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1 O CENÁRIO EPISTEMOLÓGICO DA MODERNIDADE E AS NOVAS CONFIGURAÇÕES EPISTÊMICAS Prof. Agemir Bavaresco 1 A Epistemologia, classicamente, trilhou o caminho da oposição entre dois pressupostos do ato de conhecer: a racionalidade e a historicidade. A estas duas condições para efetuar-se a aprendizagem, correspondem, na modernidade, duas posições paradigmáticas: a analítica e a histórica. Este é o cenário epistemológico que descreveremos no 1º item. Estes dois paradigmas, porém, não conseguem mais responder às inquietações e às rápidas mudanças que se operam na epistemologia. Por isso, constata-se uma ruptura de paradigmas e por conseqüência, necessita-se da construção de novas configurações epistêmicas (2º item). Enfim, no 3º item, apresentamos o cenário transdisciplinar como o procedimento mais desafiador na epistemologia atual e também como superação da oposição entre os paradigmas analítico e histórico. 1 Doutor em Filosofia pela Universidade Paris 1 (Panthéon-Sorbonne). Professor do PPGFilosofia PUCRS. Site: www.abavaresco.com.br

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O CENÁRIO EPISTEMOLÓGICO DA MODERNIDADE E AS NOVAS

CONFIGURAÇÕES EPISTÊMICAS

Prof. Agemir Bavaresco1

A Epistemologia, classicamente, trilhou o caminho da oposição entre dois

pressupostos do ato de conhecer: a racionalidade e a historicidade. A estas duas

condições para efetuar-se a aprendizagem, correspondem, na modernidade, duas

posições paradigmáticas: a analítica e a histórica. Este é o cenário epistemológico que

descreveremos no 1º item.

Estes dois paradigmas, porém, não conseguem mais responder às inquietações

e às rápidas mudanças que se operam na epistemologia. Por isso, constata-se uma

ruptura de paradigmas e por conseqüência, necessita-se da construção de novas

configurações epistêmicas (2º item).

Enfim, no 3º item, apresentamos o cenário transdisciplinar como o

procedimento mais desafiador na epistemologia atual e também como superação da

oposição entre os paradigmas analítico e histórico.

1 Doutor em Filosofia pela Universidade Paris 1 (Panthéon-Sorbonne). Professor do PPGFilosofia

PUCRS. Site: www.abavaresco.com.br

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1 - OS DOIS CENÁRIOS EPISTEMOLÓGICOS DA MODERNIDADE

Em primeiro lugar, é necessário que definamos o termo epistemologia, como

ele é compreendido no debate atual. “Epistemologia (do grego epistéme: ciência,

conhecimento + lógos: palavra, discurso). Teoria do conhecimento em geral e, de

forma especial, do conhecimento científico. A epistemologia se interessa pelos

métodos, objetos e formas de pensamento próprios da ciência. É um dos termos mais

usados para referir-se à discussão sobre a forma como construímos nossos

conhecimentos. Em muitas universidades, existem centros ou institutos com nomes

parecidos a este: Centro de Epistemologia e História da Ciência. Nas décadas mais

recentes, o conceito foi polarizando-se em direção às teorias sobre o que é aprender.

No MIT (Massachusettes Institute of Technology) existe uma linha de pesquisa sobre

Epistemology and Learning (Epistemologia e Aprendizagem) que, por sinal, enfatiza

os estudos relacionados com o modo pelo qual as máquinas “inteligentes” são

capazes de aprender e também sobre as novas estruturações do aprendizado, que

acontecem na relação entre seres humanos e computadores. O termo epistemologia

foi adquirindo, dessa maneira, um sentido mais específico do que a clássica expressão

filosófica teoria do conhecimento” 1.

A Epistemologia, conforme esta definição, é a teoria que estuda a construção

do conhecimento, ou seja, como o ser humano aprende. Neste sentido, existe uma

“Epistemologia Evolutiva” com duas dimensões: em primeiro lugar, a evolução como

desenvolvimento dos sentido e da corporeidade fornece as bases biológicas dos

processos cognitivos. Em segundo lugar, as próprias formas do conhecimento,

linguagens, culturas, idéias, teorias e modos de percepção formam parte de processos

evolutivos, cujos padrões podem ser estudados tanto a partir das ciências naturais,

quanto das humanas e sociais. Usualmente, costuma-se chamar esta Epistemologia

Evolutiva como uma „teoria evolucionária do conhecimento‟ 2.

1 . Hugo Assmann. Reencantar à educação. Petrópolis, Vozes, 1998, p.152.

2 . Id. p. 153.

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Considerando esta definição, vamos, agora, apresentar os cenários

epistemológicos deste século, isto é, os cenários que mostram como usualmente se

entende a produção do conhecimento. Neste sentido, o pressuposto da Epistemologia,

enquanto disciplina filosófica, é que a condição fundamental do conhecimento surge

a partir de dois elementos: a racionalidade e a historicidade 1. O problema é que estes

dois elementos dão origem a duas posições epistemológicas antagônicas. Estas duas

posições, na verdade, provocam a articulação de dois paradigmas epistemológicos: o

paradigma analítico e o histórico, ligados ao elemento racional e histórico,

respectivamente. Estes dois paradigmas englobam a historiografia da Epistemologia,

referente ao período compreendido entre os anos vinte e os anos setenta do século

XX.

Cabe, no entanto, observar que estas duas posições acabam gerando um

impasse entre os dois paradigmas. A solução desta contradição passa, primeiramente,

pelas novas configurações epistêmicas e, depois, pela transdisciplinaridade

epistemológica, ou seja, a produção de um conhecimento transdisciplinar. Vejamos,

portanto, em primeiro lugar, os cenários epistemológicos da modernidade: os

paradigmas analítico e histórico.

1 . Nesta parte seguiremos Luiz Carlos Bombassaro. As fronteiras da Epistemologia. Como se produz o

conhecimento. Petrópolis, Vozes, 1993, p. 9. “Racionalidade e historicidade, diz Bombassaro, são

termos que usamos para caracterizar, em sentido antropológico-filosófico, a “pertença”

(zugehörigkeit), aquilo que define o homem”. Cf. nota 1, p. 122. A racionalidade e a historicidade são

consideradas a base do modo de ser humano, ou seja, esses dois elementos constituem o fundamento

de tudo o que diz respeito ao homem. Quando se diz que o homem é racional assume-se a posição

clássica de Aristóteles: o homem é um animal dotado de uma alma racional, que o capacita a dizer o

mundo. O que é ser “racional”? Segundo Bombassaro, a definição de Habermas é fundamental: Para

Habermas existe uma relação intrínseca entre racionalidade e conhecimento. Todo conhecimento é

portador de racionalidade, porque está estruturado proposicionalmente. Não só as proposições podem

ser consideradas racionais, mas também o homem, formador de expressões lingüísticas, que dispõe do

conhecimento, deve ser considerado racional. Bombassaro tem, como propósito, a conjugação da

racionalidade e da historicidade, enquanto produzem uma ação humana peculiar: o conhecer. “É no

conhecer - processo pelo qual o homem compreende o mundo - e no conhecimento - conjunto de

enunciados (formalizados ou não) sobre esse mundo - que pode ser demonstrada a presença

inseparável das categorias apresentadas acima”. Id. p. 16.

