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História de vida e prática docente em História: a interface tempo e memória RENAN RUBIM CALDAS 1 * 1. Introdução e apresentação do tema “Entre os muitos desafios da história oral, destacam-se, portanto, o da relação entre as múltiplas temporalidades, visto que, em uma entrevista ou depoimento, fala o jovem do passado, pela voz do adulto, ou do ancião do tempo presente. Adulto que traz em si memórias de suas experiências e também lembranças a ele repassadas, mas filtradas por ele mesmo, ao disseminá-las. Fala-se em um tempo sobre um outro tempo. Enfim, registram-se sentimentos, testemunhos, visões, interpretações em uma narrativa entrecortada pelas emoções do ontem, renovadas ou ressignificadas pelas emoções do hoje.” (NEVES, 2010: 18) Tempo, memória, experiências, expectativas e narrativas, eis os elementos que fazem do território da história oral um campo rico e, ao mesmo tempo, complexo de se caminhar e perscrutar. A partir do trecho acima, escrito pela historiadora Lucília de Almeida Neves Delgado, pode-se perceber que a metodologia da história oral é desafiadora por lidar com sujeitos históricos que vivem concretamente o cotidiano de suas vidas, permeadas por projetos, desejos, expectativas, emoções, sonhos, frustrações, etc. Esses sujeitos possuem variadas histórias de vida, diversas memórias e experiências do passado que são narradas, interpretadas e ressignificadas no tempo presente, à luz de expectativas futuras. Tendo em mente o panorama e a abrangência dos múltiplos sujeitos e agentes da história, optou-se, no projeto de mestrado 2 , por estudar um grupo específico e muito importante: os professores de História da educação básica. Por meio da metodologia da história oral baseada na gravação de entrevistas, buscar-se-á analisar suas narrativas, suas histórias de vida, suas memórias, suas experiências e expectativas pessoais e profissionais, individuais e coletivas (ELIAS, 1994). Concomitantemente a este movimento, será realizado outro, de análise das aulas desses mesmos professores, buscando perceber como eles utilizam suas histórias de vida, trajetórias, memórias, experiências e expectativas na sua prática docente para ensinar história. No entanto, para este artigo em particular, estabeleceu-se um 1 * UFF, Mestrando em História, apoio CAPES 2 Projeto de mestrado orientado pela Profº Drº Juniele Rabelo de Almeida, PPGH-UFF

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Page 1: 1. Introdução e apresentação do tema - HISTORIA ORAL · 2016-05-31 · 1. Introdução e apresentação do tema “Entre os muitos desafios da história oral, destacam-se, portanto,

História de vida e prática docente em História: a interface tempo e memória

RENAN RUBIM CALDAS1*

1. Introdução e apresentação do tema

“Entre os muitos desafios da história oral, destacam-se, portanto, o da relação entre

as múltiplas temporalidades, visto que, em uma entrevista ou depoimento, fala o

jovem do passado, pela voz do adulto, ou do ancião do tempo presente. Adulto que

traz em si memórias de suas experiências e também lembranças a ele repassadas,

mas filtradas por ele mesmo, ao disseminá-las. Fala-se em um tempo sobre um outro

tempo. Enfim, registram-se sentimentos, testemunhos, visões, interpretações em

uma narrativa entrecortada pelas emoções do ontem, renovadas ou ressignificadas

pelas emoções do hoje.” (NEVES, 2010: 18)

Tempo, memória, experiências, expectativas e narrativas, eis os elementos que fazem

do território da história oral um campo rico e, ao mesmo tempo, complexo de se caminhar e

perscrutar. A partir do trecho acima, escrito pela historiadora Lucília de Almeida Neves

Delgado, pode-se perceber que a metodologia da história oral é desafiadora por lidar com

sujeitos históricos que vivem concretamente o cotidiano de suas vidas, permeadas por

projetos, desejos, expectativas, emoções, sonhos, frustrações, etc. Esses sujeitos possuem

variadas histórias de vida, diversas memórias e experiências do passado que são narradas,

interpretadas e ressignificadas no tempo presente, à luz de expectativas futuras.

Tendo em mente o panorama e a abrangência dos múltiplos sujeitos e agentes da

história, optou-se, no projeto de mestrado2, por estudar um grupo específico e muito

importante: os professores de História da educação básica. Por meio da metodologia da

história oral baseada na gravação de entrevistas, buscar-se-á analisar suas narrativas, suas

histórias de vida, suas memórias, suas experiências e expectativas pessoais e profissionais,

individuais e coletivas (ELIAS, 1994). Concomitantemente a este movimento, será realizado

outro, de análise das aulas desses mesmos professores, buscando perceber como eles utilizam

suas histórias de vida, trajetórias, memórias, experiências e expectativas na sua prática

docente para ensinar história. No entanto, para este artigo em particular, estabeleceu-se um

1* UFF, Mestrando em História, apoio CAPES 2 Projeto de mestrado orientado pela Profº Drº Juniele Rabelo de Almeida, PPGH-UFF

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recorte dentro desse projeto mais amplo, tendo como foco as entrevistas registradas de uma

professora que se encontra vinculada a uma escola estadual do Rio de Janeiro.

