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65 Revista Trama - Volume 11 - Número 21 - 1º Semestre de 2015 O MENINO QUE ESPIAVA PRA DENTRO : ESPIANDO O JOGO ENTRE O CLÁSSICO E O CONTEMPORÂNEO Elesa Vanessa Kaiser da Silva * RESUMO: O contato, desde cedo, com a Literatura Infantil permite à criança desfrutar de uma inesgotável fonte de conhecimento e magia, pois, através dos livros, ela passa a conhecer um universo que pode ser distante e ao mesmo tempo próximo de sua realidade. Tendo em vista que muitas obras contemporâneas dialogam com as clássicas, pretende-se, neste estudo, investigar como acontece a intertextualidade entre o conto contemporâneo: O menino que espiava pra dentro (2008) de Ana Maria Machado, com os contos A Bela Adormecida e Branca de Neve, dos Irmãos Grimm. Como suporte teórico foram consultadas obras de Machado (2002), Sant’Anna (1937), entre outros. PALAVRAS-CHAVE: Contos de fadas; Literatura Infantil contemporânea; intertextualidade. SUMMARY: The contact, since an early age, with Children’s Literature allow to the children enjoy an unstoppable knowledge and magic fountain, the children begin to understand the universe through the books, that can be as far but as near your reality, at the same time. In view of that lots of contemporary books dialogue with the classic ones, it is intended in this study, inquire how happens the intertextuality between the contemporary tale: O menino que espiava pra dentro (2008) by Ana Maria Machado, with the tales Sleeping Beauty and Snow White by Brothers Grimm. As a technical support were consulted works of Machado (2002), Sant’Anna (1937), among others. KEYWORDS: Fairy tales; Children’s contemporary Literature; intertextuality. INTRODUÇÃO Embora, a princípio, não fossem destinados especialmente às crianças, ao longo do tempo os contos de fadas foram conquistando espaço na Literatura Infantil. Contemporaneamente, estes destacam-se através de inúmeras releituras.Além disso, vários estudos apresentam as contribuições dos mesmos para a formação de leitores, sobretudo por tratarem de temas atemporais que possibilitam a vivência de experiências. Tais contribuições são evidenciadas, por exemplo, na obra A psicanálise dos contos de fadas de Bettelheim (1980, p. 27): “Os contos de fadas enriquecem a vida da criança e dão-lhe uma dimensão encantada exatamente porque ela não sabe absolutamente como as estórias puseram a funcionar seu encantamento sobre ela”. (p. 27).

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  • 65 Rev is ta Trama - Volume 11 - Nmero 21 - 1 Semestre de 2015

    O MENINO QUE ESPIAVA PRA DENTRO:ESPIANDO O JOGO ENTRE O CLSSICO E OCONTEMPORNEO

    Elesa Vanessa Kaiser da Silva*

    RESUMO: O contato, desde cedo, com a Literatura Infantil permite criana desfrutarde uma inesgotvel fonte de conhecimento e magia, pois, atravs dos livros, ela passa aconhecer um universo que pode ser distante e ao mesmo tempo prximo de suarealidade. Tendo em vista que muitas obras contemporneas dialogam com as clssicas,pretende-se, neste estudo, investigar como acontece a intertextualidade entre o contocontemporneo: O menino que espiava pra dentro (2008) de Ana Maria Machado, comos contos A Bela Adormecida e Branca de Neve, dos Irmos Grimm. Como suporteterico foram consultadas obras de Machado (2002), SantAnna (1937), entre outros.

    PALAVRAS-CHAVE: Contos de fadas; Literatura Infantil contempornea;intertextualidade.

    SUMMARY: The contact, since an early age, with Childrens Literature allow to thechildren enjoy an unstoppable knowledge and magic fountain, the children begin tounderstand the universe through the books, that can be as far but as near your reality, atthe same time. In view of that lots of contemporary books dialogue with the classicones, it is intended in this study, inquire how happens the intertextuality between thecontemporary tale: O menino que espiava pra dentro (2008) by Ana Maria Machado,with the tales Sleeping Beauty and Snow White by Brothers Grimm. As a technicalsupport were consulted works of Machado (2002), SantAnna (1937), among others.

    KEYWORDS: Fairy tales; Childrens contemporary Literature; intertextuality.