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1.1 - O paradigma analítico 1

O paradigma analítico é denominado também de “teoria analítica da ciência”

ou “filosofia analítica da ciência”. Este paradigma foi predominante na primeira

metade do século passado e sua orientação teórica é o empirismo lógico do Círculo de

Viena, mais tarde, porém, é influenciado pela filosofia de Karl Popper. Vejamos

como ele se formou historicamente.

a) Raízes históricas: As raízes deste paradigma se encontram em diversos autores,

como por exemplo, em David Hume, no monismo metodológico do positivismo

de Augusto Comte e John Stuart Mill, a lógica semântica de Gottlob Frege, a

lógica matemática de Alfred Whitehead e Bertrand Russel, e, sobretudo a teoria

do Tractatus de Ludwig Wittgenstein.

b) A construção lógica do mundo: Rudolph Carnap publicou em 1928, o livro A

construção lógica do mundo, para demonstrar como seria possível, a partir de

experiências elementares, constituir logicamente os objetos do mundo.

c) O “contexto de descoberta” e o “contexto de justificação”: Hans Reichenbach

afirma que a Epistemologia deve distinguir estes dois elementos e ocupar-se,

exclusivamente, do “contexto de justificação”. Ele separa assim os dois

elementos, pois o “contexto de descoberta” envolve elementos psicológicos,

1 . Paradigma é um termo de origem grega: parádeigma: modelo, exemplo; e do verbo

paradeigmatítzo: propor, mostrar. Esse termo é colocado em cena pelo epistemólogo Thomas Kuhn

(The Structurs of Scientific Revolutions), no início dos anos 1960. Para Kuhn, o paradigma funciona,

primeiro, como filtro na percepção e projeção da realidade. O paradigma, depois, para tornar-se

público e implantar-se precisa de um “colegiado de suporte”. De modo geral, paradigma é o conjunto

de convicções e conceitos que caracterizam uma determinada maneira de perceber o mundo e interagir

com ele. Para a epistemologia, o paradigma é o conjunto de categorias e conceitos que formam o

marco de leitura e interpretação da realidade; na cultura, é o conjunto de atitudes e ações simbólicas

que se usam para representar o mundo. Hoje, fala-se em mudança de paradigma científico e da própria

forma mentis (do modo de configurar conhecimentos) sob a influência da inteligência coletiva e a

ecologia cognitiva.

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sociológicos e históricos. Enquanto que o “contexto de justificação” envolve-se

apenas com os elementos metodológicos da investigação científica.

d) O Círculo de Viena: O Círculo de Viena, fundado em 1929, é o representante

mais genuíno do paradigma analítico. Ele reuniu pesquisadores das mais diversas

áreas - Física, Matemática, Lógica, Filosofia etc. - com a finalidade de pesquisar a

concepção científica do mundo. O princípio fundamental que guiava suas

investigações era o da Filosofia Empirista e Positivista. Este princípio afirma,

primeiramente, que o conhecimento só é possível, partindo-se da experiência

imediata; depois, serve-se da análise lógica da linguagem, como método

filosófico; enfim, adota a separação entre o contexto de descoberta e o contexto

de justificação, introduzida por Reichenbach.

O programa de investigação do Círculo incluía, entre outros itens, os

seguintes: aplicar os conceitos lógicos para reconstruir, racionalmente, os conceitos

científicos; passar todos os enunciados científicos pelo princípio da verificabilidade;

procurar critérios de significado empírico que eliminassem pouco a pouco todo o

critério de fundamentação metafísica; superar a separação entre ciências da natureza e

humanas, através de uma ciência unificada lógica. Este programa, de um lado,

contribuiu para estabelecer na Epistemologia o rigor metodológico para a

investigação. Porém, de outro lado, é criticável a pretensão do Círculo, de querer

reduzir o mundo aos enunciados científicos. Por exemplo, a filosofia tinha como

única atividade tornar claras as idéias, conceitos e métodos através da análise lógica

da linguagem.

e) A autocrítica e a auto-renovação do Círculo de Viena: Alguns pontos do

programa de investigação do Círculo foram, aos poucos, sendo criticados e

mudados. Por exemplo, o critério de verificabilidade: Carnap, com a publicação

do Testability and Meaning, abandona aquele critério e o substitui pelo de

confirmabilidade. Por seu lado, K. Popper propõe não a confirmabilidade, mas a

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falseabilidade. Popper, ao mesmo tempo, defende os princípios da filosofia

empirista e critica o indutivismo e o positivismo do Círculo. No seu livro - A

lógica da pesquisa científica, 1934 - ele aponta três problemas na epistemologia:

a lógica da investigação, o critério de demarcação e a objetividade científica. Ele

propõe a seguinte solução: 1) elaborar uma lógica dedutiva, para avaliar a

validade das proposições científicas; 2) definir um novo critério de demarcação,

pois, antes, só eram consideradas científicas as teorias que seriam verificadas ou

confirmadas através da experiência. Agora, Popper sugere a falseabilidade como

único critério de demarcação entre a ciência e a não-ciência. Assim, uma teoria só

pode ser considerada científica, se for falseada pela experiência, ou seja, se tiver a

capacidade de ser refutada ou testada 1. Com isso, introduz-se uma

“Epistemologia negativa”, porque o avanço do conhecimento científico estaria

vinculado à capacidade humana de errar. 3) afirmar que a objetividade científica

depende de uma base empírica que consiste de proposições existenciais

singulares, os “enunciados básicos”.

Após esta breve descrição das principais características do paradigma

analítico, podemos concluir que este paradigma se articula, segundo Wright, a partir

de três princípios: a) o monismo metodológico, isto é, a aplicação de um único

método científico para explicar a diversidade de objetos da investigação científica; b)

a consideração de que as ciências exatas, sobretudo a Física e a Matemática,

estabelecem uma regra ou um ideal metodológico o qual serve para medir o grau de

desenvolvimento e perfeição das demais ciências, entre elas as humanas; c) o

positivismo lógico que tem o princípio causal como eixo explicativo da ciência. Ou

seja, trata-se de englobar os casos particulares da natureza sob leis hipotéticas gerais 2

1 . Cf. POPPER, Karl. La logique de la découverte scientifique. Paris: Payot, 1984.

2 . Cf. Georg H. von Wright. Explicación y comprensión (Explanation and Understanding), p. 21. In: L.

C. Bombassaro. op. cit. p. 30.

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1.2 - O paradigma histórico

Trata-se de caracterizar este paradigma a partir do final da década de 1950 e

as décadas 60 e 70 do século passado. Dentro deste paradigma podemos situar três

grupos: a) o grupo da “nova Filosofia da ciência” formado por Norwood R. Hanson,

Stephen Toulmin, Thomas Kuhn, Imre Lakatos e Paul Feyerabend; b) o grupo que

“combate os analíticos” composto por Gaston Bachelard, Georges Canguilhem e

Michel Foucault; c) e o grupo da Escola de Frankfurt, representado por Theodor W.

