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    FRAGMENTOS DE CULTURA, Goinia, v. 18, n. 9/10, p. 127-146, set./out. 2008. 127

    Resumo:a mediao cultural uma dimenso da formao dodiscurso teolgico que tem sido desprezada pela teologia dogmtica emexpresso manualistica. Recuperar sua centralidade garantir a condidialgica de tal teologia, bem como sua relevncia e atualidade.

    Palavras-chave:Teologia dogmtica, mediao cultural, mtodoteolgico

    Alessandro Rodrigues Rocha

    A CENTRALIDADE DA MEDIAOCULTURAL NA FORMAODISCURSO TEOLGICO

    Neste artigo queremos trabalhar a centralidade da mediao cul-tural na tarefa da reexo teolgica, bem como os processos dedesistoricizao do discurso teolgico que agem nas estruturas

    institucionais ideologizadas buscando sua cristalizao e, impedindo suaao de fecundidade frente s mais diversas sociedades e culturas.

    Para tanto, aps trabalhar a importncia da mediao cultural nagestao dos discursos teolgicos, vamos identicar os mecanismos decontrole que operam a cristalizao de certos discursos, identicando-oscomo os mais adequados, ou melhor, como aqueles sobre os quais pesa aautoridade institucional que os identica como ortodoxos, devendo, portantoser proferidos de forma unvoca.

    MEDIAO CULTURAL COMOLCUS TEOLGICO

    A experincia de f nasce marcada a se tornar um discurso sistema-tizado, tanto pela necessidade da vericao de sua plausibilidade, quanto

    pelo desao de comunicao que a tarefa da evangelizao e da catequeseapresenta. Porm, isso s possvel atravs de um sistema lingstico-cul-

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    tural capaz de dizer o indizvel, tornando-o cognoscvel a tantos quantoso ouam.

    Sem a dimenso da mediao cultural haveria uma polarizao entreexperincia de f e discurso sistemtico, uma incomunicabilidade incapacita-dora de qualquer proposta minimamente relevante. Sem mediao culturala experincia de f no transmitiria nenhum sentido existencial, de formaque o discurso sistemtico no passaria de pea literria cristalizada, fria eabsolutamente irrelevante, dada to somente reproduo sistemtica decorte apologtico.

    Neste sentido que se fundamenta a importncia da mediaocultural. Ela olcus da produo do conhecimento teolgico, ou seja,da cognoscibilidade. Ela no se encontra fora, no est em nenhum outrolugar seno no mundo concreto da linguagem. O mundo da linguagemenvolve o ser humano a partir do primeiro momento em que se dirige o seuolhar para ele, apresentando-se-lhe com a mesma determinao, necessidadee objetividade que denem o seu encontro com o mundo das coisas(CASSIRER, 2004, p. 80).

    , portanto, no espao da mediao cultural que se gesta o mtodo deacesso experincia de f. ela que atende necessidade/desao desta experi-ncia. O discurso sistemtico que se h de fazer no corresponder experincia

    de f em toda a sua extenso. Antes, ele se apresentar dessa ou daquela forma,a partir da mediao cultural utilizada em seu processo de gestao. A mediaocultural , portanto, a parteira que arranca das entranhas da experincia de faquilo que se tornar em discurso sistemtico.

    Este processo maiutico realizado pela mediao cultural se fazeminentemente no campo da palavra, que na viso de Cassirer (2004, p.80), no uma designao e denominao, no , tampouco, um smboloespiritual do ser, e sim uma parte real do mesmo.

    Essa linguagem que faz acontecer a mediao cultural no estaou aquela, a nossa linguagem. a dos homens e mulheres de existnciaconcreta e, portanto, carregada de suas histrias e ideologias, vazada porsuas esperanas e, condutora de suas utopias. por este instrumento, quenas caractersticas apresentadas encontra sua concretude, que a necessida-de/desao da experincia de f ganha seucorpusdoutrinrio.

    Pela linguagem, chegamos realidade, abrimo-nos ao mundo, mesmo j antes de toda elaborao terica expressa; esta pr-compreenso lin-gstica, pela qual o mundo se nos torna acessvel, nos surge categorial,articulado, no como mera soma de objetos, mas ligado logicamente

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    em classes, generos, espcies..., prolongada, depois, com maioraprofundamento terico, pela cincia (AMADO, 1995, p. 24).

    Diz ainda Joo Amado (1995, p. 24) que a linguagem do homem enrgeia(W. Vom Humboldt), isto , fora conguradora e estruturante;no se limita a pr etiquetas em seres situados no mundo j constitudo;toda a linguagem constitui um mundo, cosmoviso.

    , portanto, fundamental perceber que a linguagem e, por con-seguinte a mediao cultural, no um simples apetrecho (destinado aocampo da oratria) do discurso teolgico. , antes, a chave hermenuticapara compreend-lo, visto que em sua dimenso e domnio que se gestao mtodo que o possibilita.

    Da mesma forma que se torna importante dizer que a mediaocultural efetivada pela linguagem no pode ser relegada a uma dimensosecundria do processo de produo do discurso teolgico1, deve-se tambme, sobretudo, apontar para sua centralidade no que diz respeito relevnciadeste discurso. Se os elementos concretos de homens e mulheres no foremrespeitados e protagonizados, constituindo assim um mtodo que contem-ple essa concretude, o discurso teolgico caracterizado aqui como discursosistemtico no comunicar qualquer sentido existencial.

    neste sentido que se funda e sustenta a importncia da mediaocultural. Se ela for considerada em sua centralidade, ou seja, se no processode construo do discurso teolgico a mediao cultural for levada a srio (eisso se d medida que se prope uma aproximao com os sujeitos histri-cos, a quem se dirige esse discurso, no sentido de compreender o conjuntode elementos que compe seu horizonte existencial e, a partir da, perceberqual matriz dessa mediao deve ser instrumentalizada), a ento o discursoteolgico revelar sua relevncia.

