133132958 garcia roza palavra e verdade

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    PALAVRA E VERDADEna filosofia antiga e na psicanliseIIQ!Uve um tedlpo, na Grcia arcaica, em que as palavrasf i U I I l parte do mundo das coilas e dos acontecimentos. AIJI1[1Vra, l l i D U I I D C ~ n t e com as condies de sua enunciao,no

    ap;uAD pelo seu sentido manifesto, mas como signo a serC i f r ~ l d O para que um outro sentido, oculto e misterioso,emergir, num interminvel de decifraes. Essa erado aedo, poeta-profeta da Grcia arcaica, palavrap a llltheia, da verdade. Passados trs mil anos,u ~ o n c o n t r a r a psicanlise ainda Aprocura de sua altheiaela, a verdade fundamental a verdadedo desejo. No

    ~ f a t o s do nosso cotidiano no nos remetem direta* ta,nlo nos oferecem essa .verdade j pronta, mas porque distorcida. A verdade um enigma a sero a psicanlise constitui-se como teoria e tcnicaTEXTOS DEERUDIO & PRAZER

    umafdulher~ : I O i e Loraux

    '.:i 'J;ltftlkelao de S6cratea.Q&Ucte Mou6

    AVIda na Gr4c:la ClssicaJean-Jacques MaffreAs "Teses sobre Feuerbach"deKarlMarxOeorges LabicaHeael e a ArteOrardBrasPalavra eVerdadena ftlosofta antigae na pslcan611seLuiz Alfredo Garcia-Roza

    Jorge Zahar Editor

    PALAVRAE

    VERDADEna filosofia antiga ena psicanlise

    Luiz Alfredo Garcia-Roza

    T EXTOS DEERUDIO & PRAZERJorge .Zahar Editor

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    -... ..-- _

    T E X T O S DEERUDIO &. PRAZERA Morte dos Deuses,

    Michel HenryA Morte nos l h ~ .Jean-Pierre VernantDioniso a Cu Aberto,Mareei Detienne

    Maneiras Trgicas de Mataruma Mulher,Nicole LorauxA Vida na Grcia Clssica,Jean..Jacques Maffre

    O Processo de Scrates,Claude Moss

    As Teses sobre Feuerbachde Karl Marx,Georges LabicaHegel e a Arte,GrardBras

    Palavra e Verdadena filosofia antiga e na psicanlise,Luiz Alfredo Garcia-RozaO :zaratustra de Nietzsche,

    Pierre Hber-Suffrin

    L. A. Garcia-Roza

    PALAVRA EVERDADEna filosofia antigae na psicanlise

    Jorge ZaharEditorRio de Janeiro

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    Copyrigbt@ 1990,LuizAJ.fmlo GarciRazaTodos os direitos reservados.A reproduo no-autorizada desta publicao, no todoou em parte, constitui violao do copyrigbt. (Lei 5.988)

    1990I>ireitos para esta ediocontratados comJorge Zahar Editor Uda.rua Mxico 31 sobreloja20031 Rio de J1111eiro,RJlmpmll!o: Tav.-es e Tristio Ltda.ISBN: 85-7110-154-X (JZE, RJ)

    ..'

    1' I

    Sumrio

    7 IntroduoAltheia 7A verdade fi losfica 12A busca da verdade 17

    25 A palavra do aedo33 A dessacralizao da palavra e da memria39 Pannnides: a verdade gosta de se esconder47 Herclito e a escuta do Logos55 Os sofistas e a palavra persuasiva65 Plato e a ordem do discurso77 Aristteles e a refutao sofstica95 O lkton dos esticos

    107 A funo significante da palavra:Lacan e Santo Agostinho119 Notas123 Sobre o autor

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    Ao grupo das teras-feiras

    I'II

    Introduo

    AltheiaHouve wn tempo, na Grcia arcaica, em que aspalavras faziam parte do mundo das coisas e dosacontecimentos. Ela era voz e gesto, dia e noite,vero e inverno. Signos mundanos e signos sagrados remetiam o indivduo a wn outro tempo e awn outro lugar: ao tempo dos comeos e ao mundo dos deuses e dos heris. A palavra, juntamentecom as condies de sua enunciao, no valiaapenas pelo seu sentido manifesto, mas comosigno a ser decifrado para que um outro sentido,oculto e misterioso, pudesse emergir, num interminvel de decifraes. Essa era a palavra doaedo, poeta-profeta da Grcia arcaica, palavraportadora da altheia, da verdade.

    Passados trs mil anos, vamos encontrar apsicanlise ainda procura de sua altheia e, paraela, a verdade fundamental a verdade do desejo.No entanto, os fatos do nosso cotidiano no nosremetem diretamente a ela, no nos oferecem essa

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    I. II!iII

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    verdade j pronta, mas dissimulada porque distorcida. A v e r d a ~ _ : u . m . . enigma_ a. ser decifrado.e apsicanlise constitui::se._como .teoria_ tcnica dodeciframento.

    O inconsciente no o que se oferece benevolamente escuta do psicanalista, mas o queteima em se ocultar e que s se oferece distorcidamente, equivocamente, dissimulado ns sonhos, nos sintomas e nas lacun's do nossodiscurso consciente. O psicanalista aquele quesabe que o relato do paciente um enigma a serdecifrado, e sabe tambm que atravs desse enigma uma verdade se insinua. No enigma. verdade~ e engano so complementares e no x c l u d . ~ n t e s .

    Os signos que compem esse enigma soportadores de uma intensidade anloga das pegadas que Robinson Cruso descobriu na praia desua ilha deserta. Enquanto signos, no nos remetem apenas a uma outra cojs, ~ Jt UllJ . ! l ~ r . o.s.Y.hili-'No entanto, diferena do romance deDaniel Defoe, nosso Sexta-ferra habita nossa prpria interioridade, ou melhor, somos simultaneamente Rob inson Cruso e Sexta-feira, sendo queeste ltimo teima em se esconder e, quando aparece, coloca em questo e deita por terra a onipotncia de Robinson. O enigma da psicanlise -

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    ...ou um dos enigmas da psicanlise - reside nessefato desconcertante: o de que somos dois sujeitos,um dos quais nos inteiramente desconhecido.

    Apossamo-nos dos signos com a mesmaviolncia com que elesse apossamde ns. O signono espera docilmente pela nossa inteligncia,porque inteligncia e docilidade no habitam omesmoespao. Noh inteligncia sem violncia,assim como a verdade no o lugar do gozo.

    O pensadorno aquele que colhe a verdade,j pronta, no mundo. A prpria imagem do filsofo como amante da sabedoria nada tem a ver coma de um ser de boa vontade que, tranqilo, gozada bem-aventurana da verdade. Como todoamante, ele um inquieto, um ciumento pronto adecifrar as palavras da amada, a hesitao de suavoz ou a "insignificante" troca de palavras quedenuncia o oculto. O amor no nos retira da rodado tempo para nos remeter a um lugar nirvnicode plenitude e gozo, ele nos mantm no interminvel das repeties. O amor pela verdade , pois,desconfiado e inquiridor, sempre pronto a identificar os signos que denunciam a traio do dado.A condio fundamental para o amante e para opensador (o que vem a dar no mesmo) afastar-seda pasmaceira da boa vontadedo dar e do receber.

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    A verdade jamajs dada. A boa vontade, queacolhe o dado enquanto tal, abriga-sena quietudee na miopia da certeza. Q. a d Q . . n . Q ~ t Q . V . . Q { t ainteliancia. p l ~ ~ = - ~ LNossa.suposio inicial ser a de que a buscada verdade no uma atitude natural ao homemcomum, entendendo-se po r "homem comum.,aquele que guiado pelo bomsenso, mas sim que\ ela implica uma violncia ao senso comum namedida em que este se apega evidncia do dadoimediato. Como nos diz Heidegger, "O sensocomum possui um olhar e uma escuta prprios,resistentes a tudo aquilo que o coloca em questo'.2 Para o senso comum, a verdade designa overdadeiro e o verdadeiro o que se apresentacomo real evidncia sensvel. A verdade surgeento num duplo registro: no e ~ i s t r o da coisa, namedida em que esta se apresenta como ..verdadeira", como no-ilusria, e no registro da lingua-gem, enquanto enunciao adequada coisa.Trata-se aqui da verdade emprica do homemcomum em seu cotidiano. Essa verdade no buscada, ela se oferece docilmente ao nosso olhare nossa escuta sem nos violentar. A evidncia ,neste caso, cert eza objetivada.Procurar a verdade suporque ela no estejadada em nossa experincia cotidiana, mas para

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    I

    .,

    que esta suposiopossa ser feita .necessrioqueno seio mesmo dessa experincia algo insinue queno estamos de posse da verdade. Esse algo daordem do equvoco, do erro, da mentira, da dissimula. ..por.tanto na dimenso do erro que a verdade faz sua emergncia, ou se quisennos, ah i ~ r i a da verdade coextensa hjstria do erro.

