1.° caderno rmc em debate - alexsandro teixeira ribeiro

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Publicação do Projeto Região Metropolitana de Curitiba em Debate Sindicato dos Engenheiros no Estado do Paraná. Julho de 2009 HABITAÇÃO DE INTERESSE SOCIAL X PRESERVAÇÃO DE MANANCIAIS Como a precariedade da gestão metropolitana e a falta de política habitacional para baixa renda comprometem a qualidade da água na Grande Curitiba ReportagemAs propostas de urbanização da Vila Zumbi e do Guarituba vão vingar? Página 3 EntrevistaRosa Moura, doutora em Geografia pela UFPR e pesquisadora do Ipardes e do Observatório de Políticas Públicas”Só novo modelo de gestão resolve desigualdades na RMC” Página 7 ArtigosValter Fanini (Senge-PR) Página 14 Simone Aparecida Polli (Ambiens) Página 18 Valter Fanini e Joel Krüger (Crea-PR) Página 22 Franciso Mendonça e Admilson Lopes (Geografia, UFPR) Página 25 Ilustração: Alexsandro Teixeira Ribeiro

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Page 1: 1.° caderno RMC em Debate - Alexsandro Teixeira Ribeiro

Julho de 2009 29

Publicação do Projeto Região Metropolitana de Curitiba em DebateSindicato dos Engenheiros no Estado do Paraná. Julho de 2009

HABITAÇÃO DEINTERESSE SOCIAL

XPRESERVAÇÃODE MANANCIAIS

Como a precariedadeda gestão metropolitana

e a falta de políticahabitacional para baixa

renda comprometema qualidade da águana Grande Curitiba

Reportagem As propostas de urbanização da Vila Zumbi e do Guarituba vão vingar? Página 3

Entrevista Rosa Moura, doutora em Geografia pela UFPR e pesquisadora do Ipardes e doObservatório de Políticas Públicas ”Só novo modelo de gestão resolve desigualdades na RMC” Página 7

Artigos Valter Fanini (Senge-PR) Página 14 Simone Aparecida Polli (Ambiens) Página 18 Valter Fanini eJoel Krüger (Crea-PR) Página 22 Franciso Mendonça e Admilson Lopes (Geografia, UFPR) Página 25

Ilustração: Alexsandro Teixeira Ribeiro

Page 2: 1.° caderno RMC em Debate - Alexsandro Teixeira Ribeiro

RMC em debate. Primeiro caderno 2

Apresentação Valter Fanini, presidente do Senge-PR

Um grande e inescapável desafioVocê tem em mãos o primeiro caderno

editado pelo projeto Região Metropolita-na de Curitiba (RMC) em Debate. O pro-jeto é uma iniciativa do Sindicato dos En-genheiros no Estado do Paraná (Senge-PR), com apoio valioso de entidadescomo a Ambiens Brasil e o Crea-PR.

O projeto nasceu da inquietação dediretores do Senge-PR sobre a falta dediscussão do frágil e insuficiente plane-jamento sobre a Grande Curitiba. Ques-tões cotidianas da cidade relacionam-sediretamente com isso — a qualidade daágua que bebemos, a preservação domeio ambiente que cerca Curitiba, otransporte coletivo entre a capital ecidades vizinhas e o sistema viário metro-politano são apenas alguns exemplos.

Do projeto, que inclui debates e se-minários públicos que planejamos paraos próximos meses, nasce este caderno, oprimeiro que editamos para abrir um fó-rum de discussões sobre o planejamentourbano da RMC. Esta publicação tratado conflito entre o direito à habitação e anecessidade de preservarmos os manan-ciais de água que abastecem toda aGrande Curitiba. Outros cadernos virãoem seguida, tratando de temas comomobilidade metropolitana, desenvolvi-mento econômico regional e um novomodelo de gestão para a RMC.

Cremos que preenchemos uma la-cuna importante, pois trata-se aqui dofuturo de uma cidade que, embora can-tada em verso e prosa como modelo deurbanismo, revela problemas graves deplanejamento que desembocaram, porexemplo, na ocupação irregular de ma-nanciais de água. Isso pra não falarmosdo futuro das cidades vizinhas a Curitiba,que inclui de municípios ricos e bemestruturados a cidades-dormitório ourincões de pobreza. É, como se vê, umaquestão delicada. Assim, a sociedade esuas organizações não podem fechar os

olhos para o problema, ainda que o po-der público o faça. Com este caderno,que coloca nas ruas a discussão quepromovemos, o Senge-PR cumpre essepapel, e convoca outras entidades parase juntarem a nós na discussão.

Na Região Metropolitana de Curi-tiba, sem que se atribua responsabili-dades especiais a este ou aquele gover-no, é fato que a estrutura de planeja-mento e implementação de políticas doórgão metropolitano é hoje praticamenteinexistente. O órgão, na verdade, sobre-viveu praticamente do interesse e daabnegação de alguns de seus técnicos,já que seu quadro de funcionários —que já somou mais de uma centena depessoas — se reduziu a menos de umadúzia de servidores.

Em 2001, ensaiou-se uma retomadado processo de planejamento integradometropolitano. Deu-se início, então, àelaboração de um novo Plano de De-senvolvimento Integrado para a GrandeCuritiba. Dadas as dificuldades estrutu-rais da Comec, este plano somente ficoupronto no ano de 2006, e começou a serdistribuído para o público em 2008.

Da leitura desse documento — quetrata ainda parcialmente das questõesde desenvolvimento metropolitano, cen-trando foco no ordenamento territorial eno modelo de gestão metropolitana —, épossível verificar o quanto é necessáriofazer para estruturarmos uma políticaconsistente de desenvolvimento metro-politano, principalmente quanto à ges-tão das funções públicas de interessecomum dos municípios metropolitanos.

Pouco, ou nada disso, se está fazen-do atualmente. Se vasculharmos a Co-mec e os demais órgãos de planejamentodo Estado do Paraná, certamente nãoencontraremos nenhuma política setorialpara o tratamento de questões urbanasregionais, como transporte público de

passageiros, sistema viário metropolitano, co-leta e tratamento de lixo, habitação de inte-resse social, expansão urbana, preservaçãode mananciais e desenvolvimento econômico.

Diante deste quadro, o que devemos fa-zer? Nos resignamos, aceitando a inaçãocomo fatalidade, ou nos transformamos emprotagonistas, em agentes de transformação?No passado, num Estado ditatorial, coube aum quadro de tecnocratas perceber as de-mandas derivadas do fenômeno de concen-tração da população brasileira em grandesaglomerados urbanos e tratá-las com umconjunto de políticas públicas. Hoje, tais de-cisões cabem a políticos eleitos para cargosexecutivos e legislativos. Sabemos, no entan-to, que a agenda política é escrita a partir dedemandas da sociedade, que em sua maioriareclama de efeitos sem conseguir identificarsuas causas. Dessa forma, o que vemos sãogovernos adotando ações pontuais que nãoatacam a origem dos problemas, não conse-guem eliminá-los definitivamente. Fica entãoa pergunta: como reestruturar as instituiçõesresponsáveis pela condução dessas políticas?Como torná-las protagonistas no desenvolvi-mento da Região Metropolitana de Curitiba?

Em nossa opinião, há apenas um caminho— a participação da sociedade, de organiza-ções profissionais e atores sociais que detêmconhecimento necessário para promover odebate e formular proposições que cheguemà classe política e possam influenciá-la.Assim, o Senge-PR dá início a esse conjuntode ações para analisar de forma crítica aformulação e implementação das políticas dedesenvolvimento da Grande Curitiba.

O Senge-PR considera fundametntal reali-zar esse debate agora, uma vez que a Assem-bleia Legislativa começa a discutir em 2009 oProjeto de Lei 212/08, que trata da imple-mentação de um novo modelo de gestão paraas funções públicas de interesse comum dosmunicípios da Região Metropolitana de Curi-tiba. O desafio que temos pela frente égrande. Mãos à obra, portanto.

Este caderno é uma publicação do projeto Região Metropolitana de Curitiba em Debate

Organização e coordenação Sindicato dos Engenheiros no Estado do Paraná (Senge-PR)

Assessoria Técnica Ambiens Sociedade Cooperativa

Apoio Conselho Regional de Engenharia, Arquitetura e Agronomia do Paraná (Crea-PR), Observatório de Políticas Públicas do Paraná,Departamento de Geografia da Universidade Federal do Paraná, Sindicato dos Arquitetos do Paraná (Sindarq)

Edição Rafael Martins (Reg. Prof. 3.849 PR) Reportagem Camila Castro

Fotografia, ilustração e diagramação Alexsandro Teixeira Ribeiro Fale conosco [email protected]

Artigos assinados são de responsabilidade dos autores

O Senge-PR permite a reprodução do conteúdo deste jornal, desde que a fonte seja citada. Fotolitos/impressão Reproset Tiragem 4 mil exemplares

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Vila Zumbi e Guarituba:exemplos bem sucedidosde urbanização?

Reportagem

Poder público age para urbanizar e regularizar grandes áreas de ocupaçãoem áreas de preservação e de mananciais na Região Metropolitana deCuritiba. Mas intervenções chegam com 20 anos de atraso. E, semações integradas para evitar novas ocupações e oferecer moradia afamílias de baixa renda, os problemas vão continuar a acontecer,alertam especialistas. Reportagem de Camila Castro

Pais desempregados, três filhos, semrenda, sem moradia. Perfil de uma famíliacomo centenas de outras tantas que seinstalaram em áreas de mananciais deabastecimento de água no Paraná em buscade uma vida melhor. Sem qualquer estruturaque garantisse alguma qualidade de vida, afamília de Sirlei do Nascimento, 41 anos, tentasobreviver no Jardim Guarituba, área deproteção ambiental em Piraquara, ocupadanos anos 1990 — mesmo caso da Vila Zumbidos Palmares, em Colombo, ambas na RegiãoMetropolitana de Curitiba. Na época, casasforam construídas precariamente às margensdos Rios Iraí, Itaqui e Piraquara, em Guarituba,e do Rio Palmital, em Vila Zumbi, formandobolsões de pobreza extrema. Os resultadosestão, ainda hoje, na péssima qualidade devida e nos danos ao meio ambiente —principalmente o comprometimento daqualidade da água dos rios e mananciais.

Sirlei está desempregada. Veio de Francis-co Beltrão, Sudoeste do Paraná, em procurade emprego e vida melhor na capital. “Viemospara tentar melhorar de vida, mas nãopodíamos comprar uma casa ou morar defavor na casa dos outros, com três filhos.Então, encontramos no Guarituba um lugarpara tentar viver”, conta. Nos primeiros anos,não havia água potável, energia elétrica, coletade lixo ou asfalto, e o esgoto corria a céuaberto. Quase 20 anos depois da ocupação, asituação começa a melhorar graças a um

projeto de urbanização da Companhia deHabitação do Paraná (Cohapar), emandamento na região desde dezembro do anopassado.

Impulsionado por R$ 91,7 milhões eminvestimentos — dinheiro dos governosmunicipal, estadual e federal —, o projetoprevê a execução de 1.116 ligações de águae 17.871 metros de rede de esgoto pelaSanepar. A Copel está instalando rede elétricae postes de iluminação nas ruas. Apavimentação asfáltica é feita pela prefeiturade Piraquara, também responsável pelamanutenção da iluminação pública. Serão 50quilômetros de ruas pavimentadas em asfaltoou blocos de concreto. A Cohapar pretendeconstruir casas populares para realocar as803 famílias que vivem nas áreas de risco, àsmargens do Rio Iraí, como a de Sirlei.

“A licitação será aberta em junho, e aconstrução das casas deve começar emjulho”, afirmou em maio o superintendentede Planejamento e Controle da Cohapar,Marcelo César Ferraz. A terraplenagem paraelevar o nível do terreno está sendo feita peloDepartamento de Estradas de Rodagem(DER) e movimentará 100 mil metros cúbicosde terras. Esta foi a forma encontrada paraevitar a inundação nas 37 quadras de lotes,para onde as famílias serão realocadas. Oprojeto prevê ainda a regularização fundiáriado bairro — 8.087 pessoas terão direito àpropriedade de seus lotes.Sirlei: no Guarituba, um chão para recomeçar a vida >>

Fotos de Alexsandro Teixeira Ribeiro

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RMC em debate. Primeiro caderno 44

Na porta de casa,corre o esgoto

Ainda que louváveis, as obras que tentammelhorar a qualidade de vida de milhares depessoas e reduzir os impactos ambientais daocupação desregrada chegam com 20 anosde atraso. Nesse pe-ríodo, centenas de fa-mílias — principal-mente as que moramem áreas de risco —vivem sem qualquerestrutura, como contaSirlei. “O esgoto correa céu aberto na portade casa. O cheiro éhorrível. Há goteiras,as casas são úmidas,infestadas por mos-quitos e ratos, o ba-nheiro está sempreentupido por conta do esgoto. A coleta delixo é feita apenas duas vezes na semana. Épouco, e lixo se acumula na rua e na portadas casas. Por isso, muita gente ainda jogalixo no rio, apesar da Cohapar pedir para aspessoas para não fazerem isso. Do outro la-do do canal, não há iluminação, e à noite osmoradores têm medo de andar pela área.Não temos opções de lazer, faltam crechese médicos nos postos de saúde”, enumera.

Antes de ficar desempregada, Sirlei tra-balhava como doméstica, e conseguia levarpra casa R$ 600 por mês. Ela é uma das 50mil pessoas que vivem no Guarituba emsituação semelhante — abaixo da linha dapobreza. Do total, 48% não têm acesso a

rede de esgoto e 30% não dispõem de águaencanada, conforme dados fornecidos pelaCohapar e baseados em estudo realizado pelaprefeitura de Piraquara e pelo InstitutoBrasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Na Vila Zumbi, projeto de urbanizaçãosemelhante ao do Guarituba foi executado em2004, com investimentos aproximados de R$

28 milhões, informa aCohapar. Hoje, maisde dez mil pessoasvivem no local, queoferece estrutura umpouco melhor que oGuaritu-ba — 100%da popu-lação temacesso a á-gua potável,rede de esgoto eenergia elétri-ca, maso problema do lixocontinua. A coleta éfeita apenas duasvezes na semana, o

que é pouco, dizem os moradores. As 290famílias que viviam em áreas de risco, na beirado Rio Palmital, foram realocadas para outrasáreas — ao todo, 1.797 lotes regularizados.

Caso da família de Adair Trajano da Silva,39 anos, que hoje trabalha representando aCohapar na Vila Zumbi. Ele lembra que,quando se mudou para a região, em 1994,não havia qualquer estrutura. “Com as chu-vas, havia enchentes, muitas casas ficavamalagadas”, lembra. A ocupação irregularcustou caro a um dos mananciais de abas-tecimento de água da Grande Curitiba,poluído por lixo e esgoto lançado irregu-larmente. “Quando me mudei, podíamospescar no Rio Palmital. Depois de um tempo,

ele estava poluído, com mau cheiro. As pes-soas jogavam lixo no rio, no chão. Apesarde o projeto ter recuperado o Rio, ainda hojese joga lixo ali”, diz Adair.

O Palmital é afluente do Rio Iraí, queabastece mais de 80% da população de Cu-ritiba e Região Metropolitana, o que dá ideiada gravidade do problema. Para minimizara contaminação, o governo do estado recu-perou a margem esquerda do rio e relocouos moradores para casas construídas pelaCohapar. Ainda está prevista a construçãode dois parques, com área de convivência,churrasqueira e playground, para tentarpreservar a área às margens do Palmital.

