clonagem: desafio bioetico 1 -...

4
CLONAGEM: DESAFIO BIOETICO 1 PALAVRAS CHAVE: BIOETICA; CLONAGEM TERAPEUTICA; CLONAGEM REPRODU- TIVA A bioetica consiste no dialogo interdisciplinar entre a vida (bios) e os valores morais (ethos) isto e, trata de efectuar jufzos de valor sobre os eventos tecnobiol6gicos do nosso tempo e cons- truir linhas de pensamento reflexive e orienta- doras (ct. Lacadena, 2002: 37). Hoje em dia e muito comum a utilizagao da palavra bioetica quando nos referirmos a avalia- gao etica do progresso da biologia, da medicina e muito especialmente do progresso da genetica, sobretudo quando se trata de aplicar os seus conhecimentos no ser humano, nas plantas, nos animais e nos microorganismos. No campo da genetica, e mais especificamente no campo da manipulayao genetica, a problematica da cion a- gem originou e origina ainda antagonismos de momenta inconciliaveis. Desde 0 nascimento da ovelha Dolly (nasceu a 5 de Julho 1996, tendo side revelada a sua existencia em Fevereiro de 1997) que se iniciou a grande discussao sobre a possibilidade da clo- nagem humana. Desde entao, ovelhas, vacas, cabras, porcos e ratos ja foram clonados, suge- rindo que tecnica de clonagem (denominada trans- ferencia nuclear) utilizada ate agora com exito em mamfferos, poderia estender-se ao ser hu- mano. Como alguem afirmou: «ontem a ovelha, hoje 0 pastor». No dia 7 de Agosto de 2001, reuniram-se em Washington, na Academia Nacional das Cien- cias, um leque de cientistas para discutir a segu- ranya na clonagem humana. Os conhecidos cientistas Severino Antinori e Panos Zavos en- contravam-se entre os proponentes da clonagem 1 Discurso proferido nas IV Jornadas de Biologia Aplicada que decorreram na Universidade do Minho de 11 a 13 de Novembro de 2002 Assistente do 1. 9 trienio na Escola Superior de Enfermagem de Calouste Gulbenkian - Braga

Upload: lamhanh

Post on 27-Jan-2019

228 views

Category:

Documents


1 download

TRANSCRIPT

CLONAGEM: DESAFIO BIOETICO 1

PALAVRAS CHAVE: BIOETICA; CLONAGEM TERAPEUTICA; CLONAGEM REPRODU-TIVA

A bioetica consiste no dialogo interdisciplinarentre a vida (bios) e os valores morais (ethos)isto e, trata de efectuar jufzos de valor sobre oseventos tecnobiol6gicos do nosso tempo e cons-truir linhas de pensamento reflexive e orienta-doras (ct. Lacadena, 2002: 37).

Hoje em dia e muito comum a utilizagao dapalavra bioetica quando nos referirmos a avalia-gao etica do progresso da biologia, da medicinae muito especialmente do progresso da genetica,sobretudo quando se trata de aplicar os seusconhecimentos no ser humano, nas plantas, nosanimais e nos microorganismos. No campo dagenetica, e mais especificamente no campo damanipulayao genetica, a problematica da cion a-gem originou e origina ainda antagonismos demomenta inconciliaveis.

Desde 0 nascimento da ovelha Dolly (nasceua 5 de Julho 1996, tendo side revelada a suaexistencia em Fevereiro de 1997) que se inicioua grande discussao sobre a possibilidade da clo-nagem humana. Desde entao, ovelhas, vacas,cabras, porcos e ratos ja foram clonados, suge-rindo que tecnica de clonagem (denominada trans-ferencia nuclear) utilizada ate agora com exitoem mamfferos, poderia estender-se ao ser hu-mano. Como alguem afirmou: «ontem a ovelha,hoje 0 pastor».