    - A pr-histria da verdade - entendida agorano mais como certeza objetivada, mas comoverdade ftlosfica - encontrmo-la ao rastrearmos a noo de altheia na Grcia arcaica. Mas -com Parmnides, na passagem do sculo VI parao s c ~ l o V antes de Cristo, que a altheia vai sercolocada como solo a partir do qual a verdadefilosfica far sua emergncia.

    Em Parmnides, a altheia no ainda 'a verdade do 'filsofo, ou, pelo menos, no aindapensada tal como ser a partir de Plato. No ainda da verdade filosfica que Parmnides nosfala em seu poema, mas do desvelamento, dacondio atravs da qual o sere o pensar faro suaapresentao recproca. o que nos dz Heideggerem sua leitura de Parmnides: ..A questo daa l t h ~ l . a . a questo do desje.lm_en_tQ__QlJlo tal,_no a questo da verdade, isto , no a verdadeentendida como adequao entre o pensamento__e

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    a coisa, mas como caminho pelo qual sere pensarpodem dar-se. ,A altheia , pois, essa abertura pata o ser'e

    o pensar, e esse desvelamento-abertura no se dpelo caminho da opinio dos mortais, no se atm evidncia fornecida pela experincia certezamanifesta. A altheia ,de Parmnides 'no umaevidncia, mas uma presena que se vela, umdesvelamentodo qual fpz parte um ve amento, umocultar-se. No h alltheia sem lethe, sendo queo prprio fato do termo a-ltheia ser privativo, ,por si s, indicativo desse jogo do mostrar-se e doocultar-se.

    A verdade filosficaApesar da filosofta ter-se erigido pelos aminhosda altheia, esta permanece impensada desde Plato e Aristteles at os nossos dias. Mais de vintesculos se passaram at sua retomada por Heidegger. E muita coisa se passou nesse meio temp,que todo o tempo da fllosofia.

    Num artigo que se tomou objeto de inmerasanlises, Heidegger pergunta sobre'a essnci$l da12

    ' .verdade.4 Seu ponto de partida o conceito corrente, aquele que chegou at ns originrio dafilosofta medieval: V ~ r i t a s est adaequatio rei etintellectzis (Verdade a adequao do intelecto oisa . Trata se de definir a verdade em termos deconcordncia: concordncia entre uma coisa e oque dela previamente se presume, e concordnciaentre o ennciado e a coisa.

    Mas o que funda a possibilidade da concordncia? Quand em presena de duas moedas decinco marcos - o exemplo de Heidegger -,dizemos que h concordncia entre elas, e essaconcordncia estabelecida pela identidade deseu aspecto ( quando dizemos de uma delas ..estamoeda redonda", trata-se de outro tipo de concordncia. No primeiro caso, a concordnCia estabelecida entre duas coisas, no segundo caso aconcordncia n t r e ~ enunciao e uma coisa.Se as dua lprimeiras podem ser comparadas porque so da mesma natureza, como estabelecer a conveninciaentre uma coisa e uma enunciao,j qtie a coisa (moeda) material e a enunciao material? Como pode uma enunciao, mantendo sua essncia , adequar-se a algo diferente, a umacoisa?

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    Poderamos responder que o se trata aquide estabelecer a igualdade entre duas coisas desiguais, ma s da natureza e da constncia da relao entre a enunciao e a coisa (essa foi aproposta de Aristteles), algo anlogo concor-dncia entre uma figura gomtrica e a equaQoalgbrica que a expressa. Heidegger nos adverte,porm, que enquanto a t'atureza dessa relaopermanecer indetenninada e infundada, no .hcomo estabelecennos a ~ b i l i d a d e intrnseca daconcordncia . .A enunciao sobre a moeda se relaciona comesta coisa enquanto a apresenta e dizdacoisa apresentada o que ela sob o ponto de vistaprincipal. A enunciao apresentativa exprime, na-

    ~ u i l ~ q u e ~ da coisa ~ n ~ d a , aquilo ela ,ISto e, expnme-a tal qual e, assun como '"._Apresentar significa, aqui, o fato de deixar.

    surgir a coisa diante de ns enquanto objeto. Essrelaose faz sob a forma de um eQcontro, no quala coisa que se ope a ns deve, ao mesmo tempo,manter aberta a possibilidade do encontro e p e r ~manecer como coisa ein si mesma, na sua estabilidade. no mbito de uma abertura para a coisaque se funda a enunciao -apresentativa; poressa abertura que a coisa se totrui suscetvel.de se rexpressa. A e ~ ~ n c i a o _n o ~ } > o i s , rt;pre- '

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    se.JJtao,mas expre&Wo. Assim sendo, a verdadeno se d exclusivamente na proposio, mas napossibilidade ~ a abertura que articula a coisa ea palavra.

    De onde, ento, a enunciao retira suaorientao para o objeto de modo a express-loverdadeiramente? ueidegger responde que essaabertura que articula a enunciao e o objetofunda-se na liberdade ..A essncia da verdade aliberdade .. Isso nos d vaga impresso de ter-. mos substitudoummistrio (a verdade) poroutro(a liberdade), almde deslocarmos a verdade parao mbito da subjetividade. No assim, contudo,que pensa Heidegger.

    A liberdade diz respeito a essa abertura paraa coisa, revela-se como possibilidade de deixarse r o ente, sendo que esse deixar no significaindiferenaou omisso, mas entrega ..Deixar-sersignifica o entregat-se ao ente( . entregar-se aoaberto e sua abertura, na qual todo o ente entrae permanece, e que cada ente traz, porassim dizer,consigo ..6 Esse entregar-se ao ente no significa,porm, perder-se nele, mas colocar-se em: facedele como ta altheia, o desvelado (e tambm overdadeiro). A liberdade portanto uma exposio ao enle na medida em ele possui o carter

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    de desvelado. A verdade no diz respeito a uma proposio qu e um sujeito enuncia sobre wn oh -jeto, mas sim a esse desvelamento (altheia) do .ente graas ao qual se realiza uma abertura. essaabertura que funda o homem enquanto tal. .

    Mas se a verdade liberdade, o homem o d e ~nessa abertura para o ente, deix-lo se r naquiloque ele ou deix-lo ser rJquilo que ele no .Pode encobri-lo ou dissimul-lo.

    , .O velamento, a dissimulao, pensado apartir da verdade entendida desvelamento.Assim sendo, o no-desvelamento (a no-verdade) pertence essncia da verdade. De fato, ovelamento mais antigo do que toda revelao doente, pois a abertura para a coisa a n t ~ , desdeo incio, uma relao com a dissimulao.

    Esse o mistrio presente essencialrhente aohomem. Mais ainda, o mistrio no apenas dizrespeito ao que velado, mas tambm e sobretudoao fato de que a prpri a dissimulao velada. Oque primariamente dissimulado a prpriadissimulao. A verdade , originalmente, mistrio, dissimulao da dissimulao.O homem voltado para o cotidiano afasta-se,

    ' Iporm, desse mistrio, desvia-se efll relao ,altheia.o que ieidegger chama de errncia da16

    no-verdade, isto , a verdade enquanto no-experimentada e inexplorada. Assim, o homem noerra ocasionalmente, no cai na errncia, ele seencontra sempre na ettncia, dentro dela que elese move.Se o homem se move na errnciada no-verdade, se o mistrio p r e s e n ~ e essencialmente aohomem no diz respeito ao que velado, dissimulado, mas prpria dissimulao, se o qu e .originalmente dissimulado a prpria dissimula-o, o que move o homemna procura da verdade?E mais ainda, quem procura a verdade?