Paraná tem déficitde 354.280 casas;

88,6% da populaçãoque demanda moradiano Estado ganha atétrês salários mínimos.Na RMC, 85,7% das

115 mil famíliassem moradia digna

ganham até três mínimos

>>

Adair: vida melhor na Zumbi. Mas ainda falta muito

A casa de Sirlei. “Há goteiras, as casas são úmidas, infestadas por mosquitos e ratos, o banheiro está sempre entupido por conta do esgoto”, desabafa

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Em 16 anos, regiãoatraiu 1,1 milhão denovos moradores

As histórias de Adair e Sirlei se confundemcom a falta de gestão e de planejamento paraatender a demanda por moradia, que cresce acada dia com o aumento da população na RegiãoMetropolitana de Curitiba. As cidades maioresatraem pessoas de outros municípios e estadosque buscam emprego, educação, saúde.Levantamento feito pelo Observatório dePolíticas Públicas do Paraná aponta que, entre1991 e 2007, 1,1 milhão de habitantes chegou àRMC, que tem 14 municípios no núcleo urbanocentral e 12 cidades mais distantes. Tal processode crescimento da população deveria viracompanhado de uma política pública de moradiadirecionada a pessoas de todas as classes sociais,ao contrário do que tem sido feito.

“A maioria dos projetos de financiamentode casa própria dirige-se a pessoas que ganhammais de três salários mínimos. A grandedemanda por habitação no País não é formadapor famílias com este perfil de renda”, avalia opresidente do Senge-PR, Valter Fanini. Só emCuritiba, há 50.559 famílias na fila de espera daCohab. Na Região Metropolitana, são outras

6.143 famílias cadastradas, conforme dadosfornecidos pela instituição e apurados até abril.Estudos feitos pelo Ipardes, baseados no censodemográfico do ano 2000, apontam que, em todoo Estado, 169.227 casas precisam ser cons-truídas para atender a demanda por moradia, oque representa 6,35% dos domicílios existentesno Paraná.

Outro estudo, da Fundação João Pinheiro,do governo de Minas Gerais, mostra que há noParaná um déficit habitacional de 354.280 casas,e que 88,6% da população que demanda novamoradia ganha até três salários mínimos. NaRegião Metropolitana de Curitiba, as famíliasque ganham até três mínimos por mês são 85,7%das 115.330 que precisam de moradia. O estudo,divulgado em 2006, se baseia no último censodo IBGE, de 2000.

“A lógica da produção capitalista do espaço

urbano, somada ao modelo de ‘urbanização combaixos salários’ e ao fato do custo da habitaçãonão ter sido historicamente incorporado aoscustos necessários à reprodução do trabalhadorbrasileiro, dificulta o acesso da população demenor poder aquisitivo à moradia. Uma análisedas grandes cidades brasileiras revela comoaspecto marcante a diferenciação dos espaçosresidenciais de acordo com as característicassociais da população predominante em cada umdeles, o que denominamos de segregaçãosocioespacial, que ocorre, portanto, como umaforma de desigualdade”, explica a doutora emPlanejamento Urbano e Regional pelaUniversidade Federal do Paraná (UFPR),Gislene Pereira, também professora do cursode Urbanismo da universidade.

Gislene diz que tal processo leva aoestabelecimento do mercado informal, reflexo >>

Outras obras também foram feitas paramudar a triste realidade da Vila Zumbi, comoa construção de 12 quilômetros de galeriasde águas pluviais, diques de contenção e bom-bas d’água contra as cheias do rio, asfalta-mento de 84 mil metros quadrados de ruas,com acesso para veículos e transporte cole-tivo, além da pavimentação com blocos deconcreto de 63 mil metros quadrados de vias.Realizada há cinco anos, a intervenção naVila Zumbi deixou uma estrutura ainda insu-ficiente para atender a população do local.

Com a urbanização e a regularização fun-diária, as áreas de ocupação se tornam maishabitáveis e as pessoas vivem com um poucomais de dignidade, mas a pobreza e algunshábitos arraigados não mudam, como se notano dia-a-dia da comunidade.

“A situação melhorou, mas faltam cre-ches e áreas de lazer, por exemplo. Os mora-dores não têm com quem deixar as criançasquando elas não estão na escola. As pessoastambém precisam mudar hábitos, cuidar dascasas e não jogar lixo nas ruas, por exem-plo”, comenta Adair. A família dele —esposa e três filhos — tem renda mensal deR$ 600. Vindo de Chopinzinho, interior doParaná, ele também chegou a Curitiba àprocura de emprego.

Fonte: SuderhsaBase cartográfica: Sema (2004)

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RMC em debate. Primeiro caderno 6

do baixo rendimento de grande parcela dapopulação e da reduzida oferta de terras paraessa faixa de renda, já que empreendedores imo-biliários não têm interesse de investir neste seg-mento.

“A ilegalidade em relação à propriedade daterra leva a um processo de exclusão social dapopulação de menor renda, reforçando apobreza, uma vez que à regularidade urbanísticaestá associado o acesso aos demais serviços,desde infraestrutura básica até o exercício dosdireitos de cidadania. Além de fator de exclusãosocial, a ilegalidade fundiária confirma o padrãode segregação sócio-espacial que caracterizaas cidades brasileiras”, argumenta.

“Sendo assim, a população de menor poderaquisitivo tende a ocupar áreas desvalorizadasno mercado imobiliário, como a periferia urbana,precária de serviços, e as regiões ambiental-mente frágeis — fundos de vale, encostas,áreas sujeitas a inundações, áreas de proteçãoambiental. Dessa forma, a ilegalidade fundiáriaé também a manifestação espacial da pobrezaurbana”.

Portanto, enquanto não se estrutura umprograma habitacional capaz de atender apopulação de baixa renda que migra para aRegião Metropolitana, a ocupação de áreas deproteção ambiental, em especial as de manancial,continuará sendo, talvez, a única possibilidadede conquista de um pedaço de terra paradezenas de milhares de famílias.

Professora dos cursos de Doutorado emMeio Ambiente e Desenvolvimento, Mestradoem Construção Civil e graduação emArquitetura e Urbanismo da UFPR, Cristina deAraújo Lima lembra que áreas de risco,localizadas às margens de rios e rodovias, casoda Vila Zumbi e do Guarituba, legalmente nãopoderiam ser vendidas ou alugadas. Afinal, trata-se de áreas de preservação ambiental ou demananciais de abastecimento de água. Mas omercado informal ganha força justamentenessas comunidades pobres.

“São muitos os loteamentos clandestinos emque o loteador vende terrenos que não estãoaprovados para serem comercializados, porterem cobertura vegetal significativa, porexemplo. Nesses locais, os valores são iguaisou até mais caros que um loteamento legal paraa mesma faixa de renda dessas pessoas. Aspessoas chegam a pagar 6 mil, 10 mil reais oumais por um terreno de que elas não terão apropriedade de imediato. Isso mostra a desin-formação, o drama das pessoas que, por nãoterem acesso ao mercado formal de trabalhonem documentos pessoais em ordem, nãoentram no sistema de financiamento demoradias e acabam fazendo negócio comloteadores irregulares”, diz Cristina.

Evolução das Ocupações Irregulares no Aglomerado Metropolitano Número de domicílios População residente

Município 1992 1998 1992 1998Almirante Tamandaré 1.536 4.785 6.451 17.705Araucária 509 1.552 2.102 5.742Campina Grande do Sul 188 584 788 2.161Campo Largo 423 730 1.709 2.701Campo Magro - 1.723 - 6.375Colombo 3.303 6.253 13.740 23.136Curitiba 44.713 53.162 165.438 196.699Fazenda Rio Grande 440 1.557 1.874 5.761Pinhais 1.556 2.293 6.302 8.484Piraquara 197 4.199 648 15.536Quatro Barras - - - -São José dos Pinhais 581 3.838 2.353 14.201TOTAL 58.446 80.676 201.405 298.501

Fonte: Universidade Federal do Paraná (2004). Urbanização e recursos hídricos na Região Metropolitana de Curitiba

Intervenções atendema demanda imediata.Mas e o futuro?

Nesta ocupação irregular e desordenada,sem qualquer intervenção dos poderespúblicos, os problemas ambientais apareceme são seríssimos, principalmente no que serefere à qualidade da água usada paraabastecimento. Afalta de saneamentobásico faz com queas famílias convi-vam com esgoto acéu aberto, contami-nando o solo, e jo-guem lixo nos riosque abastecem as ci-dades. “O ideal seriaque essas áreasnunca tivessem sidoocupadas. Mas, co-mo aconteceu, oprojeto vai regulari-zar a área para quenão haja contamina-ção dos rios a pontode se ter de desati-var os mananciais. O Guarituba é uma obraemblemática, o maior programa de urbaniza-ção do Brasil”, diz o superintendente da Co-hapar, Marcelo Ferraz César.

Valter Fanini lembra que muitas das áreasde mananciais ocupadas na Vila Zumbi e noGurarituba são várzeas dos rios, insalubrespara moradia.

“Há duplo prejuízo: para o morador daregião de manancial, sujeito a inundações eque terá a casa sempre úmida, e para o mo-rador da Região Metropolitana, que pode tersua água contaminada pelo lixo e pelo esgoto

doméstico que aca-bam chegando aosrios. Nesse contexto,a primeira ideia eraremover as pessoas.Mas somente agora,Na Vila Zumbi e noGuarituba, vemos umprograma habitacio-nal, de regularizaçãofundiária e urbana,promovendo o deslo-camento das famíliasque estão em locaisde risco. Nesses doiscasos, apesar de nãoagir para sanear a ba-cia, o estado ao me-nos atua para melho-

rar a vida das pessoas que já estão lá. Masexistem dezenas de casos semelhantessendo ignorados, que podem provocar o fimde mananciais de água potável.”

Além da polêmica acerca da eficácia dosprojetos de urbanização, as ações do poderpúblico são insuficientes para atender ademanda por moradia e resolver o pro-

“A população demenor poder aquisitivotende a ocupar áreas

desvalorizadas nomercado imobiliário.

A ilegalidade fundiária étambém a manifestação

espacial da pobrezaurbana”Gislene Pereira,

doutora em Planejamento Urbanoe Regional pela UFPR

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“Desigualdade só seráresolvida com novomodelo de gestão”,diz especialistaDoutora em Geografia pela UFPR, pesquisadora doIpardes e do Observatório de Políticas Públicas doParaná, Rosa Moura diz que ocupações irregulares naRegião Metropolitana de Curitiba só acabam quandohouver políticas públicas de desenvolvimento regionalque privilegiem a inserção social e a ocupação racionaldo solo. Entrevista a Camila Castro

Entrevista

A Região Metropolitana de Curitiba precisade um novo modelo de gestão, fundado notrabalho integrado dos municípios e em políticaspúblicas voltadas ao desenvolvimento regionalque privilegiem a inclusão social e a ocupaçãoracional do solo, sem fragmentar o territórioentre ricos e pobres, avalia a geógrafa RosaMoura. Pesquisadora do Observatório dePolíticas Públicas do Paraná — coligado aoObservatório das Metrópoles, rede nacionalque tem representação em doze grandes cida-des brasileiras para discutir a ocupação do ter-ritório, a coesão social e a governança demo-crática das metrópoles — e do Núcleo de Estu-dos Regionais e Urbanos do Instituto Parana-ense de Desenvolvimento Econômico e Social

(Ipardes), Rosa é doutora em Geografia pelaUniversidade Federal do Paraná (UFPR).

“A desigualdade presente nas aglomera-ções metropolitanas é resultado do atual modelode desenvolvimento, pautado na concentraçãode investimentos, no livre curso do mercado,na acumulação e manutenção dos interessesdo capital em sentido contrário aos da cole-tividade e na contraposição de regiões cujosindicadores apontam boas condições socio-econômicas a outras, muito próximas, onde ascarências são extremas”, argumenta. “O gran-de problema da aglomeração, formada pelopólo e municípios da região metropolitana, éque existem muitos interesses em jogo, muitasescalas de poder em disputa e grande diversi-

blema de ocupação do solo e de regula-rização fundiária. “Os projetos significam,na prática, atender a uma demanda imediata,mas que na verdade é crescente. Este é umproblema crônico, que se iniciou na décadade 1990 e tende a se agravar na RegiãoMetropolitana de Curitiba se os governos nãoatuarem em duas frentes — um rigorosocontrole da ocupação das áreas demananciais e programas habitacionais paraatender populações de baixa renda”, argu-menta o presidente do Senge-PR.

O Plano de Desenvolvimento Integradoda Região Metropolitana de Curitiba,realizado em 2006 pela Secretaria de Estadodo Desenvolvimento Urbano e pela Coor-denação da Região Metropolitana de Cu-ritiba (Comec), mostra que a capital e mu-nicípios vizinhos são cercados por áreas demanancial.

Portanto, a pressão por ocupação destasáreas será permanente — apenas no sentidoSul é possível um crescimento que nãoprejudique os rios usados para abastecimentode água. “O Plano deixa claro que somentea correta aplicação de um conjunto depolíticas públicas, implementadas de formaintegrada, poderá conter o avanço dasocupações em áreas de mananciais egarantir o abastecimento público de água dosmilhões de habitantes de uma metrópole quenão pára de crescer”, alerta Fanini.

Evolução das Ocupações Irregulares

Fonte: Companhia de Habitação de Curitiba (2007). Plano de RegularizaçãoFundiária em Áreas de Preservação Permanente: diagnóstico versão preliminar.

Ano Número de ocupações Número de domicílios

1979 46 6.0671987 87 11.9591996 167 33.7782000 301 57.3332005 341 62.267

Obras de drenagem no Guarituba: enxugando gelo?

Rosa Moura:interesses privadosprevalecem sobreos coletivos

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RMC em debate. Primeiro caderno 8

dade de atores. Por isso, é necessário um sis-tema de gestão bem articulado e democrático,que dê espaço a essa arena de conflitos e ma-ntenha constante o diálogo. Só através do de-bate democrático e de pactos legítimos vamoscriar um sistema de gestão efetivo”, defendeRosa.

Para isso, a primeira necessidade levantadapor ela é a gestão de forma integrada entre osetor público — municípios, estado e governofederal — e os muitos segmentos da socie-dade civil. “Seria necessário um governo forte,que conseguisse promover ações transesca-lares nas políticas públicas, articuladas entreos órgãos setoriais, esferas de governo e socie-dade civil”, coloca. Rosa Moura defende quea esfera mais adequada para assumir a media-ção desse processo seria a estadual, que estámais próxima da realidade dos municípios, secomparada à federal, e tem a atribuição cons-titucional de criar unidades regionais para oplanejamento e execução de funções públicasde interesse comum a mais de um município.

Essa escala poderia promover a articulaçãoentre os poderes de forma eficaz e fluida.“Porém, a despeito dessa atribuição, a regula-mentação constitucional e a prática de criaçãode unidades regionais não criaram na esferaestadual uma instância com poder de decisão

>> e coordenação, de direito e tributação, refor-çando apenas atribuições meramente residuais.Isso faz com que a instância estadual não setorne forte o suficiente para conseguir a neces-sária coordenação da gestão articulada”, fala.

