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1 A CONSTRUÇÃO DA FAMÍLIA CONTEMPORÂNEA BASEADA NO AFETO As formas de família que se apresentam na sociedade, atualmente, sofreram inúmeras modificações ao longo da história da humanidade. Portanto, para que se chegue ao conceito eudemonista, adotado pela Constituição Federal de 1988, hoje vigente na sociedade, se faz necessário um breve comentário a respeito deste desenvolvimento. A família matrimonializada do início do século XX era tutelada pelo código civil de 1916. Este código tinha uma visão extremamente discriminatória com relação à família. A dissolução do casamento era proibida, havia distinção entre seus membros, a discriminação, às pessoas unidas sem os laços matrimoniais e aos filhos nascidos destas uniões, era positivada. A chefia destas famílias era do marido e a esposa e os filhos possuíam posição inferior à dele. Desta forma a vontade da família se exprimia na vontade do homem que se transformava na vontade da entidade familiar. Contudo, estes poderes se restringiam à família matrimonializada, os filhos, ditos ilegítimos, não possuíam espaço na original família codificada, somente os legítimos é que faziam parte daquela unidade familiar de produção. Ainda, a indissolubilidade do casamento era regra, e a única maneira de acabar com um matrimônio que não havia dado certo era o desquite, que colocava um fim a comunhão de vida, mas não ao vínculo legal.

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Page 1: 1 A CONSTRUÇÃO DA FAMÍLIA CONTEMPORÂNEA BASEADA NO

1 A CONSTRUÇÃO DA FAMÍLIA CONTEMPORÂNEA BASEADA NO

AFETO

As formas de família que se apresentam na sociedade, atualmente, sofreram inúmeras

modificações ao longo da história da humanidade. Portanto, para que se chegue ao conceito

eudemonista, adotado pela Constituição Federal de 1988, hoje vigente na sociedade, se faz

necessário um breve comentário a respeito deste desenvolvimento.

A família matrimonializada do início do século XX era tutelada pelo código civil de 1916.

Este código tinha uma visão extremamente discriminatória com relação à família. A

dissolução do casamento era proibida, havia distinção entre seus membros, a discriminação,

às pessoas unidas sem os laços matrimoniais e aos filhos nascidos destas uniões, era

positivada.

A chefia destas famílias era do marido e a esposa e os filhos possuíam posição inferior à dele.

Desta forma a vontade da família se exprimia na vontade do homem que se transformava na

vontade da entidade familiar. Contudo, estes poderes se restringiam à família

matrimonializada, os filhos, ditos ilegítimos, não possuíam espaço na original família

codificada, somente os legítimos é que faziam parte daquela unidade familiar de produção.

Ainda, a indissolubilidade do casamento era regra, e a única maneira de acabar com um

matrimônio que não havia dado certo era o desquite, que colocava um fim a comunhão de

vida, mas não ao vínculo legal.

Felizmente, com a evolução social-familiar, as alterações legislatórias foram inevitáveis, e

algumas muito significativas. A exemplo, apresenta-se o Estatuto da Mulher Casada (lei

4.121/1962) que devolveu a plena capacidade a mulher, pois garantia a ela a propriedade dos

bens adquiridos com o resultado de seu trabalho. Outro diploma foi a Lei do Divórcio (EC

9/1977 e lei 6.515/1977) que, como cita Dias: “Acabou com a indissolubilidade do

casamento, eliminando a ideia de família como instituição sacralizada.”

Mas a realidade social e o sistema legal nem sempre caminham juntos. Nas últimas décadas,

as transformações sociais atingiram diretamente o núcleo familiar e originaram novas

concepções de família, que não são mais equiparadas à tradicional família patriarcal.

Entretanto, somente a partir da Constituição Federal de 1988, é que esta visão passou a ter

novos horizontes. A partir de sua entrada em vigor instaurou-se a igualdade entre homem e

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mulher, o conceito de família foi elastecido protegendo agora todos os seus integrantes e

ainda tutela expressamente além do casamento a união estável e a família monoparental.

Nas palavras de Lobo, na família constitucionalizada: “O consenso, a solidariedade, o respeito

à dignidade das pessoas que a integram são os fundamentos dessa imensa mudança

paradigmática que inspiram o marco regulatório estampado nos artigos 226 a 230 da

Constituição de 1988”.

Já o Novo Código Civil de 2002, que entrou em vigor no dia 11 de janeiro de 2003, e que teve

seu projeto original traçado de 1969-1975 (antes da lei do divórcio de 1977), como estava em

desacerto com a Constituição de 1988 que privilegia a dignidade da pessoa humana, foi

submetido a inúmeras mudanças, assim nas palavras de DIAS: “o novo código, embora bem

vindo, chegou velho”.

Inúmeras modificações foram feitas mas, assim mesmo, falta a clareza necessária para

conduzir a atual sociedade. No entendimento de Maria Berenice DIAS: “Talvez o grande

ganho tenha sido excluir expressões e conceitos que causavam grande mal-estar e não mais

podiam conviver com a nova estrutura jurídica e a moderna conformação da sociedade”.

