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    Textos / Textos Gerais 

    MUITO ALÉM DA INTERNET[Dezembro/2003]

    Umberto Eco

    Em palestra na Biblioteca de Alexandria, no Egito, o autor de "O Nome da Rosa" explica por que aexpansão da grande rede não ameaça a existência dos livros

    Temos três tipos de memória. O primeiro é orgânico, que é a memória feita de carne e de

    sangue e administrada pelo nosso cérebro. O segundo é mineral, e, nesse sentido, ahumanidade conheceu dois tipos de memória mineral: milênios atrás, foi essa a memóriarepresentada por tijolos de argila e por obeliscos, muito conhecidos neste país, nos quais aspessoas entalhavam seus textos. Porém esse segundo tipo é também a memória eletrônica doscomputadores de hoje, que tem por base o silício.

    Conhecemos também outro tipo de memória, a memória vegetal, representada pelos primeirospapiros, de novo muito conhecidos neste país, e posteriormente pelos livros, feitos de papel.Permitam que eu desconsidere o fato de que, em certo momento, o velino dos primeiros códicesfoi de origem orgânica e o fato de que o primeiro papel foi feito de trapos, e não de madeira.Permitam que, no interesse da simplicidade, eu fale em memória vegetal para referir-me aoslivros.

    Este local foi, no passado, e será, no futuro, dedicado à conservação de livros; portanto é e seráum templo da memória vegetal. As bibliotecas, ao longo dos séculos, têm sido o meio maisimportante de conservar nosso saber coletivo. Foram e são ainda uma espécie de cérebrouniversal onde podemos reaver o que esquecemos e o que ainda não sabemos.

    Se me permitirem usar essa metáfora, uma biblioteca é a melhor imitação possível, por meioshumanos, de uma mente divina, onde o universo inteiro é visto e compreendido ao mesmotempo. Uma pessoa capaz de guardar em sua mente a informação suprida por uma grandebiblioteca emularia, de certo modo, com a mente de Deus. Em outras palavras, inventamosbibliotecas porque sabemos que não possuímos poderes divinos, mas tentamos ao máximoimitá-los.

    Construir, ou melhor, reconstruir hoje uma das mais célebres bibliotecas do mundo pode soarcomo um desafio, uma provocação. Acontece, não raro, que em artigos de jornais ou emensaios universitários alguns autores, diante da nova era do computador e da internet, serefiram à possível "morte dos livros". Porém, se os livros estiverem em via de desaparecer,como ocorreu com os obeliscos ou com os tijolos de argila das civilizações antigas, não seráesse um bom motivo para abolir as bibliotecas. Ao contrário, devem sobreviver como museusque guardam as descobertas do passado, assim como guardamos a Pedra de Rosetta [bloco debasalto negro, com inscrições em egípcio e grego, descoberto pelos soldados de Napoleão, em1799, a 56 km de Alexandria e que se tornaria fundamental para a compreensão da civilizaçãoegípcia] num museu porque já não estamos acostumados a entalhar nossos documentos emsuperfícies minerais.

    Mas o meu elogio às bibliotecas será um pouco mais otimista. Pertenço àqueles que aindaacreditam que livros impressos têm um futuro e que todos os receios "à propos" de seudesaparecimento são apenas o exemplo derradeiro de outros medos ou de terrores milenaristasem torno do fim de alguma coisa, inclusive do mundo.

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    Em muitas entrevistas, fui obrigado a responder perguntas como: "Os novos meios eletrônicostornarão os livros obsoletos? Será que a internet tornará a literatura obsoleta? A civilizaçãohipertextual eliminará a própria idéia de autoria?". Como podemos ver, se tivermos uma mentenormal e bem equilibrada, essas são perguntas diferentes e, levando em conta o tomapreensivo em que são formuladas, podemos pensar que o entrevistador se sentiriareconfortado ao respondermos: "Não, fique tranquilo, está tudo bem". Engano.

    Se dissermos a essas pessoas que os livros, a literatura e a autoria não vão desaparecer, elasse mostrarão desesperadas. Mas então, onde está o furo de reportagem? Publicar a notícia de

    que um vencedor do Prêmio Nobel morreu é notícia; dizer que ele está vivo e passa bem nãointeressa a ninguém, salvo a ele mesmo, suponho.

    O que pretendo fazer, hoje, é tentar desemaranhar uma mixórdia de receios entrelaçadosacerca de problemas diversos. Clarear nossas idéias acerca desses problemas diversos podetambém nos ajudar a compreender melhor o que, em geral, entendemos por livro, texto,literatura, interpretação e assim por diante. Desse modo, veremos como, a partir de umapergunta tola, se podem produzir muitas respostas sábias, e essa provavelmente é a funçãocultural de entrevistas ingênuas.

    Comecemos com uma história egípcia, muito embora contada por um grego. Segundo Platão,em "Fedro", quando Hermes -ou Thot, o suposto inventor da escrita- apresentou sua invenção

    para o faraó Thamus, este louvou tal técnica inaudita, que haveria de permitir aos sereshumanos recordarem aquilo que, de outro modo, esqueceriam.