Rosa Moura explica que, no Paraná, comoem outros estados, órgãos setoriais e algunsmunicípios têm mais poder que o órgão metro-politano — no caso paranaense, a Coordenaçãoda Região Metropolitana de Curitiba (Comec).Além disso, é descontínuo e difícil o diálogoentre governo estadual e municipal devido aosdiferentes interesses que estão em disputa,como os político-partidários. “Tudo isso dificultaum trabalho eficiente da Comec. A grande fa-lência do modelo proposto é justamente a faltade poder de decisão e controle, que fragiliza osórgãos metropolitanos no processo de articu-lação dos interesses dos municípios. O modeloatual implica em um nível superior de arti-culação, mas tira o poder das unidades de ges-tão, colocando-as sujeitas à autonomia dos mu-nicípios, que são apenas fragmentos da cidademaior, formada pela aglomeração metropo-litana”, argumenta.

Os consórcios, que estão amparados poruma legislação adequada, abrem possibilidadespara o gerenciamento articulado de temas refe-rentes às regiões metropolitanas. Porém, Rosa

acredita que poucas experiências demons-traram bons resultados. Um exemplo de êxitofoi o consórcio do Grande ABC, na região me-tropolitana de São Paulo — mesmo assim,fragmentou-se a unidade regional. “Se nãotivermos uma estrutura que articule os váriosconsórcios e faça com que eles dialoguementre si, apenas teremos acentuadas asdesigualdades internas à região, e mais umavez não será possível a gestão integrada”, diz.

Segundo ela, a criação de um quarto poderseria apenas agregar mais uma instância, queninguém garante que venha a ser efetiva, numaestrutura de estado já bastante complexa. Rosadiz ainda que existem dispositivos legais, me-canismos e instrumentos a serem explorados.“Temos que pensar em um pacto efetivo querompa com a estrutura de autonomiasconservadoras que temos hoje e permita umaarticulação maior entre as esferas, reforçandouma instância de coordenação”. Porém, aespecialista alerta que, mais do que a definiçãodo gestor deste novo modelo, “é imprescindívelpensar ações concretamente pactuadas e soba ótica da totalidade do espaço formado porCuritiba e pelos municípios da regiãometropolitana”. “Caso contrário, as partes,mesmo que somadas, não vão conseguirabarcar a funcionalidade do todo”, defende.

Casa na encosta do rio Iraí, no Guarituba. “ A desigualdade presente nas aglomerações metropolitanas é resultado do atual modelo de desenvolvimento”, diz Rosa Moura

Fotos: Alexsandro Teixeira Ribeiro

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Julho de 2009 99

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Este novo modelo de gestão se faznecessário pela configuração do aglomeradoformado pela cidade-polo e municípios noentorno, diz Rosa Moura. Ela explica que,na Região Metropolitana de Curitiba, semprehouve grande distinção entre o polometropolitano e os municípios periféricos e,mesmo dentro da capital, entre as porçõesNorte e Sul da cidade. Mas hoje há incrus-tações mais complexas que a simples divisãoentre áreas nobres e áreas pobres — próxi-mo a bairros nos quais todos os indicadoresapontam para boas condições socioeco-nômicas há bolsões de pobreza, como a Viladas Torres, junto à área central da cidade,ou Cajuru e Prado Velho, bairros com indica-dores de carência bastante expressivos. Damesma forma, há condomínios de luxo emmuitas regiões pobres das periferias deCuritiba e municípios metropolitanos.

A diferenciação entre Curitiba e osmunicípios da sua Região Metropolitanasempre foi notória, comenta Rosa Moura.A história da capital como um modelo quedeu certo encobriu a existência desse entornometropolitano muito pobre, acentuando aolongo do tempo uma absurda desigualdade.“Atualmente, já se observam em algunsmunicípios da região metropolitana novascentralidades com bons indicadoressocioeconômicos, mesmo mantendo no seuentorno muita miséria”, anota apesquisadora. É o que ocorre em São Josédos Pinhais. “Ainda assim, há uma coroa deextrema pobreza nas margens de Curitiba,justamente onde se verificam condições deocupações precárias. Nessas margens, ahistória da ocupação e formação doaglomerado metropolitano mostra que foram

Rosa Moura explica que a desigualdadeganha ainda mais força com o mercado deterras, que ela considera “o grande vilão”da periferização do espaço metropolitano,porque “tem caminhado com autonomia hámuitos anos, beneficiado por um sistema decontrole mínimo”. “Quando constatamos aforça inescrupulosa da especulaçãoimobiliária e a permanência de tantos vaziosurbanos, percebemos a dificuldade decontrolar este mercado. O Estatuto das

Mercado de terras,o grande vilão

oferecidos os maiores conjuntos de lotes paraa população de baixa renda, particularmentea que chegava nos anos 1960 e 70, no êxodorural que vivia o Paraná”, afirma.

Este cenário se alia à herança do proces-so de acumulação do capital industrial,comum a todas as metrópoles brasileiras.Ela comparou a industrialização de Curitiba

à de São Paulo e Porto Alegre. “Em SãoPaulo e em Porto Alegre, além do polo, seindustrializaram municípios ao redor — comoos que compõem o ABC Paulista e NovoHamburgo e São Leopoldo, no Sul. Com aindústria em vários municípios, o crescimentodo polo se encontrou ao desses municípiose passaram a compor uma mesma manchaurbana, num processo chamado conurbação.No Paraná, a industrialização historicamentese deu centrada em Curitiba. Nos anos 1970,houve a criação do polo petroquímico deAraucária e de um centro industrial nessemunicípio, mas, ainda assim, a concentraçãose consolidou na capital, com a criação daCidade Industrial de Curitiba. O crescimentopopulacional concentrado em Curitiba porlongo tempo só mais tarde chegou aos

Cidades divididas municípios no entorno. Portanto, não severificou um processo de conurbação, masde periferização, com a população pobre,impossibilitada de fixar-se em Curitiba, peloelevado valor da terra urbana, tendo que sesujeitar às áreas limítrofes dos municípiosvizinhos”, explica.

Nos anos 90, com a refuncionalizaçãodo espaço metropolitano, houve um reforçoindustrial em muitos municípios, mas um novoproblema se tornou evidente: “a produçãocorporativa do espaço”, aponta Rosa, usandoexpressão do geógrafo Milton Santos. Osrecursos vindos neste processo foraminvestidos preferencialmente na melhoria dainfraestrutura do ambiente urbano, emdetrimento da solução de demandas sociais,como a habitação, os transportes coletivose outros serviços urbanos — característicaencontrada em qualquer cidade do terceiromundo. Segundo ela, esse investimento paraequipar a cidade apenas para atender àsexigências do capital acentuou asdesigualdades na aglomeração.

“ Na RegiãoMetropolitana de Curitiba,

sempre houve grandedistinção entre o pólometropolitano e os

municípios periféricos e,mesmo internamente a

Curitiba, entreas porções norte e sul

da cidade”

Casas na encosta de córrego ao lado de subestação de tratamento de água da Sanepar, em Pinhais: um retrato da precariedade

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RMC em debate. Primeiro caderno 10

“ É fundamentalum controle articulado,

particularmenteporque a ocupação

e o uso do solofazem parte das funções

públicas de interessecomum”

10

Cidades trouxe uma série de instrumentosque permitiriam esse controle. No entanto,municípios fazem uso de medidas escolhidasde acordo com seus próprios interesses. OEstatuto em si não confere mudanças se osgovernantes e a sociedade não assumirema sua implementação e controle. Por isso,não percebemos efetividade a aplicação do

Estatuto na maioria das cidades brasileiras,salvo em alguns casos muito específicos, oudecorrentes da aplicação de um ou outrodispositivo selecionado para situações muitoparticulares. O mercado de terras continuasem controle”, diz.

Rosa explica que o Estatuto permite queo município exerça o controle do mercadode terras, mas esse controle não está restritoao município, o que gera conflito. “QuandoCuritiba implantou o Plano Diretor, nos anos1960 e 70, e controlou o uso e ocupação do

solo internamente ao município, o mercadode terras agiu exatamente no contornoexterno, criando uma oferta enorme nasáreas limítrofes — muitas vezes em áreasde mananciais da região —, favorecidas pelosistema de trans-porte, pela falta derigidez das legis-lações municipais epor um valor de mer-cado compatível aopoder aquisitivo dademanda”, diz.

Isso significaque, se os planos di-retores e todas as le-gislações de uso dosolo das grandes cidades não foremarticulados, será criado um espaçofragmentado no âmbito legal, e os controlesserão diferenciados. “O que aconteceatualmente é que, se há pressão de um lado,o mercado age de outro. Por isso éfundamental um controle articulado,particularmente porque a ocupação e o usodo solo fazem parte das funções públicasde interesse comum”, avalia.

Essa disputa pela terra e as pressões pornovas áreas de ocupação também ocorremna direção de terras rurais e de produção dealimentos. Segundo Rosa, a produção dehortifrutigranjeiros no entorno dasaglomerações facilita o transporte doalimento perecível e atende a uma demandaampliada que se localiza nesses centros. Noentanto, a proximidade à cidade torna essasáreas rurais objeto de disputa. Rosa destacaque 1,1 milhão de habitantes chegou àRegião Metropolitana de Curitiba entre 1991e 2007 e, de alguma forma, buscou se instalar

Para Rosa Moura, as questões deocupação periférica, em mananciais deabastecimento de água, e de localização dapobreza nos entornos do polo e riqueza noscentros mais dotados de serviços e

Na raiz do problema,os erros do BNH

>> em algum local. A ausência de políticasadequadas de moradia provocou a ocupaçãode áreas rurais e áreas ambientalmentevulneráveis, como encostas ou mananciais.

“Na região metropolitana, temos muitasocupações urbanasem áreas tidas comorurais, que aindanão foram legali-zadas pela Lei doPerímetro Urbano. OGuarituba foi umgrande exemplo dessadisfunção. Mas, avantagem é que temosum espaço rural am-plo e de fácil acesso,

particularmente nas porções Sul, pois ao Norte orelevo não é adequado”, diz Rosa.

Ela lembra que há municípios na regiãometropolitana de Curitiba onde é possívelcompartilhar produção de alimentos eocupação urbana, mas alerta que é precisocontrole, uma vez que a ocupação podesaturar especificamente as proximidades àsvias de acesso, usadas para escoar aprodução. “Por isso é necessário pensar deforma articulada uso do solo, dinâmica evetores de ocupação, sistema de transporte,produção e escoamento”, frisa.

Nos anos 1970,o polo petroquímico de Araucária alavancou a construção de um centro industrial na cidade, uma das mais poluídas da Grande Curitiba

Agência Petrobras

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Julho de 2009 1111

Rosa Moura destaca que a estratégiados grandes projetos urbanos é cada vez maisusada pelos grandes capitais, reforçando aprodução corporativa da metrópole – umvetor de fragmentação imposto pelo capitale que inibe ou coloca-se em substituição àspolíticas democráticas, segundo ela. Rosasalienta que, quando se fala em políticaurbana, é preciso pensar na cidade comoum todo. “No eixo metropolitano (agorarebatizado de Linha Verde pela prefeiturade Curitiba), vemos um projeto pensado paraum pedaço da cidade mas dissociado dorestante. O projeto foi feito, refeito, buscoufinanciamentos diversas vezes, sujeitou-se

Linha Verde, umprojeto dissociadodo entorno

equipamentos urbanos são reflexos da faltade políticas habitacionais e têm suas raízesnos anos 1950, 60 e 70, quando ocorreram asconstruções dos grandes conjuntoshabitacionais. “No tempo do Banco Nacionalde Habitação (BNH), a busca de extensasporções de terras para grandes conjuntoshabitacionais nas periferias ainda nãoocupadas dos grandes centros criava vaziosurbanos que se constituíram em reservas devalor — a especulação tinha livre curso. Nosanos 70, eram comuns os mares de casinhastodas iguais em grandes conjuntos, como naregião Sul de Curitiba.”

Para chegar a elas, havia os vaziosurbanos, servidos pela infraestruturaestendida pelo poder público para atender àsnecessidades dos moradores, conectados —no caso de Curitiba, pelas linhas de ônibusexpressos. Esses vazios se valorizaramabsurdamente. Tal modelo de ofertahabitacional se esgotou nos anos 1970, quandoa capital e a Região Metropolitana recebiama maior onda de migrantes vindos do interiordo Paraná. “Os projetos habitacionais foramentão insuficientes para atender a essademanda, tanto pelo volume quanto pelacondição financeira do novo morador, quesequer podia pagar pelas casas, dada adificuldade de linhas de financiamento parasua faixa de renda”, conta Rosa.

A falta de uma política habitacional paraatender às famílias que não tinham renda paracomprar as casas fez com que as periferiasfossem ocupadas, diz. Os loteadorescomercializavam terrenos ao redor de Curitibaa preços e linhas de financiamento próprias,que atendiam às necessidades dessa parcelados migrantes e moradores empobrecidos deCuritiba. Aqueles que não tinham rendimentos

ocuparam áreas impróprias, levando aoprocesso de favelização e ocupação de áreasambientalmente vulneráveis — o que sedesenrola até hoje. Nessa época, tramitava alei 6.766, que controlaria o uso do solo nasáreas metropolitanas e ambientalmentevulneráveis.

“Antecipando as disposições restritivas dalei, a maioria das aprovações de loteamentosse deu nas vésperas da aprovação. Pode-seresumir o quadro dizendo que a falta depolíticas para moradia e os interesses quecircularam previamente às decisões legislativastornaram inócuos os resultados da lei e fizeramcom que houvesse a periferização e aocupação de áreas ambientalmente impróprias,processo que percebemos em todo o Brasil”,afirma Rosa Moura.

a várias condições diferentes, e teve váriosdesenhos que não se concretizaram. Ao lon-go da definição do projeto, a Região Metro-politana foi incluída e excluída, em funçãoda existência ou não de diálogo entre os go-vernos estadual e municipal. Às vezes o pro-jeto era verde, ecologicamente responsável.Noutras, pós-moderno, privilegiando ogrande capital com a criação de polos ver-ticais e aerotrens. Outras vezes, maissensato, apenas ampliando o sistema de ex-presso e propondo-se a adequações. Todasessas mudanças mostram como os jogos deinteresse se colocaram em disputa durantea formação e implementação do projeto e oquanto a sociedade esteve ausente dessediálogo”, argumenta.

Para ela, os grandes projetos não com-põem uma política urbana, mas se tratamde intervenções pontuais. “Há teorias queadmitem que algumas dessas intervençõesprovocam efeitos positivos na cidade comoum todo. Eu discordo plenamente, porqueelas induzem a qualificação do espaçovizinho, sem retorno para as áreas maisdistantes. Elas são reflexos de interessesbem localizados do capital”, diz.