No dia 7 de Agosto de 2001, reuniram-se emWashington, na Academia Nacional das Cien-cias, um leque de cientistas para discutir a segu-ranya na clonagem humana. Os conhecidoscientistas Severino Antinori e Panos Zavos en-contravam-se entre os proponentes da clonagem

1 Discurso proferido nas IV Jornadas de Biologia Aplicada que decorreram na Universidade do Minho de 11 a 13 de Novembrode 2002

• Assistente do 1.9 trienio na Escola Superior de Enfermagem de Calouste Gulbenkian - Braga

humana e 0 cientlsta Ian Wllmut (pal da Dolly) dolade oposto, esgrlmlram argumentos. No final doencontro, um dos Jornalista afirmava que a "con-ferencia teve sucesso no que diz respeito a pro-mOyao da discussao acerca da clonagem huma-na no mundo, mas que os indivfduos anti-clona-gem humana permaneceram na sua posiyao eos pr6-clonagem humana igualmente». Sera queestamos neste abismo incomunicavel? Aparente-mente assim e, pois 0 consenso nao e obtido.Alias, em termos de text os legais, 0 que pode-mos constatar e uma forte oposiyao a clonagem.Assim, a declarayao universal da UNESCO so-bre 0 genoma humane e direitos humanos de 11de Novembro de 1997, afirma no seu artigo II:"Nao se devem permitir as praticas que sejamcontrarias a dignidade humana, como a c1ona-gem com fins de reproduyao de seres humanos».Igualmente, a Convenyao Europeia sobre os Di-reitos do Homem e da Biomedicina, no seu pro-toc% (1998) que entrou, para 0 direito internoportugues em 1 de dezembro de 2001, assinalano artigo 1.Q

: «E proibida qualquer intervenyaocuja finalidade seja a de criar um ser humanegeneticamente identico a outro ser humane vivoou morto». Na acepyao do presente artigo, aexpressao ser humane «geneticamente identico»a outro ser humano, significa um ser humaneque tem em comum com outro 0 mesmo conjuntode genes nucleares.

Tendo mais especificamente em conta a Ie-gislayao interna dos paises europeus, podemosdizer que ha oscilac;:6es entre tendencias maisrestritivas e mais Iiberais. 0 caso mais emblema-tico e 0 do Reino Unido, que aprovou a clonagemde embri6es com fins terapeuticos, sob algumasnormas de controlo rfgidas.

Quais sac entao os argumentos pro e contraa clonagem humana? Na posiyao favoravel aclonagem e variavel a argumentayao. Eis algu-mas das opini6es expressas em sua defesa, talcomo sac referidas por Helena Melo:

- e imperioso respeitar a liberdade de inves-tigayao e criayao cientfficas, constituindo aclonagem um enorme «saito para a frente emdirecyao a uma melhor compreensao do ser vivo»o que implica que se seja prudente no sentido denao se limitar de forma arbitraria a pesquisa, comofonte de progresso;

- representando os recentes avanyos natecnica de clonar uma descoberta de primeiroplano na investigayao fundamental, entende-seque eles podem trazer enormes beneffcios nodominie medico;

- aquela tecnica pode ter importantes apli-cac;:6es de indole diagnostica e terapeutica, 0 que

r sulta claro e atentarmos que a clonagem decelulas humanas constitui um procedimentode rotina no diagn6stico e pesquisa de certasdoenyas, como 0 cancro;

- aumentar a probabilidade de obter umagravidez evolutiva nas mulheres que recorrem afecundayao In vitro (FIV), aumentando, atravesda duplicayao embrionaria, 0 numero de em-bri6es disponiveis para implantayao no utero;

- possibilitar a um casal em que umdos membros seja portador do gene responsavelpor uma doenya hereditaria (por exemplo, ahemofilia), ter descendencia saudavel, produ-zida com base apenas no patrim6nio geneticodo outro;

- aumentar 0 leque de opy6es reprodutivasa disposiyao das pessoas, «permitindo-Ihes cum-prir uma das mais basicas das leis enunciadaspor Darwin ... a preservayao das especies»;

