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  • 42Ciberteologia - Revista de Teologia & Cultura - Ano II, n. 8

    O Deus providente e o acaso*Juan Luis Segundo

    Aqueles dentre os leitores desta obra que estejam familiarizados com a temtica desenvolvi-da em meu livro anterior O Dogma que Liberta, no acharo estranho que me professe primeiro cristo do que crente (em Deus). De fato, ser cristo in-tegrar uma tradio sobre a auto-revelao divina na realizao humana, revelao pedaggica que apela minha f. Se eu lhe fao concesso, no a uma vaga existncia de Deus qual me lio primeiro, mas ao Deus concreto que se manifestou na histria do homem Jesus de Nazar (com sua pr-histria bbli-ca no Antigo Testamento). Ali Deus se auto-revela de tal modo, que Calcednia pode dizer com razo que o nico caminho real, aberto para conhecer o que Deus , passa pelo sentido que deu sua existn-cia esse homem Jesus, que viveu nossa histria e cuja recordao e interpretao me chega na tradio cris-t. Uma tradio que apela minha razo, na medida em que posso experimentar como parece ser capaz de proporcionar minha existncia a maior dose de sentido e valor que encontro a meu alcance. No , portanto, deduzindo atributos divinos do fato de que exista um mundo criado, como vou formar o con-ceito que tenho do Deus dos cristos. Para empregar uma expresso, talvez demasiado pisada, o que surge por deduo da constatao de habitar um mundo criado no o Deus de Jesus, mas o Deus dos lso-fos. E no nesse Deus que eu creio, mas naquele.

    Mas, depois de ter comeado essa tarefa de busca, e ter tentado reformular o que o Conclio de Calce-dnia deixou estabelecido (depois de Nicia e feso) sobre o conceito de Deus, no teria sido mais lgico remontar-me como z no captulo anterior ao primeiro, ao qual mister atribuir como atividade a criao do universo?

    Talvez seja assim, do ponto de vista de uma lgica abstrata, mas no se se pretende seguir a ordem cro-nolgica com que se foram apresentando os proble-mas no processo de humanizao que conhecemos. Pelo menos como o recolhe a Bblia judaico-crist.

    No uma casualidade que o problema da exis-tncia de Deus seja, cronologicamente falando, um dos ltimos a ser ventilado, do ponto de vista dog-mtico. Simplesmente, acontece que este problema

    contemporneo apario do atesmo, como fen-meno de dimenses sociolgicas no mundo ociden-tal. Assim, de um modo estranho para quem tenha suas origens na religio crist e mais ainda para aque-les que vm da religio judaica, o Conclio Vaticano I comea seu primeiro captulo da Constituio sobre a f crist, desenvolvendo o ttulo de De Deus, cria-dor de todas as coisas. E o ltimo pargrafo desse captulo se intitula: Conseqncia da criao. E trata precisamente da maneira como Deus sustenta e rege essa criao, isto , da maneira como Deus dirige os acontecimentos, entre os quais o homem deve buscar sentido, defesa e felicidade. Pois bem, sobre isto declara que tudo o que Deus criou, ele o conserva e governa, alcanando com vigor de um extremo a outro e dispondo-o retamente (cf. Sb 8,1). Porque tudo est nu e descoberto aos seus olhos (Hb 4,13), mesmo o que vai acontecer pela livre ao de suas criaturas (D. 1784).

    Teremos muito que comentar sobre esta viso da Providncia divina. Mas, primeiro, ateno! verda-de que o dogma sobre como entender a divindade de Cristo surge dos primeiros conclios ecumnicos da Igreja: Nicia (325), o primeiro de todos; feso (431), o terceiro; e Calcednia (451), o quarto. O leitor po-deria pensar que o tomamos como tema do primeiro captulo sobre como reformular os dogmas centrais do cristianismo, devido a essa prioridade temporal. O que contrasta com o fato de que o dogma sobre a providncia divina que agora nos ocupa foi de nido, no Conclio Vaticano I, h pouco mais de um sculo, em 1869. Isto , mais de quinze sculos depois. Mas j disse que a ordem cronolgica em que os dogmas foram sendo de nidos em Conclios ou atravs de outros meios solenes, usados pelo Magis-trio Eclesistico, nada indica sobre a ordem lgico-existencial, com a qual os problemas vo se apresen-tando na comunidade eclesial.

    Mais ainda, quase se poderia de modo geral fazer a a rmao exatamente contrria. As primei-ras verdades de f, nas quais o cristo sente que deve crer, no so, muitas vezes, as primeiras a ser de nidas como dogmas, mas as ltimas. que as ver-dades, nas quais j se cr, no necessitam de de ni-

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    es. Estas, pelo contrrio, devem-se a que tais ver-dades por algum motivo que preciso investigar na histria entraram em crise, foram colocadas em dvida ou se tornaram, em sua expresso, ambguas ou inadequadas. As que sempre zeram parte da f e nunca ou poucas vezes foram de nidas ex-professo, como aconteceu com a providncia divina at o sculo passado.

    Isto pode ser visto, quando sem de nio pro-priamente dita alude-se a ela como coisa sabida e acreditada por todos. Assim, numa carta de Inocn-cio III ao arcebispo de Tarragona, em 1208, dito a ele que se deve exigir dos valdenses que creiam no que todos crem, isto , que o nico Deus do qual falamos, o criador, feitor, governador e provedor de todas as coisas (D. 421). Que no Conclio Vaticano I se tenha sentido a necessidade de de nir, expres-samente, a providncia divina, se deve se no me equivoco a duas causas historicamente detectveis. Uma, a mais importante, a apario do desmo, ou seja, uma crena em Deus que teria criado o mun-do com seus mecanismos e, depois, ter-se-ia limitado a conserv-lo, sem intervir nos acontecimentos que nele se desenvolvem.

    A outra causa a inteno eminentemente con-servadora do Vaticano I, diante dos ataques que o mundo moderno fazia ao pensamento da Igreja. Esta decidiu parece formular explicitamente os dog-mas, de tal modo que se formasse, com eles, uma es-pcie de catecismo feito de verdades que ningum se atrevesse a negar, quaisquer que fossem as idias que o cristo visse surgir ao seu redor. Como um muro construdo, no tanto para evitar os ataques de fora, mas a tentadora fuga dos de dentro...

    Mas, o que pode parecer estranho primeira vis-ta, quando percorro esse processo pedaggico, que est na base de minha f, e que cou consignado na Bblia, vejo que, do ponto de vista do interesse do homem, a ordem inversa que aparece na citada carta de Inocncio III.

