto X que o embrio que ele foi
no tenha sido morto, ento matar o embrio Z agora,
prejudica o adulto Z que existir;
Por mais legtimas que sejam as crenas religiosas, elas no
podem ser base para uma argumentao ou raciocnio que se
pretende universal. No h como decidir se almas existem ou a
partir de quando elas estaro presentes no organismo (caso
existam) ou se elas existem antes do entrar no corpo. O fato de que
existir seja bom no implica que no existir seja ruim, pois no
existindo impossvel ter qualquer experincia, seja de bondade ou
de ruindade. Pelo mesmo motivo, o fato de que agora o adulto X
prefira que o embrio que ele foi no tenha sido morto, no implica
que quando era um embrio ele preferisse se transformar em um
adulto. A pessoa em potencial ainda no existe enquanto pessoa,
ela apenas possvel, por isso mesmo ela chamada de potencial.
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A segunda confuso a ser evitada a suposio de que o
que est em potencial tem tanto valor quanto o que foi efetivado.
Uma formulao muito comum do Argumento da Potencialidade
diz que se pessoas possuem direito vida, ento entidades que em
condies normais de desenvolvimento se transformaro em
pessoas tambm possuem direito vida. Para que seja verdadeira,
contudo, essa inferncia tem que pressupor que o que est em
potencial tem tanto valor quanto o que efetivo. Com esse
pressuposto, o seguinte raciocnio vlido:
P1- Pessoas tm direito vida.
P2- Embries so pessoas em potencial.
P3- O que est em potencial deve ser contado como o que
efetivo.
C- Embries tm direito vida.
O problema que, embora vlido, o raciocnio no
verdadeiro, porque P3 no verdadeira. Por definio, pessoas
potenciais no so pessoas. Muita gente ao dizer que o embrio
tem o potencial de se tornar pessoa, um ser cuja natureza se
tornar uma pessoa completa, considera que ele uma pessoa
incompleta, em desenvolvimento e desse modo j , de algum
modo, uma pessoa. Por julgar que a pessoa est em estado latente
ou oculto na pessoa potencial, concluem que a pessoa potencial
tem os mesmos direitos que se conceder pessoa completa.
Dizer que X tem o potencial de se tornar Y, parece implicar
que X j Y de algum modo. Mas se parafrasearmos isso, dizendo
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que provvel que X se torne um Y, fica claro que X no Y, que o
status de Y no necessariamente se aplica a X. Por exemplo, Lula
certamente tinha o potencial para se tornar Presidente da
Repblica desde sua infncia no serto pernambucano, isso,
porm, no lhe conferia nenhuma das prerrogativas presidenciais.
Dizer que X tem o potencial de se tornar Y, quer dizer apenas que
possvel que X se torne Y, no que ele j Y.
Outro exemplo. No comeo do Campeonato Brasileiro todos
os times so potenciais vencedores. Embora o Cruzeiro, p.ex., seja
o time com mais probabilidade de vencer nesse sentido, teria
mais potencial do que os outros seu nome ainda no pode ser
escrito na taa. Se o potencial tem importncia, ele deve ter
importncia apenas enquanto potencial, no como se ele j fosse
realizado.
possvel reformular o argumento da seguinte maneira: a
potencialidade tem valor moral e que por isso errado frustrar uma
potencialidade. Se uma pessoa algo que tem valor, errado matar
um embrio porque isso impediria que uma pessoa existisse, pois o
embrio tem o potencial de se tornar uma pessoa. A questo
importante que se coloca : por que ruim impedir que exista uma
nova pessoa?
H trs opes de resposta. A primeira :
a) porque seria bom para o embrio se transformar em uma
pessoa. Mas o embrio, aquela entidade de apenas algumas
clulas, certamente no possui desejos, planos ou expectativas
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pelo menos, no de maneira diferente dos que as bactrias tm. Se
ele no possui esse tipo de contedo mental, o que acontecer com
ele no ser bom ou ruim da maneira que pode ser bom ou ruim
para um estudante passar em um concurso, mas sim da maneira
que bom ou ruim para uma planta ficar ou no ao sol. Portanto,
transformar-se em uma pessoa no pode ser bom para o embrio
em um sentido to forte que seria suficiente para explicar o que
torna ruim impedir que uma pessoa exista. No final das contas,
transformar-se ou no em uma pessoa indiferente para o
embrio.