Adorno e J. Habermas.

O que é comum a estes três grupos é uma reação crítica ao paradigma

analítico. Considerando essa característica, tomemos os representantes do primeiro

grupo para descrever os principais elementos deste paradigma: Norwood R. Hanson

(Patterns of Discovery, 1958), T. Kuhn (The Structure of Scientif Revolutions, 1962),

Imre Lakatos (History of Science and Its Rational Reconstructions, 1971), Paul

Feyerabend (Against Method, 1975). Como vemos, a grande produção deste grupo

está situada em duas décadas e essas obras são as que mais causam repercussão e

discussão na meio da comunidade científica.

Enumeremos quatro críticas feitas aos analíticos e ao mesmo tempo, as

correções propostas pelos históricos: a teoria empírica da percepção, ou seja, a tese

dos dados dos sentidos; a questão da mudança conceitual e o progresso teórico do

conhecimento científico; o princípio do monismo metodológico e o ideal da ciência

unificada; e o critério de demarcação. De modo geral, considera-se que os analíticos

tinham uma Epistemologia muito simplista, “pois, ao analisar o conhecimento

científico pelos seus enunciados lógicos, deixavam de considerar a ação efetiva dos

homens que faziam a ciência e o modo pelo qual essa ação se realizava” 1. Trata-se,

de fato, de uma ficção científica, ao invés de uma ciência do real. Por isso, os

históricos questionam os princípios da filosofia positivista e empirista.

1 . Luis C. Bombassaro. op. cit., p. 32.

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a) “Toda a observação está carregada de teoria”: Esta é a afirmação de

Hanson, a qual mostra que nossas percepções sempre têm algumas pressuposições ou

teorias sobre a realidade. Dito de outro modo, nossa observação vem carregada de

conhecimentos prévios, crenças e significados, que atribuímos ao que observamos.

Os analíticos, diante desta crítica, revêem sua teoria sobre os dados dos sentidos, isto

é, foi necessário levar em conta o “contexto de descoberta” e não, simplesmente,

fixar-se no “contexto de justificação”.

b) A ciência é evolutiva: Os analíticos sustentam a invariância do significado,

ou seja, querem fixar os conceitos e o conhecimento científico. Os históricos mostram

que a história da ciência revela uma mudança permanente no conhecimento

científico, produzido pela pesquisa. Por exemplo, Kuhn descreve a mudança ocorrida

na Astronomia do século XV, a qual provoca uma alteração nas teorias e no modo de

proceder da comunidade científica.

c) A pluralidade de métodos: Os analíticos querem a unidade da ciência, a

partir de um único método. Os históricos afirmam que existem muitos métodos para

acessar a realidade, por exemplo, os novos modelos introduzidos pelos estudos da

Biologia, da Antropologia, da Etnologia, etc. Toulmin é um exemplo de alguém que

se recusa a aceitar o modelo teórico fornecido pelas ciências físicas e matemáticas, e

adota as categorias extraídas da teoria da evolução.

d) A revalorização da Metafísica: O analítico, Popper, assim como outros,

coloca, como critério de demarcação científica, o princípio da falseabilidade. No

entanto, os históricos dizem que “nenhuma proposição fatual pode ser provada, a

partir da experiência”1. Há uma revalorização da Metafísica. Segundo Lakatos, “as

decisões epistemológicas adotadas pelos cientistas ao desenvolverem seus „programas

1 . Lakatos, O falseamento e a metodologia dos programas de pesquisa científica, nota 51, p. 34, in:

Bombassaro, op. cit., p. 34.

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de investigação‟ estão freqüentemente ligadas a um núcleo metafísico de fundo” 1.

Por exemplo, diz Lakatos, a Metafísica cartesiana foi fundamental na elaboração da

teoria mecanicista. Kuhn, de seu lado, fala de “um conjunto de compromissos de

nível elevado”, o qual possui “tanto dimensões metafísicas como metodológicas”, que

fornecem aos cientistas uma visão de mundo e um conjunto de regras como

pressupostos de suas pesquisas.

O que se percebe é que a proposta dos analíticos de superar a Metafísica pela

análise lógica da linguagem não foi realizada, porque a metafísica foi reintroduzida

pelos históricos. A ironia da história mostra que os analíticos, ao expulsarem a

Metafísica pela porta da frente, possibilitaram seu retorno pela porta dos fundos,

através dos históricos.

Estas são as caracterizações dos dois paradigmas científicos que construíram

os cenários epistemológicos da modernidade e, em especial, deste século. Vejamos,

agora, as novas configurações epistêmicas.

2 - AS NOVAS CONFIGURAÇÕES EPISTÊMICAS

Percebe-se que estamos ingressando numa nova etapa epistemológica. Antes,

vigoravam praticamente, em todos os âmbitos da natureza e da história, as supostas

“leis objetivas” que estariam garantindo a consistência do real. Hoje, o conceito de

vida está sendo redefinido como algo que se dá sempre na fronteira, entre a ordem e o

caos 2, ou seja, como a interpenetração de ambos. O cérebro/mente é analisado numa

perspectiva pós-mecanicista, como um sistema dinâmico, complexo e adaptativo. Da

mesma forma, a inteligência e a memória são reconceituadas como processos

complexos e dinamicamente auto-organizativos.

1 . Id. p. 35.

2 . A teoria do caos não pode ser confundida com o puro acaso, mas ela significa uma dinâmica

criativa, entre o fortuito e o aleatório e o surgimento de parâmetros ordenadores. Os seres vivos vivem

entre os estados caóticos e os estados ordenadores. Cabe notar que são os estados caóticos que

garantem a máxima flexibilidade e a melhor capacidade de aprender. Id. H. Assmann. Reencantar a

educação. p. 141.

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As Epistemologias modernas tinham como preocupação “fixar o real” em

formas estáticas de conhecimento. Elas usavam parâmetros ordenadores, tanto na

concepção da natureza e da história, como na visão do corpo e das formas de ativação

neuronal do cérebro denominadas “mente”. A nova Epistemologia tem, como

referência básica, a autopoeisis - o autofazer-se - dos processos vivos, imersos

interativamente em ambientações - ecologias cognitivas 1 - propícias ou adversas.

Enfim, o processo do conhecimento começa a reconciliar-se com a maneira dinâmica

na qual acontece a vida.

Hoje se fala em crise dos paradigmas, devido às múltiplas e rápidas

transformações do mundo. Segundo H. Assmann, a noção de paradigma e mudança

de paradigma está ficando estreita demais para acolher a complexidade de mudanças

que ocorrem. Por isso, sugerem-se enfoques epistemológicos mais abertos, através de

expressões como novos cenários epistemológicos ou novas configurações

epistêmicas.