O material empírico analisado encontra-se integrado ao grupo de pesquisa, coordenado

pelo Profº Drº Fernando Penna, “Negociando a distância entre passado, presente e futuro em

sala de aula: a relação entre o tempo histórico e a aprendizagem significativa no ensino de

história”, do qual faço parte, e está vinculado ao Laboratório de Ensino de História da UFF.

2. Problemas historiográficos, justificativa e relevância do tema

O tema da relação entre as histórias de vida de professores e a prática docente em

história levanta algumas questões importantes que contribuem para reflexões teóricas tanto no

campo da história oral, quanto no campo do ensino de história, tendo a teoria da história como

pano de fundo: Como, por meio das entrevistas e de um trabalho de história oral de vida de

professores, podemos refletir sobre questões do ensino de história? Como as trajetórias e

histórias de vida de professores são mobilizadas em sala de aula para ensinar história? Qual a

importância da relação entre a história de vida de um professor, suas narrativas, memórias e

experiências e sua prática docente em sala de aula? Em que isso pode contribuir para uma

educação de qualidade e uma aprendizagem significativa em história?

Ao pesquisar as histórias de vida dos professores, busca-se relatos de memórias,

experiências e expectativas que vão desde a sua infância, perpassam a sua adolescência e seu

período de estudo no ensino básico, depois a sua fase adulta e o período de formação na

universidade, até chegar ao seu trabalho como docente nas escolas. As análises das entrevistas

serão feitas baseadas na maneira como os entrevistados constroem “narrativas de si” (ALVES,

2008; GOMES, 2004), ou seja, como eles elaboram uma história própria buscando dar sentido

e coerência a uma vida marcada por descontinuidades. A intenção é analisar não apenas o que

eles fizeram, mas o que eles queriam fazer, o que eles acreditavam estar fazendo, o que eles

agora pensam que fizeram, e o que eles querem fazer (PORTELLI, 1991). Desse modo, a

identificação das memórias, das experiências e das expectativas que foram e são mais

significativas nas vidas desses professores será de fundamental importância para refletir sobre

que identidade eles querem construir de si mesmos.

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Nesses relatos, também será analisado como os professores enxergam a sua própria

prática docente, ou seja, como é o cotidiano nas escolas, quais são suas experiências e

memórias tanto dentro quanto fora de sala de aula, o que eles esperam e consideram

importante no ensino de história, quais são suas referências para ensinar história, como são

suas relações com os alunos, com seus pares e com a comunidade escolar, quais são as

dificuldades do seu trabalho, etc.

Mas por que estudar as histórias de vida dos professores? Os professores de História

do ensino básico são um dos principais responsáveis pela atribuição de sentido no ensino de

história. São eles quem mobilizam, com relativa autonomia, os saberes sociais e os saberes da

prática docente dentro de sala de aula. Esses saberes docentes são saberes disciplinares,

curriculares, profissionais/pedagógicos e, principalmente, saberes experienciais, ou seja, suas

histórias, suas memórias, seus valores e suas formas de pensar e agir no mundo (saber-fazer e

saber-ser), incorporados ao longo do tempo, durante sua trajetória de vida pessoal, familiar,

profissional e coletiva (TARDIF, 2002). E são esses saberes experienciais que nos interessam

e serão investigados nesta pesquisa.

Durante a realização desses dois movimentos, as entrevistas e as aulas, a problemática

sobre o tempo será outro aspecto fundamental para o estudo das histórias de vida dos

professores. Por meio da apropriação das categorias de espaço de experiências e horizonte de

expectativas propostas por Reinhart Koselleck, é importante pensar a relação entre as histórias

de vida dos professores e a maneira como os mesmos articulam as dimensões temporais do

passado e do futuro nas suas narrativas produzidas no tempo presente (KOSELLECK, 2006).

Sabemos que o tempo é um elemento fundamental no estudo da História, devido ao

seu caráter de múltiplas faces, que implica permanências, mudanças, convenções,

representações, simultaneidades, continuidades, descontinuidades e sensações (lentidão e

rapidez). Como nos diz Lucília Neves, o tempo “é um processo em eterno curso e em

permanente devir. Orienta perspectivas e visões sobre o passado, avaliações sobre o presente

e projeções sobre o futuro” (NEVES, 2010: 33).