- criar «embri6es de reserva», 0 que possi-bilitaria a cada pessoa ter-se a si pr6pria emreserva, com tecidos gemeos dos seus que sepoderiam enxertar em qualquer momenta depoisde uma simples cultura em laboratorio, caso hou-vesse necessidade;

- povoar 0 mundo com pessoas genetica-mente sup riores, produzindo centenas de «ca-pias» de s r s especial mente dotados;

- produzir clones para dar ou vender;- ressuscitar os mortos, clonando-os a partir

de celulas colhidas em vida e mantidas em cul-tura. (Malo, 2000: 135-138).

Vejamos algumas das posiy6es desfavoraveisa clonagem humana:

- A lib rdade de investigayao cientffica temlimites, nao devendo prevalecer sobre a digni-dade e os direito fundamentais da pessoa hu-mana; \

- nao se conhece qualquer objectivo legiti-mo que justifique 0 recurso a clonagem em sereshumanos;

- nada se sabe sobre a doenya e a saudedos clones, dado ser extremamente diferente aforma como se da a fusao dos nucleos (por es-tfmulo electrico) do processo natural de fertili-zayao. Embora tudo leve a crer que deverao apre-sentar caracteristicas geneticas identicas as doorganismo clonado, pode haver surpresas queapenas a analise sistematica de grandes seriespodera revelar;

- um erro de laborat6rio podera determinarefeitos biologicos desconhecidos, que poderaoconduzir ao nascimento de clones apresentandoum «defeito de fabrico» cujas consequencias se-rao imprevisiveis (Melo, 2000: 138-139).

o debate sobre esta materia e acerrimo mas,simultaneamente, infrutffero. Entao, que pode-remos vislumbrar no dominio etico? Irei apre-sentar uma visao pessoal que e comungada pormuitos, embora nao sendo de modo algum con-sensual.

De qualquer modo, e imprescindivel, antesde efectuar uma avaliagao etica nesta area,proceder a uma diferenciagao entre clonagemreprodutiva e clonagem nao reprodutiva ou tera-peutica.

A clonagem reprodutiva refere-se a um con-junto de tecnicas que e utilizada para obter indi-viduos geneticamente identicos, envolvendoa implantagao de um embriao no utero com 0

objectivo de produzir um ser humano.No que respeita a clonagem nao reprodutiva,

e a aplicagao da tecnologia da clonagem em cul-turas celulares ou em embri6es na fase inicial dedesenvolvimento, sem intengao de produzir umindividuo adulto, tratando-se apenas de estabe-lecer culturas de tecidos e, se possivel de or-gaos, a partir das celulas estaminais do embriao.

Numa avaliagao etica acerca da clonagemreprodutiva e necessario ter em conta, alguns dosseguintes parametros:

- 0 ser humane e um fim e nao um meio.- 0 ser humane tem direito a nao ser pro-

gramado geneticamente, a ser resultado do aca-so genetico.

- 0 ser humane caracteriza-se pela sua un i-cidade; ser geneticamente unico e irrepetivel(cf. Lacadena, 2002: 227).

Neste sentido, a clonagem de seres huma-nos, na medida em que visa a concepgao deuma crianga que podera ser encarada como umproduto fabricado a medida dos nossos ideais,pelo menos corporais, e, nesta linha de pensa-mento que defendo, ofensiva da dignidadeda pessoa humana. A dignidade imp6e que cad apessoa seja portadora de um valor absoluto queimpede que possa ser tratada como meio, instru-mentalizada em ordem a qualquer fim, por muitoatractiva que a investigagao se afigure. Tambemaqui, atenta-se contra 0 direito de cada serhumano ser ele pr6prio e irrepetivel. Simultanea-mente, e recorrendo agora ao principio da razoa-bilidade, sou desfavoravel a clonagem, uma vezque se desconhecem as suas consequenciaslordias. Nesta perspectiva, os eventuais «errosgeneticos» que possam ocorrer serao transmiti-dos as gerag6es vindouras, 0 que pre-determinacaracteristicas as gerag6es futuras que, naoderam 0 seu consentimento nesse sentido.E deste modo, no meu entender, que a clonagem

reprodutiva e desprovida de interesse e justifica-gao.