    Pois o grande desao que se pe ao discurso teolgico como anun-ciar aos homens e mulheres concretos, no humanidade como categoriauniversal e genrica, aquilo que se mostra de forma hierofnica e indizvel.O desao no somente de comunicar este evento, o que j seria comple-xo, mas de comunic-lo na dimenso do horizonte existencial daquele edaquela que se constituem como sujeitos histricos desse processo, destesque habitam um mundo particular.

    Seja qual for a natureza do mundo, o problema essencial que levantaa relao cognitiva sob o aspecto do objeto conhecido o da pro-babilidade de transcrio cognitiva, da transformao do objeto

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    a conhecer em objeto conhecido. Como que o que existe se podetornar no que conhecido? Trata-se do problema da expresso empalavras ou outros elementos cognitivos do que cognoscvel ouconhecido. Pretende-se aqui elucidar a intuio ideal da adequaoentre coisas e palavras, intuio que funda a possibilidade de toda asituao cognitiva (AMADO, 1995, p. 26).

    Em funo desta complexidade, a preocupao com a escolha damediao cultural2 correspondente a cada horizonte existencial deve sercompanheira inalienvel de todo processo de produo do discurso teolgico.Como diz Forte (2003, p. 33):

    Por isso a conscincia teolgica mais esclarecida no usa a hermenu-tica histrica como uma espcie de chave onicompreensiva: ela semantm discreta diante da excedncia do Mistrio e da irredutvelvariedade da histria real. A razo teolgica, ento, s pode ser umarazo aberta (Walter Kasper), sempre posta em xeque pelas con-tradies davida e sempre em busca da luz que a revelao de Deusem Jesus Cristo lana sobre ela.

    Numa direo semelhante, Libneo (2001, p. 33) aponta para anecessidade de historicizar a mediao cultural e o mtodo dela derivado:

    As teologias escolstica e moderna deslizavam sobre trilhos epistemo-lgicos e metodolgicos bem plantados pela comunidade teolgica.Hoje desafia-se o telogo a forjar seus trilhos e encontrar novosdormentes a que prend-los. Se o risco de errar cresce, o fascnio daaventura entusiasma.

    como diz Libneo (2001, p. 73), um desao para a comunidadecrist, onde a comunidade na pessoa do telogo cria a teologia, e a teologia,por sua vez, cria a comunidade com sua linguagem. Esse desao de criaoe recriao do discurso e da prpria comunidade tambm analisado porLeonardo Boff a partir de trs momentos onde a linguagem tenta sistematizara experincia de f. O primeiro momento ele chama de saber-imanncia-identicao (BOFF, 2001, p. 13). Nele, a palavra est a servio do queexperimentamos de Deus. Fixamos uma representao. Inicialmente notemos ainda conscincia de que se trata apenas de uma representao daquiloque no pode ser representado (BOFF, 2001, p. 13).

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    o que se tem chamado aqui de cristalizao de uma mediaoou linguagem onde:

    Deus identicado com os conceitos que dele zemos. Ele habitanossos conceitos e nossas linguagens. Elaboramos doutrinas sobreDeus e sobre o mundo divino, doutrinas que se encontram nos vrioscredos e nos catecismos. Com tal procedimento tentamos encher desentido ltimo e pleno nossa vida. Deus pode ser encontrado naintimidade do corao (BOFF, 2003, p. 14).

    O segundo momento, que Leonardo Boff chama de no-saber-transcendncia-desidenticao (p. 14), caracterizado quando, pelaexperincia de Deus, damo-nos conta da insucincia de todas as imagensde Deus. Tudo o que dele dizemos gurativo e simblico. Ele est paraalm de todo o nome e desborda de todo o conceito.

    Esse momento pode ser identicado com o que aqui se tem ditoacerca da necessidade de percepo do horizonte existencial ao qual se dirigeo discurso teolgico. medida que se consegue esta percepo, relativiza-se um discurso monossmico, que identica o objeto da experincia de fcom o discurso dela derivado. O que pode acontecer a partir da o que,

    no dizer de Boff (2001, p. 15):Pode surgir uma teologia da morte de Deus: decreta a morte de todasas palavras referidas ao divino, porque elas mais escondem do quecomunicam Deus. No sabemos mais nada; desidenticamos Deusdas coisas que dizemos dele. Por a entendemos o lema dos mestreszem: Se encontrares Buda, mata-o. Se encontrares Buda, no obuda apenas sua imagem. Mata a imagem para estares livres parao encontro com o verdadeiro Buda.

    Logo aps este momento transitrio de relativizao de um discursoteolgico cristalizado, Boff (2001, p. 15-6) diz que:

    Num terceiro momento da experincia de Deus, reabilitamos asimagens de Deus. Aps t-las afirmado (A), t-las negado (B),agora criticamente nos reconciliamos com elas. Assumimo-lascomo imagens e no mais como a prpria identicao de Deus.Compreendemos que nosso acesso a Deus s pode ser feito atravsdas imagens. Comeamos a sabore-las porque estamos livres

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    diante delas. Elas so andaimes, no a construo, e as acolhemoscomo andaimes.

    A partir desta 3 e das outras contribuies, possvel armar que no espao da mediao cultural que os mtodos so criados, andaimes oupontes, que possibilitam falar o indizvel da experincia de f4, no sentidode atender ao imperativo da necessidade/desao derivada dela.

    CRISTALIZAO DA MEDIAO CULTURAL

    O primeiro passo para a cristalizao de uma mediao cultural a desistoricizao do discurso teolgico. Importa-nos compreender esseprocesso em sua instncia originante, aquela que possibilitaria o discursoteolgico sistemtico unvoco, e onde este buscaria a legitimidade para si,como quem no passado encontra a razo de sua ao presente5.

