1 leis&letras - al.sp.gov.br · diato reajuste salarial, propôs o rodízio do corpo docente,...

14
1 Freitas Valle e Jacques D’Avray: o senador-poeta * Doutora em História Social realiza pós-doutorado no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo – IEB/USP. Escreveu, entre outros, Monteiro Lobato: Furacão na Botocúndia. São Paulo, SENAC, 1997 (em co- autoria); Villa Kyrial: Crônica da Belle Époque paulistana. São Paulo, SENAC, 2001 e A Semana de 22: entre vaias e aplausos. São Paulo, Boitempo, 2002. ([email protected]) O seu feitio era de Mecenas. A galanteria nele não se incrustava numa máscara social: era um vértice do seu espírito pluri- facetado. Tinha qualquer coisa de príncipe da Renascença, de uma figura medícia da estirpe daqueles políticos que sabiam ser, ao mesmo tempo, homens de empresa e artistas. Menotti Del Picchia 1 Reconstituição sempre problemática e incom- pleta do que não existe mais, nas palavras de Lévi-Strauss, a história traz impressa a assina- tura de quem a escreve, constituindo antes uma versão do que a verdade inquestionável dos fa- tos. Ninguém duvida que o pesquisador privilegia certos episódios e personagens, recortando no conjunto das memórias individuais e coletivas os elementos para costurar os processos históricos. A subjetividade inerente ao ofício explica, em parte, porque determinados eventos e sujeitos sociais acabem superdimensionados em relação a outros de igual ou maior importância no seu tempo. Nessa dinâmica insere-se a figura de José de Freitas Valle, cujo salão artístico e literá- rio batizado Villa Kyrial, marcou profundamente a vida intelectual da cidade nas décadas iniciais do século XX. Adquirida em 1904, sua mansão da Domingos de Morais, 10, no bairro de Vila Mariana, tornou-se um ponto de encontro da elite social e política da capital do café, ao lado de jovens talentos sem re- cursos em busca do apoio da oligarquia ilustrada. Patrocinador da primeira exposição do pintor rus- so Lasar Segall no Brasil em 1913, Valle recebia, em saraus e banquetes memoráveis, personalida- des em visita ao país, além dos futuros protago- nistas da Semana de 22, como Mário e Oswald de Andrade. Mentor do Pensionato Artístico de São Paulo, programa que de 1912 a 1930 concedeu bolsas de estudos na Europa a nomes como Anita Malfatti, Victor Brecheret, o maestro Francisco Mignone e o pianista João de Souza Lima, entre muitos outros, Valle controlava o circuito das ar- tes na cidade. E, apesar de conduzir um espaço de sociabilidade e de trocas de idéias que desa- guariam em movimentos de vanguarda estética, como no caso do modernismo, ele permaneceu por décadas a fio ausente das páginas dos livros da nossa história cultural recente. Por isso, vale a pena conhecer mais de perto este gaúcho que deixou Alegrete em 1885, aos 15 anos de idade, para ingressar na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, celeiro de presidentes de Esta- do e da República. FREITAS VALLE, O MAGNÍFICO Múltiplo de político, mecenas, literato, educador e gourmet, membro da maçonaria e do restrito cír- culo da elite paulista, posição realçada por meio do casamento com uma representante da oligar- quia regional, Valle foi o que se pode chamar de um legítimo legislador da República Velha. Como deputado de 1904 a 1924 e, depois, senador da Marcia Camargos * Leis&Letras

Upload: nguyenhanh

Post on 08-Nov-2018

214 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

�1

Freitas Valle e Jacques D’Avray: o senador-poeta

* Doutora em História Social realiza pós-doutorado no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo – IEB/USP. Escreveu, entre outros, Monteiro Lobato: Furacão na Botocúndia. São Paulo, SENAC, 1997 (em co-autoria); Villa Kyrial: Crônica da Belle Époque paulistana. São Paulo, SENAC, 2001 e A Semana de 22: entre vaias e aplausos. São Paulo, Boitempo, 2002. ([email protected])

O seu feitio era de Mecenas. A galanteria nele não se incrustava numa máscara social: era um vértice do seu espírito pluri-facetado. Tinha qualquer coisa de príncipe da Renascença, de uma figura medícia da estirpe daqueles políticos que sabiam ser, ao mesmo tempo, homens de empresa e artistas.

Menotti Del Picchia1

Reconstituição sempre problemática e incom-pleta do que não existe mais, nas palavras de Lévi-Strauss, a história traz impressa a assina-tura de quem a escreve, constituindo antes uma versão do que a verdade inquestionável dos fa-tos. Ninguém duvida que o pesquisador privilegia certos episódios e personagens, recortando no conjunto das memórias individuais e coletivas os elementos para costurar os processos históricos. A subjetividade inerente ao ofício explica, em parte, porque determinados eventos e sujeitos sociais acabem superdimensionados em relação a outros de igual ou maior importância no seu tempo. Nessa dinâmica insere-se a figura de José de Freitas Valle, cujo salão artístico e literá-rio batizado Villa Kyrial, marcou profundamente a vida intelectual da cidade nas décadas iniciais do século XX.

Adquirida em 1904, sua mansão da Domingos de Morais, 10, no bairro de Vila Mariana, tornou-se um ponto de encontro da elite social e política da

capital do café, ao lado de jovens talentos sem re-cursos em busca do apoio da oligarquia ilustrada. Patrocinador da primeira exposição do pintor rus-so Lasar Segall no Brasil em 1913, Valle recebia, em saraus e banquetes memoráveis, personalida-des em visita ao país, além dos futuros protago-nistas da Semana de 22, como Mário e Oswald de Andrade. Mentor do Pensionato Artístico de São Paulo, programa que de 1912 a 1930 concedeu bolsas de estudos na Europa a nomes como Anita Malfatti, Victor Brecheret, o maestro Francisco Mignone e o pianista João de Souza Lima, entre muitos outros, Valle controlava o circuito das ar-tes na cidade. E, apesar de conduzir um espaço de sociabilidade e de trocas de idéias que desa-guariam em movimentos de vanguarda estética, como no caso do modernismo, ele permaneceu por décadas a fio ausente das páginas dos livros da nossa história cultural recente. Por isso, vale a pena conhecer mais de perto este gaúcho que deixou Alegrete em 1885, aos 15 anos de idade, para ingressar na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, celeiro de presidentes de Esta-do e da República.