Rosa destaca que os grandes projetosganharam força estratégica desde que Bar-celona se tornou cidade-modelo internacio-nal, depois de sediar as Olimpíadas. “Inú-meras cidades copiaram o projeto e se lan-çaram a sediar eventos com vistas aauferirem investimentos de qualificação ur-bana, e o grande capital sempre se colocoucomo importante negociador nesses casos.Para sediar a Copa do Mundo, por exemplo,são destinados recursos para projetos deadequação de linhas de transporte, paraobras em equipamentos esportivos, >>

No eixo metropolitano, agora rebatizado de Linha Verde pela prefeitura de Curitiba, vemos um exemplo de projeto dissociado do restante da cidade

Prefeitura de Curitiba

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RMC em debate. Primeiro caderno 1212

Todas essas questões convergem parao problema ambiental. Rosa Moura explicaque o discurso ecológico foi extremamenteapropriado pelas agências multilaterais,ONGs e por todas as frentes de consumode massa, inclusive pelo mercado imobiliário.Com isso, ganharam força de marketing osgrandes condomínios fechados com áreasverdes, de frente para paisagens naturaiscomo lagos e serras. Segundo ela, na costalitorânea brasileira há presença massiva docapital estrangeiro, com a construção degrandes condomínios que trazem como mote

a preservação da natureza, com destaqueao capital italiano no litoral da Bahia, aosespanhóis, portugueses e nórdicos, no RioGrande do Norte e Ceará.

“Uma grande incorporadora de Curitibatem a proposta de construir um sofisticado

resort na Praia de Taquarinha, em BalneárioCamboriú. O discurso é o da preservação –se eles não construírem esse megaempreendimento para pessoas riquíssimas,o ambiente será devastado porque asocupações pobres certamente vão chegar àregião. Os pescadores foram totalmenteignorados”, lembra, acrescentando que sobesse discurso as praias brasileiras sãoprivatizadas por completo.

Em Curitiba, Rosa lembra que o discursoecológico teve grande efeito no sucesso doEcoville ou do Alphaville Pinhais, que con-seguiram inclusive alterar as legislações deuso do solo para sua construção. “Essas em-presas deveriam, no mínimo, dar uma contra-partida em investimentos voltados para a po-pulação de baixa renda. Porém, mesmo commedidas compensatórias, sigo discordandodesses projetos, porque cometem um crimecontra o ambiente e contra a sociedade.”

Tal discurso verde também foi adotadopela cidade de Curitiba, que, em uma jogadade marketing, passou a ser conhecida comoa capital ecológica, destaca Rosa Moura.“Ao mesmo tempo em que consolidava seustatus de cidade-modelo e capital ecológicainternacionalmente, Curitiba ia comprome-tendo a qualidade das águas, os mananciais,deixando que o ambiente se degradasse naregião metropolitana. De ecológico, isso nãoteve nada”, avalia. Dessa forma, Rosa argu-menta que os ricos também precisam sercriminalizados e punidos por suas ações deinvasão e degradação da natureza, e nãoapenas o pobre. “O rico tem opção de es-colha. O pobre, não. Ele só ocupa uma áreade manancial porque não tem outra opção.O rico tem dinheiro, linhas de financiamento,pode escolher outra região”, argumenta.

Muitas vezes, famílias que ocupam áreasinadequadas são reprimidas e tratadas comviolência. Rosa afirma que o uso de umapolítica repressiva e inibidora é inadequada,porque a pressão pela ocupação iria apenasse deslocar para outros lugares.

“Considerando que, excluindo as áreasambientalmente vulneráveis, a RegiãoMetropolitana de Curitiba tem pouquíssimosespaços aptos para ocupação, a pressão sedaria fortemente nas áreas mais centrais.Hoje, as tensões são amenizadas, mesmose reconhecendo que grande parte dapopulação pobre é reprimida e inibida pelofato de não haver políticas voltadas para ela.Não acredito que seja possível, ou que sejao caminho, conter repressivamente aocupação dos mananciais”, diz. Para ela, emprimeiro lugar, é preciso efetivar políticas queatendam à demanda. “Só há ocupaçãoirregular porque não há políticas para amoradia”, salienta.

Também é preciso viabilizar alternativas

Meio ambiente,a questão central

hospedagem de atletas e participantes, masque vão valorizar áreas pontuais da cidade,por onde vão circular os atletas e osexecutivos. Mais uma vez, o capital funcionacomo fragmentador do espaço urbano,criando divisões na cidade e região. Exemploclaro e devidamente analisado foram os jogosPanamericanos, no Rio de Janeiro. A organi-zação da cidade para esse evento valorizouáreas com nomes e sobrenomes, apoiados erecomendados pelos manuais doutrinadoresdo ‘planejamento estratégico de cidades’, quede certa forma orientaram o planejamentoem Curitiba”, critica.

Tal processo pode vir a acontecer nacapital paranaense, uma vez que a cidade éuma das subsedes da Copa do Mundo deFutebol em 2014. Como foi escolhida, vaireceber obras de infraestrutura, como ometrô, que serão desenvolvidas emdeterminadas regiões. “Esses grandesprojetos não fazem, tampouco substituem,políticas urbanas”, reforça Rosa.

“ Ao mesmo tempoem que consolidava seustatus de cidade-modelo

e capital ecológica,Curitiba comprometeu

a qualidade dosmananciais, deixando que

o meio ambiente sedegradasse na RegiãoMetropolitana ”

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Área na Vila Zumbi dos Palmares utilizada como depósito de lixo por moradores: intervenção do governo do estado não resolveu todos os problemas da antiga ocupação

Alexsandro Texeira Ribeiro

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Julho de 2009 1313

para a manutenção da população em outrasáreas do Estado. “Poderiam ser criadosincentivos de trabalho para ocupação no in-terior”, sugere Rosa.

Ela destaca que a acumulação sempre sedará em áreas con-centradas, com mui-tas atividades ondeoutras já acontecem,reforçando-se pela e-conomia da aglome-ração, pela proximi-dade. Além disso,ressalta, é vantajosoestar próximo aosportos exportadorese importadores e à in-fraestrutura de circu-lação e comunica-ção, o que faz comque nem todo ointerior seja atrantepara atividades lu-crativas.

“Assim, mesmo que medidas alternativasde manutenção da população em seusmunicípios não venham revolucionar omodelo, certamente conseguiriam criar me-lhores condições de emprego e permanênciada população de forma mais distribuída peloterritório. Quando conhecemos alguns assen-

tamentos do Movimento dos TrabalhadoresRurais Sem-Terra, percebemos que é possí-vel a produção coletiva, a educação, a valo-rização da cultura e a manutenção produtivadas pessoas na área rural. Vemos no interior

do Paraná, em re-giões com pequenaspropriedades, comprodução familiar,condições sociais di-ferenciadas de mo-radia, de geração derenda e de consu-mo”, comenta.

Rosa Moura ex-plica que, nesses ca-sos, não houve mu-dança de modelo,que continua sendo omesmo sistema capi-talista de produção,mas há um diferen-cial positivo obtido nomaior apoio à agri-

cultura familiar, à pequena produção e àprodução coletiva. “Assim, é preciso pensarem atividades que incentivem a permanênciaem municípios do interior, na área ruralparanaense, e que atendam às necessidadesimediatamente à chegada massiva dosmigrantes nas cidades”, acrescenta.

No que se refere à ameaça ambiental,políticas sociais poderiam evitar as pressões,sem que fosse necessário usar a repressãoem relação ao meio ambiente. “Mudançasno padrão de consumo e consciência am-biental são imprescindíveis. Paralelamente,o meio ambiente tem que deixar de ser apelode consumo ou meramente peça de discurso,tornando-se o elemento prioritário numprocesso contínuo de educação”, argumenta.

Rosa defende o desenvolvimento de po-líticas públicas que tratem do espaço ur-bano como um todo, desenvolvendo todasas regiões, com ações voltadas às neces-sidades das pessoas de diferentes classessociais.

Para que este trabalho seja eficaz econtínuo, ela reafirma que é preciso de-senvolver uma gestão integrada entre to-dos os setores, com as esferas federal,estadual e municipal e a sociedade civil,de forma a envolver as competências decada segmento em um trabalho articulado.

Segundo Rosa, apenas dessa forma épossível fomentar o desenvolvimentointegrado de todas as regiões, sem privilegiaruma ou outra de acordo com interessesparticulares, e atender à demanda pormoradia, por ocupação do solo, de formaordenada e regular, com projetos quepreservem o meio ambiente.

“ Mudanças nopadrão de consumo econsciência ambientalsão imprescindíveis.

O meio ambiente temque deixar de serapelo de consumo

ou meramente peçade discurso, tornando-seo elemento prioritário

num processocontínuo de

educação ”

Projeto do estado prevê regularização e urbanização do Guarituba, em Piraquara, a maior ocupação irregular da Grande Curitiba, onde vivem mais de 12 mil famílias

Agência Estadual de Notícias

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RMC em debate. Primeiro caderno 14

A institucionalização daproteção de áreas demananciais na RMC

Artigo

O presidente do Senge-PR, Valter Fanini, traça histórico da adoção de leis municipaisde zoneamento e avalia a participação de órgãos como a Comec no processo.“A década de 1990 foi marcada pelo esgotamento do modelo de preservação dosmananciais fundamentada na utilização exclusiva de legislação restritiva de uso eocupação do solo urbano”, avalia. O engenheiro questiona a legislação aplicada e aconsequente ocupação irregular em áreas de mananciais. “Sem uma coordenaçãoefetiva do modelo de gestão das áreas de mananciais preconizado pela Lei 12.248,as ações em âmbito estadual passaram a se dar de modo desarticulado entreentidades do próprio governo do estado e dos municípios”, afirma

A preservação das áreas de mananciaissempre foi preocupação central e fator de-terminante no processo de planejamentoterritorial da Região Metropolitana de Cu-ritiba, dadas as características hidrológicasde seu sítio natural, localizado nas nascentesde três bacias hidrográficas: Iguaçu, Ribeirae Atlântica. Não foi por outro motivo que asestratégias de uso e ocupação do solo

propostas pelo Plano de DesenvolvimentoIntegrado da Região Metropolitana de Cu-ritiba (PDI) de 1978, bem como por suareedição mais recente, em 2006, estão forte-mente condicionadas à delimitação das áreasdestinadas à captação de água para fins deabastecimento público. Tanto que, em ambosos momentos, definiram-se, primeiramente,os compartimentos destinados à preser-

vação ambiental dos mananciais hídricos daregião e, condicionados a eles, estabelece-ram-se todos os demais.

Deve-se dizer de início que a Comec foia entidade que liderou este processo a partirdo ano de 1978, que coordenou e produziutodos os estudos técnicos necessários àdelimitação destas bacias hidrográficas, queproduziu os instrumentos legais e quearticulou politicamente os diversos atoresinstitucionais para que aprovassem e dessemefetividade as normativas legais criadas. Noentanto, mesmo antes dessas normas legaisde proteção das áreas de mananciaisexistirem, e contando somente com asdiretrizes gerais de ordenamento territorialestabelecidas pelo PDI de 1978, a Comecconseguiu fazer com que os municípios quepossuíssem seus territórios em bacias demananciais hídricos adotassem leis dezoneamento que contemplassem severasrestrições de uso e ocupação do solo nestasbacias hidrográficas.

Dessa forma, conseguiu-se na ocasiãoque os municípios de São José dos Pinhais,Piraquara (hoje dividido em Piraquara ePinhais), Quatro Barras, Campina Grandedo Sul e Colombo aprovassem as suasprimeiras leis de zoneamento contemplandoa preservação dessas bacias e, com isto,Piraquara: 100% do território do município está em área de proteção de mananciais

Sanepar

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Julho de 2009 15

fosse interrompido o processo deparcelamento do solo, que se dava com muitovigor na direção Leste, visto que ali estavamas áreas mais planas e acessíveis da região.

O processo de parcelamento da décadade 70 sobre as áreas de mananciaislocalizadas a Leste possuía basicamente doispropósitos. O primeiro era atender ademanda por lotes urbanos gerados por umapopulação migratória que fazia com que aRMC crescesse a uma taxa anual de 3,4%,com municípios como Colombo crescendoa taxa de 12 % ao ano. O segundo eraatender ao processo de especulação sobreo solo urbano diante das expectativas deforte valorização desses lotes em curtoprazo. Certamente, resta aqui explicar porqueos municípios concordaram em adotar leisde zoneamento de caráter extremamenterestritivo, já que, em casos como Piraquara,Quatro Barras e Campina Grande do Sul,atingia a quase totalidade das áreas que eramdemandadas para parcelamento pelo setorimobiliário.

Sem um instrumento legal que permitisseao órgão metropolitano impor aos municípiosuma estratégia metropolitana de ocupaçãodo solo, restava o processo de barganha, emque o Estado oferecia aos municípios queatendiam a necessidade de restrições de usoe ocupação de seu território investimentosem infra-estrutura e equipamentos urbanosem volumes extremamente elevadosconsiderando a dimensão desses municípios.Nesta ocasião, os recursos parainvestimentos em regiões metropolitanasestavam bastante disponíveis, pois ainda seoperava uma política nacional dedesenvolvimento urbano através do GovernoFederal lastreada financeiramente no FundoNacional de Desenvolvimento Urbano(FNDU).

Como testemunha ocular, participei desse

processo, considero importante personalizarum pouco este momento e deixar aquiregistrado que o sucesso desta estratégia deproteção das áreas de mananciais na RegiãoMetropolitana foi muito mais fruto doempenho dos profissionais que constituíamo corpo técnico da Comec do que da estatura

através da adoção de leis municipais dezoneamento, que impunham restrição aoparcelamento do solo e à ocupação nasbacias de mananciais de abastecimentohídrico. Encerrada esta fase, deu-se inicio aoutro período, que poderíamos chamar faseda coerção legal.

A partir da edição da Lei Federal 6.766/79 e com o poder outorgado aos Estadospara estabelecerem nas regiões metro-politanas áreas de proteção especiais, dentreelas, as de proteção de mananciais, o governodo Estado delimitou as bacias de mananciais,enunciou sobre elas proibições genéricaspara o uso e a ocupação do solo e atribuiu àComec a competência de proceder ao exa-me e à anuência prévia, para fins deaprovação, dos loteamentos e desmem-bramento nas áreas de proteção demananciais.

Estas delimitações e proibições foramdeterminadas de diferentes formas,iniciando-se com o Decreto Estadual n.°2.964, de 19 de setembro de 1980, seguidapela Lei 8935, de 1989. As restrições legaisà ocupação impostas por estes instrumentoseram genéricas e homogêneas — tratavamtodas as bacias de mananciais de maneiraigual e não contemplavam a implementaçãode instrumentos de gestão e de controle paraque estas leis e decretos tivessem efeti-vidade.

Por outro lado, não foram instituídaspolíticas de compensação econômica pelasrestrições à ocupação entre municípiosmetropolitanos, que em alguns casoschegam a ter 100% de seu território em áreade proteção de mananciais, como Piraquara.E o mais comprometedor em relação àefetivação de uma estratégia de proteçãode mananciais é que não se constituiu umapolítica de habitação de interesse social paraatendimento de larga faixa da população

organizacional e política do órgão, que naocasião eram bastante diminutas. Emespecial, reconheço a competência técnicae política e o empenho da CoordenadoraTécnica da Comec neste período, a arquitetae urbanista Rajindra Kaur Sing.

Esta primeira fase, que se prolongou atémeados de 1980, poderíamos denominar defase da barganha, onde se iniciou o processode preservação das áreas de mananciais >>

Estratégia de proteção de mananciais não foi acompanhada de uma política de habitação de interesse social para atendimento da população que vive nas ocupações irregulares

Alexsandro Teixeira Ribeiro

Alexsandro Teixeira Ribeiro

Valter Fanini

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RMC em debate. Primeiro caderno 16 15

excluída economicamente no longo períodode estagnação econômica que se instalouno Brasil a partir da década de 1980, o quegerou a impossibilidade de pessoas de baixarenda obterem uma casa através domercado imobiliário formal.

