08 aida veloso

24
O MITO DE NARCISO NA POESIA PORTUGUESA CONTEMPORÂNEA A figura de NaTciso, nas versões que até nós chegaram, é toda impregnada de beleza e significado poético. A primeira referência é-nos dada pelo Hino Homérico a Deméter, datável do sóc. vil a.C. Aqui se conta que Narciso designava uma flor toda em púrpura e prata ãvOea ... vágxvaoóv 0' (vv. 6-8). Zeus tinha-a criado com o fim de auxiliar o seu irmão Hades na conquista da jovem Perséfona, filha de Deméter, por quem se tinha apaixonado. A donzela, acompanhada pelas amigas, andava a colher flores, quando, de repente, avistou uma mais bela que todas as outras; preparava-se para a colhei, e nesse preciso momento um ser majestoso e terrível, surgindo da terra num cairo puxado a cavalos, a agarrou e a levou para o reino dos Mortos. Não é, porém, esta a versão que perdurou na memória dos homens. A Ovídio se deve a narrativa mais completa e pormenorizada que até nós chegou {Metamorfoses, ITT, 339-510), que vamos recordar. Conta- -nos que Narciso era filho do rei da Beócia, Cefiso, e da ninfa Liríope, extremamente bela. No momento do seu nascimento, os pais inter- rogaram o adivinho Tirésias quanto à hipótese de uma possível vida longa, tendo-lhes este respondido que isso seria satisfeito, caso ele nunca se visse — si se non nouerit (v. 348). Resposta estranha que durante anos não se viu justificada. Aos dezasseis anos Narciso era um misto de criança e adulto, o que lhe proporcionava inúmeras paixões por parte de jovens e donzelas, aos quais sempre resistia. Um dia, quando caçava, encontrou a ninfa Eco, ainda dotada de corpo, que só repetia os sons que ouvia; não podia, por isso, ini- ciar um diálogo — ... quae nee reticere loquenti J nee prius ipsa loqui didicit (vv. 357-358). A justificação para este facto estava na atitude tomada por Juno que a castigou por ela ter o hábito de a entreter, quando sabia que Júpiter se deleitava com alguma ninfa nas montanhas.

Upload: kamilo-olarte

Post on 17-Dec-2015

63 views

Category:

Documents


5 download

DESCRIPTION

resumen de Anais Nin

TRANSCRIPT

  • O MITO DE NARCISO NA POESIA PORTUGUESA CONTEMPORNEA

    A figura de NaTciso, nas verses que at ns chegaram, toda impregnada de beleza e significado potico.

    A primeira referncia -nos dada pelo Hino Homrico a Demter, datvel do sc. vil a.C. Aqui se conta que Narciso designava uma flor toda em prpura e prata vOea ... vgxvaov 0' (vv. 6-8). Zeus tinha-a criado com o fim de auxiliar o seu irmo Hades na conquista da jovem Persfona, filha de Demter, por quem se tinha apaixonado. A donzela, acompanhada pelas amigas, andava a colher flores, quando, de repente, avistou uma mais bela que todas as outras; preparava-se para a colhei, e nesse preciso momento um ser majestoso e terrvel, surgindo da terra num cairo puxado a cavalos, a agarrou e a levou para o reino dos Mortos.

    No , porm, esta a verso que perdurou na memria dos homens. A Ovdio se deve a narrativa mais completa e pormenorizada que at ns chegou {Metamorfoses, ITT, 339-510), que vamos recordar. Conta--nos que Narciso era filho do rei da Becia, Cefiso, e da ninfa Lirope, extremamente bela. No momento do seu nascimento, os pais inter-rogaram o adivinho Tirsias quanto hiptese de uma possvel vida longa, tendo-lhes este respondido que isso seria satisfeito, caso ele nunca se visse si se non nouerit (v. 348). Resposta estranha que durante anos no se viu justificada. Aos dezasseis anos Narciso era um misto de criana e adulto, o que lhe proporcionava inmeras paixes por parte de jovens e donzelas, aos quais sempre resistia.

    Um dia, quando caava, encontrou a ninfa Eco, ainda dotada de corpo, que s repetia os sons que ouvia; no podia, por isso, ini-ciar um dilogo ... quae nee reticere loquenti J nee prius ipsa loqui didicit (vv. 357-358). A justificao para este facto estava na atitude tomada por Juno que a castigou por ela ter o hbito de a entreter, quando sabia que Jpiter se deleitava com alguma ninfa nas montanhas.

  • 168 AIDA MARIA VELOSO

    Logo que o viu, uma paixo sbita se apoderou dela. Foi em sua perseguio, mas, como no podia falar, limitava-se a segui-lo. At que Narciso, que se separara dos seus companheiros, pressentindo algum, exclama: Ecquis adest?Adesl (v. 380), responde ela, pois s repetia as ltimas palavras. Narciso, porm, no v ningum, at que a uma sua splica Hue coeamus (v. 386) ela surge e abraa-se a ele que a repele, fugindo.

    Eco, entristecida e envergonhada, refugia-se na floresta, deixando de comer. S lhe ficou a voz e os ossos, que, conta-sc, se transfor-maram num rochedo sonus est, qui uiuit in ilia (v. 401).

    Todos, jovens e donzelas, se sentiam desprezados por Narciso, at que algum lanou a maldio: Possa ele amar e no possuir o objecto dos seus desejos! sic amet ipse licet, Sic non potiatur amatol (v. 405). A deusa Nemesis, encarregada de castigar os ultrajes e injustias, ouviu esta splica e preparou-se para a satisfazer.

    Um dia, Narciso, extenuado aps uma caada, encontrou um local maravilhoso, onde descansou e aproveitou para matar a sede num lago imaculado, que Ovdio descreve de forma pormenorizada, de modo a nos dar a perfeita sensao de um espelho fons erat inlimis, nitidis argnteas undis (v. 407). Ao matar a sede, mira-se e v a sua bela imagem no lago. Fica apaixonado pela sua pessoa se cupit impudens et qui prohat ipse probatur (v. 425) e no arranca p do lago at que enfraquece por no comer non ilium Cereris (v. 437). Quase a morrer, dirige as suas ltimas palavras s rvores que o rodeiam e neste longo monlogo ele foca todo o seu desgosto pela paixo que o dominou, sem poder atingir o objecto dessa mesma paixo. Na realidade, apesar de no haver grandes distncias entre eles (nem mares, nem estradas, nem montanhas), apenas um pouco de gua os separava, o ser amado era inantigvel: quando estendia os braos, o ente querido tambm os estendia, quando sorria, ele tambm sorria, quando falava, do outro lado s havia um mexer de lbios sem som. Mas reconhece o seu erro, pois apaixonou-se por si prprio Iste ergo sum (v. 463) e em breve exalaro ambos o mesmo suspiro nunc duo concordes anima moriemur in una (v. 473).

    Eco vem assistir aos seus ltimos momentos, repetindo sempre as suas ltimas palavras. Mesmo ao entrar nos Infernos. Narciso mirou-se nas guas do lago Estgio. As Naiades choraram c cortaram os cabelos, consagrando-os ao irmo. As Drades, ninfas das florestas, tambm o choraram. Quando foram fazer-lhe o enterro, em vez do

  • O MITO DE NARCISO 169

    corpo encontraram uma flor de cor amarela, a que se deu o nome de Narciso.

