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 .  Análise Social,  vol, XIII (50), 1977-2.°, 321-353 Maria Filomena Mónica «Deve-se ensinar o povo a ler?»: a questão do analfabetismo (1926-39) 1 .  A QUESTÃO DO ANALFABETISMO O debate que se realizou na Assembleia Nacional em 1938  1  constitui uma das mais importantes fontes da ideologia salazarista no que respeita à educação popular. A Assembleia reuniu para discutir a reforma da instrução primária do ministro Carneiro Pacheco, Mas a discussão deu lugar a uma desenvolvida e reveladora exposição da nova ideologia oficial, que negava os mais caros princípios pedagógicos do liberalismo e do republicanismo e, consequentemente, o ideal de um sistema de escolaridade obrigatória e g ratuita. a)  AS «CAUSAS» DO ANALFABETISMO O facto de, em 1930, em cada 100 portugueses 70 não saberem ler chocava algumas pessoas e, simultaneamente, tranquilizava outras. Para os sectores mais progressivos da  intelligentsia  portuguesa, que sempre se haviam envergonhado com uma taxa tão alta, o analfabetismo era o prin- cipal obstáculo ao desenvolvimento do País. Para os salazaristas, porém, era uma virtude. Estas duas posições determinaram o modo como as causas e as soluções do problema foram encaradas. Entre 1930 e 1940, a polémica sobre as causas do analfabetismo pros- seguiu com o entusiasmo das décadas anteriores. A evidência de algumas delas impunha-se aos ideólogos de todos os quadrantes políticos (como, por exemplo, a pobreza ou a falta de escolas), embora adquirissem um significado diferente consoante o contexto; outras, mais discutíveis, identi- ficavam imediatamente opiniões políticas. Os salazaristas ressuscitaram a crença tradicional (para cuja divulga- ção durante o século xix contribuíra, entre outros, Ramalho Ortigão) 2 de que o povo português «não sentia necessidade de aprender». Mas os 1  D. S.,  (ver no final do artigo a lista das abreviaturas utilizadas nas citações) n. 08  165-185 (Março-Abril de 1938). 2  Para as suas opiniões políticas ver Vasco Pulido Valente, «Ramalho...», in O Tempo e o Modo  n . os  47-48, 1967. Esta frase aparece citada no Decreto-Lei n.° 38968,  de 27 de Outubro de 1952. Ver também  o  relatório da Câmara Corporativa, D.  S .  de 4 de Março de 1938.  32 1

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  • . Anlise Social, vol, XIII (50), 1977-2., 321-353Maria Filomena Mnica

    Deve-se ensinar o povo a ler?:a questo do analfabetismo (1926-39)

    1. A QUESTO DO ANALFABETISMOO debate que se realizou na Assembleia Nacional em 1938 1 constitui

    uma das mais importantes fontes da ideologia salazarista no que respeita educao popular. A Assembleia reuniu para discutir a reforma dainstruo primria do ministro Carneiro Pacheco, Mas a discusso deulugar a uma desenvolvida e reveladora exposio da nova ideologia oficial,que negava os mais caros princpios pedaggicos do liberalismo e dorepublicanismo e, consequentemente, o ideal de um sistema de escolaridadeobrigatria e gratuita.

    a) AS CAUSAS DO ANALFABETISMO

    O facto de, em 1930, em cada 100 portugueses 70 no saberem lerchocava algumas pessoas e, simultaneamente, tranquilizava outras. Paraos sectores mais progressivos da intelligentsia portuguesa, que sempre sehaviam envergonhado com uma taxa to alta, o analfabetismo era o prin-cipal obstculo ao desenvolvimento do Pas. Para os salazaristas, porm,era uma virtude. Estas duas posies determinaram o modo como as causase as solues do problema foram encaradas.

    Entre 1930 e 1940, a polmica sobre as causas do analfabetismo pros-seguiu com o entusiasmo das dcadas anteriores. A evidncia de algumasdelas impunha-se aos idelogos de todos os quadrantes polticos (como,por exemplo, a pobreza ou a falta de escolas), embora adquirissem umsignificado diferente consoante o contexto; outras, mais discutveis, identi-ficavam imediatamente opinies polticas.

    Os salazaristas ressuscitaram a crena tradicional (para cuja divulga-o durante o sculo xix contribura, entre outros, Ramalho Ortigo)2de que o povo portugus no sentia necessidade de aprender. Mas os

    1 D. S., (ver no final do artigo a lista das abreviaturas utilizadas nas citaes)

    n.08 165-185 (Maro-Abril de 1938).2 Para as suas opinies polticas ver Vasco Pulido Valente, Ramalho..., in

    O Tempo e o Modo n.os 47-48, 1967. Esta frase aparece citada no Decreto-Lei n.38968, de 27 de Outubro de 1952. Ver tambm o relatrio da Cmara Corporativa,D. S. de 4 de Maro de 1938. 321

  • republicanos adoptaram a explicao, no menos convencional, de que oanalfabetismo se devia aos padres, reles canalha da batina.

    Com o decorrer dos anos, os argumentos invocados de parte a parterepetiram-se e tornaram a repetir-se, o que no surpreende, dado que asituao pouco mudou tambm. Em 1870, o primeiro e efmero Ministrioda Instruo j enumerava as causas do analfabetismo como sendo a or-ganizao centralizadora, a carncia completa de inspeco, a situaodo professorado, sem habilitaes, sem [facilidade de] acesso [ profisso],[sem] considerao nem estmulo e quase sem remunerao, o desamparoda instruo do sexo feminino, a falta de frequncia escolar e a desorga-nizao interna da escola3. Em 1938, os mesmos factores continuavamoperativos.

    No extenso relatrio preliminar proposta de lei de Carneiro Pacheco,este sustentava que a primeira causa do analfabetismo estava no enciclo-pedismo dos anteriores currculos, isto , no seu pendor racionalista.

    A Cmara Corporativa, porm, preferia preocupar-se com as deficinciasdo povo portugus. Para os ilustres procuradores, a sndrome do analfa-betismo, em especial nas populaes rurais, [tinha] causas profundas deordem psicolgica, econmica e social. De entre elas, a psicolgica eraa principal: o nosso vergonhoso ndice de analfabetismo resultava daindiferena do povo pela instruo. Ao contrrio de outros pases maisevoludos, como a Noruega, frequentemente referida no debate, em Portugalexistiam muitas escolas sem alunos, pelo que s se podia concluir que opovo, pela sua riqueza intuitiva[...]no sentia a necessidade de saber ler4.

    Esta nfase na falta de vocao do povo para aprender caracterizavaa ideologia nacionalista. Para o deputado Pacheco de Amorim, professorde Economia Poltica da Universidade de Coimbra e um dos fundadoresdo C. A. D. C, a pobreza no provocava o analfabetismo, pois existiammuitas naes pobres e alfabetas. A misria de largos sectores da populaono servia, por conseguinte, para explicar nada. Na opinio de Amorim,o grau de instruo do povo dependia basicamente dos recursos e priori-dades do Estado no da riqueza da Nao e ele achava que, entre1850 e 1914, Portugal dispusera de todo o dinheiro necessrio para com-bater o analfabetismo, caso o tivesse querido fazer. No o fizera porqueno quisera. E no quisera porque no sentira a necessidade nem autilidade da cultura como sentira a necessidade da poltica de fomento.Argumentava ele ainda que o povo jamais manifestaria o desejo de aprenderenquanto os currculos escolares fossem absolutamente inteis: O povos faz um sacrifcio de tempo, dinheiro ou trabalho quando em trocarecebe um benefcio de ordem material ou espiritual.

    Segundo a nova ideologia, as culpas da ignorncia cabiam ao ignorante:a apatia do povo provocava o analfabetismo. Nas palavras do Dirio deNotcias a ignorncia gerava a ignorncia, crculo vicioso muito difcilde romper. Pior ainda: era de crer que a psicologia do povo portugusestivesse na raiz de tudo5. A pobreza, embora agravasse as coisas, no sepodia considerar inteiramente responsvel. Como dizia o semanrio oficialA Escola Portuguesa: A pobreza velha como desculpa de no se querer

    3 Citado na proposta de lei de Carneiro Pacheco, E. P., n. 162, de 2 de Dezem-

    bro de 1937.4 E. P., n. 97, de 20 de Agosto de 1936.

    322 * D. N. de 6 de Fevereiro de 1930 e de 20 de Agosto de 1931.

  • cumprir determinado dever [...]. No passam as crianas na escola maisfome e frio do que no prprio lar.6

    A Igreja tambm tinha a sua explicao favorita: o analfabetismo resul-tava das leis jacobinas, que haviam imposto o monoplio estatal da edu-cao. Os republicanos no s tinham privado a Igreja dos seus legtimosdireitos, como ainda caluniosamente a acusavam de querer um rebanhoanalfabeto. E, no entanto, nada estava mais longe da verdade, pois s aIgreja podia com xito ensinar o povo a ler.

    A simples existncia do analfabetismo constitua um desafio e um riscopara os professores, que, com mais facilidade que outros grupos profissio-nais, responsabilizavam os pais dos alunos. Independentemente de filiaespartidrias, os seus jornais no paravam de falar da ignorncia e daincompreenso do povo7. A sua posio especfica levava-os a umasobrevalorizao acrtica do valor do ler e escrever, que os impedia decompreender as razes por que os pais no mandavam os filhos escola.E tendiam a considerar que a soluo residia numa forma qualquer dedoutrinao: essencial interessar o povo na escola, proclamava aRevista Escolar8. As opinies dos inspectores no diferiam das dos profes-sores, que muitas vezes se viam obrigados a defender de acusaes deincompetncia. Em vrios relatrios enviados ao Ministrio da EducaoNacional argumentavam que, contrariamente opinio dominante, a baixafrequncia escolar no resultava da negligncia dos professores, mas daindiferena dos pais. O inspector da zona de Coimbra afirmava que a escolanunca poderia cumprir a sua misso enquanto persistisse a mais absolutae criminosa indiferena das famlias; a escola agonizava no meio da indi-ferena de quase toda a gente, como um corpo estranho enquistado noorganismo social 9.

    Mas, a par disso, muitos outros artigos e relatrios chamavam a atenopara a extrema pobreza prevalecente em quase todo o pas. Num delesdeclarava-se mesmo que muitos professores, ao serem interrogados sobreas razes de uma to baixa frequncia, costumavam explicar: Esta genteno tem que vestir nem calar, nem uma sopa para dar aos filhos, e porisso os manda com os gados dos lavradores ou os utiliza nos serviosdomsticos.10

    Em 1927, Aquilino Ribeiro escreveu em O Sculo um artigo intituladoDo absurdo de criar escolas l l, que provocou um enorme escndalo.Aquilino lanava um ataque frontal crena republicana de que a basedo progresso consistia na educao do povo. No fosse a sua conotaomaterialista, talvez o artigo tivesse sido bem acolhido pelos nacionalistas.Mas a maneira como punha o problema, exclua esse acordo. Fundamental-mente, Aquilino argumentava que as aldeias portuguesas formavam umconglomerado triste, selvagem, pauprrimo, que datava, no da IdadeMdia, mas dos tempos brbaros. Sustentar que tal atraso resultava doanalfabetismo no passava de um absurdo, pois o analfabetismo era o

    6 E. P., n. 97, de 20 de Agosto de 1936.

    T Sobre atitudes idnticas por parte dos professores primrios franceses, ver

    R. D. Anderson, Education..., pp. 167-168.8 R. E., n. 9, 1926.

    9 M. /. P., 1935 (Coimbra); ver tambm M. I. P., 1931 (Guarda), e M. I. P., 1935.

    10 E. P., n. 35, de 6 de Junho de 1935.

    11 S. de 10 de Janeiro de 1927. 323

  • efeito, no a causa. Para qu criar um rgo, interrogava-se, referindo-seao ler e escrever, que no tem funo? E acrescentava: No dia em quesaber ler e escrever lhes seja to til como saber governar o arado, plantarfeijes, ou at jogar o pau, nesse dia as escolas, as mais anti-higinicas elbregas escolas de Portugal abarrotaro de estudantes. E acabava comuma frase que provocou celeuma: {...] em toda a aldeia que no sejaservida, ao menos, pelo macadame, a escola v e absurda.12

    A Federao Escolar, um semanrio radical de professores, no permitiu,porm, que estas perigosas opinies passassem sem crtica e, num artigointitulado Um absurdo do Sr. Aquilino Ribeiro, negou que as escolasestivessem vazias e rebateu a ideia de que o progresso da educao dependiado progresso material. Segundo A Federao, s a instruo, que asditosas crianas portuguesas ento recebiam, as levaria a pedir mais tardeestradas de macadame, caminhos-de-ferro e indstrias13.