    A busca da verdadeQuem primeiro se lana busca da verdade .ofilsofo, e o faz movidopor uma inquietude frente realidade. Tomado pela perplexidade resultantedos mltiplos dizeres, o llsofo platnico e pergQD.ta pela prpria essncia do dizer e pela possibilidadedesse dizer nos falar sobre o ser. Constri,ento, seu prprio discurso, discurso esse que po rser autol egitimado apresentar-se-,-da pordiante,como uizde todosos discursos,7 sendoque o quelhe confere legitimide a estrita obedincia ao

    p r i n c . _ ~ P . _ i ~ ...OOQ=contradio. A ~ de e n ~ o ,17

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    presenciamos o surgimento da ty.etafsica: a uni-versalidade do discurso tomada como indcio dewna verdade sobreo ser. Os sculos que se seguiram, e que cobrem o percurso filosficode Platoa Hegel, foram ocupados com essa busca da verdade, co m essa tentativa de construo do discurso, da exata correspondncia mtre Q ~ Oe o...scr.

    Um criticodo pensamento filosfico poderiaargumentar que a verdade que o filsofo procura uma verdade que ele previamente colocou l. Afilosofia seria como a cartola do mgico: dela sretiramos o coelho que previamente colocamosali. O filsofo responderia que a objeo especiosa, posto que o discurso filosfico no nosoferece uma resposta j pronta que estaria espera do fllsofo para retir-la da cartola e exibi-la aopblicoespectador, mas que ele se constitui comoum procedimento no caminho da verdade e nocomo uma exibio circense. Trata-se, emftloso-

    f ~ de eliminar o erro e o equvoco pelo caminho~ no-contradio, mas essa eliminao, pormais que se faa, levar-nos- apenas a verdadesparciais, embora seu alvo seja a verdade plena.

    Prximo procura empreendida pelo fiJso-fo, temos a procura do religioso. Prximo, porque

    '

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    ambos admitem uma e r d a d e ~ b s o l u t a que orientaa procura, mesmo que essa verdade no seja ja -rois atingida. Em_Santo Agostinho, por exemplo,a b ~ c a da verdade nos encam.inhar no em direo s coisas ou s palavras, mas em direo nossa prpria interioridade. A verdade, diz Agostinho, ou bem a possumos ou no podemos ad-quiri-l. Assim, quando compreendemos o que seexprime pelos signos da linguagem, isto se dgraas a algo que exterior aos signos e tambmexterior aos objetos: a nossa interioridade. graas presena do Absoluto em ns que as palavrase ~ coisas ganham sentido. A palavra, por si s,no portadora de verdade, ..com as palavras no

    d - 1 8 Ipren emos senao pa avras , e as servem paraincitar-nos na busca da verdade, mas esta s seratingida por uma ilwninao interior. O caminhopara a v ~ t d a d . e o ..caminhu__paraJ)__ellS. e esse

    , m r l n h Q ~ ~ p e l i n t e . t i o r i ~ g ~ lo u j e i t o nopela exterioridade das palavras e das coisas.A literatura ns fornece o terceiro tipo de

    buscador da verdade: o amante. Gilles Deleuze9nos presenteia com uma anlise extremamenteoriginal de uma das mais belas buscas da verdadeempreendidas no campo da literatura: a obra deProust. A la recherche du temps perdu de fato

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    um a buSca da verdade, escreve Deleuze, e o buscador da verdade o amante ciumento que decifraos signos da amada, que percebe um a dissimulao, um ocultamento, wna mentira nos seus ges-'tos, nas suas palavras, nos seus silncios.

    A verdade no ~ l t a da apao de_ rilmtodo.mas o efeito de encontrosqu e se do aoa ~ . Averdade .qual chegamos pela aplicaorigorosa do mtodo uma verdade puramentelgica, abstrata, em tudo diferente daquela a quechega o amante ao decifraros signos da amada. Averdadeno obra da inteligncia pura,na medidaque esta ltima uma atividade voluntria operando segundo uma boa vontade do pensador, massim o resultado de uma violncia feita a essa boavontade. No chegamos verdade atravs de umasrie de doces encadeamentos lgicos,mas somoscompelidos a busc-la, premidos po r uma neces- 'sidade que nada tem a ver com a necessidade da lgica filosfico-cientfica.

    A mulheramada muitomais rica em signosdo que o mais complexo tratado cientficq. O .cientista poder argumentar que estamos falando, . aqui, de signos mundanos e no dos signps dacincia. Com o que Proust concordaria,j queparaele so precisamente os signos mundanos os que

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    nos provocam, nos atropelam e n

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    com efeito, que' o discurso do sujeito se desenvolve nonnalmente - isto Freud - na ordem doerro,dodesconhecimento, e mesmoda e n e g a o ~( .. ) Mas - eis o novo - durante a anlise, nesSediscurso que se desenvolve no registro do erri?,algo acontece por onde a verdade faz irrupo, eno a contradio ...13

    Aquilo que Freud nos mostrou desde os seusprimekos escritos que na prtica psicanaltica averdade se insinua .no a partir do carter fonnalizado do discurso, mas precisamente quando odiscurso falha, quando atropelado e violentadopor um outro discurso que provoca, no primeiro,lacunas, os no to adequadamente denominadosatos falhos ..Nossos atos falhados, escreve La-~ ..so atos que so bem sucedidos, nossaspalavras que tropeam so palavras que confessam. Eles, elas, revelam uma verdade de de- trs ..l4

    Se a inteligncia cientfica percorre os caminhos da no-contradio, o inconsciente, se-gundo Freud, no obedece ao mesmo princpi.Isto no quer dizer que ele seja ininteligvel,que seu princpio de inteligibilidade deve se r procurado em outro lugar que no o da coerncia dodiscurso manifesto.aqui queFreud vai inscrever

    22

    /

    a condensao e o deslocamento, a denegao, orecalcamento, como funes que nos pennitirodecifrar signos que, como os de Proust, so tambm mundanos.

    ....

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    .A palavra do aedof

    Muito tempo antes do homem ocidental inventaro conhecimento, de qpor verdadeiro e o falso nointeriordo discurso, a cultura grega j era atravessada pela noo de altheia: a verdade, para opoeta da Grcia arcaica. pr-histria da verdadefilosfica corresponde uma verdade potica quefoi o solo a partir do qual ou contra o wal seorganizou o pensamento filosfico grego.

    Essas duas verdades nos remetem a registrosIbastante diversos e a atitudes tambm diversas porparte de seus porta-vozes. Enquanto o conhecimento filosfico nos arranca do plano dos acon

    t ~ i m e n t o s e nos remete ao plano das idias:dhlversais, a palavra potica nos envia aos acon

    t ~ e n t o s originais, aos gestos dos deuses e dos~ , a o tempo mtico dos comeos. Assim tam-1Jiin os porta-vozes destes dois tipos de verdadel lo marcados por atitudes diversas. Enquanto o~ o f o cede lugar ao enunciado, pretendendoCOtn isto que o ~ s c u r s o filosfico adquira total

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    autonomia em relao ao enunciador, o poetaapresenta-se como o inspirado, como portador deum dom divino que o torna um indivduo excepcional. Este o caso do aedo da Grcia arcaica.

    Cornford16 descreve a unio, nos temposarcaicos, do poeta, do profeta e do sbio numapessoa. Esses indivduos excepcionais, personalidades mnticas ou inspiradas, seriam os porta-vozes dos deuses. A diferena entre o poeta e oprofeta no dizia respeito s caractersticas dessesindivduos enquanto tais, mas aos deuses em relao aos quais eles funcionavam comomediuns. Seo adivinho deveria responder s questes referentes ao futuro enquanto o poeta voltava-se para otempo primordial, tal fato era devido a que representavam Apolo ou Mnemosyne.

    Ospoetasno inventavam suas histrias, nose apresentavamcomo ficcionistas, eramportadores de verdades reveladas. Sua palavra erauma epifania e nos remetia diretamente fonte dopresente atual. A gnese do mundo narrada pelopoeta no dizia respeito ao tempo histrico, assimcomo no implicava o tempo cronolgico; o prprio passado ao qual elese referia no era propriamente um passado, mas uma outra dimenso doCosmo qual o aedo tinha acesso. Numa bela

    26

    passagem, Vernant17 nos diz que ..o passado parteintegrante do Cosmo; explor-lo descobriro que se dissimula nas profuridezas do ser. Ahistria que canta Mne\nosyne um deciframentodo invisvel, uma geografia do sobrenatural".