    Desistoricizao dos Discursos Teolgicos

    Essa desistoricizao consiste na anulao da atualizao da me-diao cultural, de forma a identicar aquela mediao cultural comodenitiva. H, portanto, na raiz desse processo, o desejo univocizante deidenticao de um mtodo que permita a proclamao de um discurso que,por sua vez, possa ser controlado por uma instituio. A desistoricizaoserve, portanto, hierarquizao univocizante da fala e, em decorrncia,do poder que dela emana.

    Esse processo encerra inmeras dimenses de poder que no somenteo teolgico. Sobretudo, porque se identicam no interior de uma comu-nidade aquelas pessoas que podem acessar aquele discurso sobre aqueleDeus. Essa dinmica pessoa-discurso-Deus, uma vez acessada, tem comocontrapartida uma dinmica de resposta Deus-discurso-pessoa. Isso criauma estrutura necessria que, por sua vez, estabelece a impossibilidade dequalquer ao autnoma, tanto na dimenso hermenutica quanto poste-riormente na poltica.

    Nesse sentido, a univocizao do discurso teolgico exerce um papelpedaggico num projeto de poder. Exatamente porque a dimenso daexperincia de f aquela que consegue mobilizar as foras mais radicais do

    homem e da mulher. Se a univocidade j armada no objeto desta expe-rincia, tudo o que dela partir tambm o ser.

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    O risco desta desistoricizao percebido por Cassirer (2004, p. 17)nos seguintes termos:

    O Ser Uno ao qual se apega o pensamento,e do qual este parece nopoder desistir sem destruir a prpria forma, afasta-se mais e mais doterreno do conhecimento. Ele se torna um mero x que, quanto maisproclama categoricamente a sua unidade metafsica como coisa emsi, tanto mais se subtrai a toda e qualquer possibilidade de conhe-cimento, at nalmente ser relegado por completo aos domnios doincognoscvel.

    Na observao de Cassirer, o que est em risco nesse processo o queaqui se compreende como a prpria experincia de f. Uma transcenden-talizao absoluta do divino impede as experincias renovadas e identicao espao do discurso sistemtico comolocuspara elas. Porm, o discursosistemtico no cumpre esse papel ele construto cultural a partir daexperincia.

    Boff (2001, p. 24) tambm discute esta questo dizendo: Deustranscendente representado como o Deus acima do mundo e, o que pior,fora do mundo... Representado como totalmente fora do mundo, Deus de

    fato no seria experimentvel. Ele conclui dizendo: Esse Deus est muitoprximo do Deus do desmo... No um Deus que se abaixa com profundasimpatia para com o ser humano. No assume a nadidade humana. Masconserva, contrariamente ao que diz Paulo (cf Fl 2.6-7) uma majesttica etranscendente divindade (BOFF, 2001, p. 24-5).

    Fazendo um balano da aproximao da religio crist com a culturahelnica, Segundo (1998, p. 248) chega s seguintes concluses:

    claro que nem tudo positivo nesse dilogo e que a teologia denosso tempo destaca, uma e outra vez, de forma mais ou menosequilibrada, os aspectos negativos da inculturao da teologia cristnas categorias de pensamento grego. De fato, temos que admitirque tudo estava longe de ser perfeito ou ao menos positivo, nessemundo helnico com o qual a Igreja dialoga, na poca patrstica [...]na raiz do vazio cultural produzido pela queda do Imprio Romanosob os brbaros, o mundo mental helnico domina, durante muitossculos, as elites do saber na cristandade e, conseqentemente, suaconcepo do dogma. E, por conseguinte, qual devia ser a autoridadeencarregada de mant-lo e ensin-lo.

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    Aps apontar para a inuncia desistoricizante que as categorias depensamento grego exerceram sobre a teologia crist, Segundo (1998, p.248) conclui: Mesmo em plena idade moderna, o desejo de salvaguardara cristandade ou mundo cristo leva a Igreja a aferrar-se a formas de pensarque, se j no so plenamente helnicas, so incapazes de compreender acrescente problemtica da cultura do ltimo meio milnio.

    Vale a pena levar Juan Luis Segundo em considerao, quando dizque as categorias de pensamento j no so mais plenamente helnicas,porm, o que se arma perenemente o jeito de compreender a realidadeadvindo dessas categorias. A lgica da metafsica permanece com muito vigorno discurso teolgico cristo, sobretudo, em seu corte sistemtico. Comopercebem Croatto e Bonino (apudROLDAN, 2004, p. 44):

    A helenizao da mensagem bblica nos fez brincar muito como outromundo, entendido como o reino do que imortal e descarnado, e asalvao de todos os males deste mundo. As coisas se resolvero depois.Porm em um universo que nada tem a ver com o presente.

    Esse jeito de compreender a realidade , a um s tempo, o resultadoda desistoricizao do discurso teolgico e seu instrumento perpetuador.

    uma questo sria que se circunscreve na dimenso da linguagem teolgica 6

    e que deve ser tratada no mbito de uma teologia crtica. Como diz Teixeira(2005, p. 303):

    o exerccio teolgico no pode ocorrer seno como razo crtica,caso contrrio se desvia em discurso ortodoxo ocial, pontuado pelatranscendentalizao, ideologizao e falsicao. [...] sendo que devehaver] um trabalho hermenutico, que rompe com toda e qualquerpossibilidade de dogmatizao da teologia.

    Aps perceber as possveis conseqncias do processo de desistorici-zao do discurso teolgico, preciso uma aproximao mais detida ao seuinterior, no sentido de perceber como efetivamente se d essa desistoricizaoem suas etapas constituintes, a saber: ascenso, potencializao e evocao.