As novas configurações epistêmicas situam-se em três áreas de avanços

científico-epistemológicos: a) as Biociências; b) a Tecnotrônica (Informática

Avançada, Realidade Virtual 2, Inteligência Artificial

3, Cibernética

4 de Segunda e

1 . Ecologia cognitiva é um termo criado por E. Morin e Pierre Levy. A EC estabelece as interfaces dos

agentes cognitivos (humanos e/ou máquinas), cria formas de conhecer e uma ambientação pedagógica

propícia às experiências através de tecno-ambientes (computadores, Internet, multimeios). 2 . Realidade virtual (do latim: vir, varão; daí, virtus: força, energia, virtude;) é tudo o que se aplica à

mídia eletrônica (a digitalidade) com sua base de existência e reprodutibilidade. A existência virtual (

de dados, informação, imagens, simulações etc.) se entrelaça com a experiência (bate-papo eletrônico,

chat, simulações etc.). Em sentido específico, a realidade virtual implica o uso de um conjunto de

implementos eletrônicos (hardwares e softwares). Cf. H. Assmann. Reencantar a educação, 1998, p.

187. 3 . O conceito de Inteligência artificial (IA) surgiu na informática e refere-se a teorias e programas que

têm como objetivo conseguir que as máquinas se tornem capazes de comportamentos inteligentes (o

reconhecimento de formas, tratamento de linguagens, versatilidade inovadora etc.). A IA imita o

processo básico do aprendizado humano por meio do qual novas informações são absorvidas e se

tornam disponíveis para referências futuras. A mente humana incorpora novos conhecimentos, sem

alterar seu funcionamento e sem atrapalhar os outros fatos que já estão armazenados no cérebro. Um

program de IA funciona quase do mesmo modo. Id. p. 150-160. 4 . Neologismo inventado por Norbert Wiener (do grego: kybernêin: governar; Kybernetés: timoneiro,

controlador. Ciência do controle do ir e vir (circulação) da informação e comunicação nos seres vivos,

nas máquinas ou em todos os sistemas naturais ou artificiais. Cibernética de primeira ordem é centrada

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Terceira Ordem, Vida Artificial 1); c) e os Sistemas Dinâmicos Complexos

2 que

englobam as duas áreas anteriores e elaboram novos conceitos de forma

transdisciplinar. A partir dessas novas configurações, enunciam-se alguns temas

fundamentais:

- a auto-organização dos sistemas vivos (autopoeiesis);

- a bio-psico-sociogênese do conhecimento humano;

- a coexistência da auto-organização e auto-regulação nos processos sócio-

históricos;

- as teorias dos sistemas (abertos, fechados, dinâmicos e complexos);

- as tecnologias e sistemas de interação cognitiva entre aprendentes humanos e

máquinas aprendentes (engenharia cognitiva, sistemas aprendentes etc.);

- a mimética, enquanto abordagem sociocultural das ideologias e do funcionamento

dos consensos e dissensos coletivos (memes = os genes da cultura) 3.

Nesse processo de elaboração de novas configurações epistêmicas, dois

princípios precisam ser levados em conta:

1º) O princípio da complexidade: A complexidade não significa coisas

complicadas, como se entende no senso comum, mas uma ruptura epistemológica

com a razão calculante do cientificismo moderno, que pensava analisar tudo pela

no estudo dos controles detectáveis e/ou possíveis, enquanto que a de segunda ordem ocupa-se no

estudo dos sistemas complexos (emergência de níveis imprevisíveis, autopoeisis etc.). Id. p. 143. 1 . A vida artificial (Artificial Life) é a busca de simular no computador tudo o que se possa imitar

acerca dos processos vivos. A hipótese de trabalho é que a vida é um processo sistêmico complexo

composto por múltiplas interações auto-organizativas pelo processo de aprendizagem e adaptabilidade.

A VA utiliza elementos artificiais, especialmente eletrônicos, para simular, explicar e emular processos

de vida, não tanto para imitar fenômenos biológicos de organismos vivos, tomados isoladamente, mas

introduz a interatividade e a adaptabilidade. Id. p. 185. 2 . Cf. MORIN, Edgar. Ciência com consciência. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999. Conferir em

especial: 2ª parte: cap. 1- O desafio da complexidade; cap. 10- Os mandamentos da complexidade. 3 . H. Assmann. Paradigmas ou cenários epistemológicos complexos? in: Teologia aberta ao futuro.

São Paulo, Ed. Loyola, 1997, p. 52-3. Cf. também de Assmann: Metáforas novas para reencantar a

educação. Epistemologia e didática. 2ª ed., São Paulo, Ed. UNIMEP, 1998, p. 87: “A reconfiguração

do cenário epistemológico”.

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somatória das análises parceladas. Os modelos mecanicistas nunca chegam a

capturar, por essa via, as interações que existem nos sistemas complexos.

A teoria da complexidade trata dos sistemas cujo comportamento se

caracteriza por uma dinâmica imprevisível. Por exemplo, um sistema vivo,

compreende-se a partir do conceito de auto-organização que implica sistemas

complexos e adaptativos. Estes superam o princípio mecânico de causa-efeito, porque

no comportamento de um sistema vivo interagem vários fatores. A análise de um tal

fenômeno requer um razão não-linear que compreenda os sistemas complexos, as

suas várias situações e os parâmetros que os configuram.

Em síntese, no entender de E. Morin, “a complexidade surge portanto no seio

do uno ao mesmo tempo como relatividade, relacionalidade, diversidade, alteridade,

duplicidade, ambigüidade, incerteza, antagonismo, e na união destas noções que são,

umas em relação às outras, complementares, concorrentes e antagônicas”. Daí, que “o

sistema é o ser complexo que é superior, inferior, distinto de si mesmo. É, ao mesmo

tempo, aberto e fechado. Não há organização sem antiorganização. Não há

funcionamento sem disfunção”1.

E. Morin propõe o paradigma da complexidade. Este é o conjunto dos

princípios de inteligibilidade que, ligados uns aos outros, poderiam determinar as

condições de uma visão complexa do universo (físico, biológico, antropossocial).

Alguns princípios da inteligibilidade são os seguintes: princípio complementar do

reconhecimento e de integração do tempo na física, na biologia e na organização, ou

seja, considerar a história em todas as descrições e explicações; ligar o conhecimento

das partes ao dos conjuntos; causalidade complexa, isto é, interferências, sinergias,

desvios, reorientações e auto-organização; considerar o fenômeno segundo uma

dialógica: ordem-desordem-interações-organização; princípio da distinção, mas não

de separação, entre o objeto ou o ser e seu ambiente interagindo com seu ecossistema;

princípio de relação entre o observador/concebedor e o objeto observado/concebido;

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problemática das limitações da lógica linear para compreender sistemas formais

complexos 2.

2º) O princípio da morfogênese do conhecimento: Constata-se, hoje, uma

profusão de linguagens novas sobre o conhecimento. As palavras “conhecimento” e

“aprender” voltaram a exercer um fascínio quase mágico. Fala-se em Sociedade do

Conhecimento (Knowledge society), sociedade aprendente (learning society),

sistemas com base conhecimento (knowledge management), engenharia do

conhecimento (knowledge engenneering), ecologia cognitiva etc. Qual é a gênese do

conhecimento?