frEITAS vALLE, o MAGnífICo

Múltiplo de político, mecenas, literato, educador e gourmet, membro da maçonaria e do restrito cír-culo da elite paulista, posição realçada por meio do casamento com uma representante da oligar-quia regional, Valle foi o que se pode chamar de um legítimo legislador da República Velha. Como deputado de 1904 a 1924 e, depois, senador da

Marcia Camargos*

Leis&Letras

Acervo histórico

bancada do Partido Republicano Paulista até a Revolução de 30, quando saiu do cenário e aban-donou a vida pública, ele desenvolveu uma atua-ção parlamentar focada na educação e nas artes. Comparecia com assiduidade ao prédio da Praça João Mendes, onde funcionava o Poder Legislati-vo bicameral, formado pela Câmara e pelo Sena-do. Relator da Comissão de Recursos Municipais, articulador do Pensionato Artístico do Estado de São Paulo, assumia compromissos e propunha medidas que se coadunavam com preocupações típicas do universo político e cultural do período.

Para divulgar os métodos pioneiros de ensino, popularizados pelo governo de Washington Luís, Freitas Valle publicou dois livros condensando seu discurso na Câmara, a lei e a regulamentação do ensino público, que inspiraria iniciativas semelhan-tes Brasil afora2. Presidente da Comissão de Ins-trução Pública por muitos anos, Valle apresentou projetos de lei criando escolas operárias e agríco-las para menores, reformulando os cursos da Es-cola Politécnica e da Escola Superior de Agricultu-ra Luiz de Queiroz e fundando a Escola Normal do Brás. Foi, também, responsável pela remodelação da Biblioteca Pública que, até 1911, existia apenas nominalmente, contando com quatro ou cinco fun-cionários mal remunerados. Ainda em 1911 propôs a aquisição da biblioteca de Eduardo Prado, autor de A ilusão americana, morto dez anos antes.

Também apresentou projeto de lei regulamentan-do a Pinacoteca do Estado, fundada por ele junta-mente com Carlos de Campos, Ramos de Azeve-do, Sampaio Viana e Adolfo Pinheiro e, desde no-vembro de 1905, instalada em salas do Liceu de Artes e Ofícios. Apoiada por Sampaio Viana e os engenheiros Ramos de Azevedo e Adolfo Pinto, a Câmara dos Deputados aprovou verba destinada à recuperação do museu, finalmente aberto à vi-sitação pública em 24 de dezembro de 1911 com a I Exposição Brasileira de Belas-Artes. No ano seguinte, 1912, Freitas Valle propôs a instituição de bibliotecas populares, destinadas às camadas sociais menos favorecidas, a serem implantadas nos logradouros mais populosos dos respectivos distritos, se possível junto aos pólos fabris3. Valle sugeriu, ainda, a criação do Canto Orfeônico.

O Museu do Estado, atual Museu Paulista, tam-bém foi alvo do seu interesse de legislador, tendo recebido aumento de pessoal técnico a fim de permanecer aberto mais dias na semana. Aos co-legas da Câmara, Valle deu como exemplo o visi-tante que, chegando à capital num domingo à noite e partindo três dias depois, estaria impossibilitado de conhecer seu acervo, impenetrável ao público como um “tesouro de avarento”4. Em outra oportu-nidade, apresentou projeto para amparar profes-sores e funcionários públicos que se alistassem como voluntários nas fileiras do Exército Nacional, quando este preparava os primeiros contingentes de soldados para lutar com os aliados na Primeira Guerra Mundial. Sancionada pelas duas casas do Legislativo paulista, a iniciativa foi promulgada pelo presidente do Estado em 28 de novembro de 1917, recebendo o nome de Lei Freitas Valle. E, quando esquentaram as discussões sobre as reformas constitucionais, o deputado-mecenas foi partidário da emenda que exigia naturalidade brasileira para o presidente do Brasil.

Sempre pelo PRP, elegeu-se senador estadual em 1924 na vaga aberta com a morte de Gustavo de Oliveira Godoy, com 90.470 votos. Seria reconfir-mado no cargo em 25 de abril de 1925, levando para o Senado o mesmo estilo, voltado para os problemas educacionais de São Paulo. Ao rece-ber da Câmara o projeto no 45, que reformulava a instrução pública, Valle deu parecer reconhe-cendo que o professorado paulista era mal pago, não só em face da importância de suas funções, mas diante da carestia crescente. Circunstância, a seu ver, agravada no caso do profissional da zona rural, cuja baixa remuneração proporcionava um parco sustento em troca do grande serviço que prestava no fundo dos sertões. Dadas às dificulda-des orçamentárias, que não permitiriam um ime-

Capa do livro Ensino Público no Governo Washington Luís, publicado pela Editora Garraux, em 1924

Col

eção

Mar

cia

Cam

argo

s

��

diato reajuste salarial, propôs o rodízio do corpo docente, de modo a tornar obrigatório pelo menos um ano de exercício fora do perímetro urbano, an-tes de qualquer outra colocação no magistério5.

Por sua militância no campo educacional ao longo de 27 anos de mandatos consecutivos como de-putado e senador, Freitas Valle teria sido o artífi-ce, naquele período, da maior parte da legislação de ensino em São Paulo6.

JACQUES D’AVRAY

Para além do político do PRP, Freitas Valle foi um poeta que, filiado à corrente simbolista, es-crevia em francês sob o pseudônimo de Jacques D’Avray. Junção do sobrenome materno Jacquescom Avray, subúrbio parisiense, o pseudônimo homenageava o lado francês da família: sua mãe, Luísa Firmino, descendia de Jean Guillaume Jac-ques, médico proveniente de Saint-Pierre de Lille que em 1781 se casara em Desterro, atual Floria-nópolis, com a brasileira Antônia Joaquina do Ro-sário. Também reverenciava a “pátria espiritual”, ao evocar a minúscula e charmosa Ville-d’Avray, nas proximidades de Paris e que serviu de residência a pintores e literatos, como Musset e Balzac.

Na pele desse semeador sui generis, Valle de-senvolveria os tragipoemas, modalidade poética constituída por pequenas peças em verso, nas quais recontava um incidente que o impressio-nara. Combinando dramatização e ritmo poético, ele urdia métricas que, para João do Rio, recor-davam os trovadores medievais7. Contagiado por Rimbaud, Mallarmé, Verlaine e Leconte de Lisle, D’Avray criava, em verso livre, soneto ou rondel, uma atmosfera penumbrista por onde desfilavam figuras melancólicas como o cego, o louco, o le-proso, o náufrago ou o palhaço.