    INTRODUO

    Embora, a princpio, no fossem destinados especialmente scrianas, ao longo do tempo os contos de fadas foram conquistando espaona Literatura Infantil. Contemporaneamente, estes destacam-se atravsde inmeras releituras.Alm disso, vrios estudos apresentam ascontribuies dos mesmos para a formao de leitores, sobretudo portratarem de temas atemporais que possibilitam a vivncia de experincias.Tais contribuies so evidenciadas, por exemplo, na obra A psicanlise doscontos de fadas de Bettelheim (1980, p. 27): Os contos de fadas enriquecema vida da criana e do-lhe uma dimenso encantada exatamente porqueela no sabe absolutamente como as estrias puseram a funcionar seuencantamento sobre ela. (p. 27).

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    Ribeiro (2012), em O reconto dos contos da oralidade: permanncias emudanas no gnero destaca sobre os contos de fadas clssicos e, sobretudoda produo de obras infantis contemporneas. Nesse sentido afirmamque As histrias repetem-se e se revestem, ao longo do tempo, com no-vas roupagens, mantendo duas caractersticas intrnsecas: a ficcionalidadee a oralidade. (RIBEIRO, 2012, p. 217).

    Considerando o grande nmero de releituras dos contos clssicos,o presente artigo apresenta um estudo referente ao texto O menino queespiava pra dentro (2008) de Ana Maria Machado (obra inclusa no acervo doPrograma Biblioteca da Escola PNBE, do ano 2012), apontando como aautora brasileira promove um dilogo com as obras A Bela Adormecida eBranca de Neve, dos Irmos Grimm.

    CONTOS DE FADAS NA LITERATURA INFANTILCONTEMPORNEA

    Ao se estudar sobre contos de fadas, nota-se a grande repercussoque eles tiveram entre leitores de vrias idades, seja atravs de textosclssicos, seja atravs de releituras, adaptaes, recontos. Na literaturainfantojuvenil brasileira contempornea, eles esto presentes de inmerasmaneiras, garantindo um lugar especial dentre os preferidos dos pequenosleitores.

    Darnton (2011), em Histrias que os camponeses contam: o significado deMame Ganso, ao abordar sobre o contexto histrico dos contos de fadas,enfatiza que:

    Os contos de fadas constituram, durante toda a Idade Mdia eModerna, a literatura popular oral das populaes europias em geral.A partir do sculo XVII, essas narrativas foram sendo reunidas erecontadas por escritores, que lhes deram um estilo mais elegante e astraduziram da tradio popular para como as conhecemos hoje.(DARNTON, 2011, p.09)

    Ana Maria Machado (2002), em Como e porque ler os clssicos universaisdesde cedo, fala sobre a importncia do contato com os clssicos em geral, edestaca que:

    Entendidas e aceitas em sua linguagem simblica, essas histrias defadas tradicionais se revelam um precioso acervo de experinciasemocionais, de contatos com vidas diferentes e de reiterao daconfiana em si mesmo. No final o pequenino se d bem e o fracovence. A criana pode ficar tranquila - com ela h de acontecer omesmo. Um depois do outro, esses contos vo garantindo que o

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    processo de amadurecimento existe, que possvel ter esperana emdias melhores e confiar no futuro. (MACHADO, 2002, p. 80)

    Personagens de contos de fadas clssicos esto presentes, tambm,em comerciais, filmes, desenhos animados, revistas, contos, poemas,brinquedos, fantasias (roupas e adereos), enfim, apresentam-se nocontexto atual revestidos com caractersticas e/ou comportamentosmodernos.

    Na literatura contempornea possvel verificar que muitas obrasdialogam com as clssicas, seja atravs da pardia ou intertextualidade.Nesse sentido, fica clara a importncia da leitura dos clssicos, pois,somente assim, as narrativas contemporneas tero maior sentido.

    SantAnna (1937), em Pardia, Parfrase & Cia, cita como exemploManuel Bandeira, considerando-o um leitor de clssicos que utiliza aintertextualidade em seus poemas. Do mesmo modo, ocorre na literaturavoltada para o pblico infantil, quando um autor dialoga com textos deoutros.

    De acordo com SantAnna (1937), a intertextualidade acontece quandoh uma referncia explcita ou implcita de um texto em outro. Nosomente em textos, mas tambm em msicas, pinturas, filmes, novelasetc. Ou seja, toda vez que uma obra faz aluso outra ocorre aintertextualidade. Nesse sentido, ela pode ocorrer de duas formas: parfrase(afirmando as mesmas ideias) ou pardia (contestando-as).