    A funo da memria conferida ao poeta porMnemosyne a de possibilitar o acesso a um outromundo e de poder retornar ao mundo dos mortaispara cantar-lhes a realidade primordial. Mas adeusa no provoca apenas a l e m b r a n ~ , ela ~ b m produtora do esquecimento (lethe). A rememorao do p8ssado primordial, pelo poeta,tem como contrapartida o esquecimento do tempopresente. Ao ter acesso ao tempo dos deuses, eleperde temporariamente sua condio de perten-cente raa de ferro, estado atual da humanidademarcado pelo cansao, pela misria e pela n g s -;tia. Mnemosyne provoca no aedo uma transmuta.o que permite-lhe escapar ao tempo da quinta:raa.' \ portanto graas ao esquecimentodo tempoatual que o poeta tem acesso ao tempo ion dosdeuses. Essa a razo pela qual o consultante do-Orculo de Lebadeia era conduzido a beber deduas fontes que se encontravam sua entrada: afonte de Lethee a fonte de Mnemosyne. A primei-

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    ra produzia o esquecimento de tudo relativo suavida humana; a segunda mantinha a lembranafgtudo o que ele iria ver e ouvir no outro mundo.

    Niet7SChe,emA gaia cincia, pergunta como possvel justificar o predomnio, durante tantossculos, dessa fonna de discurso que, longe detomar a comunicao mais inteligvel, diminui-lhe a clareza.

    Segundo ele, a poesia teria tido sua provenincia nos cantos mgicos e religiosos, e seuobjetivo era produzir, atravs do ritmo, c o ~ -t,rangimento das paixes. tratava-se, eVIdente-mente, de constranger tanto a fria dos deusescomo a dos homens. Deuses e homens tomavamse amolecidos e cediam ante a cadncia do canto.

    Surge ento a pergunta: se o poeta tem por funo constrangeros deuses e os homens, a u e ~serve ele? No a ele prprio,posto que podiase r destitudo de seus poderes. A resposta podeestar contida na afinnao de G. Dumezil, segundo a qual o ~ t a , nesta poca, um .. funcionrio

    be. "19

    da so rama .O poeta da Grcia arcaica cantava as ~ g o -nias e as cosmogonias e estas, como assmalaVemant 20 mais do que relatos de gnese apresen- .t a v a m - ~ como mitos de soberania. Sem dvida,

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    oferecem uma concepo da gnese dos deuses edomWl.do, mas a ordemdo Cosmoassim ~ n -tada o efeitode sucessivas confrontaes elutasentre os deuses.O problema da gnese fica subordinadoao problema da soberania, de tal forma queo mito no responde primordialmente questode comoummundoordenado surgiu do caos, mas questoQuem odeus soberano? A razo distoest em que a ordem do mundo no se faz, segundo o mito, atravs de um equilbrio de foras' naturais, mas como decorrncia da intervenodos deuses.

    No mundo arcaico no havia uma ntida se-. parao entre a ordem humana e a ordem divina,

    o rei era tanto responsvel pela ordem socialcomointervinha tambm na ordem csmica, sendo oresponsvel por fenmenos naturais tais como as~ n d i e s climticas ou a fertilidade da terra. Afuno do poeta, com seu canto, era glorificar o

    .*berano colocando-o no p e n a s no topo da hiet,tarquia social mas tambm no comeo daordena!t io csmica. Sendo o responsvel nico pela

    ~ e t n , o soberano tornava-se o primeiro tanto do:Ponto de vista temporal como do ponto de vista

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    Es;a funo da poesia comea a se transformar na Grcia de Homero e Hesodo. A diferenafundamental entre a poesia cantada pelo aedo daGrcia arcaica e a poesia homrica que estaltima uma poesia escrita, o que elimina seucarter ritual. Numtempo em que a cultura gregaera ainda fundamentalmente, ou exclusivamente,oral, a palavra no era cli$ocivel do gesto e dascondiesde enunciao, como tambmnoo erado sistema de representaes religiosas. No ha-via, nessa poca, distncia entre a palavra e osdemais planos da realidade. A palavra no barravao real e nem se constitua como um desVio deste,mas era parte integrante do mundo natural e eapazde interagir com ele em termos causais. Da elaser marcada pela sua eficcia: "uma vez articulada, a palavra se converte em potncia, fora,- 21 .aao.

    Na sociedade grega dos tempos homricos apoesia passa a narrar sobretudo as faanhas guerreiras. Os reis so substitudos pelos heris, o quefaz do poeta nomaisum funcionrioda soberaniamas um rbitro a servio da comunidade dos.guerrell'OS.. 22 . 1 'edadDettenne assma a que nessa soei e as

    d u ~ potncias maiores eramo elogio e adesapro-

    30

    vao. O poe ta era aquele que natTavaas faanhas.dos guerreiros coilstituindo, simultaneamente. 'uma memria dos feitos hericos e os prpriosfeitos, posto que estes eram glorificados no onvel dos atos mas, na e pela, palavra do poeta.Mais precisamente, Detienne nos fala de doisvalores que se completavam: kydos e kleos. Am-bos so formas de glria. A diferena est em quekydos a glria que ilumina o guerreiro no mo-mento da batalha e que o torna vencedor; kleos a glria que transmitida de gerao a geraopelo canto do poeta, e que constitui propriamentea memria do acontecimento herico. O guerreiro, considerado enquanto indivduo e sujeito desua vontade, no tinha lugar nesse esquema. O atoherico tinha que passar pela palavra do poeta. Noentanto, apesa r do poeta no mais ser visto comoum funcionrio da soberania, e sim como umfuncionrio da comunidade, isso no significavaque qualquer um poderia ter seus feitos glorificados pela palavra. Esta dirigia-se apenas aristocracia guerreira. De fato, o poeta era funcionrio. a, omunidade de guerreiros, era aristocraciaq ~ sua palavra servia, no ao povo,x em tomo desse par de opostos memria

    ~ u e c i m e n t o (Mnemosyne-Lethe) que se estrutu-'31

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    ra a palavra potica. Pela palavra do poeta eterniza-se o feito guerreiro, pela ausncia da palavrasobrevm o silncio e o esquecimento.

    Ao guerreiro prefervel uma morte cantada' e lembrada a uma sobrevivnciano esquecimento.

    A verdadeira morte no a do corpo, mas a dalembrana. Morte da palavra, morte pela ausnciada palavra, esta a ameaa maior que pairavasobre os gregos dos tempos homricos.

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    A dessacralizao da palavrae da memria

    A importncia concedida memria remete-nos auma tradio muito antiga que foi retomada pelopitagorismo. Essa tradio tem como refernciacentral a figura do adivinho purificador que, porsua vez, uma transformao da figura xamanstica do mago. Este, atravs do controle do soprorespiratrio, conseguia separar a alma do corpo epermanecer durante anos numa espcie de sonocataltico enquanto sua alma viajava por outrosmundos. O adivinho purificador est mais preocupado com as tcnicas de purificao que possibilitariam s almas se libertarem do ciclo denascimento e morte a que estavam submetidas.

    N . - d v 23 n .a optruao e emant, a a mneszs, nopitagorismo, realiza aquilo que em Hesodo estavaapenas esboado: uma transfrmao radical da

    ~ ~ p e r i n c i a temporal. Centralizada na histria individual das almas, a doutrina tem por objetivo"/:',l'J:ovocar uma lembrana no apenas dos fatos

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    passadosmas de todas as existncias anteriores deuma ahna e dos erros que ela cometeu.

    Atravs dessa expiao pela memria, a ahnarecobraria sua pureza original e se libertaria dodevir, ganhando a eternidade, e ento a sucessoindefmida dos ciclos seria substituda por umtempo inteiramente acabado e realizado. O essencial nessa concepo a repulsa existncia tem:poral. No se trata apenas de' substituir os vriosciclos de gerao e morte por um ciclo nico -..unir o fim ao comeo - mas sairdo tempo parasempre.24

    Com o surgimento da poesia laica e da filo-" sofia, a memria perde seu carter sagrado. A

    memria do aedo da Grcia arcaica e a memriado filsofo no so as mesmas, tanto pelas suascaractersticas como pela sua funo. A primeira uma memria marcada pela religiosidade e peloprocedimento ritual, no desvinculvel de umaorganizao institucional e mental que caracterizava o grego dos tempos arcaicos. Sua funo aconstituio de uma ordem do real e, ao mesmotempo, de purificao e de salvao. A memriado ftlsofo j est ligada ao conhecimento, visatanto a conservaode um passado histrico comoa apreenso das essncias inteligveis.

    34

    Mesmo a mnemotcnica de Homero e a mnerootcnica dos sofiStas no se identificam. Enquanto esta ltima prende-se a um idealenciclopdico, a mnemotcnica do poeta estavaligada a umdom d.ivinatrio. No entanto, antes doaparecimento da filosofia, j havia surgido umarnnemotcnica laica, no sculo VI a.C., ligada auma profunda transfonnao no estatuto da palavra, e um dos porta-vozes dessa transfonnao foio poeta Simonides de Ceos.