Guiado por esse leitmotiv, publicou seus tragipoe-mas em requintadas plaquetes – com poucas pá-ginas e aspecto gráfico apurado. Dedicados a um amigo ou parente, dividiam-se em duas séries, editadas entre 1916 e 1917. Um terceiro álbum com L’arc en ciel, La coupe du roi de Thulé, LeHéros, Héllenia e Un moine qui passait, entre ou-tros, foi anunciado em 1920, mas não se efetivou. Impressos sob a forma de folhetos e partituras, a maioria deles chegou a um público restrito ape-nas a saraus literários. La belle aux fleurs contou com harmonia para canto e piano de Sousa Lima e Clair de lune, um rondel, com arranjo de Fran-cisco Casabona. Já L’Étincelle seria apresentado, com sucesso, no Teatro Municipal do Rio de Ja-neiro em 1919. Capas de três Tragipoëmes de Jacques D’Avray

Arq

uivo

Fre

itas

Valle

Acervo histórico

Da primeira série dos tragipoemas, elaborada en-tre 1892 e 1906, constam sete peças que foram musicadas por nomes como Carlos Pagliuchi, Félix de Otero e Alberto Nepomuceno – como Les aveugles-nés, Le clown, Hères e Rataplan.Apenas Le fou de la grève, La glace e Ophis não mereceram composições melódicas nem ganha-ram o aplauso de uma platéia. A série seguinte, escrita entre 1902 e 1917, inclui Le miracle de la semence, em cantata para barítono e orquestra pelo maestro Alberto Nepomuceno e levada ao palco do Municipal do Rio de Janeiro em 1917; Hosanna, com melodia de Francisco Braga; L’Enseigne, musicado por Henrique Oswald e com recital em Buenos Aires em 1919, sob re-gência de Armand Crabbé; Guignol, por Xavier Leroux; Les naufragés; Les ames en allées e La bibliotèque d’Alexandrie. A capa dos quatro últi-mos tragipoemas trazia ilustrações de Boaventura Pacífico, que se inspirou em Antonio Rocco para realizar a xilogravura de Les naufragés e de Lesames en allées, e em gravura de Picard le Ro-main, de 1731, para La bibliotèque d’Alexandrie.As tiragens, em geral, iam de cinco a oito de cada um em papel Whatman, 25 em Polaire ou Kas-chmir e cinqüenta em Japon ou Hollande, nunca ultrapassando um total de 81 exemplares.

Com tipologia, cor e vinhetas diferentes umas das outras, essas plaquetes, acondicionadas em

caixas de papel marmorizado com título gravado em dourado, contribuíam para firmar o conceito de livro inaugurado pelos simbolistas. Conside-rado um espaço de significação, ele passou a ser concebido conforme normas de requinte e da busca de novos efeitos, contrastando com as obras parnasianas e realistas pelo tamanho, formato, número de páginas, pelo luxo e pequena tiragem. Confeccionados em papéis especiais, exploravam com sensibilidade artística o desenho das letras, o emprego de cores, ilustrações dentro do texto e apropriação das margens em branco. Valorizados, os recursos gráficos associavam-se ao tema abordado no poema, estabelecendo um diálogo sinestésico entre forma, conteúdo e sono-ridade das palavras, tornando-se parte integrante da própria obra.

TRECHO DE LÊS AVEUGLES-NÉS

Dans l’ombre immortelle qui les accompagnePromenant de longs regards, autospectifs,Les aveugles-nés s’ent vont, d’um pas tardif,Lourds, foulant les pres fleuris de la campagne.

“Na sombra eterna que os acompanha,Derramando longos olhares, autospectivos,Os cegos de nascença se vão, em passo tardio,Lerdos, pisando os prados floridos do campo”8.

Freitas Valle, ladeado pelo presidente de Estado Washington Luís e Júlio Prestes, em 1925

Arq

uivo

Fre

itas

Valle

��

Essa receita, que ensinava a buscar o raro, mas terminava no livro tornado raridade, foi seguida à risca por Freitas Valle, sintomaticamente cha-mado, por Alphonsus de Guimaraens, de Prince royal du symbole et grand poète inconnu. Pois ao contrário dos parnasianos, dispostos a escre-ver sob encomenda, Valle recusava-se a comer-cializar seus versos. Vendê-los significava aviltar seu valor intrínseco, conspurcar sua nobreza, trair sua essência. Mas também implicava expor sua arte ao julgamento dos críticos e da opinião pública, sujeitando-a a apreciação dos eventuais leitores de fora do anel dos amigos simpáticos, de pareceres afáveis e aplausos garantidos.

Nesse sentido, torna-se fácil compreender por que Jacques D’Avray optou pelo simbolismo, cor-rente que, enquanto atitude de espírito, passava ao largo dos problemas nacionais. Inserindo-se cada vez menos na teia da vida social, o poeta fazia do exercício da arte uma missão e, no limite, um sacerdócio9. Guiado pelo espiritualismo e culto dos símbolos, ele dava à sua obra uma acepção nitidamente estética, ilustrativa da observação de Leopoldo de Freitas, para quem um literato do quilate de Valle só na arte encontraria con-solação para a miséria existencial10. Já o uso da língua francesa por alguns simbolistas seria, no entender de Brito Broca, menos para estabelecer uma identificação mais perfeita com os modelos externos do que para acentuar a diferença entre os meios de expressão do poeta e os da massa popular e ignorante.

Amigo e admirador do senador poeta, José de Oiticica, conhecido militante anarquista, crítico li-terário e também poeta, acrescentou que os Tra-gipoèmes constituíam pequenas obras-primas, prodígios de sugestão, suavidade e emoção. E que, embora lamentável para o egoísmo nacio-nal, o fato de Valle escrever em francês não lhe retirava a brasilidade nem diminuía seu patriotis-mo11. Algumas publicações chegaram a justificar Valle na medida em que o francês facilitaria a leitura de Jacques D’Avray num maior número de países, dando à sua obra uma ressonância difícil de obter se escolhesse a sintaxe lusíada, a “última flor do Lácio, inculta e bela”, a um tempo esplendor e sepultura, como apontou Olavo Bi-lac. Hipótese reiterada pela revista ABC, em 5 de julho de 1919: “Freitas Valle, ou melhor, Jacques D’Avray, que é o pseudônimo em que se desdo-bra sua personalidade, escrevendo em francês abre à irradiação das suas rimas horizontes mais largos do que se as burilasse nesse sonoro, mas misterioso idioma que Herculano chamou de o túmulo do pensamento”12.

