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1° PROMOTORIA DE JUSTIÇA DA COMARCA DE MOSSORÓ/RN DEFESA DA SAÚDE, CIDADANIA E DIREITOS HUMANOS Rua José de Alencar, S/N – 1° andar , Centro, Mossoró/RN Tel. (84) 3315-3350/315-3348 – CEP.: 59.600-190 E-mail.: [email protected] EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ DE DIREITO DA VARA DA FAZENDA PÚBLICA DA COMARCA DE MOSSORÓ, ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE AÇÃO CIVIL PÚBLICA PEDIDO DE TUTELA ANTECIPADA O M INISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE , por seu Promotor de Justiça titular da 1ª Promotoria de Justiça desta Comarca de Mossoró, arrimado na Constituição Federal, arts. 6°, caput, 37, II, IX e XXI, 127, caput, 129, incisos II e III, e art. 196 da Constituição Federal; na Lei n° 7.347/85; na Lei n° 8.080/90 e na Lei n° 9.790/99, à vista dos documentos e peças de informação em anexo, propõe a presente AÇÃO CIVIL PÚBLICA COM PEDIDO DE TUTELA ANTECIPADA contra o Estado do Rio Grande do Norte, pessoa jurídica de direito público representado por seu Procurador Geral, com endereço na Av. Afonso Pena, 1155, Tirol, Natal-RN, CEP 59.020-100, e a Associação Marca para Promoção de Serviços , pessoa jurídica de direito privado, inscrita no CNPJ sob o nº 05.791.879/0001-50, com endereço na Avenida Rio Branco, nº 122, sala 1701, centro, Rio de Janeiro/RJ, CEP: 20040-001, pelos motivos a seguir expostos. FLÁVIO CÔRTE PINHEIRO DE SOUSA 1° PROMOTOR DE JUSTIÇA DE MOSSORÓ 1

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1° PROMOTORIA DE JUSTIÇA DA COMARCA DE MOSSORÓ/RNDEFESA DA SAÚDE, CIDADANIA E DIREITOS HUMANOS Rua José de Alencar, S/N – 1° andar , Centro, Mossoró/RN

Tel. (84) 3315-3350/315-3348 – CEP.: 59.600-190E-mail.: [email protected]

EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ DE DIREITO DA VARA DA FAZENDA PÚBLICA DA COMARCA DE MOSSORÓ, ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE

AÇÃO CIVIL PÚBLICAPEDIDO DE TUTELA ANTECIPADA

O M INISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE, por seu Promotor de Justiça titular da 1ª Promotoria de Justiça desta Comarca de Mossoró, arrimado na Constituição Federal, arts. 6°, caput, 37, II, IX e XXI, 127, caput, 129, incisos II e III, e art. 196 da Constituição Federal; na Lei n° 7.347/85; na Lei n° 8.080/90 e na Lei n° 9.790/99, à vista dos documentos e peças de informação em anexo, propõe a presente

AÇÃO CIVIL PÚBLICA COM PEDIDO DE TUTELA ANTECIPADA

contra o Estado do Rio Grande do Norte, pessoa jurídica de direito público representado por seu Procurador Geral, com endereço na Av. Afonso Pena, 1155, Tirol, Natal-RN, CEP 59.020-100, e a Associação Marca para Promoção de Serviços, pessoa jurídica de direito privado, inscrita no CNPJ sob o nº 05.791.879/0001-50, com endereço na Avenida Rio Branco, nº 122, sala 1701, centro, Rio de Janeiro/RJ, CEP: 20040-001, pelos motivos a seguir expostos.

FLÁVIO CÔRTE PINHEIRO DE SOUSA

1° PROMOTOR DE JUSTIÇA DE MOSSORÓ 1

I- DOS FATOS

O Ministério Público Estadual, por sua 1ª Promotoria de Justiça de Mossoró, com atribuições na defesa da saúde, cidadania e direitos humanos, instaurou, de ofício, em 01 de março de 2012, o Inquérito Civil Público nº 005/2012, posteriormente registrado sob o nº 06.2012.000393-5, com o intuito de esclarecer e verificar a legalidade, eficiência e a necessidade de instalação do chamado Hospital da Mulher de Mossoró (Hospital da Mulher Parteira Maria Correia), bem como apurar supostas irregularidades na forma de administração e contratação de pessoal do referido nosocômio.

O procedimento teve início quando o Ministério Público tomou conhecimento, a partir de ampla divulgação promovida pela imprensa local, acerca da contratação, pelo Estado do Rio Grande do Norte, de pessoa jurídica de direito privado (Associação Marca Para Promoção de Serviços) para instalar e administrar, integralmente com recursos públicos, o intitulado Hospital da Mulher, bem como da forma de seleção de pessoal para trabalhar no nosocômio que, segundo noticiado, não estaria observando a regra constitucional do concurso público.

Em princípio, pairavam sérias dúvidas sobre a forma de administração do nosocômio, forma de contratação de pessoal, valores empregados pelo Estado, etc., o que gerou grande insatisfação entre os profissionais de saúde de Mossoró, mobilização dos sindicatos correspondentes e, especialmente, angústia entre os aprovados no concurso público n. 001/2010 – SEARH/SESAP para cargos públicos na área da saúde, que deixaram de ser nomeados e passaram a observar contratações para as mesmas funções, sem prévio concurso público, sob o regime celetista, por intermédio da referida pessoa jurídica de direito privado, embora remunerados com recursos públicos.

O mais absurdo, Excelência, é que alguns candidatos aprovados no citado concurso público, em posições bem além do número de vagas prevista no edital (eram previstas 20 vagas para o cargo de Enfermeiro, por exemplo), foram contratados pela Associação Marca, sendo remunerados com recursos públicos, em detrimento de candidatos aprovados e com melhor classificação no certame, inclusive dentro do número de vagas.

É o caso, por exemplo, das candidatas CAMILA FERNANDES DE AMORIM; SAMARA DE SOUZA FIGUEIREDO, MARINA DANTAS DINIZ E JANINE DE PAULO PINTO, classificadas, respectivamente, em 39ª, 52ª, 55ª e 59ª lugares (vide documento comprobatório nos autos), as quais foram contratadas pela Associação Marca em detrimento de candidatos aprovados em classificados em posições superiores, ressaltando-se que todo o recurso empregado pela Associação Marca para a concretização do Hospital da Mulher tem origem pública, conforme será explicitado mais adiante.

Inicialmente, foi promovida audiência pública no dia 07/03/2012 durante a qual foram prestados diversos esclarecimentos e restou ainda mais evidente a insatisfação dos aprovados no concurso (mídia anexa à fl.397).

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Ante a total falta de transparência do Poder Público sobre a forma de instalação e administração do Hospital da Mulher, que estava em vias de ser inaugurado, e visando esclarecer a regularidade da aludida situação, foram requisitadas algumas informações ao então Secretário Estadual de Saúde, Domício Arruda, especialmente acerca da natureza da instituição, respectivas fontes de custeio, forma pela qual se daria a administração do nosocômio, se mediante gestão pública ou privada, bem como acerca da forma de contratação de pessoal para laborar na unidade hospitalar.

Em resposta, foi informado sobre a natureza pública do hospital e a opção da gestão estadual em realizar a administração da unidade através de Termo de Parceria com Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP), e, para tanto, teria sido selecionada a Associação Marca Para Promoção de Serviços, dada a experiência da entidade no gerenciamento de serviços de saúde, notadamente junto à Secretaria Municipal de Saúde de Natal.

Outrossim, não obstante tenha o gestor público reconhecido a necessidade de realização de prévia seleção pública para celebração de termo de parceria, foi informado que a situação caótica que se verificou no município de Mossoró, no início do ano de 2012, teria motivado a contratação da sobredita OSCIP de forma direta, em caráter emergencial, pelo período de 06 (seis) meses, dentro do qual deveria ser iniciado procedimento regular de seleção para escolha de entidade para contrato definitivo.

Por sua vez, no que concerne à contratação de pessoal, o secretário informou que seria realizada mediante seleção pública, consistente na apresentação de currículos, entrevista e prova escrita de aptidão.

Considerando que as informações prestadas pelo Estado vieram desacompanhadas de quaisquer documentos aptos a permitir a formação de juízo de valor acerca da legalidade dos fatos explicitados, foi solicitada cópia do Processo Administrativo que teve como objeto tal contratação.

Nos autos do mencionado processo, que foi iniciado, ressalte-se, em 06 de setembro de 2011, ou seja, antes mesmo da alegada situação calamitosa, consta minuta de termo de referência subscrito pela secretária de saúde adjunta da época Maria das Dores Bulamarqui de Lima que já sinalizava a intenção da Administração Pública Estadual em instalar o Hospital da Mulher de Mossoró.

Por sua vez, no dia 27 de janeiro de 2012 o secretário de saúde da época emitiu declaração asseverando que a despesa de instalação do Hospital da Mulher teria adequação orçamentária e financeira com a lei orçamentária anual.

Já no dia 06 de fevereiro de 2012, o então gestor estadual da saúde proferiu despacho por meio do qual “reconheceu” a situação caótica da assistência à saúde da mulher na cidade da Mossoró e declarou a necessidade emergencial de implantar o serviço hospitalar em questão, apontando como solução a avença

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emergencial com instituição sem fins lucrativos, com experiência em gestão de unidades de saúde.

Convém destacar que a prefalada urgência foi baseada exclusivamente em matérias jornalísticas que relatavam a grave situação enfrentada na cidade na atenção à saúde da mulher por ocasião da paralisação dos anestesiologistas, que interrompeu, por dois dias, os partos realizados na rede pública de Mossoró, não decorrendo de qualquer estudo ou avaliação do Poder Público.

No mesmo ato em que foi declarada a necessidade premente de instalação do Hospital da Mulher na cidade de Mossoró, foi asseverado que a entidade responsável pela administração do nosocômio ainda não havia sido escolhida, aventando o gestor público a necessidade de se enviar convites de apresentação de projetos a pelo menos 03 (três) instituições, utilizando como critério de escolha a capacidade de logística de implantação até início de março do corrente ano.

Todavia, conforme será demonstrado adiante, em 06 de fevereiro de 2012, data em que o então gestor estadual da saúde proferiu despacho por meio do qual “reconheceu” a situação caótica da assistência à saúde da mulher na cidade da Mossoró e declarou a necessidade emergencial de implantar o serviço hospitalar em questão, apontando como solução a avença emergencial com instituição sem fins lucrativos, com experiência em gestão de unidades de saúde, a Associação Marca já estava escolhida e já executava obras no hospital, tendo inclusive assinado contrato de aluguel do prédio onde funciona o Hospital em data anterior, precisamente no dia 01 de fevereiro de 2012.

Cumpre destacar que os autos do citado procedimento administrativo foram remetidos à Assessoria Jurídica da Secretaria Estadual de Saúde e à Procuradoria Geral do Estado.

A assessoria jurídica da SESAP, em 08 de fevereiro de 2012, opinou pela necessidade de normatização estadual voltada à qualificação das instituições sem fins lucrativos como OSCIPs e pela prévia submissão do termo de parceria ao Conselho de Políticas Públicas da área, como também apontou a irregularidade de terceirização da atividade-fim da unidade hospitalar.

Mais uma vez, Excelência, a assessoria jurídica da SESAP preocupava-se em fazer um parecer quando, em verdade, a Associação Marca já tinha sido escolhida e inclusive já firmara contrato de aluguel do prédio onde funciona hoje o Hospital, sendo referido contrato datado de 01 de fevereiro de 2012.

Em termos diametralmente opostos, o Procurador Geral do Estado, em 17 de fevereiro de 2012, exarou parecer opinando pela viabilidade jurídica da celebração de termo de parceria, sem prévia licitação, em caráter emergencial, pelo

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prazo de 180 (cento e oitenta) dias, pelo que deveria ser imediatamente aberto concurso de projetos para a seleção definitiva de entidade parceira. Manifestou-se, ainda, pela dispensa de prévia submissão do termo de parceria ao Conselho de Políticas Públicas da área, em face da situação emergencial.

Ocorre, Excelência, que, apesar da aparente regularidade dos trâmites legais para a seleção de entidade parceira, o que se verificou, na prática, foi a realização de um ato flagrantemente ilegal e imoral por parte da Administração Pública Estadual, uma vez que a existência de processo administrativo não passou de mera formalidade vazia, porquanto o gestor público já havia concretizado, no mundo dos fatos, a escolha da OSCIP responsável pela gestão do Hospital da Mulher em total dissonância com os ditames legais. Veja-se.

Conforme consta nos autos do processo administrativo em referência, no dia 02 de fevereiro de 2012, a Associação Marca Para Promoção de Serviços encaminhou resposta ao convite recebido pelo então secretário de saúde para apresentar proposta de gerenciamento do Hospital da Mulher no município de Mossoró (fl.244).

Contudo, estranhamente, no dia 01 de fevereiro de 2012 a Associação Marca Para Promoção de Serviços já havia firmado contrato de locação do prédio onde funciona o Hospital da Mulher, bem como de prestação de serviços de supervisão, reforma e adequação da unidade hospitalar (fls.631/637 e 640/645).

E, mais absurdamente, Excelência, informou a entidade parceira que ainda em dezembro de 2011, foram realizadas algumas cotações de preços de materiais e equipamentos para o Hospital da Mulher, tendo em vista que tão logo receberam a proposta de apresentação do modelo de gestão para o referido hospital, foi iniciado contato com os fornecedores para levantamento de custos dos equipamentos (fl.978).

Como se percebe, houve, no mínimo, uma inversão lógica na cronologia dos fatos, pois antes mesmo de o secretário de saúde elaborar despacho alegando a situação de emergência em que se encontrava a atenção à saúde o município de Mossoró e ter afirmado que ainda não havia sido selecionada a entidade responsável pela gestão do Hospital da Mulher, assim como de a Associação Marca responder ao convite que lhe foi dirigido, esta já havia, de fato, sido escolhida para administrar o Hospital, tanto é que firmou os contratos necessários à consecução de suas atividades, especialmente aluguel do prédio onde funcionaria o Hospital. Tratava-se, na verdade, de um jogo de cartas marcadas, sendo a lisura da Administração ao firmar termo de parceria com entidade do terceiro setor apenas aparente, pois as tratativas que antecederam a sua celebração se deram inarredavelmente ao arrepio da lei.

A escolha da Oscip, na verdade, foi realizada antes mesmo da decretação de situação de emergência pela autoridade pública.