Além disso, vale ressaltar outra questão importante no que diz respeito às aulas de

história: os professores não só falam de suas histórias, memórias, experiências e expectativas

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em sala, mas também de histórias de vida, memórias, experiências e expectativas de outros

sujeitos históricos. Desse modo, é válido analisar também como os professores utilizam essas

outras histórias de vida dentro de sala de aula para ensinar história. Acredita-se que os usos

dessas histórias de vida, tanto as próprias histórias dos professores quanto as histórias de vida

de outros sujeitos históricos, podem contribuir para a diminuição das distâncias entre os

alunos e o professor, entre os alunos e a construção do conhecimento histórico, e também

entre a vida dos alunos no presente, a realidade passada e a perspectiva futura, tornando,

assim, o ensino de história mais interessante e mais significativo (PENNA, 2014b;

MONTEIRO, PENNA, 2011).

Assim sendo, a proposição dessas questões e problemas visa colaborar para reflexão

teórica no que diz respeito tanto aos estudos de história oral quanto as produções na área de

ensino de história, buscando estabelecer diálogos e aproximações entre esses domínios do

conhecimento. Esta pesquisa também tem a intenção de contribuir para enriquecer a discussão

em torno dos conceitos de história de vida, memória, tempo, experiência e expectativa,

narrativa e prática e saber docente, que são noções fundamentais para a história oral, para a

teoria da história e para o ensino de história.

3. Fundamentos teórico-metodológicos da pesquisa

3.1 Discussões conceituais em torno da história oral: tempo, memória e identidade

A metodologia da história oral, entendida como um procedimento, um caminho, para

produção do conhecimento histórico, estimula a reflexão de diversas questões e problemáticas

não só particulares à própria prática da história oral, mas também concernentes à teoria da

história. Com esse método busca-se, através da entrevista, do registro da narrativa e do

trabalho de construção da fonte oral, provocar testemunhos, versões e interpretações sobre a

história em seus aspectos factuais, temporais, espaciais, conflituosos e consensuais.

A pesquisa em história oral é marcada por uma combinação: de um lado, temos a

ilusão de restabelecimento do vivido através de um relato que tende a superar as

descontinuidades de uma trajetória de vida, e que encanta e fascina tendo como base a

vivacidade do passado de um indivíduo, único e singular; de outro, temos a construção

narrativa entendida como um processo de seleção, interpretação e (re)significação do passado,

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baseada na experiência concreta e viva do sujeito que narra, e que envolve o trabalho de

memória e o trabalho de linguagem (ALBERTI, 2004)

Tendo em vista a impossibilidade de apreender a totalidade de uma vida inteira e de

restabelecer o vivido de maneira objetiva, como uma coisa dada, a história oral, então,

“privilegia a recuperação do vivido conforme concebido por quem viveu” (NEVES, 2010:

16), ou seja, por meio de sua subjetividade, através das suas interpretações e representações,

em diálogo com o entrevistador. Assim, como nos diz Lucília Neves, a metodologia da

história oral “não é, portanto, um compartimento da história vivida, mas, sim, o registro de

depoimentos sobre essa história vivida” (NEVES, 2010: 15-16)

Os conceitos de tempo, memória e identidade na história oral são fundamentais para a

compreensão da relação entre indivíduo e sociedade, subjetividade e objetividade. Segundo

Lucília Neves, a fonte oral é caracterizada por múltiplos tempos, ou seja, pelo tempo passado

pesquisado, pela trajetória de vida do entrevistado, pelo tempo presente que estimula e orienta

as visões, as interpretações, as perguntas e as respostas sobre o passado (NEVES, 2010: 16), e

também pelo tempo futuro, já que essas orientações também estão relacionadas com as

expectativas de cada um.

É importante ter em mente que em conjunturas e contextos diferentes da história, os

sujeitos e agentes constroem análises e representações específicas sobre o tempo, sobre o

acontecido e sobre o vivido. O tempo, então, é uma categoria construída e compartilhada

socialmente. Numa entrevista, essa relação entre as temporalidades não nos diz apenas do

sujeito que narra, mas nos diz também sobre as dinâmicas sociais em que ele estava e está

inserido.