A par da universalidade almejada, o uso do então internacional francês por Jacques D’Avray teria algumas raízes fincadas nos desdobramentos da publicação de Rebentos. Financiado pelo seu pai, o livro de versos da juventude seria utilizado roti-neiramente pelos seus opositores, durante toda a sua vida, como munição para ataques e críticas ferozes, levando-o a abandonar o português para finalidades literárias. Tanto que, com o passar dos anos, na medida em que Valle ia perdendo im-portância social e política e, conseqüentemente, tornando-se um alvo menos atraente para críticos em geral, ele voltou a redigir poemas no linguajar nativo. Publicados em revistas como Para Todose O Cruzeiro, ao lado da letra do Hino dos cava-lheiros da Villa Kyrial e de Renúncia, com melodia dos irmãos Romeu e Artur Pereira e editados em brochura, assim como Quem canta..., musicado para barítono por Francisco Mignone em 1924, esses escritos demonstram que Freitas Valle não abdicou totalmente da língua pátria. E embora te-nha realizado incursões pelo italiano, com La sig-nora del Fuoco, musicado por Francisco Mignone e Alberto Nepomuceno; La signora della terra, Lasignora dei cieli e La signora del mare, de 1915, musicados por Romeu Pereira, e também pelo espanhol, com Los cantares, musicado por Félix de Otero, a porção substancial da sua obra poé-de Otero, a porção substancial da sua obra poé

O poeta aprecia sua obra

Arq

uivo

Fre

itas

Valle

Acervo histórico

tica é definitivamente em francês. Algo que, para o jornalista Francisco Pati, tratava-se de um caso de heterônimos, comparável ao de Fernando Pes-soa. Assim como o poeta luso, Jacques D’Avray não se escondia atrás de um pseudônimo, ele desdobrava-se, multiplicava-se13.

Pouco conhecido fora dos círculos literários, Jacques D’Avray teve poemas publicados em re-vistas e jornais estrangeiros. Em 1917 e 1920 foi citado no Mercure de France, no qual trabalhou seu amigo José Severiano de Resende. Vetor do simbolismo mundial, esse quinzenário francês dera início, em 1901, a “Lettres Brésiliennes”, uma seção a cargo de Figueiredo Pimentel que procurava traçar um panorama da literatura na-cional, abrangendo desde José de Alencar até Alphonsus de Guimaraens. Quase duas décadas depois, a Ilustración Sud-Americana, de Buenos Aires, traria Ophis:

En regardant l’horizon rouge où le ciel brûle,Je vois venir le Mythe Ardent des affligés,Promenant par l’espace une crinière en tuleEt pleurant des rayons de ses yeux constellés.Tu es pour touts la gloire, étrange majusculeOméga prodigueur des bonheurs desirés;Pour moi, pour mon espoir, hyémal crépuscule,Tu brûles cependant mes yeux désespérésAu fond de quelque trou, méconnu des humains,Je te croyais perdu, héros de ma tendresse:Je maudissais la Nuit, qui me liait les mains,Et le soleil qui m’aveuglait dans ma détresse...Mais le ciel a permis une plus triste finÀ l’amour, victimé par ton âme traîtresse:Il m’a conduite à toi, pour souffrir ton dédainEt pour te voir aux bras de cette autre maîtresse.Aveugle maintenant, aveugle et delaissée,Me voilà sur la terre à la merci du sortDes gueux, des mendiants, dont la Route est tracéeDans les champs où l’Espoir à tout jamais s’endort.Mes forces me poussant, je vais par les al-lées,Au gré des vents et dans l’attente de la mort:Et j’invoque à genoux, pour leurs âmes damnées,Le châtiment, le désespoir et le remords.14

“Mirando o horizonte vermelho onde queima o céu,Vejo chegar o Mito Ardente dos aflitos,Esvoaçando pelo espaço uma crina de tuleE chorando raios pelos olhos constelados.

És para todos a glória, estranha maiúscula,Omega prodigalizador das felicidades desejadas;Para mim, para minha esperança, hiemal cre-púsculo,Queimas, contudo, meus olhos desesperados...Ao fundo de alguma cavidade, desconhecida para os humanos, Cria-te perdido, herói de minha ternura:Amaldiçoava a Noite, que me atava as mãos,E o sol, que me cegava em minha aflição...Mas o céu permitiu um fim mais tristeAo amor, vitimado por tua alma traidora:Ele me conduziu a ti, para sofrer o seu desdémE para ver-te nos braços desta outra amante.Cega agora, cega e abandonada,Eis-me sobre a terra à mercê da sorteDos indigentes, dos mendigos, cujo Caminho está traçadoNas campinas onde a Esperança para sempre adormece.Minhas forças impelindo-me, vou pelas aléias,Ao sabor dos ventos e no aguardo da morteE eu invoco de joelhos, para suas almas con-denadas,O castigo, o desespero e o remorso.”15

Do outro lado do Atlântico, o Mercure de France celebrava Jacques D’Avray porque ele ajudava a valorizar a civilização francesa na América Me-ridional16. Aqui, Otávio Augusto acreditava que sua poesia, repleta de imagens subjetivas e de humanidade, condensada e simbólica, tinha a missão de levar a Paris uma visão de conjunto necessária à arte francesa, então ameaçada por um “objetivismo infecundo”, por uma “dissolu-ção precoce”17. Outros, porém, julgavam-na um

Freitas Valle, como Jacques D’Avray, em 1899

Arq

uivo

Fre

itas

Valle

��

autêntico desperdício. Comentando L’Étincelle, apresentada no Rio de Janeiro logo após o tér-mino da Primeira Guerra, quando uma onda de nacionalismo varreu o país, a revista Nossa Terra lamentava que Jacques D’Avray não empregasse seu talento para enriquecer a literatura nacional e cantar as belezas nativas na língua de Camões, Bocage, e Gonçalves Dias. Desculpava-o por to-dos os caprichos espalhafatosos a ele atribuídos, com exceção dessa que importava em menospre-zo e concorria para aumentar o “desamor”, já tão acentuado, ao que era nosso18.