Corroborando com as informações supra, em audiência realizada

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nesta Promotoria de Justiça, no dia 22 de maio de 2012, com o sr. Antônio Carlos de Oliveira Júnior e a sra. Rosimar Gomes Bravo Oliveira, consultores contratados pela Associação Marca para assessorar a gestão do Hospital da Mulher, estes informaram que ainda em meados de janeiro de 2012 já haviam sido contactados para prestar seus serviços em prol da instalação do nosocômio em tela (mídia acostada à fl.665).

Outrossim, os locadores do imóvel onde funciona o Hospital da Mulher, os srs. Misomar Falcão Duarte, Joel de Sousa Neto e Maria do Carmo Guerra Pinto, também asseveraram a este órgão ministerial que ainda em meados de janeiro de 2012 o prédio já havia sido entregue à Associação Marca para início das obras de reforma (mídia acostada à fl.665).

Frise-se, ademais, que, não bastasse a escolha da OSCIP não ter observado as formalidades legais, inexistiu pesquisa mercadológica a demonstrar que os preços estabelecidos no “pré-projeto” de instalação do Hospital da Mulher estariam em consonância com os valores praticados no mercado, tendo o Poder Público acatado, sem reservas, o preço apresentado pela entidade parceira.

Conforme ajustado no termo de parceria, o Estado do Rio Grande do Norte se comprometeu a repassar à Associação Marca Para Promoção de Serviços, no período de 6 (seis) meses, a quantia total de R$ 15.806.075,91 (quinze milhões, oitocentos e seis mil, setenta e cinco reais e noventa e um centavos) para fazer funcionar a estrutura hospitalar, sendo este valor distribuído da seguinte forma: R$ 2.543.515,00 (dois milhões, quinhentos e quarenta e três mil e quinhentos e quinze reais) para aquisição de equipamentos para a unidade de saúde, R$ 90.000,00 (noventa mil reais) para a climatização do nosocômio, R$ 218.838,56 (duzentos e dezoito mil, oitocentos e trinta e oito reais e cinquenta e seis centavos) correspondente aos custos de readaptação predial e R$ 12.953.704, 35 (doze milhões, novecentos e cinquenta e três mil, setecentos e quatro reais e trinta e cinco centavos).

Apesar da volumosa cifra repassada à entidade parceira para a gestão do Hospital da Mulher de Mossoró, segundo depoimento prestado nesta Promotoria de Justiça pela consultora Rosimar Gomes Bravo, responsável pelo controle de gastos do Hospital da Mulher , a quantia ainda será insuficiente, pois, segundo ela, no decorrer da prestação do serviço, teriam surgido necessidades não contempladas no orçamento inicial apresentado ao Estado, a exemplo de gastos com a aquisição de leitos, uma vez que teria sido estimada a implantação de 33 (trinta e três) leitos, mas, na verdade, vieram a ser instalados 50 (cinquenta) leitos. Nas palavras da própria depoente “A gente se preparou para uma realidade, mas quando chegamos lá mudou”(mídia de fl.665).

Isso torna ainda mais patente que o açodamento do Poder Público na implantação do Hospital da Mulher de Mossoró poderá causar incontáveis prejuízos ao erário, uma vez que a Administração provocou a prestação de um serviço sem os devidos planejamentos orçamentário e de execução.

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Por sua vez, insta observar que enquanto a Administração Pública terceiriza, ou melhor, quarteiriza, suas atividades fins, ainda encontra-se em vigor concurso público cujo prazo de validade expira no dia 24 de junho de 2012, restando habilitados diversos profissionais médicos, enfermeiros e farmacêuticos, que estão sendo preteridos em favor daqueles que estão exercendo atualmente tais funções na referida unidade de saúde, contratadas pelo regime celetista, para as mesmas funções dos habilitados no concurso público ainda em vigor.

O Hospital da Mulher conta hoje com uma média de 170 (centro e setenta) funcionários, contratados pelo regime celetista para atividades-fim da unidade hospitalar, por intermédio de outra pessoa jurídica vinculada à Associação Marca (Salute Sociale), bem como com diversos profissionais médicos, igualmente contratados mediante pessoas jurídicas, numa verdadeira quarteirização de mão de obra (fls.564/602).

Em verdade, a Associação Marca contrata diversas outras pessoas jurídicas de direito privado para, em conjunto, prestarem serviços públicos, dentre elas, a Salute Sociale, a Adventus Group & Consultores, a Serviços de Assistência Médica e Ambulatorial LTDA, a Neo Clínica SS LTDA e a Olivas Planejamento, Assessoria e Serviços S/C LTDA (fls. 556 a 602 e 647 a 654).

Frise-se, outrossim, em que pese a relevante função do Conselho Estadual de Saúde no controle da execução da política de saúde por força do disposto no artigo 1º, §2º, da Lei 8.142/90 e no art.10 da Lei 9.790/99, a sua participação no processo de celebração do termo de parceria foi completamente ignorada pelo gestor estadual.

Nesse viés, conforme será detalhado nesta petição, a rapidez com que foram realizados os atos administrativos para a formalização do termo de parceria com a Associação Marca Para Promoção de Serviços culminou no desrespeito às normas de proteção ao patrimônio público, à moralidade administrativa, além de lesionar os princípios e diretrizes do SUS.

Em face, portanto, das reiteradas violações ao ordenamento jurídico perpetradas pelo Estado do Rio Grande do Norte, que, celebrando Termo de Parceria sem regulamentar previamente a qualificação de OSCIPs no âmbito estadual; sem submeter referido Termo de Parceria ao Conselho Estadual de Saúde; sem realizar o devido procedimento licitatório e promovendo a ilícita terceirização de várias atividades finalísticas de saúde, em prejuízo de aprovados em concurso público, não resta alternativa ao Ministério Público Estadual a não ser o ajuizamento da presente ação civil pública, em defesa dos direitos e interesses de todo o meio social em prol de uma saúde de qualidade e em respeito ao patrimônio público.

Tramita, inclusive, nesta Vara da Fazenda Pública, a ação n. 0006694092012 proposta por um grupo de aprovados no concurso público antes citado em que pleiteiam a nomeação para os respectivos cargos.

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II- DO DIREITO

II.I- DA INEXISTÊNCIA DE REGULAMENTAÇÃO, EM NÍVEL ESTADUAL, ACERCA DA QUALIFICAÇÃO DE PESSOAS JURÍDICAS DE DIREITO PRIVADO SEM FINS LUCRATIVOS COMO ORGANIZAÇÕES DA SOCIEDADE CIVIL DE INTERESSE PÚBLICO – CONDIÇÃO PRÉVIA INDISPENSÁVEL PARA CELEBRAÇÃO DE TERMO DE PARCERIA

A participação de pessoas jurídicas de direito privado sem fins lucrativos na gestão de serviços considerados não exclusivos do Estado trata-se de matéria relativamente recente no ordenamento jurídico pátrio.

No que concerne especificamente às Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIPs), entidades que compõem o terceiro setor, a regulamentação, no plano federal, se dá pela Lei Federal nº 9.790/99, que estabelece os requisitos indispensáveis para que determinadas entidades possam ser qualificadas como OSCIP, devendo, também, ter sempre como propósito a prestação de uma série de serviços sociais e/ou a promoção de direitos sociais. Assim, a qualificação das OSCIPs não é discricionária, devendo preencher uma série de requisitos formais que estão dispostos na lei.

Ainda de acordo com a citada lei federal, cabe ao Ministério da Justiça atribuir a qualificação de OSCIP às pessoas jurídicas que preencham os requisitos legais.

Os entes públicos, de maneira geral, têm se utilizado apenas dessa qualificação obtida em âmbito federal como condição para celebração de termo de parceria, olvidando a necessidade imperiosa de se regulamentar, dentro de sua esfera de competência, os requisitos necessários à obtenção dessa qualificação, independentemente de a entidade encontrar-se qualificada pelo Ministério da Justiça.

Tal exigência se apresenta indispensável na medida em que a Lei nº 9.790/99 estabelece apenas normas de caráter geral, de modo que cabe aos Estados e Municípios estabelecerem os pressupostos que se lhes assemelham necessários a que algumas entidades qualifiquem-se como OSCIPs, a fim de que a norma possa ser aplicada de maneira mais adequada à sua própria realidade local.

Desta feita, antes de o ente público pretender firmar Termo de Parceria com OSCIP, é indispensável a existência de lei no respectivo nível de governo que preveja os requisitos necessários a que determinada entidade possa qualificar-se como tal, uma vez que o assunto envolve aspectos de discricionariedade política dos legisladores federal, estadual e municipal, não havendo, por conseguinte, como negar a autonomia constitucional do Estado federado para a edição de normas sobre essa matéria.

Nesse sentido o escólio de Paola Nery Ferrari e Regina Maria Macedo Nery Ferrari:

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“Considerando a Federação brasileira, Estados, Municípios e Distrito Federal, também podem criar tanto organizações sociais como organizações da sociedade civil de interesse público, desde que, em seu âmbito de atuação, exista prévia previsão legal. Isto porque a legislação federal, as Leis n. 9.637/98 e n. 9.790/99, só se aplica à administração pública federal e não serve de suporte para qualificar, como tais, pessoas jurídicas de direito privado, na esfera estadual, municipal e distrital.1

Na mesma esteira de pensamento já decidiu o Tribunal de Contas do Estado do Minas de Gerais, consoante parecer emitido através da consulta nº 716.238, que restou assim ementado:

“Município — Organização da sociedade civil de interesse público — Assessoria jurídica à população carente — Exigência de lei municipal para qualificação da OSCIP — Necessidade de licitação para celebração do termo de parceria — Limitações ao exercício da advocacia — Apreciação do estatuto social pela OAB — Fiscalização e controle pelo Tribunal de Contas — Empregados celetistas — Impossibilidade de lançamento em Despesa de Pessoal. (Tribunal Pleno, sessão do dia 27/11/2008, Conselheiro Presidente Elmo Braz, parecer aprovado à unanimidade). Grifos inovados.

Ainda encampando o entendimento sobre a obrigatoriedade de edição lei autorizativa, o Tribunal de Contas do Estado da Bahia editou a Resolução nº 1.258/07, disciplinando os procedimentos concernentes à qualificação de entidades civis sem fins lucrativos como OSCIP e à celebração de termos de parceria entre o Poder Público municipal, trazendo, dentre outros, os seguintes considerandos:

“a) a Lei Federal n. 9.790, de 23 de março de 1999, prevê a qualificação de pessoas jurídicas de direito privado sem fins lucrativos como Organização da Sociedade Civil de Interesse Público — OSCIP, habilitando-as, mediante a celebração de termo de parceria, a colaborar com o Poder Público no atendimento de interesses públicos, desde que em seus objetivos sociais constem, pelo menos, uma das finalidades catalogadas no seu art. 3º;b) a lei mencionada no item anterior restringe-se, por suas disposições, aos serviços públicos federais, sendo imprópria sua utilização direta pelos Municípios para fundamentar a celebração de termos de parceria com OSCIPs;c) compete aos Municípios editar leis que disponham sobre as entidades que sejam passíveis de qualificação como OSCIPs, sobre as exigências para essa qualificação, inclusive no que tange às disposições estatuárias da pretendente, sobre a instituição e o conteúdo dos termos de parceria e demais

1 FERRARI, Paola Nery; FERRARI, Regina Maria Macedo Nery. Controle das organizações sociais. Belo Horizonte: Fórum, 2007. p. 85.

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requisitos necessários, observando-se, subsidiariamente, as regras estabelecidas pelos arts. 2º, 3º e 4º da Lei n. 9.790/99, além dos procedimentos insculpidos em seu art. 5º, no que couber;d) alguns Municípios, não obstante o entendimento dominante, vêm celebrando termo de parceria com OSCIPs, inclusive com trespasse de serviços inteiros, sem respaldo legal, devido à inexistência de lei municipal autorizativa;e) é vedada a utilização de OSCIPs para contratação de pessoal para o serviço público, o que caracteriza burla ao princípio.” Destaques inovados

Nesse passo, a qualificação da entidade como OSCIP no âmbito federal não se mostra suficiente para autorizar que o Estado do Rio Grande do Norte pudesse, de pronto, firmar termo de parceria. Necessária e imprescindível a edição de norma estadual que estabeleça os requisitos para qualificação de entidade particular como OSCIP, caracterizando a sua ausência óbice intransponível à celebração de Termo de Parceria.

No caso vertente, o Termo de Parceria firmado entre o Estado do Rio Grande do Norte e a Associação Marca Para Promoção de Serviços encontra-se maculado desde seu nascedouro, uma vez que não existe, em âmbito estadual, legislação prevendo os requisitos para qualificação de entidades privadas sem fins lucrativos como OSCIPs, o que torna imperiosa a declaração de nulidade do ato pelo Poder Judiciário, como forma de restabelecer a legalidade.

II.II - DA AUSÊNCIA DE PROCESSO SELETIVO PRÉVIO PARA ESCOLHA DA OSCIP. SITUAÇÃO DE EMERGÊNCIA FICTA ALEGADA PELA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA COMO FORMA DE BURLAR A EXIGÊNCIA DE PROCEDIMENTO LICITATÓRIO. PROBLEMA PREEXISTENTE.

A Constituição da República Federativa do Brasil preconiza, em seu art. 37, XXI, que, ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes.

A lei nº 8.666/93, por sua vez, estabeleceu as normas gerais sobre licitações e contratos, aplicáveis a todos os entes da Federação. Referida lei trouxe em seu bojo, ainda, as ressalvas à realização de procedimento licitatório pelo Poder Público quando existentes hipóteses de dispensa (art.24) e inexigibilidade de licitação (art.25). Fora dessas hipóteses, a Administração Pública está obrigada a licitar.

Nesse passo, possível afirmar que, em não se tratando de quaisquer dos casos previstos pelos arts. 24 ou 25 da Lei de Licitações, a celebração de Termo de Parceria com OSCIP somente pode ser efetuada mediante procedimento licitatório, porquanto se trata, em certa medida, de repasse de recursos públicos a entidade privada em contrapartida a atividade que esta prestará.

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Ora, considerando que, além do objetivo comum almejado pelos parceiros — que é eminentemente social —, essa espécie de parceria com a administração pública representa uma atividade típica de fomento do Estado dirigida ao incentivo a determinadas atividades privadas de interesse público, é imperativo que se exija procedimento licitatório para selecioná-las, a fim mesmo de homenagear o princípio da isonomia e da impessoalidade.