A memória, outro elemento fundamental nas fontes orais, segundo Ecléa Bosi, “é um

cabedal infinito do qual só registramos um fragmento” (BOSI, 2006: 39), e expressa tanto as

dimensões do tempo individual quanto as dimensões do tempo coletivo. Durante a entrevista,

o narrador realiza um trabalho de memória que pode ser caracterizado tanto pela busca e

seleção de algumas lembranças específicas quanto pelo silenciamento e esquecimento de

outras, dentro de uma pluralidade de lembranças de acontecimentos relacionados à sua vida

pessoal e social. Esse trabalho de memória é um processo ativo de criação de significados

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feito pelo próprio narrador, que (re)interpreta seu passado e sua trajetória de vida no momento

que relata a sua história e suas experiências. Ao (re)contar sua vida, e aqui baseado em Pollak,

o narrador tenta estabelecer certa coesão e continuidade por meio de laços lógicos entre

acontecimentos-chave.É um trabalho de (re)construção de si mesmo que o sujeito/agente

tende a passar. Um trabalho de (re)construção de identidade que tende a definir seu lugar

social e suas relações com os outros, e isso acontece tanto no nível individual quanto no nível

coletivo (POLLACK, 1989).

A memória, sendo um importante recurso para transmissão de experiências

consolidadas ao longo do tempo, já que é materializada na oralidade, é base construtora de

identidades e solidificadora de consciências individuais e coletivas. Ela é inseparável da

vivência concreta da temporalidade, expressa uma historicidade (indica o lugar, o tempo e a

percepção que formam o sujeito histórico) (ALMEIDA, 2013), atualiza o tempo passado,

presentificando-o e tornando-o pleno de significados. Dessa maneira, como sintetiza muito

bem Lucília Neves,

“Tempo e memória, portanto, constituem-se em elementos de um único processo,

são pontes de ligação, elos de corrente, que integram as múltiplas extensões da

própria temporalidade em movimento. A memória, por sua vez, como forma de

conhecimento e como experiência, é um caminho possível para que sujeitos

percorram os tempos de sua vida” (NEVES, 2010: 38).

3.2 “Espaço de experiência” e “horizonte de expectativa”: passado e futuro

presentificados

Ao analisar as histórias de vida dos professores, temos como base a definição de

tempo histórico elaborada por Reinhart Koselleck, no sentido de que em um determinado

presente histórico, os sujeitos/agentes históricos articulam as dimensões temporais do passado

e do futuro de diferentes maneiras. Pensando nisso, o autor concebeu que o uso das categorias

de “experiência” e “expectativa” é essencial para refletir sobre o tempo histórico. Desse

modo, as duas categorias podem ser definidas como:

“A experiência é o passado atual, aquele no qual acontecimentos foram incorporados

e podem ser lembrados. Na experiência se fundem tanto a elaboração racional

quanto as formas inconscientes de comportamento, que não estão mais, ou que não

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precisam mais estar presentes no conhecimento. Além disso, na experiência de cada

um, transmitida por gerações e instituições, sempre está contida e é conservada a

experiência alheia. Nesse sentido, também a história é desde sempre concebida

como conhecimento das histórias alheias. [...] Algo semelhante se pode dizer da

expectativa: também ela é ao mesmo tempo ligada à pessoa e ao interpessoal,

também a expectativa se realiza no hoje, é futuro presente, voltado para o ainda não,

para o não experimentado, para o que apenas pode ser previsto. Esperança e medo,

desejo e vontade, a inquietude, mas também a análise racional, a visão receptiva ou

a curiosidade fazem parte da expectativa e a constituem.”(KOSELLECK, 2006: 309-

310).

Neste trecho, pode-se destacar que a experiência é tudo aquilo que é incorporado ao

longo de uma trajetória de vida, é o passado tornado presente, atualizado, através da memória

e do ato de lembrar. As experiências, assim como a memória e as representações de tempo

como foi dito acima, são compartilhadas socialmente e são transmitidas de geração em

geração. Já a expectativa, é futuro tornado presente, é o ainda não experimentado, que se

encontra apenas no horizonte, mas que também é ao mesmo tempo pessoal e coletivo.

Portanto, “espaço de experiência” e “horizonte de expectativa” são duas categorias

constitutivas da história e do seu conhecimento, e são importantes para pensarmos a relação

entre as histórias de vida dos professores e o tempo histórico, já que elas entrelaçam, no

tempo presente, passado e futuro, hoje e amanha, ao mesmo tempo, que dirigem e orientam as

ações concretas no mundo, ou como diz Koselleck, no movimento social e político

(KOSELLECK, 2006: 308) O mesmo ainda enfatiza que,

“[...] o tempo histórico não apenas é uma palavra sem conteúdo, mas também é uma

grandeza que se modifica com a história, e cuja modificação pode ser deduzida da

coordenação variável entre experiência e expectativa.” (KOSELLECK, 2006: 309).

Com isso, pode-se afirmar que as diferentes maneiras de articulação entre “espaço de

experiência” e “horizonte de expectativa” em um determinado presente geram diferentes

concepções de tempo histórico.