Na mesma linha da publicação carioca, Manuel Bandeira atestou que o trabalho de Valle não era desdenhável, mas ao escrever em francês ele perdia a excelência provavelmente alcançada se tivesse optado pelo português. Para o autor de Pasárgada, ninguém foi cabalmente poeta em idioma diverso daquele que mamou junto com

o leite materno19. Assim mesmo declarava-se um admirador tão fervoroso quanto o autor de Grande Sertão, veredas. Em carta remetida a Freitas Valle em 7 de janeiro de 1948, ao acusar o recebimento de dois envelopes aéreos contendo versos do “bom e querido amigo”, ninguém menos do que Guimarães Rosa em pessoa afirmava seu entusiasmo pelo poeta que escrevera:

L’herbe sait qu’on la foulera,et l’herbe grandit...Je sais que notre amour périra.Je t’aimerai,tu m’aimeras...

“A relva sabe que será pisada,mas ela cresce...Eu sei que nosso amor pereceráEu a amarei, Tu me amarás...”20

noTAS

1 Menotti Del Picchia, “Freitas Valle, o mecenas”, A Gazeta, São Paulo, 25-2-1958, p. 2.2 O problema do ensino público e sua solução no Estado de São Paulo, de 1921, e O ensino público no governo de Washington Luís, de 1924.3 José de Freitas Valle, “Projeto no 68”, 86a sessão ordinária, Anais da Câmara dos Deputados do Estado de São Paulo, São Paulo, 1912, p. 896. 4 José de Freitas Valle, “Projeto no 62”, 56a sessão ordinária, Anais da Câmara dos Deputados do Estado de São Paulo, São Paulo, 1911, p. 389.5 José de Freitas Valle, “Projeto no 45”, 103a sessão ordinária, Anais da Câmara dos Deputados do Estado de São Paulo, 1927, pp. 654-655.6 Rui Bloem, “Um legislador da República Velha”, Folha da Manhã, São Paulo, 16/2/1958, 1º caderno, p. 4.7 João do Rio, “Freitas Valle, o Magnífico”, O Estado de S. Paulo, Suplemento Literário, São Paulo, 7/9/68, p. 4. 8 Tradução livre da autora. 9 BOSI, Alfredo Bosi História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1981, p. 302. 10 Leopoldo de Freitas, “Poesias de Jacques D’Avray”, Diário Popular, São Paulo, 26/7/1902, p. 1. 11 José de Oiticica, “L’Étincelle”, A Rua, Rio de Janeiro, 1o -7-1919, p. 4. 12 “A obra de um magnífico”, ABC, Rio de Janeiro, 12-7-1919, ano V, no 227, p. 12. 13 Francisco Pati, “Pseudônimos e heterônimos”, Correio Paulistano, São Paulo, 12-6-1949, p. 4. 14 “La plante”, primeiro canto do tragipoema Ophis. Os demais são “La chanson”, “Le bois” e “La chêne”; cf. Ilustración Sud-Americana, Buenos Aires, 1o -7-1902, p. 186.15 Tradução livre da autora. 16 André Fontainas, “Les poèmes”, Mercure de France, Paris, fevereiro de 1920, Revue de la Quin-zaine, ano XXXI, tomo CXXXVII, no 519, p. 761.17 Carta de Otávio Augusto a Freitas Valle. Rio de Janeiro, 28 de setembro de 1919. (AFV)18 “Ribaltas e gambiarras”, Nossa Terra, Rio de Janeiro, 3-7-1919, p. 14.19 Manuel Bandeira, “Freitas Valle”, Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 26-2-1958, 1o caderno, p. 3. 20 Tradução livre da autora.

Acervo histórico

DISCURSO DO DEPUTADO FREITAS VALLEFEITO NA 78ª SESSÃO ORDINÁRIA,EM 11 DE NOVEMBRO DE 1907.

O Sr. Freitas Valle – Sr. Presidente, a natural emoção que de mim se apodera sempre que, no desempenho do mandato, devo dirigir-me a esta Assembléia, agrava-se neste momento, e justificadamente, quando tomo a palavra para apresentar à consideração da Casa o projeto que dispõe sobre a instrução pública em nosso Estado.

Digo apresentar o projeto que dispõe sobre a ins-trução pública em nosso Estado, porque não sei se lhe poderá dar o nome de projeto de reorgani-zação ou de reforma.

A Casa, ouvida a sua leitura, ouvidas as modifica-ções, e talvez alterações, que ele vem trazer às disposições vigentes, aceitará ou não a denomi-nação que se lhe pôs e com que corre discutido

no espírito público, na imprensa e mesmo entre nós, por aqueles dos nossos companheiros que já tiveram ensejo de conhecer algumas de suas disposições.

Pergunto-me a mim mesmo, e me falha a res-posta, porque o mais humilde entre os membros da Comissão de Instrução Pública (Não apoia-dos gerais) ...

O Sr. Azevedo Marques – Não apoiado, V. Exa. é muito competente.

O Sr. Freitas Valle - ... é o portador de tão impor-tante projeto, se não o mais, seguramente um dos mais importantes que se tenham apresentado na presente sessão legislativa.

O Sr. Azevedo Marques – A instrução pública é o assunto mais importante para o Estado.

O Sr. Freitas Valle – Na bondade dos meus companheiros de Comissão, em que folgo de reconhecer profunda e segura compe-tência em matéria de ensino público ...

O Sr. João Sampaio – Obriga-do pela parte que me toca.

O Sr. Freitas Valle - ... julgo poder encontrar a razão de ser tão honrosa delegação ...

E devo, ao apresentá-lo, declarar que o projeto foi à Comissão que o fez, não só com as disposições que ela aconselhou, como com a se-gurança e clareza com que soube encaminhar aquelas que partiram originalmente do orador.

O Sr. Mário Tavares – No pro-jeto preponderavam as luzes de V. Exa.

O Sr. Freitas Valle – Cou-be-me redigir o projeto. Apresento-o e chamo a mim a responsabilidade de todos os senões que porventura a Casa nele possa encon-trar (Não apoiados), pois se deve dar como razão desses

Charge de Voltolino, “Perfil de um deputado”, publicada no livro Sonetaços, de Antonio Lavrador, em 1923

Bib

liote

ca G

uita

e J

osé

Min

dlin

��

senões mais a pena do seu relator que a bem orientada inspiração, a notória competência da Comissão que o ditou.