Segundo outra viso, ruim impedir que exista uma nova
pessoa porque existir seria bom para a pessoa potencial. Quando
se diz que seria bom para o embrio se tornar uma pessoa parece
estar implcito que, caso se evite que isso acontea, a pessoa
potencial seria prejudicada. No h como isso ser verdadeiro
porque a pessoa potencial no existe e no h como prejudicar
quem no existe nem nunca existir. Eu poderia ser prejudicado se
algum dano fosse feito ao embrio do qual eu surgi, mas isso
deriva dos direitos que adquiri depois de me tornar uma pessoa,
no enquanto havia apenas o embrio. Se o embrio no houvesse
dado origem a mim, no haveria problema em danific-lo.
Uma ltima interpretao alternativa diz que impedir que
uma pessoa exista ruim porque a nova pessoa beneficiaria as
pessoas que j existem. Essa resposta insatisfatria porque
simplesmente no consideramos obrigatrio que existam tantas
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pessoas quanto for possvel, no h nenhuma regra moral que
obrigue as pessoas a terem tantos filhos quanto seja possvel. Se
isso verdade, no h explicao disponvel sobre porque errado
frustrar o potencial do embrio de se tornar uma pessoa.
Mas no so apenas essas confuses que tornam o
Argumento da Potencialidade inaceitvel: como veremos, trs fatos
biolgicos diminuem a plausibilidade desse argumento.
EMBRIES IN VIVO E EMBRIES IN VITRO
A terceira falha do Argumento da Potencialidade deriva do
fato de que equivocado considerar que embries in vivo e in vitro
estejam na mesma situao, pois enquanto os primeiros se
desenvolvero a menos que haja alguma interveno, os ltimos
no se desenvolvero a menos que haja alguma interveno
(recebam o meio de cultura adequado e sejam implantados
apropriadamente). Vejamos com mais calma a ideia de
potencialidade.
Se o que torna o embrio merecedor do direito vida
simplesmente seu potencial para se tornar, o Argumento da
Potencialidade est sujeito Objeo dos Gametas: tanto o
espermatozide quanto o vulo tambm tm o potencial de se
transformar em pessoas. Portanto, se o embrio tem direito vida
porque uma pessoa em potencial, os gametas tambm tm. Se os
gametas tambm tm direito vida, devemos aceitar que a
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masturbao, a contracepo e a abstinncia sexual so imorais.
Se espermatozides tm direito vida porque a potencialidade
que confere esse direito, temos a obrigao de fazer com que
permaneam vivos se unindo a um vulo e qualquer desperdcio
deles moralmente condenvel. Inclusive a abstinncia sexual em
geral seria imoral, pois ela tambm impede que os gametas
sobrevivam. Isso implica uma obrigao geral de se reproduzir,
segundo a qual todas as pessoas seriam moralmente criticveis se
no se reproduzissem o mximo que lhes fosse possvel.
Como essas so consequncias muito pouco razoveis,
dadas as crenas que possuamos sobre mtodos
anticoncepcionais e a liberdade reprodutiva, o Argumento da
Potencialidade pode ser considerado implausvel caso implique que
tambm os gametas tenham direito vida.
Uma estratgia comum dos concepcionistas para responder
Objeo dos Gametas distinguir dois tipos de potencial:
intrnseco (ou ativo): requer apenas o ambiente normal
para se desenvolver.
extrnseco (ou passivo): requer mais do que o ambiente
normal para se desenvolver, a simples receptividade.
Segundo os concepcionistas, o que diferencia os gametas do
embrio que os primeiros possuem apenas o potencial extrnseco
de se tornar uma pessoa, ao passo que o embrio possui o
potencial intrnseco. Essa distino, porm, difcil de ser
sustentada, especialmente no caso dos embries in vitro, pois seu
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potencial parece depender tanto da interveno de terceiros que
merece ser classificado como extrnseco.
