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ROBERTO ACÍZELO DE SOUZA Sobre a poesia agudeza de Poesia de Agudeza em Portugal; Estudo Retórico da Poesia Lírica e Satírica Escrita em Portugal no Século XVII, de Maria do Socorro Fernandes de Carvalho, São Paulo, Humanitas/Fapesp/Edusp, 2007, 430 p. ROBERTO ACÍZELO DE SOUZA é professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. poesia produzida em Portugal durante o século XVII há muito tempo se tornou praticamente inacessível. E isso não só pelas dificuldades de leitura dos tex- tos, que se tornaram bastante estranhos para as concepções que norteiam nosso modo de ler poesia pelo menos desde o século XIX. Soma-se a isso a carência de fontes materiais dispo- níveis, quer por sua permanência em versões manuscritas conservadas em bibliotecas portuguesas, quer pela raridade bibliográfica em que se transformaram as duas grandes coletâneas que recolheram a produção poética seiscentista já no século XVIII: A Fênix Renascida (1716-28, com 2 a ed. em 1746) e o Postilhão de Apolo (1761-62).

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Poesia da Agudeza

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  • ROBERTO ACZELO DE SOUZA

    Sobre apoesiaagudeza

    de

    Poesia de Agudeza em Portugal; Estudo Retrico da Poesia Lrica e Satrica Escrita em Portugal no Sculo XVII, de Maria do Socorro Fernandes de Carvalho, So Paulo, Humanitas/Fapesp/Edusp, 2007, 430 p.

    ROBERTO ACZELO DE SOUZA professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro.

    poesia produzida em Portugal

    durante o sculo XVII h muito

    tempo se tornou praticamente

    inacessvel. E isso no s pelas

    dificuldades de leitura dos tex-

    tos, que se tornaram bastante

    estranhos para as concepes que

    norteiam nosso modo de ler poesia pelo menos desde o sculo

    XIX. Soma-se a isso a carncia de fontes materiais dispo-

    nveis, quer por sua permanncia em verses manuscritas

    conservadas em bibliotecas portuguesas, quer pela raridade

    bibliogrfica em que se transformaram as duas grandes

    coletneas que recolheram a produo potica seiscentista

    j no sculo XVIII: A Fnix Renascida (1716-28, com 2a

    ed. em 1746) e o Postilho de Apolo (1761-62).

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  • REVISTA USP, So Paulo, n.78, p. 157-159, junho/agosto 2008158

    Em anos mais recentes, no entanto, esse quadro apresenta bem-vindos sinto-mas de reverso. No plano de subsdios conceituais que nos habilitem a consumir e apreciar devidamente essas composies, hoje podemos contar com as contribuies importantes e iluminadoras de Joo Adolfo Hansen, Adma Muhana, Alcir Pcora, Jos Amrico Miranda. Quanto ao acesso material aos textos, desde a publicao da antologia Poesia Seiscentista (So Paulo, Hedra, 2002), constituda por seleo criteriosa e represen-

    tativa da produo reunida nas antologias seiscentistas mencionadas, se no est ele assegurado plenamente, tornou-se possvel sem dvida, pela extenso da amostra contida na publicao citada, intensidade de contato suficiente para que possamos entrar no clima desse universo discursivo.

    Poesia de Agudeza em Portugal vem acrescentar-se a esse panorama de valoriza-o das letras do sculo XVII pela reflexo universitria contempornea no Brasil. Resultante de tese apresentada em 2004

    Desenho de

    folha de rosto

    de cdice

    setecentista

    Reproduo

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  • REVISTA USP, So Paulo, n.78, p. 157-159, junho/agosto 2008 159

    Se os dois primeiros captulos apre-sentam dominncia terica, nos trs se-guintes, embora sempre num andamento argumentativo em que a fundamentao conceitual acompanha de perto as anlises pontuais empreendidas, predomina o matiz analtico. O terceiro se dedica ao estudo do gnero lrico, caracterizado pelo chamado estilo mediano. O quarto, por seu turno, concentra-se na poesia dita ao divino, pondo em relevo a idia de letras como instrumento de edificao e espiritualidade, prpria de concepes pr-iluministas e portanto pr-estticas de arte. O quinto, por fim, ocupa-se com a stira, o que torna oportuno a descrio e a problematizao do conceito de decoro, uma das idias-chave da codificao retrica ento em vigor. Nesses trs captulos, em que, como dissemos, o registro mais abstrato da teoria cede vez ateno pontual e concretizante a casos particulares, diversos poemas so subme-tidos a habilidosas anlises, cujo principal procedimento talvez seja o cuidado de, com freqncia, colocar-se em referncia rec-proca observaes relativas a aspectos dos poemas tanto formais quanto conceituais e artigos do cdigo potico presentes nos tratados retrico-poticos da poca.

    Essa combinao bem-sucedida entre fundamentos tericos e operao analtica de textos bem-sucedida medida que tais elementos, em vez de mecanicamente justapostos, acham-se fortemente integra-dos, num lao de dependncia mtua certamente um dos pontos altos do ensaio. Samos de sua leitura, assim, com a recom-pensadora sensao de que aquela poesia dos nossos ancestrais seiscentistas, que a nossa primeira educao literria apresen-tara como estranha, hermtica e de mau gosto assim que as histrias lite-rrias romnticas despacham a poesia dita barroca , afinal tem a sua legibilidade e dispe dos seus encantos.

    (Um ltimo comentrio faamos entre parnteses, para destacar a bela e charmosa soluo grfica da capa do livro, inspirada na apresentao tpica dos volumes do tempo estudado, correspondente, como se sabe, infncia da imprensa.)

    no programa de ps-graduao do Instituto de Estudos da Linguagem da Universida-de Estadual de Campinas, a obra no faz concesses a divulgao, destinando-se a leitores especializados. Isso no significa, absolutamente, que se trata de texto abstruso e ilegvel, como certa maledicncia antiaca-dmica e em geral jornalstica costuma (des)qualificar os trabalhos universitrios. Em vez de hermetismos e pedantismos, segundo o esteretipo das teses, temos uma linguagem que, sem perder-se em complica-es, salvaguarda, contudo, a complexidade do seu objeto, conduzindo com elegncia de estilo as demonstraes tcnicas que se prope. Como, de resto, prprio s teses de qualidade, caso sem dvida da que ora nos ocupa.

    O ensaio se acha segmentado em sete partes: uma introduo, as concluses e cinco captulos centrais.

    Os dois primeiros captulos se dedicam sobretudo exposio dos fundamentos conceituais para uma compreenso da poe-sia do sculo XVII. O argumento bsico que o sentido geral dos discursos poticos seiscentistas se tornou crescentemente obs-curo e portanto criticamente desvalorizado a partir da sua rejeio rcade-iluminista na segunda metade do sculo XVIII, atitude reforada com a consolidao da moderni-dade literria promovida pelo romantismo. A chave, pois, para um acolhimento com-preensivo da produo potica dos anos de 1600 pressupe familiarizao com os cdigos que a informam. Da a necessidade de retorno aos repertrios crtico-normati-vos que nortearam essa poesia, constitudos sobretudo pelos tratados antigos de retrica e potica e sua descendncia na tradio cultural do Ocidente at a centria objeto do estudo.

    E desse ambiente de noes e conceitos do mbito retrico-potico o ensaio destaca a metfora, tema central do captulo 1, bem como, no captulo 2, a agudeza, atualizao de virtualidades da metfora potenciadas muito especialmente na cultura ibrica do sculo XVII, a ponto de transformar-se na pedra de toque da arte potica de ento no mbito luso-castelhano.

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