Tratando-se de um projeto complexo, não me pa-receu acertado tomar delongadamente a atenção da Câmara para justificar detidamente, uma por uma, as modificações que ele vem trazer às dis-posições vigentes em matéria de ensino: reservo-o para a discussão.

O Sr. João Sampaio – Convém que cada um es-tude o assunto.

O Sr. Freitas Valle – Entendi bastante frisar ligei-ramente os pontos capitais da reforma; e, por meu intermédio, a Comissão de Instrução Pública não só solicita mas reclama até a efetiva, a sincera, a leal, a constante colaboração de cada um dos nossos ilustrados companheiros, pois só assim reputa ela possível que venha a ser trazida bené-fica modificação à legislação do ensino público de São Paulo, que é, proclamam-no, seguro padrão de glória para aqueles que a organizaram e para o próprio Estado de S. Paulo, que, neste ponto, atinge à culminância na justa compreensão de de-ver cívico e da responsabilidade social na nossa República. (Muito bem.)

O projeto visa simplificar o ensino e torná-lo efe-tivo pela fiscalização, pois sem a fiscalização, a mais lata, a mais completa, embora a mais one-

rosa, sem a fiscalização, o ensino se limita a uma ilusão legislativa, a uma ilusão governamental, a uma ilusão do próprio povo, pois nós bem com-preendemos que a boa fiscalização foi sempre tida em matéria de ensino como elemento auxi-liar, como elemento quase que imprescindível, imprescindível mesmo, da boa, da real adminis-tração do ensino.

Pelo relatório do Sr. Secretário do Interior, em que se apresentam dados interessantes em matéria de estatística escolar, é S. Exa. que denuncia muitos dos males a que o projeto vem dar remédio.

Entre eles não é o de menor monta o caso dos alunos, dispostos a aprender, concorrerem à ma-trícula dos estabelecimentos públicos, e, entriste-cidos e desiludidos, voltarem para os seus lares, sem compreenderem bem qual foi a razão que determinou essa triste volta à escuridão de que eles vinham, em procura da luz.

A deficiência do número de escolas e o imper-feito aproveitamento das existentes: eis a razão positiva disso que acontece aos pobres pedintes de luz, que, infelizmente, se contam aos milhares entre nós.

E eles, que ouvem dizer que a instrução é um bem, não compreenderão nunca porque é que se lhes veda a conquista desse bem ...

Villa Kyrial, recepção aos protagonistas da Semana de 22, dias após o evento.

Arq

uivo

Fre

itas

Valle

Acervo histórico

O projeto, aumentando o número de inspetores escolares, determinando uma nova forma de fiscalização, autorizando o desdobramento dos cursos públicos, fazendo-os funcionar em perí-odos diurnos diversos, duplica a possibilidade do ensino; e, com o acréscimo insignificante de um décimo talvez da despesa, aumenta para o dobro o número dos alunos que o Estado pode, por meio das suas escolas, encaminhar para a vida.

O Sr. Azevedo Marques – Isso é encantador.

O Sr. Freitas Valle – As escolas ambulantes, criação puramente teórica e que a prática no Es-tado de São Paulo demonstra inúteis, o projeto as extingue e determina que elas sejam fixadas pelo Governo nos bairros que estiverem efetivamente

contribuindo com maior nú-mero de alunos freqüentes.

Compreende-se a razão do insucesso dessa inovação entre nós. Se a fiscalização, pode-se dizer, não foi até hoje praticada em relação às escolas fixas, máxime impra-ticável se tornou em relação às escolas ambulantes, pois que, sem uma determinação prévia do local a que o pro-fessor deveria servir, seria completamente impossível saber se ele realmente cum-priu os deveres do seu espi-nhoso cargo, mais espinho-so ainda pela instabilidade que a lei lhe impõe.

Onerado como se acha o Estado pela responsabilida-de de ensinar ao povo, e a todo o povo, é natural que a Câmara aceite uma altera-ção que se traz relativamen-te às escolas de bairros, que, segundo o projeto, a contar de 1º de janeiro de 1908, não terão mais pri-meiro provimento. Isto quer dizer, conseqüentemente, que continuarão a ser nova-mente providas as escolas já criadas e providas, no caso de posteriormente vi-rem a vagar. Desse modo, o Estado diminui um pouco

os ônus que lhe pesam tanto nos seus orçamen-tos anuais. E como não suprime as escolas que estão atualmente funcionando, não vem, injusti-ficavelmente, atacar o interesse dos alunos que nelas recebem o ensino. Como que para provi-denciar a respeito de provimentos futuros das escolas não providas, o Governo indiretamente virá em seu auxílio por intermédio das munici-palidades em cujas circunscrições se acharem os bairros não servidos, e lhes facultará valioso favor com o fornecimento do material escolar, li-vros, impressos, etc., uma vez que os programas do Estado sejam por elas adotados e se sujeitem às disposições que regem o ensino.

Adotadas algumas providências salutares para o provimento das escolas em geral, sempre respeitados o título, a competência e a anti-

já criadas e providas, no

Freitas Valle, o elegante proprietário de Villa Kyrial, em 1912

Arq

uivo

Fre

itas

Valle

61

guidade no magistério, o projeto, entre outras disposições importantes, dá regras para a administração nas escolas complementares, estatuindo que 60% das vagas a preencher serão disponíveis para os alunos que tiverem completado o curso das escolas-modelo e dos grupos escolares, e os 40% de vagas restantes por alunos estranhos, que demonstrem perante as comissões da escola as suas aptidões, o seu preparo, nas matérias reclamadas para a matrí-cula do curso complementar.

Desaparecem dos programas das escolas nor-mais e complementares a trigonometria, a as-tronomia e a mecânica, que, talvez por descuido do legislador, lá ficaram, suprimidas as cadeiras constituídas por essas matérias. A permanência destas disciplinas vinha sobrecarregar o traba-lho dos alunos, sem proveito real para o ensino técnico reclamado para a especialidade a que se destinam.

Em cada escola normal do Estado fica criada uma cadeira de zootecnia e agricultura. As condições naturais do nosso Estado justificam eloqüente-mente a criação destas cadeiras ...

O Sr. Azevedo Marques – Apoiado.