    No caso de O menino que espiava pra dentro (2008), Ana Maria Machadoapresenta uma narrativa contempornea que dialoga com os contos defadas clssicos. De acordo com Olmi (2008), em Renovando a tradio peloscaminhos da intertextualidade:

    De qualquer maneira, o conto de fadas no apenas uma fonteprivilegiada de estudos, mas tambm um ponto de partida paraulteriores reflexes, para cada vez mais novos tipos de contos queinvadem nossa literatura e procuram penetrar, de forma cada vezmais convincente, na mente do leitor, seja ele criana ou adulto.(OLMI,2008, p.08)

    Levando em considerao a intertextualidade (com contos de fadas)na literatura infantil, a escritora Ana Maria Machado (2002, p 81) destacaque: Como esses contos tradicionais so os clssicos infantis maisdifundidos e conhecidos, a gente sabe que pode se referir a eles e piscar oolho para o leitor, porque ele conhece o universo de que estamos falando.

    Nesse sentido, cabe destacar a importncia dos conhecimentosprvios (leitura) dos textos clssicos para que o leitor identifique o dilogoentre esses e as produes contemporneas. De acordo com Cardoso eSilva, em Um papo de aranha sobre textos e leituras: a escola brasileira ensina alngua da intertextualidade?, a intertextualidade:

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    Diz respeito aos fatores que tornam a utilizao de um textodependente do conhecimento de um ou mais textos previamenteexistentes, compreendendo as diversas maneiras pelas quais aproduo e a recepo de dado texto depende do conhecimento deoutros textos. (CARDOSO; SILVA apud CHAMLIAN 2011, p. 277).

    Levando em considerao tais pressupostos, importante analisarcomo se d o dilogo da obra contempornea com a clssica, observandotambm a representao dos personagens e/ou a desconstruo deesteretipos. Ao recuperar os contos clssicos, a literatura contemporneaos valoriza pois, s a partir da leitura daqueles, o leitor conseguir ler deforma mais profunda as inmeras releituras disponveis.

    O MENINO QUE ESPIAVA PRA DENTRO: INTERTEXTUALIDADEE VALORIZAO DO CLSSICO

    A capa do livro O menino que espiava pra dentro (2. ed. Editora Global,2008) convida o leitor a identificar-se com a personagem protagonista,pois, construda de forma semelhante a uma mscara, na capa a crianapoder espiar para dentro dos dois buraquinhos (dos olhos) do rosto deLucas.

    Sendo um menino muito observador, o personagem Lucas, por vezes,apresentava-se distrado; quando ficava olhando para alguma coisa acabavapor nem responder quando algum lhe chamava: Nessas horas, a av deLucas costuma dizer: - Ele est espiando pra dentro. (MACHADO, 2008,p.09)

    Espiar pra dentro, na obra, metaforiza o ato de imaginar, sonharou fantasiar. o que o personagem fazia, alm de sonhar como ocorrecom todas as pessoas, acontecia que: outras vezes, mesmo de dia, mesmoacordado, mesmo de olhos abertos (ou fechados, tanto faz), ele espia pradentro. E a v coisas que muita gente no consegue ver (MACHADO,2008, p.09).

    Debaixo da mesa, na rede, por baixo das cobertas na cama de seuspais ou na rstia de sol da janela ele fantasiava aventuras incrveis, vivenciavamomentos agradveis:

    Se ele senta na rede da varanda, encolhe as pernas, balana um poucoe espia pra dentro... Est enfrentando as ondas do mar agitado, emum veleiro que sobe e desce vencendo a tempestade, chegando ailhas desertas ou lutando contra piratas em abordagens perigosssimase cheias de emoo. (MACHADO, 2008, p. 13)

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    Lucas tinha um amigo imaginrio que se chamava Talento, mas gostavade cham-lo de Tat. Certo dia pensou em um plano, e resolveu revelar aoseu amigo:

    - Ando com vontade de vir ficar para sempre aqui com voc.Tat coou a cabea, sorriu, bocejou, e ganhou tempo, repetindo:- Para sempre?Lucas logo confirmou:- Para sempre. Feliz para sempre. Que nem nas histrias. Aqui queeu fao tudo o que eu quero. (MACHADO, 2008, p. 18)

    O amigo imaginrio pondera que para sempre seria demais. Omenino concorda: ... passar o resto da vida espiando pra dentro podeno ser uma boa. Mas eu podia fazer isso, digamos, durante uns cem anos.Feito a Bela Adormecida (MACHADO, 2008, p. 18).