Bastante marcante neste período foi aação desastrada, eu diria até inconsequente,do governo do estado em homologar, em1992, sem maiores reflexões de seusimpactos, a divisão do município dePiraquara, constituindo o município dePinhais. Esta atitude desfez uma estratégiade preservação de mananciais que vinhasendo implementada pelos governosanteriores em relação ao município dePiraquara.

Durante o final da década de 1970 e todaa década de 80, o governo do estado fezinvestimentos em Piraquara concentrado noentão distrito de Pinhais, de modo aconsolidá-lo como principal compartimentourbano do município, promovendo ali oadensamento populacional e as atividadeseconômicas, já que esta parte de seuterritório não integrava as bacias demananciais da região metropolitana. Dessaforma, a área de Pinhais poderia abrigar amaior parte da população de Piraquara edar-lhe sustentação econômica, enquanto asdemais áreas do município poderiampermanecer com baixa densidade deocupação, compatível com a preservaçãode mananciais.

Após a criação do município de Pinhais,Piraquara ficou com 100% de sua área com-prometida com a preservação, fato que ocolocou em sérias dificuldades econômicas,incapacitando-o a exercer qualquer políticapreservacionista. Não foi por outro motivoque, já no ano seguinte, teve início o processode ocupação do Guarituba, que acabou por

se consolidar como a maior área de ocupa-ção irregular dentro dos mananciais da RMC.

A década de 1990 foi marcada peloesgotamento do modelo de preservação dosmananciais fundamentada na utilizaçãoexclusiva de legislação restritiva de uso eocupação do solo urbano. Se num primeiromomento essa estratégia obteve relativosucesso, fazendo com que o parcelamentodo solo para fins urbanos em áreas demananciais fosse paralisado, a partir da

década de 90 iniciou-se um regime deocupação irregular. Premidos pela necessida-de habitacional e acossados pelo desempregogerado pelas sucessivas crises econômicasdas décadas de 1980 e 90, os migrantes quechegavam à RMC encontravam nas áreasde preservação sua única alternativa habi-tacional. Exemplo desse processo são as ocu-pações da Vila Zumbi dos Palmares, em Co-lombo e do Jardim Guarituba, em Piraquara.

Em meados da década de 1990, perce-beu-se com muita clareza que somente aexistência de legislação de restrição de usoe ocupação do solo em áreas de manan-ciais não era suficiente para conter o pro-cesso de ocupação que estava em curso eque ocorria a despeito das leis que a proi-biam. Essas leis tratavam homogeneamentetodas ás áreas de mananciais e eram apli-cáveis inclusive às áreas urbanas de sedesmunicipais e em municípios integralmenteconstituídos por bacias de mananciais. Talsituação tornou-se insustentável do ponto devista da economia municipal, inadministráveldo ponto de vista urbanístico e politicamentefragilizada, o que poderia levar a umadesobediência generalizada de todas as leisque vigiam na ocasião.

Fazendo uma leitura dessa nova reali-dade e percebendo os riscos que corriam asáreas de mananciais, a Comec propôs em1998 ao governo do estado e aos municípiosda região metropolitana a adoção de umanova lei para a proteção das áreas demananciais. Esta nova lei estabelecia umamudança de paradigma no modo de protegeras bacias de mananciais, substituindo asproibições genéricas por um modelo de ges-tão por bacias hidrográficas. Este modelode gestão pretendia tratar cada bacia hidro-gráfica individualmente, atendendo suasespecificidades territoriais, econômicas esociais.

Seguindo as orientações da Comec, oEstado do Paraná aprovou em 1998 a Lein° 12.248, que instruía a implantação doSistema Integrado de Gestão e Proteção dosMananciais da Região Metropolitana deCuritiba, iniciando-se aí a terceira fase doprocesso de controle da ocupação das áreasde mananciais, que podemos denominar fasede gestão por bacias hidrográficas. O novo

“ Sem um instrumentolegal que permitisse

ao órgão metropolitanoimpor uma estratégiade ocupação do solo,restava o processo debarganha, em que o

Estado ofereciainvestimentos em infra-

estrutura e equipamentosurbanos aos municípios

que atendiam a necessidadede restrições de uso e

ocupação do território ”

>>

Terreno destinado a readequação de moradia no Guarituba: ocupação fica próxima a grandes mananciais de abastecimento de água da Grande Curitiba

Alexsandro Teixeira Ribeiro

Page 17: 1.° caderno RMC em Debate - Alexsandro Teixeira Ribeiro

Julho de 2009 17

modelo de gestão fundamentou-se numconjunto de mecanismos que tratam os dife-rentes aspectos de um modelo de gestão terri-torial por bacia hidrográfica, abordando, en-tre outros, os processos decisórios envol-vendo os agentes go-vernamentais e a so-ciedade civil. A Leicontemplava ainda apossibilidade de cria-ção de diferentescompartimentos den-tro de uma mesma ba-cia hidrográfica, con-siderando a neces-sária graduação noprocesso de preserva-ção do ambiente na-tural, bem como for-necia instruções ge-rais para a fiscaliza-ção e monitoramentodessas áreas.

Os instrumentospreconizados pela Lei12.248/98 para cons-tituir o Sistema deGestão e Proteçãodas áreas de mananciais da Região Me-tropolitana de Curitiba são os seguintes:

Instituição do Conselho Gestor dosMananciais da Região Metropolitana deCuritiba (CGM/RMC), órgão colegiado,com poderes consultivo, deliberativo enormativo, com a finalidade de elaborarpolíticas públicas acerca da qualidadeambiental das áreas de mananciais eacompanhar sua implementação;

Criação da figura das Unidades Ter-ritoriais de Planejamento (UTPs), compostaspelas sub-bacias contribuintes dos manan-ciais da RMC para facilitar o planejamentoaglutinando municípios com especificidadesa serem trabalhadas conjuntamente;

Instituição do Plano de Proteção Am-biental e Reordenamento Territorial emÁreas de Mananciais (PPART);

Criação do Fundo de PreservaçãoAmbiental da Região Metropolitana de Cu-ritiba (FPA/RMC), como apoio às políticasde proteção aos mananciais e para atenderos objetivos do Sistema Integrado de Gestãoe Proteção aos Mananciais da RMC;

Determinação da Secretaria de Estadodo Meio Ambiente e Recursos Hídricos(Sema) como coordenadora do sistema, coma participação dos municípios e demais agen-tes intervenientes em ações de proteção aosmananciais;

Criação de um sistema de informações

e a elaboração de um plano de moni-toramento e fiscalização permanente;

Instituição da permuta de potencialconstrutivo por áreas de preservação;

Possibilidade de criação de Áreas deInteresse Social deOcupação para aten-dimento de assenta-mentos habitacionaisprecários;

Flexibilização deusos vinculados a zo-neamentos, elabora-dos mediante os obje-tivos estabelecidospela lei;

Estabelecimen-to de sanções a seremaplicadas aos infra-tores da legislação.

Entre os anos de1998 e 2003, algunsdos mecanismos pre-vistos pela Lei 12.248foram implantados eoutros detalhados.Deve-se destacaraqui a implantação do

Conselho Gestor dos Mananciais e aaprovação de zoneamentos de uso e ocu-pação do solo, através da instituição dasUTPs para a Bacia do Rio Itaqui, em SãoJosé dos Pinhais, pa-ra as áreas situadasentre o ContornoLeste e o Rio Irai,em Piraquara, e pa-ra as sedes dos mu-nicípios de CampoMagro, Pinhais eQuatro Barras.

Seguindo tam-bém as instruçõesda Lei 12.248, noano de 2003, foi ela-borado o Plano deMonitoramento eFiscalização dasáreas de mananciais,que detalhou os pro-cedimentos neces-sários a um monito-ramento efetiva-mente integrado aoprocesso de fiscali-zação do uso e ocu-pação das áreas demananciais da região metropolitana, sem, noentanto, que tenha ocorrido a implementaçãodo Plano.

Em 2004 a Comec, por decisões gover-namentais, deixou de coordenar o processode implementação dos instrumentos pre-vistos pela Lei 12.248. A partir daí, tivemosum retrocesso no modelo de gestão das áreasde mananciais, com muitos setores do go-verno do estado passando a tomar decisõesfundamentas nas leis que vigoraram antesde 1998.

Sem uma coordenação efetiva do mo-delo de gestão das áreas de mananciaispreconizado pela Lei 12.248, as ações emâmbito estadual passaram a se dar de mododesarticulado entre entidades do própriogoverno do estado e dos municípios.

O processo tomou em muitos momentosum caráter personalista, onde pessoas defora do aparelho de Estado passaram aarvorar-se como coordenadoras de açõesvoltadas à gestão urbana em municípios daRMC.

O avanço lento e titubeante do modelode gestão das áreas de mananciais e osretrocessos recentes podem ser creditadosà fragilidade institucional da Comec.Sabemos que até mesmo as funções doConselho Gestor dos Mananciais poderiamser exercidas pelo Conselho Deliberativo doÓrgão Metropolitano, caso ele de fatoexistisse.

O uso e a ocupação do solo em áreas demananciais estão tipificados como uma fun-

ção pública de inte-resse comum metro-politano e, portanto,de responsabilidadedo órgão metropoli-tano — a Comec.

E não custa re-petir que o sucessoda implementaçãode um modelo degestão territorial,permanente e efi-caz, depende funda-mentalmente da re-construção desseórgão, da mesmaforma que depen-dem todas as demaisfunções públicasmetropoli tanas.Muitas delas serãoabordadas nas publi-cações do projeto“RMC em Debate”,proposto e coorde-

nado pelo Sindicato dos Engenheiros noEstado do Paraná (Senge-PR) e outrasentidades da sociedade organizada.

“ Em meados dadécada de 1990,percebeu-se commuita clareza que

somente a existênciade legislação de restrição

de uso e ocupação dosolo em áreasde mananciais

não era suficientepara conter o processode ocupação que estavaem curso e que ocorria

a despeito das leisque a proibiam ”

“ O avanço lentoe titubeante do modelo

de gestão das áreasde mananciais e os

retrocessos recentespodem ser creditados

à fragilidade institucionalda Comec. Sabemos queaté mesmo as funções

do Conselho Gestordos Mananciais

poderiam ser exercidaspelo Conselho Deliberativodo Órgão Metropolitano,

caso ele de fatoexistisse ”

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RMC em debate. Primeiro caderno 18

Regularização fundiáriaem áreas de mananciais

Artigo

Simone Aparecida Polli, da Ambiens Sociedade Cooperativa, analisa a periferizaçãoe a responsabilidade do poder público na regularização fundiária em áreas demananciais. “A forma como se deu essa periferização, com a ausência do Estado,com glebas mantidas vazias, demonstra os elevados custos sociais da urbanizaçãoe os ganhos extraordinários dos proprietários e incorporadores imobiliários”,argumenta. A autora também analisa a legalidade de ocupações irregulares ea chegada da infraestrutura a tais áreas, que considera “imprescindível, porquepromove a consolidação do assentamento e as condições mínimas de salubridade”

A trajetória do planejamento urbanoimplementado em Curitiba reafirma adesigualdade e reforça o efeito polarizadorda capital nas relações entre municipalidades(centro-periferia), desconsiderando a escalametropolitana. Sem dúvida, a área me-tropolitana foi historicamente afetada pelasrelações de poder e pelos instrumentos depolítica urbana. Se na década de 1970 aurbanização precária ocupava as periferiasimediatas da Região Metropolitana deCuritiba (RMC), atualmente a ocupaçãoestende-se ainda mais adiante para áreasde mananciais, comprometendo o consumode água de toda a população.

Mais recentemente, as relações entre osmunicípios têm sido afetadas pelo plane-jamento estratégico e pelo city marketingaplicado à capital. As demais munici-palidades, que almejam o “sucesso”, copiamas políticas idealizadas para a cidade-modelo,estabelecendo uma relação mimética que fazrefletir sobre a lógica de dominação — asrelações de poder e interdependência entre omunicípio-polo (Curitiba) e os municípiosperiféricos. Porém, é necessário observar aperiferia e compreender a situação vivida poraqueles que foram destituídos dos benefíciosda modernização e que se encontraminseridos na “ordem” que corresponde aorisco ambiental, à segregação e à favela deperiferia.

No processo de expansão urbana, aprodução de espaço na forma de periferia éfundamental ao capital, porque significa aredução dos custos da reprodução da forçade trabalho, sendo uma alternativa adotada

para abrigar os trabalhadores atraídos pelasatividades econômicas nas cidades. E aforma como se deu essa periferização, coma ausência do Estado, com glebas sendomantidas vazias, demonstra os elevados

custos sociais da urbanização e os ganhosextraordinários dos proprietários eincorporadores imobiliários.

Oliveira (2000), em “Curitiba e o Mitoda Cidade Modelo”, questiona a metrópolefuncional. Para o autor, a área metropolitana

serviu à consolidação do modelo Curitiba dedesenvolvimento. Os mananciais localizadosprincipalmente no município de Piraquara ea periferização são exemplos de como acapital resolve seus problemas. Atualmente,vemos que o aglomerado metropolitano temforte importância na transnacionalização dacidade, acomodando as novas atividadesprodutivas e estabelecendo novas relaçõescentro-periferia.

É nesse momento, no qual oempresariado participa de maneiraveemente na definição dos rumos da cidade,que Milton Santos (1990) questiona o papeldo Estado e a formação da metrópolecorporativa. Para o autor, o Estado exerce,historicamente, papel ativo nodesenvolvimento urbano, pelas políticas derevitalização urbana, por sua forma deatuação e prioridades estabelecidas. Noentanto, o Estado, em geral, está maispreocupado em atender à eliminação das“deseconomias” do que em promover osserviços sociais necessários ao bem-estarda coletividade.

Assim, o rigoroso processo deplanejamento de Curitiba provocou umaseletividade social no uso do solo. O lugarocupado pelas diferentes classes sociais énitidamente definido. A pouca visibilidade dasocupações irregulares, a história deplanejamento, a ausência de políticashabitacionais, o número de terrenos vaziosurbanos, o city marketing, a imagem-sínteseda cidade e o consenso construídoexpressam a espacialização das classessociais na metrópole, onde a concentração

Divulgação/Ambiens

Simone Aparecida Polli

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Julho de 2009 1917

Ilegalidade naprodução da cidade

Segundo estudiosos como Fernandes eAlfonsin (2003) e Davis (2006), a ilegalidadedeixou há muito tempo de ser a exceçãopara ser a forma geral de produção dacidade. No entanto, a ilegalidade não atingesomente as classes mais pobres, mastambém os indivíduos de poder aquisitivomais alto, colocando em xeque o caráter dalegislação urbanística e ambiental. Conformedefende Maricato, a ilegalidade pode serconsiderada funcional “(...) para as relaçõespolíticas arcaicas, para um mercadoimobiliário restrito e especulativo, para aaplicação arbitrária da lei, de acordo com arelação de favor” (2002, p. 123).