Não se deve pretender aplicar aos termos de parceria, de forma irrefletida, como entendem alguns, toda e qualquer norma que se destinam aos convênios, com o objetivo nítido de afastar a exigência legal de licitar, porquanto, o termo de parceria, a despeito de assemelhar-se aos convênios em alguns pontos, notadamente ante existência de compatibilidade de objetivos institucionais do Poder Público e da entidade privada sem fins lucrativos qualificada como OSCIP, constitui instrumento diverso, que não se confunde com o convênio.

Nesse sentido Marçal Justen Filho2 defende que Administração Pública não pode escolher uma determinada OSCIP para com ela firmar um termo de parceria sem que tenha realizado prévio procedimento licitatório, vez que tal ato ensejaria a fraude e o desmoronamento da regra constitucional da obrigatoriedade de licitação, pois bastaria a Administração criar uma organização submetida ao seu estrito controle, podendo dela se valer para realizar as mais diversas contratações não subordinadas à prévia licitação.

Do mesmo modo, o escólio de Odete Medauar, que defende a obrigatoriedade de realização de certame licitatório sempre que existirem múltiplos particulares que possam atender, satisfatoriamente, a demanda do Poder Público:

“Outra dúvida refere-se à exigência ou inexigência de licitação. Parece óbvio que, nos consórcios entre Municípios ou que envolvam outros entes estatais, o grau de especificidade do objeto é tão significativo que seria incabível cogitar-se de licitação. As mesmas ponderações se aplicam aos convênios entre entidades e órgãos da administração, em especial aos convênios entre universidades ou entre estas e universidades ou faculdades estrangeiras. No tocante aos convênios entre órgãos e entes estatais e entidades particulares, o que, sobretudo, fundamenta a desobrigação de licitação é a especificidade do objeto e da finalidade. No entanto, se a Administração pretender realizar convênio para resultado e finalidade que poderão ser alcançados por muitos, deverá ser realizada licitação ou se abrir a possibilidade de conveniar sem licitação, atendidas as condições fixadas genericamente; se assim não for, haverá ensejo para burla, acobertada pela acepção muito ampla que se queira dar aos convênios. Alguns casos ocorrem na prática, nos quais, a título de convênio, obras são contratadas sem licitação e pessoas são

2JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratos administrativos. 11 ed. São Paulo: Dialética, 2005a.

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investidas em funções e empregos públicos sem concurso ou seleção.”3

Merece ser destacado, ainda, que apesar de o decreto nº 3.100/99, que regulamenta a lei federal nº 9.790/99, estatuir, em seu art. 23, que a escolha de organização da sociedade civil de interesse público para celebração de termo de parceria deve ser precedida de concurso de projetos, subsiste a exigência de observar o procedimento licitatório previsto na Lei nº 8.666/93, uma vez que se tratando esta última de norma geral, não poderia outra norma dispor de forma diferente ou inovar em seus termos quanto aos tipos de licitação por ela instituídos, tampouco poderia fazê-lo um decreto, norma de status infralegal.

Assim, a mera realização de concurso de projetos, em detrimento de procedimento licitatório, não atende aos princípios constitucionais que regem os procedimentos para realização de ajustes de qualquer natureza entre particulares e o Poder Público. A Administração deve observar, obrigatoriamente, os princípios da legalidade, moralidade, economicidade, publicidade, dentre outros, para escolha de entidade celebrante do termo de parceira, salvo nos casos de dispensa e inexigibilidade de licitação, nos termos da lei nº 8.666/93.

Perfilhando o mesmo entendimento ora defendido já decidiu o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Veja-se.

“AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIREITO ADMINISTRATIVO. Termo de parceria entre o município e uma organização da sociedade civil de interesse público. OSCIP. Ação cautelar proposta pelo Ministério Público. Decisão interlocutória que suspendeu o pagamento de contrato de terceirização. Indeferimento do efeito suspensivo. A Lei nº 9.790/99 instituiu o regime de parceria entre o poder público e as oscip’s para a cooperação em áreas determinadas. Art. 37, inciso II e IX da CF que estabelece o princípio do concurso público para investidura de cargo ou emprego público e a excepcionalidade da contratação temporária. Contratos firmados há cerca de 4 anos para a prestação de serviços de saúde, reiteradamente renovado, em franca burla ao princípio do concurso público. Art. 37, XXI da CF. Princípio da licitação. Art. 24, XXIV da Lei nº 8.666/94. Interpretação conforme a Constituição que exige a licitação para a escolha da OSCIP. A dispensa da licitação se refere à prestação de serviço decorrente do termo de parceria já licitado. Violação ao dispositivo constitucional. Manutenção da decisão. Desprovimento do recurso.” (TJRJ, AI 2008.002.28355, 4ª Câmara Cível, Relatora Mônica Tolledo de Oliveira, j. 31/3/2009; DORJ 13/4/2009, p. 113) Destacamos.

Na mesma linha de raciocínio se pronunciou o Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul através do parecer nº 20/2007, nos seguintes termos:

3MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo moderno. 10. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006. p. 228

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“Organização da Sociedade Civil de Interesse Público − OSCIP. Termo de parceria. Execução de serviços de saúde. Programa Saúde da Família. Consulta. Município de São Borja. Licitação prévia. Termo de parceria. Contratações realizadas pelas OSCIPs com dinheiro público.(…) Relativamente à necessidade de prévia licitação para a celebração dos termos de parceria entre as OSCIPs e a administração pública, entendo que aquelas contratações que envolvem transferência de recursos públicos indispensavelmente estão condicionadas a certos controles públicos sem os quais não se legitimam. Como refere Egon Bockmann Moreira, “as OSCIPs, assim como as organizações sociais, são ‘submetidas espontaneamente ao influxo (ao menos parcial) de regras do Direito Público’”. De forma que é bom deixar bem claro que o Poder Público municipal deverá licitar para o atendimento dos serviços que necessita entregar à comunidade e para a escolha da entidade celebrante do termo de parceria, com isto atendendo aos princípios constitucionais da igual dade, moralidade, economicidade, publicidade, dentre outros. (Tribunal de Contas do Estado do Rio Grande do Sul. Parecer n. 20/2007. Relatora: Auditora substituta de conselheiro Heloísa Tripoli Goulart Piccinini) (grifos acrescidos)

Assentado esse entendimento de que a escolha de OSCIP para realização de termo de parceria com o Poder Público está sujeita ao regime de licitação trazido pela Lei nº 8.666/93, cabível afirmar que a exigência de licitar somente restaria afastada nos casos em que a lei autoriza a dispensa ou a inexigibilidade de licitação.

No caso concreto, o Poder Público estadual, alegando uma ficta situação emergencial, deixou de realizar procedimento prévio de seleção, selecionando diretamente a Associação Marca Para Promoção de Serviços para gerir o Hospital da Mulher.

Conforme asseverado, em 6 de fevereiro de 2012, o secretário de saúde da época, “reconheceu” a situação de emergência pela qual passava a saúde da mulher no município de Mossoró, aduzindo que ainda não havia sido selecionada a entidade parceira responsável pela gestão do Hospital da Mulher. Todavia, conforme documentação acostada ao presente petitório, no dia 2 de fevereiro de 2012 a Associação Marca já respondia ao convite formulado pela Secretaria Estadual de Saúde, apresentando proposta para implantação do nosocômio em questão e no dia 1 de fevereiro de 2012, a Oscip já havia formalizado contratos de aluguel do prédio onde funciona o hospital materno-infantil, bem como com a empresa responsável por reformá-lo.

Aliás, conforme depoimentos dos autos, ainda em janeiro a

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Associação Marca visitou as instalações do prédio onde funciona hoje o Hospital e iniciou reformas.

Acrescente-se, ainda, que segundo informações prestadas pela direção da Associação Marca, a entidade já teria sido convidada a gerir o Hospital da Mulher ainda em dezembro de 2011, tanto é que nesse período já iniciou o levantamento de preços para compra de equipamentos (fl.977). O termo de parceria, por sua vez, só veio a ser celebrado em 29 de fevereiro de 2012.

Ora, se desde o mês de setembro de 2011 a Administração Pública cogitava da implantação do Hospital da Mulher de Mossoró e da realização de sua gestão por meio de organização da sociedade civil de interesse público (OSCIP), por que, então, não realizou o devido procedimento licitatório para seleção de entidade parceira?

Isso torna claro o direcionamento do Estado do Rio Grande do Norte na escolha ilegal da Associação Marca Para Promoção de Serviços, indicando que a abertura de processo administrativo foi realizada meramente como forma de tentar legitimar uma escolha já realizada no mundo dos fatos e a alegada situação de urgência utilizada como pano de fundo para a concretização do termo de parceria de forma direta veio a atender à motivação escusa da Administração Pública nessa celebração irregular.

Todavia, Excelência, a necessidade de melhora da rede de assistência à saúde da mulher neste município, apesar de se tratar de um grave problema, não se trata de fato que surgiu no início do ano de 2012. Ao revés, trata-se de situação crônica, que perdura ao longo de várias administrações, que se mostraram omissas em realizar alguma ação concreta para solucioná-la.

Assim, não pode ser acatada a alegada urgência em uma situação que não tem nada de novidade, notadamente quando já se articulava a instalação de um hospital materno-infantil nesta cidade e , ainda, tendo em vista que a declaração de urgência do gestor público se baseou apenas em matérias jornalísticas.

Vejam-se os exatos termos do pronunciamento do Procurador Geral do Estado no parecer que opinou pela regularidade da celebração de termo de parceria em referência: “Quanto à situação de emergência, não se há o que acrescentar, uma vez que a declaração da autoridade pública competente e as matérias jornalísticas juntadas aos autos falam per si e a imagem de mãe desfalecendo, em situação de últimos momentos de gravidez, impressiona. Fica claro que a ausência de uma unidade pública para complementar os serviços já prestados em Mossoró, mas que não atendem à demanda existente é atitude para ser tomada já, sob pena de perdermos vidas até que se promova o ordinário procedimento de escolha”.

Ou seja, a mera veiculação de matérias jornalísticas sensacionalistas foram consideradas pelo Poder Público como suficientes ao convencimento acerca da necessidade de instalação imediata de uma nova unidade hospitalar na cidade de Mossoró, olvidando o gestor que esse problema é deveras antigo, não se

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tratando de um episódio momentâneo, e que nunca recebeu a devida prioridade por parte das autoridades públicas.

Relevante observar, ainda, que ao decretar a urgência da situação, a autoridade pública tenha apontado como exigência para a escolha da OSCIP que a entidade tivesse condições de colocar o hospital em funcionamento no dia 08 de março, justamente quando se comemora o dia internacional da mulher. Parece mais uma atitude provocada com o intuito de promover a imagem da Administração, aproveitando-se justamente de uma data comemorativa, para torná-la mais emblemática, que a efetiva urgência e preocupação com a vida das gestantes.

Não cuidou o gestor público em realizar em estudo sobre a real necessidade de instalação do Hospital da Mulher, para aferir a efetiva demanda pelos serviços prestados no nosocômio, fato este que revela a falta de planejamento da Administração e reflete negativamente sobre o patrimônio público, tendo em vista que a utilização de verbas públicas não observou os princípios da economicidade, eficiência, dentre outros.

Outrossim, não atentou o administrador público para os riscos que a inauguração de um serviço público realizada de maneira incauta poderia acarretar para a continuidade do serviço público, porquanto a partir do momento em que se movimenta a quantia considerável de recursos públicos como a que vem sendo investida no Hospital da Mulher, deveria se ter atentado para garantia de que o mesmo não viesse a ser interrompido. Todavia, não é isso que se verifica no presente caso.

Ora, a Administração formaliza um termo de parceria em caráter emergencial pelo prazo improrrogável de 180 (cento e oitenta) dias, período dentro do qual deveria realizar procedimento licitatório para seleção definitiva de entidade para gerir o Hospital da Mulher. Ocorre que já se passaram mais de 3 (três) meses da celebração da avença emergencial e o processo licitatório ainda não foi concluído e se tal processo não for finalizado até dia 29 de agosto de 2012, não há quaisquer garantias de que os serviços atualmente prestados no hospital em questão continuem a ser disponibilizados à população.

Assim, ocorrendo essa previsível hipótese de não conclusão do procedimento licitatório no tempo devido, terá havido desperdício de verbas públicas e a população será duramente penalizada pela supressão do serviço público essencial.

Desse modo, não se pode chegar a outra conclusão senão a de que a situação de emergência foi criada pela Administração para atender aos seus próprios interesses e não aos da sociedade, firmando termo de parceria de forma irregular, com total falta de transparência, em nítida burla aos ditames legais.

Ora, não se pode admitir que uma situação de “emergência” ocasionada por incúria ou inércia administrativa sirva de justificativa para burlar a lei. A situação emergencial que de fato autorizaria uma dispensa de licitação seria

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aquela gerada por acontecimento ou situação desvinculada da vontade administrativa (caso fortuito ou força maior), portanto, resultante do imprevisível, e não aquela provocada pela desídia administrativa em dar cumprimento a ações que prevenissem a ocorrência do fato alegado como emergente.

A alegativa do Poder Público foi utilizada apenas com o objetivo de conferir uma pseudolegalidade a um ato administrativo que, indubitavelmente, deveria ter sido precedido de licitação, mas que, na verdade, foi realizado ao mero alvedrio do gestor, por motivações que certamente não objetivaram a preservação do interesse público. Trata-se, assim, de ato que se situa na zona fronteiriça entre a ilegalidade e a imoralidade administrativa.

Outrossim, não logrou o Poder Público Estadual demonstrar a inexistência de outras Oscips que atuem na área da saúde, fato que inviabilizaria a competição e autorizaria uma contratação direta. Ao revés, consoante informações disponíveis na página eletrônica do Ministério da Justiça4, existem diversas outras pessoas jurídicas qualificadas como organizações da sociedade civil de interesse público que atuam na área da saúde, o que torna ainda mais injustificada a postura adotada pela Administração em contratar diretamente a Associação Marca, porquanto comprovadamente existentes outras entidades potencialmente capazes de gerir a unidade hospitalar em tela.

A Associação Marca Para Promoção de Serviços é entidade sediada no Estado do Rio de Janeiro, de maneira que é possível asseverar que OSCIPs de outros Estados da Federação que também atuam na área da saúde poderiam ter demonstrado interesse em gerir o Hospital da Mulher. No entanto, a Administração Pública ao direcionar sua escolha para a Oscip em questão, ilegalmente abriu mão de selecionar proposta mais vantajosa para o Poder Público.

No caso em cotejo, o Ministério Público requisitou à Secretaria Estadual de Saúde Pública informações acerca da formulação de convite a outras instituições para celebração de termo de parceria para gestão do Hospital da Mulher, devendo ser encaminhadas ao órgão ministerial os comprovantes de envio dos convites acompanhados dos devidos registros de recebimento.