    O anarquista Emlio Costa partilhava o ponto de vista de AquilinoRibeiro de que o subdesenvolvimento econmico constitua a verdadeiracausa do analfabetismo. Para ele, a alfabetizao dependia essencialmenteda industrializao: Um caminho-de-ferro, a abertura de um porto navegao, a fundao de uma fbrica ou de um laboratrio, etc, soagentes mais poderosos para a criao de escolas e sua frequncia do queas pregaes dos amigos da instruo e a previdncia legisladora dosgovernos. 14 Logo, todas as campanhas em curso contra o analfabetismoeram inteis e absurdas. Mas, se E. Costa partia dos factores econmicos,no ignorava tambm outras variveis que, segundo ele, desempenhavamum papel importante, nomeadamente o tradicional desdm das classesdominantes pela cultura: ainda um sculo antes, por exemplo, se ouviadizer nos quartis: bom que o sargento saiba ler, porque pode o capitoser fidalgo.

    verdade que tanto Emlio Costa como sobretudo Aquilino Ribeirominimizavam o papel dos factores poltico-ideolgicos no desenvolvimentoeducacional; no entanto, no h dvida de que viam a questo de umaperspectiva original, demonstrando uma percepo notvel para uma pocaem que a educao com frequncia se encarava em termos puramenteideolgicos.

    Outras figuras da oposio, contudo, tratavam o caso de maneira muitomais simplista. Para o velho apstolo da instruo popular, AlexandreFerreira, a causa mais importante do analfabetismo estava em que,no reinado de D. Joo III, a instruo fora entregue Companhia de Jesus,que a monopolizara, manobrando-a segundo as suas convenincias pol-ticas 15, ou seja, o analfabetismo era acima de tudo a triste herana dosconventos.

    Como achavam a instruo uma bno do Cu, os republicanos, evi-dentemente, negavam que a populao rural pudesse considerar a escolacom genuna indiferena. Da que a exigncia de um currculo com sentidoe de um contedo disciplinar til se haja tornado, no num programa

    12 Este argumento, original no perodo em que Aquilino o apresentou, fora j

    expresso nos finais do sculo xix por homens como Oliveira Martins. Ver VascoPulido Valente, Uma Educao..., pp. 107-108.

    " F. K, n. 6, de 19 de Janeiro de 1927.14

    R. de 5 de Agosto de 1934.324 1S D. N. de 24 de Dezembro de 1931.

  • progressista, mas num programa conservador, embora se deva notar queessa campanha constitua sobretudo um ataque aos anteriores currculos,acusados de alheios e hostis s convices e necessidades do nosso bompovo, e no a expresso de uma autntica vontade de reforma.

    Assim se foi o debate progressivamente centrando na questo de saberse o povo estava ou no interessado em mandar os filhos escola. Osrepublicanos sustentavam que, quando no contaminado pela perniciosainfluncia dos padres, ele mandaria espontnea e entusiasticamente os filhoss novas escolas progressistas. O facto de, por vezes, o no fazer s provavaa existncia de uma conspirao da Igreja contra a luz da Razo. Emcontrapartida, para os nacionalistas, no restavam dvidas de que essemesmo povo, devido s suas misteriosas virtudes naturais, tinha pelaescola uma profunda indiferena.

    b) DEVE-SE ENSINAR O POVO A LER?

    Esta pergunta, a que, em 1938, a Cmara Corporativa e a AssembleiaNacional se propuseram responder, no andava longe das interrogaesde outros regimes conservadores alguns sculos antes. J em 1776 oprocurador-geral junto do rei de Frana revelara preocupaes semelhantes.Ser vantajoso ou prejudicial que o Estado tenha camponeses que saibamler e escrever?, exclamava ele, e apressava-se a responder: Jamais houvetantos estudantes [...]. Mesmo aqueles que trabalham querem estudar {...].Os Irmos da Doutrina Crist, a que se d o nome de Ignorantis, prosse-guem uma poltica fatal: ensinam a ler e a escrever pessoas que apenasdeviam aprender a desenhar e a manejar plainas e limas e que depois o noquerem voltar a fazer. O bem da sociedade exige que o saber do povo noexceda aquilo que necessrio s suas ocupaes. Todo aquele que colocaros olhos para alm da sua enfadonha rotina diria jamais voltar a dedicar--se-lhe corajosa e pacientemente. S devero aprender a ler e a escreveraqueles plebeus que vivam dessas prendas ou delas tenham necessidadenos seus misteres quotidianos.16

    Antes de analisarmos a resposta da Cmara Corporativa e da Assem-bleia Nacional, vale a pena recordar as ideias educacionais de Salazar.Nessa rea, a sua grande preocupao consistia em formar um escol nacio-nal. Em 1933 dizia a Antnio Ferro: Considero [...] mais urgente a cons-tituio de vastas lites do que ensinar o povo a ler. que os grandesproblemas nacionais tm de ser resolvidos, no pelo povo, mas pelaslites enquadrando as massas. 17 Num discurso posterior queixava-se deque a imprensa fazia constantes apelos ao Governo para que ensinasseo povo a ler; e impacientemente perguntava: Para ler o qu? 18 Seriaesta a base a partir da qual se construiria a ortodoxia pedaggica dadcada de 1930.

    O relatrio da Cmara Corporativa criticava tanto as posies culturaispositivistas como as irracionalistas se, por um lado, era certo que aeducao nunca faria a humanidade feliz, por outro, era sem dvidaperigoso encarar a inteligncia como um veneno. Devia-se considerara educao, no como um direito individual,, mas como uma necessidade

    16 C. Cippola, Literacy..., p. 64.

    " A. R. N., vol. iv, p. 259.18

    5. de 12 de Maio de 1935. 325

  • do Estado, como agente de doutrinao moral e poltica; a escola podiaconstituir um excelente instrumento de controlo social E, como bvio,s os seres potencialmente incontrolveis tinham necessidade de controlo,o que levou a que a maior parte dos argumentos a favor da escola sereferissem exclusivamente populao das cidades.

    A Assembleia Nacional partilhava a maior parte das convices daCmara Corporativa. O deputado Moura Relvas proclamava com toda aclareza: Ns no temos s de contar com o pendor to natural da nossagente para o conservantismo, para a tradio, para esta magnfica e atcomovente disciplina que a caracteriza. Temos de lhe conferir a conscinciaplena da sua dignidade de povo nacionalista.19 Ao Estado competia,portanto, formar a mente da criana, a fim de que ela acedesse a essadignidade. Para Moura Relvas, no entanto, a funo da escola no selimitava a isso, pois podia tambm desempenhar um certo papel prtico.Como minuciosamente explicou Assembleia, podia ajudar os trabalha-dores a usar a cabea, coisa que, quando entregues a si prprios, tinhamuma especial relutncia em fazer. Talvez que lhes desse alguma capacidadepara prestarem ateno, porque eles, coitados, das criadas de servir aosjardineiros, sentiam muito dificuldade como ele prprio observara em pensar.

    Em resumo, devia-se ensinar o povo a ler por duas razes fundamentais:em primeiro lugar, para se obter ordem nos espritos; em segundo lugar,e muito secundariamente, a fim de que o povo adquirisse certas aptidesrudimentares. Os defensores destas posies receavam particularmente odestino dos camponeses desenraizados que ento afluam s duas maisimportantes cidades do Pas. Uma vez em Lisboa ou no Porto, o camponsanalfabeto perdia imediatamente as suas inmeras qualidades; longe docampo, tornava-se presa fcil de toda a casta de meneurs, que inevitavel-mente o arrastavam para as iluses e os perigos da luta de classes20.

    S com dificuldade podia o Estado Novo reeducar os adultos irreme-diavelmente contaminados pelos antigos ideais do jacobinismo; o que podiafazer e de facto tentou era educar-lhes os filhos: alis, uma tarefaparticularmente urgente. Bastava atravessar determinados bairros de Lisboapara se lhe depararem horrendos bandos de crianas andrajosas e violentas,inteiramente abandonadas aos seus maus instintos. Que dizer, podialer-se num nmero de A Escola Portuguesa, das crianas que vagueiampela cidade, famintas, sem escolas, quase sem famlia, pilhando, comastcia de ratos, sem lei nem governo, o mais necessrio existncia?Cabia ao Estado Novo fazer alguma coisa para defender a sociedade desteflagelo: Onde quer que virdes, no largo ou na rua, um bando de garotos,maltrapilhos ou simplesmente mal cuidados, jogando a bola de trapos,atirando pedras, jogando o murro, dependurando-se nos veculos quepassam, fugindo da polcia, espreitando a esmola ou o furto, [...] a esto perigo social.21

    De facto, para alguns partidrios do Estado Novo, a escola primriaconstitua potencialmente um excelente instrumento de controlo; ou seja,nas palavras do inspector Joaquim Toms, podia tornar-se a mais diligentee disciplinada polcia de Segurana do Estado22. A represso fsica no

    10 D. S. de 25 de Maro de 1938.

    20 Ibid., id. (discurso de Correia Pinto).

    21 E. R, n. 16, de 24 de Janeiro de 1935.

    326 22 D. N. de 23 de Setembro de 1935.

  • bastava para manter quietos e sossegados os pobres das cidades, pelo queo Estado tinha igualmente de se esforar por civiliz-los 2S.

    Nada mais til aos apologistas desta poltica do que uma intentonarevolucionria. A ideia da escola instrumento-de-socializao-de-crianas--selvagens vinha ao de cima cada vez que surgia qualquer actividadesubversiva contra a ditadura, e at 1933 elas no faltaram. Em 1931,uma insurreio na Guin e outra na Madeira, um sangrento 1. de Maioe um levantamento militar e civil em Lisboa forneceram argumentosqueles que defendiam a tese das potencialidades contra-revolucionrias daescola. Nessas alturas citavam-se os exemplos da Inglaterra, da Frana e daSucia para provar que a paz social podia coexistir com a alfabetizaodas massas. E sugeria-se que, pelo contrrio, o analfabetismo constituaterreno frtil para as doutrinas dissolventes e perniciosas, como a Rssiao demonstrava saciedade.

    Entre estes tericos figuravam os situacionistas prximos do fascismoitaliano, que defendiam um regime poltico mais dinmico. Receavam eles,em especial, que a lite portuguesa no fosse capaz de influenciar as massasse o nmero de analfabetos no diminusse: [...] com percentagens de60, 70 e 80 por cento de analfabetos, a civilizao aflora aqui e alm, masno entra no mago do Pas, no constitui o arcaboio forte do nossocorpo social.2 A escola devia servir como instrumento de mobilizaode um apoio de massa Revoluo Nacional.

    Contudo, nem todos os partidrios de Salazar comungavam nestasideias, que, alis, ele prprio no aceitava por completo. Salazar desconfiavada propaganda de massa e achava que aqueles que advogavam a teoriado papel civilizador da escola tendiam a minimizar a tendncia naturaldo povo portugus para o conservadorismo.