    No Antigo Testamento, como tivemos ocasio de ver no captulo VII desta obra, re etiu-se primeiro em como Deus governa e dispe os acontecimentos, ou seja, em sua Providncia. S muito depois, por ocasio do exlio Babilnia e a descoberta do pleno signi cado da transcendncia divina sobre a totali-dade das criaturas, re etiu-se em sua ao criadora a respeito do universo e nas conseqncias que da se seguiam para a compreenso da histria por ele regi-da, de um modo to e ciente quanto misterioso.

    O cristo da segunda metade do sculo XX j no pode, como vimos no captulo anterior, passar to ra-

    pidamente da existncia de um mundo contingente do ser in nito e, deste, a uma providncia que tudo dirige. Neste sentido, h fatos veri cveis pela cin-cia atual, que o obrigam a re etir mais sobre essa providncia: na realidade, so os mesmos fatos que a cincia fsica e biolgica de hoje descobre, quando se remonta ao incio do universo ou s partculas su-batmicas que formam sua trama invisvel.

    O monismo, de fato, desterrava toda interrupo dos nexos causais como uma falta de saber. Isto , como algo que era preciso colocar entre parnteses at que um saber mais desenvolvido estabelecesse o vnculo necessrio entre o efeito e a causa. Falar de acaso era confessar uma ignorncia. Atualmente, o acaso um dos elementos que mister levar em conta, porque sem ele no se compreende o funcio-namento do universo. Pois bem, partindo da, o que aconteceria com nossa f na providncia divina? Como Deus governaria o que , por de nio, im-predizvel; o que no ordem, mas faz parte origi-nria da prpria construo da ordem? E o que mais grave no ser a liberdade humana um acaso igualmente necessrio diante da providncia divina, que parece manipular a totalidade do universo?

    O acaso na criaoPode-se dizer que, durante sculos de pensamento

    cristo vertido em moldes gregos a providncia, com a qual Deus sustentava sua criao na existn-cia e governava o que acontecia nesse universo cria-do, no se tornava problemtica, a no ser quando se comeava a tratar dos acontecimentos, que de algum modo dependessem da liberdade humana. Isto vem tona, de modo muito claro, quando, na segunda metade do sculo XIX, o Vaticano I dedica apenas trs linhas para estabelecer a providncia uni-versal de Deus. Pois bem, isto supe, em termos me-tafricos antropomr cos que nada est oculto ao olhar divino, que deve ser considerado como in-temporal e que, partindo dos decretos divinos, tem bem presentes, tanto o futuro como o presente e o passado. Ou, dizendo-o melhor, quando tudo o que se desenvolve para ns como um antes e um de-pois puro presente para a viso divina.

    Pois bem, dizia que o problema, se que h pro-blema, comea com a liberdade humana. De fato, depois de a rmar os in nitos alcances do olhar di-vino, porque procede de sua natureza in nita, o tex-to sublinha, como que prevendo uma objeo: at mesmo o que acontecer pela livre ao de suas cria-turas. O at mesmo testemunha que a existe um princpio de problema. E o plural, aplicado aos seres

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    dotados de liberdade, aponta na realidade para essa nica criatura dotada de liberdade: o homem.

    Para compreender o problema que se assoma aqui mister compreender que esse olhar, que v to claramente o porvir como o passado, no uma simples constatao da realidade (por no estar esse olhar sujeito ao tempo). Em outras palavras, no se trata apenas de que Deus esteja vendo o que fulano vai escolher e que ns no podemos ver, porque o fu-turo nos est oculto at que se faa presente e depois passado. Trata-se de algo mais profundo e difcil de expressar. Deus v tudo como causa primeira que da qual tudo depende. O que a causa segunda, se est provista de liberdade, causa, causa-o tambm a causa primeira. Se esta no atuasse, ou se atuasse de outra maneira, o ato (livre?) seria diferente...1

    Como vemos, o problema digno de ateno. Mas, vou trat-lo no item seguinte. Gostaria de re-servar o de agora para outro aspecto que paralelo ao da liberdade, embora sem identi car-se, por isso, com ele.

    Quando se d o Vaticano I, a noo de coisas im-portantes que acontecem ao acaso j estava jogando um papel importante no campo de ao da cincia, sobretudo no da biologia. Darwin j havia publicado sua obra decisiva, A origem das espcies. verdade que durante toda a sua vida, esse grande pensador teria utuado entre necessidade previsvel e aca-so imprevisvel, como determinantes da evoluo.2 Igualmente, verdade que somente o que se chamou neodarwinismo e que aumentou a bagagem experi-mental de Darwin, com o conhecimento do funcio-namento gentico, chegou pelo menos em alguns de seus defensores a pretender explicar todo o processo evolutivo pela con uncia de dois acasos: o dos defeitos nas cpias genticas, por um lado, e o da escassez dos fatores para a sobrevivncia em con-textos mais ou menos isolados, por outro.

    Assim, quando um sculo aps o Vaticano I a igreja catlica admitiu que aderir hiptese evolu-cionista no signi cava de per si menosprezo da f, na realidade, se limitava a substituir esses dois pre-tensos acasos con uentes, por outros tantos atos da providncia divina. Admitia-se, sim, a evoluo, mas a noo de acaso cava, assim, fora, de uma f que se mantinha radicalmente providencialista, no sentido de no admitir no poder (divino), que rege o universo, qualquer lacuna (de causalidade).

    Mas, o acaso uma lacuna de causalidade? Signi ca que algo experimentvel, veri cvel, care-ce, pelo menos em parte, de uma explicao causal? E, mais concretamente, seria necessrio deduzir da

    que, existindo o acaso, Deus como causa primeira perderia, embora fosse apenas por um instante o instante do acaso o controle do que, apesar dessa indeciso ntica, teria realidade, aconteceria?

    Neste ponto da re exo sobre as possveis relaes entre providncia e acaso, a experincia me ensina que reinam grandes confuses entre aqueles que usam a palavra acaso e entre os quais, obviamente, me encontro eu. E que, portanto, mister de nir alguns pontos nesta matria e ater-se a eles daqui em diante.

    a) Acaso e previsoO conhecimento cient co veri ca-se (negativa-

    mente, segundo Popper), na medida em que uma hiptese permite calcular o que vai acontecer. Se a previso falha, a hiptese falsi cada. O que signi- ca que, ou falsa, ou incompleta (ao no aplicar-se a todos os casos que pretende abraar).

    Pois bem, costuma-se dizer que o que acontece por acaso resiste a toda pretenso de previso. Se, por exemplo, tenho duas cartas de baralho diferen-tes e consigo que uma delas se apresente, por acaso, diante de mim, isto quer dizer que no posso saber, pela prpria de nio do acaso, se ser a carta mais alta ou a mais baixa.