    Mas Thamus não ficou inteiramente satisfeito. "Meu habilidoso Thot", disse ele, "a memória éum dom importante que se deve manter vivo mediante um exercício contínuo. Graças a suainvenção, as pessoas não serão mais obrigadas a exercitar a memória. Lembrarão coisas nãoem razão de um esforço interior, mas apenas em virtude de um expediente exterior".

    Platão contra a escrita

    Podemos compreender a preocupação de Thamus. Escrever, como qualquer nova invençãotecnológica, entorpeceria a faculdade humana que almejava substituir e ampliar. Escrever eraperigoso porque reduzia o poder da mente ao fornecer aos seres humanos uma almapetrificada, uma caricatura da mente, uma memória mineral.

    O texto de Platão é irônico, está claro. Platão escrevia sua tese contra a escrita. Mas tambémfingia que seu discurso era proferido por Sócrates, que não escrevia (como não publicava,sucumbiu no curso da batalha acadêmica, cujo lema é: publicar ou morrer). Hoje, ninguémcompartilha as preocupações de Thamus por duas razões muito simples. Primeiramente,sabemos que livros não são um meio de fazer outra pessoa pensar em nosso lugar; aocontrário, são máquinas que suscitam outros pensamentos. Só depois da invenção da escrita, foipossível escrever uma obra-prima de memória espontânea como "Em Busca do TempoPerdido".

    Em segundo lugar, se de vez em quando as pessoas precisavam exercitar a memória paralembrar coisas, após a invenção da escrita tiveram também de exercitar a memória paralembrar dos livros. Livros desafiam e aprimoram a memória; não a entorpecem. No entanto ofaraó dava testemunho de um temor eterno: o temor de que uma nova proeza tecnológicapudesse matar algo que consideramos precioso e frutífero.

    Usei o verbo matar de propósito porque, cerca de 14 séculos mais tarde, Victor Hugo, em seuromance "Nossa Senhora de Paris", narrou a história de um padre, Claude Frollo, que olhavatristonho para as torres da sua catedral. A história de "Nossa Senhora de Paris" se passa noséculo 15, após a invenção da imprensa. Antes disso, os manuscritos estavam reservados a umaelite restrita de pessoas alfabetizadas e, para ensinar às massas as histórias da Bíblia, a vida deCristo e dos santos, os princípios morais, até mesmo os feitos da história nacional ou as noçõesmais elementares de geografia e de ciências naturais (a natureza de povos desconhecidos e asvirtudes de pedras e de ervas), só se podia contar com as imagens de uma catedral. Umacatedral medieval era uma espécie de programa de tevê permanente e imutável, destinado atransmitir às pessoas tudo o que era indispensável para a sua vida cotidiana, assim como para asua salvação eterna.

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     Agora, porém, Frollo tem sobre a sua mesa um livro impresso e ele sussurra: "Ceci tuera cela" -isto vai matar aquilo ou, em outras palavras, o livro vai matar a catedral, o alfabeto vai matar asimagens. O livro vai desviar as pessoas de seus valores mais importantes, incentivar informaçãosupérflua, a livre interpretação das Escrituras sagradas, uma curiosidade insana.

    Na década de 1960, Marshall McLuhan escreveu seu livro "A Galáxia de Gutemberg", no qualdeclarava que a maneira linear de pensar, respaldada pela invenção da imprensa, estava em viade ser substituída por um modo mais global de percepção e de compreensão, por meio deimagens de TV ou de outros tipos de aparelho eletrônico. Se não McLuhan, certamente muitos

    de seus leitores apontaram o dedo para a tela da TV e depois para o livro impresso e disseram:"Isto vai matar aquilo".

    Se ainda estivesse entre nós, hoje, McLuhan seria o primeiro a escrever algo como "Gutembergcontra-ataca". Sem dúvida, um computador é um instrumento por meio do qual é possívelproduzir e editar imagens, sem dúvida as instruções são fornecidas por ícones; mas tambémnão há dúvida de que o computador se tornou, acima de tudo, um instrumento alfabético. Emsua tela, correm palavras e linhas escritas e, para usar um computador, é preciso saber ler eescrever.

    Galáxias de Gutemberg

    Há diferenças entre a primeira galáxia de Gutemberg e a segunda? Muitas. Primeiro, só osprocessadores de texto arqueológicos do início da década de 80 ofereciam um tipo decomunicação escrita linear. Hoje, os computadores não são mais lineares, pois apresentam umaestrutura hipertextual. Curiosamente, o computador nasceu como uma máquina de Turing,capaz de dar um passo de cada vez, e, de fato, nas profundezas da máquina, a linguagem aindaopera dessa maneira, por uma lógica binária, de zero-um.

    Porém o produto da máquina não é mais linear: é uma explosão de fogos de artifício semióticos.Seu modelo é menos uma linha reta do que uma verdadeira galáxia, onde todos podem captarnexos inesperados entre estrelas diferentes para formar uma nova imagem celestial emqualquer novo ponto de navegação.