    Entretanto, vultos importantes do novo regime advogavam abertamenteas glrias do analfabetismo: Alfredo Pimenta era o mais franco destacorrente extremista. Em 1928 escrevia que ensinar a ler quem sabe apenasque no se deve fazer o que est proibido no Cdigo Penal no, noe no!25. Outro defensor da tese obscurantista, Virgnia de Castro eAlmeida, explicava em pormenor: {...] sabendo ler e escrever, nascem-lhesambies: querem ir para as cidades ser maranos, caixeiros, senhores;querem ir para o Brasil. Aprenderam a ler! Que lem? Relaes de crimes;noes erradas de poltica; livros maus; folhetos de propaganda subversiva.Largam a enxada, desinteressam-se da terra e s tm uma ambio: seremempregados pblicos. Que vantagens foram buscar escola? Nenhumas.Nada ganharam. Perderam tudo. Felizes os que esquecem as letras e voltam enxada. A parte mais linda, mais forte, e mais saudvel da alma portu-guesa reside nesses 75 por cento de analfabetos. 26 Em 1807, o presidenteda English Royal Society usara exactamente os mesmos argumentos paracombater a proposta de lei relativa introduo de escolas elementaresem Inglaterra. Mas isso fora em 180727.

    23 Ver David S. Landes, The Unbound Prometheus..., pp. 34/42, no que toca

    ao significado da educao elementar obrigatria em Inglaterra.24

    D. N. de 8 de Setembro de 1931.25

    V. de 15 de Maio de 1930.26

    S. de 5 de Fevereiro de 1927.27

    J. L. Hammond e Barbara, Town..., p. 57. Afirmara ento no Parlamento:Por mais acertado que fosse, em teoria, o projecto de levar a instruo aos tra-balhadores pobres, na prtica, isso seria prejudicial moral e felicidade deles; 327

  • Nestes primeiros tempos da ditadura, quando ainda no havia umacensura total, o artigo de Virgnia de Castro c Almeida no ficou semresposta. Pela ltima vez, A Federao Escolar teve oportunidade derebater as teses reaccionrias: Se querem fixar o homem terra, por Deus!,no lhes fechem as escolas! No o cegem! No o confundam com um animalde carga! Dem-lhe ensino tcnico; crdito. Criem as grandes indstrias doferro e qumicas. Aproveitem as grandes fontes naturais de energia, O capi-tal que no deserte. Quando ele se fixar, fixa-se o brao que o h-de fazerprosperar. 28 Mas, depois deste desabafo, apenas se fizeram ouvir as vozesdo conformismo.

    Os dirigentes mais realistas do Estado Novo tinham conscincia de queo sistema escolar no podia ser transformado de um dia para o outro;e tambm no achavam desejvel ou sequer exequvel encerrar todas asescolas para pobres, como propunham alguns extremistas. Porm, entreo analfabetismo e uma instruo pag, preferiram, evidentemente, oanalfabetismo.

    Muito pior que a treva do analfabetismo num corao puro, ainstruo materialista e pag, dissera Carneiro Pacheco em 1936 29. A esco-lha, no entanto, no se limitava a essas duas alternativas: talvez se conse-guisse ensinar o povo a ler sem lhe destruir a pureza do corao. E, comefeito, por a se orientou a futura poltica oficial.

    Depois de reduzir a escolaridade obrigatria, primeiro a quatro e, aseguir, a trs anos, o Estado Novo decidiu que a nica instruo necessriaao povo era a religio. Um desolado artigo em A Federao Escolarlamentava ento: Ah, marqus de Pombal, se soubesses como por c setrata aquela rvore que plantaste, acarinhaste e que floriu (aqui) muitoantes de enraizar na ptria dos outros! Morreste a tempo!30

    Tanto a concepo de que a escola primria para pobres devia fechar,como a de que ela se devia dedicar prioritariamente a transmitir aptidesprofissionais, acabaram por ser derrotadas. pergunta Deve-se ensinaro povo a ler?, a resposta ortodoxa foi Sim, desde que o livro seja o cate-cismo. Segundo o ponto de vista oficial, [o Governo] faltaria ao maissagrado dos seus deveres se deixasse o povo livremente entregue a todasas iniquidades e aberraes da inteligncia humana31. Numa palavra,a resposta do Estado Novo velha questo do analfabetismo consistiuem reintroduzir doses macias de religio nos currculos primrios.

    c) COMO RESOLVER O PROBLEMA DO ANALFABETISMO?

    Desde cantinas a campanhas de imprensa, desde professores bem remu-nerados a sanes aos pais relutantes, desde o aumento do nmero deescolas particulares a novos impostos tudo foi considerado soluopossvel para o problema do analfabetismo.

    ensin-los-ia a desprezar a sua sorte, em vez de os tornar bons trabalhadores agrcolase de outros misteres prprios da sua condio social; em vez de os ensinar a serrespeitadores, lev-los-ia poltica e revolta (...]; permitir-lhes-ia ler panfletossediciosos, livros inquos e publicaes contra a religio; f-los-ia insolentes paracom os superiores; e ao fim de alguns anos o Parlamento ver-se-ia na necessidade deerguer sobre eles o vigoroso brao do poder.

    28 F. K, n. 17, de 12 de Maro de 1927.

    29 E. P., n. 69, de 6 de Fevereiro de 1936.

    30 F. K, n. 17, de 12 de Maro de 1927.

    328 31 E. R, n. 145, de 5 de Agosto de 1937.

  • Estranhamente supunha-se que a punio dos analfabetos os estimulariaa aprender: uma velha ideia que agradava tanto a nacionalistas como arepublicanos. E que, como evidente, tambm atraa os professores pri-mrios: se as pessoas no compravam a excelente mercadoria que elesforneciam, porque no castig-las? Um professor chegou at a sugerir queem matria de incapacidade jurdica se equiparassem os analfabetos aosdementes; outro queria que os analfabetos pagassem uma multa de trintaescudos (as mulheres tinham desconto). No entanto, s uma pena foiinstituda por lei: em 1929, um decreto proibiu os analfabetos de emigrar32.Mas nunca se cumpriu.

    Contudo, alm da fora, recorreu-se tambm persuasso. Em 1931,por exemplo, o Dirio de Notcias lanou uma Campanha contra o Anal-fabetismo que assentava nos seguintes pressupostos: era preciso convencero povo a cultivar-se; a iniciativa privada tinha obrigao moral de auxiliaro Estado na luta contra o analfabetismo; e os ricos de dar uma ajuda. Valea pena transcrever o anncio da Campanha: A maior vergonha nacional.Vai comear o grande combate contra o analfabetismo. A patritica cam-panha do Dirio de Notcias far brevemente sentir os seus benficos efeitosem todos os concelhos de Portugal. [...] Abaixo o analfabetismo; Eis ogrito de guerra que se repercute em todas as aldeias e vilas de Portugal. este o clamor da sagrada e patritica revolta que se ouve em toda a parte.Levantada a alma nacional, despertada por intermdio do Dirio de Notciasa conscincia colectiva, que se encontrava adormecida merc de um destesfenmenos psicolgicos tantas vezes verificados quando a multido aban-donada a si mesma, necessrio agir com a convico de que vamos todos os portugueses cumprir o mais patritico dos deveres.33

    Esta santa cruzada organizou comisses por todo o pas e durantemais de um ano encheu centenas de pginas de jornal. No produziu,naturalmente, qualquer efeito: nem espicaou o zelo das classes dominantes,nem despertou as grandes massas da letargia. Para a oposio, e apesar doseu fervor, no passava naturalmente de um disparate. Os republicanossustentavam agora que s com mais dinheiro se obteriam melhores resul-tados: No se pode fazer po sem massa, nem mesmo o do esprito. 34A perda do poder contribura muito para os tornar lcidos.

    d) IMAGENS DO ANALFABETO E DO ALFABETIZADOComo seria de esperar, os nacionalistas viam os analfabetos a uma

    luz relativamente favorvel: os analfabetos tinham uma cultura prpria,conduziam-se com decoro, eram diligentes. Analfabetismo no significavanem ignorncia, nem imoralidade. Os analfabetos podiam ser saudveis efelizes e viver com honestidade e decncia; de resto, em geral, no preju-dicavam os outros, no alimentavam ambies reprovveis e mostravam-sesubmissos e resignados.

    Um discurso do P.e Correia Pinto35, na Assembleia Nacional, descreveo analfabeto arqutipo da ideologia nacionalista: Vocs julgam que esse

    32 Decreto n. 16 782, de 17 de Abril de 1929.

    33 D. N. de 4 de Outubro de 1931.

    M R. de 20 de Julho de 1932.

    35 Licenciado em Direito pela Universidade de Coimbra, Correia Pinto era um

    advogado clebre que defendera frequentemente os infractores Lei de vSeparaodurante a Repblica. Era tambm professor de Direito Cannico e, facto maissignificativo, o autor dos estatutos do C. A. D. C. 329

  • homem no tem cultura nenhuma? um engano. Esse homem tem umacultura teolgica, aprendida no catecismo cristo, talvez na igreja da suaaldeia ou na escola. Tem uma cultura filosfica, um conceito da vida,um conceito do mundo. Esse homem tem uma cultura meteorolgica;conhece os rumores do tempo e l no cu, como faziam os velhos pastoresda ndia. Esse homem tem uma cultura agrcola, talvez um pouco prejudi-cada pela rotina. Esse homem tem uma cultura, uma polidez e uma boaeducao; sabe tratar com os fidalgos e sabe tratar com gente da sua igualha.E chama-se a esse homem um inculto, um desprezvel analfabeto.36

    Os dirigentes do Estado Novo sabiam que contavam com o apoioincondicional do campesinato analfabeto, rgo eminentemente sadio docorpo social, e, portanto, no o menosprezavam. Em 1926, o ministro daInstruo, Alfredo de Magalhes, admitindo embora que o cargo lhe norecomendava o elogio dos analfabetos, confessou que confiava cegamenteneles37. E, para Salazar, os camponeses, graas a processos misteriosos,compreendiam a Revoluo Nacional melhor do que qualquer outro gruposocial: [..Jo povo portugus apreende por intuio notvel o sentidoprofundo da transformao que se opera e tem por natureza ou educaosecular o sentido de um destino nacional que nada tem que ver com amodstia dos seus recursos e o baixo nvel da sua instruo.38

    Os responsveis pela poltica educacional no podiam (apesar de algunso fazerem) enaltecer abertamente o analfabetismo. No entanto, muitospartilhavam secretamente a convico ento expressa pelo conde de Aurora:Felizes aqueles que no sabem ler! Da que no perdessem uma ocasiode enumerar os terrveis riscos a que se expunham os que sabiam ler eescrever. No mesmo discurso em que citava o ditado Quem no sabe como quem no v, Carneiro Pacheco lembrou outro bem mais prudente:Tanto l que tresl. 39 Se o analfabetismo no era uma virtude, pelomenos oferecia uma certa segurana: um analfabeto nunca podia tresler.

    Com as touradas e a prostituio, o analfabetismo constitua para osrepublicanos um smbolo da sociedade brbara que queriam abater. Umcancro40, uma cegueira41, uma lepra42: eis como habitualmentese lhe referiam. Alienados, imersos nas trevas, os analfabetos aguardavampassivamente que a luz da Razo lhes iluminasse o esprito. E, mesmo seinocentes do seu lastimoso estado, no passavam sem dvida de seresmutilados, privados de vida espiritual autnoma, marginais, como quecrianas tolas43, ou simples clulas enferrujadas, a contaminar o orga-nismo social a que pertenciam44, incapazes de ver, sentir ou entendero que quer que fosse do mundo que os rodeava. Alexandre Ferreira chegoua dizer que uma mulher analfabeta no podia ser uma boa me 45. Um

    330

    36 D. S. de 25 de Maro de 1938.

    37 D. AT. de 17 de Dezembro de 1926.

    38 A. Salazar, Discursos..., vol. m, p. 37.

    39 E. P., n. 190, de 19 de Junho de 1938.

    40 D. N. de 3 de Outubro de 1931.

    1 Ibid., de 16 de Outubro de 1931.

    12 S. de 15 de Maio de 1930.Ibid., id.

    14 Ibid., de 15 de Outubro de 1932.D. N. de 24 de Dezembro de 1931.

  • poema escrito por um inspector do Porto ilustra bem as ideias dominantesno campo jacobino:

    No tm vista, coitadinhos,So cegos, no podem ver;Mas... mais cegos que os ceguinhosSo os que no sabem ler46.