De uns cinco anos para cá, atribui-se o nome de processos cognitivos ao

conjunto de operações mistas que acontecem na parceria entre seres humanos e

máquinas informáticas. O conhecimento implica, atualmente, todos os processos

naturais e sociais em que se geram as formas de aprendizagem. Tudo aquilo que é

capaz de aprender cumpre processos cognitivos. Isto não significa cair num

redutivismo que ignora as diferenças de grau e nível nas operações cognitivas.

Na área da Pedagogia precisa-se entender que existe uma equiparação entre

processos vitais e processos cognitivos. Onde não se propiciam processos vitais

tampouco se favorecem processos de conhecimento. Com isso, nós entramos no

terceiro ponto de nossa exposição: o cenário transdisciplinar.

3 - O CENÁRIO TRANSDISCIPLINAR

Vimos, inicialmente, que a oposição entre o paradigma analítico e o histórico

tornou-se rígida; depois, o surgimento das novas configurações epistemológicas

elabora outros conceitos para compreender o processo cognitivo. Enfim, a prática-

teórica transdisciplinar elabora os conceitos de um pensar transdisciplinar como

1 . MORIN, E. O método. V. 1: A natureza da natureza. (La Méthode). Portugal: Europa-América,

1997, p. 141. 2 . MORIN, E. Ciência com consciência. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999, p. 333.

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superação do impasse inicial. As novas configurações epistêmicas exigem conceitos

que possam transitar transversalmente, através das diversas disciplinas. Para isso,

pode-se assinalar três temas emergentes no processo do conhecimento: a coincidência

entre processos vitais e processos de conhecimento; a insuficiência do modelo

computacional, para entender o cérebro/mente, enquanto sistema dinâmico e

complexo; e enfim, o tema da transdisciplinaridade em si mesmo.

Cabe destacar que o pressuposto do cenário transdisciplinar implica o

reconhecimento da teoria da complexidade que é a afirmação das disciplinas no

estudo de seu objeto específico, e ao mesmo tempo é o diálogo entre as diversas

disciplinas usando as múltiplas abordagens metodológicas sobre um mesmo objeto;

enfim, é ir além das disciplinas criando um novo campo epistemológico. H. Assmann

afirma que estamos nos aproximando de um tipo de pensamento radicalmente

transdisciplinar, que implica, ao mesmo tempo, uma nova disposição teórica e uma

atitude prática diante da vida e do mundo, isto é, uma refundamentação ético-

política 1. Esse pensar transdisciplinar elabora, inicialmente, a coincidência entre

processos vitais e processos de conhecimento.

3.1 - A coincidência entre processos vitais e processos de conhecimento

A escola clássica tinha como pressuposto a visão mecanicista do corpo,

proposta por Descartes, em que se procura domesticar o lado animal do corpo. Hoje,

sabe-se que todo o conhecimento tem sua origem e preservação numa inscrição

corporal. As formas do conhecimento geram-se, de um lado, pelos processos auto-

organizativos corporais, isto é, os processos endógenos do indivíduo e , de outro lado,

pela interação com o meio ambiente.

A afirmação básica é que toda morfogênese do conhecimento - sobretudo na

criança, mas também no adulto - instaura-se como cognição corporal. Todo o

1 . Cf. H. Assmann. Paradigmas ou cenários epistemológicos complexos. p. 42-3.

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conhecimento é um texto corporal, ou uma textura corporal. Toda forma de

conhecimento é gerada bio-organizativamente. A auto-organização físico-orgânica

constitui em nós, que somos seres bio-sócio-culturais, um processo autopoiético, um

autofazer-se unificado com as formas simbólico-lingüísticas.

Até hoje sempre predominou a concepção mentalista do conhecimento, isto é,

os processos cognitivos eram, sobretudo, processos mentais. O ensino era, então, uma

transação entre mentes: da mente do professor para a mente do aluno. Este modelo

mentalista não é mais suficiente, considerando o funcionamento do cérebro/mente e a

função da corporeidade - há uma inscrição corporal do conhecimento - na profunda

identidade entre processos vitais e processos de conhecimento.

3.2 - O cérebro/mente como sistema complexo1 e dinâmico

O que é o cérebro/mente? Para a Epistemologia objetivista - entrega e

recepção de saberes - o cérebro/mente é um processador de símbolos, o espelho da

natureza, uma máquina abstrata para manipular símbolos. Enquanto que, para a

Epistemologia construtivista - construção interativa de conhecimento - ele é o criador

de símbolos, perceptor/intérprete da natureza e história, sistema conceitual para

construir a realidade.

A história das ciências cognitivas, grosso modo, tem três etapas: 1) o

simbolismo computacional, que modeliza os processos cognitivos como processos

digitais (entendendo-se por “símbolos” algo semelhante aos “bits” do computador);

1 . O conceito de complexidade não é simplesmente contraposto ao que é simples, nem ao do senso

comum que funciona como um curinga para dizer coisas complicadas. A teoria da complexidade se

ocupa de sistemas cujo comportamento é imprevisível. A complexidade se refere aqueles processos

que não podem ser analisados apenas pela somatória das partes. A complexidade se ocupa dos sistemas

que não se enquadram mais dentro do clássico princípio de causa e efeito, quando os fatores co-

determinantes são múltiplos e variados e que vão para além de um pensar linear. A experiência de

aprendizagem são processos emergentes entre indivíduos, grupos e organizações que encontraram ou

criaram um contexto - uma ecologia cognitiva - que propicia esta emergência. O aspecto fundante da

aprendizagem é que ela é a emergência de estados complexos da auto-organização do conhecimento.

Cf. H. Assmann. Reencantar a Educação, p. 148.

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2) o conexionismo, que usa o modelo das redes neuronais complexas; 3) o

dinamicismo, que estuda o cérebro/mente como um sistema dinâmico complexo.

Predominam, agora, as posições científicas que usam os conceitos:

complexidade dinâmica, auto-organização (autopoiesis, na linguagem de Maturana e

Varela em Biologia, e em N. Luhman na teoria dos sistemas sociais), interpenetração

de caos e ordem. O cérebro/mente do ser humano possui uma plasticidade

extraordinária que rompe com as lógicas rígidas e lineares. Muitos cientistas afirmam

que as lógicas mais apropriadas com o modo de funcionar do nosso cérebro/mente

são as lógicas multivariantes e sistemicamente abertas como, por exemplo, a “lógica

nebulosa” (fuzzi logic) que leva em conta o predomínio de áreas oscilatórias e

indefinidas, e a elasticidade do cérebro/mente 1.

Por isso, recomenda-se uma pedagogia plástica e sinuosa que incentive

certezas operacionais imprescindíveis, capacite para modelizações da “realidade”,

mas preserve incertezas sobre os rumos, para que sejam desafios do ato de aprender.

Surge a oportunidade de optar por lógicas mais dinâmicas e mais conformes aos

sistemas dinâmicos e complexos. Fica aberto um caminho para uma pedagogia que

trabalhe o jogo de certeza e incerteza que constitui um aspecto importante do novo

cenário epistemológico da educação2.