    Contudo é exatamente nesse ponto que a nossa atividade de desemaranhar deve ter início,porque, por estrutura hipertextual, entendemos em geral dois fenômenos muito distintos.Primeiro, há o texto hipertextual. Num livro tradicional, deve-se ler da esquerda para a direita(ou da direita para a esquerda, segundo culturas diversas) de um modo linear. Pode-seobviamente saltar páginas, pode-se, depois de chegar à página 300, voltar para verificar oureler algo na página 10, mas isso implica trabalho físico.

    Em contraste, um texto hipertextual é uma rede multidimensional ou um labirinto em que cadaponto ou nó pode ser potencialmente ligado a qualquer outro nó. Em segundo lugar, há ohipertexto sistêmico. A "www" é a Grande Mãe de Todos os Hipertextos, uma biblioteca mundialonde podemos ou poderemos, em breve, pegar todos os livros que quisermos. A internet é osistema geral de todos os hipertextos existentes.

    Tal diferença entre texto e sistema é imensamente importante e devemos voltar a ela. Por ora,deixem-me dar cabo da pergunta mais ingênua que se faz frequentemente, na qual essadiferença ainda não está tão nítida. Mas é ao responder essa primeira pergunta que poderemosesclarecer nossa questão posterior. A pergunta ingênua é: "Os disquetes hipertextuais, ainternet ou os sistemas de multimídia tornaram os livros obsoletos?".

    Com essa pergunta, chegamos ao capítulo final na nossa história isto-vai-matar-aquilo. Masmesmo essa pergunta é confusa, pois pode ser formulada de duas maneiras: (a) os livrosdesaparecerão como objetos físicos? e (b) os livros desaparecerão como objetos virtuais?

    Permitam-me responder à primeira pergunta. Mesmo após a invenção da imprensa, os livrosnunca foram o único instrumento para adquirir informação. Havia também pinturas, imagens

    populares impressas, lições orais e assim por diante. Simplesmente, os livros provaram ser oinstrumento mais adequado para transmitir informação. Existem dois tipos de livros: os que sãopara ler e os que são para consultar. No tocante aos livros para ler, a maneira normal de ler é aque eu chamaria de "maneira de história de detetive". Começa-se da página um, onde o autorconta que um crime foi cometido, seguem-se todas as trilhas do processo investigativo até o fim

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    e se descobre, afinal, que o culpado era o mordomo.

    Fim do livro e fim da experiência de leitura. Notem que o mesmo ocorre até quando se lê,digamos, um tratado de filosofia. O autor quer que abramos o livro na primeira página, sigamosa série de questões que propõe e vejamos como alcança determinadas conclusões finais. Semdúvida, os estudiosos podem reler tal livro saltando de uma página para outra, na tentativa deisolar um possível nexo entre uma afirmação no primeiro capítulo e uma outra, no último.Podem também resolver isolar, digamos, cada ocorrência da palavra "idéia" numa determinadaobra, saltando, desse modo, centenas de páginas a fim de concentrar a atenção apenas em

    trechos que tratem dessa noção. Porém essas são maneiras de ler que um leigo considerariaantinaturais.

     Além disso, há os livros de consulta, como manuais e enciclopédias. As enciclopédias sãoconcebidas com o propósito de serem consultadas e jamais lidas da primeira à última página.Uma pessoa que lesse a "Enciclopédia Britânica" toda noite antes de dormir, da primeira àúltima página, seria um personagem cômico. Em geral, pega-se um volume de uma enciclopédiapara saber ou lembrar quando Napoleão morreu ou qual é a fórmula química do ácido sulfúrico.Os estudiosos usam a enciclopédia de um modo mais sofisticado.

    Napoleão e Kant

    Por exemplo, se quisesse saber se era possível ou não Napoleão encontrar-se com Kant, euteria de pegar o volume K e o volume N da minha enciclopédia: descubro que Napoleão nasceuem 1769 e morreu em 1821, Kant nasceu em 1724 e morreu em 1804, quando Napoleão já eraimperador. Portanto não seria impossível que os dois se encontrassem. Para confirmá-lo, euprovavelmente teria de consultar uma biografia de Kant ou uma de Napoleão, mas em umacurta biografia de Napoleão, que encontrou tantas pessoas ao longo da vida, um possívelencontro com Kant pode ser relegado, ao passo que, numa biografia de Kant, um encontro comNapoleão seria registrado. Em resumo, tenho de folhear muitos livros em muitas prateleiras deminha biblioteca; tenho de tomar notas a fim de, mais tarde, comparar os dados que coligi.Tudo isso me vai custar um árduo esforço físico.

    De outro lado, no entanto, com o hipertexto, posso navegar por toda a rede-ciclopédia. Posso

    ligar um fato registrado no início a uma série de fatos disseminados ao longo de todo o texto;posso comparar o início com o fim; posso solicitar uma lista de todas palavras que começamcom a letra A; posso pedir todos os trechos em que o nome de Napoleão esteja ligado ao deKant; posso comparar as datas de seus nascimentos e de suas mortes -em resumo, posso fazermeu trabalho em poucos segundos ou minutos.