    Chamamos a ateno para o facto de o Hino Homrico se encontrar escrito num estilo simples e directo, sem afectao alguma, enquanto Ovdio, como sempre, est atento ao seu auditrio, o que o leva a descrever pormenores que vo enriquecer a narrativa, como aquele da morte de Narciso, que sendo j uma sombra, no deixa de se mirar nas guas do lago.

    Uma outra verso originria da Becia e transmitida por Cnon (1) apresenta-nos tambm um Narciso belo e jovem, natural de Tspias, que desprezava as alegrias do amor. Um dos seus apaixonados, ao suicidar-se, invocou a maldio dos deuses para Narciso, que se man-tm idntica descrita por Ovdio, s com a diferena de que a sua morte violenta, pois mata-se, desesperado. No local do suicdio, na erva impregnada de sangue, nasceu uma flor, o narciso.

    Pausnias (2) d uma interpretao racionalista do mito j exis-tente, estranhando que um jovem da idade de Narciso no tivesse entendimento para reconhecer a sua prpria imagem. Adiante refere uma outra verso, segundo a qual Narciso tinha uma irm gmea, com que muito se parecia. Aps a sua morte, que o entristecera profundamente, ao contemplar-se num lago, julgou ver a irm e isso consolou-o. Apesar de saber que isto era uma iluso, passou a mirar-se frequentemente nas guas, para minorar a saudade.

    Deste breve estudo do mito e das suas mltiplas verses antigas, excluindo a primeira, vemos que h um estrato comum a todas: Nar-ciso compraz-se em admirar a sua pessoa, com uma paixo que o leva ao suicdio lento (Ovdio) ou violento (verso da Becia). , pre-cisamente, este aspecto do mito que vai influenciar toda a cultura moderna, possibilitando a sua reintei pre taco.

    C. Lvi-Strauss (3) suscita uma questo interessante: Tudo pode acontecer num mito; parece que a sucesso dos acontecimentos no est subordinada a nenhuma regra de lgica ou de continuidade. Todo 0 sujeito pode ter um predicado qualquer; qualquer relao concebvel

    (1) Jacoby, FGrHist. 26.24 (vol. I, pp. 197-198). (2) IX, 31, 7-9. (3) Anthropologie Structurale, Paris, Pion, 21974, p. 229.

  • 170 AIDA MARIA VELOSO

    c possvel. No entanto, estes mitos, aparentemente arbitrrios, repro-duzem-se com as mesmas caractersticas e frequentemente com os mesmos pormenores em diferentes regies do mundo. Assim, pe-se o problema: se o contedo do mito inteiramente contigente, como ser possvel compreender que, duma ponta outra da terra, os mitos sejam to semelhantes entre si?

    Como observa L. Diez del Corral a Antiguidade tem estado sempre mais ou menos presente no homem ocidental, oferecendo-lhe uma srie de possibilidades que foram utilizadas de maneira muito diversa (4). Ora nota ainda o mesmo autor o fenmeno da persistncia do mito clssico apresenta um duplo aspecto: por um lado era necessrio um mito com as caractersticas do grego para que pudesse perdurar tanto tempo, transformando-se sem cessar; por outro era necessria uma capacidade especial por parte do mundo ocidental para tirar partido dele, exigindo a sua renovada adaptao, transfigurao ou enfraquecimento (5).

    O mito do jovem Narciso segundo De Gubernatis (6) , sem dvida, funerrio. A flor do mesmo nome, em que se transformou, simbolizou a fragilidade e a morte, consagrando-se a Hades. O nar-ciso era a flor que adormecia os seres no seu ltimo sono. Ele o smbolo de uma atitude autocontemplativa, absoluta e introvertida o narcisismo , pois, o exagero da autocontemplao. Diz Cir-lot (7) que o mito de Narciso significa a viso antropomrfica do cosmos. Dentro da teoria psicanaltica, o complexo narcisista est assinalado pela fixao afectiva do indivduo em si mesmo. Manifesta-se, psi-colgica e afectivamente, por um desinteresse do mundo exterior e uma explorao da vida interior no sentido egocntrico, dando uma importncia exagerada sua prpria pessoa.

    Olhando para a produo literria europeia dos ltimos sculos, encontramos, por exemplo, um poeta alemo, Hlderlin (1770-1843), que, abordando este tema, veio a influenciar outros. Em Frana, podemos citar Paul Valry (1871-1945), cuja obra potica se encontra

    (4) La Juncin ciei mito clsico en la literatura contempornea, Madrid, Gre-dos, 1957, p. 94.

    (5) Idem, ibidem, p. 93. (6) Cf. Diccionario de Smbolos y Mitos de Jos Antonio Perez-Rioja, Madrid,

    Tecnos, 21971, s.v. 'Narciso'. (7) Ibidem.

  • O MITO DE NARCISO 171

    profundamente voltada para temas mitolgicos. So vrias as com-posies ligadas a Narciso: Fragments du Narcisse, inserido no seu livro Charmes, e tambm uma pea teatral Cantate du Narcisse.

    O que o mito de Narciso significa para Valry a pretenso de corporalizar, de reduzir mais concreta imagem mtica o mais anti--natural, irreal e absoluto o seu Eu:

    Mais moi, Narcisse aim, je ne suis curieux Que de ma seule essence-

    Tout autre n'a pour moi qiC un coeur mystrieux Tout autre n" est qu' absence.

    O mon bien souverain, cher corps, je tf ai que toil Le plus beau des mortels ne peut chrir que soi... (8)

    Um outro exemplo Andr Gide (1869-1951) que nos oferece o Trait du Narcisse, escrito em 1891 (9).

    Em Portugal, o mito de Narciso reaproveitado em pleno sculo xx, particularmente a partir da publicao da revista Orfeu (Narciso, de Lus de Montalvor) (10). Antes do nosso sculo, surgem casos isolados, como, por exemplo, a fbula de Narciso, de Jacinto Freire de Andrade (scs. xvi-xvn) (11).

    Propomo-nos aqui analisar diversos tratamentos da figura de Narciso em vrios poetas portugueses aps Fernando Pessoa e a perspee-tivao que dela fizeram. Isto leva-nos a ter que estabelecer uma distino entre o narcisismo que, como Freud aponta, uma fase normal do desenvolvimento sexual do indivduo (narcisismo infantil) que s toma propores patolgicas no momento em que o indivduo regride a esse status infantil (12), e a mera referncia a Narciso como smbolo ou trampolim para outros voos poticos.

    Alguns dos poetas que constituem matria do nosso trabalho surgem ligados querela do Modernismo, que se revestiu de um signi-

    (8) Exemplo citado por L. Diez del Corral, op. cit., pp. 131-132. (9) Idem, ibidem, p. 25.

    (10) Cf. Dicionrio de Literatura de J. Prado Coelho, Porto, Figueirinhas, 31973, s.v. 'Orpheu', p. 773-A.