O Sr. Freitas Valle - ... uma vez que aos alunos sejam dadas apenas noções e na proporção sufi-ciente para que não venham sobrecarregá-los e, possivelmente, alterar a média do conhecimento que de todas as matérias eles devem ter.

Ficam constituindo cadeiras independentes na Escola Normal da Capital as atuais conjuntas de latim e português. Não foi, a meu ver, e assim pensa a Comissão de Instrução Pública, acer-tada a providência legislativa pela qual, pouco tempo atrás, foi estabelecido que as cadeiras de latim e português, então existentes, se fun-diriam, desdobrando-se em duas das matérias conjuntas. O ensino não lucrou, antes sofreu – é fato. O meio de restabelecer o estado anterior aproveitará para que se possa ter, como então, em vez de dois bons professores de português e latim, um ótimo professor de português e um ótimo professor de latim.

Nas escolas complementares, as matérias foram agrupadas em quatro cadeiras, em cada uma das seções, masculina e feminina, no sentido

Convidados no terraço de Villa Kyrial, durante um almoço de domingo, em 1916

Arq

uivo

Fre

itas

Valle

Acervo histórico

de facilitar a especialização e o estudo para os professores que devam regê-las. Não há aumen-to de pessoal, e, entretanto, deve naturalmente haver aumento de preparo, sendo certo que o professor, em vez de estudar ou recordar o pro-grama completo da escola, recordará simples-mente as matérias que se prenderem à cadeira que lhe couber.

O governo providenciará para auxiliar as munici-palidades que instituírem cursos noturnos para adultos; fá-lo-á permitindo que esses cursos funcionem nos próprios edifícios dos grupos escolares do Estado, desde que as Câmaras Municipais se responsabilizem pela conservação do material escolar e dos prédios em que eles funcionarem.

Há uma disposição que por si só se justifica: é a que determina que o Governo poderá, nos lugares em que houver deficiência de escolas públicas, subvencionar, temporariamente, esco-las particulares que adotem seus programas e se sujeitem à fiscalização do Estado.

Resulta esta faculdade que se dá ao Governo do fato que se pôde observar quando se tratou de reorganizar o ensino no Estado, há bons quinze anos: as escolas primárias particulares cederam o lugar aos estabelecimentos de ensino público, não só porque estes eram gratuitos, como tam-bém porque os métodos eram mais perfeitos, o material melhor e o pessoal mais preparado.O Sr. Bento Bueno – Desapareceram completa-mente.

o Sr. freitas valle – Agora que, como bem diz o nobre deputado, essas escolas de ensino pri-mário desapareceram quase completamente, é ensejo oportuno facilitar o seu reaparecimento; e afigurou-se à Comissão que, com esta dispo-sição, o Governo poderia trazer para isso um poderoso incentivo.

Para a matrícula em qualquer dos estabelecimen-tos de ensino preliminar do Estado, o candidato deve trazer, selado com uma estampilha estadual de 2$000, um atestado médico que prove ter sido vacinado ou revacinado, ou afetado de varíola, não ter moléstia repugnante ou contagiosa, nem defeito que lhe impossibilite o aproveitamento. Este artigo tem importância capital, pois que o produto desse selo fica atribuído ao fundo escolar permanente de que vou falar dentro em pouco, e é destinado à melhor fiscalização das escolas. O atestado de não ter o candidato defeito que lhe impossibilite o aproveitamento é, indubitavelmen-

te, uma providência sã, socialmente reclamada pela defesa, que se impõe a todos, desses po-bres mártires das escolas, verdadeiros mártires, que, sem as condições mentais para acompanhar o desenvolvimento do ensino, ficam constituídos em assunto de pilheria, de mofa, se não de casti-go, quando a culpa é de sua deficiência orgânica, quando a culpa não lhes vem se não da triste e misérrima condição em que a natureza os colo-cou. (Muito bem.)

Outro ponto que seguramente não desmerecerá da atenção preciosa da Câmara é o que estatui que o Governo regulamentará a obrigatoriedade do ensino, de modo a, quanto possível, torná-la real. E para isto, desfazendo o argumento que se antolha aos propugnadores da obrigatorie-dade, nós estabelecemos que a obrigatorie-dade seja considerada sempre relativamente à localidade em que se derem, nas escolas, vagas disponíveis. Porque esperar, para que se efetive a obrigatoriedade, que haja para o povo um número de escolas suficiente, é perfeito mito: nunca se poderá dar, ouso afirmá-lo, que realizemos esse ideal, inatingível como todos os ideais, de ouvir ao poder público proclamar que o ensino chegou a tal perfeição que o número de escolas é suficiente em todo o vasto âmbito da sua administração.

O Sr. Mário Tavares – Muito bem.

o Sr. freitas valle – Ora, sendo assim, se o Estado mantém uma escola, se ele tem esse ônus, poderá ou não ter a vantagem social conseqüente, isto é, aproveitar o seu esforço, tornando obrigatório o preenchimento das vagas existentes, de modo a assim contribuir mais eficazmente para que o povo cesse de ser analfabeto e tornar por este modo, não só mais profícuo o ensino, como muito mais barato, considerada a quota com que cada cidadão entra para o erário público?

E, terminando, o projeto institui o tesouro comum das escolas, que entre outros elementos constitu-tivos, conta o fundo escolar permanente.

O tesouro comum das escolas não visa tirar ao Estado o direito que ele tem sobre os bens desti-nados ás funções escolares, mas é como que uma hipoteca moral que o Estado faz ao ensino, para garantir-lhe, em qualquer emergência em que se encontre o uso, o aproveitamento ininterrompido de um patrimônio que, assim, se considera ina-lienável, quaisquer que sejam as exigências que reclamem a sua disponibilidade.

6�

O fundo escolar permanente, que é a sua parte imediatamente aplicável, pelo Secretário do Inte-rior, constituir-se-á:

a) por dotações orçamentárias especiais;

b) por legados, doações e auxílios pecuniários de aplicação imediata;

c) pela importância das multas escolares;

d) pelos saldos das verbas orçamentárias do en-sino público, anualmente verificados;

e) pela porcentagem de 10% sobre a venda de terras devolutas, arrecadáveis a contar do próxi-mo exercício;

f) pela importância das taxas de matrícula e ins-crição de todos os estabelecimentos de ensino do Estado;

g) pelo produto do selo a que se refere o art. 26º;

h) pelo rendimento de bens ou fundos do tesourocomum das escolas;

i) por quaisquer contribuições diretas ou indire-tas que, de futuro, a lei estabelecer.