Deve ser levado em conta o fato de que os embries em
questo na pesquisa com CTEHs e no DGPI esto em laboratrio,
no no tero. Por isso, para que eles se desenvolvam preciso que
algum os implante no tero. Os embries surgidos da reproduo
natural (supondo que tenham o potencial para se desenvolver e
que sejam dadas as condies uterinas adequadas) se
desenvolvero, a no ser que algum interfira no processo. Os
embries em laboratrio esto em uma situao inversa aos
embries no tero: o embrio no tero se desenvolver, a menos
que haja interferncia externa em seu desenvolvimento; o embrio
no laboratrio no se desenvolver, a menos que haja interferncia
externa em seu desenvolvimento. Isso mostra que o potencial do
embrio in vitro diferente do potencial do embrio in vivo, porque
o primeiro precisa da ao de algum para realizar seu potencial.
A partir disso se poderia concluir que as condies gerais
fazem parte da potencialidade, que ela no apenas intrnseca.
Segundo essa perspectiva, a potencialidade de um ser varia de
acordo com o ambiente em que ele se encontra3. Contudo, essa
explicao no pode ser aceita pelo concepcionista porque
implicaria que o embrio em laboratrio no tem potencial (ou tem
3 Existem vrias anlises segundo as quais o status do embrio est sujeito a mudanas de acordo com o contexto, com a criopreservao, com os motivos de sua criao ou com sua capacidade de desenvolvimento, podendo ser encontradas em (AGAR, 2007; HOLBROOK, 2007; LIZZA, 2007).
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pouco) e, portanto, no tem status moral (ou tem menos que seres
humanos adultos).
A concluso a ser retirada dessa discusso que a
distino entre potencial intrnseco e extrnseco difcil de ser
sustentada e, por isso, problemtico trat-la como decisiva para o
status moral do individuo. Portanto, mesmo que o feto humano
tenha o potencial intrnseco para se tornar uma pessoa, isso no
afeta seu status moral, no lhe confere direito vida. Parece
moralmente irrelevante se o potencial de uma entidade intrnseco
ou extrnseco.
Um teste baseado em um exemplo fictcio ajuda a perceber
como o potencial no o que importa para se ter ou no status
moral ou direito vida. O potencial de uma criana para se tornar
uma pessoa tambm depende de muitos fatores externos (nutrio,
abrigo, exposio linguagem e cultura), sem os quais ela no
chegar a ser pessoa. Suponhamos que esse seja o caso com os
cachorros: que eles sejam capazes de autoconscincia e
racionalidade, mas que at agora esse potencial nunca havia sido
notado porque nunca tinha sido realizado. Suponha que para
desenvolver esse potencial seja necessrio um programa intensivo
de treinamento, como aquele que as crianas recebem em sua
primeira dcada de vida. Se isso for possvel, isso faria com que
ces sejam intrinsecamente pessoas potenciais? Todo cachorro
teria status moral, teria direito vida? Seramos todos culpados
por t-los tratado como se no o tivessem?
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As respostas so todas no. O cachorro que ultrapassar o
patamar por ter desenvolvido seu potencial dever ser respeitado,
mas no deveremos revisar nosso tratamento dos que no
desenvolveram seu potencial4.
Mas se pensamos isso, devemos tambm aceitar que o
potencial para se tornar uma pessoa no suficiente para garantir
direito vida ou status moral, pois seres humanos tambm exigem
um treinamento intensivo e estruturado para se tornarem pessoas,
sem isso so muito diferentes de autoconscientes e racionais (isso
mostra o quanto o potencial de se tornar uma pessoa extrnseco,
o que pode ser confirmado em casos como os das meninas-lobo). O
embrio, alm de no ter recebido esse treinamento, est muito
longe de qualquer estrutura biolgica que pudesse receb-lo.
A PERDA EMBRIONRIA NATURAL
A quarta falha do argumento enfatiza ainda mais o fato de
que nem todos os embries tm o potencial para se tornar pessoa,
de que nem todos os embries so iguais. Estima-se que de 45 a
75% de todos os embries fecundados naturalmente no
conseguem chegar at ao final da gestao seja por anomalias
cromossmicas, seja por falta de condies uterinas adequadas.