    (11) Ibidem. (12) Parada Leito, "Narcisismo'' in Enciclopdia Verbo.

  • 172 AIDA MARIA VELOSO

    ficado decisivo como consciencializao artstico-literria, logo seguida (aps 1940) de uma consciencializao scio-cultural. Como escreveu Jorge de Sena, os grandes nomes do primeiro Modernismo comeavam a ganhar relevo, postumamente, pela publicao das suas obras (13) (Fernando Pessoa e Mrio de S-Carneiro). O segundo Modernismo, encabeado por Jos Rgio, comeava a extinguir-se, dado que enfer-mava de uma averso a uma modernidade, que era, no entanto, indis-pensvel revitalizao da expresso artstica.

    A posio polmica continua o mesmo crtico que veio a ser conhecida por Neo-realismo ou Poesia social, e na qual tomou parte Miguel Torga com uma carta aberta, no se distinguia dos postu-lados presencistas, a no ser em relao subordinao da Arte a uma misso socialstica (os Presencistas defendiam um carcter necessariamente pessoal) (14).

    Estas transformaes no campo literrio so fruto de uma exi-gente consciencializao do contexto social e do esprito de Resis-tncia que a todos tocou (15). H uma transformao scio-poltica da vida portuguesa neste perodo, e, se os poetas so um ndice da sociedade a que pertencem, estes que constituem o Neo-realismo so-no de modo significativo. (16)

    JOS RGIO

    Jos Rgio (1899-1969) foi a personalidade da Presena que indis-cutivelmente alcanou maior favor entre o pblico. A atitude mais caracterstica da sua poesia e temos aqui um exemplo evidente a de confidncia, j que no v qualquer possibilidade de comuni-cao humana para as contradies psicolgicas (17). Essa intros-peco constante (lembremo-nos que, na altura em que foram publi-cados os Poemas de Deus e do Diabo, se assistia a uma notvel expanso

    (13) Jorge de Sena, Lricas Portuguesas, 3.a srie, Lisboa, Portuglia, 21975, p. XLV.

    (14) Idem, ibidem, p. LIX. (15) Tdem, ibidem, p. LI. (16) Idem, ibidem, p. LV. (17) A. J. Saraiva e scar Lopes, Histria da Literatura Portuguesa, Porto,

    P. Editora, 81975, p. 1092.

  • O MITO DE NARCISO 173

    da psicanlise) vai dar azo explicitao de um egotismo (18); mas note-se que Rgio no levanta a dvida ontolgica sobre o Eu, visto que os seus problemas de sinceridade so fundamentalmente ticos (19). Aquilo que o imps como poeta original foi um deter-minado estilo, espectacular, de confisso e dilogo a ss. Para Rgio, o encontro psquico entre duas ou mais pessoas um logro, um impos-svel no plano propriamente humano, pelo menos (20). por isso que na sua poesia deparamos com certos momentos de grande tenso, onde o poeta oscila entre o dualismo e certas solues monistas: eu e o outro de mim, eu e os outros, eu e Deus, etc.

    No poema Narciso (21) temos um exemplo evidente do eu e do outro de mim. Numa primeira leitura assistimos a um aprovei-tamento do mito aprofundado pela perspectiva freudiana, e que uma anlise pormenorizada do poema vai demonstrar. Um primeiro aspecto a salientar ser a abundncia da primeira pessoa verbal, refor-ada pelos pronomes pessoais e possessivos igualmente da primeira pessoa.

    A primeira frase dentro de mim me quis eu ver encerra essa ideia de introspeco que condiciona todo o desenvolvimento posterior. Ainda no primeiro verso temos a forma tremia (note-se a sua posio em final de verso, vincadamente enftica), que denota a emoo que domina 0 poeta nesse gesto de se ir ver, receando o que poder ver terrvel face e arcabouo. Ser conveniente expressar aqui a impor-tncia no s da palavrapoo como tambm da sua prpria colocao; veja-se que ela constitui como que os limites em que o poema se vai desenvolver. E porqu a escolha do vocbulo pool Notamos uma certa influncia de Mrio de S Carneiro, sobretudo pelo tom fatalista que a palavra indiscutivelmente sugere(22); por outro lado ficamos com

    (18) scar Lopes, Histria Ilustrada da Literatura Portuguesa, II, Lisboa, Cor, 1973, p. 771.

    (19) Idem, ibidem, p. 772. (20) Idem, ibidem, p. 777. (21) Jos Rgio, Poemas de Deus e do Diabo, Lisboa, Portuglia, 71969, p. 19. (22) M. de S-Carneiro, Poesias, Lisboa, tica, p. 141.

    Balouo beira dum poo,

    O Recreio, Indcios de Oiro

  • 174 AIDA MARIA VELOSO

    uma imagem de dimenso muito mais profunda e dramtica do que aquela que seria dada pela palavra habitual do mito lago.

    Analisemos a adjectivao abundante que se encontra nos versos 3 a 8: terrvel, lnguido, tumular, cerrada, fria, esfingico, sfrego. Todos eles, embora com matizes diversos, sugerem-nos o sofrimento que o domina, o que reforado pelo tremia inicial como tambm pelo prprio substantivo melancolia que encerra este grupo de versos. Mas ainda neste trecho temos o contraste entre a boca e os olhos que so lindos, ao fim e ao cabo o paradoxo entre a morte e a vida. Mas no queremos avanar sem chamar a ateno para o verso 8, parti-cularmente para o verbo suar, que proporciona toda uma animizao enriquecedora do grupo constitudo pelas duas quadras.

    Analisando agora os tercetos, algo sobressai: a ideia do desejo. Ela -nos dada pela forma desejei, pelo substantivo desejo e, sobretudo, pelos conjuntivos goze e tenha. Mas no ficamos por aqui: o vermelho a cor mais quente refora a ideia atrs expressa, sugerindo o seu qu de violncia, a que no alheio o selvagens do verso anterior que contrasta com requintados.

    A ideia do desejo, da posse, vai ser acentuada pela expresso noite de amor, que constitui o cenrio ideal para a concretizao nar-cisista do desejo do poeta o alcanar o seu outro eu. O fundo do poo, a expresso-chave do ltimo verso, transmitc-nos esse isolamento do mundo que caracterizou grande parte da poesia de Rgio.

    JOS GOMES FERREIRA

    Com a primeira poesia publicada em 1948-1950, Jos Gomes Ferreira (n. 1900) tomou-se o mais consagrado poeta que se pode considerar pertencente corrente neo-realista. Personagem multi--facetada, ele tem sido, por um lado, o intelectual lcido solidrio com os dramas da sociedade em que se integra e, por outro lado, encarna o homem cujas contradies da auto-sinceridade... ganham... tons alternativos de sarcasmo, de revolta, de melancolia, de perplexi-dade... (23)

    (23) A. J. Saraiva e scar Lopes, Histria da Literatura Portuguesa, p. 1117.

  • O MITO DE NARCISO 175

    patente a influncia de certas tendncias herdadas do sculo passado, nomeadamente um romantismo saudosista e, por vezes, certos laivos de Antnio Nobre (24).