    A desvalorizao daaltheiae a conseqente /valorizao da doxa inicia-se no sculo sexto.Tanto J.P. Vernant como M. Detienne apontamrSimonides de Ceos como o iniciador da mnetnotknica laica, atribuindo-lhe tcnicas de aperfeiOementodo alfabeto e a inveno de novas letrasft;ando uma melhor anotao escrita. Simonides.o primeiro poeta a fazer da poesia um ofciotemunerado, mas sua grande novidade no reside .nisto e sim no fato de que o primeiro a reconhe- .eer o car ter artificial da palavra, isto , que ela \wna imagem do real e no parte do real.

    . Quando, dois sculos mais tarde, Aristtelesditingue mneme de anmnesis, ambas j esto~ g a d a s evocao e conservao do passado,p,uco ou nada mais restando da memria mtica,

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    . ~ : : . , : _' " ' ; - ; '

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    que era o nico caminho para se chegarao mundodos deuses e dos heris.Uma outra fonna de dessacralizao da p-

    lavra, ocorrida no espao social da Grcia antigae anterior ao surgimento da filosofia, foi a palavra-dilogo do guerreiro. Enquanto a palavra doaedo era a palavra sagrada, portadora de altheia- palavra real indissocivel do enunciador e dascondies de enunciao-, a palavra do guerreiro era unia palavra-dilogo, desvinculada do compromisso com a verdade e que dizia respeito troca de idias e a uma estratgia de luta.

    Aquilo que a palavra do guerreiro visava noera a verdade, mas a persuaso (peith). O queestava em jogo era sobretudo o poder que a palavra exercia sobre o outro, sua capacidade.de seduoou de persuaso. H aqui uma dupla diferenaem relao palavra do poeta. Em primeiro lugar,sua dessacralizao; em segundo lugar, -sua desvinculaoda verdade (altheia). Uma outra diferena que decorre dessas duas, mas que nem porisso menos importante, que ela deixa de serprivilgio de um indivduo singular excepcional einspirado, e passa a ser comum a uma classe - ados guerreiros - no interior da quil a palavra de

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    cada um tem igual valor. Essa palavra igualitria,contempornea palavrado aedo, a que prepara0 caminho para a palavra do sofista e do filso-25fo.

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    Parmnides:a verdade gosta de se esconder

    O poema de Pannnides, Sobre a natureltl, foiescrito no sculo V a.C. e at hoje tomado comoum marco decisivo do pensamento ocidental. comum afinnar-se que ele contm a primeira reflexo filosfica sobre o Ser, e se podemos considerar esta afirmao como verdadeira, nopodemos deixar de assinalar que ela corre o risco

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    continua presente a velha noo de altheia, masrepensadade modo a nos oferecer no apenas umareflexo sobre o Ser mas tambm no sentido deprovocar uma reflexo sobre a relao entre aspalavras e as coisas. Se a palavra vai daqui pordiante estabelecer a oposio verdade-falsidade,exigindo da altheia uma consistncia lgica qual ela ainda no havia sido submetida, vai tambm conceder um estatuto opinio distinto doque ela possua.

    O poema escrito em versos hexmetros econtm, alm da Introduo, duas partes denominadas Via da verdade e Via da opinio.A Introduo, que nos fala do filsofo sendo

    conduzido pelas filhas do Sol, num carro puxadopo r fogosos cavalos, morada da deusa, bastantealegrica e assemelha-se s antigas narrativas religiosas das viagens escatolgicas. O estilopomposo e a descrio deliberadamente minuciosa.A Via da verdade, ao contrrio da Introduo, um magnfico exerccio lgico, o que fez com queNietzsche considerasse Pannnides mquina de pensar .. ~ v e r t e n d o em tomo de si umaluz fria e penetrante ..26 Nela, Pannnides desenvolve uma argumentao que, partindo da premissa Ser . acaba por negar n t e l i g i b i l i d a ~ ao

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    movimento e multiplicidade, assitn como aotestemunho dos sentidos. Surpreendentemente,porm, encerra o poema com a Via da opinio,onde a deusa insisteem que no devemos desqualificar a doxa. A questo que persiste at hoje ade como conciliar os dois cantos cantados nomesmo poema.

    Frequentemente as leituras do poema de Parmnides opem os dois caminhos que ele aponta- o caminho da verdade e o caminho da opinio- como uma oposio entre o verdadeiro e ofalso. No creio que esta seja a melhor maneira dese colocar a q u e s t o ~ e isto porque para ele ocaminho da opinio no era necessariamente o icaminho da falsidade mas o .caminho do en- P'gano, e o engano contm tanto o falso como overdadeiro.

    Assim, se o caminho da verdade (o discursoda no-contradio) um guia seguro para a verdade, Porque os contrrios se excluem enquantocontraditrios, o caminho da opinio no nos oferece garantia alguma da verdade. Nele, pennanecemos dkranoi, homens de duas cabeas, o queno significa, porm, que ele no seja habitadopela verdade, mas sim que no dispomos de um.critrio seguro para distingui-la.

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    Provavelmente este foium dos motivos pelosquais Pannnides no eliminou nem desqualificou o caminhoda opinio. Um outro motivo podeser o fato de que, submetido ao regime da cidadee novivendo margem dela como acontecia como aedo, o filsofo obrigado a submeter seudiscurso confrontaodas opinies. Na gora, averdade convive com a opinio e o engano, e se ofilsofo pretende fazer parte do contexto social,tem que empreender o dilogo no qual as opiniesvo se confrontar. Utn outro motivo, ainda, quepara os gregos a palavra altheia no bastava a simesma. Como assinalou Jean Beaufret27 em suaanlise do poema de Pannnides, a verdade nose completa seno designando aquilo que a ultrapassa; ela implica o silncio e o indizvel, da elaser nomeada por um termo privativo: a-ltheia.

    A marca fundamental da a-ltheia que elaaponta necessariamente para um alm, para algoque a ultrapassa e que ao mesmo tempo a funda.Mas este fundamento, que ele prprio oculto,no nos e s e c e , por oposio, a natureza daaltheia. Leth positivo contrrio de altheia,designa o s ncio, o esquecimento, a noite ou aprpria morte. Ao contrrio da nossa verdade, quepretende se r transparente, a altheia dos gregosera portadora de uma sombra essencial, e isto no

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    por defeito ou imperfeio, mas por uma exign-cia de completude: Ao poeta, no bastava ouvir apalavra, era preciso tambm ouvi r o silncio.Portanto, mesmo se trilhamos o caminho daverdade, no chegamos a uma luz sem sombras;ao contrrio, a escurido ganha com essa luz umadimenso csmica. O que temos nesse caminho um critrio de verdade - a no-contradio -,mas jamais poderemos ter a verdade absoluta,pelo menos se entendemos por este termo umaverdade sem sombras. na via da verdade que seestabelecer a oposio verdade-falsidade. A viada opinio outra. Nela, pennanecemos no desamparo.

    Esse desamparo a filosofia no conseguiueliminar, embora fosse este o seu propsito. Doismil anos depois de Parmnides, vamos encontrarDescartes s voltas com a mesma questo.

    O problema fundamental de Descartes o 1problema da garantia. Como posso estar certo deque no me engano? O saber ocidental acumuloudurante dois milnios um conjunto de conhecimentos que parecia ser eterno. De repente, o sculo XVI vive a ameaa da runa de todo oconjunto. Um novo modo de pensar coloca emquesto o prprio mundo emprico enquanto cri-

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    trio de verdade e, juntamente com ele, vo sendoquestionadas a autoridade dos filsofos e a dossantos. N o h mais ~ ~ a para o saber.

    O que Descartes procura essa garantia e elano sermaisprocuradana realidade externa'esimna prpria subjetividade. As Regras para a dire-o do esprito e o Discurso do mtodo so osn o v ~ g ~ ~ n e s ~ procura. O mtodo visa corrigira subjettvtdade nao em relao ao mundo externo- este no mais garantia para nada - e sim emrelao a ela prpria. No entanto, preciso encontrar no cogito algum indcio de uma transcendncia nos retire do solipsismo irremedivel, eaqwlo que Descartes encontra, em primeira ins-tncia, nada mais do que uma verso modernada via da verdade de Pannnides: a razo concei:.tual. Para fundamentar essa razo, l e ~ v obrigado a recorrer, em ltima instncia, a Deus. Ocaminho da opinio, aquele que leva cidade, aovivido cotidiano, permanece sendo o lugar dodesamparo.