    Mas, com frequncia, os republicanos apelavam directamente, e porescrito, para esses mesmos alienados, tolos e enferrujados, na convicode que seria a melhor maneira de os trazer ao maravilhoso mundo do saber:Analfabetos! preciso aprender. preciso estudar! Quem no sabe ler, como um ceguinho que no percebe por onde vai e caminha sem bor-do [...] Acreditai-me: as vinte e cinco letras do alfabeto so um rosriode luz. Se cie faltasse de repente Humanidade, ficaramos to cheios desombra, to cheios de frio, to cheios de incerteza, como se no cu azulhouvesse morrido o Sol.47

    Era precisamente este fetichismo do alfabeto que os salazaristaspretendiam destruir. Vezes sem conta insistiram em que per se a instruono representava necessariamente um bem. Como o deputado QuerubimGuimares sublinhou na Assembleia, os efeitos histricos mais gloriososda nao portuguesa a Reconquista, os Descobrimentos, a Restaurao no tinham sido obra de letrados. Para a pergunta: Os companheiros doGama sabiam ler e escrever?48, s havia uma resposta uma Naocapaz de praticar to magnficas faanhas em estado de santa ignornciano precisava obviamente de aprender a ler.

    A pequena burguesia urbana era, naturalmente, o grupo social quemais estimava o alfabeto. A Repblica, por exemplo, declarava a escolaa bssula primordial que norteia e levanta os povos49. Certos sectoresda classe operria, sobretudo os mais privilegiados, partilhavam esse pontode vista. Um povo ignorante seria sempre um povo escravo e, por conse-quncia, os trabalhadores deviam empregar o tempo livre a aprender a lere a escrever, para se prepararem para a Revoluo. A luta exigia-o e tam-bm a esperana do dia em que pudessem governar. Alm disso, asverdades sociais no se descobriam apenas pela intuio, coisa que,infelizmente, muitos militantes tendiam a esquecer: No brincando sconspiratas, no andando aos segredinhos, com senhas e acenos manicos, mistura com tragos de lcool por esses botequins e tabernas, que sefazem revolues.50 As revolues faziam-se com trabalho aplicado eestudo aturado. Os dirigentes operrios esforavam-se por convencer ostrabalhadores de que estudar, se bem que pouco espectacular, fatigante ecomplexo, constitua um exerccio mais proveitoso do que as constantese frustradas tentativas insurrecionais. Pelo menos para eles, o saber ler eescrever revestia-se de enorme prestgio, como atestam inmeros artigosde, por exemplo, o jornal dos tabaqueiros, A Voz do Operrio. Numa sesso

    46 E. AT., n. 138, de 20 de Outubro de 1929.

    4T R. de 24 de Fevereiro de 1937.

    48 D. 5. de 26 de Maro de 1938.

    49 R. de 17 de Julho de 1931.

    80 B. de 3 de Dezembro de 1933. 331

  • comemorativa realizada na respectiva sede, o seguinte poema, escrito pelopresidente da comisso administrativa, foi solenemente declamado:

    em verdade enorme o jeito da criana.No sabe bem porqu, mas sente uma esperanaDe para um dia alm o ensino lhe servir.Tem fome de instruo, tem sede de subirE sobe muito e muito aquele que mais l.Os cus, a terra, o mar, o mundo todo vEm risos, em amor, em luz e tempestades;A Histria, e o seu Erro e Crimes e Verdades,Cincias, Ideais, o Pensamento e a VidaTudo cabe l dentro em Alma esclarecida51.

    Por fim devemos sublinhar que o desdm pela capacidade de ler eescrever contrariava convices profundas e antigas. De modo geral, mesmoconsiderando que essa capacidade de nada lhes servia, as massas popularescontinuavam a v-la como valor positivo, como alguma coisa a que sos poderosos tinham acesso. Em 1934, o conhecido pedagogo Dias Agudoqueixava-se de que no podia dar aulas sem usar manual, porque os alunose os pais protestavam. E no conseguia perceber o culto que dava aolivro um prestgio to grande, sobretudo em pais pobres, que, apesar demal poderem pag-los, no deixavam de manifestar pelos livros um estpidorespeito. Um papel que diz coisas, espantava-se Dias Agudo, produzsempre admirao.52

    O antroplogo Jos Cutileiro verificou tambm nos anos 6053 que aosolhos do campesinato [alentejano], se afiguravam intimamente associadoso saber e o poder, o governo e a universidade64. E, como exemplo doprestgio de que entre os camponeses gozava quem sabia ler e escrever,conta que um cabo aposentado da Guarda Republicana lhe disse: O ho-mem mais inteligente que conheci foi um sargento no Quartel-General emLisboa. Escrevia com as duas mos ao mesmo tempo.55

    Os pobres respeitavam e admiravam as pessoas cultas como se fossemsuperiores. Isso no significava que achassem as letras uma aquisioconveniente, ou possvel, para os prprios filhos. Mas para muitos, deresto, ler e escrever no era tanto uma aptido negativa como uma pers-pectiva remota, parte de um mundo a que no tinham qualquer esperanade aceder. No entanto, o ler e escrever no representava apenas um smbolode status. verdade que a maioria dos pais pensavam que o saber nod po, mas outros, talvez numa situao ligeiramente superior, estavamconscientes de que s a alfabetizao livraria os filhos da vida de servidorural a que o sistema os condenara.

    Demais, como se disse, os trabalhadores respeitavam aqueles que liame escreviam. Embora a posio ideolgica de Alves Redol o fizesse inevita-

    81 A Voz do Operrio de 6 de Fevereiro de 1927.

    a R. de 31 de Julho de 1934.

    53 Jos Cutileiro, Ricos e Pobres no Alentejo (Uma Sociedade Rural Portuguesa);

    se bem que as suas referncias digam respeito a um perodo ulterior, as atitudes docampesinato no sofreram mudanas to profundas que tornem irrelevantes asconcluses a que aquele autor chega.

    " Id., ibid., p. 365.332 Id., ibid.,, p. 266.

  • velmente tomar partido pela instruo, esta passagem de um dos seusromances no demasiado inverosmil: O Forneas naquelas coisas decabea era a ltima palavra. Sabia mais do que todos os outros andarana escola e era capaz de ler umas letras. Bocado de jornal que o ventoarrastasse, logo ele lhe galgava atrs para o soletrar. E os companheirostambm no desperdiavam papel que se visse, porque gostavam de ouviro Forneas ler aquelas coisas. Ele s sabia bem as letras grandes. [...]Isso lhes dava o respeito dos camaradas.56

    Nunca os republicanos deixaram de considerar o analfabetismo comoa causa de todas as misrias nacionais, viso que na prtica s favoreciaos interesses dos nacionalistas, sempre prontos a explorar os argumentosobviamente fracos do adversrio. E a polmica arrastou-se sem glria:a instruo evitava ou no a criminalidade, trazia ou no a felicidade, eraou no subversiva? Para a pequena burguesia urbana, desejosa da mobili-dade social que a escola lhe proporcionava, apenas a instruo conduziaa uma sociedade melhor. Mas o Estado Novo no esquecia que a suaexistncia dependia em larga medida de um campesinato catlico e anal-fabeto. E, como a ordem social se tinha de conservar tanto quanto possvelimutvel, mais de metade da populao portuguesa tinha tambm de con-tinuar imersa nas seculares trevas mentais. E assim sucedeu.

    Pode dizer-se, em resumo, que, de maneira geral, a nova classe dirigentesalazarista via o analfabetismo a uma luz positiva. Algumas nuances eramcontudo ntidas no interior do regime. Se existiam idelogos que achavamo analfabetismo uma bno e que cruamente o declaravam, outros acha-vam-no negativo, mas inevitvel, tratando-se dum povo to intuitivocomo o nosso; por ltimo, havia igualmente quem temesse os perigos dedeixar as massas expostas ignorncia e subscrevesse uma verso menosentusistica das teses oficiais. Tanto quanto se percebe pela massa opacados discursos e artigos, as classes dominantes estavam divididas (como emInglaterra na primeira metade do sculo xix) quanto convenincia demanter o povo analfabeto, embora a clivagem no fosse essencial. pro-vvel que a aristocracia fundiria portuguesa, a quem as convulses sociaise a degradao urbana resultantes da industrializao no diziam directa-mente respeito, visse o analfabetismo com um olhar mais favorvel do queos sectores ligados indstria, aos quais esses problemas tocavam de pertoe que, mais astutos, consideravam j a escola como um meio privile-giado de controlo. Mas, em 1930, essas vozes mal se ouviam no concertodo salazarismo.

    2. OBJECTIVOS DA ESCOLA SALAZARISTA: A SAGRADA OFI-CINA DAS ALMAS87

    Os novos objectivos apontados escola pelo salazarismo pretendiamcombater as aberraes que o liberalismo e a Repblica haviam inculcadona mente popular. A uma educao excessivamente intelectual deviamcontrapor-se os conceitos da doutrina crist, sobretudo as palavras deSo Paulo: Mulheres, sede submissas a vossos maridos, como convmsegundo o Senhor. Maridos, amai as vossas mulheres e no as trateis com

    M Alves Redol, Gmbus... (sublinhado meu); ver tambm o romance Fatiga.

    w Salazar. 333

  • aspereza. Filhos, obedecei em tudo a vossos pais, porque isto agrada aoSenhor. [...] Servos, obedecei em tudo a vossos senhores terrenos, noservindo s na presena, como quem busca agradar a homens, mas comsinceridade de corao, temendo a Deus. 58 Tratava-se, em suma, de res-suscitar a moral tradicional do temor a Deus e ao amo.

    Sob a poderosa influncia das ideias positivistas, tanto a Monarquialiberal como a Repblica tinham querido modernizar o Pas. E, comoacreditavam que o desenvolvimento dependia da renovao das mentali-dades, a educao ocupou para ambos um lugar ideologicamente muitoimportante. escola cabia formar, no apenas o cidado consciente dademocracia moderna, como tambm, o que era ainda mais urgente, o oper-rio qualificado necessrio industrializao.

    O salazarismo rejeitou estes pressupostos. Nem a democracia nem odesenvolvimento econmico eram coisas positivas; as massas nunca pode-riam exercer o poder e a industrializao continha em si males e perigos.A educao do povo representava um ideal utpico e demaggico queapenas dava uma ilusria elevao massa ignara e inferior.59 Qualqueresforo srio nesse sentido s seria eficaz pelo chamado mtodo indirecto,isto , mediante a preparao de um escol que formaria a mente dos quelhe ficavam abaixo na escala social. A crena pueril em uma difusoigualitria da cultura60 era inaceitvel.

    Em 1934, numa circular enviada a todos os professores, o Estado Novodefinia a escola primria: [...] o viveiro de que uma sociedade dispepara cultivar os valores ticos e profissionais de que precisa e ensaiar ohomem que lhe convm. 61 Reconhecia, por conseguinte, como bsica afuno socializante da escola.

    Um dos objectivos deste artigo consiste em analisar o tipo de homemque o salazarismo tentava ensaiar. Para um melhor entendimento daquesto, concentrar-nos-emos em duas das mais reveladoras controvrsiaspedaggicas contemporneas: o debate sobre a escola nica e o debatesobre educao versus instruo.

    a) OS HOMENS NO NASCEM IGUAIS: O DEBATE SOBRE A ESCOLAAlguns socilogos contemporneos mostraram como as sociedades in-

    dustriais avanadas utilizam o sistema escolar para legitimar as desigual-dades sociais, fundando-se na ideologia meritocrtica segundo a qual asposies privilegiadas so acessveis a todos os indivduos de igual talento 62.As sociedades democrticas, em especial os Estados Unidos da Amrica,sentiram a necessidade de justificar as profundas desigualdades econmicasque nelas se mantm, apesar dos proclamados ideais de liberdade, frater-nidade e igualdade. Uma das formas possveis de justificao residia emexplic-las por diferenas individuais inatas de capacidade intelectual, comoreveladas pela seleco escolar. Sendo a transferncia de status por viahereditria condenada pela ortodoxia do poder, passou a considerar-se adiferenciao social como produto de aptides individuais.

    68 Epstola de So Paulo aos Colossenses, in, 18-22.

    59 D. M. de 16 de Abril de 1935.

    80 E. P., n. 222, de 26 de Fevereiro de 1939.

    61 Ibid., n. 1, de 11 de Outubro de 1934.

    M Em particular S. Bowles e H. Gintis, I. Q. in the U. S. ..., Harvard Ins-

    334 titule of Economic Research, 1972; id., Schooling...