    Falmos atrs da auto-sinceridade. Este poeta, efectivamente, deu um impulso novo ao problema da sinceridade que nele um problema de fundo.

    Ao fazermos a anlise dos poemas que nos interessam aqui, tere-mos oportunidade de ver que as palavras de Gomes Ferreira nunca tropeam: ora deslizam suavemente, ora se rebelam, tornando-se vio-lentas e speras (25).

    E, para concluirmos esta breve introduo, no queremos deixar de transcrever o testemunho de A. Pinheiro Torres, sobre a poesia de J. Gomes Ferreira. Diz ele:

    Para alm da sua linguagem absolutamente pessoal, para alm de uma temtica abordada com incontroversa originalidade, Gomes Ferreira continua a revelar-se-nos o poeta com perfeita conscincia de si, mesmo quando se expande na fase mais aguda do conflito, um poeta que nada esconde de si mesmo nem escamoteia nenhum dos seus problemas. (26)

    Passemos, pois, anlise dos poemas.

    Faamos uma primeira leitura de Porque andas sempre ao p de mim (27). Logo sobressai o refro Vai-te! s intil. Percorrendo os vrios volumes de poesia de Jos Gomes Ferreira, verificamos que a forma vai muito frequente. Sendo um imperativo, a quem que ele d a ordem? A quem diz ele que intil? O vocativo que com-pe o segundo verso Anjo das mos amarradas constitui a res-posta. Trata-se, na verdade, do seu outro eu, do alter ego, que lhe vai servir de interlocutor, para se autocriticar, para se insurgir contra a sua prpria pessoa, dado que ela no assume, por vezes, a posio por ele entendida como correcta. As censuras chovem: no tens boca de coragem, no tens dedos de esperana, no tens mes nos olhos, no tens embalos nos braos. Perante um espectculo de dor, recolhe-se

    (24) Cf. Dicionrio de Literatura de J. Prado Coelho, s.v. "Ferreira, J. Gomes', 331-C.

    (25) Cf. Csar Leal, na aba de Poesia II, Lisboa, Portuglia, 1972. (26) Cf. A. Pinheiro Torres, na aba de Poesia III, Lisboa, Portuglia, *1971. (27) J. Gomes Ferreira, Poesia If. p. 166.

  • 176 AIDA MARIA VELOSO

    narcisicamente ao espelho Deixa-me s! onde mais nenhuma imagem, a no ser a sua, se reflecte, e contempla o seu rosto, mais pre-cisamente os olhos; a ele tem perfeita conscincia da sua incapacidade de lutar contra a misria humana, qual Narciso covarde.

    Em Amor (28), a explicao que habitualmente encontramos a introduzir o poema fala-nos de uma melodia de violino. Este instru-mento c um dos leit-motif da poesia ferreriana (Mas do destinoj de quem ama / ouvir um violino / at na lama como se l em Poesia II, p 141); ele est associado, invariavelmente, ao amor, como sugesto do som ideal para a delicadeza do sentimento.

    Novamente o espelho; novamente a sua imagem nele retrada, com o isolamento (solido ... espelho nu) habitual, com a contnua luta de se descobrir.

    O ltimo verso surge em jeito de concluso: a referncia a Narciso clara, dados os pontos de contacto existentes.

    Toalha (29) c mais um poema onde, discretamente, surge a refe-rncia ao espelho proporcionado pelas guas. A composio comea por uma palavra demasiado equvoca, o que acontece com frequncia na poesia de J. Gomes Ferreira. Inclinamo-nos para a hiptese de toalha ter aqui o sentido de toalha de gua, j que logo a seguir aparece a forma verbal chapinho. No acidental a aliterao onoma-topaica que se encontra nos versos 2 e 3: efectivamente, trs palavras comeam pela palatal eh, o que nos proporciona uma imagem auditiva deveras interessante e refora a ideia do chapinhar. Ora, nessas guas O sol lava os cabelos de vidro (novamente uma subtil referncia ao espelho). Os ltimos quatro versos sugerem o pr do sol. A lentido mostra bem o progressivo aproximar do Sol at dissoluo completa na gua : veja-se a leitura to particular do mito de Narciso tal como ele, o Sol aproxima-se cada vez mais da sua imagem reflectida at se fundir com ela, enfim, desaparecendo.

    Se queres ir minha frente (30). Novamente o poema precedido de uma explicao breve que, no entanto, no deixa de ser rica de con-

    (28) Poesia IV, Lisboa, Portuglia, 21971, p. 136. (29) Poesia IV, p. 210. (30) Ibidem, p. 99.

  • O MITO DE NARCISO 177

    tedo. O adjectivo monstruoso aparece com uma certa frequncia na poesia ferreiriana. Recordemos, por exemplo, o poema Quem este monstro? (31), onde o poeta a certa altura diz Parecemos diferentes, j mas sou eu. A prpria leitura do poema nos fala do habitual desdo-brar do eu no alter ego; da que o monstruoso esteja a adjectivar Narciso.

    Tal como no poema Porque andas sempre ao p de mim, atrs analisado, o refro vai dirige-se ao seu outro eu. Desta vez o poeta transmite-lhe mais ordens (atopeta, forra, prende-te), ordens que se destinam a abrir suavemente o caminho por onde vai passar, ao fim e ao cabo, a vida ideal que ele gostaria de trilhar trono de altas nuvens. fundamental aqui lembrar que o ideal para J. Gomes Fer-reira seria unir as suas pontas de si: conseguir harmonizar o sonho e o real, o Cu e a Terra, o eu social e o eu individual. Como nota A. Pinheiro Torres, no podemos seria pura estultcia lanar todo o odioso sobre o eu hipotecado ao Cu, s nuvens (32).

    A propsito das altas nuvens, convm dizer que nuvem uma palavTa-chave da poesia ferreiriana que conota os ideais, a pureza e no, obiamente, apenas a lama do egosmo (33).

    E os dois ltimos versos so a consciencializao, por parte do poeta, de que o seu eu social tem a dimenso do mundo.

    Em Naquele tempo (34), mais uma vez nos debruamos sobre a pequena nota explicativa que J. Gomes Ferreira teima, pertinentemente, em colocar antes do poema. Na verdade, que cenrio melhor para um poeta, que tantas vezes deixa cair as mscaras do eu social para se olhar sobre si mesmo (recordemos os espelhos...) que uma casa numa pequena ilhota plantada num lago?

    O isolamento, que a paisagem referida no poema nos sugere, prestava-se a situaes introspectivas, da novamente, o aparecimento dos espelhos indecisos.

    E o poeta recorda... (um breve, mas importante pormenor bio-grfico J. Gomes Ferreira foi cnsul de terceira classe durante cerca de cinco anos, 1925-1929, na Noruega). Recorda uma ilha

    (31) Poesia II, p. 86. (32) A. Pinheiro Torres, Vida e obra de J. Gomes Ferreira, Lisboa, Bertrand,

    1975, pp. 179-180. (33) Idem, ibidem, p. 180. (34) J. Gomes Ferreira, Poesia VI, Lisboa, Diabril, 1976, p. 117.