A ilegalidade oferece restrições decidadania para a população e rebate nasdemais relações sociais, mesmo naquelasque aparentemente não têm nada a ver coma terra ou a habitação. A condição de ilegaloferece margem para interpretações que

associam a situação do morador emcondição de irregularidade urbanística àposição de marginalidade social, provocandoefeitos negativos sobre as demais esferasda vida e na própria condição humana. Nocaso da RMC, estudos de Schussel (2007)demonstram como as ocupações irregularesestão crescendo justamente nos municípiosque possuem importância para oabastecimento pú-blico, isto é, Pira-quara. Segundo aautora, isso ocorrep r i n c i p a l m e n t eporque o Estado nãodetém o controlesobre o uso do solo eprecisa aprimorarsuas técnicas degestão. Essa contra-dição é clássica nomodelo de urbani-zação brasileira, emque a irregularidadeassume váriasdimensões.

As restrições ambientais estabelecidasnas legislações impõem um agravante paraessa situação. As legislações de caráterpreservasionista e proibitiva acabambaixando o valor das áreas no mercado deterra, o que as torna alvo de especuladoresclandestinos. Ao mesmo tempo, a ausênciade políticas habitacionais de oferta de novas

As experiênciasde RegularizaçãoFundiária no Brasil

Há vários entendimentos quando se falado termo regularização no Brasil. Podesignificar a simples regularização datitularidade da propriedade, a urbanizaçãodas favelas com o objetivo de integrá-las notecido da cidade, a regularização física doassentamento e ação combinada dosaspectos urbanísticos e fundiários utilizando-se do importante instrumento que são asZonas Especiais de Interesse Social ( Zeis).

Segundo Alfonsin (2001), é importanteconceituar as políticas de regularização comoum “processo conduzido em parceria com oPoder Público e a população beneficiária,envolvendo as dimensões jurídicas,urbanísticas e sociais de uma intervençãoque prioritariamente objetiva legalizar apermanência dos moradores de áreasurbanas ocupadas irregularmente para finsde moradia”. Conforme Alfonsin (2001), as

moradias faz com que a alternativaapresentada para a população de baixa rendaseja engrossar o caldo do mercado informale clandestino. E, nesse círculo vicioso,aparecem as políticas de regularização deassentamentos que, como políticashabitacionais pontuais, não dão conta deatender a um processo de irregularidade queé estrutural no processo de urbanização

capitalista brasileiro.Entre os juristas,

há a predominânciade dizer que este tipode conflito se ca-racteriza pela falta decompatibil idadeentre as legislações,isto é, entre direitoscivil, urbanístico e oambiental. Em outrostermos, na distânciaentre a situaçãofática e a legislaçãopropriamente dita.Na perspectiva dedoutrinadores do

Direito Urbanístico, como assinala Fer-nandes (2006, p. 357), o conflito entremoradia e meio ambiente se apresenta comopassível de compatibilização: “Os dois sãovalores e direitos sociais constitucionalmenteprotegidos, tendo a mesma raiz conceitual,qual seja, o princípio da funçãosocioambiental da propriedade”.

“ A década de 1990foi marcada peloesgotamento do

modelo de preservaçãodos mananciaisfundamentadana utilizaçãoexclusiva de

legislação restritivade uso e ocupação

do solo urbano ”

>>Represa do Capivari: ocupações em áreas de mananciais comprometem o abastecimento de água de toda a população

Arquivo/Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais

da população ocorre justamente na fronteirados municípios periféricos, dotados de umasérie de precariedades. A periferiatransformada serve à consolidação do modeloCuritiba e atende aos interesses dos atoreshegemônicos, que exercem pressão einfluenciam na forma de planejar e nas políticaspúblicas implementadas pelo Estado.

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RMC em debate. Primeiro caderno 20

Cito abaixo breves considerações arespeito dos processos de regularização.Primeiramente, o que está em jogo é adefinição do termo sustentável. Acselrad(1999) afirma que a sustentabilidade não éum conceito porque não explica o real. Trata-se de um termo que está em disputa, questionaseus diferentes significados e afirma que éaplicado, em geral, conforme a conveniência.Ao mesmo tempo, há várias correntesinternacionais que defendem a legalização dasáreas.

Entre elas, a ONU/Habitat, que propõe oreconhecimento do direito social à moradia,o Banco Mundial, que defende o direitoindividual de propriedade e, mais recen-temente, o economista peruano Hernando deSoto, que vê na regularização uma porta deentrada dos chamados “capitais mortos” nomercado formal. De Soto (2000) defende aregularização dos assentamentos informais apartir de uma lógica meramente econômica.O autor deixa claro que os “ilegais” são umpotencial inestimável e que depois dereanimados (via regularização), poderão fazerparte da economia transformando-se em

políticas de regularização fundiária sãoexperiências recentes, a partir daConstituição de 1988, sendo inevitáveltrabalhar esse tipo de política visto oprocesso de urbanização brasileiro. A autora,em pesquisa, cita os casos de Recife, BeloHorizonte, Porto Alegre, Diadema, SantoAndré e São Bernardo, consideradaspropostas inovadoras.

Atualmente, o Ministério das Cidadesrecomenda políticas de regularizaçãofundiária sustentável, reforçando a preo-cupação com impactos ambientais em meiourbano. A incorporação da dimensão am-biental é definida pelo sociólogo Buttel (1992)como um processo de ambientalização dourbano em que “preocupações ambientaissão introduzidas nas decisões políticas eeconômicas, nas instituições científicas eeducacionais, assim como na geopolítica.Ambientalização é a expressão concreta dasamplas forças de esverdeamento daspráticas institucionais” (1992, p.2, traduçãonossa) 1 .

Atualmente multiplicam-se os debatesem torno da questão ambiental. SegundoFuks (2001, p. 18), “a definição do meioambiente como problema social tornou-se,hoje, objeto de intensa disputa”, mani-festando-se das mais variadas formas: naprodução de conhecimentos; retirada dasciências ligadas ao meio ambiente doslaboratórios; surgimento de vários órgãos nosníveis da administração pública (municipal,estadual e federal); lutas de setores dasociedade (grupos ambientalistas, associaçãode moradores); surgimento do partido verde;presença da educação ambiental nasescolas; surgimento do chamado “mercadoverde” e “desenvolvimento sustentável” porsetores empresariais; e instrumentosjurídicos que visam à regulação da vida social

O que está em jogonos processos deregularização?

em sua relação com o meio ambiente.A resolução Conama 369/2006 vem

auxiliar a regularização fundiária ao reco-nhecer a possibilidade de autorizar a supres-são de vegetação em Área de PreservaçãoPermanente para fins de regularizaçãofundiária sustentável de área urbana, desdeque autorizada pelo órgão ambientalcompetente e seguindo alguns requisitos econdições estabelecidas na normativa.

capital líquido, ter acesso ao crédito, reativara economia e resolver o problema da pobrezaurbana.

Apesar de aplicadas em vários países daAmérica Latina, principalmente Peru, Méxicoe Colômbia, De Soto2 já recebeu críticas pelasimplificação do funcionamento do mercadoformal e informal de terras e pela avaliaçãodos programas aplicados nesses países.Fernandes (2007, p. 51) também questiona oeconomista peruano afirmando que asustentabilidade de políticas de legalizaçãodepende de questões políticas, econômicas,jurídicas e ambientais. “Os moradores dosassentamentos informais têm de ser incluídosna ordem político-econômica da cidade paraao menos minimizar o risco de que osprogramas de regularização acabem poraumentar a segregação espacial”.

Ao mesmo tempo, as políticas deregularização fundiária sustentável devem serentendidas como parte de uma política urbanahabitacional mais ampla com, preferencialmente,instrumentos de regularização fundiária (ZEIS,usucapião e a concessão de uso especial parafins de moradia) aplicados de forma coletiva. Apopulação não é chamada apenas a participar,mas a se tornar protagonista do processo. Asdiversas formas de produção da ilegalidade,discutidas anteriormente, causam a impressãode que as políticas de regularização são do tipo“enxuga gelo”. No entanto, a forma de urba-nização brasileira evidencia que são políticasimprescindíveis. As experiências com re-gularização demonstram que é necessáriocombinar outras políticas de caráter estruturalpara toda a cidade que favoreçam o acesso aterra.

Ao mesmo tempo em que as políticas deregularização são importantes para aconsolidação de estratégias diversificadas dapolítica habitacional plena, a forma de

>>

No Guarituba, a ocupação desordenada está cada vez mais próxima do canal de água limpa da Sanepar, o que pode comprometer definitivamente a qualidade da água do Rio Iraí

Carlos Ruggi/Cohapar

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Julho de 2009 21

1 - No original: “By environmentalization, I mean the concreteprocesses by wich green concerns and environmental considerationsare brought to bear in political and economic decisions, in educationand scientific research institutions, in geopolitics, and so on.Environmentlization is thus the concrete expression of the broad forceof greening in institutional practices.”

2 - “Onde muitos vêm favelas, Hernando de Soto vê um conjuntopotencial de micro e pequenas empresas e propriedades que, juntas, têmum imenso valor - muito mais do que organismos internacionais deassistência, como o FMI,têm emprestado a esses mesmos países para queresolvam suas crises financeiras”. (BBC Brasil, 19/09/2002).

3 - Para compreender esse processo, no caso de Curitiba, consultar:POLLI, Simone. Curitiba Metrópole Corporativa. Fronteiras daDesigualdade. Dissertação de Mestrado. IPPUR/UFRJ, Rio de Janeiro,2006.

4 - Consultar ANCONA, Ana Lúcia e LAREU Stetson. Avaliaçãodo Programa Guarapiranga - Custos e Componentes de Infra-estrutura.2002.

Notas

ABRAMO, Pedro. O mercado de solo informalem favelas e a mobilidade residencial dos pobres nasgrandes metrópoles. 2005. Paper apresentado noUrban Research Symposium 2005: LandDevelopment, Urban Policy and Poverty Reduction.Promovido pelo Banco Mundial.

ACSELRAD, Henri. Discursos daSustentabilidade Urbana. In: Revista Brasileira deEstudos Urbanos e Regionais. N° 1, Maio/Novembro1999. p. 79-90.

ALFONSIN, B. M. Regularização Fundiária:Justificação, Impactos e Sustentabilidade. In: EdésioFernandes. (Org.). Direito Urbanístico e PolíticaUrbana no Brasil. 1 ed. Belo Horizonte: Del Rey,2001, v. 1, p. 195-267.

ANCONA, Ana Lúcia e LAREU, Stetson.Avaliação do Programa Guarapiranga - Custos eComponentes de Infra-estrutura. In: ZENHA, Mari;FREITAS, Carlos Geraldo Luz de (coord). Anais doSeminário de Avaliação de projetos IPT emhabitação e meio ambiente: assentamento urbanosprecário. São Paulo, 2002, 174p. Disponível nainternet: http:// habitare.infohab.org.br/pdf/publicacoes/arquivos/45.pdf.

BBC BRASIL. De Soto acredita que capitalismoguarda solução para pobreza. Notícias. 19 desetembro, 2002 - Publicado às 10h34 GMT.Disponível em: www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/020919_desoto3rg.shtml. Acessado em janeiro2008.

BUTTEL, Frederick H. Environmentalization:Origins, Processes, and Implications of Rural SocialChange. In: Rural Sociology 57 (1) 1992 p. 1-27.

DAVIS, MiKe. Planeta Favela. São Paulo:Editora Boitempo, 2006.

DE SOTO, Hernando. El mistério del capital.Lima: Editora El comercio, 2000.

FERNANDES, E. ALFONSIN, B (orgs). A Lei e aIlegalidade na Produção do Espaço Urbano. BeloHorizonte, Editora Del Rey. Lincoln Institute, 2003.

FERNANDES, E. Preservação Ambiental ouMoradia? Um falso conflito. FERNANDES, E.ALFONSIN, B. (coords). Direito Urbanístico.Estudos Brasileiros e Internacionais. Belo Horizonte,Editora Del Rey. Lincoln Institute, 2006, p. 356-358.

FERNANDES, Edésio. Perspectivas para arenovação das políticas de legalização de favelas noBrasil. In: ROLNIK, Raquel... [et al.] RegularizaçãoFundiária Sustentável: conceitos e diretrizes.Ministério das Cidades, Brasília, 2007.

FUKS, Mário. Conflitos Ambientais no Rio deJaneiro: ação e debate nas arenas públicas. Rio deJaneiro, Editora da UFRJ, 2001.

MARICATO, E. ARANTES; O. VAINER, C. Acidade do pensamento único. Desmanchandoconsensos. 3a edição, Petrópolis: Vozes, 2002. 192p.

OLIVEIRA, Dennison de. Curitiba e o mito dacidade modelo. Curitiba: Ed. da UFPR, 2000, 201p.

POLLI, Simone. Curitiba MetrópoleCorporativa. Fronteiras da Desigualdade. Dissertaçãode Mestrado. IPPUR/UFRJ, Rio de Janeiro, 2006.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Notas sobre ahistória jurídico-social de Pasárgada. In: SOUSAJUNIOR. José Geraldo de (org). Introdução Crítica aoDireito. 4ª edição. Brasília: UNB / NEP/ CEAD. Sérieo direito achado na rua, v. 1, 1993. p 42-47.

SANTOS, Milton. Metrópole corporativafragmentada: o caso de São Paulo. Nobel, São Paulo,1990.

SCHUSSEL, Zulma. A Metrópole de Curitiba e osMananciais de Abastecimento Público: asexpectativas de Convivência e Sobrevivência. In:Anais do Seminário Nacional sobre Tratamento deÁreas de Preservação Permanente em Meio Urbanoe Restrições Ambientais ao Parcelamento do Solo -APPURBANA. São Paulo, 2007.

Referências bibliográficasimplementação contém uma série dedesajustes e pode ser usada, em determinadoscasos, como um instrumento na construçãode alianças políticas3 que combine projetosindividuais de promoção política e ganhosprivados (Polli, 2006).

Ao pensar a regularização em áreas demanancial é fundamental compreender comoatualmente os loteadores clandestinosproduzem a periferia urbana. Desta forma,as ocupações em áreas de preservação nãopodem ser concebidas como um “incidente”ou algo transitório, mas sim numa lógicaapropriada pelo mercado informal de terras.Abramo (2005), ao pesquisar sobre osmecanismos que viabilizam o acesso dasfamílias à terra urbana e à moradia, destacatrês “lógicas” que coexistem nas cidadesbrasileiras: “lógicas do mercado, lógica doEstado e lógica da necessidade”.

E, por fim, chama-se a atenção que juntocom a terra, a infraestrutura é o grande “nó”do processo de regularização em áreas demanancial. Esta é imprescindível, promove aconsolidação do assentamento e as condiçõesmínimas de salubridade. Por outro lado, ainfraestrutura provoca, via incorporaçãoimobiliária, a valorização das terras,desencadeando processos relacionados à“expulsão branca”, devido às condições derenda da população. Ao mesmo tempo,quando feitas as devidas ligações ao sistemade saneamento básico, há melhorias nosindicadores da qualidade das águas dosmananciais.

Outra questão é que essa infraestruturase constitui no item mais oneroso dos

orçamentos, sendo seus benefíciosincorporados privadamente também porespeculadores. Observa-se, em váriascapitais brasileiras, a elaboração de planosemergenciais para conter a ocupaçãoirregular em área de manancial com aaplicação de altos recursos. No entanto, oEstado é opaco em se tratando da gestãodemocrática dos recursos públicos. Emprogramas como o Guarapiranga, em SãoPaulo, realizado de 1991 a 2000, apesar dosR$ 325,2 milhões4 aplicados, não houvemelhoras significativas nos índices dequalidade das águas (Ancona, Lareu, 2002).A necessidade de um canal de participação emonitoramento dos recursos públicosinvestidos é fundamental para garantir quesejam alcançados os objetivos teoricamentepropostos. A regularização fundiária em áreasde mananciais ainda é um campo deexperimentações e desafios devido a maiorcomplexidade dos fatores ambientaisenvolvidos.