  • A viso salazarista da sociedade como uma estrutura hierrquica imu-tvel conduziu a uma concepo diferente do papel da escola: esta no sedestinava a servir de agncia de distribuio profissional ou de detecodo mrito intelectual, mas sobretudo de aparelho de doutrinao. Para osalazarismo no havia, alis, qualquer razo para justificar as desigualdadeseconmicas, que eram inevitveis e institudas por Deus, E convinha at,pelo contrrio, rebater as falsas ideias do passado que apresentavam aescola como a grande niveladora. Salazar afirmava mesmo categorica-mente que a educao, s por si, pouco nivelaria, ou seja, que numa socie-dade naturalmente hierarquizada, a educao pouco poderia contribuir parauma maior igualdade fts.

    Contudo, antes de a ortodoxia ser imposta pela fora (isto , at cercade 1932), houve um perodo de violento debate sobre as vantagens, limita-es e perigos da escola nica. A polmica foi crucial, tanto para situacio-nistas como para republicanos, porque levantava as questes fundamentaisda igualdade e da democracia64.

    A imprensa republicana e os jornais operrios defendiam que a escolaprimria devia, acima de tudo, promover a igualdade e, portanto, recrutaralunos em todas as classes sociais. Para os jornais nacionalistas tratava-seprecisamente de desacreditar estas ideias. Em seu lugar, o Estado Novopropunha a teoria de uma hierarquia natural e eterna e de um sistemaescolar naturalmente discriminatrio.

    Os defensores da escola nica visavam principalmente trs objectivos:a igualdade de acesso instruo, a gratuidade dela e a criao de umsistema de orientao vocacional. Todas as crianas, ricas ou pobres,raparigas ou rapazes, do campo ou da cidade, deviam gozar das mesmasoportunidades educacionais. A escola nica permitir-lhes-ia subir aospostos superiores da sociedade, consoante as suas faculdades e aptides65,o que beneficiaria no s o indivduo, mas tambm a sociedade: E porqueh-de ser cavador ou sapateiro, perguntava A Repblica, quem tiverinteligncia para muito mais?66 Numa palavra, a escola nica era ocadinho de todas as classes, donde a harmonia social progressivamenteemergiria.

    63 A. Salazar, Discursos, vol. I, prefcio, pp. 30-31.

    M Passaremos em revista as posies tanto dos republicanos como dos conser-

    vadores, utilizando como principais fontes os jornais nacionais e as revistas educa-cionais. O principal jornal republicano, A Repblica, fundado em 1910 pelo mode-rado Antnio Jos de Almeida, reaparece em 1930 como porta-voz da Unio detodos os republicanos. A mais radical e mais antiga das revistas dos professores,A Federao Escolar, constantemente perseguida pelo novo regime, teve de mudarde nome a partir de 1927 pelo menos quatro vezes; aps um longo e dolorosoprocesso, desaparece de todo em 1937. Todavia, em 1927, a morte do seu joveme corajoso director, Antnio Augusto Martins, f-la perder grande parte da suaagressividade. Faremos ainda referncias a O Ensino Primrio, revista semi-ilegalque procurou substituir a anterior revista dos professores, O Professor Primrio,at que foi igualmente silenciada em 1930. Porta-voz republicano quando comeoua publicar-se, nos anos de 1880, O Sculo comprometeu-se progressivamente como regime de direita que despontava na dcada de 1920. Da faco conservadora men-cionaremos em especial o jornal da hierarquia catlica Novidades, o jornal monr-quico catlico A Voz, a revista educacional conservadora A Educao Nacional e,por ltimo, o semanrio da Direco-Geral do Ensino Primrio, A Escola Portuguesa.Citaremos ainda o jornal oficial da C. G. T., A Batalha.

    65 R. de 18 de Agosto de 1933.

    66 Ibid., de 9 de Novembro de 1932. 335

  • Fora este o sonho dos homens da revoluo de 1910, daquele legisladorque garantia que os Portugueses no tardariam a transformar-se numacolmeia e a, pacfica e diligentemente, unindo
  • apenas pelo lugar que Marcello Caetano ocupava no regime, como aindaporque constitui a melhor exposio daquilo que muitos outros se esfor-avam por dizer.

    O conceito de escola nica representava, para M. Caetano, um simplesslogan que os partidos radicais tinham cunhado para substituir os gastosslogans anticlericais. Em ltima anlise, constitua uma tentativa dos intelec-tuais para conquistar o poder poltico. Na opinio dele, a Repblica Fran-cesa evolura j de um reino de advogados para um reino de professores.A escola a fazer a seleco dos valores bem uma ideia prpria de umpartido de pedagogos com ambies polticas. A escola nica tornara-se,no entanto, num mito influente cuja popularidade resultava do facto de seruma verso particularmente respeitvel das antigas ideias igualitrias, quesatisfazia tanto a ala esquerda como a ala direita dos partidos radicais, per-mitindo primeira continuar a acreditar na iminncia da revoluo, en-quanto assegurava segunda que esta se limitaria a uma mera acointelectual.

    Mais: se o mito da escola nica se transformasse em realidade, transfor-mar-se-ia tambm num crime, visto que violava os sagrados direitos dafamlia ao tirar a educao dos filhos autoridade dos pais, por falta decoragem e desassombro para exigir a prtica pura e simples do sistemabolchevista, imitado dos velhos usos pagos.

    Marcello Caetano baseava a condenao da escola nica numa curiosateoria sobre a origem da inteligncia. No s acreditava na diferena inatadas capacidades individuais, como sustentava que as ideias, as noes, asexperincias vo-se elaborando atravs umas poucas de geraes at florirem determinada altura, na pessoa de um dos membros da linhagem [...],a gestao duma inteligncia superior trabalho de muitos anos, de sculosat. O mrito e a classe social encontravam-se, assim, inteiramente rela-cionados; a estrutura social, divinamente instituda, tinha um fundamentopsicolgico. Pensar bem requeria um prolongado exerccio mental e umapreparao estranhos s classes inferiores; por conseguinte, ao nascer nelas,uma criana s muito dificilmente conseguiria ascender na escala social.Deste modo, M. Caetano, reconhecia, e aceitava, o papel que os factoressociais desempenhavam no desenvolvimento intelectual, mas para negara possibilidade de mobilidade ascendente. Nas suas prprias palavras:Uma criana inteligente, filha de um operrio hbil e honesto, pode, naprofisso de seu pai, vir a ser um trabalhador exmio, progressivo e apre-ciado, pode chegar a fazer parte do escol da sua profisso, e assim deveser. Cada classe possua a sua hierarquia interna, nos limites da qual omrito contava. Num sentido mais lato, porm, o status era herdado.

    Nestas condies, a escola nica acarretaria desastrosas consequnciaspara os indivduos que atravs dela se promovessem. Filho de operrioque subisse por intermdio da escada educacional pagava um altopreo: Seleccionado pelo professor primrio para estudar cincias paraas quais o seu esprito no tinha a mesma preparao hereditria que tinhapara o ofcio, no passaria nunca de um medocre intelectual, quando muitoum homem sbio, mas incapaz de singrar na vida nova que lhe [haviamindicado] sem o ouvir.72

    E com este supremo -vontade rebatia M. Caetano os pressupostos daescola nica, denunciava as razes implcitas na sua defesa e previa que da

    V. de 24 de Janeiro de 1928; Ibid., de 26 de Janeiro de 1928. 337

  • sua instituio resultariam coisas funestas. Numa palavra, tentava aboliro pernicioso princpio da distribuio aleatria da capacidade intelectual.73

    Inesperadamente, o ministro da Instruo, Eusbio Tamagnini, forne-ceu uma base cientfica a esta nova ideologia inigualitria. Alegando queo psiclogo americano Terman provara que o nvel mental dos alunos eravarivel, Tamagnini conclua que a populao escolar portuguesa se divi-dia em cinco grupos: ineducveis (8 %), normais estpidos (15 %), inteli-gncia mdia (60 %), inteligncia superior (15 %) e notveis (2 %).7 4 Porconseguinte, os ideais democrticos baseavam-se em permissas contradit-rias e biologicamente falsas. A escola nica no passava de um absurdo.

    A doutrina oficial declarava a igualdade impossvel e os regimes demo-crticos indesejveis e contra natura, porque impediam, na escola e nasociedade, que os talentos brilhassem e se desenvolvessem.75 Ao ani-quilar a harmoniosa estrutura do ancien regime e ao erguer em seu lugaro indivduo isolado e omnipotente, a democracia conduzia, em ltima an-lise, ao comunismo. Alm disso, as vrias classes sociais no tinham apenascapacidades desiguais, mas tradies e necessidades prprias. A existnciade culturas de classes especficas (e hierarquizadas) serviu aos idelogossituacionistas de novo argumento a favor de um sistema escolar diferen-ciado 76: seria um erro crasso dar ao quarto estado a instruo do terceiro,do segundo ou do primeiro77.

    No contexto portugus, ser-se educado segundo a posio social signifi-cava, acima de tudo, aceitar a condio rural. Na verdade, a tnica nosvalores do campo tornar-se-ia um dos traos-chave da ideologia oficial.Em 1934, o primeiro Congresso da Unio Nacional determinava taxativa-mente que o ensino devia prender o homem terra, dando-lhe elementospara nela viver e a valorizar.78

    Existiam, no entanto, dois processos de prender o homem terra:proporcionar-lhe uma preparao profissional adequada ou, pura e sim-plesmente, doutrin-lo. No comeo da dcada 1930-40, algumas personali-dades do regime bateram-se pela adopo de currculos distintos para asescolas rurais e urbanas. Em 1935 chegou a debater-se na Assembleia Na-cional uma proposta nesse sentido. J antes a Cmara Corporativa a rejei-tara, alegando que essa especializao deveria ficar para os nveis subse-quentes, e acrescentara a objeco razovel de que, no quadro de uma eco-nomia rural to atrasada como a nossa, os prprios pais podiam perfeita-mente transmitir aos filhos as tcnicas agrcolas. Na Assembleia Nacional79manifestaram-se igualmente discordncias, sendo os principais ataques diri-gidos ao pendor utilitrio da reforma. Para o deputado Moreira de Al-meida, ela assentava numa filosofia tecnocrtica. E para toda a Assembleia,o Ministrio da Instruo devia preocupar-se fundamentalmente com osprincpios que norteavam o Estado Novo, e no com a transmisso de tc-nicas. Acresce que os laos que prendiam o homem terra no resultavam

    n Ver em Ea de Queirs, O Conde de Abranhos, 1973, p. 57, o comentrio

    necessidade de acentuar as diferenas intelectuais entre operrios e senhores, a fimde conseguir uma sociedade classista estvel.

    74 D. N. de 21 de Novembro de 1934.

    " V. de 1 de Novembro de 1929.19

    E. Prim., n. 109, de 10 de Julho de 1932" V. de 2 de Abril de 1932.n E. P., n. 1, de 11 de Outubro de 1934.

    338 n D. S. de 12 de Fevereiro de 1935; Ibid., de 23 de Maro de 1935.

  • de qualquer aptido adquirida, mas de uma coisa muito mais transcen-dente, do sentimento da propriedade privada. certo que, apesar destascrticas, a lei foi aprovada e promulgada,80 mas ficou sempre letra-morta.