  • 178 AIDA MARIA VELOSO

    num lago cinzento ( excepcional a sugestiva perfrase do v 8 cor de fogo adormecido) tambm Narciso se aproximava do lago e com umu rede procurava apanhar a sua imagem.

    Na anlise do poema anterior, falmos da importncia que assume, na poesia de J. Gomes Ferreira, a dicotomia Cu-Terra. Ela aqui surge de novo, desta vez, afirmando que a imagem que procura colher desconhecida, o Homem universal (mistura de mundo e cu) que abandona o mundo ideal sonho. A busca constante deste mundo ideal s poderia conduzi-lo a uma vida totalmente frustrada, tal como Narciso.

    VITORINO NENSIO

    No se pode sequer conceber a literatura portuguesa do ltimo meio sculo sem as marcas que lhe imprimiu, nos mais diversos campos, a personalidade de um intelectual chamado Vitorino Nemsio (n. 1901). No que respeita sua produo potica, obras como O Bicho Har-monioso, Eu, O Verbo e a Morte constituem padres de uma absoluta modernidade, de um verdadeiro encontro com os novos rumos da nossa Poesia. Ao longo da sua obra deparamos com uma personali-dade servida de todos os dados e segura de todos os segredos da arte de bem escrever.

    A produo potica de Vitorino Nemsio desdobra-se em dois ciclos que, sumariamente, podem ser caracterizados, o primeiro, pelas saudades de uma infncia passada nas ilhas, e o segundo, pela orien-tao ao Deus catlico tradicional. Uma tnica, porm, se verifica trata-se do incessante apelo dos Aores: o poeta reconduz-se siste-maticamente sua infncia e sua ilha natal, imagens de uma unidade perdida. curioso notar que o tempo do autor de Eu est povoado de mltiplas recordaes, que conduzem o leitor a essa infncia lon-gnqua atrs referida. Note-se, porm, que nunca deixamos de encon-trar o ilhu, o insular (35): basta registar que uma das constantes mais veementes o mari A comoo das coisas que lhe segreda o oceano e a ilha atlntica fundamental paTa a compreenso da sua obra. Recor-

    (35) Taborda de Vasconcelos, Originalidade de V. Nemsio in Criticas sobre Vitorino Nemsio, Lisboa, Bertrand, 1974, p. 87.

  • O MITO DE NARCISO 179

    demos como Ortega y Gasset definia Vitorino Nemsio Um homem que transporta uma ilha (36).

    Freud mostrou que as pulses dinamizadoras do ego surgem-nos sempre investidas em imagem (37); ora, o ego de Nemsio encon-tra-se a partir de uma pessoalssima saudade de cor regional e infantil.

    A leitura do poema Gnese do menino e da menina (38) no mais do que a confirmao do que atrs afirmmos. O ttulo do poema comea logo por nos dar essa sensao de viagem at ao jardim da sua infncia aoriana, o que nos vai ser confirmado pelo desenvolvi-mento da composio. Efectivamente, a expresso Era uma vez, com um emprego anafrico, proporciona-nos esse delicioso sabor de histria infantil. Assistimos ao nascimento de duas crianas cujo ser dir-se-ia ter ficado dividido e ser duplamente humano e martimo (39) (o mar como realidade concreta pleno de fora geradora).

    Diz-nos scar Lopes que na poesia de Vitorino Nemsio a proli-ferao da imagem directa ou comparativa, da mincia e da analogia metafrica corresponde refundio do real comum... (40) Este poema um exemplo flagrante da tcnica notvel do emprego da com-parao c da metfora. No caso daquela se pode integrar a referncia a Narciso. A sua figura, na verdade, apresenta-se como o elemento negativo da comparao, isto , o poeta fala-nos de um anti-Narciso, de uma criana que, longe de ficar eternamente numa auto-contemplao, olha o mundo que o rodeia: ele o homem em embrio, pleno de futuras realizaes. Embora no verso 7 surja uma outra comparao, debru-cemo-nos ainda nesta, recorrendo novamente a scar Lopes. Chama este crtico a ateno para o facto de o papel dos mitos no ser mais que o de sugerir toda uma teia de relaes inesgotveis pela praxis cientfica e quotidiana (41), graas ao uso preciso e pertinente de analogias certeiras (42). A infncia pequeno-burguesa de Nemsio,

    (36) Esther de Lemos, Vitorino Nemsio, Panorama, IV Srie, O.0 21, Maro de 1967.

    (37) scar Lopes. Histria Ilustrada da Literatura Portuguesa, p. 851, (38) Vitorino Nemsio, Poesia (1935-1940), Lisboa, Moraes, 1961, pp. 72-73. (39) Fernando Guimares, A expresso simblica em V. Nemsio, in

    Crticas sobre V, Nemsio, p. 99. (40) scar Lopes, Histria Ilustrada da Literatura Portuguesa, p. 852. (41) Idem, ibidem, p. 853. (42) Idem, ibidem, p. 853.

  • 180 AIDA MARIA VELOSO

    enquadrada por um meio rural e martimo do incio do sculo cons-tituiu material magnfico para a mitificao.

    A arte potica de Nemsio precisamente a de deixar vir ao de cima o menino que sempre existiu dentro de si, e Narciso surge como um menino que ele no foi nem quis ser. H, pois, nesta comparao, um certo qu de ingenuidade recuperada. Mas logo no verso 5, pas-samos a ter uma menina, uma certa menina, cuja gnese idntica e paralela do menino, confluindo, paradoxalmente, numa unio a estrela do mar que no menino ardia. O retrato dela -nos propor-cionado, a partir da terceira quadra, mas usando uma linguagem muito especial, onde descortinamos claramente o artfice que conjuga as histrias de ninar da sua meninice com a descrio, prenhe de saudade, do seu companheiro-mar. de notar que a recusa de ser Narciso reforada pela contemplao da Menina, contemplao esta que deixa entrever toda a ambiguidade do amor-dio de que ela, a Menina intocada, e depois impossvel, se torna objecto (43).

    Os dois ltimos versos no so mais do que a verificao dolo-rosa do tempo que passou, dos desejos frustrados, enfim, conscincia da impossibilidade total do reencontro agora nada mais resta que o regresso s suas OTigens.

    MiGUFL TORGA

    A obra de Miguel Torga (n. 1904) apresenta um ambiente de mitos agrrios e pastoris que da sua origem alde transmontana remontam aos smbolos clssicos. A despeito de uma profunda diversidade de gneros, toda ela expresso coesa, embora multifacetada, de um indivduo bem definido, de ntidos contornos e lmpidos intuitos, veemente, vibrante enternecido pelas criaturas, revoltado perante o Criador (44). A sua posio nas nossas letras continua a ser a de um grande isolado, que, no entanto, consubstancia e representa, da forma mais directa ou atravs de inevitveis smbolos, quanto h de viril, vertical e insubornvel no homem portugus contempor-

    (43) Idem, ibidem, p. 857. (44) Dicionrio de Literatura de J. Prado Coelho, s.v. 'Torga, Miguel',

    p. 1094-A (artigo de David Mouro-Ferreira).

  • O MITO DE NARCISO 181

    neo (45). No seu esprito podemos descobrir um paganismo greco--latino de aquisio cultural (46).