Em resposta, foi informado que, além da Associação Marca, haviam sido convidadas a Cruz Vermelha, que administra o Hospital de Trauma da Paraíba e a Associação Fibra, que gerencia uma UPA no município de Guarabira. Todavia, segundo asseverado pelo gestor estadual, a primeira convidada não teria demonstrado interesse e a segunda teria demonstrado interesse quando a Associação Marca já havia sido selecionada (fl.973).

Frise-se, contudo, que as citadas alegações vieram desacompanhadas de quaisquer documentos e, não obstante tenha o Parquet reiterado o pleito de apresentação dos convites supostamente enviados às três entidades tendo em vista a instalação do Hospital da Mulher, bem como os comprovantes de recebimentos

4 http://portal.mj.gov.br/data/Pages/MJ0FA9C8DBITEMIDE0BCB31421184407BADA442DFB11BDDCPTBRIE.htm

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dos citados convites pelas referidas instituições, a SESAP deixou transcorrer o prazo sem apresentar qualquer resposta ou justificativa, o que evidencia a falta de transparência e a intenção do Poder Público de não colaborar para o esclarecimentos dos fatos que circundam a celebração do termo de parceria entre os demandados.

Convém repisar, ainda, que, tendo em vista a informação prestada pela Associação Marca de que o convite apresentado pela SESAP para apresentação de projeto de gestão teria sido encaminhado ainda em dezembro de 2011, ou seja, antes mesmo da alegada situação emergencial, que só teria surgido em janeiro de 2012, provavelmente não houve o envio de convites a outras entidades, pois a Administração já tinha escolhido a Associação Marca.

Considerando tudo o que foi até aqui exposto, é de se afirmar que a desnecessidade de realizar licitação para celebrar termos de parceria há que ser considerada com parcimônia, tendo em vista, especialmente, o montante de recursos que são repassados a essas entidades e a necessidade de se apurar de forma minudenciada a sua capacidade para gerir e cumprir o objeto e plano de trabalho pactuados.

No caso vertente, foi efetuado o repasse da quantia de 15.806.075,91 (quinze milhões, oitocentos e seis mil, setenta e cinco reais e noventa e um centavos) no período de 06 (seis) meses, sem que a Administração Pública realizasse sequer um estudo para avaliar se tal montante seria realmente necessário para a prestação dos serviços do Hospital da Mulher, revelando o seu descaso no emprego escorreito das verbas públicas, sempre alegadamente tão escassas.

O prejuízo para o patrimônio público na situação em tela não é mera conjectura, mas fato concreto, pois enquanto o repasse de verbas do ente público para a OSCIP tomou por base a estimativa da realização de cerca de 250 (duzentos e cinquenta) partos por mês, esse patamar ainda não foi atingido, tendo sido realizados 220 (duzentos e vinte) partos em dois meses de funcionamento do nosocômio, consoante relatório de atividades dos meses de março (90 – noventa - partos) e abril (130 – cento e trinta - partos) do Hospital da Mulher (fl. 476). Assim, muito provavelmente, será finalizado o termo de parceria sem que se tenha atingido a meta prevista, evidenciando que a Administração falhou ao não planejar adequadamente seu plano de atuação e quem perde com isso, logicamente, é a sociedade.

Em síntese, em dois meses de funcionamento, a entidade não alcançou o número mensal de partos estimados.

Ora, se fosse possível ao administrador, ao seu próprio talante, afastar a incidência de norma cogente, sob uma inverídica situação de urgência, qual a razão, então, pela qual a Constituição estabeleceu normas sobre licitação, concurso público, controle, orçamento e as impôs para todas as entidades da Administração Pública? Será que as impôs porque se entendeu que elas são

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essenciais para proteger a coisa pública ou foi apenas por apego ao formalismo? E se elas são essenciais, como se pode conceber que, para escapar às mesmas, se criem formas paralelas de administrar a coisa pública inteiramente à margem das normas constitucionais? A sociedade e o Poder Judiciário não podem compactuar com esse tipo de conduta, pois as normas foram postas para serem cumpridas e não para que o administrador decida, segundo a sua conveniência, em qual situação deve utilizá-la. A Administração Pública não está a serviço do administrador, mas da sociedade, e os interesses desta certamente estão bem mais protegidos quando a lei é observada.

Desta feita, não há como se admitir que ao firmar termo de parceria que estabelece o repasse da quantia de tão grande vulto o administrador não tenha se cercado de todos os cuidados antes de transferir a gestão de serviço público de saúde a prestador privado, deixando de realizar o devido procedimento licitatório, o qual tem a finalidade justamente de selecionar a proposta mais vantajosa para a Administração.

Ao contrário, os gestores, sem realizarem qualquer pesquisa mercadológica de valores, efetuaram repasse de verbas conforme proposta de valores apresentados pela entidade parceira. Ou seja, não houve prévio planejamento orçamentário, mas a Administração adequou a despesa pública ao preço estabelecido pela entidade parceira.

Não foi o Estado que disse quanto poderia gastar, mas a entidade privada que determinou quanto queria ganhar. Tal fato resta evidente no depoimento da consultora Rosimar Gomes Bravo Oliveira, que asseverou não ter havido limitação da despesa pelo Estado, mas que a Associação Marca apresentou sua proposta ao ente público e ela foi prontamente acatada (mídia de fl.665).

Não se pode, portanto, chegar a outra conclusão que não a completa irregularidade do termo de parceria firmado pelo Estado do Rio Grande do Norte com a Associação Marca Para Promoção de Serviços de maneira direta, porquanto comprovadamente inexistente qualquer hipótese autorizativa de dispensa ou inexigibilidade de licitação, nos termos da lei nº 8.666/93.

Outrossim, importa gizar que o termo de parceria com a Associação Marca foi celebrado pelo prazo improrrogável de 180 (cento e oitenta) dias, período dentro do qual a Administração deveria realizar procedimento licitatório para a escolha de parceiro em caráter definitivo.

Ocorre que, já se passaram mais de 3 (três) meses da data da assinatura do termo de parceria com a sobredita OSCIP, fato ocorrido em 29 de fevereiro de 2012, e, até o presente momento, o que se tem conhecimento é que o processo de seleção ainda encontra-se em fase inicial. Sem pretensões de prever o futuro, acredita-se que ao final do contrato, caso não concluída a licitação, o Estado alegará necessidade imperiosa de prorrogação do termo de parceria com a mesma OSCIP.

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Ora, se o Estado não conseguiu organizar um procedimento licitatório em cerca de 7 (sete) meses - lembrar que desde setembro de 2011 se articula a instalação do hospital materno-infantil em Mossoró-, como, então, conseguirá finalizá-lo em apenas 3 (três) meses?

Provavelmente não conseguirá, o que redunda no agravamento da situação, na medida em que se põe em xeque a própria continuidade do serviço público prestado no Hospital da Mulher após do dia 29 de agosto de 2012, penalizando a população, sem contar no prejuízo que advirá para a Administração, que investiu tantos recursos para organizar uma estrutura de serviço que ficará inutilizada. Isso é inadmissível.

II.III- DA CONTRATAÇÃO DE PESSOAL PARA ATIVIDADE-FIM DA UNIDADE HOSPITALAR PELO REGIME CELETISTA. TERCEIRIZAÇÃO ILEGAL DE MÃO DE OBRA. ATIVIDADE PERMANENTE DA ADMINISTRAÇÃO. VIOLAÇÃO À REGRA CONSTITUCIONAL QUE IMPÕE A NECESSIDADE DE CONCURSO PÚBLICO PARA A CONTRATAÇÃO DE SERVIDORES PARA A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. EXISTÊNCIA DE APROVADOS EM CONCURSO PÚBLICO AGUARDANDO NOMEAÇÃO. DEMONSTRAÇÃO DE NECESSIDADE DO SERVIÇO PELO ESTADO.

A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 37, prevê:

“Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: II - a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração;”

Depreende-se da leitura do artigo acima que a Administração Pública, a fim de garantir a prestação de seus serviços, poderá disponibilizar cargos ou empregos públicos, aos quais terão acesso os brasileiros e os estrangeiros na forma da lei (art. 37, I, CF), e o mecanismo de ingresso nestes cargos ou empregos é a aprovação prévia em concurso público de provas ou provas e títulos, salvo quando se trata de nomeação para cargo em comissão de livre nomeação e exoneração.

Em outras palavras, o instrumento previsto constitucionalmente para garantir o acesso igualitário, público, impessoal aos cargos e empregos públicos foi o concurso público.

Neste sentido, Celso Antônio Bandeira de Melo5 pontifica:

5 MELO. Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 14. ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 250.

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“O que a Lei Magna visou com os princípios da acessibilidade e do concurso público foi, de um lado, ensejar a todos iguais oportunidades de disputar cargos ou empregos na Administração direta, indireta ou fundacional. De outro lado, propôs-se a impedir tanto o ingresso sem concurso, ressalvadas as exceções previstas na Constituição, quanto obstar a que o servidor habilitado por concurso para cargo ou emprego de determinada natureza viesse depois a ser agraciado com cargo ou emprego permanente de outra natureza, pois esta seria uma forma de fraudar a razão de ser do concurso público”.

Além de estabelecer a necessidade de aprovação prévia em concurso público para a investidura em cargo ou emprego público, a Carta Magna também tratou no mesmo artigo 37, mas no inciso IX, que “a lei estabelecerá os casos de contratação por tempo determinado para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público”.

Ora, a própria Constituição Federal estabeleceu a exceção ao concurso público, estabelecendo a possibilidade de contratação por tempo determinado, quando estiver em questão o atendimento de necessidade temporária de excepcional interesse público.

Como afirma Odracir Juares Hecht, Procurador do trabalho em Campo Grande (MS):

“a Lei n. 8.745/93, que regulamentou o inciso IX do artigo 37 da Constituição Federal, considerou como de excepcional interesse público apenas algumas hipóteses claramente ligadas a fatos emergenciais e excepcionais, como, por exemplo, a assistência a situações de calamidade pública e o combate a surtos endêmicos, nada dispondo em relação às atividades comumente desenvolvidas pelos trabalhadores vinculados a programas sociais” (A necessidade de concurso público para a contratação de agentes comunitários de saúde e outros servidores vinculados a programas sociais).

Conclui-se que a contratação temporária foi autorizada constitucionalmente diante da existência de uma necessidade não permanente, mas que não pode ser negligenciada pelo Poder Público, dado o excepcional interesse em questão; e, ao mesmo tempo, não pode impor o ônus de arregimentar mão de obra permanente, razão pela qual fica o ente público permitido a efetuar a contratação temporária, fugindo ao concurso público.

Assim, a regra de ingresso para cargos ou empregos públicos da Administração direta ou indireta continua sendo o concurso público.

No caso dos autos, com a implantação do Hospital da Mulher Maria Parteira Correia, mediante a celebração de termo de parceria com a Associação

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Marca Para Promoção de Serviços, o Estado do Rio Grande do Norte deixou totalmente esquecida a previsão constitucional, atribuindo à citada OSCIP a possibilidade de contratar pessoal de forma direta, com vínculo celetista, sem contar que deixou de lado vários aprovados no último concurso realizado pela Secretaria Estadual de Saúde Pública para a área da saúde.

Consoante termo de parceria celebrado pelo Estado do Rio Grande do Norte com a Associação Marca Para Promoção de Serviços, em sua cláusula terceira, II, 1, foi atribuída à OSCIP a obrigação de realizar a seleção e contratação de pessoal para laborar no Hospital da Mulher de Mossoró, proceder à assinatura das respectivas carteiras de trabalho e responder pelo pagamento de salários, encargos de natureza trabalhista e previdenciária e quaisquer outros direitos assegurados pela legislação trabalhista, não gerando para o poder público qualquer responsabilidade (fl.340).

Com base nesse permissivo ilegal contido no termo de parceria, a Associação Marca abriu processo seletivo convocando profissionais de diversas áreas, a exemplo de técnicos de enfermagem, enfermeiros, médicos de diversas especialidades, farmacêuticos, dentre outros, tendo a escolha de pessoal sido realizada, segundo informações prestadas por representante da OSCIP, por meio da análise de currículos, entrevistas e realização de prova escrita (fl.550).

A Associação Marca Para Promoção de Serviços abriu processo seletivo para recrutamento de pessoal no período de 20 de fevereiro de 2012 a 30 de março de 2012 (fl.550), alegando a futura necessidade de contratação de pessoal, em caráter excepcional, por tempo indeterminado, em regime de contratação pela CLT, sendo que o termo de parceria somente veio a ser celebrado em 29 de fevereiro de 2012.

Assim, enquanto diversos profissionais que não se submeteram a concurso público foram contratados para prestar serviços no Hospital da Mulher, podendo permanecer no serviço indefinidamente caso a OSCIP Marca ou outra que venha a ser selecionada continue a gerir a unidade hospitalar, existem candidatos aprovados no último certame promovido pela Secretaria Estadual de Saúde que se enquadram nas especialidade contratadas, aguardando convocação, conforme documentação apresentada pela própria Secretaria Estadual de Saúde (fls.421/462).

Diante disso, questiona-se: será que foi observado o preceito da igualdade e da impessoalidade na seleção de pessoal? Quais os parâmetros utilizados para essa seleção? Qual a segurança que se tem quanto à habilitação técnica destes profissionais? Será que houve capacitação prévia desse pessoal antes do início das atividades do hospital? Diante da velocidade meteórica como as coisas se processaram, a resposta a todas estas perguntas só pode ser negativa, pois apenas com o concurso público é possível o cumprimento destes preceitos constitucionais.

Deveras, não é esse o tipo de eficiência preconizado pela Constituição

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Federal, tendo em vista que a ausência de critérios objetivos de seleção para o recrutamento de indivíduos devidamente qualificados para o exercício de funções públicas termina por comprometer a preservação do patrimônio público, a segurança e qualidade dos serviços prestados pelo Estado.

No caso em cotejo, resta claro que o termo de parceria, em verdade, prevê a terceirização de mão-de-obra para o desempenho de funções não temporárias, porquanto foi efetuada contratação de pessoal para a atividade-fim do hospital, ligada à prestação de serviços de saúde, que possui caráter essencial e permanente.

Ora, no âmbito da Administração Pública Direta e Indireta, a terceirização, como contrato de fornecimento de mão-de-obra, não tem respaldo legal, pois a Constituição Federal, como acima afirmado, exige que a investidura em cargos ou empregos públicos ocorra por concurso público.