    E que relao tem isto com a causalidade (aten-o!: no com a casualidade)? Em primeiro lugar, uma e muito importante : no existe acaso sem causalidade. Cada vez que, na realidade, nos esbar-ramos com o acaso, este a qualidade de algo, e de algo que est em movimento, que causado. Numa roleta parada no h acaso. Entendamo-nos: no h acaso naquilo mesmo pelo qual esse aparelho uma roleta. E no apenas, por exemplo, um conjunto de tbuas, que podem estar a ponto de cair, porque esto comidas pelas traas... Seria possvel dizer o mesmo das cartas do baralho. Apenas implicam em acaso se so misturadas e dadas, ou seja, se so apresen-tadas, depois de haver estado ocultas. Sempre deve haver uma causa que as coloque em movimento, mas que e isto vai ser importante no permita pre-ver que nmero ou que carta vai sair. Isto, sim, a causalidade, que explica muitas coisas, supe-se que num jogo onde atua verdadeiramente o acaso, no explica por que um, e no outros possveis resulta-dos dessa causalidade em movimento, vai aparecer na realidade.

    Do que acabamos de ver se deduz que o acaso no cria, mas atua sobre o j existente. No , por-tanto, uma casualidade o fato de que o problema do acaso no coloque em questo a criao divina do universo, mas como vimos aqui a providncia.

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    b) Acaso e probabilidadeDir-se-ia, de acordo com o anterior, que a causa-

    lidade que, em outros casos chega at ao resultado singular, aqui se detm no plural. Permite conhecer: as cartas vo saindo uma por uma. Mas, detm-se a e no me permite saber que singular vai aparecer como resultado da ao: ignoro qual (dentre as car-tas) vai sair.

    Se realmente assim, a lacuna de conhecimen-to estaria entre a espcie e o indivduo (ou entre a espcie que mais abarca e uma subespcie). Se no sou especialista (muito moderno) em gentica, posso saber que o resultado de um parto ser um indivduo da espcie humana. Mas, no posso determinar (ou j sim?) qual ser seu sexo. Por isso, a experincia da humanidade at agora era a de que o sexo dos bebs se devia ao acaso.

    Da esse falso lugar-comum de que o acaso signi- ca ignorncia. A cincia determina o que vai acon-tecer. E quando essa previso se tornasse impossvel, ento se falaria em acaso. Aplicando isto providn-cia, teramos que admitir que, chegado a certo limite, Deus abandonaria o governo do universo. Sem que por isto as coisas deixassem de acontecer...3

    Mas, o acaso algo que se experimenta. E nessa experincia aprendemos muito cedo que acaso no equivale a ignorncia. Ou, pelo menos, a uma igno-rncia total, embora esteja circunscrita a determina-dos campos. Todos sabemos que, com o acaso de lanar uma moeda para o ar e deixar que caia sobre um de seus lados planos, se determina qual time vai jogar em determinado terreno e qual deles vai mover a bola pela primeira vez.

    Em outras palavras, desde que o acaso esteja limi-tado, possvel calcular as possibilidades ou proba-bilidade de que acontea algo determinado. Quando as possibilidades so duas, por exemplo, sabemos que as probabilidades de que saia cara ou coroa ten-dero, quanto mais se coloque em jogo o acaso, a aproximar-se de um cinqenta por cento. claro que, se apenas utilizo o acaso quatro vezes, no ser es-tranho que obtenha trs vezes cara e uma coroa (ou vice-versa). Mas, se em mil tentativas obtenho sete-centos e cinqenta vezes cara e duzentos e cinqenta vezes coroa (ou vice-versa), comearei a examinar o processo com maior ateno. Suspeitarei e, com olfato cient co que esse resultado no se deve ao acaso (puro). Ou, em outras palavras, que este foi manipulado e, portanto, deixou de ser, estritamente, um acaso.

    Este o processo que, na prtica, se aplica para determinar se as seis caras dos dados, com os quais

    se desenvolvem muitos jogos supostamente de aca-so, esto equilibradas (e, portanto, geram verdadeiro acaso), ou se os dados esto carregados, de modo que ao clculo de meras probabilidades seja neces-srio acrescentar uma probabilidade suplement-ria, uma mo invisvel, que interferiria no jogo e no seria prpria do acaso.

    Acabo de escrever que, em tais condies, os re-sultados no seriam prprios do acaso. Mas, no assim, estritamente falando. Se os jogadores so tc-nicos e, alm disso, matemticos podem con-tinuar tranqilamente jogando ao acaso com dados carregados! Vejamos. Se possvel calcular o peso adicional com que se carrega uma cara do dado, possvel, igualmente, calcular a variao que essa carga introduz no resultado pelo qual se aposta. Se, por exemplo, o seis foi carregado, seria possvel que o clculo de probabilidades desse que, enquanto as outras cinco caras tm menos de uma possibilida-de sobre cinco de car com a cara para cima, o seis tenha duas possibilidades. E nada impede que, sobre esse clculo de probabilidades, um pouco mais so s-ticado mas igualmente vlido, se continue jogando sem trapaas...

    Este exemplo no to raro. Todos os jogadores de roleta sabem, por exemplo, que quanto mais pro-longuem suas jogadas, as probabilidades restantes, que o cassino calculou para seu lucro, atuam como dados carregados. Mas, continuam jogando, tendo em conta essa desproporo (legal) e fazendo um voto de con ana em que ela no tenha sido mudada a partir da vez anterior.

    c) Acaso e ordemComo vemos, o acaso no um fator de desor-

    dem na vida real. Caos e acaso no so sinnimos. Independentemente de que o termo caos no possa ser aplicado a qualquer coisa concreta em nosso uni-verso. O que, sim, o homem de cincia encontra o acaso. Mas, um acaso que aparece como que incrus-tado numa ordem e a servio dessa ordem. bvio que esse servio no equivalente ao que presta um meio, cuja causalidade se dirige a um efeito deter-minado. Quando nos perguntamos se pode ou no haver acaso na maneira com que Deus governa o uni-verso, o termo acaso no equivale a dizer que Deus perca o controle do que acontece.

    Entretanto, gostaria de acrescentar algo mais a essa constatao. E, na medida do possvel, dot-la de uma signi cao positiva. Em outros termos, mostrar que o universo criado somente pode ser compreendido como contendo, simultaneamente, acaso e necessidade.