    Vamos considerar separadamente os poemas que nos so propostos. No podemos dissociar o poema O vinho (47) da obra em que se integra um verdadeiro poema pico, segundo o autor, que d pelo nome de Poemas Ibricos. Sendo a figura principal o homem, o homem portugus habituado a sofrer e a associar, por vezes, a alegria ao entusiasmo proporcionado pelo lcool, Torga coloca-nos esse nome de Poemas Ibricos. Sendo a figura principal o homem, o homem portugus habituado a sofrer e a associar, por vezes, a alegria ao entusiasmo proporcionado pelo lcool, Torga coloca-nos esse homem perante um espelho lquido o vinho. Caracteriza marca-damente este poema a origem transmontana e a prpria vivncia do Poeta. Basta olharmos para a primeira expresso do primeiro verso sumo de pedras; quem conhece a regio do nordeste, sente, na ver-dade, que o vinho provm daquele terreno xistoso, aparentemente estril. Dessas pedras brota a colorida fonte (desnecessrio se torna explicar o porqu de colorida) onde Narciso se no pode olhar. Esta impossibilidade de se ver reflectido resulta do turvamento da fonte no esqueamos que o vinho no constitui uma superfcie ideal para espelho!... No servindo para espelho, ele serve, porm, para embebedar (v. 3). Porqu? No podemos esquecer que Miguel Torga o poeta verdadeiramente comprometido com a sociedade em que se integra, que rompeu com a Presena, precisamente por esta no acompanhar a profunda transformao scio-poltica da vida portuguesa, preferindo entregar-se a um puro idealismo. O homem portugus, o que vive o hic et nunc, sofre, sente-se s o pobre e atri-bulado sentimento j de solido; da que procure, naturalmente, uma alegria artificial dada pela embriaguez nela que se tenta embebedar quando o sofrimento grande e duro negro sofrimento. Assiste-se, pois, despersonalizao total, ao alheamento do mundo e dos pro-blemas que afectam o homem portugus, incapacidade de comuni-cao. Como podemos ver, o mito de Narciso apresenta neste poema um aproveitamento demasiado breve, sem deixar de no entanto, propor-cionar uma imagem de feliz inspirao.

    (45) Ibidem, p. 1094-B. (46) Ibidem, p. 1094-C. (47) Miguel Torga, Poemas Ibricos, Coimbra, 1965, p. 16.

  • 182 AIDA MARIA VELOSO

    Isto j no se passa com o segundo poema (48), O Narciso, onde ns vamos j encontrar uma leitura muito pessoal do mito de Narciso. Nos primeiros versos o Poeta fala-nos dessa imagem pouco ntida o desenho impreciso de cada homem que continua em busca da verdade continua fiel e debruado sobre o ribeiro; e interroga-se sobre essa impossibilidade da viso total do homem na sua plena dimen-soporque no h-de ver-se inteiro j Quem todo $e deseja revelado?

    Encontramos um contraste entre o impreciso da imagem do rosto humano e o desejo de ver-se inteiro. Narciso aparece-nos adjectivado de velho, que denota a antiguidade do mito. Mas Narciso no se debrua sobre a fonte, mas sim sobre o ribeiro. A que se deve esta nova leitura do mito? Parece-nos que o poeta, querendo referir-se vida, no poderia reproduzi-la metaforicamente por guas paradas; no, ter de haver um fluir constante, uma lquida corrente, para que a sugesto seja verdadeiramente rica.

    Quanto ao terceto, queremos chamar a ateno, em primeiro lugar, para a sua posio no poema ele constitui formalmente o ncleo da composio. Novamente, a insistncia da procura; uma tarefa desgastante, feita com verdadeira coragem denodadamente. Mas essa procura nunca tem fim; isto pode verificar-se na estncia que se segue. Com efeito, a verdade nunca surge concreta e objectiva, ela dilui-se sempre na lquida corrente, o que constitui uma tortura. Mas o homem procura conhecer-se, ter a imagem real de si, sofre, e esse sofrimento ainda mais acentuado com a ironia das injrias, com a maldade labu de prfida maldade daqueles que no acre-ditam na constante procura do homem.

    O terceiro poema Mergulho (49) exige que o integremos na obra onde se apresenta Dirio VI. Defendemos tal atitude, visto que no dia imediatamente anterior, Miguel Torga tinha assis-tido representao do Auto da Lusitnia, registando no seu Dirio interessantes divagaes sobre o Bem e o Mal (no esquecendo a tra-dicional associao ao Cu e ao Inferno, respectivamente), assim como sobre a insatisfao que caracteriza o corao dos homens. Ora, parece-nos que o poeta, ao escrever o Mergulho, na Serra da Estrela, se sente ainda profundamente marcado pela dicotomia Bem-Mal que

    (48) Miguel Torga, Cntico do Homem, Coimbra, 41974, pp. 78-79. (49) Miguel Torga, Dirio VI, Coimbra, 21961, p. 36.

  • O MITO DE NARCISO 183

    a citada representao vicentina lhe tinha suscitado. perante o cenrio rido que rodeia o Poo do Inferno que Miguel Torga volta a sentir quo atraente (Porque ser que o mal to sedutor Dirio VI, p. 33) ser o inferno. O prprio ttulo Mergulho sugere subtil-mente essa atraco inexplicvel. E todo o poema se vai desenvolver sobre duas trave s-me stras o cu distante altura triste e a terra, o cho. Os dois conjuntivos exortativos, que se encontram no incio dos dois primeiros versos, do-nos com rigor a opo do poeta pre-ciso que o Cu deixe de estar to distante e que se passe a olhar para a beleza do cho verde esmeralda quc. um milagre de luz ( tris-teza distante do Cu contrape o poeta o milagre de luz em cada mo).

    A segunda quadra comea pelo epteto Anjos de barro, o que no mais do que uma referncia muito concreta ao Homem; a metfora, porm, riqussima de contedo note-se o paradoxo anjo-barro que remete para o contraste mais amplo cu-terra. E nesta quadra que surge a referncia ao mito de Narciso. Ele integra-se num vio-lento no a todas as representaes falseadas de pureza o cu no serve de espelho. O espelho tm de ser as guas, as guas puras o cristal plenas de vivncias onde o Homem se descubra, se perca ou reencontre o paraso. O Poo do Inferno, por exemplo.

    J()RGt DE SbNA

    Jorge de Sena (n. 1919) apresenta-nos um lirismo um pouco her-mtico, uma obra com o seu qu de clssico e barroco, tradicional e revolucionrio. o poeta que, como escreveu scar Lopes, o nico capaz de pensar sentindo (50).

    Considerando agora, em particular, o poema Narciso (51), veri-ficamos que estamos perante uma audaciosa desarticulao lgica e sintctica (52), o que constitui uma caracterstica comum a alguns dos seus melhores poemas. Embora o facto que acabmos de apontar seja visvel neste, ele assume uma dimenso muito ampla no primeiro verso: De n gua contemplar-se onde se v Narciso. Os perodos

    (50) A. J. Saraiva e scar Lopes, Histria da Literatura Portuguesa, p. 1135. (51) Jorge de Sena, Conheo o Sal... e outros Poemas, Lisboa, Moraes, 1974. (52) A. J. Saraiva e scar Lopes, Histria da Literatura Portuguesa, p. 1135.