O concepcionista (quem considera que o embrio tem
direito vida desde a concepo) tem um srio problema prtico a
4 (MCMAHAN, 2002: 316).
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enfrentar: a reproduo natural implica uma alta taxa de perda
embrionria. Alguns desses embries eram incapazes de
sobreviver, devido a anomalias genticas (a mais comum a
aneuploidia, quando o embrio possui um nmero anormal de
cromossomos). Outros, apesar de normais e capazes de sobreviver,
no encontraram as condies uterinas necessrias para o
desenvolvimento embrionrio. Essas condies so afetadas por
vrios fatores, dentre os quais deficincias hormonais
(especialmente da progesterona e do estrognio que possibilitam a
implantao do embrio no endomtrio, a parede do tero),
doenas maternas (diabetes mellitus, infeco por herpes simplex
etc.), fatores imunolgicos, malformao uterina, deficincia
nutricional, pequeno intervalo entre gestaes, tabagismo e
ingesto de lcool etlico durante a gravidez, idade materna,
nmero de gestaes anteriores e at mesmo uso do coito
interrompido como mtodo contraceptivo (pois aumenta a
proporo de gametas mais velhos, os quais tm mais chance de
criar embries suscetveis ao abortamento espontneo)5.
Os cientistas tm grande dificuldade em fazer estimativas
precisas da perda embrionria porque a maior parte dessa perda
acontece antes que a gravidez tenha sido detectada, o que
geralmente acontece em torno de duas semanas aps a concepo.
Esse fenmeno conhecido como aborto espontneo. Seu nico
sintoma um grande atraso do ciclo menstrual, seguido de fluxo
5 (BIEBER & DRISCOLL, 1995: 178).
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menstrual anormalmente abundante. As estimativas mais
conservadoras, encontradas em manuais de embriologia, afirmam
que a taxa de perda embrionria de 45%, isto ,
aproximadamente, a cada dois embries, um morre6. As
estimativas mais altas so encontradas em artigos cientficos,
segundo os quais cerca de 75% dos embries morrem7, isto , a
cada quatro embries, trs morrem. Depois de revisar a literatura,
Toby Ord8 considerou que o mais razovel estimar a taxa de
perda embrionria em 63%. Isso significa que cada embrio tem
apenas 37% de chance de sobreviver at o final da gestao. Quer
dizer, o embrio tem mais chance de morrer do que de sobreviver.
Qualquer que seja a estimativa escolhida, o concepcionista
tem um grave problema. Se desde a concepo o embrio tem
direito vida uma pessoa, um de ns todo esforo possvel
deve ser direcionado para impedir que esses abortos espontneos
aconteam, mesmo que isso signifique retirar dinheiro das
6 (MOORE & PERSAUD, 2003: 35). 7 (BOKLAGE, 1990: 78; LOKE & KING, 1995: 225). John Harris e Julian Savulescu trabalham com a hiptese de que a perda embrionria seja de 80%, pois, como explicam em uma nota: Robert Winston [um especialista em embriologia] gave the figure of five embryos for every live birth some years ago in a personal communication. Anecdotal evidence to John Harris from a number of sources confirms this high figure, but the literature is rather more conservative, making more probable a figure of three embryos lost for every live birth. () Again, in a recent personal communication, Henri Leridon confirmed that a figure of three lost embryos for every live birth is a reasonable conservative figure (SAVULESCU & HARRIS, 2004: 95). Segundo apresentao de John M. Optiz ao Presidents Council on Bioethics, cerca d e 80% dos zigotos e 60% dos embries de sete dias no sobrevivem. Essa apresentao est disponvel em www.bioethics.gov/transcripts/jan03/session1.html (acessado em 15-06-2010). 8 (ORD, 2008).
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pesquisas sobre a cura do cncer e da AIDS. Usando a moderada
taxa de 63% de perda embrionria, chega-se concluso de que s
cerca de 55 milhes de mortes que acontecem por ano devido a
envelhecimento, guerra, assassinato, acidentes e doena, devem
ser acrescentadas mais ou menos 226 milhes que acontecem
antes do nascimento.