3.3 Narrativa: expressão da experiência humana no tempo

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A narrativa, nesta pesquisa, é entendida como um dos principais fundamentos do

trabalho de história oral. Esta metodologia, como já foi dito acima, baseia-se na gravação de

entrevistas de caráter histórico com sujeitos/agentes que possuem suas histórias, modos de

vida, suas memórias, e que viveram e experienciaram acontecimentos, conjunturas e

movimentos durante as suas trajetórias pessoais e coletivas. Dessa maneira, a expressão e

transmissão dessas situações vividas pelos entrevistados só podem ser feitas por meio da

narração.

A “narrativa no ensino de história” se constitui de maneira distinta da “narrativa na

entrevista de história oral de vida”, e possui outras características, objetivos e formas de

análises. O professor dentro de sala de aula não está ali para transmitir conhecimento, e sim

para estabelecer diálogos e reflexões com os alunos e estimular uma produção conjunta de

conhecimento. Nessa narrativa, os professores também integram suas histórias, suas

memórias, suas experiências e suas expectativas aos conteúdos dados dentro de sala de aula.

Desse modo, para analisar essas narrativas, é valida a apropriação do conceito de

narrativa proposto por Ricoeur, tendo em mente suas possíveis articulações com os escritos de

Koselleck (REIS, 2006), quando o mesmo afirmou que “a experiência temporal manifesta-se

à superfície da linguagem, de maneira explícita ou implícita” (KOSELLECK, 2006: 15).

Como nos diz Ricoeur, “o tempo torna-se tempo humano, na medida em que está articulado

de modo narrativo; em compensação a narrativa é significativa na medida em que esboça os

traços da experiência temporal.” (RICOEUR 1994: 17).

Como nos diz Almeida, para Ricoeur,

“‘Só há tempo pensado quando narrado’; a narrativa histórica como uma ‘quase

intriga’ reúne explicação e compreensão. A história expressa representações, o seu

caráter ‘quase ficcional’ é controlado pela documentação, cronologia e leitura. O

mundo cultural é compartilhado e ressignificado pela narrativa histórica, que se

traduz nas variações interpretativas do passado. A construção do conhecimento

histórico como narrativa, não prevê a pretensão de reconstituição absoluta do

passado.” (ALMEIDA, 2013: 50).

Sendo entendida dessa forma, como expressão da ação e da experiência humana no

tempo, a narrativa (múltipla, variável e “quase ficcional”) é a transformação daquilo que foi

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vivenciado em linguagem, é o processo de seleção e organização dos eventos de acordo com

determinado sentido, feito pelos sujeitos/agentes no ato de contar. Segundo Alberti, é um

“trabalho de transformar lembranças, episódios, períodos da vida (infância, adolescência,

etc.), experiência, em linguagem.” (ALBERTI, 2004: 79).

3.4 Os saberes experienciais no ensino de história

A prática docente, como um todo, é marcada pela composição de vários saberes

provenientes de diferentes fontes. Segundo Maurice Tardif, esses saberes são os saberes

disciplinares, curriculares, profissionais e experienciais, e constituem o que ele chama de

saber docente (TARDIF, 2002: 33). Esse saber docente é plural e formado pela amálgama,

mais ou menos coerentes, desses saberes, que são colocados em prática na sala de aula.

Para Tardiff, os saberes experienciais são saberes que os professores desenvolvem no

exercício de suas funções e na prática de sua profissão, baseados em seu trabalho cotidiano e

no conhecimento do seu meio, em valores e maneiras de ser e agir que foram incorporados

durante sua trajetória de vida pessoal, familiar e profissional, individual e coletiva (TARDIF,

2002: 38-39).

Porém, dentre essa gama de saberes, Tardiff destaca que os saberes experienciais

surgem como núcleo vital do saber docente, já que os próprios professores interrogados

afirmam que os saberes adquiridos através da experiência constituem os fundamentos da

prática docente (TARDIF, 2002: 48). Desse modo,

“Estes saberes não se encontram sistematizados em doutrinas ou teorias. São saberes

práticos (e não da prática: eles não se superpõem à prática para melhor conhecê-la,

mas se integram a ela e dela são partes constituintes enquanto prática docente) e

formam um conjunto de representações a partir das quais os professores interpretam,

compreendem e orientam sua profissão e sua prática cotidiana em todas as

dimensões. Eles constituem, por assim dizer, a cultura docente em ação” (TARDIF,

2002: 49)

Durante os acompanhamentos nas aulas e também nas entrevistas os saberes

experienciais dos professores serão identificados e analisados. Na sala de aula a atenção será

voltada para maneira como os professores integram suas histórias de vida, suas memórias,

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suas experiências e expectativas, pessoais e profissionais, na sua prática docente cotidiana. E

nas entrevistas, será dada atenção à maneira como os professores atribuem sentido e

significados a esses saberes experienciais na sua construção narrativa, e como esses saberes

encontram-se intimamente ligados a sua identidade como professor.