  • 184 AIDA MARIA VELOSO

    longos e a ausncia de pontuao contribuem bastante para essa refe-rida desarticulao. Um outro aspecto saliente o facto de o poeta ter seguido de perto as Metamorfoses de Ovdio {Met. III. 451-453) quanto reproduo do momento em que Narciso se contempla. Pequenos pormenores, no entanto, geram diferenas. Assim, neste poema, assistimos ao embaciar da imagem, o que nos sugerido pelo veTbo encrespar (a ligeira ondulao que as guas apresentam); isto reforado pelo espelho prestes apartir-se, donde a brevidade da imagem, objecto da paixo.

    O profundo amor que Narciso sente pela sua imagem traduzido pelo acto de beijar-se. Veja-se, pois, a maravilhosa imagem de movi-mento dada por Jorge de Sena a imagem avana (dada a aproxi-mao de Narciso) em lbios trmulos; as guas que no estavam totalmente calmas devido ao respirar ansioso (cf. Jos Rgio).

    A segunda quadra tem como tema fulcral a metamorfose de Narciso. O poeta procura adiantar uma explicao para o castigo de Narciso, desviando-se acentuadamente da verso ovidiana: o que aqui temos a transformao de Narciso em limos que em limos se fundiu.

    Jorge de Sena enumera as hipteses de justificao para esta meta-morfose no foi de contemplar-se ou de a si mesmo amar-se, para depois expor a que ele acha correcta:

    ...mas de no ter sabido quanto no de olhar nem s de hmidos beijos se perfaz o amor.

    A explicao est no facto de o amor no se ter s feito de olhar e de beijos. A realizao total (que a forma perfaz nos sugere) exige muito mais. Ser de salientar ainda a insistncia na negativa que nos parece vir demonstrar os erros cometidos por Narciso.

    SOPHIA DE MELLO-BREYNER ANDRESEN

    Qualquer abordagem da poesia de Sophia Andresen (n. 1919) nos deixa imediatamente uma impresso: a nitidez com que o poeta procura apreender as coisas, vincando os seus contornos, assinalando os seus limites e o seu recorte no horizonte. Na sua produo potica, como dizem A. J. Saraiva e scar Lopes, (53) encontramos uma ver-

    (53) A. J. Saraiva e scar Lopes, Histria da Literatura Portuguesa, p. 1133.

  • O MITO DE NARCISO 185

    dadeira unidade do poeta com as coisas, ou melhor, com o milagre das coisas que eram minhas: uma certa casa, um certo jardim, batidos pelos ventos de um certo mar, a noite, a lua, imagens subsistentes por si, sem eu e no-eu.

    O livro donde extrado este poema Dia do Mar -contm cer-tas regresses ao paganismo invocativo de deuses e figuras clssicas (54).

    Lendo o poema Narciso (55), vemos como Sophia se limita, de um modo muito seu, com uma conciso de palavras notvel, a dar-nos a bela morte de Narciso. Queremos chamar a ateno para a forma morreste que, pela sua posio, encerra toda a ideia fundamental do poema. Antes desta forma verbal, deparamos com quatro adjectivos, todos eles seguidos, que sugerem a solido, a total ausncia de dilogo que ia na alma inquieta de Narciso. A sua disposio de um equi-lbrio formal perfeito. Os motivos da morte de Narciso vm imedia-tamente a seguir ao ncleo representado por morreste. O momento fatal foi sbito, de uma rapide/ fulminante de ver passar. O amor, como imagem virtual, representa o inacessvel.

    JOO MAIA

    Entre os contemporneos, poetas h que, pelo facto de concen-trarem a sua ateno em Deus, no Absoluto, no conflito entre Deus e Sat, podero ser considerados como poetas do Divino. Jos Rgio, Jos Blanc de Portugal, Ruy Belo, Joo Maia constituem exemplos flagrantes. Dos citados, queremos chamar a ateno para Joo Maia (n. 1923), que se distingue dos outros pela evidncia de uma cultura clssica que transparece, quer de numerosas aluses e parfrases, quer da racionalidade alegrica com que domina uma sensibili-dade viva paisagem e aos contactos humanos (56).

    Na sua poesia h todo um alheamento res politica a que no deve ser estranho o facto de estarmos perante um sacerdote jesuta; aqui deve tambm residir a explicao para a leitura, essencialmente catlica, que faz do mito de Narciso, no poema que passamos a analisar.

    (54) A. J. Saraiva e scar Lopes, op. cit., p. 1133. (55) Dia do Mar. Lisboa, tica, 1947, p. 42. (56) A. J. Saraiva e scar Lopes, Histria da Literatura Portuguesa,

    pp. 1145-1146.

  • 186 AIDA MARIA VLLOSO

    Ao lermos a composio Narciso (57) verificamos que so seguidos, de perto, certos aspectos da verso tradicional (vejam-se as expresses em busca do lago, perdido na floresta, descobrisse na gua o perfil...); por outro lado, nota-se que o mito de Narciso no um objectivo mas um meioum meio de aprofundar o conhecimento da sua prpria pessoa, num plano espiritual de aproximao de Deus Senhor.

    O desejo de penetrar mais ainda na sua pessoa, leva-o procura da solido lago que se esquece j perdido na floresta; a tenta ver na gua o reflexo no do seu rosto, qual Narciso, mas o perfil da minha alma, numa interioridade que no oferece dvidas. Mas a tnica do isolamento c do desejo do aprofundar da sua alma vo ser refor-ados na segunda quadra basta observar os adjectivos profundo e quedo, assim como o cenrio desejado pelo poeta a noite... dis-pusesse as estrelas nos ramos do arvoredo.

    Passando agora para os dois tercetos, vemos que o poeta se debrua sobre o lago; fala-nos das almas fugitivas, que nos parece que outra coisa no ser que os reflexos breves das suas imagens interiores. A rapidez com que tudo se passa no permite ao poeta aproveitar a sua luminosidade no lume delas.

    Perante essa real incapacidade de se introspeccionar, tanto quanto seria seu desejo, Joo Maia conclui

    Que as linhas do meu rosto verdadeiro S tu podes, Senhor, compreend-las

    o que o reconhecimento da infinita compreenso de Deus.

    SEBASTIO DA GAMA

    Sebastio da Gama (1924-1952) um caso tpico de associao num mesmo poeta de um certo tradicionalismo e de uma delicadeza presencista com afinidades evidentes com Antnio Nobre. Liberta-se, contudo, de qualquer insero em movimentos da sua poca. Temos de salientar a singular importncia de um raro exemplo de autentici-

    (57) Joo Maia, Abriu-se a noite, Braga, Edies Critrio, 1954, pp. 77-78.

  • O MITO DE NARCISO 187

    dade c de humanidade generosa e comunicativa, que ficou gravado na memria de toda a gerao que com ele conviveu (58).