    Ascenso da mediao cultural O processo de desistoricizao do discurso teolgico reproduzido pela

    teologia sistemtica manualista tem seu primeiro movimento na ascenso

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    de uma mediao cultural, transformando-a em a mediao cultural, ouseja, normatizante.

    Isso se deu fundamentalmente no caso do usa da metafsica comomediao cultural. Ela signicava naquele momento, como categoria do pen-samento helnico, um elemento importante da cultura que constitua oethos do cristianismo em sua fase de expanso. Dialogar com o pensamento helnico,em geral, e com a metafsica, em particular, era um passo importante no sentidode tornar cognoscibilizada a experincia de f crist, a m de apresent-la emdiscurso sistemtico relevante ao horizonte existencial daquela cultura 7.

    exatamente nesse sentido que Paul Tillich ressalta a importncia dateologia apologtica dos primeiros sculos do cristianismo. Ela era exatamente oesforo por dialogar com a cultura, por encontrar uma base comum (TILLICH,2006, p. 15) capaz de promover compreensibilidade da mensagem crist. Elechega a dizer que o movimento apologtico pode ser corretamente consideradoo nascedouro de uma teologia crist mais elaborada (TILLICH, 2004, p. 44).

    Porm, a forma de compreender a realidade prpria da metafsicatransformou-se em impossibilidade de dilogo com outras culturas. A verdadeteolgica, na dimenso da mediao metafsica era exterior aos homens emulheres e prpria existncia concreta. Ela era o resultado de um processode iluminao. Esta verdade, uma vez revelada, fora sistematizada, devendo

    agora ser aceita acriticamente em nome da defesa da ortodoxia.Se a verdade no pode ser encontrada na multiplicidade, que cor-responde existncia concreta, ela deve ser buscada para alm dela, numadimenso, por assim dizer, das essncias, onde habitam os conceitos unvocoscapazes de transmitir sentido a todo o mltiplo.

    Esse foi, e ainda o risco que a teologia corre na utilizao das me-diaes culturais. Esse risco se acentuou na teologia dogmtica clssica medida que a metafsica foi ascendida, a partir de sua condio de mediaocultural, ao status de norma normatizante. Quem sabe o problema funda-mental desse processo tenha sido a falta de conscincia quanto limitaoe precariedade de uma mediao, que s oferece relevncia medida quesignica um elemento lingstico compartilhado no horizonte existencialda comunidade onde se d este processo.

    a partir da ascenso da metafsica, que privilegia o unvoco emdetrimento do equvoco, como norma normatizante do discurso teolgicodogmtico clssico, que a teologia sistemtica fundamenta seu discursouniversalizante, num processo dedutivo e univocizante. Isso est na prpriacompreenso de sistema como conjunto harmnico e harmonizador dostemas da f e das experincias decorrentes dela.

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    Essa verdade teolgica s pode ser dita numa perspectiva universali-zante porque ela no est na multiplicidade das culturas. Ela no se constituiem espaos epistemolgicos legtimos. Desta forma, dizer univocamente odiscurso teolgico uma forma, ou a forma, de defender a verdade quantoaos temas da f que constituem basicamente a totalidade da realidade.

    Advertindo contra a arbitrariedade desse processo, diz Boff (2002,p. 36):

    Nenhuma tendncia pode monopolizar a teologia e se apresentarcomo a teologia. Em todo o dito est o no-dito. A razo (tambma teolgica) nita. Por conseqncia nenhuma gerao de cristospode colocar e resolver todas as questes apresentadas pela f. Distodecorre que cada tendncia teolgica deve conhecer seu alcance eprincipalmente seus limites... Deve tambm estar aberta a acolheroutras formas de sistematizar a f.

    A questo, portanto, no to somente acerca dos sistemas totalizantese universalizantes. Ela vai alm, tocando na prpria compreenso do queseja ortodoxo. Quando uma mediao ganhastatusde norma normatizante,um discurso identicado como o nico discurso verdadeiro, condenando

    todos os outros condio marginal de heresia.Pelo menos por agora possvel concordar com Roldn (2004, p.49), quando diz que:

    legtimo e at necessrio que sistematizemos nossa f, masdevemos estar conscientes de dois fatos: as inuncias loscas,sociolgicas e culturais nessas sistematizaes, e a natureza revisvelda tarefa. Do contrrio, em uma espcie dereducio ad absurdum, diramos que a teologia seria um fato acabado, somente se tratariade adquirir e estudar determinado tratado teolgico. O problemaestaria, nesse caso, em determinar qual seria o tratado teolgicodenitivo e irreversvel.

    Potencializao da mediao cultural

    O segundo movimento do processo de desistoricizao do discursoteolgico a potencializao que uma mediao cultural sofre aps ser as-cendida. Uma vez que ela promovida ao status de norma normatizante, potencializada tanto do ponto de vista da autoridade quanto do alcance.

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    Na perspectiva da autoridade, a potencializao gera um desnivelamen-to fundamental na relao entre locutor e ouvinte. O locutor, geralmente, quem manipula o mtodo de acesso ao discurso; ele se encontra no planoespiritual, enquanto o ouvinte no plano temporal.

    A fala do locutor revestida de autoridade porque seu discurso no seu, no de homens e mulheres histricos e culturais; , antes, de umoutro espao distante dos horizontes culturais concretos. O locutor , porassim dizer, o guardio do mtodo, que no mais compreendido comopossvel de reviso, nem to pouco de reinveno.

    Ao ouvinte cabe a tarefa de adequar o discurso sua realidade, mesmoque isto se constitua numa violncia. O discurso passa a ser a distncia pereneque deve ser univocamente interpretado e distribudo aos mais distintosouvintes. Nisto constitui o nivelamento locutor-ouvinte.Na perspectiva do alcance, o discurso teolgico sistemtico se revestede uma capacidade totalizante e universalizante. Uma vez ascendida e po-tencializada, uma mediao cultural produz um discurso que encerra em si atotalidade das respostas s questes ligadas necessidade/desao inerentes experincia de f. Todas as respostas so dadas aprioristicamente e sistemati-zadas em um manual. Tem-se, ento, a teologia sistemtica manualstica.