    Ao mencionar uma das princesas mais conhecidas dos contos defadas, a histria apresenta intertextualidade com o conto clssico A BelaAdormecida, pois, no conto contemporneo, Lucas revela o desejo deadormecer de forma semelhante Bela Adormecida:

    - Isso mesmo. Acho que o melhor jeito. Assim o pessoal todo tambmfica dormindo l fora, na minha casa, na escola, no mundo, em todocanto. Eu no perco nada do que est acontecendo l, porque no vaiacontecer nada mesmo. Enquanto isso, eu espio pra dentro e venhopara c. (MACHADO, 2008, p. 19)

    Ao invs de espetar o dedo em um fuso (como aconteceu no contoclssico), Lucas decide utilizar uma ma para encantar-se: que j queeu no posso ser o Belo Adormecido, vou ser o Branco de Neve.(MACHADO, 2008, p. 21). Assim, a intertextualidade acontece com umsegundo conto de fadas clssico: Branca de Neve.

    Lucas ento deseja comer uma ma para engasgar-se, ficando assim,muitos anos espiando pra dentro at que algum lhe d um beijo e quebreo encanto. Seu amigo imaginrio ironiza: Queimado de sol desse jeito,vai ser o Moreno da Praia. Voc no prefere ser o Mouro Torto? Ouento a gente d um jeito de transformar voc num Prncipe Sapo...(MACHADO, 2008, p. 21).

    A inteno de Lucas era engasgar-se com uma ma e posteriormenteser despertado com um beijo, conforme uma das verses do conto defadas clssico, no qual, aps o prncipe encantar-se com a beleza de Brancade Neve, d-lhe um beijo que a desperta.

    Ao anoitecer, o menino coloca seu plano em prtica. A histriadescreve a viagem que Lucas faz (por meio de um sonho) at que tudohavia ficado escuro. Se, no conto clssico, Branca de Neve despertada

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    por um prncipe, no contemporneo a me de Lucas assume esse mesmopapel:

    De repente, um beijo, um abrao, os olhos de abrindo, a luz brilhandono espao.Voc uma princesa?A me riu: Ainda est dormindo, meu filho? Ande, acorde que est na hora deir para a aula, chega de tanto sonhar. (MACHADO, 2008, p. 27-28)

    Nesse mesmo dia, para sua alegria, Lucas recebe a notcia de queganhara um cachorrinho de estimao. Para a surpresa da me, d a ele onome de Talento ou Tamanco, que poderia tambm chamar de Tat (nomesdo amigo imaginrio). O animalzinho passa a ser seu companheiro paraespiar pra dentro, ou seja, uma companhia para vivenciar aventuras desua imaginao.

    Indo para a escola: Saiu correndo para ir com os amigos embora,explorar as cavernas do mundo l fora. Olhar bem para tudo, viver deverdade, para o mundo de dentro ter mais variedade. (MACHADO, 2008,p. 28). Nota-se que a partir do momento em que o personagem tem umacompanhia, capaz de vivenciar as aventuras no mundo real, ou seja, capaz de sair do casulo e viver.

    No que diz respeito relao entre realidade e fantasia, vivenciadapor Lucas, vale ressaltar que tudo o que ele vivenciava na realidade alimentavasua imaginao. Ao mencionar personagens clssicos, Lucas torna-se umexemplo de criana leitora (ou ouvinte) que desfruta das grandescontribuies da literatura infantil, em especial dos contos de fadas, poisas crianas se identificam com os personagens, vivenciam as aventuras, ecomemoram o final feliz.

    Bettelheim (1980), em A psicanlise dos contos de fadas, destaca asinmeras contribuies do contato das crianas com os contos de fadasclssicos:

    Quanto mais tentei entender a razo destas estrias terem tanto xitono enriquecimento da vida interior da criana, tanto mais percebique estes contos, num sentido bem mais profundo do que outros tiposde leitura, comeam onde a criana realmente se encontra no seu serpsicolgico e emocional. Falam de suas presses internas graves deum modo que ela inconscientemente compreende e - sem menosprezaras lutas interiores mais srias que o crescimento pressupe - oferecemexemplos tanto de solues temporrias quanto permanentes paradificuldades prementes. (BETTELHEIM, 1980, p. 14)

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    Da mesma forma, Bettelheim (1980) descreve as possibilidades deidentificao conforme a realidade da criana:

    Os contos de fadas mostram criana de que modo ela podepersonificar seus desejos destrutivos numa figura, obter satisfaesdesejadas de outra, identificar-se com uma terceira, ter ligaes ideaiscom uma quarta, e da para diante, como requeiram suas necessidadesmomentneas. (BETTELHEIM, 1980, p. 82)

    Azevedo (2012)1, em outras palavras, tambm descreve claramentea possibilidade de identificao e as contribuies dos contos de fadas paracom a vida das crianas:

    O livro um lugar de papel e dentro dele existe sempre uma paisagem.O leitor abre o livro, vai lendo, lendo e, quando v, j est mergulhadona paisagem. Pensando bem, ler como viajar para outro universosem sair de casa. Caminhando dentro do livro, o leitor vai conhecerpersonagens e lugares, participar de aventuras, desvendar segredos,ficar encantado, entrar em contato com opinies diferentes das suas,sentir medo, acreditar em sonhos, chorar, dar gargalhadas, quererfugir e, s vezes, at sentir vontade de dar um beijinho na princesa.Tudo mentira. Ao mesmo tempo, tudo verdade, tanto que aps aviagem, que alguns chamam leitura, o leitor, se tiver sorte, pode ficarcompreendendo um pouco melhor sua prpria vida, as outras pessoase as coisas do mundo. (AZEVEDO, 2012)

    Paolo e Oliveira (2006), em O universo da conscincia e a personagem, aotratarem de O menino que espiava pra dentro, afirmam que:

    A personagem-criana no espao-tempo de sua conscincia no maisse caracteriza pelo que faz exteriormente, mas pelo que imagina, deseja,sonha, lembra atributos de seu mundo interior; no uma coisa depoisda outra, mas tudo ao mesmo tempo, nas dimenses de um espao-tempo dinmico e relativo. O que seria disfuno personagens queno se definem pela esfera de ao, mas pelos atributos , aqui, aocontrrio, funo. So os atributos, as qualidades, que passam afuncionalizar as personagens numa intriga que se rarefaz em termosde acontecimentos em cadeia para ganhar uma dimenso verticalenquanto qualificao de cada instante de conscincia, justapondosensaes, sentimentos e idias. (PAOLO; OLIVEIRA, 2006, p. 35)

    Em sua anlise, destacam que:

    Lucas tem como atributo principal e gerador de toda a narrativa aobservao, mediadora entre o ver dentro e fora, entre a conscincia

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    e a realidade. A ao transcorre num constante paralelismo entreimagens reais e imaginrias, de forma a romper a sucessividadetemporal vinculada reproduo de um passado lendrio a BelaAdormecida, bruxas, duendes, gnomos, ladres pela incorporaoe transformao dessas imagens na simultaneidade da conscincia deLucas, que funde passado-presente numa figura que a ilustrao capta.(PAOLO; OLIVEIRA, 2006, p. 36)

    Bachelard (apud Resende 1999, p. 103) afirma que Ao sonhar ouniverso, estamos sempre partindo,habitamos algures - num alguresconfortvel. Para bem designar um mundo sonhado, preciso marc-lopor uma felicidade. Dessa forma, o personagem Lucas vivenciava aventurasem mundos animados e coloridos. Os mistrios, os perigos, amigos, enfim,suas viagens, fazem com que ele se sinta um menino feliz.

    De acordo com Resende (1999, p.115),o livro O menino que espiavapra dentro, de Ana Maria Machado, mostra o olhar viajante, que exploraplanos do imaginrio, que poetiza um real possvel no lado de dentro(mundo interior do menino). Ver para dentro sonhar um realmultifacetado.

    Nesse sentido, ainda conforme Resende (1999, p. 116): A realidadevisitada mgica. Ver morar em espaos surpreendentes; criar novasrealidades com a imaginao.

    CONSIDERAES FINAIS

    Um estudo acerca dos contos de fadas permite reconhecer aimportncia dos mesmos, pois so muitas as contribuies aos que ouvemou leem as narrativas. evidente a repercusso dos mesmos, inclusive nacontemporaneidade, ou seja, os personagens clssicos permanecem vivos,mesmo com uma nova roupagem destacam-se no somente em livros,mas tambm em outras produes culturais.

    Nota-se, na literatura infantil contempornea, que muitas obrasdialogam com as clssicas. No entanto, para que o leitor perceba aintertextualidade, torna-se fundamental que tenha conhecimento prviodos contos clssicos.