    A sua concepo da poesia como ddiva, que o levava a quase no alterar o rascunho dos seus versos, explica, em parte, a sua seTena tranquilidade... no que respeita ao tormento da forma, dolorosa insa-tisfao que quase o no tocou (59). Ele recebia a poesia como um dom, a sua sede de poesia fazia-o sofrer (60).

    O soneto Narciso (61) apresenta uma constante: a sede infinita de pureza. Esta pureza sugerida pelas guas do regato que, no desejo do poeta, tero de ser cristalinas, lmpidas.

    Tal como Narciso, tambm ele se curvou sobre as guas curvei sobre o regato o corpo todo...; mas dois pontos divergem da verso tradicional por um lado, Sebastio da Gama fala do regato, isto , guas em movimento, o que contrasta com as guas paradas do mito; por outro, no se fala s do rosto, mas do corpo todo, o que naturalmente proporciona uma imagem mais ampla.

    O olhar das guas foi breve, mas foi suficiente para que elas ficassem turvas; os motivos desse sbito turvar esto na impureza do poeta (no meu lodo o pronome possessivo meu tem aqui um valor fundamental). O autor de Itinerrio Paralelo luta com afinco cavei c dentro com denodo esfora-se por alcanar a purificao, perfu-mando-se com flores azuis (da cor do cu) do mato (a pureza que existe no campo). O facto de as guas tardarem a toldar sinnimo de que esse contacto com a me-natureza produziu os seus frutos ainda que no totalmente. Mas a esperana no o abandona pois espero j / que me ho-de um dia, espelhar.

    O soneto termina com um desinteresse total pela sua pessoa tanto faz , pois s pretende que a to desejada pureza venha a beneficiar o Homem, seu Irmo, seu Semelhante.

    (58) Cf. Dicionrio de Literatura de J. Prado Coelho, 8.V. 'Gama, Sebastio', p. 362-A (artigo de L. F. Lindley Cintra).

    (59) M. de Lourdes Belchior, Prefacio a Campo Aberto, Lisboa, tica, 31967, p. II.

    (60) Ibidem, p. IV. (61) Sebastio da Gama, Itinerrio Paralelo, Lisboa, tica, 1967, pp. 30-31.

  • 188 AIDA MARIA VELOSO

    M A N U E L PULQURIO

    A conhecida formao classicista de Manuel Pulqurio (n. 1928) torna a sua poesia diferente, no s pelos temas (Ulisses, Narciso, Eco, Hlade, etc.) como tambm pelo desenvolvimento e pela linguagem que a maior parte dos poemas apresenta. curioso notar que a quase totalidade da sua produo potica titulada com uma nica palavra, palavra esta que no surge por acaso, mas que encerra todo o desen-volvimento da composio.

    Mais do que as nossas palavras, julgamos que a transcrio de quatro versos extrados de Arqueologia (62) poder sintetizar muito daquilo que se poderia dizer do poeta, como tambm nos vai ajudar a compreender o poema que passaremos, mais frente, a analisar:

    /:' eu insisto na busca atormentada deste mundo divino, Como se encontrar deuses na poeira fosse parte essencial do meu destino.

    Mas vejamos, ento, o que h a dizer quanto ao poema Nar-ciso (63). A primeira impresso que nos proporciona a leitura a acentuada proximidade com a verso ovidiana do mito clssico. So exemplos vincados as expresses a forma de uma flor (v. 10), a carne desbotada j numa mancha de cor (vv. Il e 12), beira desta gua de iluso (v. 14) e de ter gelado em flor meu corao (v. 16).

    Nos quatro primeiros versos, recusa quer a terra (sortilgios/ da terra), quer o cu (os astros infinitos), pois no lhes acha a pureza necessria (vejam-se os adjectivos torpe e falsa) para o desvendar do mistrio da atraco das guas. Esta atraco violenta e inexpli-cvel (a palavra frenesi sugere tudo isto) e o poeta fica contundido (entontece e esvai).

    A terceira quadra foca um aspecto do mito j encontrado em outros poetas: a metamorfose. A tentativa de uma transformao em f\oT~-dar s minhas mos enclavinhadas j a forma de uma flor

    (62) Manuel Pulqurio, Eterno Retorno, Coimbra, Almedina, 1973, p. 79. (63) Manuel Pulqurio, Tempo de Sempre, Coimbra, Almedina, 1967, p. 13.

  • O MITO DE NARCISO 189

    resulta numa inutilidade frustrante (bem e em vo) pois continua a manter a sua identidade de homem (sou, resisto e permaneo), lamen-tando, contudo, o facto de ter endurecido interiormente de ter gelado, em flor, meu corao.

    guisa de concluso, uma pergunta baila no nosso esprito: o que Tcprcsentou (e representa) o mito de Narciso para a moderna poesia portuguesa? Da anlise que fizemos, julgamos que podemos definir trs caminhos correspondentes a trs diferentes leituras do mito, dado que no podemos esquecer que fivQo designa, antes de um enredo, o prprio discurso verbal de que ele se tece (64). Assim achamos que temos de considerar, por um lado, aqueles que se mostram fiis verso ovidiana, elaborando, no raro, poemas belos que nos proporcionam a sua interpretao do mito. Vimos, a propsito de Jorge de Sena, um exemplo flagrante deste primeiro caminho. Jul-gamos que no ser estranha realizao de Narciso a imensa cultura de raiz clssica que encontramos neste autor assim como um excepcional exerccio de linguagem potica a que nos habituou.

    Outros h para quem o mito constitui a motivao prxima, o relmpago de inspirao, onde, porm, o espelho, ou o binmio poeta--alter ego, d lugar a explanaes de contedo variado. o caso, j comentado, de Jos Rgio, onde transparece, de maneira bem evi-dente o narcisismo, tomado no sentido psicanaltico. Estamos perante um outro, marcadamente intransitivo, agorfobo, uma autntica aler-gia consaguinidade com os outros (65). Um outro exemplo Jos Gomes Ferreira onde assistimos, atravs dos poemas analisados, a uma mescla de filantropia e misantropia, isto , o poeta est perante o seu outro eu, numa posio simultaneamente narcisista e altrusta. Por vrias vezes presenciamos a sada do espelho para o plano do real, j que o egocentrismo cansa (66).

    Finalmente o terceiro caminho: o mito de Narciso utilizado como simples elemento destinado a enriquecer o contedo do poema. Lembremo-nos de O vinho, onde Miguel Torga recorre figura de Narciso com intuitos metafricos.

    (64) scar Lopes, Histria Ilustrada da Lit. Portuguesa, pp. 853-854. (65) A. Pinheiro Torres, op. cit., p. 94. (66) Idem, ibidem, p. 103.

  • 190 AIDA MARIA VELOSO

    Ser de realar um aspecto que, numa dimenso mais ou menos acentuada, comum a todos os poetas considerados: a sua notvel capacidade de trabalhar a palavra, o que no quer dizer que tenha sido esquecida a reflexo constante que o Poeta pe a si prprio o seu eu. O recurso ao mito de Narciso e a sua consequente actualizao sugerem, correctamente, em nosso entender, essa insatis-fao terrvel que domina o Homem desde a Antiguidade.

    AIDA MARIA LIMA MEDEIROS MARQUES VELOSO