Se, Sr. Presidente, a estas disposições, acresci-das de outras de menor relevância, se pode dar a denominação de reforma de instrução pública, é

este o projeto de reforma da instrução pública que tenho a honra de apresentar a esta Casa.

Mas, reformar a instrução pública, se isso é refor-má-la, como medida preliminar, que se peça vênia ao pontífice máximo da instrução pública em São Paulo, ao Dr. Bernardino de Campos.(Muito bem.)

O Sr. Mário Tavares – Um dos maiores propul-sores que tem tido o progresso de São Paulo. (Apoiados.)

O Sr. Freitas Valle – Se eu não conhecesse a ha-bitual, a normal, a constitucional modéstia que em V. Exa. mais realça o brilho real de um valor dia-riamente afirmado, diria que V. Exa. veio presidir a esta sessão na certeza de se ver imediatamen-te alvejado pelas forçosas referências que, em se tratando de legislar sobre a instrução pública, não poderia o orador calar sobre o venerado chefe do Partido Republicano de São Paulo.

E se essa modéstia não tivesse velado a previ-são, estou certo de que a ausência de V. Exa., caso tão raro nesta Assembléia, hoje se daria.

Permita-me, porém, V. Exa. que, considerando simplesmente o Estado em si, a instrução em si mesma, despreocupado de referências pessoais, despreocupado dos elos de afeição, de amizade e de respeito, eu entenda, entretanto, dever su-blinhar, na presença de V. Exa., seu digno primo-gênito, que o papel do Dr. Bernardino de Campos denominação de reforma de instrução pública, é gênito, que o papel do Dr. Bernardino de Campos

Comitiva da Secretaria do Interior, em 1915, visita os municípios de Itabira, Itararé e Faxina.Freitas Valle está em primeiro plano, o futuro governador Altino Arantes é o quarto à sua esquerda

Arq

uivo

Fre

itas

Valle

Acervo histórico

na organização do progresso intelectual e real do Estado impõe-se mesmo àqueles que porventura menos tenham aplicado o seu espírito à elucida-ção dos fatos que hão de constituir a primeira fase da nossa história republicana.

O Sr. Mário Tavares – Apoiado.

o Sr. freitas valle – Bernardino de Campos e Cesário Motta, duas entidades que, nos pólos que mais se podem contrapor na nossa exis-tência, podem ser considerados a brilharem em campos opostos, mas a brilharem igualmente, sempre que se rememore a campanha gloriosa que trouxe para o nosso Estado o ensejo feliz de se fazer o exemplo da nação brasileira! (Muito bem.)

Charles Dickens diz: “Penaliza-me ver iniciar as crianças nos expedientes da vida, desde os seus mais tenros anos. Porque destruir a sua confiança e a sua simplicidade, as duas melhores qualida-des que tenham recebido do céu, e obrigá-las a partilhar as nossas dores antes que possam to-mar parte nas nossas alegrias?”

E é esta a triste condição a que o reclamo cons-tante da luta pela vida obrigará sempre a criança, que vem ao mundo para divisar no seu futuro uma ilusão dourada, mas que, prestes desiludida, aos primeiros passos, encontra a miséria, negra e triste, que a assoberba, que a domina e que fatalmente a vence, se não vier em seu amparo a escola.

Se a criança entra no mundo, como diz Beecher, pela porta dourada do amor, é preciso, uma vez que o amor no-la vai confiar, que a recebamos carinhosa e protetoramente; é preciso que de-mos combate, no seu ânimo incipiente, a todos os males que a cercam e que a podem vencer e prostrar; é preciso que a livremos da moléstia, é preciso que a livremos da dor, do sofrimento, da escravidão, da ignorância, que, no dizer de Shakespeare, é a maldição de Deus.

É contra a maldição de Deus que se armam as escolas; é contra a maldição de Deus, que é a ignorância, que se organizam esse arsenais do ensino em que é chamado o professor a aguerrir falanges para a luta.

Eu definiria, apropriando-me da definição que Ruskin dá do artista, eu definiria assim o profes-sor: o professor é uma pessoa que se submeteu a uma lei à qual é difícil obedecer, para poder dis-pensar um benefício que é delicioso dispensar.

Com efeito, para que seja professor, é preciso, substancialmente, o ânimo de o ser, a intenção, o compromisso de se votar a esse sacrifício que parece feito pelo bem do indivíduo, mas que o é pela garantia da sociedade.

No relatório do Sr. Secretário do Interior, que percorri detidamente, tive a curiosidade de pro-curar nas denominações das múltiplas oficinas de ensino que há semeadas pelo nosso Estado, em quais delas se achariam inscritos os nomes de Cesário Motta e Bernardino de Campos.

Quase desiludido ante uma lacuna certo con-denável, senti-me feliz, eu que esperara vê-los muitas vezes reproduzidos, encontrando o nome do Dr. Cesário Motta apenas no grupo escolar de Itu, e o do Dr. Bernardino de Campos no grupo escolar de S. Roque.

Afigurou-se me na homenagem desta locali-dade tão pequenina, tão modesta, um tributo exemplar com que o humilde vinha lembrar aos fortes, que nunca o poderiam esquecer, esse nome glorioso entre os nomes gloriosos do nosso Estado.

Ao mesmo tempo, sem deixar de reconhecer o mérito real de cada um daqueles a que me vou referir em globo, vi citados nomes diversos, etiquetando os mais importantes estabeleci-mentos de ensino público do Estado, nomes que significam sem dúvida um auxílio, um pa-trocínio de momento, mas que representam, principalmente, as influências efêmeras que a política faz surgir e que a própria política faz submergir-se.

E compreendi que, apesar do delineamento perfeito das placas denominativas, quando da penumbra crepuscular surgir a história, o povo, até então pela árvore impedido de ver a flores-ta, verá, por detrás das denominações de hoje, ressurgirem, ofuscantes, as denominações que, apesar de tudo, existirão sempre, porque todo estabelecimento de ensino em São Paulo é Ber-nardino de Campos e é Cesário Motta. (Muito bem.)

A criança, já o disse eu, repetindo o pensamento inglês, entra no mundo pela porta dourada do amor. Pois bem, façamos com que o homem saia para a vida pela porta iluminada da escola.

Vozes – Muito bem! Muito bem!

(O orador é felicitado pelos seus colegas.)