Como mostra a Ilustrao 2, por volta de 50% da perda
embrionria se concentra nas duas primeiras semanas o que
corresponde a cerca de 179 milhes de embries perdidos9. Desse
modo, o aborto espontneo seria responsvel por de todas as
mortes anuais. Outra conseqncia que a expectativa de vida nos
pases desenvolvidos, atualmente considerada como 78 anos, seria
na verdade de mseros 29 anos. Sendo que a mediana, a maioria
das mortes, ocorreria antes dos 14 dias aps a fertilizao10. A
maior parte das mortes no mundo seria, ento, daqueles que so
incapazes de se proteger, que possuem apenas algumas poucas
clulas, pouco ou nada diferenciadas.
9 Esse grfico foi retirado de (ORD, 2008: 14). Os dados cientficos para sua elaborao esto em (LERIDON, 1977) e (WILCOX et. al., 1999), segundo os quais a morte natural dos embries acontece principalmente entre o oitavo e o dcimo dia aps a fertilizao. Isso mais uma razo para acreditar que, se que o potencial tem importncia moral, o embrio aps os 14 dias tem muito mais potencial para se tornar pessoa do que antes disso. 10 Essas informaes foram retiradas de (ORD, 2008).
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ILUSTRAO 2: Taxa de perda embrionria de acordo com o
tempo aps a fertilizao.
Deve ser lembrado tambm que inclusive nem todo ser
humano tem potencial de ser pessoa. Os fetos anencfalos apesar
de indiscutivelmente pertencerem espcie humana, no tm o
potencial para se transformarem em pessoas, porque impossvel
ser pessoa sem ter crebro. Isso vale para outras doenas que
impedem o funcionamento adequado do crebro. Se o potencial
para ser pessoa uma condio necessria para o direito vida,
esses seres humanos no tm direito vida.
A quinta falha do Argumento da Potencialidade deriva do
fato de que at por volta do 14 dia aps a fertilizao possvel
que ocorra a gemeao ou a fuso, isto , que o embrio se divida
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em dois ou mais embries ou que ele se funda com outro embrio.
Com isso, o embrio no s tem o potencial para se tornar uma
pessoa, como tem tambm o potencial para se tornar mais de uma
pessoa e menos de uma pessoa. Isso leva alguns pesquisadores a
rejeitar o Argumento da Potencialidade, porque mostra que a
potencialidade do embrio uma propriedade imprecisa demais
para justificar que seja atribudo ao embrio o mesmo status dos
seres que efetivamente j so pessoas.
CONCLUSO
Em resumo, o problema com as verses mais ingnuas do
Argumento da Potencialidade pressupor que o que est em
potencial deve ser contado como o que efetivo. Isso claramente
falso. Se o potencial tem importncia, ele deve ter importncia
apenas enquanto potencial, no como se ele j fosse realizado (ter o
potencial de ser campeo brasileiro no confere ao Cruzeiro o
direito taa, preciso que ele vena os jogos). Uma verso menos
ingnua do argumento diz que a prpria potencialidade tem valor
moral e que por isso errado frustrar uma potencialidade. Visto
desta perspectiva, o potencial de ser uma pessoa tem valor na
medida em que uma pessoa tem valor e, portanto, deve receber as
protees necessrias para realizar esse potencial. Mas no
consideramos importante garantir que todas as pessoas possveis
se tornem reais, pois isso limitaria em muito a liberdade sexual e
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reprodutiva. Para evitar a Objeo dos Gametas, foi apresentada a
distino entre potencialidade ativa e passiva. Nessa formulao, o
embrio possui direito vida desde a concepo porque desde
ento ele possui a potencialidade ativa para se tornar uma pessoa.