    Os hipertextos, sem dúvida, tornarão obsoletos os manuais e as enciclopédias. Ontem, erapossível ter uma enciclopédia inteira em CD-ROM; hoje, é possível ter a enciclopédia ligada emlinha, com a vantagem de que isso permite o cruzamento de referências e a recuperação não-linear de informação. Todos os CDs e mais o computador ocuparão um quinto do espaçoocupado por uma enciclopédia impressa.

    Uma enciclopédia impressa não pode ser facilmente transportada, como ocorre com um CD-ROM, e não pode ser facilmente atualizada. As prateleiras hoje ocupadas em minha casa e nasbibliotecas públicas por metros e metros de enciclopédias poderão ser eliminadas num futuropróximo e não haverá razão para lamentar o seu desaparecimento. Lembremos que, para muitagente, uma enciclopédia de muitos volumes é um sonho impossível, não, ou não só, por causado preço dos volumes, mas em razão do preço da parede onde os volumes são dispostos emprateleiras.

    Pessoalmente, tendo começado minha atividade acadêmica como um medievalista, eu gostariade ter em casa os 221 volumes da "Patrologia Latina", de Migne. Isso é muito caro, mas eupoderia pagar. O que não poderia pagar era um outro apartamento onde depositar os 221grossos volumes, sem ser obrigado a me livrar de pelo menos outros 500 livros de tamanho

    normal.Porém pode um disco hipertextual ou a "www" substituir os livros que são feitos para ler? Denovo temos de decidir se a pergunta se refere a livros como objetos físicos ou virtuais. De novo,tratemos primeiro do problema físico.

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    Boas notícias: os livros continuarão indispensáveis, não só para a literatura, mas também paraquaisquer circunstâncias em que é preciso ler com cuidado, não só com o intuito de receberinformações, mas também de especular e refletir sobre elas. Ler uma tela de computador não éo mesmo que ler um livro. Pensem no processo de aprendizagem de um novo programa decomputador. Em geral, o programa pode apresentar na tela todas as instruções necessárias.Mas, em geral, os usuários que querem aprender a usar o programa ou imprimem as instruçõese as lêem como num livro ou compram um manual impresso. É possível imaginar um programavisual que explique muito bem como imprimir e encadernar um livro, mas para obter instruçõessobre como escrever ou como usar um programa de computador precisamos de um manual

    impresso.

    Nova forma de letramento

     Após passar 12 horas diante de uma mesa de computador, meus olhos parecem duas bolas detênis e sinto a necessidade de me recostar confortavelmente numa poltrona e ler um jornal outalvez um bom poema. Portanto creio que os computadores estão difundindo uma nova formade letramento, mas são incapazes de satisfazer todas as necessidades intelectuais queestimulam. Por favor, recordem que as antigas civilizações hebraica e árabe tinham por baseum livro, e isso não foi independente da circunstância de terem sido civilizações nômades.

    Os antigos egípcios podiam entalhar seus registros em obeliscos de pedra; Moisés e Maomé não

    podiam. Quando se pretende atravessar o mar Vermelho ou ir da península Arábica até aEspanha, um rolo de pergaminho é um instrumento mais prático para registrar e transportar aBíblia ou o Corão do que um obelisco. Por isso essas duas civilizações alicerçadas em um livroprivilegiaram a escrita em detrimento das imagens. Mas os livros também têm outra vantagemem relação aos computadores. Mesmo quando impressos no moderno papel ácido que duraapenas 70 anos, aproximadamente, os livros são mais duráveis do que o suporte magnético.

     Além disso, não são afetados por escassez de energia ou por blecautes e são mais resistentes aimpactos.

     Até agora, os livros representam o modo mais barato, flexível e prático de transportarinformação a um custo muito baixo. A comunicação por computador viaja à nossa frente; oslivros viajam conosco e na nossa velocidade. Se somos náufragos numa ilha deserta, onde não

    temos a opção de ligar um computador na tomada, um livro ainda é um instrumento de muitavalia. Mesmo que nosso computador tenha bateria de energia solar, não é fácil ler a tela deitadonuma rede. Os livros são ainda os melhores companheiros para um naufrágio ou para os diasseguintes. Livros pertencem a essa classe de instrumentos, que, uma vez inventados, não foramaprimorados porque já estão bons o bastante, como o martelo, a faca, a colher ou a tesoura.

    Fim das livrarias

    Duas invenções novas, porém, estão prestes a ser exploradas industrialmente. Uma é aimpressão por encomenda: após vasculhar os catálogos de várias bibliotecas ou editoras, umleitor pode selecionar o livro desejado, o operador apertará um botão e a máquina imprimirá eencadernará um único exemplar usando a fonte que o leitor desejar. Sem dúvida, isso vai

    modificar todo o mercado editorial. Provavelmente, eliminará as livrarias, mas não os livros, enão eliminará as bibliotecas, o único local onde os livros podem ser encontrados para que oleitor os examine e os reimprima. Em termos mais simples: todos os livros serão confeccionadossegundo o desejo do comprador, como acontecia com os antigos manuscritos.