É fundamental compreender como atualmente os loteadores clandestinos produzem a periferia urbana

Prefeitura de Piraquara

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RMC em debate. Primeiro caderno 22

Existe planejamentometropolitano?

Artigo

A partir do questionamento sobre o significado do termo, o presidente do Senge-PR,Valter Fanini, e o diretor-financeiro do Crea-PR, Joel Krüger, argumentam que acriação da Comec, em 1978, foi o pontapé inicial da gestão metropolitana naGrande Curitiba, que no entanto nunca chegou a nível satisfatório.No artigo, eles fazem um balanço de projetos de sucesso e de ações que nãoconseguiram resolver ou apontar soluções para os desafios que a regiãotem pela frente, como os problemas de ocupação e uso do solo

Antes de partirmos para a resposta àpergunta que dá o título a este artigo, vamostentar entender o seu significado e os motivospelos quais ela está tão presente no cotidianodos moradores das cidades brasileiras, dospolíticos e até mesmo dos técnicos deplanejamento urbano. Quando olhamos paraas cidades que desrespeitam as condiçõesambientais e naturais de estabilidadeshidrológicas e geológicas, que não dimensioname nem delimitam corretamente os espaçospúblicos e privados, que não possuemequipamentos urbanos e infraestruturasadequadas e que não formam uma paisagem

que nos pareça agradável, combinandoadequadamente elementos construídos epaisagismo, a primeira expressão que nosocorre para explicar tal situação é “isto é faltade planejamento urbano”.

Que bom seria se esta primeira expressãotraduzisse a verdade quando olhamos para asituação de todas as nossas grandesmetrópoles. Neste caso, bastaria contratarmosbons escritórios de planejamento urbano epassarmos a redesenhar nossas cidades, ouno passado termos feito isto, para termos umcontexto urbano bem diferente do quevivenciamos hoje. Porém, não está totalmente

errada a percepção, quase que intuitiva, deatribuir o estado caótico das metrópolesbrasileiras também à falta de planejamento.Resta explicitarmos o planejamento de queme sobre o que, já que as cidades abrigam umcomplexo processo de relações de naturezassociais, econômicas e territoriais.

Os dois primeiros componentes, o social— entendido como o conjunto de valores,normas, culturas e instituições que regem ocomportamento do indivíduo dentro da cidade— e o econômico — como o que diz respeitoà produção e ao consumo da renda nas cidades— são fortemente condicionados por fatores

A fragilização da gestão metropolitana na RMC seguiu a regra do desmantelamento e desativação dos processos de gestão das regiões metropolitanas no Brasil

Pablito Pereira

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Julho de 2009 23

exógenos ou históricos e, portanto, possuemfraca possibilidade de intervenção do poderpúblico local. Por outro lado, o componenteterritorial que diz respeito ao mundo físico, vistocomo a forma de implantarmos a cidade sobreo sítio natural associada ao conjunto de infraes-truturas e equipamentos que lhe dãosustentação, está sobre o domínio quase queexclusivo do poder local.

Dentro destas possibilidades de intervençãodo poder local poderíamos concluir de imediatoque a qualidade dos espaços urbanosdependeria exclusivamente do poder local. Istoseria verdadeiro não fosse a interdependênciaexistente entre os fatores sociais, econômicose territoriais. Diante de tal dilema, quais seriamentão as possibilidades de estados e municípiosenfrentarem o contexto externo adverso,originário das sucessivas crises econômicas edas transformações políticas pelas quais passouo Brasil nos últimos 30 anos?

Diríamos que, em se tratando da estrutu-ração de suas cidades e regiões metropolitanas,a saída se dá pela via do aperfeiçoamento deinstituições públicas ligadas a gestão urbana eregional. Por que nos referimos à gestão, enão ao planejamento? Porque gestão con-templa um conceito mais amplo que abriga asfases de programação e implementação daspolíticas públicas. Boas instituições públicasligadas à gestão de cidades e regiões me-tropolitanas, se não são capazes sozinhas deresolverem todas as mazelas originárias de umcontexto econômico e social adverso, cer-tamente podem minimizar em muito os seusefeitos.

A partir desta breve introdução, podemosretornar à pergunta que titula este artigo, masrefazendo-a: existe gestão metropolitana naRegião Metropolitana de Curitiba? A respostamais sintética é que, a partir de 1978, com acriação da Coordenação da RegiãoMetropolitana de Curitiba (Comec), existiugestão metropolitana, mas nunca em nívelsatisfatório. Se recorrermos, inicialmente, àsdiferentes informações que nos sãoapresentadas pelo Plano de DesenvolvimentoIntegrado da Região Metropolitana de Curitibaelaborado em 2006, podemos verificar, já emseu capítulo introdutório, o enorme dis-tanciamento entre a forma de estruturaçãourbana regional, preconizada pelo Plano deDesenvolvimento Integrado (PDI) de 1978, eo que efetivamente ocorreu até o ano de 2006.

A partir das condicionantes à expansãourbana que estavam sujeitas as cidadesperiféricas de Curitiba, limitada ao Leste pelaSerra do Mar e pelas áreas de mananciais, aoNorte pelo relevo fortemente ondulado e aoSul pelas várzeas do Rio Iguaçu, o PDI de

1978 indicava a região Oeste como a maisapta à expansão urbana, seguindo a direçãoAraucária — Campo Largo. Para as demaisporções da metrópole, previa-se a consolidaçãode uma rede de cidades que atenderiam avocações específicas, sendo ao Norte asatividades extrativo-minerais, ao Sul, agriculturae pecuária, e, ao Leste, a preservação dosremanescentes florestais e encostas da Serrado Mar.

O processo de crescimento metropolitano,ao longo destes 30 anos, distanciou-se em muitodo que preconizava a racionalidade do PDI de1978. O que obtivemos foi o recrudescimentodo modelo de crescimento urbano que se davaem 1976 — a concentração no município deCuritiba e o derramamento da malha urbanasobre o território dos municípios vizinhos.

No lugar de uma rede de cidades exercendofunções específicas e um centro urbanoexpandido a Oeste a partir de Curitiba,obtivemos como característica urbana maismarcante da RMC um anel urbano fracamenteestruturado em torno da capital, composto pelosmunicípios de Almirante Tamandaré, Colombo,Pinhais, Piraquara, São José dos Pinhais,Fazenda Rio Grande, Araucária, Campo Largoe Campo Magro.

Sem que se possa atribuir exclusivamenteao modelo de gestão metropolitana vigente

deste então o insucesso da implementação deuma estratégia de ordenamento preconizadaem 1978, podemos apontar que sua fragilidadecontribuiu decididamente para isto, por váriosmotivos relatados a seguir:

Não conseguiu construir em tempo hábilregulamentações legais que evitassem que aexpansão urbana sobre os municípios doentorno de Curitiba se desse através de umprocesso de parcelamento do solo fora dequalquer lógica de desenho urbano e conduzidobasicamente segundo os interesse do mercadode terras;

Não conseguiu reverter o processo deocupação das áreas de mananciais a partir deloteamentos aprovados antes da lei 6.766/1980,o que acabou por acarretar a perda da baciado rio Palmital e o comprometimento daqualidade da água dos rios Irai, Piraquara, Itaquie Pequeno;

Não conseguiu orientar investimentosem infraestrutura de transporte e sistema viárioque colocassem as áreas de interesse porexpansão urbana em situação privilegiada deacessibilidade, de modo a enfraquecer astendências de ocupações nas direçõesindicadas como não aptas à expansão urbana;

Não conseguiu desenvolver mecanismostributários compensatórios entre municípiosmetropolitanos que compensassem as drásticaslimitações de uso e ocupação do solo estabele-cidas para a maioria deles;

Não conseguiu elaborar e operar umplano de transporte público de passageiros delongo prazo ou criar um processo de gestãodos transportes metropolitanos;

Não conseguiu elaborar e implementarum plano de habitação de interesse social paraatender as populações de baixa renda e, assim,minimizar as pressões de ocupação de áreasde mananciais e de preservação ambiental;

Não conseguiu elaborar e operar umplano de coleta e tratamento de resíduos só-lidos que garantisse soluções ambiental e tec-nologicamente corretas, e um modelo de gestãocompartilhado entre municípios e estado;

Não conseguiu construir um pactometropolitano em torno das estratégias deocupação racional do solo metropolitano.

Enfim, não se conseguiu construir qualqueroutro pacto entre atores técnicos e políticospara planejar ou administrar as chamadasfunções públicas de interesse comummetropolitanas ou elaborar tecnicamente osplanos setoriais que o exercício dessas funçõespúblicas demandam.

No entanto, mesmo operando sob ummodelo de gestão extremamente frágil,considerando as suas dimensões políticas eorganizacionais, podemos verificar que o órgão

“ A resposta maissintética é que, a partir

de 1978, com a criação daComec, existiu gestão

metropolitana, mas nuncaem nível satisfatório.A partir do Plano de

Desenvolvimento Integradoda Região Metropolitana

de Curitiba, elaborado em2006, podemos verificar,

já no capítulo introdutório,o enorme distanciamento

entre a forma deestruturação urbanaregional, preconizada

pelo Plano deDesenvolvimento Integrado

(PDI) de 1978, e oque efetivamenteocorreu até o ano

de 2006”

>>

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RMC em debate. Primeiro caderno 24

metropolitano conseguiu ter sucesso em algunssetores de interesse metropolitano e aquipodemos citar dois que são bastante marcantes.

O primeiro deles foi conseguir, já no anode 1978, estancar o processo de parcelamentodo solo urbano que se dava em direção àregião Leste nos municípios de Colombo,Campina Grande do Sul, Quatro Barras,Piraquara e São Josédos Pinhais. Tal par-celamento era viabi-lizado pela existênciana de região de ter-renos planos relativa-mente próximos docentro de Curitiba,acessíveis pelas ro-dovias BR-116, BR-277 e PR-415, eoperacionalizado pelomercado imobiliário.

Nesta época, semcontar com instrumen-tos legais, urbanísticosou ambientais para ocontrole da ocupaçãoterritorial, o órgão me-tropolitano efetuou am-pla negociação com osmunicípios, barganhan-do a aprovação de zo-neamentos municipais restritivos de uso eocupação do solo nas áreas de mananciaispor investimentos públicos, e inviabilizandodessa forma os processos de parcelamentodo solo que vinham ocorrendo, com muitovigor, nestes municípios. Tal efeito pode serpercebido nos dias de hoje, quando notamosque muitas áreas de mananciais próximas àCuritiba permanecem ainda desocupadas 30anos depois.

Outro setor onde podemos verificar umrelativo sucesso do órgão metropolitano foi a

construção de um sistema de transportemetropolitano. A partir de um conjunto deintervenções iniciadas em 1982, a Comeccomeçou a estruturar uma rede de ônibuspara transporte de passageiros através dapavimentação de vias alimentadoras earteriais radiais e da construção de cerca de20 terminais de ônibus urbanos nos mu-

nicípios periféricos,constituindo assim umsistema de transportesimilar ao da capital,que acabou por se in-tegrar física e tarifaria-mente à Rede In-tegrada de Transporte(RIT) de Curitiba noano de 1996.

A fragilização dagestão metropolitanana RMC seguiu aregra do desmante-lamento e desativa-ção dos processos degestão das regiõesmetropolitanas noBrasil, que se deu commaior intensidade apartir da Constituiçãode 1988, quando fo-ram desativados defi-

nitivamente todos os instrumentos de políticaurbana operados pelogoverno federal. En-tregues às iniciativasdos estados federados,as administrações dasregiões metropolitanasnão foram reforma-tadas de acordo comos preceitos da novaCarta Constitucional. Apartir da Carta de 88,os municípios passa-ram a ter o status deentes federados, con-dicionando a gestãometropolitana à umpacto político entre go-vernos municipais eestaduais e à criaçãode uma instituição decaráter híbrido entrepoderes.

O PDI 2006 fazum amplo diagnósticosobre o modelo institucional para a gestão daRMC e avança em proposições para a cons-trução de um novo modelo, reafirmandoinúmeras vezes, e de diferentes formas, que

“ A fragilização dagestão metropolitanana RMC seguiu a regrado desmantelamento

e desativação dosprocessos de gestão dasregiões metropolitanasno Brasil, que se deu

com maior intensidadea partir da Constituiçãode 1988, quando foram

desativadosdefinitivamente os

instrumentos de políticaurbana operados peloGoverno Federal ”

>>

o planejamento metropolitano e a suaimplementação somente voltarão a ter chancea partir da constituição de uma nova entidademetropolitana. Enquanto isto não ocorre, otratamento das questões metropolitanas vaisendo adiado ou efetuado com muitadificuldade e de forma precária por quem sedispõe aqui ou ali a resolvê-las. É o caso dotransporte público metropolitano, gerido pelaURBS, empresa de Curitiba; dos resíduossólidos, administrado por um consórcio demunicípios que excluiu o governo do estado;e do uso do solo, gerido pela Comec, que tentafazer com que os municípios da regiãometropolitana adotem zoneamentosmunicipais que guardem alguma relação com

os preceitos de orde-namento territorialreeditados pelo PDIde 2006.

Podemos afirmar,por fim, que a RegiãoMetropolitana deCuritiba não contacom um modelo degestão à altura dos de-safios que tem pelafrente, mas está aptaa construí-lo, baseadono histórico de discus-sões sobre a proble-mática metropolitanaque se iniciou com afundação da Comec eda elaboração de seusdois planos de desen-volvimento integrado,em 1978 e 2006. Tãoou mais importante, efundamental, é a Co-

mec contar com um conjunto de técnicos deplanejamento e gestão urbana de diferentesespecialidades que formou ao longo de todosesses anos.

“ Não se conseguiuconstruir qualquerpacto entre atorestécnicos e políticospara planejar ouadministrar as

chamadas funçõespúblicas de

interesse comummetropolitanas

ou elaborartecnicamente

os planos setoriaisque o exercíciodessas funções

públicas demandam”

Joel Krüger

Valter Fanini

Alexsandro Teixeira Ribeiro

Joka Madruga

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Julho de 2009 25

Urbanização e recursos hídricos naRMC: conflitos socioambientais edesafios à gestão urbanaA história da formação dos ambientes urbanos e seus reflexos na área social e ambientalsão o foco do artigo do professor-titular do Departamento de Geografia da UniversidadeFederal do Paraná, Francisco Mendonça, e seu orientado no Doutorado em Geografia,Admilson A. Lopes. Eles explicam que a formação de ambientes urbanos é, em grandeparte, fruto e reflexo da ineficiência do Estado, somada às desigualdades sociaiscircunscritas ao modo de produção capitalista e ao processo histórico de dependênciapolítica e econômica das regiões menos desenvolvidas do planeta. Diante disso,defendem que planejamento e gestão urbana são fundamentais para direcionar ocrescimento das cidades, reduzindo os impactos ambientais

Artigo

O processo de urbanização mundial temapresentado expressiva intensificação e atin-giu, no final do século 20 e início do 21, índicesbastante elevados, resultando hoje na forma-ção majoritariamente urbana da população.A ONU estima que o ano de 2008 é o marcode transição da população mundial para omeio urbano, fato que deverá intensificartambém os problemas socioambientais ur-banos, especialmente sobre as áreas perifé-ricas das metrópoles nos países em estágiode desenvolvimento socioeconômico com-plexo, como o Brasil. Esta condição, de umplaneta dominado pela lógica de produçãourbano-industrial, engendra uma série de no-vos problemas para a compreensão e gestãodo espaço e da sociedade, sendo que aquelesde ordem socioambiental encontram-sedestacados no contexto das cidades.