1 . Podemos mencionar também a lógica para-consistente de Newton C. A. Costa como modelo lógico

não linear. Remetemos aos seus livros: Ensaios sobre os fundamentos da Lógica. São Paulo: Hucitec;

Sistemas formais inconsistentes. Paraná: UFPR, 1993. 2 . Cf. H. Assmann. Paradigmas ou cenários epistemológicos complexos. p. 63-4.

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3.3 - Uma epistemologia transdisciplinar

Considerando os cenários epistemológicos e as novas configurações

epistêmicas, constata-se uma forte tendência para a elaboração de uma epistemologia

transdisciplinar. Vejamos, primeiramente, os fatos que justificam essa epistemologia,

depois o seu desenvolvimento histórico e, enfim, a sua finalidade.

3.3.1 - Implicações do pensar transdisciplinar

Apontamos, abaixo, alguns fenômenos que implicam a produção de uma

epistemologia transdisciplinar:

a) A fragmentação das disciplinas ou a fragmentação do objeto e do método:

Constata-se uma crescente fragmentação das disciplinas, a qual corresponde a

fragmentação do próprio objeto e do método de estudo das disciplinas 1.

b) A perda da aptidão em unir os conhecimentos ou a perda da aptidão a

analisar e sintetizar: No entender de E. Morin, “nós sabemos que o modo de pensar

ou de conhecer parcial, compartimentado, monodisciplinar, quantificador nos conduz

a uma inteligência cega, na medida onde a aptidão humana normal a unir os

conhecimentos se encontra aí sacrificada em proveito da aptidão não menos normal a

separar. Pois conhecer, é num anel ininterrompido, separar para analisar, e unir para

sintetizar ou complexificar. A prevalência das disciplinas, separadora, nos faz perder

a aptidão a unir, a aptidão a contextualizar, isto é a situar uma informação ou um

saber no seu contexto natural. Nós perdemos a aptidão a globalizar, isto é a introduzir

os conhecimentos num conjunto mais ou menos organizado. Ora as condições de todo

conhecimento pertinente são justamente a contextualização, a globalização” 2.

1 . Jean Ladrière. In: Recherche interdisciplinaire et théologie. Paris: Cerf, 1970, p. 53-58.

2 . Edgar Morin. Réforme de pensée, transdisciplinarité, réforme de l’Université. Cf. CIRET, na

Internet.

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c) A separação entre sujeito e objeto: “A crise da fragmentação começa por

uma ilusão, por uma miragem, que é a separação entre sujeito e objeto. Antes dessa

ilusão, há uma não-separatividade ou mesmo uma identidade entre o conhecedor, o

conhecimento e o conhecido, ou seja, entre sujeito, conhecimento e objeto” 1.

d) Mudança de paradigma epistemológico: A transdisciplinaridade trata “de

algo mais que a mera intensificação do necessário diálogo entre as distintas áreas e

disciplinas científicas, porque a questão que precisa ser explicitada é a da mudança de

paradigma epistemológico” 2.

e) A cisão entre cultura humanístico-artística e cultura científica; entre fé e

razão; entre a modernidade - razão única ou unicidade da razão - e a pós-modernidade

- multiplicidade de razões: fragmentação e nihilismo.

f) Mudar de sistema de referência: No Congresso Internacional de

Locarno/Suiça afirma-se enfaticamente que “a transdisciplinaridade corresponde a

um novo modo de conhecimento, não redutível ao conhecimento disciplinar, gera

uma nova teoria e uma nova prática da decisão. Na abordagem transdisciplinar, não

há mais condições iniciais bem definidas do problema a resolver. Mais precisamente,

conseqüência imediata da complexidade intrínseca do mundo em que vivemos, essas

condições “iniciais” mudam continuamente. Em nossa vida universitária, deparamo-

nos com isso todos os dias e, no entanto, ainda não perdemos a ilusão de uma

“reforma”, de um milagre capaz de eliminar todos os males que atingem as

universidades. Se as condições iniciais dos diferentes problemas mudarem

incessantemente e se uma reforma milagrosa for simplesmente impossível, estamos,

então, condenados a assistir, impotentes, à decadência progressiva, mas certa das

universidades? A resposta será certamente “não”, se aceitarmos mudar de sistema de

referência, isto é: 1) considerar cada problema não mais a partir de um único nível de

Realidade, mas situando-o simultaneamente no campo de vários níveis de Realidade;

1 . Pierre Weil et alii. Rumo à nova transdisciplinaridade. Brasília: Summus editorial, 1992, p. 15.

2 . Hugo Assmann. Reencantar a educação. Petrópolis: Vozes, 1998, p. 95.

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2) não mais esperar encontrar a solução de um problema nos termos de “verdadeiro”

ou “falso” da lógica binária, mas recorrer a novas lógicas, particularmente à lógica do

terceiro termo incluso: a solução de um problema só pode ser encontrada pela

conciliação temporária dos contraditórios, ligando-os a um nível de Realidade

diferente daquele no qual esses contraditórios se manifestam; 3) reconhecer a

complexidade intrínseca do problema, isto é, a impossibilidade da decomposição

desse problema em partes simples, fundamentais. Em outras palavras, substituir a

noção de “fundamento” pela coerência deste mundo multidimensional e

multireferencial” 1 .

Esses seriam alguns dos fenômenos que situam o problema da

transdisciplinaridade e que desafiam, ao mesmo tempo, a elaborar uma nova

epistemologia. Vejamos, agora, como evoluiu historicamente o movimento

transdisciplinar.

3.3.2 - O movimento para a transdisciplinaridade

Descreveremos, brevemente, os principais momentos que apontam para um

pensamento transdisciplinar.

1 - O momento da predisciplinaridade e a disciplinaridade: o todo e a fragmentação

Este momento predisciplinar caracteriza-se pela unidade entre sujeito e objeto,

entre exterior e interior. Aqui não há distinção entre arte, conhecimento religioso,

científico e filosófico. Porém, com o surgimento do paradigma newtoniano-cartesiano

temos uma visão mecanicista do mundo, o predomínio do racionalismo científico e a

conseqüência é a fragementação do conhecimento em disciplinas. Do todo

harmonioso passa-se a fragmentação das disciplinas 2.

1. Congresso Internacional de Locarno. Projeto CIRET-UNESCO. Evolução transdisciplinar da

Universidade. Locarno, Suíça, 30 de abril a 2 de maio de 1997, p. 7-8. Nas próximas citações

usaremos a abreviação CIL. 2 . P. Weil et alii. op. cit. p. 15-16.

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2 - O momento da multi ou pluridisciplinaridade: o problema do objeto

No século XVII Descartes propõe um método científico que originará as

várias disciplinas. Porém, em pouco tempo percebe-se que a complexidade dos

fenômenos exige a justaposição dos conhecimentos das disciplinas que se chamará na

metade do século XX de pluridisciplinaridade. “A pluridisciplinaridade diz respeito

ao estudo de um objeto de uma única disciplina por diversas disciplinas ao mesmo

tempo. A abordagem pluridisciplinar ultrapassa as disciplinas, mas sua finalidade

permanece inscrita no quadro da pesquisa disciplinar 1.