Neste sentido, Maria Sylvia Zanella Di Pietro ensina:

“Tais contratos têm sido celebrados sob a fórmula de prestação de serviços técnicos especializados, de tal modo a assegurar uma aparência de legalidade. No entanto, não há, de fato, essa prestação de serviços por parte da empresa contratada, já que esta se limita, na realidade, a fornecer mão-de-obra para o Estado; ou seja, ela contrata pessoas sem concurso público, para que prestem serviços em órgãos da Administração direta e indireta do Estado. Tais pessoas não têm qualquer vínculo com a entidade onde prestam serviços, não assumem cargos, empregos ou funções e não se submetem às normas constitucionais sobre servidores públicos. Na realidade, a terceirização, nesses casos, normalmente se enquadra nas referidas modalidades de terceirização tradicional ou com risco, porque mascara a relação de emprego que seria própria da Administração Pública; não protege o interesse público, mas, ao contrário, favorece o apadrinhamento político; burla a exigência constitucional de concurso público; escapa às normas constitucionais sobre servidores públicos; cobra taxas de administração incompatíveis com os custos operacionais, com os salários pagos e com os encargos sociais; não observa as regras das contratações temporárias; contrata servidores afastados de seus cargos para prestarem serviços sob outro título, ao próprio órgão do qual está afastado e com o qual mantém vínculo de emprego público.Aliás, não estando investidas legalmente em cargos, empregos ou funções, essas pessoas não têm condições de praticar qualquer tipo de ato administrativo que implique decisão, manifestação de vontade, com produção de efeitos jurídicos; só podem executar atividades estritamente materiais; são simples funcionários de fato. Foi uma das muitas fórmulas que se arrumou para burlar todo um capítulo da Constituição Federal (do art. 37 ao 41), para servir aos ideais de nepotismo e apadrinhamento a que não se pode resistir

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tradicionalmente a classe política brasileira.” (Parcerias na administração pública: concessão, permissão, franquia, terceirização e outras formas. São Paulo: Atlas, 1999. p. 166/167)

Mais adiante a ilustre autora arremata:

“Tais contratos são manifestamente ilegais e inconstitucionais. Eles correspondem a uma falsa terceirização e não escondem a intenção de burla à Constituição.” (Parcerias na administração pública: concessão, permissão, franquia, terceirização e outras formas. São Paulo: Atlas, 1999. p. 167)

Acrescente-se que a regra do concurso público não é excepcionada quando a gestão do serviço de saúde se realiza através de OSCIP, pois foge totalmente aos comandos legais a terceirização de pessoal para atividade-fim da Administração Pública, de modo que tal situação caracteriza investidura ilícita por interposta pessoa, conduzindo à nulidade do termo de parceria e, em tese, caracteriza ato de improbidade administrativa.

O Supremo Tribunal Federal, aliás, bem recentemente proferiu importante decisão que corrobora com esse entendimento ao julgar caso semelhante ao debatido. Veja-se.

AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. SERVIDOR PÚBLICO. PROVIMENTO DE CARGOS PÚBLICOS POR FUNCIONÁRIOS TERCEIRIZADOS EM DETRIMENTO DE CANDIDATOS APROVADOS EM CONCURSO PÚBLICO. FUNÇÕES VINCULADAS ÀS ATIVIDADES FINS DO HOSPITAL DAS CLÍNICAS MANTIDO POR AUTARQUIA FEDERAL. ALEGAÇÃO DE VIOLAÇÃO À DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA. INOCORRÊNCIA. DEVER DO ESTADO DE PROVER CARGOS PÚBLICOS NOS TERMOS DETERMINADOS PELA CONSTITUIÇÃO FEDERAL (ART. 37, II, CF). DECISÃO DO PLENÁRIO DESTA CORTE EM SEDE DE REPERCUSSÃO GERAL.CONSTITUIÇÃO FEDERAL37IICF1. O provimento de cargos públicos deve se dar por meio de concurso público, nos termos do art. 37, II, da CF.37IICF2. A determinação de provimento de cargos públicos por servidores aprovados em certame dentro do prazo de validade do concurso é medida que se impõe, não se revelando lícita a sua preterição para mantença de empregados terceirizados nas funções públicas. Precedente em repercussão geral: RE 598.099, Plenário, Relator o Min. GILMAR MENDES.3. In casu, o acórdão recorrido assentou: "CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. CONTRATAÇÃO INDIRETA DE PESSOAL, ATRAVÉS DE CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS, COM OSCIP, INCLUINDO DENTRE OS TERCEIRIZADOS PESSOAL PARA EXERCÍCIO DE FUNÇÕES VINCULADAS AO CONJUNTO DE ATIVIDADES FINS DO HOSPITAL DAS CLÍNICAS. - A União Federal

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deve providenciar e fornecer os recursos necessários à viabilização do respectivo provimento dos cargos da Autarquia, mediante concurso público, sendo tal medida administrativa mera consequência lógica da procedência do pedido. - É juridicamente aceitável a celebração de termo de parceria entre o Poder Público e Organização da Sociedade Civil de Interesse Público - OSCIP, mas torna-se incabível a utilização desse expediente, quando contratados prestadores de serviços terceirizados para o exercício de funções próprias da atividade fim da entidade pública. - Tal distorção mais se agrava quando comprovado que auxiliar de enfermagem aprovada em primeiro lugar no concurso para o cargo, não foi nomeada em detrimento de terceirizada que no mesmo concurso galgara posição posterior ao décimo luga r. - As contratações irregulares foram sobejamente identificadas nos autos e a obrigação do poder público viabilizar a regularização dessa situação é confirmada também pelas diversas manifestações do MPF. - Remessa oficial e apelação improvidas."4. Agravo regimental DESPROVIDO. (848031 PE , Relator: Min. LUIZ FUX, Data de Julgamento: 07/02/2012, Primeira Turma, Data de Publicação: ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-042 DIVULG 28-02-2012 PUBLIC 29-02-2012) (grifos acrescidos)

De fato, os serviços de saúde não constituem atividade temporária do Poder Público, mas permanente e essencial, então, por evidente, não se pode terceirizar a contratação de determinados profissionais, pois o Estado há de tê-los em seu quadro próprio, uma vez que sempre necessitará realizar serviços de saúde.

Na situação em tela, somente poucos dias antes da assinatura do termo de parceria é que começou a ser montada uma estrutura de atendimento, com a contratação de profissionais pela Associação Marca, para atendimento na nova unidade de saúde. A quase totalidade desses profissionais não tinham vínculo anterior com a OSCIP, sendo esta a prova cabal de que o instituto contratado é mero intermediador de mão de obra na área de saúde.

Consoante já asseverado, existem cerca de 170 (cento e setenta) profissionais das áreas de enfermagem, fisioterapia, fonoaudiologia, psicologia e assistência social, sem contar os profissionais médicos, contratados para prestação de serviços no hospital da mulher, o que evidencia a necessidade de pessoal para o funcionamento regular da referida unidade de saúde e consequentemente torna imperiosa a convocação dos aprovados no último concurso realizado pela SESAP (edital nº 001/2010- SEARH/SESAP).

O quadro abaixo demonstra o quantitativo das vagas disponibilizadas pelo Estado para a região oeste, do pessoal contratado por intermédio da Associação Marca, dos candidatos convocados e dos candidatos classificados, evidenciando a necessidade de nomeação dos aprovados para que venham a substituir os contratados ilegalmente. Veja-se.

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CARGO VAGAS DISPONIBILIZADAS NO EDITAL

CLASSIFICADOS CONVOCADOS

TERCEIRIZADOS NO HOSPITAL DA MULHER

TÉCNICO DE ENFERMAGEM

150 631 10 85

ENFERMEIRO 20 507 19 37FARMACÊUTICO

5 27 0 7

TÉCNICO EM RADIOLOGIA

5 36 5 7

MÉDICO GINECO-

OBSTETRA

0 0 0 14

MÉDICOANESTESIOLO

GISTA

16 14 14 7

MÉDICO INTENSIVISTA

6 2 0 9

MÉDICO PEDIATRA

17 10 7 10

MÉDICO NEONATOLOG

ISTA

2 2 0 4

Registre-se, ainda, que, dentre os contratados pela Associação Marca que prestam serviços no Hospital da Mulher, alguns foram aprovados no concurso público realizado pela SESAP, a exemplo dos candidatos Camila Fernandes de Amorim, Samara de Souza Figueiredo, Marina Dantas Diniz e Janine de Paulo Pinto, todos aprovados para o cargo de enfermeiro (fls.421/423 e 564/569).

O mais absurdo, Excelência, é que alguns candidatos aprovados no citado concurso público, em posições bem além do número de vagas prevista no edital (eram previstas 20 vagas para o cargo de Enfermeiro, por exemplo), foram contratados pela Associação Marca, sendo remunerados com recursos públicos, em detrimento de candidatos aprovados e com melhor classificação no certame, inclusive dentro do número de vagas.

É o caso, por exemplo, das já citadas candidatas CAMILA FERNANDES DE AMORIM; SAMARA DE SOUZA FIGUEIREDO, MARINA DANTAS DINIZ E JANINE DE PAULO PINTO, classificadas, respectivamente, em 39ª, 52ª, 55ª e 59ª lugares (vide documento comprobatório nos autos), as quais foram contratadas pela Associação Marca em detrimento de candidatos

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aprovados em classificados em posições superiores, ressaltando-se que todo o recurso empregado pela Associação Marca para a concretização do Hospital da Mulher tem origem pública, conforme será explicitado mais adiante.

Ademais, a pressa da Administração para inaugurar o Hospital da Mulher de Mossoró culminou na contratação de profissionais médicos em situação irregular, sem o devido cadastro no Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Norte.

Frise-se que a situação de ilegalidade é ainda mais gritante tendo em vista que a Associação Marca contratou com pessoas jurídicas a prestação do serviços, caracterizando uma verdadeira quarteirização de mão de obra.

Em outras palavras, o Poder Público firmou termo de parceria com a Associação Marca Para Promoção de Serviços, a qual, para adimpli-lo, contratou várias outras pessoas jurídicas, que, por sua vez, contrataram os profissionais que trabalham no Hospital da Mulher. É uma mera cadeia de contratação de mão de obra.

Essa quarteirização, além de ilegal, gera imensuráveis prejuízos aos cofres públicos, porquanto é indubitável que se gasta muito mais através desse tipo de contratação, do que por meio de pagamento direto aos profissionais concursados, tendo em vista os lucros auferidos pelas empresas interpostas.

Veja-se, por exemplo, a partir dos depoimentos trazidos aos autos, que a Associação Marca mantém contrato mensal de R$ 60.000,00 (sessenta mil reais) com a Empresa Olivas Planejamento, Assessoria e Serviços S/C LTDA (fls.647/654) para remunerar quatro consultores, sendo que dois deles recebem algo em torno de R$ 15.000,00 (quinze mil reais), cada, e outros dois cerca de R$ 8.000,00 (oito mil reais), cada, totalizando R$ 46.000,00 (quarenta e seis mil reais). A diferença fica como lucro para a empresa Olivas, a qual, diga-se de passagem, é constituída pelos sócios que fundaram a Associação Marca e hoje não mais integram seu corpo societário, embora permaneçam umbilicalmente relacionados (mídia de fl.665).

Merece ser destacado, ainda, que são os profissionais dessa empresa e não da OSCIP quem, de fato, realizam a gestão do Hospital da Mulher, o que revela que a entidade parceira do Poder Público, na verdade não possui expertise em saúde, como afirmado pelo gestor estadual, pois se vale dos serviços prestados por outra empresa para dar cumprimento ao objeto pactuado.

Assim, a atitude levada a efeito pela Administração Pública denota a tentativa ilegal do demandado de afastar o Estado da prestação do serviço público de saúde, transferindo-o para a iniciativa privada, sob a denominação de organização da sociedade civil de interesse público, mediante o repasse de vultosa quantia. Na prática não se verificou a existência de regime de cooperação em atividade complementar, mas uma mera contratação de pessoal para prestar serviço público à margem das regras constitucionais e legais regentes da matéria.

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Convém destacar, ainda, que ao firmar termo de parceria com uma OSCIP, com o objetivo de se colocar em prática o regime de gestão colaborativa, em prol da comunidade, o Poder Público usa como um dos fundamentos a crônica ineficiência do serviço público quando prestado diretamente pelo Estado.

Ocorre que, paradoxalmente, todos os consultores contratados pela Marca são servidores públicos que estão afastados de seus cargos e prestando serviços no setor privado por conta dos melhores salários (mídia de fl.665).

Por que razão, então, o servidor presta serviço de excelência quando labora no setor privado e não o faz igualmente para o setor público? A resposta passa inarredavelmente pela forma como se dá a gestão da coisa pública, que na grande maioria das vezes ocorre com descaso.

Ademais, se considerarmos verossímil a afirmação de que o serviço público é ineficiente, dir-se-ia, então, via de consequência, que o serviço prestado pela Oscip também seria ineficiente, eis que, em última análise, é gerido por servidores públicos. E sendo assim, não se justificaria tal termo de parceria, porquanto não seria capaz de trazer nenhum benefício, sem contar que potencializa os custos para o Poder Público.

Saliente-se, outrossim, que a contratação ilegal de mão de obra para o serviço público poderá trazer graves prejuízos ao erário, causando responsabilização subsidiária do Poder Público pelas obrigações trabalhistas devidas pela entidade parceira, independentemente da existência de cláusula expressa em sentido contrário no termo de parceria, caso o ente público não proceda com a fiscalização adequada na execução do contrato, caracterizando o que a doutrina costuma chamar de culpa in vigilando, que representa uma omissão estatal na inspeção contratual, ou seja, ocorre quando o ente público é negligente em não supervisionar o cumprimento das obrigações trabalhistas por parte da prestadora dos serviços ou o faz de maneira incipiente e imprecisa.

Essa é a posição que vem sendo seguida pelos Tribunais após a decisão do Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADC 16. Senão vejamos.

AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECURSO DE REVISTA. DIREITO PROCESSUAL CIVIL E DO TRABALHO . RECURSO . TRANSCENDÊNCIA. ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. TERCEIRIZAÇÃO. DEVER DE FISCALIZAÇÃO. OMISSÃO. -CULPA IN VIGILANDO- RESPONSABILIDADE SUBSIDIÁRIA. DECISÃO DO STF NA ADC 16. ADC 16. AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECURSO DE REVISTA. DIREITO PROCESSUAL CIVIL E DO TRABALHO . RECURSO . TRANSCENDÊNCIA. ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. TERCEIRIZAÇÃO. DEVER DE FISCALIZAÇÃO. OMISSÃO. -CULPA IN VIGILANDO-. RESPONSABILIDADE SUBSIDIÁRIA. DECISÃO DO STF NA ADC 16. No julgamento da ADC 16, o Supremo Tribunal Federal, ao declarar a constitucionalidade do art. 71, § 1º, da Lei nº 8.666/93, ressalvou a possibilidade de a Justiça do Trabalho constatar, no caso concreto, a

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culpa in vigilando da Administração Pública e, diante disso, atribuir responsabilidade ao ente público pelas obrigações, inclusive trabalhistas, inobservadas pelo contratado. A própria Lei de Licitações impõe à Administração Pública o dever de fiscalizar a execução dos contratos administrativos, conforme se depreende dos artigos 58, III, e 67, § 1º, da Lei nº 8.666/93. Na hipótese dos autos, o TRT registrou a culpa in vigilando da Administração Pública, motivo pelo qual se atribui a responsabilidade subsidiária ao ente público, com fundamento nos artigos 186 e 927, caput, do Código Civil, pelo pagamento dos encargos trabalhistas devidos. Agravo de Instrumento não provido. ADC 16 ADC 1671§ 1º8.666Lei de Licitações58III67§ 1º8.666186927Código Civil (TST, 323004120095090093 32300-41.2009.5.09.0093, Relator: Sebastião Geraldo de Oliveira, Data de Julgamento: 11/10/2011, 8ª Turma, Data de Publicação: DEJT 14/10/2011)

Assim, malgrado os mandamentos constitucionais acima citados, o que ocorre no presente caso é um flagrante desvirtuamento dos objetivos para os quais foram criadas as OSCIPs, vez que os serviços públicos sociais que deveriam ser prestados subsidiariamente por tais organizações estão sendo artefato para a intermediação irregular de mão-de-obra, mediante contumaz repasse de atividade-fim do Estado para entes privados, como forma de fraudar a obrigatoriedade do certame público, com o risco, ainda, de redundar na responsabilidade subsidiária do Poder Público.

Desta feita, deve ser reconhecida a ilegalidade do ajuste firmado pelo Estado do Rio Grande do Norte e a Associação Marca Para Promoção de Serviços, haja vista que a contratação de mão-de-obra através de OSCIP se deu ao arrepio do mandamento constitucional e do direito dos cidadãos aprovados em curso público realizado pelo demandado, com a consequente determinação de que o Estado promova as nomeações dos candidatos aprovados no certame ainda em validade.

II.V - DA OBRIGATORIEDADE DE PRESTAÇÃO DIRETA PELO ESTADO DE SERVIÇOS DE SAÚDE. DA PARTICIPAÇÃO PRIVADA COMPLEMENTAR NO SUS. NECESSIDADE DE ESGOTAMENTO DA CAPACIDADE DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS E AÇÕES DE SAÚDE PELO PODER PÚBLICO. NÃO COMPROVAÇÃO

Primeiramente, destacam-se o artigo 196 da Constituição Federal e artigo 4º da Lei Federal nº 8080/90:

Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

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Art. 4º O conjunto de ações e serviços de saúde, prestados por órgãos e instituições públicas federais, estaduais e municipais, da Administração direta e indireta e das fundações mantidas pelo Poder Público, constitui o Sistema Único de Saúde (SUS).§ 1º Estão incluídas no disposto neste artigo as instituições públicas federais, estaduais e municipais de controle de qualidade, pesquisa e produção de insumos, medicamentos, inclusive de sangue e hemoderivados, e de equipamentos para saúde.

Pela simples leitura dos artigos transcritos, resta cristalino que o legislador constituinte e ordinário determinaram a implantação de uma rede pública de serviços de saúde, integrada por serviços e ações a cargo dos três entes da federação, seja no âmbito da administração direta, indireta ou fundacional.

Portanto, no âmbito do Sistema Único de Saúde, os serviços e ações públicas constituem a parte principal dos equipamentos sanitários, ou seja: No SUS, o público é o protagonista. O Estado (gênero) tem o dever constitucional e legal de prestar diretamente serviços gratuitamente à população.

E assim o é considerando a natureza básica e essencial do cuidado com a saúde para o ser humano, uma vez que umbilicalmente atrelado à preservação da própria vida das pessoas.

Sem dúvida é essa natureza vital que assegurou ao direito à saúde do cidadão brasileiro cunho de fundamentalidade, protegido com especial normatividade pela Constituição Federal de 1988, em um resgate histórico da dívida sócio-sanitário do Estado brasileiro para com seu povo, na medida em que, até o advento da Carta cidadã, o Brasil nunca havia assegurado a saúde com direito universal de todos e dever do Estado.

Por outro lado, a despeito da previsão geral de que o serviço de saúde seja prestado diretamente pelo ente público, a legislação permite a participação privada no SUS em caráter complementar, conforme previsto na própria Constituição Federal e Lei Federal nº 8080/90, citados, respectivamente:

Art. 199. A assistência à saúde é livre à iniciativa privada.§ 1º - As instituições privadas poderão participar de forma complementar do sistema único de saúde, segundo diretrizes deste, mediante contrato de direito público ou convênio, tendo preferência as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos.

Art. 24. Quando as suas disponibilidades forem insuficientes para garantir a cobertura assistencial à população de uma determinada área, o Sistema Único de Saúde (SUS) poderá recorrer aos serviços ofertados pela iniciativa privada.Parágrafo único. A participação complementar dos serviços

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privados será formalizada mediante contrato ou convênio, observadas, a respeito, as normas de direito público.

Assim, pela dicção dos artigos acima, exsurge que serviços privados podem integrar o SUS, desde que evidenciada “disponibilidade insuficiente da rede pública para garantir cobertura assistencial à uma dada população”; formalizando a integração do serviço privado mediante contrato ou convênio, complementando a rede pública, que sempre será a principal.

No caso em tela, não logrou o Estado do Rio Grande do Norte, responsável constitucionalmente pela execução das ações e serviços públicos de saúde, provar que se encontrava em situação de indisponibilidade de oferta própria desses serviços, de forma a recorrer, sob a forma complementar, a gestão dos serviços de saúde por prestador privado.

Ademais, percebe-se que a participação das entidades privadas sem fins lucrativos no SUS tem a finalidade de justamente de suprir a insuficiência da capacidade de prestação do serviço de saúde pelo Poder Público, para tanto utilizando-se de capacidade já instalada destes entes privados, ou seja, seus médicos, prédios, equipamentos, etc.

Todavia, o que tem acontecido no caso epigrafado não é o aumento da rede de serviços de saúde mediante a utilização da capacidade instalada da OSCIP. Ao revés, a viabilização da prestação do serviço se deu integralmente mediante repasse de verbas públicas, seja para a locação do prédio onde funciona o hospital, seja para contratação de profissionais, seja para aquisição de materiais e equipamentos, o que demonstra claramente que o demandado pode prestar diretamente os serviços de saúde que colocou sob a gestão da Associação Marca.

Ou seja, a participação da OSCIP não veio a agregar em nada a prestação do serviço de saúde prestado pelo demandado, tendo o Estado do Rio Grande do Norte, ao celebrar termo de parceria ajustando o repasse de mais de R$ 15.000.000,00 (quinze milhões de reais) em apenas 06 (seis) meses, deixado claro que dispõe de capacidade suficiente para garantir a cobertura assistencial à saúde da população.

Na espécie, a OSCIP funcionou apenas como interposta pessoa. Todo o recurso empregado para a concretização do serviço público prestado no Hospital da Mulher teve origem nos cofres do Estado. Os equipamentos foram adquiridos com dinheiro público. O pessoal é remunerado com dinheiro público. O prédio é alugado com dinheiro público.

O Estado não contratou uma estrutura já existente. Não havia capacidade instalada. Montou o ente público, com seus próprios recursos, uma estrutura e atribuiu a terceiro sua administração. O particular fica apenas com as vantagens deixando todos os riscos para o Estado.

Corroborando as afirmações do Ministério Público, destaca-se

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posicionamento das administrativistas LENIR SANTOS e MARIA SILVIA ZANELLA DI PIETRO na seqüência:

“ Não se pode perder de vista, também, que o poder público só deve contratar serviços de terceiros (pessoa física ou jurídica) quando os seus serviços forem insuficientes para garantir a saúde da população . O fato de ser possível a contratação de serviços de assistência à saúde prestados por pessoas físicas não significa, por outro lado, que o poder público deixe de ter os seus próprios serviços de saúde para só adquiri-los de terceiros. A regra deve ser a manutenção e o desenvolvimento pelo poder público de serviços de assistência à saúde a serem executados de forma contínua, até mesmo para estabelecer-se um equilíbrio entre os serviços de execução direta e os de execução indireta.,“Nesse sentido, municípios e estados devem manter serviços públicos de saúde e, sempre que necessitarem de um profissional de saúde para trabalhar no serviço público (médico, dentista, fisioterapeuta, operador de raios X, psicólogo e outros), terão que admiti-los mediante concurso ou, se autorizado por lei, como servidor temporário, em situações excepcionais. Situações especiais poderão ensejar a contratação de serviços técnicos especializados de profissionais pessoas físicas, mas nunca para prestar serviços em unidades próprias do poder público.”6

“ A Lei nº8.080, de 19-9-90, que disciplina o Sistema Único de Saúde, prevê, nos arts. 24 a 26, a participação complementar, só admitindo-a quando as disponibilidades do SUS “forem insuficientes para garantir a cobertura assistencial à população de uma determinada área”, hipótese em que a participação complementar “será formalizada mediante contrato ou convênio, observadas, a respeito, as normas de direito público” (entenda-se, especialmente, a Lei nº8.666, pertinente a licitações e contratos). Isto não significa que o Poder Público vai abrir mão da prestação do serviço que lhe incumbe para transferi-la a terceiros; ou que estes venham a administrar uma entidade pública prestadora do serviço de saúde; significa que a instituição privada, em suas próprias instalações e com seus próprios recursos humanos e materiais, vai complementar as ações e serviços de saúde, mediante contrato ou convênio.Isto tem um justificativa; conforme dito acima, a prestação de serviço público tem que estar sempre subordinada a um regime jurídico de direito público, ainda que apenas parcialmente. Não é por outra razão que o art. 175 da Constituição estabelece que “incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos”. É que a concessão e a permissão são contratos tipicamente administrativos que implicam a transferência, para o particular, de

6 CARVALHO, Guido Ivan; SANTOS, Lenir. Sistema Único de Saúde: Comentários à Lei Orgânica da Saúde. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2001. p. 202

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poderes e prerrogativas próprias da Administração Pública; justamente por isso, são as únicas hipóteses em que o direito brasileiro admite a transferência da execução do serviço público ao particular. Não existe outro tipo de contrato em que haja a transferência de prerrogativas públicas próprias do Poder Público, consideradas essenciais à prestação de qualquer tipo de serviço público; a não ser em certas modalidades, como a franquia ou a concessão para exploração comercial (affermage, do direito francês), que aparecem como modalidades de concessão. Apenas se admite a terceirização de determinadas atividades materiais ligadas ao serviço de saúde; nada mais encontra fundamento no direito positivo brasileiro.”7

Reforçando a interpretação legal do SUS aqui defendida, não é demais citar trecho bastante elucidador de parecer da lavra do Subprocurador Geral da República e Procurador Federal dos Direitos do Cidadão Wagner Gonçalves, sobre Terceirização e Parcerias na Saúde Pública, elaborado em face da entrada no mundo jurídico da Lei federal nº 9.637/97:

Ora, no âmbito do SUS, quis a Constituição e a Lei nº 8080/90, que a iniciativa privada (com ou sem fins lucrativos) ocupasse o papel de simples coadjuvante do Poder Público. Por isso, só excepcionalmente, quando patenteada a insuficiência das disponibilidades estatais, admite-se a participação de entidades privadas na prestação de serviços de saúde no âmbito do SUS, e , mesmo assim, somente para, com sua capacidade instalada , complementar a atividade estatal, nunca para substitui-la completamente, como vem ocorrendo por intermédio das chamadas terceirizações. ” “Na realidade, as terceirizações citadas neste trabalho, que estão sendo implementadas em vários Estados, sob a denominação de convênio , não passam, na realidade, de contratos de prestação de serviços (com concessão de uso, transferência de pessoal, etc), sem que sejam respeitadas as normas de direito público, seja na formação dos mesmos (a contratação é feita diretamente, sem licitação, com ofensa ao art. 175 da CF), seja na sua execução (não exigência de licitação para compra de material, não exigência de concurso público para contratação de pessoal, etc.)”

Por fim, ainda tem-se que o Estado do Rio Grande do Norte, com sua conduta privatizante, viola a Portaria nº 1.034/2010 do Ministério da Saúde – ente federativo responsável pela edição de normas gerais para disciplinamento da execução da política pública sanitária em todo território nacional -, editada, para dispor sobre “a participação complementar das instituições privadas com ou sem fins lucrativos de assistência à saúde no âmbito do Sistema Único de Saúde”, que, em consonância com a legislação que lhe é hierarquicamente superior, somente admite a integração de serviços privados no SUS, de forma complementar e com a

7 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na administração pública: concessão, permissão, franquia, terceirização e outras formas. São Paulo: Atlas, 1999. p. 174/175

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capacidade instalada destes, após comprovado pelo gestor local que a capacidade instalada pública não oferta suficientemente serviços de saúde para sua própria população.

Transcrevem-se os principais pontos da Portaria destacada:

“ Considerando que, segundo o art. 30, inciso VII, da Constituição, o art. 18, inciso I e o art. 17, inciso III, da Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, compete ao Município e, supletivamente, ao Estado, gerir e executar serviços públicos de atendimento à saúde da população, podendo ambos recorrer, de maneira complementar, aos serviços ofertados pela iniciativa privada, quando os serviços de saúde da rede pública forem insuficientes para garantir a cobertura assistencial necessária; Considerando a aplicabilidade aos Estados, aos Municípios e ao Distrito Federal das normas gerais da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, e da legislação complementar, especialmente o que estabelecem os arts. 17, inciso X, 24 a 26 e 43 da Lei nº 8.080, de 1990; (...)Art. 2º Quando as disponibilidades forem insuficientes para garantir a cobertura assistencial à população de uma determinada área, o gestor estadual ou municipal poderá complementar a oferta com serviços privados de assistência à saúde, desde que: I - comprovada a necessidade de complementação dos serviços públicos de saúde; e II - haja a impossibilidade de ampliação dos serviços públicos de saúde. § 3º A necessidade de complementação de serviços deverá ser aprovada pelo Conselho de Saúde e constar no Plano de Saúde respectivo.