     A segunda invenção é o livro eletrônico, em que, introduzindo um microdisquete na lombada dolivro ou ligando-o à internet, podemos ter um livro estampado à nossa frente. Mesmo nessecaso, contudo, ainda teremos um livro, embora tão diferente de nossos livros atuais quantoestes diferem dos antigos manuscritos em pergaminho e quanto o primeiro fólio de Shakespearede 1623 difere da mais recente edição da editora Penguin. Porém, até agora, os livroseletrônicos não se mostraram comercialmente viáveis como seus inventores esperavam.Disseram-me que certos hackers, que cresceram diante de computadores e não têm o costume

    de folhear livros, leram afinal grandes obras-primas da literatura na forma de livros eletrônicos,mas creio que tal fenômeno permanece muito restrito.

    Em geral, as pessoas parecem preferir o modo tradicional de ler um poema ou um romance empapel impresso. Provavelmente, livros eletrônicos se revelarão úteis para consultar informações,como ocorre com dicionários ou documentos específicos. Provavelmente ajudarão estudantes

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    obrigados a levar consigo dez livros ou mais quando vão à escola, mas não substituirão outrostipos de livro, que gostamos de ler na cama, antes de dormir, por exemplo.

    De fato, há numerosas criações tecnológicas que não tornaram obsoletas as anteriores. Carroscorrem mais do que bicicletas, mas não tornaram obsoletas as bicicletas, e nenhumaprimoramento tecnológico pode tornar uma bicicleta melhor do que foi antes. A idéia de queuma nova tecnologia abole uma tecnologia anterior é, com frequência, demasiado simplista.

     Após a invenção da fotografia, os pintores não mais se sentiram obrigados a servir de artíficescuja tarefa era reproduzir a realidade, mas isso não significa que a invenção de Daguerre

    apenas estimulou a pintura abstrata.Há toda uma tradição na pintura moderna que não poderia ter existido sem os modelosfotográficos: pensem, por exemplo, no hiper-realismo. Aqui, a realidade é vista pelo olho dopintor através da lente fotográfica. Isso significa que, na história da cultura, nunca houve umcaso em que uma coisa simplesmente tenha matado uma outra coisa. Em vez disso, uma novainvenção sempre alterou profundamente uma outra, mais antiga.

    Para concluir essa questão da impertinência da idéia do desaparecimento físico dos livros,digamos que às vezes esse temor não se refere apenas a livros, mas ao material impresso emgeral. Infelizmente, se porventura alguém teve a esperança de que os computadores esobretudo os processadores de texto contribuiriam para salvar árvores, foi otimismo ingênuo. Ao

    contrário, os computadores fomentam a produção de material impresso. O computador crianovas modalidades de produção e difusão de documentos impressos. Para reler um texto ecorrigi-lo, se não for apenas uma breve carta, é preciso imprimir, depois reler, em seguidacorrigir no computador e reimprimi-lo. Não creio que alguém possa escrever um texto decentenas de páginas e corrigi-lo sem reimprimi-lo várias vezes.

    Nexo hipertextual

    Hoje, existe uma nova poética hipertextual segundo a qual mesmo um livro feito para ler,mesmo um poema, pode ser convertido em hipertexto. Nesse ponto, estamos passando para apergunta número dois, pois o problema não é mais -ou não é somente- físico, mas concerne àprópria natureza da atividade criativa, do processo da leitura, e, para desemaranhar essa

    mixórdia de perguntas, temos, primeiro, de decidir o que entendemos por nexo hipertextual.Observem que, se a questão dissesse respeito à possibilidade de infinitas ou indefinidasinterpretações da parte do leitor, teria muito pouco a ver com o problema em discussão. Teria aver, isso sim, com a poética de um Joyce, por exemplo, que entendia seu livro "FinnegansWake" como um texto que poderia ser lido por um leitor ideal acometido por uma insônia ideal.Essa questão afeta os limites da interpretação, da leitura desconstrutiva e dasobreinterpretação, a que dediquei outros escritos. Não: o que está em consideração nomomento são casos em que a infinidade - ou pelo menos a abundância indefinida - deinterpretações se deve não só à iniciativa do leitor, mas também à mobilidade física do própriotexto, que é produzido exatamente com o propósito de ser reescrito. A fim de compreendercomo os textos desse tipo podem operar, temos de decidir se o universo textual que estamos

    discutindo é limitado e finito ou limitado, mas virtualmente infinito, ou infinito, mas limitado, ouilimitado e infinito.

    Primeiramente, devemos traçar uma distinção entre sistemas e textos. Um sistema, porexemplo, um sistema linguístico, é a totalidade das possibilidades apresentadas por uma dadalíngua natural. Um conjunto finito de regras gramaticais permite ao falante produzir um númeroinfinito de frases, e toda unidade linguística pode ser interpretada nos termos de outrasunidades linguísticas ou semióticas -uma palavra por uma definição, um evento por um exemplo,um animal ou uma flor por uma imagem e assim por diante.

    Tomemos um dicionário enciclopédico, por exemplo. Ele pode definir um cão como ummamífero, e então temos de ir à entrada "mamífero" e, se lá os mamíferos são definidos como

    animais, temos de procurar a entrada "animal" e assim sucessivamente. Ao mesmo tempo, ascaracterísticas dos cães podem ser exemplificadas por imagens de cães de vários tipos; caso sediga que certo tipo de cão vive na Lapônia, temos de ir à entrada sobre a Lapônia para saberonde fica e assim sucessivamente. O sistema é finito, e uma enciclopédia é fisicamente limitada,mas virtualmente ilimitada, no sentido de podermos circunavegar dentro dela, em espiral, "adinfinitum".