    O que a psicanlise faz, dois sculos e meiodepois de Descartes, recuperar esse lugar para osaber. Eliminar o desamparo seria eliminar a am-bigidade da palavra, seu carter equvoco, seuocultamente essencial. Seria elimiilar da palavra

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    o fato de que ela opera e constitui a troca inter-humana, seria desconhecer que ela funda a intersubjetividade.

    Se a palavra fosse unvoca, seramos q u i ~nas, ou mais rigorosamente ainda, seramos naturais. O homem surge e instala-se no lugar dodesamparo, isto , no lugar onde no h garantiaalgwna da verdade do outro. Sem esse desamparofundamental no haveria intersubjetividade, masinterobjetividade, ausncia completa de qualquercoisa que se assemelhasse inteligncia humana.O que funda a subjetividade a opacidade, a

    , no-transparncia e, com ela, a possibilidade damentira, do ocultamente, da distoro. Pretenderuma palavra que elimine o equvoco pretenderuma palavra super-hwnana. Essa palavra representaria, porm, a morte do homem, seu portadorseria sem falta, sem desejo, estaria de posse dagarantia plena, mais prXimo dos deuses do quedos homens.

    Que no me tomem por um apologista dam e n t ~ , da distoro, do ocultamente. No pretendo fazer aqui a defesa da m conscincia, massim desfazer a iluso da palavra plena, da transparncia ingnua ou artificial pretendida peios positivistas.

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    Se tomamos agora como referncia no maisPannnides, mas seu contemporneo Herclito,vamos encontrar presente em sua prosa esse mesmo carter enigmtico atribudo verdade. Aoque tudo indica, tanto um como outro deram ssuas obras o ttulo de Peri Physeos (Sobre an a t u r e Z i l ~ , nem sempre levamosem conta queo termo hysis somente pode ser traduzido por"natureza e modo aproximativo. Aquilo que Osgregos chamavam de physisguarda uma considervel distncia em relao quilo que de um pontode vista biolgico ou fsico denominamos hoje denatureza. Mais ainda, se a natureza para nsaquilo que se mostra, aquilo que se oferece observao minuciosa, capaz de revelar seus m-nimos recantos, a physis grega mostrava-se resistente a esse desnudamento total. A famosa frasede Herclito ..a natureza gosta de esconder-se.,,no impe ao observador apenas um olhar maisatento, mas aponta-lhe um limite almdo qual seuolhar e sua palavra so remetidos escurido e aosilncio. Em Herclito, o olhar indissocivel dodizer e do escutar.

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    Herclito e a escuta do Logos

    Em quase todas as abordagens do pensamentopr-socrtico, freqente colocar-seem oposioParmnides e Herclito, o primeiro sendo apontado como o filsofo do imobilismo e o segundocomo o pensador do devir. Se essa oposio legti.tml, elanodeve, porm, deixarem completapenumbra o fato de que h entre ambos os pensadores semelhanas to significativas quanto asdiferenas comumente apontadas. E se,ao pretendermos assinalar a singularidade de um pensador,devemos nos ater mais .s diferenas do que ssbmelhanas, quando estamos preocupados emdelinear uma problemtica pode ser mais iJ:nportante atermo-nos, ainda que provisoriamente, apontosque s ocomuns a dois ou mais pensadores.

    Tanto quanto em Parmnides, a palavraparaHerclito mantm uma relao com o enigma ecom asil)lcio, que lhe essencial. E tambmtanto quanto Pannnides, Herclito, alm de nosoferecer wna reflexo sobre o ser e o devir, apresenta-nosuma reflexo sobre o estatuto da palavra

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    e da verdade que o aproxima, mais do que od i s t a n c i ~ de seu contemporneode Elia.

    O que restou dos escritos de Herclito foramfragmentos de um texto em prosa cujo ttulo tambm Peri physeos (Sobre a natureza). Possivelmente esse discurso no tinha originalmente aforma escrita, mas teria sido transmitido oralmente por Herclito aos seus discpulos, que se encarregaram posteriormente de sua transcrio.

    O fragmento 123 dessa obra iriteressa-nosespeciabnente: Physis kryptesthai philei, que Kirke Raven28 traduzem por "A verdadeira constituio das coisas gosta de ocultar-se e de que JeanBeaufret29 aceita a traduo "A natureza gosta deesconder-se''. O que est presente nesse fragmento o jogo do desvelamento e do ocultamento daverdade. certo que Herclito .no diz aqui que"a verdade (altheia) gosta de esconder-se . massim que "a natureza (physis) gosta de esconderse . no entanto, a distncia' entre a physis deHerclito e a altheia de Pannnides bemmen:ordo que pode parecer primeira vista.

    A traduo que nonnahnente se fazde physispor "natureza . uma simples aproximao, apesar de ser quase inevitvel. Inevitvel at pelopouco cuidado com que to freqentemente colo-

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    camos palavras cujo sentido prende-se a um contexto atual, no lugar de palavras gregas que guardavam ainda uma respeitosa proximidade com oorculo. Este o caso t\a palavra "natureza",empregada para traduzir a physis grega. Para ns,natureza um tenno carregado de ressonnciasfsicas e biolgicas, alm de ser portador de umirremovvel passado metafsico.

    Heidegger30 prope que se traduza physispor " e m e r g n ~ i a " (no sentido de surgimento),ainda que essa traduo e a estranha. Ela pelomenos tem a vantagem de acentuar que a physis. heraclitiana designa o emergir enquanto tal e noalgo que emerge. Essa emergncia -"jamais temocaso . jamais fica ou ficou inteiramente velada,mas tambm jamais deu-se como desve!amentoabsoluto. O desvelar de esconder-se. Assimcomo a altheia.

    Tantoa physisde Herclito quanto a altheiade Parmnides guardam essa caracterstica do ,e ~ , enquanto algo que v e l a e o c u l ~ s i m ~ l -tneamente, o que nos pernute uma aproxunaaoentre ambos os p e ~ d o r e s , aproximao que jest indicada pelo prprio ttulo conferido aosseus trabalhos - Peri physeos. Se substitussemos a palavra physis por altheia, na prosa de

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    Herclito, estanamoo provavehnente sendo maisfiis ao pensamento grego do que quando traduzimos physis por natureza.

    Ma s a palavra em tomo da qual gravitaramos comentadores de Herclito, e que funcionacomo referncia central do seu pensamento, nofoi physis nem altheia, mas logos. Sobre estapalavra recaem as mesmas dificuldades de interpretao que vimos incidirem sobre as duas ante-riores. Vrias geraes de comentadores,filsofos e fillogos conhecel"cJn o fascnio exercido pelo Logos de Herclito. E ele tomou-se64razo", 64Sentido", 64palavra, ..discurso, 64lei dopensamento" e 64le i do mundo".

    A sentena onde figura de fonna mais enigmtica o Logos de Herclito comea afinnando:..No a mim deveis escutar, mas ao Logos .:(frag. 50). Se seguirmos a minuciosa l i s e queHeidegger faz da palavra o g o ~ _ , veretnos que nelaencontramos a presena de lgein que significadizere falarmas tambm pousar, estender diante,assim como recolher. Somos conduzidos ao sentido de logos como aquilo que aparece, que seestende diante de ns e que ao mesmo t e ~ p orecolhe.

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    Esse o sentido do falar, mas precisotambm escutar o logos. "No a mim deveiscutar, mas ao Logos ..": em que cdnsiste e qual oalcance desse escutar o Logos? Mais ainda: comoescut-lo? ..No ouvindo a mim, responde ofilsofo. No pura e simplesmente ouvindo aspalavras que o ou tro diz que escutamos o Logos.Este no apenas um pousar mas tambm umrecolher, e na atitude de escuta do Logos tem queestar presente tanto um como outro. Mais do que

    Jno ouvir, na atitude de escuta que reside a1 ssncia do escutar. No com ouvidos atentosque escutamos: dessa fonna apenas registramostodos os sons e ~ t i d o s , funcionamos apenas comum mero aparato de captao de estnulos e podemos perder o essencial.

    Escutamos mais quando no ouvimos tanto, .quando no nos colocamos como pura exterioridade em relao ao que queremos escutar. A .atitude de escuta s se constitui se fizermos partedesse Pc>usar e recolher o Logos. No se trata, paraHerclito, de tomar uma atitude distrada, de ouvidos desatentos, pois ento seramos tomadospelo Logos. Ser todo ouvidos no ser o u v i d o spara tudo. A verdadeira escuta seletiva: se ela/

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    deixa de ouvir algo, para ouvir melhor outracoisa, ou para poder ouvir at o silncio.