    Esse manual, que representa um discurso, tem alcance universal8 .

    Independente do horizonte existencial concreto onde esto os homens e mu-lheres cristos, as respostas s suas questes j esto dadas. Isso se d porquaquela mediao que foi cristalizada compreendia que essas respostas devemser dadas a partir da essncia das coisas e no de sua existncia concreta.

    Evocao da mediao cristalizada

    Aps a ascenso e potencializao da mediao cultural o ltimo mo-vimento do processo de desistoricizao do discurso teolgico a evocao.Uma vez elevado ao status de norma normatizante, o mtodo correspondente metafsica como mediao cultural evocado, como j foi dito, em umapretensa onipotncia e onipresena. Ele agora supra-histrico, sua narrativa, por assim dizer, meta-histrica.

    Na evocao se d a legitimao das tendncias totalizantes e uni-versalizantes e, sem dvida, fecha-se o crculo vicioso da desistoricizao dodiscurso teolgico. Esta, por sua vez, altera fundamentalmente o ncleo dateologia. Como observa-se no prximo diagrama:

    O que a teologia sistemtica manualista fez em seu discurso, a partirdo processo de desistoricizao ocorrida com a sublevao da metafsica,

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    foi: ascender uma mediao transformando-a em norma normatizante, im-possibilitando com isso novas mediaes; xar o discurso sistemtico, quedeveria ser s o construto de um processo, em forma de manual totalizantee universalizante; e, por conseguinte, cercear a instncia da experincia def, que no encontra no trmino do processo (mediao cultural e discursosistemtico), os mecanismos que a contemplem como protagonista, nemque levem a srio o imperativo de sua necessidade/desao9.

    Resta, por m, perceber os mecanismos de controle desse discurso,que possibilitam sua manuteno tanto na dimenso da academia, su-postamente o crculo culto, quanto na catequese e liturgia das vivnciaseclesisticas e eclesiais.

    Mecanismos de Controle do Discurso Teolgico

    O segundo passo para a cristalizao da mediao cultural a for-mao de um conjunto de mecanismos capazes de garantir a permannciado processo de desistoricizao de certos discursos teolgicos. Todo esseprocesso de desistoricizao do discurso teolgico serve a um propsitoespecco, que a armao da univocidade da verdade. Uma vez garantidaessa univocidade, ainda necessria sua manuteno, ou seja, o controlede toda discursividade dissonante. Porm, como pergunta Foucault (p. 8),o que h, enm, de to perigoso no fato de as pessoas falarem e de seusdiscursos proliferarem? Onde, anal, est o perigo?.

    O perigo da discursividade dissonante em relao univocidade que esta se fundamenta sobre princpios lgicos que excluem o contradit-rio. Qualquer fala diferente pe em cheque a fala unvoca, propondo-lheum dilema: se aquela est correta esta est incorreta, portanto, necessrioprovar que ela no est to certa quanto se imagina. Sua proposio no mais do que uma falcia. Para isso aplica-se o instrumento apologtico quemede o discurso outro a partir dos critrios internos do discurso unvoco.O resultado ser possivelmente a condenao daquele e sua identicaocomo heresia (discurso interditado).

    Foucault (p. 8-9) identica esse processo no interior das sociedadese diz:

    Suponho que em toda sociedade a produo do discurso ao mesmo

    tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuda por certonmero de procedimentos que tem por funo conjurar seus poderes

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    e perigos, dominar seu acontecimento aleatrio, esquivar sua pesadae temvel materialidade.

    Do controle da discursividade dissonante depende o discurso un-voco. Por isso, desistoriciz-lo se constitui numa tarefa importante. Porm,isso no tudo. preciso tambm estabelecer mecanismos de controle queconsigam manter sua univocidade. Os mecanismos de controle operam nosentido de evidenciar sua legitimidade e superioridade frente a qualqueroutro discurso.

    Foucault classica os mecanismos de controle do discurso em trsgrupos de procedimento de excluso. O primeiro trata de limitar os poderesa partir dos instrumentos de interdio da palavra 10 , segregao ou loucura 11

    e vontade de verdade12 .O segundo grupo aplica-se em dominar as aparies aleatrias aodiscurso ocial. Esse domnio sobre o aleatrio se d na dimenso docomentrio13 do autor14 e na organizao das disciplinas15 . O terceirogrupo de procedimentos de excluso age no sentido de selecionar ossujeitos que falam nos espaos do ritual16 , na sociedade do discurso17 ,na doutrina 18 e apropriao social19 .

    A teoria foucaultiana quanto anlise de discurso , sem dvida,

    bastante adequada para a anlise do discurso teolgico sistemtico. Contudo,pretende-se aqui contribuir com uma anlise que no se limita a MichelFoucault, mas, a partir dele, dialoga com outras perspectivas de produode mecanismos de controle do discurso sistemtico.

    Sociedade do discurso

    Para tanto, interessa analisar esses mecanismos em trs representaespresentes no interior do discurso teolgico sistemtico, sobretudo o manu-alista. A primeira representao o que aqui se identica como sociedadedo discurso (que propriamente a funo desempenhada muitas vezes pelomagistrio, tanto na tradio catlica, quanto protestante20 ) como chamouFoucault. Esse, possivelmente, um dos mais potentes mecanismos decontrole de discurso, exatamente porque sua ao se d, sobretudo, naquelesque desejam se estabelecer como agentes do discurso teolgico.