3 - O momento da interdisciplinaridade: o problema do método

A interdisciplinaridade diz respeito à transferência dos métodos de uma

disciplina à outra. É possível distinguir três graus de interdisciplinaridade: a) o grau

da aplicação é, por exemplo, quando os métodos da física nuclear são transferidos à

medicina, possibilitando novos tratamentos do câncer; b) o grau epistemológico é,

por exemplo, a transferência dos métodos da lógica formal ao campo do Direito,

gerando novas análises na epistemologia do Direito; c) o grau da geração de novas

disciplinas é, por exemplo, a transferência dos métodos da matemática ao campo da

física gerando a física-matemática.

Como a pluridisciplinaridade, a interdisciplinaridade ultrapassa as disciplinas,

porém, sua finalidade também permanece inscrita na pesquisa disciplinar.

4 - O momento da transdisciplinaridade: a razão transversal

Etimologicamente, “a transdisciplinaridade, como o prefixo “trans” o indica,

diz respeito ao que está ao mesmo tempo entre as disciplinas, através das diferentes

disciplinas e além de toda disciplina. Sua finalidade é a compreensão do mundo atual,

e um dos imperativos para isso é a unidade do conhecimento” 1

.

Os três pilares da transdisciplinaridade são os níveis da realidade - a pesquisa

disciplinar restringe-se na melhor das hipóteses, a um único e mesmo nível da

realidade -, a lógica do terceiro termo incluso e a complexidade. A

1 . Cf. CIL, p. 3.

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transdisciplinaridade não é uma nova disciplina, nem uma superdisciplina, mas ela

alimenta-se da pesquisa disciplinar, que, por sua vez, é clareada de uma maneira nova

e fecunda pelo conhecimento transdisciplinar. Nesse sentido, as pesquisas

disciplinares e transdisciplinares não são antagônicas, mas complementares. No

entanto, a transdisciplinaridade é radicalmente distinta da pluridisciplinaridade quanto

a sua finalidade, pois a compreensão do mundo atual não pode ser totalmente

alcançada dentro do quadro de referência da pesquisa disciplinar. Se a

transdisciplinaridade é freqüentemente confundida com a interdisciplinaridade e com

a pluridisciplinaridade, isso se explica em grande parte pelo fato de que todas as três

ultrapassam as disciplinas. Enfim, “a disciplinaridade, a pluridisciplinaridade, a

interdisciplinaridade e a transdisciplinaridade são as quatro flechas de um único arco:

o do conhecimento” 1.

A partir de 1950 a pluridisciplinaridade e a interdisciplinaridade entraram

timidamente em algumas universidades. A transdisciplinaridade está, porém, quase

totalmente, ausente das estruturas e programas da Universidade. Nos EUA, por

exemplo, os poucos departamentos pluridisciplinares e interdisciplinares em várias

universidades conduziram na maioria dos casos, a uma simples justaposição passiva e

não interativa entre professores e estudantes. Esse impasse é compreensível, pois é

justamente a transdisciplinaridade, segundo o Congresso Internacional de Locarno, a

condição sine qua non de uma interação fecunda e duradoura entre a disciplinaridade,

a pluridisciplinaridade e a interdisciplinaridade. Sua ausência equivale à ausência de

orientação, à falta de direção das abordagens que ultrapassam as fronteiras

disciplinares. Vejamos, por isso, como evoluiu o conceito de transdisciplinaridade.

A fonte do conceito de transdisciplinaridade encontra-se em Niels Bohr no

artigo - 1955 - sobre a unidade do conhecimento. O termo não aparece aí, mas o

conceito está subjacente: “O problema da unidade do conhecimneto está intimamente

ligado a nossa busca de uma compreensão universal, destinada a elevar a cultura

2. Cf. CIL, p. 3-4.

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humana” 2. Esta atitude geral “caracterizada como um esforço para compreender

harmoniosamente os aspectos sempre mais vastos de nossa situação”, foi provocada

pela revolução quântica. Levando em conta isto, podemos constatar o seguinte, a

propósito do uso do termo transdisciplinar:

a) Jean Piaget : Segundo Basarab Nicolescu foi Jean Piaget quem usou pela primeira

vez o termo “transdiciplinar”, em 1970, no Colóquio sobre a

interdisciplinaridade realizado em Nice/França. “Enfim, diz Piaget, no estágio

das relações interdisciplinares, podemos esperar o aparecimento de um estágio

superior que seria “transdisciplinar”, que não se contentaria em atingir as

interações ou reciprocidades entre pesquisas especializadas, mas situaria essas

ligações no interior de um sistema total sem fronteiras estáveis entre as

disciplinas” 3.

b) Veneza: Em 7 de março de 1986 o Comunicado final do colóquio de Veneza que

tratou da “ciência face aos confins do conhecimento: o prólogo de nosso passado

cultural” afirma que “os desafios contemporâneos exigem a criação de órgãos de

orientação e mesmo de decisão de natureza pluri- e transdisciplinar” 4.

c) Portugal: De 2 a 6 de novembro de 1994 no Convento de Arrábida, em Portugal,

ocorreu o 1º Congresso Mundial da Transdisciplinaridade que lançou a Carta da

Transdisciplinaridade 5. Trata-se de um manifesto que torna pública a

transdisciplinaridade.

d) CIRET (Centre International de Recherches et Études Transdisciplinaires): De 30

de abril a 2 de maio de 1997, realizou-se em Locarno/Suiça o Congresso

Internacional que tinha por tema: Que Universidade para o amanhã? Em busca

de uma evolução transdisciplinar da Universidade. Neste Congresso elaborou-se

1 .Cf. CIL, p. 4.

2 Niels Bohr. The Unity of Knowledge. New York/Doubleday: 1955. Trad. Francesa. Physique et

connaissance humaine. Paris/Gallimard: 1991, p. 249-273. 3 . J. Piaget. Colloque sur l’interdisciplinarité. Nice: OCDE , 1970. Citado por Basarab Nicolescu:

Sciences et Tradition. Paris, Troisième Millénaire, nº 23, 1992, p. 83. In: P. Weil et alii. op. cit. p. 31. 4 . Declarção de Veneza. Veneza: 1986. Cf. Internet.

5 . CIL, p. 4.

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o Projeto CIRET-UNESCO tendo o seguinte título: Evolução transdisciplinar da

Universidade. Este projeto foi elaborado pelo CIRET em colaboração com a

UNESCO desde 1995 através de um grupo de direção internacional e

transdisciplinar e com a realização de uma jornada de estudo em 1996. Com este

Congresso o conceito da transdisciplinaridade torna-se mais claro e definido e

estrutura-se um projeto transdisciplinar.