    Se a palavra logos, o Logos no apenaspalavra, ele a excede, desdobra-se como ~e como coisa, nomeia o devir e o ser do devtr. Naoh ainda em Herclito uma separao c o m p ~ e ~entre as palavras e as coisas, massimuma espectede cumplicidade entre ambas, de tal forma que aspropriedades das coisas se refletem nas p a l a ~assim como estas so parte da physis. E assuncomo a physis emergncia que tambm se oculta, a palavra desvela uma verdade que se ~ e l a .Palavras e coisas so como que enigmas, preclSatllserdecifradas. Eno cabe a qualquerwn t a r e f a .

    Tal como Parmnides, Herclito apresentava-se como mestre da Verdade, e sua palavra,assim como a palavra do orculo, era obscura eenigmtica. Embora portadora da v e ~ d e , elaguardava uina reserva que a tomava vtzinha ~silncio. Se a verdade transparece velada naqutloque aparece,mas ao mesmo tempo se oculta nesseaparecer, a palavrado Mestre no ser aquela que,de fora, procurar eliminar esse jogo de desvelamente e velamento, mas sim aquela que, sendoparte integrante desse jogo, no poder deixar deser, ela prpria, enigma. Da o epteto ..0

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    obscuro". Herclito, o obscuro. J a antigidadegrega ass im o chamava. Como compreenden essaobscuridadeem algum que se apresentava comom e s t r e da verdade? De fato, no era Herclito queera obscuro, mas sim aqueles outros, que eramdemasiado apressados no olhar e no ouvir,aqueles para os quais .verdade e objetividadeeram sinnimos .A palavra de Herclito ..obscura" porqueconduz clarificao. Esta, porm, no se esgotanaquilo que aparece. Se sua palavra conduz verdade, coma condio de seu ouvinte no ficarpreso exterioridade do dizer, mas sim de procurar, atravs desse dizer, .a verdade\que ele expressa, verdade essa que no transcendente spalavras e s coisas, mas que simultaneamentetransparece e se oculta no devir.

    Ater-se exclusivamente ao que aparece deixar-se ofuscar pelo brilho daquilo que se apresenta e no ter olhos e ouvidos para o que sepresentifica nesse aparecer, mantendo-se, porm,oculto ..0 mestre cujo orculo est em Delfos nodeclara, no oculta, mas d sinais" (fragmehto93), e da natureza do sinal a ambigidade desentido. A obscuri.dade de Herclito, isto , suarecusa da utvocidadeda palavra, a sua clareza.

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    Os soriStas e a palavra persuasiva

    Vimos que um passo importante no sentido da .dessacralizao da palavra, na Grcia anterior aosculo VI, foi a constituio da palavra-dilogopor parte da comunidade dos guerreiros.31 Enquanto a palavra sagradado poeta-profeta-videnteera portadora de u . . . ~ a altheia divina que se expressavade fonna oracular e que dependiade donssobrenaturais, a palavra-dilogo atravsda qual acomunidade dos guerreiros tratava dos assuntosrelativossestratgias de combate ou repartiodo butim, possua caractersticas prprias e mantinhauma prudente distncia em relao palayrasagrada.Quando os guerreiros se reuniam em assemblia e um deles tomava a palavra, seu objetivono era a altheia, mas a persuaso (peith). Aquesto da verdade no habitava o espao i r c u l ~das ssemblias guerreiras. A caracterstica principal dessa palavra era a igualdade, isto , o fatode que nas assemblias a palavra de todos tin4aigual valor. No devemos, porm, nos iludir quan-

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    to ao carter democrtico da palavra--dilogo doguerreiro. Ela igual aperuis no interior da comunidade guerreira. Trata-se, tal como na palavrasagrada, de uma palavra institucionalizada e node uma palavra que, por sua caracterstica igualitria, poderia ser chamad de palavra comum.Esta ltima, enquanto palavra que atendia s necessidades de comunicao no i)lterior do social,no tinha lugar nas assemblias dos guerreiros. Oguerreiro trocava com seus semelhantes, e seussemelhantes eram apenas aqueles que tomavamparte nos combates. No entanto, essa palavra eraportadora de caractersticas que faziam dela oprimeiro passo na direo de uma palavra-dilogode dimenso social mais abrangente. Sua secula-,rizao, sua estreita vinculao ao, seu carterigualitrio e sua inscrio temporal so caractersticas que vamos encontrar presentes num dos maisimportantes movimentos contempot:neos ao sur- gimento da cidade grega: a sofstica.

    A sofstica surge com o fim da monarquia eo incio da democracia, quando a lei divina definitivamente substituda pela lei_humana. Apartir das :reformas de Solon no sculo VI e dode5envolvimento, no sculo V, de um sistemajudicirio que inclua a criao de tribunais popu-

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    lares com autoridade para julgar toda espcie decausas, alm da fonnao de uma assembliapopular com o poderde apresentar projetosde lei,a palavra passa a ser o instrumento por excelnciapara a aquisio e o exerccio da virtude (aret)poltica. Os sofistas apresentaram-se comoprofis-sionais do saber, mestres na tcnica do discurso.

    Os sofistas chegaram a Atenas antes de Plato ter nascido. Estrangeiros, vinham da Trcia,da Siclia, da Calcednia, atrados pelas novascondies polticas vigentes em Atenas, colocando seu saber a servio de uma fonna de educaoque vinha substituir a antiga fonnao de guerreiros e atletas.Apesar.de todo cidado livre ter acesso aossofistas, eles se voltavam sobretudo para aquelesque pretendiam uma fonnao poltica, isto ,para aqueles que nas assemblias pblicas seriamos responsveis pela elaborao das leis do Estado. No defendiam nenhuma doutrina especficanem formavam um grupo com identidade tericaou politico-ideolgica. O que possuam em co- Jmum era o fato de recusarem qualquer valor quese apresentasse como absoluto. Afora isto, eramhbeis argumentadores e dominavam por completo a tcnica da palavra. No lugar de serem mestres

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    ,da verdade, eram mestres da oratria e da dia-'ltica. ,Que no se subestime o valor dos sofistas poristo. Tiveram uma importncia decisivana fonna .o do novo cidado e no estabelecimento &democracia ateniense, tanto no plano poltico co

    mo no jurdico. De seus ensinamentos, resultaramrefle.xes sobrea inguagem e sua articulaocoma ao, que somente agora esto sendo devidamente reconhecidas. Protgoras de Abdera foi omaior dentre eles.

    A fonte inspiradora do pensamento de Pro-l tgoras pode ser encontrada em Herclito. A doutrina do real concebido como um puro devir foi osolo do saber a partir do qual Protgoras elaborouum fenomenismo que apresentawna considervelsemelhana com aquele defendido por algunspensadores da modernidade. Esse fenomenismotem como correlato a relatividade da verdade e detodos os valores, e diz respeito tanto ao nvel daexperincia sensvel quanto ao nvel do discurso.Sua famosa sentena, "O homem a medida de

    ""todas as coisas, a expresso de sua descrenaquanto possibilidade de uma concepo unitriado mundo. Se a realidade um devir constante eininterrupto, como admitir uma verdade e s t v ~ l ?

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    Se tudo muda, mudam no s as coisas, comotambm o nosso olhar. Como pretender uma ade- quao constante entre as palavras e as coisas?A funo da palavra pontuar esse devir ereunir m.un'discurso os vrios pontos de vista dosmltiplos observadores. Se as coisas existem no

    em funo de um princpio unificador transcendente, mas enquanto fluxo, devir ininterrupto semprincpio ordenador a priori, a ordem do mundoser dada pelo ponto de vista de cada um.

    :Mas a frase ..o homem a medida de todasas coisas no significa, para Protgoras, a aceitao de um individualismo insupervel, no expressa a recusa de toda e qualquer ordem, mas simde uma ordem transcendente. Protgoras, na verdade, est longe de ser um perverso radical, guerreiro no interiordo saber. Sua prpria condio de estrangeiro, comwn aos demais sofistas, recomendava uma prudncia que no se coadunavacom a imagem do demolidor de todos os valores.Se ele afirmava que a cada coisa podiam corresponder dois juzos opostos, cada um expressandoum ponto de vista, e ambos sendo igualmenteverdadeiros, aceitava tambm o fato de wn juzoser o dominante por refletir wn ponto de vistacomum. Sobreposto ao Protgoras revolucion-

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    rio, que rejeitava a ftlosofia jnica porque eladefendia um princpio comum ao Cosmo, podemos encontrar um Protgoras moralista defensordo senso comum.