No que diz respeito a clonagem terapeutica,I a avaliagao etica e diferente. Neste caso, nao

esta em causa 0 primado de que todo 0

ser humane possui uma dignidade pr6pria queimpede a sua utilizagao com outra finalidade quenao seja a promogao da sua realizagao pessoal.Esta em causa, sim, a possibilidade de utilizar-sea tecnologia da clonagem com outro objectivoque nao a produgao de seres humanos genetica-mente semelhantes, isto e, para 0 alfvio do sofri-mento atraves do tratamento de doengas gravesque conduzem a morte. A utilizagao da clonagemterapeutica podera estar indicada no tratamentode variadas situag6es, como as que refiro a titulode exemplo:

- Cobrir superficies de doentes queimadas;- Transplantar celulas estaminais hemato-

poieticas na leucemia;- Criar celulas neuronais na doenga de Par-

kinson ou huntington;- Criar celulas pancreaticas na Diabetes

Mellitus, entre outros.A questao que paralelamente causa alguma

polemica, e a utilizagao de celulas embrionariasestaminais para a clonagem terapeutica. Nesteambito, ha que reflectir sobre estatuto do em-briao humano. Tem au nao tem 0 embriao amesma dignidade da pessoa humana? Mereceou nao a mesma protecgao e respeito?

Para alguns, 0 embriao participa ja da mes-ma dignidade da pessoa humana. Ele contem nasua dinamica intrinseca 0 projecto da pessoa hu-mana, logo tem um valor humane intrinseco e,desde logo, uma investigagao sabre embri6esque nao redunde em seu favor e um atentado adignidade humana.

Para outros, 0 embriao s6 sera merecedor dealguma respeitabilidade ap6s 0 14.Q dia de de-senvolvimento, que constitui, na embriogenese,o aparecimento do sulco primitivo que indicia aindividualidade. Ate entao, e um aglomerado ce-lular que podera gerar mais do que um individuo,nao se Ihe devendo qualquer respeito suplemen-tar. Esta e a linha de pensamento mais anglo--sax6nica.

Perante esta situagao, poderemos ou nao uti-lizar os embri6es excedentarios resultantes dastecnicas de reprodugao medicamente assistida?

Numa visao mais pragmatica, estes embri6esestao condenados a morte e, nao sendo utiliza-dos para a Reprodugao Medicamente Assistida,nao violara a dignidade, a sua utilizagao para aclonagem celular terapeutica. Entre dar-Ihes a

morte e envolve-Ios numa investigagao ao ser-vigo de um bem maior necessariamente altruista,creio que, respeitando-se certas salvaguardaslegais, poderao ser utilizados na investigagao.

Em jeito de conclusao, afirmo a necessidadeda reflexao urgente sobre a experimentagao ge-

Oiario da Republica I serie A, n.Q 2 de 3' Janeiro 2001.lACAOENA, Juan-Ramon (2002) - Genetica Y Bioetica.

Madrid: Universidad Pontificia Comillas/Editorial Oesclee deBrouwer.

netica no ser humano assente numa etica deresponsabilidade especial mente dirigida as proxi-mas geragoes. 0 futuro, diz-se. esta nas maosde Deus mas antes dessa intervengao de Deus,e bom que cuidemos do modo como nos utiliza-remos as nossas propria maos.

MElO, Helena Pereira de (2000) - Clonagem e Oireito.In AA.VV. Clonagem, 0 risco e 0 desafio. Porto: GIB/Univer-sidade Catolica Portuguesa, pp. 127-156.

SilVA, Paula Martinho da (1997) - Conveny8.o dos Oi-reitos do Homem e da Biomedicina - Anotada. Lisboa: Edi-yoes Cosmo.