Entretanto, vrias razes foram apresentadas mostrando que a
distino entre fatores intrnsecos e extrnsecos muito difcil de
ser estabelecida, o que implica que a distino entre potencialidade
ativa e passiva problemtica o suficiente para ser inadequada
como critrio para possuir ou no direito vida. Foi visto ainda
que o potencial para se tornar uma pessoa no tem valor nem para
o embrio (porque nada tem valor para ele), nem para a pessoa
potencial (pois ela ainda no existe) e nem valor impessoal (porque
no consideramos errado evitar que novas pessoas existam).
Chamou-se ateno tambm para o fato de que o potencial do
embrio in vitro diferente do potencial do embrio in vivo porque
para que ele se desenvolva imprescindvel que haja interveno
humana (a implantao no tero), ao passo que o desenvolvimento
do embrio in vivo necessita apenas das condies uterinas
adequadas. Ao que deve ser acrescentado que nem todo ser
humano tem potencial de se tornar uma pessoa, como o caso dos
fetos anencfalos e de boa parte dos embries - ou porque possuem
algum problema estrutural ou porque no encontram as condies
uterinas adequadas11. Tudo isso sublinha o fato de que o potencial
11 Outras anlises da potencialidade podem ser encontradas em (HARMAN, 2003), (LIZZA, 2007) e (BROWN, 2007). Para esse ltimo, preciso distinguir entre potencialidade de primeira, de segunda e de terceira ordens. A
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potencialidade de primeira ordem para ser pessoa a capacidade de adquirir uma capacidade (possuda pelas crianas ao terem crebros capazes de adquirir estados mentais). A potencialidade de segunda ordem o potencial de adquirir o potencial de primeira ordem (esse o potencial possudo pelos embries, isto , eles tm o potencial de se tornarem crianas). O potencial de terceira ordem o potencial de ter o potencial de segunda ordem (esse o potencial dos gametas). Essas distines foram primeiramente introduzidas por (DiSILVESTRO, 2005) em um interessante estudo sobre a situao moral dos embries a partir da posio original rawlsiana. H uma anlise bastante sofisticada do Argumento da Potencialidade em (MCMAHAN, 2002: 302-29), segundo a qual ou o feto no tem o potencial relevante ou apenas seu potencial no suficiente para tornar o aborto inaceitvel, mesmo nos ltimos meses de gravidez. Porm, como a teoria de Mcmahan tem trs componentes tericos incomuns, sua anlise no ser inteiramente incorporada ao argumento principal dessa tese, apesar de usarmos vrios elementos de seu trabalho. Os trs componentes incomuns so: no somos organismos, a identidade no tudo o que importa e o foco da anlise deve recair sobre interesses temporalizados. Segundo Mcmahan, no somos nem almas, nem organismos, nem entidades apenas psicolgicas, mas mentes incorporadas; somos mentes, e no organismos, porque nosso corpo pode existir sem ns; e somos mentes incorporadas porque, segundo ele, nosso crebro decisivo para que existamos. Em conexo com o influente trabalho de (PARFIT, 1984), quando diz que a identidade no tudo o que importa, o que Mcmahan pretende dizer que, ao decidirmos o que melhor para ns, permanecer idnticos a ns no suficiente (como se v em casos de demncia), preciso que existam as relaes de unidade prudencial (continuidade e conectividade psicolgica). A identidade no tudo o que importa porque eu no me importaria da mesma maneira com um futuro em que houvesse identidade, mas no houvesse continuidade e conectividade, entre eu agora e eu depois como demonstra o experimento do Teletransporte de Parfit ( importante registrar, contudo, que Mcmahan discorda de Parfit, ao reforar a idia da identidade numrica contra a idia da continuidade: se o mesmo crebro permanece, haver o interesse egostico, mesmo que no haja mais continuidade psicolgica). Os interesses temporalizados (time-relative interests) so os interesses que o indivduo possui no momento em que ser ou no morto. Eles substituem a noo de interesses, que engloba o que do interesse do indivduo. P.ex. do interesse do feto de seis meses que quando ele tiver 40 anos o imposto de renda tenha alquota progressiva, mas no de seu interesse temporalizado, que se refere apenas ao interesse que ele est experimentando agora, no tero, de se nutrir, fazer pequenos movimentos, interagir com o organismo da me etc. Com base nesses componentes tericos, na anlise da potencialidade (MCMAHAN, 2002: 304) distingue entre:
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do embrio uma propriedade muito imprecisa e dependente de
condies externas ao embrio, o que, somando ao fato de que a
pessoa em potencial ainda no existe, de que o que est em
potencial diferente do que est efetivado e de que no errado
frustrar o potencial do embrio, a potencialidade no pode ser
considerada o critrio para aquisio do direito vida.