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    Sob esse aspecto, sem dúvida, todos os livros imagináveis estão compreendidos em um bomdicionário e em uma boa gramática. Se estivermos aptos a usar bem um dicionário de inglês,poderemos escrever "Hamlet", e é por mero acaso que outra pessoa o fez antes de nós.Entreguemos um mesmo sistema textual a Shakespeare e a um aluno do ensino fundamental eambos terão as mesmas chances de produzir "Romeu e Julieta".

    Gramáticas, dicionários e enciclopédias são sistemas: ao usá-los, podemos produzir todos ostextos que quisermos. Mas um texto propriamente dito não é um sistema linguístico ouenciclopédico. Um texto dado reduz as possibilidades infinitas ou indefinidas de um sistema para

    criar um universo fechado. Se pronuncio a frase "nesta manhã, comi no desjejum...", porexemplo, o dicionário me permite listar muitas unidades possíveis, contanto que todas sejamorgânicas. Mas, se eu produzo meu texto de forma definida e pronuncio "nesta manhã, comi nodesjejum pão e manteiga", excluí o queijo, o caviar, o pastrami e as maçãs. Um texto castra aspossibilidades infinitas de um sistema. "As Mil e uma Noites" podem ser interpretadas demuitas, muitas maneiras, mas a história se passa no Oriente Médio, e não na Itália, e relata,digamos, as façanhas de Ali Babá ou de Xerazade, e não se refere a um capitão determinado acapturar uma baleia branca nem a um poeta toscano em visita ao inferno, ao purgatório e aoparaíso.

    Tomemos um conto de fadas, como "Chapeuzinho Vermelho". O texto parte de um conjunto depersonagens e situações - uma menina, uma avó, um lobo, uma floresta- e, por meio de uma

    série finita de passos, chega a um desfecho. Sem dúvida, podemos ler o conto como umaalegoria e atribuir diferentes significados morais aos fatos e às ações dos personagens, mas nãopodemos transformar "Chapeuzinho Vermelho" em "Cinderela". "Finnegans Wake" é, semdúvida, aberto a muitas interpretações, mas é certo que nunca nos dará uma demonstração doteorema de Fermat ou uma bibliografia completa de Woody Allen. Isso parece banal, mas oequívoco radical de muitos desconstrucionistas foi crer que podemos fazer o que bementendermos com um texto. Isso é clamorosamente falso.

     Agora suponham que um texto finito e limitado está organizado de forma hipertextual por muitosnexos que ligam determinadas palavras a outras. Num dicionário ou numa enciclopédia, apalavra "lobo" está potencialmente ligada a toda palavra que faça parte da sua possíveldefinição ou descrição (lobo está ligado a animal, a mamífero, a feroz, a pernas etc.). Em

    "Chapeuzinho Vermelho", o lobo pode estar ligado apenas às seções textuais em que ele semanifesta ou em que é explicitamente evocado. A série de nexos possíveis é finita e limitada.Como podem as estratégias hipertextuais ser usadas para "abrir" um texto limitado e finito?

    Commedia dell'arte

     A primeira possibilidade é tornar o texto fisicamente ilimitado, no sentido de poder uma históriaser enriquecida pelas contribuições sucessivas de autores diversos e, num duplo sentido,digamos, de forma bidimensional ou tridimensional. Entendo por isso que em "Chapeuzinho

     Vermelho", por exemplo, o primeiro autor propõe uma situação inicial (a menina entra nafloresta) e colaboradores diversos podem, em seguida, desenvolver a história, um após o outro,por exemplo, ao fazer a menina encontrar Ali Babá, em lugar do lobo, ao fazer ambos entrarem

    num castelo encantado, defrontarem-se com um crocodilo mágico e assim por diante, de sorteque a história pode prosseguir anos a fio.

    Mas o texto também pode ser infinito, no sentido de poderem muitos autores fazer muitasopções diversas, a cada disjunção narrativa, por exemplo, quando a menina entra na floresta.Para um determinado autor, a menina pode encontrar Pinóquio; para outro, ela pode sertransformada num cisne ou entrar nas pirâmides e descobrir o tesouro do filho de Tutancâmon.

    Isso hoje é possível, e podemos encontrar na internet alguns exemplos interessantes de tais jogos literários.

    Nesse ponto, pode-se levantar a questão da sobrevivência da própria noção de autoria e de

    obra de arte, como um conjunto orgânico.E eu quero simplesmente informar à minha platéia que isso já ocorreu no passado, semperturbar nem a autoria nem os conjuntos orgânicos. O primeiro exemplo é o da comediadell'arte italiana, em que, a partir de um "canovacio", ou seja, uma sinopse histórica, cadaapresentação diferia das demais, conforme a disposição e a imaginação dos atores, de sorte

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    que não podemos identificar uma obra única, escrita por um autor único, intitulada "ArlecchinoServo di Due Padroni", e podemos apenas registrar uma série ininterrupta de apresentações,em sua maioria perdidas para sempre e, sem dúvida, diferentes umas das outras.