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    Com isto, combate-se outro lugar-comum no qual caem-se no estou equivocado at alguns cien-tistas de valor. Consiste em pensar o acaso sozinho como razo su ciente da existncia ou do aconteci-mento de algo. Como fonte de novidade, por si s. Re ro-me a que, s vezes, se ouvir dizer: este uni-verso fruto do acaso. Isso coerente?

    At aqui, falamos de pequenos casos de acaso. Onde o clculo de probabilidades fcil de ser con-cebido at para os que no sabem muito de matem-tica: a ordem em que saem duas ou trs cartas, um dado, uma roleta.

    Creio que no ser necessrio qualquer raciocnio para demonstrar que o clculo de probabilidades tor-na-se extraordinariamente difcil, na mesma medida em que se multiplicam os elementos que o acaso ba-ralha. E, quando digo elementos, pretendo referir-me a dois tipos de entes, que entram em jogo quando se fala de acaso. Ou seja, que nessa imagem to til para imaginar o acaso o cesto de bolas da lote-ria , podem ser introduzidos nmeros isolados ou necessidades (= determinismos).

    Que signi ca este ltimo tipo de elementos de acaso? Dizemos que a morte de fulano foi devida ao acaso, quando, ao passar por tal calada, uma telha lhe caiu na cabea. O acaso no est nem na cabea do fulano, nem na largura da calada, nem no momento em que a telha caiu. Obviamente, todas essas coisas atuaram, mas igualmente atuaram mil determinismos mais, para fazer que a telha fosse desprendendo-se, pouco a pouco, do telhado ou para que o fulano pas-sasse por ali naquele mesmo momento. Diante desta multido de fatores, nem o melhor matemtico con-seguiria determinar, seja uma semana antes, ou seja uma hora sequer antes do acontecimento, que proba-bilidades teria de que ao fulano lhe sobreviesse a mor-te, por cair uma telha em sua cabea. Mas, nem por isso se pode dizer, com propriedade, que tivesse sido o acaso a causa de sua morte. Rigorosamente falando, o acaso no sujeito de verbo algum, mas um advr-bio. Indica uma forma em que certos verbos atuam.

    Mas, deixemos este acaso que acontece entre ne-cessidades ou determinismos, e vamos a outro, mais simples, no qual elementos diferentes saem, ao aca-so, do cesto com os nmeros. Por exemplo, faamos que a cesta de bolinhas contenha as letras do alfabeto e que estas sejam extradas, uma por uma; depois, devolvidas ao cesto e nele misturadas, tudo isso ve-locidade de trinta segundos por letra.

    Suponhamos tambm que, repetindo esse proce-dimento umas oito mil vezes, obtenhamos, sem mais, nem menos, de entrada, este texto: Num lugar da

    Mancha, de cujo nome no quero lembrar-me... E, assim, sucessivamente, at poder ler um texto que hoje conhecemos como o primeiro captulo do Qui-xote, de Cervantes.

    Primeiramente, temos de compreender que isto, que parece um impossvel, na realidade no o . Os matemticos diro qual a probabilidade que este texto tem de sair, por acaso, da cesta. Obviamente, trata-se de uma possibilidade numa cifra to grande que, provavelmente, exigiria todo o espao deste li-vro, apenas para escrev-la. Mas, uma das possi-bilidades oferecidas pelo acaso. Nossa imaginao insinua-nos que probabilidades to pequenas nunca saem na primeira vez que se tenta... E nossa imagi-nao adquire, assim, a certeza de que teramos que estar bilhes de anos, recomeando o procedimento com a cesta at obtermos essa criao literria: um texto de oito mil letras, com sentido e qualidades li-terrias. Mas, a lgica da matemtica nos diz que o que pode acontecer uma vez, poderia acontecer a primeira vez. Em outras palavras, quando dizemos, com fundamento matemtico, que algo tem a proba-bilidade de sair uma vez em mil, no queremos dizer com isso que tenhamos que esperar mil vezes para que saia pela primeira vez.

    Um exemplo pode ilustrar isto. O clculo de pro-babilidades usado em coisas muito comuns da exis-tncia humana. Para construir uma represa eltrica, os engenheiros lanam mo dele para calcular, por exemplo, a resistncia que o dique oferece contra as inundaes, assim como as possibilidades de que estas inutilizem as instalaes geradoras de eletrici-dade. No caso que conheo, foi-me explicado que a represa foi, fazendo um clculo de probabilidades baseado nos registros pluviomtricos de um sculo. Extrapolando estas cifras e exagerando-as para maior segurana, construiu-se a represa sobre o clculo de que apenas uma vez em cada dez mil anos poderia haver inundaes que passassem por cima da sala de mquinas inutilizando-as. Imediatamente, nossa ima-ginao comea a contar de zero at... Pois bem, o que s podia acontecer uma vez em cada dez mil anos, aconteceu vinte e cinco anos depois de cons-truda a obra! E esta teve que ser, em grande parte, refeita. Falhou o clculo de probabilidades? No. Porque este no dizia em que ano singular, dentro desse espao de dez mil anos, haveria probabilidade de que tal catstrofe acontecesse. Levando em con-ta os custos necessrios para prevenir inundaes e o clculo de probabilidades sobre o tamanho delas, fez-se algo que resistisse no apenas s inundaes dos cem anos conhecidos, mas a outras muito maio-res e muito mais improvveis.

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    Este exemplo ensina o que se pode e o que no se pode esperar do clculo de probabilidades. Por me-nor que seja a probabilidade de que algo acontea, uma em bilhes de bilhes de anos, pode acontecer amanh. Ou hoje. Mas, esta re exo tinha, aqui, ape-nas uma nalidade: mostrar que, por menor que seja a possibilidade de que o acaso com as letras do alfa-beto chegue a formar as oito mil letras e na mesma ordem do texto do primeiro captulo do Quixote, quero supor que acontea a primeira vez que se re-corre ao acaso, buscando criar um texto literrio.

    Pois bem, se o acaso pode, por pura casualidade, dar-nos esse texto, que ter criado? Por mais estranho que parea, a resposta lgica : nada. De fato, a prova mais clara disso que, meio minuto depois da ltima letra desse texto, apareceriam na cesta outras letras quaisquer, sem relao com o texto de Cervantes.