    Reforar o discurso unvoco, confundido ou armado como ortodoxo,

    se constitui num rito de passagem ao qual todo telogo dever se submeter,se quiser ser identicado como tal no interior de sua tradio. Pensando nas

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    condies do agente de discurso diante da sociedade de discurso, Foucault(p. 7) elabora o seguinte dilogo:

    O desejo diz: Eu no queria ter de entrar nesta ordem arriscada dodiscurso; no queria ter de me haver com o que tem de categrico edecisivo; gostaria que fosse ao meu redor como uma transparnciacalma, profunda, indenidamente aberta, em que os outros respon-dessem minha espectativas, e de onde as verdades se elevassem, umaa uma; eu no teria seno de me deixar levar, nela e por ela, comoum destroo feliz. E a instituio responde: Voc no tem porquetemer comear; estamos todos a para lhe mostrar que o discurso estna ordem das leis; que h muito tempo se cuida de sua apario; quelhe foi preparado um lugar que o honra mas o desarma; e que, se lheocorre ter algum poder, de ns, s de ns, que ele lhe advm.

    Essa sociedade do discurso , portanto, quem seleciona os agentesde discurso que iro reproduzi-lo, em sua dimenso totalizante e universali-zante. Os agentes so pessoas concretas, mas a sociedade no o somatriodessas pessoas; , antes, uma instituio guardi do discurso unvoco21 .Muitas vezes ao ingressar nela, o telogo se v diante da situao de ter que

    abrir mo de sua condio concreta, bem como de seu horizonte existencial,para reproduzir e defender aquela verdade que supostamente emanou daessncia das coisas.

    Seduo da continuidade histrica

    Uma segunda representao dos mecanismos de controle do dis-curso teolgico o que aqui se identica como seduo da continuidadehistrica22 . Como diz Castro (2005, p. 57): No ciclo vicioso de leiturasdes-historicizantes, a ideologia ressuscita as verdades fundadoras toda vezque uma nova idia ameaa a explicao at ento vigente.

    A pregao de uma linha histrica ininterrupta das verdades fun-dadoras at determinado grupo que a sustenta no presente (ortodoxia) ,sem dvida, um elemento importante de coero no mbito da produode discurso. Quem gostaria, ou mesmo ousaria se colocar margem dodiscurso original fundador? (CASTRO, 2005, p. 60).

    Como diz Castro (p. 69-70): A histria da igreja se transformou [...]numa determinada maneira de dispor e expor a verdade j adquirida pelateologia (da repetio) sistemtica [...] Assim no h espao para qualquer

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    anlise crtica, existindo to somente uma exposio de dados selecionados,decorrentes de uma congurao j dada.

    Segundo (1998, p. 230) tambm considera essa questo naquiloque chama de uma suposta continuidade perfeita ou visvel de coisas econceitos. Ele identica essa tendncia no interior da ortodoxia catlica,dizendo que ela:

    Esforou-se, por exemplo, em fazer pensar que o Pedro de quemfalam os sinticos e a quem Jesus falou igual a uma autoridadeem quem Jesus j pensava para ser seu vigrio e sucessor de Pedro,que esse por sua vez, igual ao bispo de Roma; e, nalmente, quebispo de Roma, no sculo II, igual a sumo pontce, no sculo XX (SEGUNDO, 1998, p. 230).

    Como se v, busca-se uma linha histrica composta por uma sucessode eventos arrumados ideologicamente. Isto , uma cadeia (no sentido literale metafrico) hermenutica harmnica que sugere que o que se diz hoje oque se disse numa origem providenciada pela fora da prpria divindade.

    H, portanto, duas questes complicadas nesta perspectiva. A primei-ra, que sugere haver uma origem providenciada pela divindade e a segunda,

    que identica a verdade com uma losoa da histria que exclui a dialticaem nome de um todo harmnico.Contra isso adverte Castro (2005, p. 71):

    O campo discursivo opera um deslocamento ideolgico. Enquantoem nvel do discurso se diz que o passado deve determinar o presente,em outro nvel, o que ca evidente que as determinaes ocorremprecisamente de modo inverso. O presente determina seletivamentea leitura do passado.

    Tambm Segundo (1998, p. 230) faz sua advertncia e prope umaperspectiva que julga adequada:

    A crtica histrica, no entanto, e em benefcio da teologia no podefazer outra coisa seno trabalhar contra esses anacronismos radical-mente enganosos. E isso no pelo prurido de tirar autoridade do

    sumo pontce, mas para dar-lhe a autoridade de vida, e pelas justasrazes que a apiam de verdade.

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    exatamente contra esse tipo de pensamento que a seduo da con-tinuidade histrica opera seu poder. Poder este que pode ser identicadocomo elemento harmonizador. A seduo se d na capacidade de expor ostemas da f num todo harmnico e dedutivo, onde o crente encontra umporto seguro, ao menos na superfcie do mar da f, para sua prtica religiosa.Deste elemento harmonizador, fruto da harmonizao arbitrria e anacrnicada histria, depende o magistrio e sua atividade apologtica.

    Seduo da harmonia esttica

    Esse elemento harmonizador se constitui na terceira representao dosmecanismos de controle do discurso teolgico da sistemtica manualista. aseduo da harmonia esttica que age em toda sua capacidade esterelizante,no sentido de promover um bem-estar que dirige estabilidade.

    como diz Moltmann (2003, p. 11):

    Qualquer summa teolgica consistente, qualquer sistema teolgico,reivindica a totalidade, a perfeita organicidade e a coerncia univer-sal. De princpio, deve-se poder dizer algo sobre o todo e sobre cadaparte. Todos seus enunciados devem ser isentos de contradies e

    ajustar-se mutuamente. A arquitetura deve ser como sada de umafundio, inteiria.