Assim, nos termos do artigo 2º da Portaria nº 1034/2010, a participação de instituições privadas no âmbito do SUS só será permitida quando as disponibilidades forem insuficientes para garantir a cobertura assistencial à população de uma determinada área e desde que haja a comprovação da necessidade de complementação dos serviços públicos de saúde e que haja a impossibilidade de ampliação dos serviços públicos de saúde.

Nesse passo, tendo em vista que o Estado do Rio Grande do Norte não logrou comprovar a insuficiência de disponibilidade ou mesmo a impossibilidade de ampliação da rede pública de saúde, mas, ao contrário, demonstrou que possui condições financeiras para tanto, bem como profissionais de saúde aprovados em concurso público que estão aguardando convocação, não há como se admitir que a gestão do Hospital da Mulher seja realizada por entidade privada, devendo o Poder Público reassumir a direção do serviço de saúde, cuidando de observar todas as disposições legais pertinentes.

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II.VI- DA AUSÊNCIA DE PRÉVIA SUBMISSÃO DO TERMO DE PARCERIA AO CONSELHO ESTADUAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS. DA VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA DEMOCRACIA PARTICIPATIVA NA POLÍTICA SANITÁRIA E ÀS DISPOSIÇÕES DA LEI 8.080/90 E DA LEI 9.790/90

Conforme termo de audiência realizada na sede desta Promotoria de Justiça no dia 02 de abril de 2012, os representantes do Conselho Estadual de Saúde informaram que o termo de parceria firmado entre o Estado do Rio Grande do Norte e a Associação Marca Para Promoção de Serviços não havia sido submetido à análise do órgão de controle social (fls.398/399), situação que permanece inalterada até o momento, conforme documento apresentado pelo referido órgão de controle social (fl.964).

Foi asseverado, outrossim, que, a necessidade de prévia consulta ao Conselho de Saúde foi completamente ignorada pelo Poder Público com base em parecer emitido pelo Procurador Geral do Estado nos autos do processo administrativo que trata da contratação de OSCIP para gestão do Hospital da Mulher.

De fato, o Procurador Geral do Estado ofertou parecer no qual se pronunciou nos seguintes termos: “Antes de tudo, entendemos que a consulta ao Conselho de Políticas Públicas da área, que prescreve o §1º do art.10 da Lei nº9.790/99, é prescindível em face da urgência que motiva a celebração direta, devendo ser levado no curso do processo que conduzirá o concurso de projetos para a seleção definitiva” (fl.239).

Em termos diametralmente opostos, a assessoria jurídica da Secretaria Estadual de Saúde Pública ofertou parecer opinando pela necessidade de prévia submissão do termo de parceria ao Conselho de Políticas Públicas local, ainda que venha a se tratar de situação reconhecida como emergencial (fl.218).

Nesse passo, percebe-se claramente que o Poder Público, ao acatar o parecer da lavra do Procurador Geral do Estado, contrariou frontalmente os dispositivos constitucionais e legais que preveem a democracia participativa na gestão do Sistema Único de Saúde. Vejamos.

A Constituição Federal, em seu art. 198, assim dispõe:

Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes:(...)III - participação da comunidade.

A seu turno, a lei Federal nº 8142/90, em seu artigo 1º, §2º, também preconiza a necessidade de participação social no controle da gestão do SUS.

Artigo 1° - O Sistema Único de Saúde (SUS), de que trata a Lei n.

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8.080, de 19 de setembro de 1990, contará, em cada esfera de governo, sem prejuízo das funções do Poder Legislativo, com as seguintes instâncias colegiadas:I - a Conferência de Saúde; eII - o Conselho de Saúde.(...)§ 2° - O Conselho de Saúde, em caráter permanente e deliberativo,órgão colegiado composto por representantes do governo,prestadores de serviço, profissionais de saúde e usuários, atua naformulação de estratégias e no controle da execução da política desaúde na instância correspondente, inclusive nos aspectos econômicos e financeiros, cujas decisões serão homologadas pelochefe do poder legalmente constituído em cada esfera do governo.

Destaca-se, ainda, o §3º do artigo 77 do ADCT – com redação introduzida pela Emenda Constitucional nº 29/00, que erigiu os Conselhos de Saúde a status constitucional:

“Art. 77. omissis;§3º. Os recursos dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios destinados às ações e serviços públicos de saúde e os transferidos pela União para a mesma finalidade serão aplicados por meio de Fundo de Saúde que será acompanhado e fiscalizado por Conselho de Saúde, sem prejuízo...”.

Não bastassem tais regramentos legais, no caso específico da celebração de termos de parceria com OSCIPs, a lei nº 9.790/90 estabelece, em seu art.10, §1º, a obrigatoriedade de realização de consulta prévia ao Conselho de Políticas Públicas da área, no respectivo nível de governo.

Art. 10. O Termo de Parceria firmado de comum acordo entre o Poder Público e as Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público discriminará direitos, responsabilidades e obrigações das partes signatárias.§ 1 o A celebração do Termo de Parceria será precedida de consulta aos Conselhos de Políticas Públicas das áreas correspondentes de atuação existentes, nos respectivos níveis de governo.

Em momento algum, ao contrário do parecer ofertado pelo PGE, a lei excepciona a necessidade de participação do Conselho de Política Pública da correspondente área de atuação, nem mesmo em casos emergenciais, e assim não poderia dispor porque a participação popular na organização do SUS é a expressão mais viva da participação da sociedade nas decisões tomadas pelo Estado no interesse geral.

Ora, os Conselhos de Saúde influenciam ou necessariamente devem influenciar as políticas públicas de saúde, seja no âmbito da União como dos Estados. Suas decisões não são meramente opinativas, já que vinculam a

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Administração. Evidente, portanto, que uma mudança tão séria, como a de transferir para a iniciativa privada a responsabilidade pela gestão de serviços de saúde pública à população, não poderia olvidar ou desconhecer, no mínimo, a posição do Conselho Estadual de Saúde.

Nesse sentido, vejamos entendimento doutrinário do que é determinante fiscalizar na política de saúde através do controle social:

“É importante controlar os rumos da política de saúde para abrir a possibilidade de que seja realmente efetivado o que se conquistou legalmente com o SUS: saúde, direito de todos e dever do Estado. E para tanto, é determinante controlar os recursos destinados à saúde, verificando-se quanto entra e de onde vêm (as contrapartidas da esfera federal, estadual e municipal), e participar da decisão de como e onde devem ser alocados (elaboração de planos estadual e municipal de saúde e de planilhas orçamentárias”.8

Assim, por decorrência lógica – e expressa previsão legal -, os contratos e convênios firmados com pessoas jurídicas de direito privado com o SUS, para oferta de serviços de saúde, devem ser objeto de apreciação pelos Conselhos de Saúde, especialmente porque são instrumentos excepcionais na execução da política de saúde.

No entanto, mais uma vez, tangenciou o Poder Público Estadual no cumprimento de dever legal, fazendo tábula rasa do ordenamento jurídico brasileiro de Direito Público, tratando a gestão das verbas públicas como se privadas fossem, livres de quaisquer formas de controle.

Dessa forma, o Ministério Público clama ao Poder Judiciário que, como guardião maior da Carta Política da nação, reconduza a administração sanitária do Estado do Rio Grande do Norte aos trilhos da legalidade, quando da execução de sua política sanitária.

II.VII – DA SUBMISSÃO DAS ORGANIZAÇÕES DA SOCIEDADE CIVIL DE INTERESSE PÚBLICO ÀS LEIS Nº 8.666/93 E 10.520/2002 NA CONTRATAÇÃO DE OBRAS, COMPRAS E SERVIÇOS COM RECURSOS ORIUNDOS DE TERMO DE PARCERIA - GESTÃO DE VERBAS PÚBLICAS- CONDIÇÃO NÃO OBSERVADA NO PRESENTE CASO

Nos termos do artigo 37, XXI, da Constituição Federal ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica

8 CORREIRA, Maria Valéria Costa. Desafios para o Controle Social: Subsídios para a Capacitação de Conselheiros de Saúde, Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz, pág. 65.

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indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.

As regras gerais de licitação, por sua vez, foram previstas pela lei nº 8.666/93, bem como pela lei nº 10.520/2002, a qual estabelece normas sobre pregão.

A utilização de procedimento licitatório significa, pois, abusca pela proposta mais vantajosa para a Administração Pública, observando-se, dentre outros, os princípios da impessoalidade, publicidade e moralidade administrativa.

Com relação especificamente às Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público, insta afirmar que também estão abarcadas pelo espectro de incidência das normas que condicionam à aquisição de bens, obras, serviços e alienações à prévio processo de licitação quando celebram termo de parceria com o Poder Público, na medida em que passam a gerir verbas públicas.

No âmbito federal, o decreto nº 5.504/05 determina que as Organizações Sociais e as OSCIPs que receberem repasse de recursos públicos da União deverão conter cláusula que determinem que as obras, compras, serviços e alienações a serem realizadas por estes entes, sejam contratados mediante pregão, preferencialmente na modalidade eletrônica, devendo ser justificado pelo dirigente ou autoridade competente caso seja inviável a utilização de tal forma de pregão.

Não se poderia aceitar outro entendimento que afastasse a necessidade de realização de licitação por parte dessas entidades privadas quando firmam termo de parceria com o Poder Público, uma vez que passarão a administrar recursos públicos em sentido estrito.

Nesse sentido já se pronunciou o Tribunal de Contas da União no Acórdão 1070/2003. Veja-se.

“... Note-se que a entidade privada não está obrigada a firmar convênio com a administração pública, mas ao assinar deve ter a certeza que está administrando recursos públicos em sentido estrito e, isto é verbas incluídas em lei orçamentária, dessa forma, deve observar rigorosamente, como todo administrador público, os princípios que informam a gestão da coisa pública, em especial o da legalidade, sob o ponto de vista formal e material. Não pode, por isso mesmo, dar destinação diversa aos recursos, daquela fixada na lei orçamentária, sob pena de ser condenado à devolução das importâncias recebidas por desvio de finalidade; não pode, ademais, deixar de prestar contas dos recursos recebidos, por expressa determinação constitucional; como também não pode descumprir a Lei nº 8.666/93.”

No mesmo sentido os seguintes acórdãos também do TCU:

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Ementa: Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP). Termo de Parceria. Terceiro Setor. Atuação do Tribunal. Limite de remuneração da administração pública. Obrigatoriedade de aplicação das Leis nºs 8.666/93 e 10.520/2002 às OSCIPs para contratações com recursos públicos transferidos em razão de Termo de Parceria firmado com a Administração Pública. (GRUPO II – CLASSE V – PLENÁRIO, TC 008.011/2003-5, Data da Sessão:09/11/2005)

EMENTA: Existem direitos potestativos inseridos na Lei n.º 8.666/93 que são competências privativas de entes que integram a administração pública, tais como: aplicação de multas, rescisão unilateral de contratos e declaração de inidoneidade de licitantes. Essas prerrogativas, que privilegiam o princípio da supremacia do interesse público, não se conferem a entidades privadas. Com base nesse entendimento, o Plenário determinou à Fundação Instituto de Hospitalidade (OSCIP) que, quando da gestão de recursos públicos federais recebidos mediante transferências voluntárias, observe os princípios da impessoalidade, moralidade e economicidade, além da cotação prévia de preços no mercado antes da celebração do contrato, de acordo com o art. 11 do Decreto nº 6.170/2007. (Acórdão n.º 114/2010-Plenário, TC-020.848/2007-2, rel. Min. Benjamin Zymler, 03.02.2010)

Nesse passo, considerando que o compromisso assumido por meio do Termo de Parceria implica alocar recursos públicos a uma entidade privada para a consecução de uma atividade de interesse público, desatenderia aos princípios constitucionais da impessoalidade e da publicidade permitir que aentidade privada, que realizará gastos os mais diversos com recursos públicos,deixe de observar o princípio da licitação, nos termos do que estabelece o inciso XXI do art. 37 da Constituição Federal e permitiria a malversação do dinheiro público.

No vertente caso, após notificada para prestar esclarecimentos sobre a forma de aquisição de materiais e equipamentos para o Hospital da Mulher, a Associação Marca Para Promoção de Serviços informou que possui regulamento que define os critérios e condições a serem observados pela entidade nas compras e aquisições de quaisquer bens, na contratação de quaisquer trabalhadores e serviços, inclusive de engenharia, alienações e locações, destinadas ao regular atendimento das necessidades institucionais e operacionais relativas à execução do termo de parceria firmado com o Estado do Grande do Norte (fls.603/612).

Ocorre que, a despeito de o regulamento estabelecer diversas modalidades de contratação, como a pesquisa de preços, a carta-convite, a concorrência e a concorrência especial, todas prevendo a cotação de, no mínimo, 3 (três) propostas, o que se percebe da documentação acostada é que não houve

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realização de procedimento apto a permitir a seleção de proposta mais vantajosa para a entidade, que contratou serviços e adquiriu bens que irão integrar o patrimônio público, sem observar o devido cuidado com a gestão das verbas públicas. Houve, quando muito, a apresentação de orçamento por um único fornecedor, o que, nem de longe caracteriza a existência de múltiplas propostas. A grande maioria das contratações foi realizada de forma direta, sem qualquer pesquisa de preços (volumes 7 ao 13 do Inquérito Civil).

Consoante informações prestadas pela Associação Marca, foi asseverado que em virtude da situação de calamidade pública da saúde na região de Mossoró, o processo de compras teria sido realizado de forma mais rápida, tendo em vista que muitos dos equipamentos não foram encontrados para pronta entrega (fl.978).

Informou a entidade parceira, ainda, que algumas cotações de preços foram realizadas ainda em dezembro de 2011, tendo em vista que tão logo receberam a proposta de apresentação do modelo de gestão para o referido hospital, foi iniciado contato com os fornecedores para levantamento de custos dos equipamentos (fl.978).

No que se refere especificamente à aquisição de materiais de construção, a direção da Oscip mencionou que todos foram comprados no município de Mossoró, tendo como princípio as lojas que previamente realizaram cadastro junto à instituição, realizando pronta entrega com preço de mercado. Acrescentou, ainda, que esta foi uma forma de valorizar o comércio local.

Veja, Excelência, que em momento algum a lei de licitações dispõe que a seleção de proposta para o Poder Público deve se pautar pela valorização do comércio local. Ao contrário, independente do local onde sejam adquiridos produtos ou serviços, deve-se ter em mente a seleção da proposta mais vantajosa em termos econômicos para o Poder Públicos.