Ao longo das últimas décadas, as metró-poles dos países em estágio de desenvolvi-mento complexo (MENDONÇA, 2004) têmapresentado um vertiginoso processo de ex-pansão física e demográfica. Marcado porintenso espraiamento das periferias geo-gráficas e sociológicas, ora de modo conco-mitante ora não, esse processo conduz à for-mação de ambientes urbanos extremamenteconflituosos sob a perspectiva socioam-biental.

Essa materialização e expansão da man-cha urbana no entorno das grandes cidades

da Ásia, África, América Latina e Caribeestão sendo marcadas por uma intensa de-gradação ambiental, proporcionada prin-cipalmente pelo incremento de populações

pobres de baixa renda assentadas sob con-dições precárias de habitabilidade, gerandobolsões de extrema pobreza sobre áreas degrande fragilidade ambiental, principalmentenos mananciais hídricos. Nesta lógica, a rela-ção entre urbanização, industrialização e osrecursos hídricos explicita um complexo eparadoxal conflito.

A formação desses ambientes urbanosé, em grande parte, fruto e reflexo da

ineficiência do Estado, somada às desigual-dades sociais circunscritas ao modo de pro-dução capitalista e ao processo histórico dedependência política e econômica das re-giões menos desenvolvidas do planeta. Ocrescimento dos problemas socioambientaisurbanos, ocasionado pelo modo e forma co-mo esse acelerado processo de periferi-zação está ocorrendo, na atualidade, temdespertado grande preocupação e interessepor parte dos pesquisadores e das instituiçõesno âmbito internacional.

Essa relação conflituosa entre a urbani-zação e o meio ambiente, que reflete a rela-ção estabelecida entre a dinâmica da socie-dade e a dinâmica da natureza, tornou-setema amplamente debatido no âmbitointernacional, ressaltada no relatório da ONU“Situação da População Mundial/2007”, quetraz a seguinte declaração: “Muitos dos no-vos habitantes urbanos serão pobres. O fu-turo dessas pessoas, o futuro das cidadesnos países em desenvolvimento, o futuro daprópria humanidade dependerá das decisõestomadas agora em preparação para essecrescimento (UNFPA, p.1)”.

Neste contexto, já conhecido, o plane-jamento e a gestão urbanos são dois dos prin-cipais instrumentos para direcionar o cres-cimento das cidades e reduzir os impactossobre o meio ambiente. Isso se faz pela ela-boração e aplicação de leis e normas ju-

“ A ONU estima que 2008 éo marco de transição da

população mundial para omeio urbano, o que deveráintensificar os problemassocioambientais urbanos,

especialmente sobre as áreasperiféricas das metrópoles nos

países em estágio dedesenvolvimento

socioeconômico complexo,como o Brasil ”

>>

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RMC em debate. Primeiro caderno 26

“ A modificaçãoda legislação transformou

algumas áreas de mananciaisem UTPs, o que

possibilitou a oferta denovas áreas de terras

urbanas na franja Leste daRMC. Todavia, isso veioatender principalmente

aos interesses das empresastransnacionais, a exemploda Renault e do mercado

imobiliário com a elevaçãoda renda da terra,

decorrente doparcelamento do

solo urbano, o queresultou na formação

de loteamentos econstrução de condomíniosde luxo, como nos casos

Alphaville Graciosae Pinheiros ”

rídicas que definam zoneamentos e regula-mentações do uso e ocupação do solo. En-tretanto, esse aparato técnico e jurídico tem-se mostrado insuficiente para conter ou disci-plinar o avanço da urbanização, princi-palmente na periferia das metrópoles nos paí-ses “do Sul”, como exemplifica a RegiãoMetropolitana de Curitiba (RMC), onde oprocesso de ocupação da franja Leste con-verge para a formação de ambientes cadavez mais problemáticos, sob a perspectivasocioambiental.

Este fato evidencia a dificuldade que oEstado enfrenta para promover políticas pú-blicas e encontrar soluções para os pro-blemas socioambientais urbanos e, aomesmo tempo, impedir ou disciplinar a ex-pansão urbana sobre as áreas periféricas,principalmente aquelas que apresentam rele-vante interesse ambiental, como é o casodos mananciais da franja Leste da RMC.

No final da década de 1990, o estado doParaná buscou sua inserção na economiaglobalizada, abdicando a proposta de res-trição à ocupação da franja Leste da RMC,apresentada no PDI-78. Passou então aadotar na íntegra a política neoliberal asso-ciada à ideia da cidade competitiva e a incen-tivar a expansão da cidade por meio do pla-nejamento estratégico-competitivo, con-forme exposto no PDI-2002, entendido aquicomo “planejamento estratégico-corpora-tivo”, ou seja, aquele manipulado e a serviçodo interesse dos agentes e de grupos sociaisdominantes.

Esse período ficou marcado pela disputaentre os estados na chamada “Guerra Fis-cal”, quando passaram a oferecer novasvantagens para atrair empresas trans-nacionais, promovendo isenções ou reduçõesde impostos, doações de terrenos e até mes-mo modificações na legislação e na (re)orde-nação territorial com criação das UTPs (LeiEstadual 12.248/98), tendo em vista a neces-sidade de ampliar a oferta de terras urbanaspara atender a demanda dessas empresas eoutros investimentos no setor imobiliário,mesmo que para isso tivessem que transfor-mar áreas de relevante interesse à preser-vação ambiental em áreas urbano-industriais.

Foi nesse contexto que o Estado do Para-ná criou o Sistema Integrado de Gestão eProteção dos Mananciais da RMC (Sig-prom), ancorado nas modificações estabe-lecidas pela Lei Federal 9.433/97 (PolíticaNacional de Recursos Hídricos) e, posterior-mente, pela Lei Estadual 12.248/98 (Lei Es-pecial de Proteção dos Mananciais daRMC). Vejamos oque preconizam osartigos 1 e 2 da lei:Art. 1.º - Fica criadoo Sigprom da RMC,com os seguintesobjetivos: asseguraras condições essen-ciais à recuperação epreservação dos ma-nanciais para o abas-tecimento público;integrar as ações dosvários órgãos e esfe-ras do poder públicoestadual, municipal einiciativas de agentesprivados; compatibi-lizar ações de prote-ção ao meio ambientee de preservação demananciais de abas-tecimento público compolítica de uso e ocu-pação do solo e o de-senvolvimento socio-econômico, sem pre-juízo dos demais usosmúltiplos; empreen-der ações de planeja-mento e gestão dasbacias hidrográficasde mananciais se-gundo preceitos de descentralização e par-ticipação do poder público, usuários ecomunidades; propiciar a instalação de ins-trumentos de gestão de recursos hídricos,

preconizados pela Lei Federal nº 9.433/97,no âmbito dos mananciais da RMC. Art. 2º:Integram o Sistema de que trata o artigo 1ºdesta Lei: Conselho Gestor dos Mananciaisda RMC (CGM), órgão colegiado, com po-deres consultivo, deliberativo e normativo,com a finalidade de elaborar políticas públicasacerca da qualidade ambiental das áreas deproteção de mananciais da RMC e acom-panhar sua implementação; Unidades Terri-toriais de Planejamento (UTPs), compostaspelas sub-bacias contribuintes dos manan-ciais de interesse da RMC, para facilitar oplanejamento, aglutinando municípios comespecificidades a serem trabalhadas conjun-tamente; Plano de Proteção Ambiental e Re-ordenamento Territorial em Áreas de Prote-ção aos Mananciais (PPART), que incorporeas diretrizes básicas estabelecidas por estaLei e que estabeleça prazos e metas paraas intervenções nas Áreas de Proteção aosMananciais (APM), configurado como capí-tulo específico a ser inserido no Plano de

Recursos Hídricosdas Bacias Hidro-gráficas da RMC, talcomo preconizadopela Lei Federal n.º9.433/97; Fundo dePreservação Ambi-ental da RMC (FPA),para atender os ob-jetivos do Sigpromda RMC.

Após a entradaem vigor da lei, o es-tado, com propostaselaboradas pela Co-mec em conjuntocom as prefeiturasde Pinhais, Piraqua-ra, São José dos Pi-nhais e Quatro Bar-ras, Sanepar, Suder-hsa e IAP, implantouum novo modelo dezoneamento de uso eocupação do solo pa-ra as áreas dos ma-nanciais da franjaLeste da RMC, coma criação das UTPsGuarituba, Pinhais,Itaqui e Quatro Bar-ras com base nosDecretos Estaduais

n.º 808/99, 809/99, 1.454/99 e 1.612/99. Oprincipal objetivo, conforme o inciso II doArt. 2.º dos decretos supramencionados, é“criar áreas de intervenção para assegurar

>>

Admilson Lopes

Fotos: Alexsandro Teixeira Ribeiro

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Julho de 2009 27

as condições ambientais adequadas àpreservação dos mananciais, mediante apreservação e recuperação do ambientenatural e antrópico com o efetivo controlede processos de degradação e poluiçãoambiental.”

O modelo de pla-nejamento das UTPs,amparado no arca-bouço jurídico fe-deral e estadual su-pramencionados, as-sinalava mudançassignificativas no tratodas questões urba-nas e ambientais re-ferentes à expansãoda área urbana asso-ciada à preservaçãoe recuperação dascondições ambien-tais, buscando o de-senvolvimento urba-no sustentável dafranja leste da RMC.Entretanto, o que ve-mos, uma década(1999/2009) após asmodificações na le-gislação e da efetivaimplantação dessemodelo de planeja-mento parece no mí-nimo contraditório. Amodificação da legislação transformoualgumas áreas de mananciais em UTPs, oque possibilitou a oferta de novas áreas deterras urbanas na franja Leste da RMC. To-davia, esse fato veio atender principalmenteaos interesses das empresas transnacionais,

a exemplo da Renault e do mercado imo-biliário, com a elevação da renda da terra,decorrente do parcelamento do solo urbano,o que resultou na formação de loteamentose construção de condomínios de luxo, casodos Alphaville Graciosa e Pinheiros.

Porém, o que maisse esperava com to-das essas mudançaslegais e técnicas parauma área de relevan-te interesse ambien-tal não ocorreu. Épossível observar cla-ramente uma con-tinuidade dos proces-sos de invasões e o-cupações irregularesem APPs, assim co-mo da falta de infra-estrutura sanitária eo aprofundamento dapoluição e degrada-ção dos mananciaishídricos superficiaisda franja Leste daRMC, inclusive nasUTPs. É nesse mo-mento que o Estado,principal agente mo-delador do espaçourbano, por meio doplanejamento urbanoexcludente, se mos-

tra ineficiente e/ou incapaz de encontrar res-postas a essa problemática. Ao contrário,por vezes, é possível até confundí-lo comoutros agentes sociais a estimular a ocupa-ção de áreas que deveriam ser protegidaspor relevantes motivos ambientais.

O incremento da população, somado àsáreas de ocupação irregular e associado àsprecárias condições de infraestrutura sanitá-ria para atender às necessidades básicas dapopulação local, reverteu-se num intensoprocesso de degradação e poluição dosmananciais hídricos superficiais da franjaLeste da RMC, afetando a qualidade daágua. Atualmente, os cursos hídricosformadores e contribuintes do subsistemaIraí, na Bacia do Altíssimo Iguaçu, sobre osquais a urbanização da RMC se desenvol-veu, apresentam (Relatório da Qualidade dasÁguas dos Rios da RMC – IAP / 1992 a2005) elevados índices de degradação/polui-

O incremento da população, ocupações irregulares e precárias condições de infraestruturas sanitárias acarretou um processo intenso de degradação dos mananiais hídricos

Walther Grube

“ O incremento dapopulação nas áreas

de ocupação irregular,associado às precárias

condições de infraestruturasanitária, gerou um intenso

processo de degradaçãoe poluição dos mananciais

hídricos superficiais dafranja Leste da RMC,

afetando a qualidade daágua. Atualmente, os

cursos hídricos formadorese contribuintes do

subsistema Iraí, sobreos quais a urbanização da

RMC se desenvolveu,apresentam elevadosíndices de degradação

e poluição ”>>

Francisco Mendonça

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RMC em debate. Primeiro caderno 2820

ção, que foram analisados segundo a Avalia-ção Integrada de Qualidade das Águas (AIQA).

Dos 21 pontos amostrais analisados dosub-sistema do Iraí, 14 apresentam uma clas-sificação de poluído, três de média poluição,dois pontos pouco poluídos e apenas dois a-presentam uma qualidade classificada comoboa (RQA/IAP, 2005, p.31). Este cenárioexplicita de forma clara um expressivo para-doxo, que reflete um conjunto de formas eprocedimentos inadequados de apropriaçãoe exploração da natureza pelas diferentessociedades humanas sobre os recursos na-turais vitais à população.

A elevada degradação dos cursos hídri-cos desta cidade revela insuficiência e debi-lidade da política de saneamento ambientalurbano, característica dos países em estágiode desenvolvimento socioeconômico com-plexo, nos quais o descaso dos governantespara com a qualidade de vida da populaçãose manifesta, dentre outras formas, naparcial e insatisfatória cobertura da rede deágua tratada e de esgotamento sanitário.

Boa parte dos problemas ambientaisbrasileiros decorre, geralmente, das gravesdeficiências do processo de gestão territorial,que não consegue promover uma adequadautilização dos recursos naturais, originandoum processo crescente de degradaçãoambiental, principalmente nos ambientesurbanos (MMA, 1996).

Para solucioná-los parece ser necessáriomelhor conhecimento científico-técnico, que,aliado a processos de educação ambiental e

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A elevada degradação dos cursos hídricos revela a insuficiência e a debilidade da política de saneamento ambiental urbano

Alexsandro Teixeira Ribeiro

gestão estatal responsável, com participaçãosocial, possam culminar em efetivas açõesde médio e longo prazo voltadas à recupe-ração dos ambientes.

Desse modo, o aperfeiçoamento dos mo-delos de planejamento e de gestão da cidade,visando equacionar os atuais problemas edesequilíbrios socioambientais estabelecidospelo “jogo de forças” entre as dinâmicas dasociedade e da natureza na formação eexpansão do ambiente urbano na periferiadas metrópoles, passa a ser um dos grandesdesafios para os pesquisadores e planeja-dores das questões urbanas e ambientais.

Considerando-se a explosão urbana-industrial de nossos dias e de um futuro muitopróximo, bem como suas particularidades,quando situadas na periferia sociológica egeográfica do capitalismo, e a elevação dademanda por recursos hídricos, estima-seque haverá uma intensificação ecomplexização dos aludidos problemas.

O desafio à sua compreensão e gestãoestá, assim, em estado de permanente ca-rência.

>>

ETIQUETA

REMETENTE:Sindicato dos Engenheiros no Estado do Paraná

Rua Marechal Deodoro, 630, 22.º andar, Curitiba.CEP 80010-912. Tel.: (41) 3224 7536. e-mail: [email protected]