    Nisto est a seduo esttica da manualstica sistemtica: a sensaode entrar em contato com a verdade teolgica em toda a sua extenso eprofundidade. A segurana tranqilizadora que surge da confrontao docrente com uma catedral, erigida minuciosamente no intuito de promover apercepo da harmonia entre todas as partes e em cada parte, em particular.Na contemplao desta catedral, s resta ao que contempla sentar-se emprofunda admirao e permanecer contemplando.

    Exatamente nesta atitude de permanente contemplao que se revelaa fora da seduo esttica como poderoso mecanismo de controle. Comodiz Moltmann (2003, p. 11):

    Todo sistema terico, inclusive o teolgico, ostenta por isso ao menosum certo atrativo esttico. Mas nisto reside tambm o seu poder deseduo: os sistemas poupam a muitos leitores, e certamente aos des-lumbrados, o pensamento critico pessoal e uma deciso independentee responsvel, por-que no se apresentam para serem discutidos.

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    E conclui dizendo:

    Mesmo quando no fruto de dogmatismo, o pensamento dogm-tico se expressa na teologia com clara preferncia pelas teses; teses,porm, no colocadas em discusso, mas sim como enunciados quepostulam ou a concordncia ou a rejeio, nunca um pensamentoindependente e a responsabilidade pessoal. Induzem o ouvinte apensar segundo elas, no segundo seu pensamento prprio (MOLT-MANN, 2003, p. 11).

    CONCLUSO

    Desta forma, fecha-se o ciclo dos mecanismos de controle do discursoteolgico da sistemtica manualista. Uma sociedade que auto-fundamentaseu prprio discurso, identicando-o como a verdade original e fundante, apartir da seduo da continuidade histrica, que, por sua vez, lana modo recurso harmonizador, no sentido de imobilizar toda discursividade nasteias da seduo da harmonia esttica.

    Esse ciclo de controle opera na direo de legitimar o processo dedesistoricizao do discurso teolgico, que age na intenso de impossibilitarnovas mediaes culturais, a partir da ascenso-potencializao-evocao deuma mediao (metafsica), tornando-a norma normatizante. Esse processo,por sua vez, impede que o evento nuclear da teologia se d no interior dascomunidades de f, barrando, sobretudo, a experincia de f e sua capacidadeinventiva, bem como seu poder mobilizador.

    Notas 1 Embora parea claro que o discurso teolgico no possa prescindir da cultura como instncia que

    promove mediao a partir da linguagem (de determinada linguagem), permitindo assim seuspostulados, isso no se verica no caso da teologia sistemtica manualista. O que se pode perceber a cristalizao de uma mediao cultural (a metafsica clssica) que impede qualquer outra. Destaforma, o arco de elementos que compe o horizonte existencial de homens e mulheres concretos no identicado no interior desse discurso.

    2 Em seu livroTeoria do Mtodo Teolgico, Clodovis Boff (2000) fala das possibilidades de mediaocultural para a teologia. A primeira delas a losoa, que tem como funes concretas: ser parceiraexigente do dilogo cultural, exercitar a arte de pensar, trabalhar o fundo losco implicado nateologia. A partir do processo de autonomia que as demais cincias tiveram em relao losoa,ocorrido no iluminismo, a teologia ganhou outras possibilidades de mediao. Entre tantas outraspossveis (psicologia, psicanlise, lingstica, economia, antropologia...). Boff (2000, p. 371-82)

    aponta para as cincias sociais devido a sua ampla utilizao na teologia latino-americana.3 Os trs momentos da linguagem do discurso teolgico apontados por Leonardo Boff (2001) sintetizamde alguma forma o objeto desta reexo. At aqui j se tentou evidenciar o ponto A: identicao

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    do discurso com a totalidade do sagrado; o ponto B: a necessidade de relativizar essa identicao,a m de permitir outras aproximaes e mediaes. E o ponto C, que trata da conciliao com alinguagem em dimenso mltipla, constitui o tema do terceiro e ltimo captulo desta pesquisa.

    4 Prefere-se aqui a expresso experincia de f e no experincia de Deus em funo do objeto destapesquisa, que a circunscreve no campo do mtodo, buscando desta forma se distanciar ao mximo

    de expresses e conceitos que a aproximem da distncia dos contedos. 5 O processo de desistoricizao do discurso teolgico analisado, nesse momento, no perodo doencontro da religio crist com o mundo helnico, sobretudo com a metafsica. Esse processo acon-teceu outras vezes no interior do discurso teolgico cristo (e ainda acontece), mas sua matriz parao corte sistemtico do discurso teolgico se constituiu naquele momento.

    6 Andrs Torres Queiruga (2004, p. 71-104) enfrenta essa problemtica a partir de trs questesfundamentais: a primeira, de carter estrutural quanto diculdade constitutiva de toda linguagemmundana para expressar o no mundano. A segunda, na dimenso da mudana de paradigma, ondea revoluo cultural produzida pela modernidade deve ser levada a srio. E a terceira, de ndole maisvivencial, aludindo s diculdades e resistncias que uma expresso adequada da vivncia religiosaencontra.

    7 H uma discusso intensa sobre a legitimidade da helenizao da mensagem crist. Porm, na dimensodesta pesquisa, cabe evidenciar que essa helenizao cumpriu um papel dialtico com o cristianismoe a cultura que lhe era prpria e que queria alcanar com sua mensagem. O ponto de crtica no ,portanto, a helenizao ou metazicizao da mensagem crist naquele tempo para aquela cultura;, sim, a cristalizao daquela mediao cultural e sua ascenso ao statusde norma normatizante.

    8 No se discute a universalidade dos temas da f. O que se pretende discutir a pretensa universalidadede uma interpretao desses temas.

    9 Embora a dimenso do desao (anunciar para reproduzir a experincia) seja largamente contempladano corte teolgico que sustenta a teologia sistemtica manualista, a dimenso relegada a condiomarginal a da necessidade (dvida, incredulidade existencial), que no acolhida como possibilidadenem ao crente em geral, nem muito menos ao telogo.