    Para Carneiro Pacheco, que se tornou ministro em 1936, a nica maneirade a escola contribuir para abrandar o afluxo s cidades consistia em pre-gar insistentemente as maravilhas da vida rural. Como explicava o inspec-tor Jos Maria Gaspar, um arauto da mais pura ortodoxia: Ensinemosns o povo, atravs das crianas, a ver a luz do nosso sol, as nuvens donosso cu, o fogo das nossas alvoradas, as cores dos nossos poentes, o arvo-redo que reza e canta.81 e o povo, presumia-se, perderia a sua inexpli-cvel averso ao trabalho rural.

    nesta ordem de ideias que se insere a crtica de homens como ManuelMrias ao isolamento da escola primria do meio rural. A escola da comu-nidade, como a propunham esses pedagogos nacionalistas, no prosse-guia, como se calcular, um currculo vivo e interessante representavaapenas um ataque aos educadores republicanos, para quem todas as crian-as eram idnticas, independentemente de circunstncias de tempo e lugar.E no passava, assim, de outro instrumento de reforo da estrutura declasses existente, bem como da apologia de um currculo decorrente daaplicao do princpio de que, em vez de sangrar a terra, a escola deviaservi-la.82

    Dcadas a fio, as classes dominantes rurais tinham-se queixado de quea nica funo real da escola primria consistia em roubar braos aos cam-pos e criar um exrcito de trabalhadores urbanos descontentes e perigosos.83Em 1927, um pai ansioso escrevia ao jornal catlico A Voz a lamentar-sede que a escola contribuiria provavelmente para fazer do filho um revolu-cionrio civil em vez de um lavrador. 84

    Para as classes terratenentes, a industrializao revestia-se de toda aespcie de incoivenientes. Em primeiro lugar, priv-las-ia de uma fora detrabalho barata. Em segundo lugar, muito provavelmente destruiria o tra-dicional modus vivendi do campons. Num artigo intitulado O campoe a fbrica85, Alfredo Pimenta, no tom extremista que se lhe tornara habi-tual, exortava o Governo a publicar sem demora legislao restritiva dodesenvolvimento industrial. Na opinio dele, o campo e a fbrica eram doisinimigos inconciliveis, e a corrente migratria para a indstria uma des-graa: Pior, muito pior do que a emigrao para o Brasil; pior, muitopior do que a emigrao para a Espanha ou para Frana a emigraodo homem do campo para a fbrica. [...] H quarenta anos filhos de lavra-dores eram lavradores. Hoje querem ser tudo, menos lavradores.

    O Governo no podia, obviamente, encerrar as fbricas, para seguir osconselhos de Alfredo Pimenta. O que podia fazer e na verdade fez foi introduzir no currculo da escola primria doses macias de louvores

    80 Lei n. 1918, de 27 de Maio de 1935.

    81 E. P., n. 155, de 14 de Outubro de 1937.

    83 V. de 23 de Fevereiro de 1928.

    83 Encontra-se a mesma atitude entre os Junkers da Prssia, que tambm atri-

    buam o xodo dos campos pestilncia da educao. Tipicamente, acrescen-tavam que a educao envenenava a mente e o corpo jovens do campons prus-siano, coisa que se traduzia no receio do trabalho fsico, na efeminao e na super-ficialidade (R. H. Samuel e R. H. Thomas, Education..., pp. 5-6).

    84 V. de 20 de Junho de 1927.

    88 D. M. de 25 de Setembro de 1935. 339

  • vida rural. Para o regime, o fluxo de urbanismo, que arrancava aocampo todos esses ambiciosos que, presos iluso de uma vida fcil eluxuosa, trocavam pela cidade as aldeias simples e felizes, precisava de serseriamente desencorajado atravs da escola primria86.

    A glorificao da vida rural tornou-se, assim, um dos pontos centraisda ortodoxia. Afinal de contas, o prprio Salazar era um filho do campo,com saudades do murmrio das guas de rega e da sombra dos arvo-redos. 87 O poeta nacionalista Antnio Correia de Oliveira sintetizou muitobem o ponto de vista oficial num poema, que posteriormente foi includono livro nico do Estado Novo:

    Minha terra, quem me deraSer humilde lavrador;Ter o po de cada dia,Ter a graa do Senhor;Cavar-te por minhas mosCom caridade e amor.88

    A isto correspondia, como necessrio contraponto, o denegrimento davida citadina. Se a fonte da grandeza nacional residia no campo, as cida-des s podiam ser um abismo horrendo. A opinio de Salazar sobre oassunto conhecida. Marcello Caetano concordava: Aqui [na cidade] hcomodidades, direitos do homem, vinho a rodos, prazeres fveis, comciosruidosos, luzes, cinemas, sindicatos e camisas lavadas, enfim tudo coisasperniciosas. As cidades eram, na verdade, um pio.89

    Mas, no obstante os lamentos dos proprietrios rurais sobre aquilo aque chamavam a hemorragia dos campos, o facto que, para um cam-pons, continuava a ser difcil deixar a aldeia natal. No dispomos de dadosprecisos sobre as migraes internas do perodo. Parece, no entanto, quese registava um fluxo migratrio, no muito acentuado,, mas constante,em direco s cidades.90 Contudo, a maior parte da populao continuavaa viver e a morrer onde nascera e o desemprego rural a existir, como nopassado.

    Rodeada de obstculos, a fuga ao campo constitua provavelmente anica maneira de subir na escala social, mas difcil avaliar at queponto uma criana que soubesse ler e escrever estava mais bem preparadapara fugir do que uma analfabeta. Considerando que 3 em cada 10 crianasfrequentavam a escola, no custa acreditar que isso ajudasse a mobilidadesocial. Contudo, a questo no to simples. Haver alguma maneira deconhecer as expectativas profissionais das crianas alfabetizadas? 91

    80 Decre to n. 16 077, de 26 de Outubro de 1928.

    8T A . Salazar, Discursos, vol . I, p. 274.

    88 Extrado de u m l ivro de leitura de 1929 (ver J. Grave, Livro de Leitura para

    a Quarta Classe, 1929). V e r t a m b m o l ivro de leitura oficial para a 3 . a classe,editado pela Empresa N a c i o n a l de Publicidade, Lisboa, 4 . a ed., 1958

    89 V. de 11 de Agosto de 1927.

    w Durante a dcada de 1930-40, a taxa de crescimento urbano sofreu um ligeiro

    aumento, mas convir recordar que esses foram tambm os anos em que grandesrestries foram impostas emigrao. Ver O. Marques, Histria de Portugal,vol. H, pp. 185-186, e A. Alarcao, xodo rural e atraco urbana, in AnliseSocial, n.08 7/8, 1964.

    M Qualquer resposta ter de ser extremamente contingente, devido aos limites

    340 do nosso conhecimento sobre a sociedade do tempo. No entanto, a leitura de redac-

  • Qualquer melhoria no interior da estrutura social camponesa resultavacom certeza mais frequentemente de uma herana ou da poupana do queda cultura adquirida, pelo que possvel pensar que o grau de instruofosse aqui pouco relevante. Uma redaco escolar ilustra bem o ponto.Sob o tema O que eu faria com 500 escudos, um rapazinho de Sesimbraescrevia: Comprava uma fazenda e nela havia de semear trigo e milho [...].Quando recolhesse a colheita, depois, mais tarde, vendia-se e o dinheiroguardava-o para o ano seguinte fazer outras sementeiras. Com o dinheiroia-me alimentando e mais tarde comprava um tractor para me lavrar aterra e uma camioneta para me ir buscar as coisas fazenda. Mais tardeainda comprava um fato e umas botas porque se eu no o comprasse pare-cia mal andar mal vestido e mal calado. Havia ainda de comprar livros parame instruir porque quem no sabe um desgraado e todos fazem poucodele. E depois o dinheiro restante guardava-o para gozar na velhice e daresmolas aos pobres que andam esfomeados pelas ruas. 92

    No entanto, em aldeias de uma certa dimenso, uma criana que sou-besse ler e escrever tinha mais possibilidades de melhorar a posio social.Podia, por exemplo, ir para marano, como o que Redol retrata em Mars,com o seu fato novo e o seu status recm-adquirido: Costas direitas aobalco, em frente das balanas. Sorrisos para quem entrasse {...].93 Casono surgisse uma oportunidade parecida, como sucedia nas reas poucopovoadas do Alentejo, a criana, mesmo que soubesse ler e escrever, eraforada a optar entre ser trabalhador rural ou arteso, o que certamente noconstitua um progresso notvel em relao posio do pai. Um aluno da2.a classe de Ervedal explicava, em 1933, como escolhera a profisso decesteiro: Meu pai quer que eu v para ferreiro em eu sendo grande. Masminha me diz que no quer que eu seja ferreiro, porque posso esmagaralgum dedo. e4

    Nas cidades (ou em zonas industrializadas), a criana alfabeta talvezconseguisse um emprego numa fbrica ou num escritrio. Porm, issodependia, pelo menos, tanto do sistema de patrocinato (pattronage)**como da instruo.96

    So inmeros os exemplos de patrocinato. Num pequeno inqurito rea-lizado no Porto em 1931 interrogaram-se algumas crianas sobre aquiloque queriam fazer quando fossem grandes. Um rapaz de 10 anos declarousem hesitar que gostaria de ser empregado de escritrio da Companhia dosCaminhos-de-Ferro Portugueses, porque, como esclareceu, o padrinhoera l chefe de departamento e, portanto, arranjava-lhe emprego.97 O rea-lismo e a preciso da maior parte das respostas surpreender-nos-ia, se no

    es publicadas em diversas revistas juvenis, assim como algumas refernciascolhidas na imprensa e na literatura, ajudam-nos a projectar alguma luz sobre a ques-to. Apesar da censura (e tambm de possveis floreados da responsabilidade de certosprofessores), as redaces permitem-nos entrever os verdadeiros problemas e con-dies de vida das crianas. evidente que no constituem uma amostragem repre-sentativa das crianas portuguesas no perodo salazarista, apesar de as revistasconsideradas provirem do Norte, do Centro e do Sul do Pas.

    w O Infantil, n. 2, de Agosto de 1931.

    M Alves Redol, Mars.

    94 O Grito da Criana, n. 31, de Abril de 1933.

    95 Ver J. Cutileiro, op. cit, pp. 271-319 e 85-86.

    * Importa ainda referir aqui o papel dos seminrios como canal de mobilidadeascensional.

    w R. de 14 de Outubro de 1931. 341

  • nos lembrssemos de que o trabalho era nessa altura, para as crianas, umarealidade muito prxima.

    Embora seja arriscado generalizar, provvel que a escola primriapromovesse um grau mnimo de mobilidade, que variava em funo dasrelaes sociais dos pais da criana e do local onde ela vivia. Mas, porqueos bons empregos no abundavam, uma percentagem elevada de crianascontinuaram condenadas a seguir profisses muito semelhantes s que ospais e antepassados h sculos exerciam.

    Sem dvida, a ideologia oficial dava um quadro completamente dife-rente da situao. Para os salazaristas, [...] depois de ter decorado todasas definies que enchem os livros escolares, {...] o pequeno doutor sente-selogo fadado pelo menos para regedor; ou, se as suas ambies tomam umrumo mais utilitrio, para aprendiz de caixeiro ou de funcionrio pblico,em qualquer repartio concelhia.98 Mas, mesmo que esses sonhos povoas-sem a cabea de alguns pais, a estrutura social mantinha a rigidez de sempre.

    b) O DEBATE SOBRE EDUCAO VERSUS INSTRUO

    A anlise do debate sobre a escola nica permitiu revelar a funo, queos salazaristas atribuiam escola, de perpetuar uma hierarquia social r-gida. A anlise do debate sobre educao versus instruo permitirobservar como se imps um novo currculo religioso nas escolas.

    Os republicanos orgulhavam-se de ter substitudo Deus pelo ABC."O Estado Novo pretendeu, exactamente com o mesmo zelo, repor Deus nolugar do ABC. A oposio entre instruo e educao reaparece aprimeira supostamente visando o treino do intelecto e a segunda a forma-o do carcter. Como Confcio, Aristteles, o Dr. Arnold ou Gentile, ossalazaristas apontavam escola o objectivo de incutir a virtude, e noo de dar um treino profissional ou transmitir conhecimentos teis 10. Aquesto era posta nos seguintes termos: Ser a instruo suficiente paraas nossas crianas? E o raciocnio simples. Comeava-se pelo pressupostode que a instruo no representava necessariamente um bem; da resul-tava, como evidente, que a falta de instruo no representava necessa-riamente um mal. Os primeiros portugueses, apesar de analfabetos, tinhammuitas vezes uma estatura moral muito superior dos contemporneos.Hoje, escreveu Alfredo Pimenta, uma pessoa bem educada, correcta,atenciosa, ocupando conscienciosamente o seu lugar e mantendo as dis-tncias legtimas o l vem um! 101 Por regra, porm, notava-se cuida-dosamente que no se estava a elogiar o analfabetismo enquanto tal, masapenas a reconhecer o facto bvio de os analfabetos poderem ser pessoasboas e morais: De forma nenhuma vamos dizer que se devam fechar asescolas e que aconselhvel o analfabetismo. No. O que desejamos frisar

    98 N. de 9 de Dezembro de 1930.

    99 Ver lei sobre a escola primria de 29 de Maro de 1911, em que se afirmava

    que os conceitos de instruo e educao so distintos, sendo a instruo um dosprincipais componentes da educao. O abe [...] [...] hoje o fundamento lgicodo carcter. S. Sampaio, op. cit).