    Mas tambm no era essa a proposta dossofistas. Nem se propunham como defensores deuma doutrina estrangeira, nem se apresentavamomo defensores dos valores dominantes em Atenas. Aquilo que eles ofereciam, e pelo que esperavam um pagamento em dinheiro, era umatcnica do discurso que possibilitava queles quea empregassem obter xi to nas discusses pblicas. Atravs o emprego de uma tcnica da palavra.,- o que inclua no apenas noes de gramtica,de oratria e de dialtica, mas tambm o aprendizado de conhecimentos gerais - o cidado ateniense podia se e f e ~ d e r nos tribunais, progredirna carreira poltica ou dirigir melhor os seus negcios. No importava ao mestre sofista qual o-ponto de vista que seu aluno iria defender, massim como defend-lo da melhor forma possvel.

    Os sofistas no percorrem 'o caminho daverdade, mas o caminho da opinio. Sob esteaspecto, so o oposto do filsofo, estando mui tomais prximos do poltico. Movendo-se sempreno espao defmido pelo confronto de dois discur-

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    sos, a argumentao sofista pennanece no lugarda ambigidade. E precisamente nisto que residesua eficcia. Ao ateniense do sculo V, o quefaltava era esse saber sobre o discurso, sua demanda era a de uma tcnica da palavra que lhe permitisse um bom desempenho no confronto com osoutros cidados.

    O empenho com que o jovem ateniense procurava o sofiSta era um indcio significativo dalacuna relativa a esse tipo de ensino. Em seudilogo Protgoras, Plato conta-nos comoScrates foi acordado, no sabe se muito tarde danoite ou muito cedo pela manh, com seu jovemamigo Hipcrates esmurrando sua porta e gritando que Protgoras estava na cidade. Scrates responde calmamente que j sabia e que o visitantehavia chegado h dois dias. E o jovem, sentado aop do mestre, suplica-lhe que o apresente ao sofista, a fim de que possa aprender coisas novas.Quanta inocncia contida nesse pedido! Por roniado destino, cabia a Scrates apresentar seu jovemamig

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    ao jovem Hipcrates ouvir as palavras de S,crates, ele ansiava por "algo novo, por algo queele.no sabia o que era mas que certamente no haviavislumbrado em Scrates.

    Enquanto Scrates vai ser cognominado "otorpedo, pela crtica impiedosa que exerce sobreas conscincias sonmbulas dos cidados atenienses, os termos que melhor se aplicariam aos softs.;.tas seriam ..prudncia . e ..oportunidade. Jogandocom a contingncia dos fatos, os sofistas permanecem na horizontalidade dos acontecimentos,no pretendendo com a tcnica da palavra nadamais do que a persuaso. Para eles, a palavra uminstrumento de persuaso e no um meio de sechegat .verdade.

    Essa a nova palavra que chega a Atenas,proferida por estrangeiros. Palavtd utilitria, ardilosa pela sua tcnica, eficaz pelos seus efeitos.Sobre essa palavra Scrates faz incidir todo opeso de sua crtica e Plato, embora fascinadopelo deslizamento fcil com que ela opera, tentaexorciz-la para que possa ter lugar- a palavraconceitual.

    Os sofistas so os danarinos da do.xa. Leves,geis e sedutores, representavam aos olhos do

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    filsofo a ameaa maior que ele tinha de deter. Aguerra contra esses perversos do saber inicia-secom o torpedo do Scrates platnico.

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    Plato e a ordem do discurso

    O processode dessacralizaoda palavra, que temincio nas assemblias de guerreiros, atinge seuauge com a sofstica. Mas se a cidade absorveu

    -bem a primeira gerao dos sofistas (Protgoras,Grgias e Hpias , o mesmo no aconteceu com asegunda gerao (Antifonte, Crtias, Trasmaco .

    Junto dessacralizao da palavra e da me.mria, tem incio um processo de desqualificaodos valores dominantes na cidade, que terminacom a desvalorizao das prprias leis. Enquantoo equilbrio social estava assegurado, o "anarquismo . sofistanochegou a se constituircomoameaa, mas quando teve incio a derrocada do Estadodemocrtico, os sofistas foram apontados comoresponsyeis diretos pela insatisfao reinante.

    A passagemdo liberalismo de Protgoras aoquase anarquismo de Crtias ou de Antifonte retirou do homemgrego o pouco de sacralidade queainda lhe restava, e a partir de ento a violnciapassou a ser o critrio dominante, j que a prpria

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    justia havia perdido seu parentesco com a d i v i ndade. Ao supervalorizar o indivduo em detrimnto do Estado, e ao c e ~ t u a r a importncia da aoprofana de cada um, os sofistas acabaram pregando um a moral do mais forte que inevitavehnentefavorecia a classe dominante. Com isso, acabaramgranjeando a antipatia e a suspeita dos cidados .atenienses, o que, aliado desordem reinante,tomou-os alvos fceis para os queprocuravam umlxxle expiatrio para o insucesso da democraciaem Atenas. Paradoxahnente, a primeira vtima

    .desse descontentamento foi Scrates.Esta, porm, um leitura da sofstica, leitu

    ra feita do lugar platnico. No falsa, mas tambm no faz inteira justia ao que representaramos sofistas nessa grande metamorfose sofrida pelapalavra no sculo V a.C., alm de mal disfararseu travo moralista.

    Uma outra leitura a que nos mostra o soflSta como aquele que liberou a palavra das amarras do

    real e a fez deslizar livremente sobre a superfciedos acontecimentos. Liberta da profundidade daphysis e das alturas divinas, a palavra do sofiStarecusa-se a se r recapturada pela ordem platnica.Da ter me referido aos sofistas como .perversos".Sua perverso consistiu nessa recusa de toda or-

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    dem absoluta. Para eles, a palavra era pura conveno, no obedecia nem lei da natureza nem lei divina sobrenatural, mas, sendo invenoh ~ podia ser reinventada e, com ela, todas as leis e todos os valores humanos. em tomodessa oposio physis-nomos (natureza-conveno) 9uePlato vai elaborar sua teoriada linguagem.

    Um tema freqente nas discusses sofistasera o da relao entre as palavras e as coisas. Paraos pensadores pr-socrticos, as palavras eramparte integrante da physis, formando com estauma unidade. Entre a linguagem e o mundo fsico,havia uma adequao natural. Os sofistas, ao contrrio, defendiatri a tese do carter convencionalda linguagem, o que itnplicava a questo da legi------imidade das palavras e de sua adequao s coi-sas. Este o tema do dilogo de l ~ t o , Crtilo, omais extenso e detalhado trabalho do filsofo

    . cledicdo questo da linguagem.O Crtilo um dilogo que contm, alm de

    Scrates, mais dois personagens: Hermgenes,que representa os sofistas, e Crtilo, que supostamente representa Herclito (apesar de Plato atri-.. buir ao personagem um ponto de vista sobre aadequaodas palavras s coisas que noexpressacorretamente o pensamento heraclitiano . Scra-

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    te s aceita inicialmente as teses de Henngenes ede Crtilo para, em seguida, mostrar a falta deconsistncia de cada uma delas. Tomando comomodelo a atividade do arteso, Scrates sustentaqueh uma finalidade prpria a cadacoisa e a cadaao e que, analogamenie aos instrumentos adequados a cada atividade artesanal, h tambmmresponsvelpeloestabelecimentodosnomes para as coisas, o nomoteta, o sbio legislador: ..Nemtodohomem capazde estabelecerum nome,masapenas um artista de nomes; e este o legislador,o mais raro dos artistas entre os homens".32 Maso nomoteta no nomeia as coisas arbitrariamente'para exercer sua atividade ele se guia por ummodelo ideal, pois parece haver uma certa exatido natural de um nome em relao ao objeto.33Scrates/Plato no rompe inteiramente com oheraclitiano Crtilo nem com o sofista Henngenes, mas defende uma posio que concilia asprecedentes. De fato, se os nomes so criados pelonomo teta (ou onomaturgo, como tambm o denomina Plato), eles so uma conveno, como pretendiam os sofistas. Mas se existe uma adequaonatural entre o nome e a coisa, porque de algumafonna ambos participam de um referencial comum, como pretendiam os heraclitianos.

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    A partir da, Plato elabora uma concepo ,mimtica da linguagem na qual a palavra tomada

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