a) potencial que preserva identidade: X tem potencial de se tornar Y apenas se X e Y sero idnticos, isto , se X continuar a existir como Y (p.ex., o Prncipe Charles tem o potencial de ser o Rei da Inglaterra). Nesse sentido, algum poderia dizer ainda sou o embrio que fui. b) potencial que no preserva identidade: X tem o potencial para se tornar Y, mas Y no ser idntico a X (no ser uma fase na histria de X). A matria constitutiva de X transformada de maneira que, enquanto X deixa de existir, Y, um indivduo novo e diferente, surge da mesma matria. P.ex., o esperma e o vulo tm o potencial de formarem o zigoto, a mesa de se transformar em uma pilha de serragem, mas nenhum deles continua a existir no novo indivduo. Nesse sentido, algum poderia dizer nunca fui um embrio, ele foi apenas o material do qual surgi.
O potencial de se tornar uma pessoa que o embrio possui (que Mcmahan chama de feto inicial) no preserva a identidade. Por isso, o embrio no tem interesse, nem interesse temporalizado, em se tornar uma pessoa. Se for bom que exista outra pessoa, seu potencial pode ter valor instrumental, mas isso no serve como uma objeo forte ao aborto, porque se aplica tambm a gametas que teriam o mesmo valor instrumental. O feto desenvolvido (que surge aps a 22 semana) tem potencial que preserva a identidade porque pode j possuir os rudimentos da conscincia, e, portanto, tem interesse em se tornar uma pessoa. Contudo, no devemos ser guiados por seus interesses, mas por um respeito a seu interesse temporalizado em realizar seu potencial de se tornar uma pessoa que fraco pela mesma razo que seu interesse temporalizado em continuar a viver fraco: porque lhe faltam relaes de unidade prudencial com a pessoa que ser. (MCMAHAN, 2007) contm uma exposio sucinta das teorias e a aplicao delas ao caso do embrio.
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1.3. Um olhar de gnero sobre o carter
poltico das tecnologias de mudana corporal
Leonel Cardoso dos Santos12
Resumo O objetivo deste texto oferecer elementos para se pensar as relaes existentes entre tecnologias de mudana corporal e as normas de gnero. Especificamente tentar explicitar as conexes existentes entre as tecnologias biomdicas de interveno corporal e sua amarrao s normas de gnero. Este trabalho fruto de um artigo terico em preparao para publicao. As discusses propostas aqui se amparam teoricamente em Michel Foucault e nos estudos ps-estruturalistas de gnero e sexualidade. Trago, inicialmente, uma discusso que explicita as conexes existentes entre corpo, gnero e sexualidade, destacando o primeiro enquanto um tema de importncia poltica no interior do dispositivo de controle da sexualidade. Outro aspecto importante apontar o processo de medicalizao da vida ao longo do sculo XX e como as intervenes do campo da medicina contriburam para a construo social do que na contemporaneidade se denomina corpo. Alm disso, o trabalho busca sublinhar como as tecnologias desenvolvidas nos campos da engenharia, cincias exatas e computacionais passaram a interessar-se pela vida, em termos biolgicos, e acoplaram-se aos interesses, intervenes e conhecimentos mdicos. Esses apontamentos tericos so lidos sob a tica da governamentalidade em Foucault, na qual o poder sobre a vida dividiu-se em duas frentes centrais. Na primeira delas
12 Discente do curso de mestrado do Programa de Ps-Graduao em Psicologia (Psicologia Social) da Universidade Federal de Minas Gerais. Est vinculado ao Ncleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT e ao Ncleo de Psicologia Poltica, ambos da FAFICH/UFMG.
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exercido o adestramento da vida, por meio d