Dentro do movimento transdisciplinar encontramos várias tendências que

destacam um enfoque, uma área ou ainda uma racionalidade. Restringimo-nos,

porém, a apresentar o enfoque holístico e a razão transversal que parecem se tornar,

atualmente, hegemônicas.

a) O enfoque holístico 1: “É absolutamente fundamental que se tenha uma visão

global. A totalidade está sempre presente. O passo fundamental da mecânica

quântica, revelando o comportamento interativo das particulas, é reconhecido

como a essência do universo. A única possibilidade de conhecer a totalidade é

adotar um enfoque holístico [ítalico nosso] indo além das disciplinas,

transcendendo objetos e métodos disciplinares. Isto é a transdisciplinaridade 2”

D‟Ambrosio reconhece o holismo como um enfoque dentro do momento

transdisciplinar. P. Weil afirma que “o novo paradigma holístico consiste em

encontrar axiomas comuns entre a ciência e a tradição, principalmente nos seus

aspectos experiencial e transpessoal. E ao mesmo tempo é a procura de uma

axiomática transdisciplinar 3. Como vemos o enfoque holístico propõe ir além do

objeto e do método, acentuando a busca de axiomas comuns entre a tradição e a

ciência para construir, por sua vez, os axiomas transdisciplinares .

1 . P. Weil assim define a abordagem holística: “De um lado, holístico implica uma visão resultante de

uma experiência, que, por sua vez, é geralmente o resultado de uma combinação de holopráxis ou

prática experiencial com o estudo intelectual, ou holologia, de um enfoque analítico e sintético, de uma

mobilização das funções ligadas ao cérebro direito e esquerdo e da sua sinergia, de um equilíbrio entre

as quatro funções psíquicas, ou seja, a sensação, o sentimento, a razão e a intuição. Chamamos a essa

conjugação de „abordagem holística‟”. 2 . Id. P. Weil et alii. op. cit. p. 38.

3 . Id. P. Weil et alii. p. 40

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b) A razão transversal: A Declaração de Veneza - 1986 - já anuncia “a aparição de

uma nova visão da humanidade, até mesmo de um novo racionalismo”, ou seja,

de uma nova razão. O Projeto CIRET-UNESCO define o projeto como sendo

transversal: “O presente projeto estratégico transversal [itálico nosso] Evolução

transdisciplianr da Universidade” 1. Trata-se de fato de uma nova racionalidade

que pode ser qualificada de transversal. O que é uma razão transversal?

1º) O uso da palavra transversalidade (enfoques transversais, temas

transversais) penetrou no vocabulário de reformas educacionais da Espanha e de

alguns países latino-americanos, incluído o Brasil. Nos Parâmetros Curriculares

Nacionais do MEC, o conceito se torna peculiar, porque apenas os temas ético-

humanistas levam o nome de Temas transversais.

2º) Qual é o tipo de racionalidade exigida para esse novo contexto

transdisciplinar? Na era dos hipertextos - texto eletrônico, como os da Internet e CD-

ROMs que admite sub-entradas, re-envios e múltiplas conexões - e dos multimeios, a

reconfiguração transdisciplinar dos conteúdos disciplinares exige um novo tipo de

racionalidade: a transversal. “Transversal significa o que perpassa de través ou

obliquamente (rua transversal). O termo provém da geometria. Transversalidade

tornou-se uma das metáforas para não-linearidade. Noção próxima a

transdisciplinaridade. Razão transversal é o nome que o filósofo alemão Wolfgang

Welsch dá ao tipo contemporâneo de razão que não se organiza segundo esquemas

hierárquicos, mas de forma transversal, cbomo q que possibilitam os hipertextos, a

Internet, o CD-ROM, os multimeios. Trata-se de uma lógica do transitar/transmigrar;

um novo modo de pensar e agir segundo uma racionalidade-em-trânsito. Mike

Sandbothe, filósofo alemão, fala das três características da era dos multimeios e da

1 . CIL, p. 1.

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Internet: hipertextualidade, interatividade, transversalidade. Acrescentemos

modestamente uma sílaba: transversatilidade” 1.

No entender de H. Assmann “a razão linear tinha que ser abalada em seu

ponto de origem: a linearidade de Pitágoras projetada na matemática e na geometria.

A razão linear é, literalmente, uma lógica de uma única superfície, ou seja, ela é

superficial” 2. Por isso é necessário a afirmação da razão transversal. No entender

Welsch a razão e a lógica transversal se caracterizam pelo seguinte:

- “a constituição bio-orgânica e simbólico-lingüística da racionalidade se

caracteriza pela inclusão de parâmetros desordenadores intransponíveis;

- a razão é capaz, em princípio, de desconstruir/reconstruir e descrever com

precisão esse parâmetros caóticos;

- somente quando a razão consegue penetrar e entregar-se produtivamente aos

entrelaçamentos insconscientes da racionalidade ela passa a ter condições para

enfrentar adequadamente a solução dos problemas da atualidade” 3.

3.3.3 - O horizonte transdisciplinar

Por que pensar transdisciplinarmente? Quais são os objetivos deste

movimento? A razão transdisciplinar tem por finalidade as seguintes metas:

a) No entender de, H. Assmann, a transdisciplinaridade visa melhorar as disciplinas;

b) Fazer a Universidade evoluir para a sua missão, isto é, o estudo do universal;

c) A idéia central do projeto é a de que há uma relação direta entre paz e

transdisciplinaridade;

d) Considerar a Universidade não apenas como lugar de aprendizado de

conhecimentos, mas também como lugar de cultura, de arte, de espiritualidade e

de vida;

1 . H. Assmann. op. cit. p. 183.

2 . Id. p. 103-104.

3 . Id. p. 101.

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e) Rigor, tolerância e abertura são três objetivos da transdisciplinaridade; f) A transdisciplinaridade não é neutra, pois ela opta pelo sentido. Uma educação

neutra e objetiva não passa de um fantasma que nos foi legado pela ideologia

cientificista. A transdisciplinaridade tem como ambição a unificação, em suas

diferenças, do objeto e do sujeito: o sujeito-conhecedor faz parte integrante da

Natureza e do conheicmento; g) A vocação transdisciplinar da Universidade está inscrita na sua própria natureza:

o estudo do universal é inseparável da relação entre os campos disciplinares,

buscando o que se encontra entre, através e além de todos os campos

disciplinares 1.

Para concluir este estudo desejamos citar uma experiência que a USP irá

implementar a partir de 2002. Trata-se de um Curso de Humanidades. O projeto é

pioneiro, sendo a característica fundamental a interdisciplinaridade.

O curso de Humanidades não habilitará para nenhuma profissão no mercado,

mas somente servirá para continuar a fazer pesquisa depois da graduação. O que ele

oferecerá de novo é um bom conhecimento de filosofia, literatura e artes. Isto servirá

para a formação de futuros pesquisadores em ciências humanas e sociais. “A filosofia

ensina a ler com rigor os conceitos, a literatura e as artes a lidar com as imagens e os

sons. A cultura assim será a base para chegar a pesquisas criativas” 2. No entender, de

um dos idealizadores, o Prof. Renato Janine Ribeiro, o curso destina-se para os que

têm uma curiosidade intensa.

Nós cremos que projetos como estes apontam para a construção de um cenário

transdisciplinar capaz de abrir horizontes para uma nova epistemologia.

1 . CIL, p. 13.

2 . + Personagem. Folha de São Paulo. Caderno MAIS. São Paulo, 24.06.2001, p. 3.