    E isto, por de nio. Do contrrio, no seria aca-so. Mais ainda: em que se diferenciaram essas oito mil letras, colocadas na mesma ordem que o primei-ro captulo do Quixote, de uma seqncia de letras sem sentido algum? Em nada. Para que essas letras formem uma novidade, isto , criem algo, mister, em primeiro lugar, que pertenam a uma linguagem existente. Isto , que se acomodem s regras e costu-mes de um sistema de comunicao entre as mentes humanas. Alm disso, mister que comuniquem algo de interesse, para que comecem a fazer parte de ou-tros conjuntos de letras que tenham sentido. E esse interesse xado pela cultura. Esta retm certas fra-ses, captulos, obras, como dignas de ser lidas, sabo-readas, estudadas. Do contrrio, no so novidade, e embora possam ser lidas, simplesmente passariam como uma seqncia qualquer de letras: xxxyyy.

    Em outras palavras, como j tivemos ocasio de destacar, o acaso somente pode existir, ser criador, e ser criador, precisamente, de novidade, dentro de um processo mental. Isto , dentro das operaes de uma mente mesmo no sentido mais amplo de mente, como o mecanismo de uma computadora dotada de atividade (verbos) e nalidade (adjetivos de valor). Da que, durante o perodo surrealista da literatura, se havia lanado mo do acaso para su-gerir novas relaes entre palavras, que o costume tende a relacionar maquinalmente. E que, portanto, possuem um muito pobre contedo signi cativo. Em tais casos, um acaso como o da roleta, cria literatu-ra como a roleta cria distrao, risco, etc. O acaso, que a cincia conhece, est sempre limitado por uma ordem. Nunca oferece novidade por si mesmo, mas por e para essa ordem. Mais ainda, sem o acaso no haveria novidade possvel no universo. Tudo estaria determinado at o singular, de maneira necessria.

    Teologicamente, um mundo sem acaso no oferece-ria nalidade, nem qualquer sentido, a seu suposto Criador. Nem a seu habitante humano.

    O acaso na evoluoA propsito da funo do acaso, a partir do big

    bang inicial at o homem, e do homem em diante, somente podemos avanar, se o anterior verdadei-ro, considerando o acaso em relao com uma men-te. Isto , junto a um instrumento que o utiliza. Mas, note-se bem, que o utiliza em funo de algo que permite selecionar, diante do mostrurio de oportu-nidades que o acaso aproxima, aquelas que podem servir ao processo evolutivo.

    J percebemos que o puro acaso tende desor-dem. E inoperncia. Este o signi cado da segunda lei da termodinmica, ou seja, da entropia. Mas, na evoluo, vemos que, apesar de que a entropia ganhe sempre no plano da quantidade, existe uma mente que aproveita a passagem do acaso csmico para ob-ter seres ou funes mais complexas e ricas. J tive ocasio de falar, a este respeito, do que se chamou de o demnio de Maxwell.4 Segundo o mesmo J. Monod, inimigo do que se poderia chamar tendn-cia mental ou energia interior (como a chama Teilhard de Chardin), cada ser vivo um demnio de Maxwell, porque sua atividade teleonmica o im-pulsiona a criar neguentropia, isto , snteses mais ricas e complexas com o que o acaso lhe oferece.

    Mas Monod reduz esta atividade ao plano dos seres vivos. Em compensao, vrios fsicos moder-nos mostram baseados em veri caes empricas que a natureza inorgnica j seguia o mesmo pro-cesso para passar dos tomos mais simples, como so os de hidrognio e os de hlio, aos dos metais, e como se aproveitaram fatos, ao que parece, for-tuitos para ultrapassar, em complexidade fsica, a barreira que signi cou o ferro 56, durante milhes de anos.5 Precisamente, a passagem pelo que se supe realiza esse demnio de Maxwell faz com que, vendo o processo a partir de seus resultados (em algum sentido) nais, o umbral dessas novas snteses, em que se utiliza o acaso, parea em continuidade com o processo total e perfeitamente lgico. Mas que, olhado a partir do outro extremo, a passagem que faz dar ao processo cada demnio de Maxwell (neguentropia) e a realidade que dele se segue sejam totalmente imprevisveis.

    Em grandes traos, pode-se como j vimos na Transio sem medo de errar, dizer que cien-tistas do valor do F. Jacob, Bateson e outros tantos, que se debruam sobre as origens, seja do universo

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    fsico, ou com mais clareza ainda, sobre as do biol-gico, vem o processo inteiro da evoluo, no tanto como o de um plano pensado de antemo em seus mais pequenos detalhes, isto , como a obra de um engenheiro, mas como o trabalho de um inventor (= bricoleur), a cuja mente um acaso predeterminado vai oferecendo possibilidades. Da o que, de outro modo, seria inexplicvel: a tendncia universal a di-versi car cada vez mais as in nitas possibilidades e funes que apresentam, quase que para todos os ns imaginveis, o mundo das espcies biolgicas. Assim, como o fato, no menos difcil de explicar, de que, apesar das presses do ambiente, essa diver-sidade v sempre aumentando. Em outras palavras, o inventor no despreza aquilo do qual ele prprio no se serve, por um motivo ou outro. como se seu invento tivesse que ir levando o universo cada vez mais prximo de um m estranho e maravilhoso: o de trazer existncia uma espcie verdadeiramen-te nova: a dos inventores, aos quais em potncia lhes oferecido um mundo para continuar a obra incompleta da criao.

    Cada homem deve, assim, inventar seu caminho, j dizia, em sua linguagem e com suas imagens, o cristo Paulo. E cada homem deve inventar seu ca-minho o que escreve (ou repete) Sartre, acreditan-do opor-se ao cristianismo (de Paulo), tal como ele o conheceu. Sinal de que o dogma da criao e o da providncia exigem uma reformulao que esteja de acordo com a auto-revelao bblica e com essa ou-tra auto-revelao divina, que por diferentes cami-nhos forma, hoje, o legado de inumerveis investi-gaes feitas pelo homem sobre sua prpria origem e desenvolvimento sobre a terra, e desta no cosmos.

    O acaso e a liberdade humanaSe Deus criou o universo com a inteno de ter

    diante de si seres livres (limitados), o acaso tinha de ser um elemento positivo dessa criao desde o co-meo. E tornar-se, no seu trmino, elemento constitu-tivo desse inventor de caminhos que cada homem e desse novo universo, onde se jogam os acasos que provm de cada liberdade humana em relao com as outras.

    Mente e acaso, como j vimos, combinaram-se at o homem. E, a partir do homem, essa combinao se realiza na existncia de cada ser humano. E no se re-aliza apenas no que a ele se relaciona, mas em que o planeta Terra vai ter, cada vez mais, as caractersticas para o bem, ou para o mal dessa segunda natu-reza criada pela combinao de liberdades, isto , de uma enorme multiplicao de mentes e acasos.