4. Análise do material empírico

Conforme dito anteriormente, este artigo priorizou a análise de um material específico

da pesquisa: as entrevistas da Regina, uma professora da rede estadual de ensino do Rio de

Janeiro 3. A primeira entrevista abordou questões sobre sua trajetória pessoal, familiar e

profissional, a escolha pelo curso de História, o papel do professor atualmente, a função da

história e do ensino da história, a relação entre passado e presente, a relação entre professor e

aluno, etc. A segunda entrevista, feita depois do acompanhamento e observação das aulas,

abordou questões mais cotidianas e práticas da atividade docente dentro de sala de aula e

dentro da escola, ou seja, preparação de aula, o método de ensino da professora, a relação da

professora com a direção e a SEEDUC, etc. Como será visto a seguir, por meio dos trechos

das entrevistas, Regina possui um perfil de uma professora militante, com posicionamento

político forte, e que faz questão que seus alunos tenham também consciência política e uma

visão crítica da realidade em sua volta.

Primeiramente, vale destacar alguns trechos considerados importantes da primeira

entrevista, selecionados de acordo com as problemáticas e os objetivos descritos acima. O

primeiro trecho trata sobre a opção pelo curso de história:

"Regina: E aí eu me decidi, eu não vou fazer literatura, eu vou fazer história, eu

queria descortinar as coisas, né? E o que é interessante, porque eu venho de uma

família...de militares, meu pai e meus tios todos assim de alta patente. Meu pai só

não chegou ao generalato porque teve problema de saúde, mas os meus dois tios, um

da Aeronáutica e um da Marinha assim né...Então eu achava que alguma coisa ali

não...eu já contei essa história em sala, não funcionava. Criança e ouvindo assim

umas conversas né...sobre os subversivos e a repressão...gente não estou entendendo

3 A primeira entrevista foi realizada no dia 13/08/2014 e a segunda entrevista foi realizada no dia 15/12/2014, após o acompanhamento e registro das aulas. Ambas foram conduzidas pelo Profº Drº Fernando Penna, acompanhada pela Renata, uma integrante do grupo de pesquisa. O processo de elaboração de perguntas e, posteriormente, de debate das entrevistas foi realizado pelo grupo.

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esse...Então, à medida que eu fui ficando adolescente, mais velha, eu comecei a

processar aquela...eu falei 'tem coisa errada aí e eu quero descobrir o que é né'

[risos]. E as aulas do professor Emir então me...elucidaram bastante, e aí eu falei 'é

isso, eu quero estudar história'."

Neste trecho, pode-se perceber como a entrevistada começa a construir uma linha

narrativa procurando dar sentido a sua história de vida e sua trajetória como professora de

história. De início, ela diz que trocou o curso de Literatura pelo curso de História porque

queria "descortinar as coisas". Logo em seguida, ela faz uma relação estreita entre isso e sua

história familiar, contando que seus pais e tios são militares, e que desde criança ela ouvia

umas conversas "sobre os subversivos e a repressão" e que não entendia no momento, mas

quando ficou mais velha começou a entender, e julgava que tinha alguma coisa errada naquilo

e queria descobrir o que era. Em outro momento da entrevista, ela inclusive comenta que teve

uma relação difícil com o pai, por ele ser militar, "linha dura", e por ele ser contra ela fazer o

curso de História, porque era curso de "subversivos e comunistas". Ela diz que ele queimava

seus livros de Karl Marx, e que inclusive ficou um tempo sem falar com ele e se mudou para

ir morar com uma tia.

No início do trecho acima, percebemos como essa referência a uma história familiar

está relacionada com o forte posicionamento político e crítico da professora, que é um

elemento constante nas entrevistas. Logo nas suas primeiras palavras ela já traça uma

continuidade entre o passado e o presente, estabelecendo como marco a própria história

familiar, suas memórias e experiências que ela traz consigo desde pequena. E isso também é

vinculado com a sua escolha de fazer o curso de história. É interessante destacar também que

ela já contou essa história em sala, ou seja, é uma das indicações de que ela leva suas

memórias e experiências pessoais/familiares para dentro de sala de aula para ensinar história.

Ao comentar sobre quando fazia o curso de História, Regina fala sobre um problema

de saúde que a impediu de continuar o curso e ela teve que trancar um período:

Regina: Aí eu tive que trancar um período...e é por isso que eu tava falando que

história passou a fazer parte da minha vida, sabe? E eu me sentia...perdida,

vazia... mas eu precisei me afastar, porque realmente foi um processo bem

complicado, bem complexo. Mas serviu também para me dar uma certeza, sabe,

que...era muito mais do que um curso que eu estava fazendo para me direcionar

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profissionalmente...era uma questão existencial...fundamental assim...tanto quanto o

ar que eu estava respirando, né? [...] E aí eu procuro passar isso pra eles, sabe? Eu

sou tão apaixonada, eu sou tão...sabe, assim...vidrada. Acho que história, ao mesmo

tempo que ela te dá muitas respostas ela te traz tantas angústias né...ela te faz tão

feliz mas ela te faz sofrer tanto... entendeu? Que é...é viciante, é muito viciante.