    100 Esta nfase nas potencialidades formativas da instruo escolar, em contraste

    com o treino intelectual, tpica das sociedades tradicionais; no Japo, durante oregime de Tokugawa, defendia-se igualmente que a escola devia aperfeioar mais avontade do que o esprito, j que era mais importante ser-se um homem bom do queum sbio. Ver R. Dore, Education..., p. 38.

    342 1M v. de 15 de Maio de 1930.

  • a distino a fazer entre instruir e educar, sublinhando at que, muitasvezes, a instruo, s por si, prejudicial e vai destruir o trabalho da edu-cao. 102 Claro que havia quem advogasse o analfabetismo, uma posioexcessivamente extremista. Os salazaristas ortodoxos, no entanto, limita-vam-se a pedir a restaurao do velho sistema de valores morais dentro dasala da aula.

    Tratava-se, na prtica, de introduzir no currculo primrio os bonscostumes e, para tanto, era preciso distinguir entre boa e m ins-truo, isto , entre bons e maus professores e, em ltima anlise,entre bons e maus portugueses. No difcil imaginar como se utili-zavam estes objectivos: bons eram a instruo e os professores nacio-nalistas e maus os correspondentes laicos, republicanos ou bolchevistas.Nem sequer havia necessidade de negar o valor da instruo: bastava se-parar o trigo do joio.

    A imprensa nacionalista, sobretudo As Novidades e A Voz, incitavacontinuamente o Governo a purgar o currculo escolar. A acreditar no quedizia, por toda a parte ms escolas corrompiam a juventude, professorescomunistas minavam os fundamentos do Estado Novo e o saber corro-sivo destrua as mais sagradas tradies portuguesas. Na opinio de Al-fredo Pimenta, por exemplo, abrir uma escola, [j] no [era] fechar umacadeia: [era] abrir dez cadeias.103 A Voz e o respectivo director, Fernandode Sousa, tambm no afrouxavam no zelo de purificao. Quando, em1927, foi fechada a Unio dos Professores Primrios, Fernando de Sousaanunciou at a tremenda descoberta de uma organizao filiada na III Inter-nacional, cujo objectivo consistia em converter todos os professores prim-rios em agentes de propaganda da doutrina anti-social do bolchevismo104.J ento eram evidentes os sintomas da histeria anticomunista que depoisviria a reinar. Uma vez, um ex-ministro da Instruo interrompeu um dis-curso de Salazar sobre os perigos da infiltrao comunista, exclamandonervosamente: a escola, Sr. Presidente do Ministrio, a escola. 105

    A boa instruo acabou gradualmente por se reduzir s mais rudi-mentares tcnicas intelectuais, ou seja, ao ler, escrever e contar.106 E estafoi a doutrina (e a prtica) que prevaleceu at muito depois da segundaguerra mundial.

    Contudo, mesmo o ler, escrever e contar convinha que se no sobres-timassem. A instruo no era um fim em si, mas simples instrumentocujo valor dependia do uso que lhe fosse dado107. E, portanto, difundi-la

    m V. de 28 de Novembro de 1927.

    103 V. de 25 de Dezembro de 1927.

    104 Ibid., de 31 de Outubro de 1927.

    105 V. de 13 de Novembro de 1933. Com a ecloso da Guerra Civil Espanhola,

    o pretenso perigo vermelho tornou-se subitamente realidade prxima; comearamento a ver-se os professores como principais agentes da infiltrao comunista.Quem melhor que eles podia, na verdade, inculcar no esprito das crianas asideias subversivas que constituem as crenas fundamentais dos apstolos da RssiaSovitica? (5. de 24 de Agosto de 1936).

    1M No final do seu livro, Ferro inclui algumas notas sobre as suas entrevistas

    com Salazar. Numa nota particularmente interessante conta que onde havia escritoa respeito da questo dos postos: Seria essa julgo eu a nica forma prticade resolver o problema de ensinar toda a gente a ler, degrau essencial para educaocvica dum povo, Salazar emendou, com o seu prprio punho: de ensinar todaa gente a ler, a escrever e a contar. (A. Ferro, Salazar..., p. 181.)

    10T D. N. de 13 de Outubro de 1931. 343

  • no devia constituir per se um ideal para o Estado Novo. Acaso um cam-pons de Trs-os-Montes ou Beira ser um valor social, um valor nacionalmais vigoroso do que hoje se souber escrever o seu nome e soletrar umartigo do jornal? 108 Evidentemente que no.

    O que valorizava o currculo, margem dos textos de leitura, ou, antes,neles integrada, era, assim, a doutrina crist; s por ela o saber se tornariafrutuoso e til. Para aprender a ler tinha de se ler alguma coisa e esse al-guma coisa devia ser o catecismo.

    A reforma de Carneiro Pacheco, de 1937, coroou todas as tentativasanteriores de cristianizar a escola e realizou as aspiraes mais reaccion-rias quanto reduo do currculo escolar e supremacia da religio noensino. Nas palavras do Dirio da Manh, a escola podia finalmente devo-tar-se a formar o esprito e o carcter da criana, livre das preocupa-es enciclopedistas, que tanto a haviam prejudicado109. Como um ins-pector escreveu por essa altura, parafraseando a doutrina oficial, por muitoque se glorifiquem as letras do alfabeto, convenamo-nos de que a luz quedelas irradia s perdurar se atingiras conscincias e puder fecundar as almas.O nosso trabalho h-de consistir principalmente em prover as crianas deslidas virtudes crists, entre as quais o amor ao trabalho, a disciplina daordem e a alegria de viver.110 A trilogia final sintetiza o programa do Es-tado Novo para a escola primria.

    E a religio inculcava nas crianas valores que correspondiam ao idealsalazarista da relao entre as classes sociais. Criava futuros governantesesmoleres que sabiam dar sem ferir as susceptibilidades alheias; e futuroscidados resignados e agradecidos, aptos a aceitar sem relutncia, antescom reconhecimento. X11 Ensinava s crianas, no apenas a amar o Me-nino Jesus no prespio, mas tambm a respeitar os pais, os professores e osgovernantes112. Deus, alis, aparecia nos livros de leitura da escola primriana verso do Supremo Juiz e Governante; e a insistncia na sua omnipo-tncia e omniscncia nada tinha de acidental.

    A religio era o spero freio11S que impedia as piores aberraes doesprito e desordens da sociedade. Como afirmava no seu estilo caracteris-ticamente fantico Fernando de Sousa: Ou os mandamentos de Deus ou ossatnicos ditames da judiaria bolchevista.114 Foram, sem surpresa, osmandamentos. Ao contrrio de certos regimes totalitrios, o Estado Novoadoptou voluntria e entusiasticamente a ideologia religiosa tradicional,fazendo reviver o velho Portugal da Reconquista e das Descobertas, dehomens patriticos e devotos. Durante a sua vigncia, os cidados sem fforam suspeitos e mesmo acusados de serem portugueses incompletos. l l fQuanto s crianas, o catecismo chegava-lhes para alimento intelectual:

    Vamos ao catecismo aprenderA doutrina do amvel Jesus.

    108 V. de 13 de Abril de 1935.

    109 D. M. de 31 de Maro de 1937.

    110 E. P., n. 155, de 14 de Outubro de 1937.

    111 Decreto n. 16 077, de 26 de Outubro de 1928.

    118 Ver o Catecismo para a Primeira Comunho, organizado pelo cardeal M. G.

    Cerejeira, Lisboa, s. d.113

    E. P.t n. 145, de 5 de Agosto de 1937.114 V. de 31 de Outubro de 1927.

    344 ' ibid., de 7 de Dezembro de 1930.

  • Ele diz as Virtudes a ter.As Verdades que se devem crer,O Caminho que ao Cu nos conduz116.

    Em Abril de 1936, o ABC foi legalmente derrotado por Deus: Emtodas as escolas pblicas do ensino primrio infantil e elementar, estipu-lava a Lei n. 1941, existir, por detrs e acima da cadeira do professor,um crucifixo, como smbolo da educao crist determinada pela Constitui-o. 117 Como muitos outros regimes conservadores, o Estado Novo deter-minava que a melhor na realidade, a nica instruo para os pobresera a religio.118

    c) CONSEQUNCIAS LEGAISDois corpos de legislao merecem ser aqui mencionados, porque esta-

    beleceram as principais transformaes que o Estado Novo introduziu nosistema escolar primrio. Com a justificao de que era necessrio reduziras despesas pblicas e impedir a acumulao de um nmero excessivode alunos nos liceus, reduziu-se a escolaridade obrigatria, primeiro paraquatro119 e depois para trs anos120. Esta reduo foi acompanhada dalimitao das matrias ensinadas, de acordo com a doutrina de que saberler, escrever e contar suficiente para a maior parte dos Portugueses. 121E, como no fazia sentido transmitir muitos conhecimentos a alunos queapenas viriam a desempenhar trabalhos servis, tudo o que ultrapassava asaptides mais elementares passou para um sistema complementar, que,encerrado em 1932, no voltou a abrir. O Decreto-Lei n, 27 279 definiaclaramente a nova ortodoxia: O ensino primrio elementar trairia a suamisso se continuasse a sobrepor um estril enciclopedismo racionalista,fatal para a sade moral e fsica da criana, ao ideal prtico e cristo deensinar bem a ler, escrever e contar e a exercer as virtudes morais e umvivo amor a Portugal.122

    Sobre isto criou-se, por influncia directa de Salazar, um sistema deensino primrio de segunda ordem: os chamados postos de ensino. Estesdefiniam-se como a escola aconchegada da terra pequenina, onde umamaior se tornaria desproporcionada, ao mesmo tempo que, pelo desperdcio[de recursos], inimiga da restante terra portuguesa. m Os postos destina-vam-se a ministrar uma educao barata em milhares de pequenos lugarejos

    " Catecismo da Diocese do Porto, Casa da Imprensa, 1938.11T

    Lei n. 1941, de 11 de Abril de 1936.118

    Apenas como exemplo, citamos Guizot, cujos argumentos apresentados em1830 tm muitos pontos de contacto com a ideologia salazarista: Como a cooperaoentre o Estado e a Igreja essencial para o amplo estabelecimento da educaopopular numa base slida, igualmente necessrio, se quisermos que a educaose revista de um verdadeiro valor social, que seja profundamente religiosa. Nopretendo com isto dizer apenas que a instruo religiosa deva ocupar o seu lugare os costumes religiosos devam ser observados na escola. No por esses meioscomezinhos e mecnicos que se educa religiosamente um povo. A educao populardever ser dada e recebida no interior de uma atmosfera verdadeiramente religiosa,imbuda de atitudes e hbitos religiosos. Cit. in R. Thabault, Education..., pp. 57-58.

    119 Decreto n. 13 619, de 17 de Maio de 1927.

    120 Decreto n, 18 140, de 22 de Maro de 1930.

    121 5. do artigo 17. do Decreto-Lei n. 26 611, de 19 de Maio de 1936.

    m Decreto-Lei n. 27 279, de 24 de Novembro de 1936.

    8 Id. 345

  • disseminados pelo Pas; inicialmente no se exigiam quaisquer habilitaesacadmicas ao pessoal docente; mas exigia-se idoneidade moral e in-telectual124

    3. ESTAVAM OU NO AS FAMLIAS INTERESSADAS EMMANDAR OS FILHOS ESCOLA ?Procurar-se- agora responder pergunta fundamental, que tanto preo-

    cupava republicanos e nacionalistas: estavam ou no estavam as famliasinteressadas em mandar os filhos escola?