    Note-se, de fato, que a segunda natureza, o mun-do criado pelo homem, no signi ca meramente que o trabalho da mente nica, que regia o processo da natureza antes do homem, passe agora a muitos su-jeitos livremente pensantes e operantes. Em outras palavras, no se trata de que o mesmo acaso anterior sirva agora de campo, de vitrina de possibilidades, de o cina provedora de novidades, para numerosas mentes. Nem so su cientes, para que essa amplia-o de elementos de acaso no se torne catica, os antigos limites com que o Criador deixou o acaso atuar, antes do advento do ser humano.

    E digo que no so su cientes porque, dessa ma-neira, se frustraria o que, no processo da criao e da providncia, o central para o plano divino. Isto , a atuao de liberdades criadoras, inventoras de ca-minhos e provedoras de novidades. No se levaria a srio a fora criadora do amor. E j sabemos, pela his-tria da natureza, que a criao da liberdade supe a criao de um campo de acaso e novidade. Assim, o amor de Deus se atm regra do jogo, que seguiu desde que se props (se que podemos usar essa me-tfora temporal) amar e, em conseqncia, criar seres livres, oferecendo-lhes um mundo limitado e comum onde exercer essa liberdade.

    a) Providncia e cincia divinaEmbora deixe para o prximo captulo o distinguir

    o uso positivo do negativo da liberdade humana dian-te de Deus, gostaria, desde j, de tirar algumas con-seqncias do que j vimos at aqui. Principalmente, as que tocam o tema da providncia divina, em suas relaes com esse acaso que necessita e depois, por sua vez, gera a liberdade do homem.

    O Vaticano I, a partir de sua concepo monista e uni-causal do universal, a rma algo que essencial: o universo, inclusive o universo que compreende a liberdade do homem e seu uso, esto sob o governo do Criador. Mas, acrescenta algo que, dentro dessa concepo, parece ser uma conseqncia da a rma-o anterior: a rma que Deus conhece de antemo o que suas criaturas livres vo escolher. E parece dar a entender que Deus usa esse conhecimento para le-var, to suave como poderosamente, essas mesmas criaturas a cumprir o plano que xou.

    Entretanto, o que vimos at aqui equivale a dizer que Deus no perde o governo do universo, quando usa o acaso para seus ns. E que este um elemen-to essencial de uma criao destinada a ir criando o campo de existncia e de ao para um ser livre, criador e responsvel, interlocutor respeitado como tal por Deus Criador.

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    Vimos tambm que a ignorncia, que supe o acaso para ser tal, no uma ignorncia completa. Signi ca que um efeito desejado pode ser obtido de muitas maneiras e que a maneira particular de obt-lo no est determinada. Quanto a saber, antes ou depois, qual vai ser essa forma particular que adotar a realidade, isso vem de nossa incapacidade de ima-ginar um plano, que se execute sem passar por nossa concepo do tempo. Um conhecimento prprio da natureza in nita pareceria que deve ignorar o tem-po. Mas, se realmente assim, tanto a a rmao de que Deus sabe, antes de que acontea, o que o aca-so na natureza prvia ao homem, ou a liberdade no homem vai produzir como sua negao so igualmente imprprias, dado que o conhecimento de Deus no tem passado, nem futuro.

    Numa linguagem metafrica, antropomr ca, isso equivale, ento, a dizer que Deus dirige, ou governa, ou determina o que brota do acaso ou da liberda-de humana; o que no falso (se lhe acrescentamos que s o faz, enquanto determina os limites em que se movem o acaso e a liberdade). Creio que, usando sempre uma linguagem antropomr ca, pois no te-mos outra para receber e reconhecer a auto-revela-o de Deus, o que ela nos diz que Deus respeita o acaso, assim como a liberdade humana. Que no faz trapaas, chamando acaso ou liberdade ao que j est determinado por um poder maior. Pre ro dizer, ento, na formulao dogmtica, que Deus, em sua kenosis de amor, se atm ao que a liberdade do ho-mem decide. Que respeita esse acaso, sem que isso signi que que o resultado escape, assim, a seu plano genrico.

    Embora parea imprpria a comparao, quero dizer com isso que, sem poder imaginar como a cincia de Deus sobre o que para ns seria um futuro livre, sei, no entanto, que Deus, como dono de um cassino legal, respeita os nmeros que saem na role-ta, sem que isso signi que que o resultado escapa sua vontade e nalidade anexa a esse acaso (que, para ns, no tempo, signi ca no saber antes de que saia que nmero determinado vai sair).

    b) Providncia e vocaoComo pode car claro ou no? no que dis-

    semos anteriormente, a introduo do acaso na pro-vidncia no a anula, nem a intercepta. E, o que mais importante ainda, est profundamente de acor-do com essa desproteo diante de diferentes for-mas de sofrimento que Deus ao ter decidido ser amor (1Jo 3,16; 4,7-11) lgica e necessariamente deve ter querido enfrentar, ele primeiro, face ao uso

    da liberdade por parte daqueles aos quais prope ser seus colaboradores.

    Desta maneira, o sentido, longe de perder com essa interrupo da causalidade (ntica) direta, ga-nha com a criatividade desses criadores limitados que so os homens. Pois bem, sabemos qual o pla-no de Deus, isto , a esperana que Deus colocou nos seres humanos. Isto , em seus lhos, uma vez chegados maturidade e proprietrios do universo. Espera que eles contribuam com suas criaes his-tricas, humanas, limitadas, a essa nalidade que Je-sus descreveu longamente com o nome de Reino de Deus e qual Paulo tambm se refere com o nome de Reino, agricultura, ou construo de Deus, e outros escritores neo-testamentrios, sob o rtulo de novos cus e nova terra (2Pd 3,13; Ap 21,1).

    Mas, como fazer histria real desse sentido glo-bal? Isso, como o apresentam duas das grandes pa-rbolas do juzo de Deus sobre as aes humanas, Deus deixa liberdade do homem, ao qual o acaso do universo oferece elementos, situaes e oportu-nidades diferentes. Deus determina o sentido global da vocao humana, no o caminho concreto que deve seguir cada homem para encontrar a vontade de Deus. A isso chamo eu ater-se seriamente s de-cises da liberdade humana. E tentei mostrar que isto o importante no dogma da providncia, e no o usar tal ou qual sentido gurado quanto ao tempo, no qual a cincia de Deus chegaria a saber, de-terminar ou causar o que o homem vai fazer com sua liberdade.