Ainda para a mencionada autora, na contemporaneidade, “Existe uma nova concepção de

família, formada por laços afetivos de carinho e de amor”. Contudo, a sociedade já atravessa

nova fase. Todos, hoje, já se acostumaram às novas formas de família que foram se

distanciando muito do modelo formado pela família organizada no sistema patriarcal. A

família contemporânea se pluralizou não se restringe mais, tampouco, as famílias nucleares,

hoje, existem famílias recompostas, monoparentais, homoafetivas e mais um sem número de

formas. Nas palavras de Matos:

Do ponto de vista legislativo, o advento da Constituição de 1988 inaugurou uma diferenciada

análise jurídica das famílias brasileiras. Uma outra concepção de família tomou corpo no

ordenamento. O casamento não é mais a base única desta entidade, questionando-se a idéia da

família restritamente matrimonial. Isto se constata por não mais dever a formalidade ser o

foco predominante, mas sim o afeto recíproco entre os membros que a compõem

redimensionando–se a valorização jurídica das famílias extramatrimoniais.

Diante deste posicionamento, Lobo esclarece que “A família atual está matrizada em um

paradigma que explica sua função atual: a afetividade. Assim, enquanto houver afeto haverá

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família, unida por laços de liberdade e responsabilidade, e desde que consolidada na simetria,

na colaboração, na comunhão de vida”.

Modernamente, o afeto que se origina espontânea e profundamente, com significado de

amizade autêntica, de reciprocidade profunda entre companheiros, vem sendo a principal

motivação para o estabelecimento de uma união entre os seres humanos. Ao tratar da visão

afetiva da relação familiar, Pereira, trata dos benefícios sociais dessa nova concepção

afirmando que: “Uma família que experimente a convivência do afeto, da liberdade, da

veracidade, da responsabilidade mútua, haverá de gerar um grupo não fechado egoisticamente

em si mesmo, mas sim voltado para as angústias e problemas de toda a coletividade, passo

relevante à correção das injustiças sociais”.

Neste sentido, surge uma nova forma de se pensar o direito de família.

Nas palavras de Dias: “Surgiu um novo nome para essa nova tendência de identificar a família

pelo seu envolvimento afetivo: família eudemonista, que busca a felicidade individual

vivendo processo de emancipação de seus membros”. Ainda para a referida autora “O

eudemonismo é a doutrina que enfatiza o sentido de busca pelo sujeito de sua felicidade. A

absorção do principio eudemonista pelo ordenamento altera o sentido da proteção jurídica da

família, deslocando-o da instituição para o sujeito, como se interfere da primeira parte do §8°

do artigo 226 da constituição federal : o Estado assegurará a assistência à família na pessoa

de cada um dos componentes que a integram”.

Seguindo o mesmo entendimento, Carbonera destaca que: “Desta forma, o afeto, que

começou como um sentimento unicamente interessante para aqueles que o sentiam, passou a

ter importância externa e introduziu-se no meio jurídico”. Esta preocupação já pode ser

observada na doutrina atual e também na jurisprudência, demonstrando que doutrinadores e

julgadores estão, cada vez mais, preocupados com o afeto nas relações de família. Neste

sentido:

Ementa: apelação cível. família. destituição de poder familiar. abandono do menor na casa

dos padrinhos, sem prestação de qualquer auxílio ou ao menos visitas. o vínculo biológico,

por si só, não tem o condão de superar a necessidade de afeto, saúde, educação e vida digna

ao menor. imperiosa, pois, a destituição do poder familiar decretada pelo juízo a quo. sentença

mantida por seus próprios e jurídicos fundamentos. apelação desprovida.(segredo de justiça) (

sem grifo no original)

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Importante salientar que o afeto tratado no presente trabalho, que se traduz na vontade de

estar e permanecer junto a alguém, em nada se parece com o afeto da família patriarcal que

tem raízes no modelo romano. Como bem explica Carbonera:

O afeto, no modelo de família patriarcal, tinha sua existência presumida e condicionada à

existência de uma situação juridicamente reconhecida. Desta forma, o casamento já trazia

consigo a afeto maritalis, justificando previamente a necessidade de continuidade da relação.

Não se questionava tal elemento, uma vez que ele fazia parte da estrutura do matrimônio. (...)

O compromisso de manter a vida em comum não revela necessariamente, a existência de

afeto. A continuidade da relação podia ser motivada por outros elementos como, por exemplo,

a impossibilidade de dissolução de vínculo: neste caso a affectio presumida se fazia presente.

A noção de afeto (...) representa uma forma de se dar visibilidade às relações de família, uma

vez que é em sua função que elas se formam e se desfazem.

Resta claro que “a possibilidade de buscar formas de realização pessoal e gratificação pessoal

é a maneira que as pessoas encontram de viver, convertendo se em seres socialmente úteis,

pois ninguém mais deseja e ninguém mais pode ficar confinado a mesa familiar. A família

identifica-se pela comunhão de vida, de amor e de afeto no pão de igualdade, de liberdade, de

solidariedade e de responsabilidade recíproca”, conforme explica Dias. Portanto a conclusão

que se chega é que a família contemporânea está pautada, principalmente, no afeto entre seus

entes.