    Considerando a obra O menino que espiava pra dentro (Ana MariaMachado) como exemplo, observa-se a qualidade da literatura infantilcontempornea. Cabe destacar que esta obra faz parte do acervo disponvelnas bibliotecas escolares pblicas (atravs do PNBE). Portanto, cabe aosmediadores de leitura valorizar as obras destinadas s crianas e proporcionaruma ponte para que a leitura das mesmas seja realmente efetivada.

    O prprio ttulo do livro apresenta uma relao com uma das atitudes

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    das crianas, pois o menino espiava, era curioso. O ato de fantasiar permitia-lhe uma relao entre a realidade e o sonhar.

    O fato de a personagem Lucas ver-se como o Branco de Neve, ouo Belo Adormecido, leva o leitor a pensar sobre a possibilidade deinverso de esteretipos dos contos clssicos, j que nessa obra umpersonagem masculino assumiu o papel de protagonista. Alm do mais,na narrativa contempornea no est presente uma fada, mas um amigoimaginrio. No ser uma princesa que o despertar, mas sua prpria me.

    No momento em que o amigo imaginrio pergunta a Lucas se parasempre no seria tempo demais, nota-se um questionamento em relaoaos desfechos dos contos de fada clssicos, estes que apontam para umfinal feliz para sempre.

    A histria, ambientada num cenrio contemporneo, apresenta umaforma criativa e atraente e contribui para a formao de novos leitores,que iro se identificar com o personagem principal e vivenciaro juntos amesma aventura. Pois, qual a criana que no tem ou teve um amigoimaginrio? Qual a criana que no tem ou gostaria de ter um animalzinhode estimao? E por que no um menino se identificar com as personagensfemininas dos contos de fadas clssicos? Vale ressaltar que, no contocontemporneo, o final feliz tambm estar garantido.

    REFERNCIAS

    AZEVEDO, Ricardo. Biografia de Ricardo Azevedo. 2012. Disponvel em: .

    BETTELHEIM, Bruno. A psicanlise dos contos de fadas. 16. ed.. Rio de Janeiro: Paz eTerra, 1980.

    CHAMLIAN, Regina. Um papo de aranha sobre textos e leituras: a escola brasileiraensina a lngua da intertextualidade? In: GREGORIN, Jos Nicolau. PINA, PatriciaKtia da Costa, MICHELLI, Regina Silva (orgs.). A Literatura infantil e juvenil hoje: mltiplosolhares, diversas leituras. Rio de Janeiro: Dialogarts, 2011.

    DARNTON, Robert. Histrias que os camponeses contam: o significado de MameGanso. In: ______. O grande massacre de gatos e outros episdios da histria cultural francesa.Traduo de Sonia Coutinho. So Paulo: Graal, 2011. p. 20- 103.

    GRIMM, Jacob; GRIMM, Wilhelm. Contos de fada: obra completa. Trad. David JardimJnior Belo Horizonte- Rio de Janeiro: Itatiaia, 2000.

    ________. A bela adormecida. Trad. David Jardim Jnior Belo Horizonte- Rio de Janeiro:Itatiaia, 2000.

    ________. Branca de Neve. Trad. David Jardim Jnior Belo Horizonte- Rio de Janeiro:Itatiaia, 2000.

    MACHADO, Ana Maria. Como e por que ler os clssicos universais desde cedo. Rio de Janeiro:Editora Objetiva, 2002.

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    ________.O menino que espiava pra dentro. 2. ed. So Paulo: Global, 2008.

    OLMI, Alba. Renovando a tradio pelos caminhos da intertextualidade. Disponvel em: . Acesso em 20 nov.2013.

    PALO, Maria Jos. OLIVEIRA, Maria Rosa de. Literatura Infantil: voz de criana. Disponvelem: . Acessoem 17 dez. 2013.

    RESENDE, Vania Maria. Literatura e sonho - subverso do olhar. Disponvel em: . Acesso em17 dez. 2013.

    RIBEIRO, Maria A. H. W. O Reconto dos contos da oralidade: permanncias e mudanasno gnero. In: AGUIAR, Vera Teixeira. MARTHA, Alice urea Penteado. (Orgs.) Contoe Reconto: das fontes inveno. So Paulo: Cultura Acadmica, 2012.

    SANTANNA, Affonso R. de. Pardia parfrase & Cia So Paulo: tica, 1937.