    Por isso, subscrevo plenamente algo que de im-portncia decisiva e concreta para a espiritualidade crist, no que se refere providncia divina, segundo R. Haight em sua obra An Alternative Vision:6 Se Deus no atua na histria para determinar especi camen-te o futuro, que se poder dizer sobre a vontade de Deus? Estar a histria to radicalmente aberta como nossa experincia nos diz estar? Ou existe uma von-tade de Deus que permita aos homens dizer que a es-to seguindo, quando tentam, de um modo ou outro, deter- minar a histria?. Segundo Haight, impe-se aqui uma diferena teolgica importante: Aqui po-deria ser til falar de uma inteno e vontade geral de Deus, que se orienta ao bem de todos os seres hu-manos e prpria histria. a vontade de Deus que tende salvao humana, ao incremento da liberda-de e humanizao de todos. Mas Deus no quer acontecimentos espec cos da histria humana: dei-xa-os criatividade e vontade dos homens... Uma vez mais, tal diferena preservaria tanto a vontade de Deus como a interna responsabilidade e seriedade da liberdade humana. Mas, ao mesmo tempo, dessacra-

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    liza muitas concepes populares da espiritualidade sobre o fazer a vontade de Deus

    c) Deus (providente) demasiado prximo

    Isto me leva, para terminar este captulo, visvel necessidade que no dogma da providncia divi-na tem o homem de obter uma viso equilibrada da distncia de sua liberdade criadora em relao a Deus. Porque, tanto um Deus demasiado longe, como um Deus demasiado prximo desumanizam a atuao do homem, de modo mais ou menos sutil, mas e caz.

    O que vimos at aqui tinha, de fato, como resulta-do no, precisamente, como nalidade um cer-to afastamento de Deus, de tal modo que a liberdade do homem fosse real. A imatura concepo de uma providncia divina, onde o acaso no existe, atribui tudo o que acontece a uma vontade de Deus, que o homem deve, fundamentalmente, aceitar. E, alm disso e se lhe possvel explicar, assim, como uma atitude (boa e justa, por de nio), que Deus teria com o ser humano em questo, seria em mui- tos casos a de enviar-lhe terrveis sofrimentos.

    Intil discursar sobre a forma em que tambm os que no crem, ou dizem no crer em Deus, recebem certos acontecimentos desagradveis e reagem frente a eles. Pouqussimos sero os leitores que no tenham ouvido, nesses casos, perguntas angustiosas, tais como: Que foi que eu z?, Por que isso comigo?, Que injustia! Por que Deus me trata assim? Etc.

    Se os acontecimentos de que se trata so agrad-veis, as formas lingsticas que se empregam no du-vidam em atribuir os acontecimentos a uma espcie de comunicao satisfatria entre Deus e a pessoa que se bene cia com esses mesmos acontecimentos: Graas a Deus, estou muito melhor!, Graas a Deus, os negcios vo indo bem!.

    Isto no mais do que o resultado de uma estrutu-ra semntica, na qual o futuro aparece dirigido direta-mente por Deus. Tanto assim, que a forma popular de construir a frase expressa-o, comeando por uma declarao de f na presente providncia divina: Se Deus quiser, vou chegar de tardinha..., Se Deus qui-ser, reduziremos a in ao monetria no prximo ano.

    Se isto real e poucos duvidaro de que o seja , veremos que um Deus to prximo anula o ho-mem, naquilo que ele tem de mais criador. Efetiva-mente, embora no se perceba de modo re exo, a forma de falar no choca, porque, na realidade, se pensa que de pouco serve uma deciso humana (o

    homem prope...) para dotar a realidade de um de-terminado valor, se Deus no est interessado em que esse mesmo valor se instale na histria. Ou se est mais interessado nas relaes que os seres humanos tm diretamente com ele (contra o que escreve a 1Jo 4,20); uma vez que ele quem faria a histria, se-gundo valores que o homem, muitas vezes, ou no reconhece como tais, ou nem consegue perceb-los no transcurso da histria (Deus dispe).

    Esta concepo da providncia no assusta as hierarquias eclesisticas, por mais heterodoxa e de-sumanizante que seja. E no assusta porque parece manter os homens na proximidade de um Deus pro-vidente. Apesar de que se tenha de pagar um preo muito alto por isso. Entre outras coisas, uma boa par-te do atesmo moderno. Porque, para ser lgicos, se um Deus assim existe, o homem com sua liberdade no tem qualquer sentido. Assim o reconhece J. le Blond, resumindo, por outro lado, o pensamento de um Merleau-Ponty, na revista tudes da poca:

    A respeito da impossibilidade de Deus, M. Merleau-Ponty... declara que Deus incompatvel com a exis-tncia da cincia e da ao humanas... Efetivamente, pensa que, se a histria do pensamento e da ao hu-manas se desenvolve segundo um plano pr-estabeleci-do, se j foi inteiramente pensada por Deus para no dizer escrita , perde significao humana o sentido que o homem quer e que o homem lhe d, e para o qual o homem insubstituvel7

    d) Deus demasiado longeAo contrrio, o acaso, introduzido no prprio que-

    rer divino, pareceria como que distncia de Deus. Este j no nos fala com certeza embora, s ve-zes, pretendamos no entender bem sua mensagem em cada um dos acontecimentos de nossa existn-cia. O acaso como que uma espcie de silncio de Deus, embora ele nos tenha falado e muito, atravs dos profetas e, ultimamente, atravs de seu prprio Filho (Hb 1,1-2).

    No obstante, por mais que conheamos, em ge-ral, o plano de Deus, sua sensibilidade frente a tudo o que afeta nossos irmos e o valor imenso que d a nossa liberdade, permitindo-lhe colocar sua contri-buio na criao de nitiva dos novos cus e da nova terra, sentimo-nos um pouco soltos e como que deso-rientados, ao pensar que ele no nos disse, exatamen-te, o que quer de ns. Que nos sugere um plano vasto como o universo, mas nos deixa sem ordens precisas.

    Isto mais um ndice da fragilidade e inconsistn-cia da maturidade que foi dada mensagem crist so-bre a liberdade. Porque a psicologia menos profunda

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    sabe o quanto custa ser livre. Ou, em outras palavras, o medo que o homem tem de uma liberdade, que lhe exige decises, sem que receba ordens precisas. O Jesus joanino sente a a presena de uma tentao to comum a todos os homens e a todos os tempos que, em seu discurso de despedida, se detm para a rmar o que parece to difcil a nosso doentio desejo de se-gurana: de vosso interesse que eu parta (Jo 16,7). E promete-lhes, como explicao e garantia dessa es-tranha avaliao, a substituio da presena fsica de Jesus pela presena de sua mentalidade, ou Esp-rito. Isto , de algo que, sem usar as palavras con-cretas de Jesus, levar seus discpulos a toda verdade. Creio que, muitas vezes, as autoridades eclesisticas entenderam que esse esprito de Jesus, que leva a toda verdade, o que hoje se chama, mencionando um grupo espec co dentro da Igreja, o Magistrio. Na realidade, a passagem de Jesus a seu esprito algo que representa um passo exigido em toda edu-cao: o momento de ter que assumir responsabili-dades, sem a presena paterna. O que, se o processo educativo foi positivo, no signi ca abandonar o que foi aprendido dos pais, mas ater-se, de forma livre e criadora, educao recebida. Fazer caminho e caminho novo com ela.