    Infelizmente, os estudos sociolgicos modernos sobre a famlia e as res-pectivas relaes com a escola pouco nos podem ajudar a compreender oque se passava em Portugal. Na verdade, quase todos se referem aos Esta-dos Unidos e Inglaterra e, por conseguinte, dizem respeito chamadafamlia nuclear. Alm disso, muitos so, no apenas geograficamente limi-tados, mas teoricamente pobres: de maneira geral, o seu principal objectivoconsiste em investigar as causas do insucesso escolar das crianas das clas-ses trabalhadoras, um problema para o Welfare State, que tenta estabe-lecer a igualdade entre os cidados, mantendo, no entanto, intacta a estru-tura da sociedade e do sistema poltico.

    A questo da atitude dos pais em relao escola no Portugal de1930-40 difcil de analisar, uma vez que praticamente no dispomos dematerial susceptvel de fundamentar uma opinio. Como bvio, os paisdessa poca no podem ser entrevistados hoje; e, por outro lado, no dei-xaram nesta matria qualquer testemunho utilizvel. Finalmente os comen-trios de terceiros sobre o assunto reflectem mais a ideologia daqueles queos faziam do que descrevem um estado de coisas. Resta-nos a possibilidadede tentar examinar at que ponto as condies sociais existentes favoreciamou no o interesse dos pais pela escola.

    No se pode explicar o facto de os pais pobres no mandarem os filhos escola alegando, como na altura se fazia, que eles no tinham interessepela instruo (explicao semelhante, de resto, de certos socilogos con-temporneos que pretendem que os pais pertencentes s classes trabalha-doras das sociedades capitalistas avanadas no valorizam o sucesso). Aquesto reside antes em apurar como, a partir da experincia, se formouessa atitude. evidente que as variveis ideolgicas ou culturais se nodevem desprezar (a forma como as pessoas olham uma situao objec-tiva importante). Mas de modo nenhum so suficientes e no podemser elevadas condio de variveis causais independentes. Uma explicaorigorosa ter de incluir tanto factores culturais como materiais, ou seja,exige uma aproximao terica sofisticada.

    Perante a dificuldade de saber se deviam ou no mandar os filhos escola, maioria dos pais puseram-se provavelmente dois problemas essen-ciais: em primeiro lugar, se se podiam dar ao luxo de passar sem o contri-buto do trabalho dos filhos, ou seja, em termos sociolgicos, o custo daoportunidade (opportunity cost) da educao; em segundo lugar, se aquiloque os filhos viriam eventualmente a aprender na escola teria no futuroqualquer utilidade.

    124 Os professores dos postos recebiam um vencimento que equivalia a menos de

    metade do dos professores das escolas primrias normais.

  • Tanto quanto possvel entrever, a resposta foi, em ambos os casos,negativa. No primeiro caso, foi-o com certeza nas regies de propriedademinifundiria, onde uma criana de 7 ou 8 anos servia j para tomar contados animais, apanhar lenha ou ajudar nalgumas actividades domsticas erurais; a, mand-la escola equivalia a uma descida do nvel de vida fami-liar. E foi-o quase sempre tambm no segundo caso. Com efeito, no erapor uma criana saber ler que se tornava capaz de extrair um rendimentomais elevado do seu trabalho agrcola ou da minscula propriedade queum dia viesse a herdar. Um jornal de Viana do Castelo125 descrevia, em1931, o modo como um campons do Minho encarava a instruo primriaem geral e a alfabetizao das mulheres em especial. Quando lhe pergun-taram se tencionava mandar as filhas escola, respondeu sem hesitar:Nada, nada. [...] Elas esto aqui mas para trabalhar. Qual escola? Sel fossem, mais tarde no lhes chegava o tempo para se escreverem c'osnamoros. 126 Ler e escrever era um luxo de privilegiados, no uma neces-sidade do povo trabalhador. Como D. Nicforo dizia a um amigo no ro-mance de Aquilino Ribeiro Cinco Ris de Gente,127 mesmo analfabetos, oscamponeses tinham conseguido sobreviver.

    E no reagiam, afinal de contas, irracionalmente, se pensarmos que aestrutura social, extremamente rgida, lhes no deixava antever qualquerpossibilidade de mobilidade ascendente. Para a populao pobre dos cam-pos havia de facto muito poucos incentivos que a levassem a querer lere escrever. A instruo no proporcionava notveis benefcios materiaisnuma sociedade em que as posies hierrquicas dependiam ainda, emgrande parte, do nascimento. Acresce que os camponeses no dispunhamde tempo livre para devotar leitura, ou sequer de aoesso fcil ao livro.De resto, mesmo que soubessem escrever, a quem escreveriam, excepto tal-vez a um irmo ou marido emigrante? Mas nesse caso podiam semprerecorrer &o padre ou ao professor primrio. Para ganhar a vida, os campo-neses no precisavam de saber ler. Numa sociedade analfabeta, a ignornciano constitui uma desvantagem;128 e nem sequer um estigma, porque oanalfabetismo a regra, no a excepo.129

    S em sociedades que oferecem perspectivas de melhoria do nvel devida emergem aspiraes de mobilidade social. Nelas, e sobretudo entre as

    125 A Aurora do Minho, citado no D. N. de 29 de Setembro de 1931.

    12a Se bem que a ideologia dominante no Japo no fosse contrria alfabeti-

    zao popular, em certas regies existia um preconceito contra as mulheres alfabeti-zadas. Um autor annimo do sculo xix criticava os que pensavam que ao aprende-rem a ler e escrever, [as raparigas] se tornavam ociosas ou escreviam cartas [...],e provocavam toda a espcie de complicaes indesejveis, que as impediam de sedevotar aos seus deveres (R. Dore, Education..., pp. 215-216).

    127 Aquilino Ribeiro, Cinco Ris de Gente.

    128 E. J. Hobsbawm, The Age of Capital..., p. 191.

    129 Encontra-se a mesma atitude na Inglaterra do sculo xvni (ver F. Smith,

    A ffistory..., p. 66) e na rea da Frana estudada por R. Thabault (ver Education...,pp. 69-70). Thabault refere que, at quando se valorizava o saber, isso, em 1850,no chegava para fazer que os camponeses abandonassem o curso normal da suavida, prescindindo do trabalho dos filhos e sujeitando-os, custa de reprimendasconstantes, disciplina da assiduidade escolar. O nmero de analfabetos emMazires era, alis, demasiado elevado para que um indivduo se envergonhasse dasua ignorncia e o mundo fechado em que se vivia no exigia um uso constantedos smbolos ensinados na escola, A instruo era tida eomo uni luxo; Nem razesde dignidade pessoal nem razes prticas levavam os camponeses a sentir a necessi-dade de aprender a ler e a escrever. 347

  • classes mdias, desenvolve-se e frutifica a chamada sndroma de sucesso(achkvemcnt syndrome). No entanto, no Portugal dos anos 30, a resigna-o posio social representava uma resposta bem mais adequada rea-lidade. Num conto de Afonso Ribeiro aparece um exemplo lapidar dessaracionalidade. A me Piripau retira o filho da escola a fim de o empregarcomo trolha e justifica a deciso nos seguintes termos: claro que elaprocurava uma arte p'r seu rapaz; quanto ao exame, pacincia; ela aindaaprendera menos! Jesus, nem uma letra do tamanho de uma casa conhecia,e l se ia governando.. Quem no nascera para dois, no chegava a dez.1S0Os pobres nasciam para trabalhar, no para pensar. E a principal preocu-pao de uma me pobre no consistia evidentemente em obter um benefciodistante e incerto para os filhos, mas em assegurar-lhes, no imediato, asobrevivncia fsica.

    verdade que em certas reas, particularmente no Sul, mesmo que ospais quisessem mandar os filhos escola, s vezes no havia nenhuma nasredondezas. Sines um exemplo flagrante, embora a, como no resto doAlentejo, a estrutura socioeconmica em parte libertasse as crianas deum trabalho contnuo.

    Importa ainda assinalar que, segundo as escassas fontes de que dis-pomos, as ideias dos pais sobre o assunto estavam longe de formar umtodo consistente. Reflectiam no apenas a experincia de infncia e a posi-o social, como tambm o ponto de vista oficial (negativo) sobre o valorda instruo. Acresce que a prpria escola as influenciava, e no pouco,atravs dos resultados acadmicos das crianas e do contedo dos currculos.

    A afirmao de que o povo portugus no estava interessado emmandar os filhos escola era, portanto, tendenciosa e superficial. Como,por outras razes, a afirmao contrria. O debate nunca passou de umfalso debate, eminentemente ideolgico. A posio social, as necessidadese os valores dos pais, a par da inexistncia de equipamento educacional eda fraca qualidade do ensino, tudo contribuiu para os baixos ndices defrequncia. Numa sociedade pobre como o Portugal de ento seria maisde espantar uma activa procura de instruo.

    Os pases onde ela se verificou e, ao mesmo tempo, o Estado manifes-tou interesse em corresponder-lhe, estavam numa situao completamentediferente. Um bom exemplo de difuso ampla do ensino primrio por ra-zes econmicas (ainda que no s) dado pela Alemanha, nao ambi-ciosa, impaciente por desenvolver a sua economia escala da inglesa.181O valor prtico da instruo elementar para as tecnologias de base cient-fica incluindo a militar, bvio. Como escreveu Hobsbawm, uma dasprincipais razes da facilidade com que os Prussiano derrubaram os Fran-ceses em 1870-71 foi o nmero muito superior de soldados alemes quesabiam ler e escrever.182 A necessidade de contingentes alfabetizados paraum exrcito moderno preocupou igualmente os meticulosos e prudentes go-vernantes Meiji no Japo.

    Mas o interesse de alguns Estados em pr disposio da populaofacilidades educacionais no resultou unicamente de razes econmicas,no sentido estrito do termo. Pelo menos, nos primrdios da industrializao,quando a tecnologia era bastante simples, pretendeu-se, antes de mais, pro-

    130 Afonso Ribeiro, Povo.in

    D. Landes, The Unbound..., p. 346.348 1M E. J. Hobsbawm, The Age of Capital.., p. 43.

  • mover o controlo social dos trabalhadores, encarando-se a instruo prim-ria sobretudo como um treino em ser treinado.. Na verdade, quem nainfncia passou por um processo de aprendizagem disciplinada e cons-ciente tem mais probabilidades de reagir positivamente a um treino poste-rior, no exrcito ou na fbrica;133 e altura tratava-se precisamente deinteriorizar a disciplina.

    Por outro lado, certas ideologias polticas tambm podem dar um grandeimpulso ao ensino elementar. A seguinte passagem de um discurso de umgovernador americano em 1803 ilustra o que queremos dizer: A maneiramais segura de legar posteridade o governo republicano e a liberdade con-siste em iluminar a mente do povo; e, para preservar a sua pureza moral,no devemos pr limites educao da juventude e precisamos de promovera criao de escolas em todo o Estado. A educao, conclua ele, inimiga mortal dos governos arbitrrios e a mais firme base da liberdade eda igualdade de direitos. 184 O prprio George Washington e os dirigentesdo movimento de Independncia partilhavam estas posies.

    Sempre que est em jogo a edificao de uma nova nao, a instruoprimria torna-se obviamente crucial, visto que constitui um dos melhorescanais para impor a uniformidade nacional. O caso da Itlia tpico. data do comeo da unificao, em 1860, a percentagem de habitantes quefalava italiano na vida quotidiana no excedia 2,5 %\ os idiomas eram todiversificados que os professores primrios nessa altura enviados para aSiclia foram tomados por ingleses185. No admira que, na Europa, o maisrpido aumento das taxas de frequncia escolar entre 1840 e 1880 se hajaverificado em Itlia, onde, nos quinze anos seguintes unificao, o nmerode alunos das escolas primrias duplicou.186

    Contudo, uma coisa criar escolas e outra ench-las de crianas: e,com frequncia, a obrigatoriedade religiosa da leitura da Bblia ajudou afaz-lo. A este factor, comum a todos os pases protestan