     Ausência de autoria

    Outro exemplo seria uma sessão de jazz. Podemos crer que houve, outrora, uma execuçãosuperior de "Basin Street Blues", embora só tenha sobrevivido uma execução gravadaposteriormente, mas sabemos que isso é falso. Houve tantas "Basin Street Blues" quantas foram

    suas execuções, e, no futuro, haverá muitas outras, sobre as quais ainda não sabemos, tão logodois ou mais músicos se encontrem outra vez e experimentem sua versão pessoal e inventiva dotema original. O que quero dizer é que já estamos acostumados à idéia da ausência da autoriana arte popular coletiva, em que cada participante acrescenta alguma coisa, com experiênciasde história intermináveis, à semelhança do que ocorre no jazz. Tais maneiras de implementar acriatividade livre são bem-vindas e fazem parte do tecido cultural da sociedade.

    Porém há uma diferença entre implementar a atividade de produzir textos infinitos e ilimitados ea existência de textos já produzidos, que podem, talvez, ser interpretados de infinitas maneiras,mas que são fisicamente limitados. No interior da nossa cultura contemporânea, aceitamos aavaliamos segundo diversos critérios tanto uma nova execução da "Quinta Sinfonia" deBeethoven como uma nova jam session do tema de "Basin Street".

    Nesse sentido, não vejo como o fascinante jogo de produzir histórias coletivas e infinitas pormeio da internet possa nos privar da literatura autoral e da arte em geral. A rigor, marchamosrumo a uma sociedade mais liberada, em que a criatividade livre vai coexistir com ainterpretação de textos já escritos. Eu gosto disso. Mas não podemos dizer que substituímosuma coisa antiga por uma nova. Temos as duas.

    Zapear a tevê é outra atividade que nada tem a ver com assistir a um filme, no sentidotradicional. Esse expediente hipertextual permite que inventemos novos textos que nada têm aver com a nossa capacidade de interpretar textos preexistentes. Tentei desesperadamenteencontrar um exemplo de situação textual ilimitada e finita, mas não consegui. De fato, setemos à disposição um número infinito de elementos, por que nos limitarmos à produção de um

    universo finito?É uma questão teológica, uma espécie de esporte cósmico em que alguém -ou Alguém- poderiaimplementar todo e qualquer desempenho possível, mas prescreve a si mesmo uma regra, ouseja, limita, e engendra um universo pequeno e muito simples. Permitam-me, porém, examinaroutra possibilidade que à primeira vista promete um número infinito de possibilidades com umnúmero finito de elementos, como um sistema semiótico, mas na realidade oferece apenas umailusão de liberdade e de criatividade.

    Um hipertexto pode dar a ilusão de abrir mesmo um texto fechado: uma história de detetivepode ser estruturada de tal modo que seus leitores podem selecionar sua própria solução,decidir no fim se o culpado será o mordomo, o bispo, o detetive, o narrador, o autor ou o leitor.

     Assim, eles podem montar sua própria história pessoal. Tal idéia não é nova. Antes da invençãodos computadores, poetas e narradores sonhavam com um texto totalmente aberto, que osleitores pudessem recompor infinitamente, de várias maneiras. Tal era a idéia de "Le Livre",exaltada por Mallarmé. Raymond Queneau também inventou um algoritmo combinatóriomediante o qual era possível compor, a partir de um conjunto finito de versos, milhões depoemas.

    No início da década de 1960, Max Saporta escreveu e publicou um romance cujas páginaspoderiam ser deslocadas para compor histórias diferentes, e Nanni Balestrini deu a umcomputador uma lista desconexa de versos que a máquina combinava de maneiras diferentespara compor poemas diferentes. Muitos músicos contemporâneos produziram partituras cujamanipulação permite compor diversas execuções musicais.

    Todos esses textos fisicamente móveis dão uma impressão de liberdade absoluta para o leitor,mas é só uma impressão, uma ilusão de liberdade. O mecanismo que permite a alguémproduzir um texto infinito com número finito de elementos existe há milênios e é o alfabeto. Aousar um alfabeto com um número limitado de letras, podem-se produzir bilhões de textos, e éexatamente isso o que tem sido feito desde Homero até hoje.

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    Em contraste, um texto-estímulo que nos oferece, não letras ou palavras, mas sequênciaspredeterminadas de palavras ou de páginas, não nos dá a liberdade de inventar nenhuma coisaque desejarmos. Somos livres apenas para deslocar blocos textuais, em um número muitoelevado de maneiras. Um móbile de Calder é fascinante não porque produz um número infinitode movimentos possíveis, mas porque nele admiramos a regra férrea imposta pelo artista, umavez que o móbile só se movimenta das maneiras que Calder desejava.