Registre-se, ainda, que a entidade parceira somente utilizou esse critério de “valorização do comércio local” quando foi de sua conveniência, pois é certo que todo o corpo médico do Hospital da Mulher é oriundo da cidade de Fortaleza/CE e que a maior parte dos equipamentos não foi adquirida sequer no Estado do Rio Grande do Norte.

Ademais, conforme asseverado, o regulamento da Associação Marca dispõe sobre a necessidade de observar as normas através dele instituídas também na contratação de quaisquer trabalhadores e serviços, inclusive de engenharia, alienações e locações.

Nada disso foi observado com relação ao Hospital da Mulher, pois não houve cotação de preços para a contratação do serviço de reforma do Hospital, o qual, segundo depoimentos prestados nesta Promotoria de Justiça (mídia de fl.665), foi escolhido porque a Marca já tinha conhecimento dos serviços prestados pela empresa na cidade de Natal/RN.

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Igualmente, não houve prévia cotação de preços para escolha da empresa de consultoria na área da saúde, sendo a Olivas Planejamento, Assessoria e Serviços S/C LTDA escolhida provavelmente pela ligação que seus sócios possuem com a Associação Marca, da qual foram um dos fundadores, uma verdadeira espécie de “ação entre amigos”.

Cumpre salientar que a empresa Olivas Planejamento, Assessoria e Serviços S/C LTDA contratada pela Associação Marca para prestar consultoria tem em seu corpo societário o casal Rosimar Gomes Bravo Oliveira e Antônio Carlos de Oliveira Júnior, os quais, conforme declarado em seus depoimentos, são os sócios fundadores da Associação Marca.

Assim, essa ausência de submissão das compras e contratações de pessoal e serviços ao devido procedimento licitatório gera graves prejuízos ao erário, uma vez que não há diversidade de propostas e, consequentemente, não há garantia de que os preços praticados pelas empresas contratadas pela Associação Marca são os que atendem melhor aos interesses da Administração Pública.

II.VII - DA ANTECIPAÇÃO DOS EFEITOS DA TUTELA JURISDICIONAL

O Poder Judiciário, como ente estatal especializado, formado por agentes necessariamente conhecedores da ciência jurídica, tem por finalidade principal a pacificação das relações sociais com justiça, fazendo atuar, no caso concreto, a vontade abstratamente contida na ordem jurídica.

Todos os procedimentos, sempre prescritos em lei, conjugam uma sucessão de atos, cuja realização pode, segundo a circunstância, ser mais ou menos célere, de consubstanciação complexa ou simples.

O tempo sempre é fator importante e se revela como elemento decisivo em ações nas quais se busca a defesa do patrimônio público, bem como a defesa do direito à saúde, uma vez que a demora na prestação da tutela jurisdicional pode acarretar consequências irremediáveis, tornando ineficaz o provimento final.

Atento a essa situação, o Estatuto de Ritos estabeleceu, em seu art.273, a possibilidade de o juiz antecipar os efeitos da tutela jurisdicional quando, se convencendo da verossimilhança das alegações, estiver presente o receio de dano irreparável ou de difícil reparação comprovado por prova inequívoca.

Diante de todas as afirmações acima expendidas e provas colacionadas aos autos, nota-se que estão claramente presentes os elementos que autorizam a concessão de medida liminar. Veja-se.

Os fatos são incontroversos. As razões acima expostas demonstram fartamente a irregularidade do termo de parceria celebrado entre o Estado do Rio Grande do Norte e a Associação Marca Para Promoção de Serviços, que foi firmado

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inteiramente ao arrepio das disposições legais pertinentes, notadamente por causa da inexistência de regulamentação local acerca da qualificação de entidades privadas sem fins lucrativos como Oscips, pela não submissão do termo de parceria ao Conselho Estadual de Saúde, pela ausência de realização de procedimento licitatório prévio para escolha da entidade parceira e pela incompatibilidade da quarterização de pessoal para atividade-fim do Estado, em nítida burla a regra constitucional do concurso público.

Com relação à probabilidade do dano irreparável, vislumbra o Ministério Público enorme risco de se repetirem os danos ao patrimônio público, ocasionados pela quarteirização dos serviços públicos e das contratações firmadas pela Oscip para aquisição de bens e serviços para o Hospital da Mulher sem a devida licitação, notadamente em virtude da volumosa quantia de recursos públicos repassados à Oscip.

Por sua vez, o receio de dano irreparável também resta patente diante da possibilidade de interrupção do serviço público hoje prestado no Hospital da Mulher, uma vez que o termo de parceria, firmado em caráter emergencial pelo prazo improrrogável de 180 (cento e oitenta) dias, expira já no dia 29 de agosto de 2012 e a organização do processo licitatório para seleção de entidade parceria pelo Estado do Rio Grande do Norte ainda encontra-se em fase inicial, e, muito provavelmente, não será concluído no tempo devido, o que torna patente os danos que advirão para o erário, que investiu tantos recursos que serão desperdiçados, e para a sociedade, que deixará de receber serviço tão relevante, que poderá sofrer quebra de continuidade.

Ademais, no dia 24 de junho de 2012 vence o concurso público estadual para provimento de cargos na área da saúde. A manutenção dos contratados diretamente pela Associação Marca para o exercício de atividade-fim, em prejuízo dos concursados, pode significar a não nomeação destes, embora o Estado esteja remunerando aqueles e demonstrando a necessidade de tê-los em seus quadros.

Desta feita, considerando o risco real de lesão ao patrimônio público e aos usuários do serviços de saúde prestado pelo SUS, concretizado através da celebração de termo de parceria em total desacordo com as disposições constitucionais e legais que condicionam a atuação da Administração Pública, se impõe a efetivação imediata das providências requeridas, por meio de medida judicial de urgência, sob pena de o Sistema Único de Saúde e, consequentemente, a sociedade, permanecerem obrigados a arcar com despesas feitas de forma ilegal, em claro prejuízo aos cofres públicos, sem contar na preterição dos candidatos aprovados em certame público, enquanto mão de obra quarteirizada permanece ilegalmente laborando no serviço público.

III. DO PEDIDO LIMINAR

Isto posto, o Ministério Público, com fundamento no artigo 12 da Lei nº 7.347/85 e no artigo 273 do Código de Processo Civil, requer a concessão

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de liminar para condenar o Estado do Rio Grande do Norte a:

a) se abster de renovar o termo de parceria firmado em caráter emergencial com a Associação Marca Para Promoção de Serviços além do prazo em curso de 180 (cento e oitenta) dias, previsto em cláusula contratual e iniciado em 29 de fevereiro de 2012;

b) se abster de firmar termos de parceria com entidades privadas sem fins lucrativos antes que seja normatizada, em âmbito estadual, a qualificação de tais entidades como organizações da sociedade civil de interesse público, bem como a observar as normas de licitação previstas na Lei nº 8.666/93 para seleção de entidade parceira;

c) se abster de incluir em eventual termo de parceria formalizado após a regulamentação estadual da qualificação de Oscips qualquer cláusula que possibilite a terceirização de pessoal para atividade-fim do Estado;

d) a convocar e nomear imediatamente, em quantidade suficiente para completar as escalas do Hospital da Mulher, os candidatos aprovados no último certame realizado pela Secretaria Estadual de Saúde Pública (Concurso Público n. 001/2010 – SEARH/SESAP), considerando a proximidade do termo do prazo de validade do certame (expira em 24/06/2012), fazendo valer a autoridade da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do AI 848.031/PE, que refere-se à situação análoga ao vertente caso, substituindo paulatinamente as pessoas contratadas diretamente pelos aprovados em concurso devendo tal substituição ser integralmente concluída até 29 de agosto de 2012, a fim de garantir a continuidade do serviço público;

e) a promover o treinamento dos servidores nomeados a fim de que possam substituir o pessoal irregularmente contratado pela Associação Marca Para Promoção de Serviços para prestar serviços no Hospital da Mulher de Mossoró, devendo tal substituição ser integralmente concluída até 29 de agosto de 2012, a fim de garantir a continuidade do serviço público;

f) a reassumir a prestação do serviço público de saúde à população no Hospital da Mulher, objeto de repasse à Associação Marca, em prazo a ser fixado por Vossa Excelência, que se sugere de 80 (oitenta) dias, – lapso temporal que se harmoniza com o termo final da contratação emergencial, sem prorrogação -, a fim de assegurar a continuidade dos serviços, cessando, ao final desse prazo, os repasses de recursos financeiros a essa entidade;

g) submeter o termo de parceria à imediata apreciação do Conselho Estadual de Saúde, bem como a se abster de firmar novos termos de parceria sem a prévia aprovação dos mesmos pelo Conselho Estadual de Saúde;

Requer, outrossim, a fixação de multa diária em desfavor do Erário Público Estadual no valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais), além de multa diária pessoal ao Gestor Estadual do SUS, Maria das Dores Bulamarqui de Lima, ou quem

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vier lhe suceder no curso da ação, no valor de R$ 1.000,00 (mil reais), para o caso de descumprimento da decisão liminar, como forma de coerção para obtenção do resultado específico pretendido, sem prejuízo dos comandos legais previstos no caput e § 5º do artigo 461 do CPC;.

IV - DO PEDIDO FINAL

Requer, ainda, o Ministério Público Estadual:

a) a citação do Estado do Rio Grande do Norte e da Associação Marca para Promoção de Serviços, através de seus representantes legais para, querendo, contestarem a presente ação, sob pena de revelia;

b) A apreciação do pedido de tutela antecipada requerida em todos os seus termos;

c) Ao final, julgar procedentes os pedidos desta ação, confirmando-se a tutela antecipada requerida, para:

c.1) anular o termo de parceria firmado entre o Estado do Rio Grande do Norte e a Associação Marca Para Promoção de Serviços para a gestão do Hospital da Mulher, em face da inexistência de lei estadual que estabeleça o processo de qualificação de entidades privadas como organizações da sociedade civil de interesse público, bem como pela ausência de realização do devido procedimento licitatório, nos moldes da lei nº 8.666/93 e pela previsão ilegal de terceirização de mão de obra em atividade-fim, modulando os efeitos dessa anulação;

c.2) condenar o Estado do Rio Grande do Norte a se abster de renovar o termo de parceria firmado em caráter emergencial com a Associação Marca Para Promoção de Serviços além do prazo em curso de 180 (cento e oitenta) dias, previsto em cláusula contratual e iniciado em 29 de fevereiro de 2012;

c.3) condenar o demandado a se abster de firmar termos de parceria com entidades privadas sem fins lucrativos antes que seja normatizada, em âmbito estadual, a qualificação de tais entidades como organizações da sociedade civil de interesse público, bem como a observar as normas de licitação previstas na Lei nº 8.666/93 para seleção de entidade parceira;

c.4) condenar o requerido a se abster de incluir em eventual termo de parceria formalizado após a regulamentação estadual da qualificação de Oscips qualquer cláusula que possibilite a terceirização de pessoal para atividade- fim do Estado;

c.5) condenar o Estado do Rio Grande do Norte a convocar e nomear imediatamente, em quantidade suficiente para completar as escalas do Hospital da Mulher, os candidatos aprovados no último certame realizado pela Secretaria Estadual de Saúde Pública (Concurso Público n. 001/2010-SEARH/SESAP),

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considerando a proximidade do termo do prazo de validade do certame (expira em 24/06/2012), fazendo valer a autoridade da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do AI 848.031/PE, que refere-se à situação análoga ao vertente caso, substituindo paulatinamente as pessoas contratadas diretamente pelos aprovados em concurso devendo tal substituição ser integralmente concluída até 29 de agosto de 2012, a fim de garantir a continuidade do serviço público ;

c.6) condenar o demandado a promover o treinamento dos servidores nomeados a fim de que possam substituir o pessoal irregularmente contratado pela Associação Marca Para Promoção de Serviços para prestar serviços no Hospital da Mulher de Mossoró, devendo tal substituição ser concluída até 29 de agosto de 2012, a fim de garantir a continuidade do serviço público;

c.7) condenar o requerido, Estado do Rio Grande do Norte, a reassumir a prestação do serviço público de saúde à população no Hospital da Mulher, objeto de repasse à Associação Marca, em prazo a ser fixado por Vossa Excelência, que se sugere de 80 (oitenta) dias, – lapso temporal que se harmoniza com o termo final da contratação emergencial, sem prorrogação -, a fim de assegurar a continuidade dos serviços, cessando, ao final desse prazo, os repasses de recursos financeiros a essa entidade;

c.8) condenar o Estado do Rio Grande do Norte a submeter o termo de parceria à imediata apreciação do Conselho Estadual de Saúde, bem como a se abster de firmar novos termos de parceria sem a prévia aprovação dos mesmos pelo Conselho Estadual de Saúde;

c.9) fixar multa diária em desfavor do Erário Público Estadual no valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais), além de multa diária pessoal ao Gestor Estadual do SUS, Maria das Dores Bulamarqui de Lima, ou quem vier lhe suceder no curso da ação, no valor de R$ 1.000,00 (mil reais), como forma de coerção para obtenção do resultado específico pretendido, sem prejuízo dos comandos legais previstos no caput e § 5º do artigo 461 do CPC;

d) A dispensa do pagamento de custas, emolumentos e outros encargos, desde logo, em face do previsto no artigo 18 da Lei nº 7.347/85 e do art. 87 da Lei nº 8.078/90; além da intimação pessoal deste órgão ministerial dos atos e termos processuais, na forma da lei, mediante entrega dos autos com vista na sede da Promotoria, situada no endereço declinado no timbre supra, com esteio nos artigos 236, § 2º, do CPC, e 41, inciso IV, da Lei nº 8.625/93 – Lei Orgânica Nacional do Ministério Público;

Embora já tenha apresentado o Ministério Público Estadual prova pré-constituída do alegado, protesta pela produção de todas as provas em Direito admitidas, notadamente testemunhal (art. 407, do CPC), pericial (art. 1.183, do CPC) e documental.

Dá-se à causa o valor de 15.806.075,91 (quinze milhões, oitocentos e seis mil, setenta e cinco reais e noventa e um centavos).

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Termos em que, pede e espera deferimento.

Mossoró, 06 de junho de 2012.

FLÁVIO CÔRTE PINHEIRO DE SOUSA1° PROMOTOR DE JUSTIÇA DE MOSSORÓ

* Em anexo:Autos do Inquérito Civil Público nº 06.2012.000393-5, com 13 (treze) volumes e 2516 (duas mil quinhentos e dezesseis) folhas numeradas e rubricadas.

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