    10 Ele diz: Por mais que o discurso seja aparentemente bem pouca coisa, as interdies que o atingemrevelam logo, rapidamente, sua ligao com o desejo e com o poder. Nisto no h nada de espantoso,visto que o discurso como a psicanlise nos mostrou no simplesmente aquilo que manifesta (ouoculta) o desejo; , tambm aquilo que o objeto do desejo; e visto que isto a histria no cessa denos ensinar o discurso no simplesmente aquilo que traduz as lutas ou sistemas de dominao,mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar (FOUCAULT, p.10).

    11 Desde a alta Idade Mdia, o louco aquele cujo discurso no pode circular como o dos outros: podeocorrer que sua palavra seja considerada nula e no seja acolhida, no tendo verdade nem impor-tncia, no podendo testemunhar na justia, no podendo autenticar um ato ou um contrato, nopodendo nem mesmo, no sacrifcio da missa, permitir a transubstanciao e fazer do po um corpo(FOUCAULT, p. 10-1).

    12

    Ora, essa vontade de verdade como os outros sistemas de excluso, apia-se sobre um suporte ins-titucional: ao mesmo tempo reforada e reconduzida por todo um compacto conjunto de prticascomo a pedagogia, claro, como o sistema dos livros, da edio, das bibliotecas, como as sociedadesde sbios outrora, os laboratrios de hoje. Mas ela tambm reconduzida mais profundamente semdvida, pelo modo como o saber aplicado em uma sociedade, como valorizado, distribudo,repartido e de certo modo atribudo. Recordemos aqui, apenas a ttulo simblico, o velho princpiogrego: que a aritmtica pode bem ser assunto das cidades democrticas, pois ele ensina as relaes deigualdade, mas somente a geometria deve ser ensinada nas oligarquias, pois demonstra as proporesna desigualdade (FOUCAULT, p. 17-8).

    13 Suponho, mas sem ter muita certeza, que no h sociedade onde no existam narrativas maioresque se contam, se repetem e se fazem variar; frmulas, textos, conjuntos ritualizados de discursosque se narram, conforme circunstncias bem determinadas; coisas ditas uma vez e que se conservam,porque nelas se imagina haver algo como um segredo ou uma riqueza (FOUCAULT, p. 21-2).

    14 Creio que existe outro princpio de rarefao de um discurso que , at certo ponto, complementar

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    ao primeiro (comentrio). Trata-se do autor. O autor, no entendido, claro, como indivduo falanteque pronunciou ou escreveu um texto, mas o autor como princpio de agrupamento do discurso,como unidade e origem de suas signicaes, como foco de sua coerncia (FOUCAULT, p. 26).

    15 Mas sem pertencer a uma disciplina, uma proposio deve utilizar instrumentos conceituais ou tc-nicas de um tipo bem denido... Em resumo, uma proposio deve preencher exigncias complexas e

    pesadas para poder pertencer ao conjunto de uma disciplina; antes de poder ser declarada verdadeiraou falsa, deve encontrar-se, como diria M. Canguilhem, no verdadeiro. (FOUCAULT, p. 33-4).16 O ritual dene a qualicao que devem possuir os indivduos que falam (e que, no jogo de um

    dilogo, da interrogao, da recitao, devem ocupar determinada posio e formular determinadotipos de enunciados); dene os gestos, os comportamentos, as circunstncias, e todo o conjunto designos que devem acompanhar o discurso; xa, enm, a eccia suposta ou imposta das palavras, seuefeito sobre aqueles aos quais se dirigem, os limites de seu valor de coero (FOUCAULT, p. 39).

    17 com forma de funcionar parcialmente distinta h as sociedades de discurso, cuja funo conservarou produzir discursos, mas para faz-los circular em um espao fechado, distribu-los somente segundoregras estritas... (FOUCAULT, p. 39).

    18 A doutrina realiza uma dupla sujeio: dos sujeitos que falam aos discursos e dos discursos ao grupo,ao menos virtual, dos indivduos que falam (FOUCAULT, p. 43).

    19 [...] a apropriao social dos discursos. Sabe-se que a educao, embora seja, de direito, o instrumentograas ao qual todo o indivduo, em uma sociedade como a nossa, pode ter acesso a qualquer tipo dediscurso, segue, em sua distribuio, no que permite e no que impede, as linhas que esto marcadaspela distncia, pelas oposies e lutas sociais. Todo sistema de educao uma maneira poltica demanter ou de modicar a apropriao dos discursos, com os saberes e os poderes que eles trazemconsigo (FOUCAULT, p. 43-4).

    20 Na perspectiva da teologia catlica o magistrio um dos trs elementos autoritativos para a reexoteolgica. Sesbo (2005) trabalha amplamente essa questo. Na perspectiva protestante, porm, omagistrio no (ocialmente) reconhecido em funo do postulado da Sola Scriptura.

    21 Nesse sentido no h dvida que historicamente o magistrio tem cumprido por vezes esse papel deguardio da palavra teolgica unvoca.

    22 Esse tema estudado por Foucault como elemento de controle do discurso, porm Castro (2005,p. 53-8) quem identica seu uso no discurso teolgico, chamando-o de o mito da continuidadehistrica.

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    Abstract:Cultural mediation is one of the dimensions of the shaping of thetheological discourse which has been neglected by dogmatic theology as exprein the manuals. Recovering its centrality is to ensure the dialogical condition osuch theology, as well as its relevance and modernity .

    Key words:Dogmatic theology, cultural mediation, theologicalmethod

    ALESSANDRO RODRIGUES ROCHA Doutorando em teologia sistemtica na PUC/Rio. Pesquisador bolsista da FAPERJ (Bolsa nota 10).E-mail : [email protected]