    Chapeuzinho come o lobo

    Na última fronteira da textualidade livre, pode haver um texto que começa como um textofechado, digamos, "Chapeuzinho Vermelho" ou "As Mil e uma Noites", e que eu, o leitor, possoalterar conforme minhas inclinações, elaborando dessa forma um segundo texto, que já nãoserá mais o original e cujo autor sou eu mesmo, embora a afirmação da minha autoria sejauma arma contra o conceito de uma autoria definida. A internet está aberta a tais experiências,e a maioria delas pode ser bela e compensadora. Nada nos proíbe de escrever uma história emque Chapeuzinho Vermelho devora o lobo. Nada nos proíbe de unir duas histórias diferentesnuma espécie de colcha de retalhos narrativa. Mas isso nada tem a ver com a verdadeira funçãoe com o encanto profundo dos livros.

    Um livro nos oferece um texto que, ao mesmo tempo em que está aberto a múltiplasinterpretações, nos diz algo que não pode ser modificado. Suponhamos que estejamos lendo

    "Guerra e Paz", de Tolstói: desejamos ardentemente que Natacha não aceite a corte dodetestável canalha Anatóli; desejamos ardentemente que essa pessoa maravilhosa que é opríncipe Andriei não morra e que ele e Natacha vivam juntos para sempre.

    Se tivéssemos "Guerra e Paz" num CD-ROM interativo e hipertextual, poderíamos reescrevernossa própria história segundo o nosso desejo; poderíamos inventar inumeráveis "Guerras ePazes", em que Pierre Besuchov consegue matar Napoleão ou, conforme as tendências dapessoa, Napoleão consegue uma vitória completa contra o general Kutuzóv. Que liberdade, queemocionante! Quaisquer Bouvard ou Pécuchet poderiam se tornar um Flaubert!

    Infelizmente, com um livro já escrito, cujo destino está determinado por uma decisão autoral erepressiva, não podemos fazê-lo. Somos obrigados a aceitar o destino e compreender que

    somos incapazes de alterar a fortuna. Um romance hipertextual e interativo nos permite praticara liberdade e a criatividade, e espero que essa atividade inventiva venha a ser implementadanas escolas do futuro.

    Mas o romance "Guerra e Paz", já escrito em caráter definitivo, não nos põe frente a frente comas possibilidades infinitas da nossa imaginação, mas sim com as leis severas que governam avida e a morte.

    De modo semelhante, em "Os Miseráveis" Victor Hugo nos oferece uma descrição maravilhosada batalha de Waterloo. A Waterloo de Hugo é o oposto da de Stendhal. Em "A Cartuxa deParma", Stendhal vê a batalha pelos olhos do seu herói, que observa de dentro do evento e nãocompreende sua complexidade. Hugo, ao contrário, descreve a batalha do ponto de vista de

    Deus e a acompanha em todos os detalhes, dominando todo o cenário com a sua perspectivanarrativa.

    Hugo não só sabe o que aconteceu como também o que poderia ter acontecido e de fato nãoaconteceu. Sabe que, se Napoleão estivesse ciente de que, além do monte Saint Jean, havia umpenhasco, os couraceiros do general Milhaud não teriam sucumbido aos pés do Exército inglês,mas suas informações na ocasião eram vagas e falhas. Hugo sabe que, se o pastor que guiou ogeneral Von Bulow tivesse sugerido um caminho diferente, o Exército prussiano não teriachegado a tempo de causar a derrota dos franceses.

    Para salvar Napoleão

    De fato, num jogo de RPG, uma pessoa poderia reescrever Waterloo de sorte que Grouchy

    chegasse com seus soldados para salvar Napoleão. Mas a beleza trágica da Waterloo de Hugoreside em que os leitores sentem que as coisas se passam de forma independente de seusdesejos. O encanto da literatura trágica reside em que sentimos que seus heróis poderiam terescapado de seu destino, mas não o conseguem em razão de sua fraqueza, de seu orgulho, desua cegueira. Além disso, Hugo nos diz: "Tamanha vertigem, tamanho engano, tamanha ruína,

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    tamanha queda, que assombrou a história inteira, será algo sem uma causa? Não... Odesaparecimento desse grande homem foi necessário para a vinda do novo século. Alguém, aquem ninguém pode fazer objeções, cuidou do evento ... Deus omitiu-se, Dieu a passé".

    Isso é o que todo grande livro nos diz, que Deus se omitiu, e Ele se omitiu para o crente e parao cético. Há livros que não podemos reescrever porque sua função é nos instruir acerca danecessidade e, só quando respeitados tal como são, podem eles nos fornecer tal sabedoria. Sualição repressiva é indispensável para alcançarmos uma condição mais elevada de liberdadeintelectual e moral.

    Espero e desejo que a Bibliotheca Alexandrina continue a guardar esse tipo de livro, paraoferecer a novos leitores a experiência insubstituível de lê-los. Vida longa a este templo damemória vegetal.

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    Umberto Eco é romancista e e semiólogo italiano, autor de, entre outros livros, "A Ilha do Dia Anterior" e "O Pêndulo de Foucault", ambos pela editora Record. O texto acima foi publicadooriginalmente no jornal egípcio "Al-Ahram".

    Tradução de Rubens Figueiredo.

    (Fonte: Folha de São Paulo. Caderno Mais. p.4-10. 14 de dezembro de 2003 )