Então, eu procuro transmitir isso pra eles, eu fico, "mesmo que vocês não venham a

ser professores de história"...eu não consigo entender, sabe, um profissional seja ele

da área de saúde, administrativa, da informática, que não tenha, sabe, essa

visão, essa conscientização. Então história está acima de tudo e de todos..."vocês

tem que estudar história!" [Fernando: A história não é só para o historiador né?]

Não! Sabe..."vocês tem que fugir da alienação"..."vocês não podem se deixar

manipular"...e aí assim eu vou...vou conversando com eles"

Podemos ver, no trecho acima, que a relação entre a história de vida pessoal/familiar

da professora e a maneira como ela enxerga a história e o próprio ensino de história fica mais

evidente. No primeiro momento, para ela, história é muito mais do que um curso para

profissionalizar, é uma questão existencial, e seu afastamento da universidade quando estava

doente lhe deu a certeza de que ela precisava estudar história na sua vida. Apaixonada e

viciada pela ciência histórica, novamente a professora cita os alunos e diz que tenta transmitir

essa paixão e essa visão para eles, de que a história é fundamental na vida. No segundo

momento, ela novamente demonstra sua forte posição política, sua visão de mundo e seu

objetivo ao ensinar história, dizendo que os alunos precisam ser conscientes, e precisam "fugir

da alienação" e "não podem se deixar manipular". Em outro trecho, essa questão volta a

aparecer com mais clareza:

"Fernando: Qual é a função da história hoje? Que é uma pertinência que você tem

que criar com os seus alunos toda hora.

Regina: Bom...olha só Fernando é...eu acho que ainda é muito pertinente até

porque estamos falando de Brasil, você fazer um trabalho direcionado assim para

conscientização, para eles entenderem bem o que é cidadania sabe, para que eles

consigam fugir o máximo possível das manipulações...Hoje eu estava dando uma

aula na 3001, e eu tava falando sobre os efeitos da guerra fria aqui na América

Latina, falando das ditaduras, ali do Chile, do Allende que eu...eu gosto muito de

trabalhar essa questão, fui para Argentina, aí eu também me detenho porque eu

gosto muito dos Hermanos, falei do futebol, aí foi aquela brincadeira toda, e depois

vim chegando aqui no Brasil. E aí eles me perguntaram, e eu achei tão legal a

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pergunta, 'professora, nós temos uma democracia de fato? O que nós vivemos hoje é

uma democracia?' [Fernando: Boa pergunta né?] [Renata: Podia ter gravado

essa aula] Eu achei tão...sensacional aquilo né? E aí eu fui respondendo com outras

perguntas, para que eles...chegassem às conclusões deles. Fui...ali direcionando,

jogando outras perguntas, e eles falaram 'é...é um/a mera formalidade', e eu falei

'pois é, né?'."

Nesse momento da entrevista, a professora deixa claro a sua visão de história e

também do ensino de história, quando diz que a função da história é conscientizar

politicamente, é fazer com que os alunos tenham uma visão crítica da realidade, e que eles

entendam o que é cidadania. Logo em seguida, relata uma situação que aconteceu dentro de

sala de aula, quando os alunos perguntaram se havia uma democracia de fato no Brasil. Será

que esse relato não pode ser interpretado como uma indicação de que a história de vida

pessoal/familiar da professora, suas memórias e experiências durante sua trajetória, estão

afetando os seus alunos e gerando uma reflexão?

Na segunda entrevista, feita após o acompanhamento das aulas, as perguntas foram

formuladas com base nas gravações realizadas em sala. Uma das perguntas feitas foi

exatamente qual o objetivo da professora em usar suas experiências e de seus familiares nos

temas abordados em sala e se ela acha importante levar essas experiências para os seus

alunos. Ela responde:

"Regina: É, eu acho sim. Como eu vivenciei aquilo...eu nem sei mesmo pra te falar

a verdade, o quanto isso...eu ainda não fiz essa avaliação de uma forma mais

objetiva mesmo. É...se é válido realmente...mas é um impulso talvez, né? Eu vivi

aquilo e... Quando eu trabalho Vargas, é uma coisa que foi muito marcada em mim,

o meu avô. Meu avô era varguista e anti varguista. Como assim? Ele era totalmente

anti varguista no sentido de...de não concordar, e meu avô não era muito instruído,

com toda a política ditatorial de Vargas, o Estado Novo, aquela coisa [...] Por outro

lado, ele tinha um fascínio pela forma dele atuar. Por isso que ele era um anti

varguista, mas ele me dizia isso: 'mas eu não consigo deixar de ver, é uma

inteligência que ele usa para coisas que eu discordo' [...] E ele cantava uma

musiquinha...olha eu nunca esqueci aquela musiquinha, 'bota o retrato de Vargas

outra vez, bota...'. Então, quando eu trabalho a Era Vargas, eu trago pra eles essas

coisas...porque sei lá, aquilo tá tão vivo dentro de mim, aí eu mostro pra eles, 'olha o

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meu avô e tal, ele...'. Eu nem pensava em estudar história, eu ainda era garota, e

ele passava pra mim essas mensagens, né?"

É interessante perceber que ao ser indagada, a professora não tem nenhuma resposta

pronta, já que ela não fez uma avaliação objetiva sobre isso, ela apenas diz que é um

"impulso", já que ela vivenciou aquilo. Ao contar do avô em sala de aula quando trata da Era

Vargas, ela leva para sala de aula não somente as memórias e as experiências do seu avô que

foram passadas para ela oralmente, mas também ela leva as suas próprias memórias e as

experiências de sua infância. As frases que o avô dizia, as musicas que ele cantava, ainda está

muito vivo dentro dela, como a mesma diz.

Seguindo a entrevista, o professor Fernando, condutor da entrevista, indaga-a

novamente sobre o porquê do uso das suas experiências em sala, tentando elaborar uma

resposta junto com ela, construindo a fonte histórica em conjunto, na relação entrevistador-

entrevistado. Então, ela conta de outras experiências e memórias de familiares que ela utiliza

em sala de aula:

Fernando: Não pode ser outra maneira, como se faz com o filme, de concretizar

aquilo?

Regina: Pode ser. É verdade, pode ser. [Fernando: Que aí você traz uma

experiência de alguém que viveu, uma coisa menos abstrata né?] Isso, que

viveu. Minha tia, ela não é nem minha tia é minha prima, é prima da minha mãe...e

convive com a gente, ela tá com 95 anos, bem à beça. O marido dela, ele foi

integrante da FEB, e ele foi pra Itália, e ele foi lutar mesmo, ele não ficou só

comandando tropa, ele participou de todas aquelas movimentações ali no Monte

Castelo. Quando minha tia, eu chamo de tia, a gente foi criada muito junta - "ai tia

tia tia" - quando...e ela conta isso pra nós, que quando ele voltou, ele voltou

mal...mal psicologicamente, não fisicamente, muito mais psicologicamente. Ele

passou por um longo período de readaptação, de trabalhos piscológicos. Depois ele

já tava melhor, ele começou a contar as experiências [...] Então, quando eu trabalho

toda essa participação do Brasil na guerra, eu também falo dessa experiência do meu

tio, que eu mal conheci, mas que minha tia sempre manteve viva essa memória

dele, contando pra mim, para minhas irmãs essa participação do meu tio na

guerra. Eu acho que é como isso que você me falou mesmo...pra não parecer que é

só uma coisa de livro né? As pessoas viveram aquele momento."

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Novamente a professora relata um caso de um parente, agora o tio que era da FEB e

participou da Segunda Guerra Mundial. Quando ela trata do tema em sala de aula, ela leva as

experiências e as memórias do tio, da tia e as suas próprias para os seus alunos, com a

intenção de tornar a história mais viva para os mesmos e não parecer "só uma coisa de livro".

O interessante é pensar que ela fez uma avaliação do seu próprio método de ensino de história

durante a entrevista, durante a narração das suas próprias experiências, já que no momento da

pergunta ela não tinha uma resposta pronta.

5. Conclusão

Após a análise dos trechos da entrevista e com base nas referências teórico-

metodológicas apontadas acima, pode-se concluir que a professora entrevistada estabelece

uma relação íntima entre sua história de vida e o ensino de história, e utiliza constantemente

suas memórias, suas experiências e suas expectativas pessoais/familiares e coletivas para

tornar a história mais significativa para os seus alunos.

Sua visão de mundo politizada, elaborada a partir de suas experiências compartilhadas

durante sua trajetória de vida, é o que fundamenta a sua prática docente em história. É uma

identidade que ela constrói de si mesma na prática cotidiana da sala de aula, na relação de

ensino-aprendizagem com seus alunos, e no momento em que ela narra as lembranças e os

episódios da sua vida. Desse modo, percebemos como o saber experiencial é um elemento

crucial no modo como a professora Regina ministra suas aulas e concebe o ensino de história.

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