    Isto, muitas vezes, produz angstia. Entretanto, creio que parte deste medo procede do monismo, ao qual me referi tantas vezes, nesta obra. Deus, agora, parece longe, no plano da causalidade, porque no determina at o ltimo singular sua vontade a respeito dos homens. Mas, no plano do sentido, est in nitamente mais perto de ns, quando nos coloca nas mos o universo criado e nos obriga a assumir, atravs do que fazemos a nossos irmos, o risco da dor que uma ao m, ou no feita, pode causar. Em outras palavras, o Deus que conhecemos assim espe-ra, apaixonadamente, cada passo que nossa liberdade vai dar, cada opo que nossa existncia vai tomar.8

    Finalmente, existe um ltimo e aparente dis-tanciamento de Deus, nesta concepo teolgica de sua providncia, que mister exorcizar. Assumir a li-berdade no substituir o acaso, que Deus disps, por nossa liberdade, de tal modo que esta imponha, sem perigosas interrupes, os propsitos que deter-minamos, como se o universo devesse dobrar-se aos ideais que, de uma vez para sempre, determinamos implantar nele. Em outras palavras, ns, que viemos de uma vontade divina que usou o acaso, no gos-

    tamos do acaso, no queremos saber de sua funo de exibilidade, de provedor de novidades, quando se trata de nossos projetos. Temos medo de perder o mais mnimo controle do ltimo detalhe. E, por isso, simbolicamente, temos medo da noite. Dormimos mal, porque temos medo de que esse tempo, sem nossa mo no timo, vai deixar-nos deriva...

    Para sentir que Deus est junto de ns, tambm quando pagamos o preo do acaso, podemos escutar o que, segundo Pguy, Deus diz noite: Oh noite! Eu conheo o homem. Se fui eu quem o fez? um ser estranho. Porque, nele, joga-se essa liberdade que o mistrio dos mistrios. possvel pedir-lhe mui-to... Mas o que no h jeito de pedir-lhe santo Deus! um pouco de esperana, um pouco de con ana, vamos, um pouco de calma, um pouco de abandono entre minhas mos. Est rgido o tempo todo. Mas, tu, noite, minha lha, tu consegues isto, s vezes, do homem rebelde: que esse bom senhor consinta em render-se um pouco a mim. Que repou-se um pouco seus pobres membros cansados numa cama... Eu no gosto, diz Deus, do homem que no dorme, do homem que arde de impacincia e febre em sua cama.9

    Talvez se pudesse dizer que cada uma das etapas, pelas quais a experincia do homem veterotestamen-trio passou, esteja marcada por um vai-e-vem en-tre um Deus muito longnquo e um Deus demasiado prximo. Talvez, acreditamos que com Jesus Cristo tnhamos exatamente a sntese equilibrada que ne-cessitvamos, no que se refere providncia divina. E isto pode ser perfeitamente verdadeiro. Mas, nem por isso, temos que pensar que basta citar palavras, supostamente, de Jesus, ou passagens do Novo Testa-mento, para ter hoje o mesmo sutil e rico equilbrio ao qual se chegou na vizinhana do acontecimento Jesus.

    Segundo o prprio Jesus, seu Esprito que nos continua guiando, desde que admitamos que as fr-mulas passadas no bastam para dar uma resposta satisfatria ao mesmo problema, tal como hoje se apresenta.10 Com novos dados e novas perguntas. Por isso, a questo de no colocar a providncia divina, nem demasiado longe, nem demasiado perto, mas num lugar em que ela mesma se coloca, uma ta-refa reservada aos cristos de hoje. Como, no futuro, continuar sendo para aqueles que passem por novas experincias e usem novas categorias cognitivas.

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    Notas* Texto retirado de Juan Luis Segundo, Que mundo?

    Que homem? Que Deus?, So Paulo, Paulinas, 1995, pp. 459-489.

    1 J mostrei que este problema se relaciona, mesmo que indiretamente, com a Reforma. Por duas ra-zes. Em primeiro lugar, o servo arbitrio, ao qual a teologia de Lutero (e, particularmente, uma de suas obras) se refere, no entra, rigorosamente, na problemtica, precisamente porque nega a capaci-dade da causa segunda (humana) para fazer obras boas e meritrias. Em segundo lugar, a predestina-o, que tem um papel importante na teologia de Calvino, tampouco parece estar, rigorosamente, dentro da problemtica: de fato, Deus criaria os homens, mesmo que sua salvao ou condenao, segundo os casos, j esteja presente diante de seus olhos. A predestinao no procede, assim, da in-gerncia de Deus nos atos do homem. Estritamen-te, esse problema foi debatido dentro dos termos da teologia catlico-romana. Como poderia fazer Deus para que o homem tivesse mrito prprio, se Deus concorria como causa primeira de um modo to decisivo em causar a ao, supostamen-te livre, do ser humano? Esse problema, que deu origem controvrsia chamada de Auxiliis, perma-neceu em suspenso, como j se disse, depois de rdua discusso, na falta de uma soluo aceit-vel. Entendo que, saiba Deus ou no, antecipa-damente (que pode signi car isto?), qual deciso o homem vai tomar, decide por amor ater-se ao que este escolha livremente. A soluo era impos-svel se a pretenso fosse deduzir o conhecimento divino dos futurveis, da ao causal que Deus exercia sobre eles, numa concepo monista (j estudada nos primeiros captulos desta obra).

    2 O pensamento do prprio Darwin foi, provavel-mente pelo seu desconhecimento das leis gen-ticas, sumamente vacilante. Sobretudo, ao tratar as di culdades que se opunham s suas teorias, a partir de diversos campos. interessante que, mais ao nal de sua vida, se foi inclinando, cada vez mais, para posies semelhantes s de Lamarck. Da que o neodarwinismo, hoje reinante, separou-se de Darwin, na medida em que pode admitir que, se um acaso no pode criar uma ordem como a epigneses biolgica, dois acasos (com seus cor-respondentes processos estocsticos), sim, podem.

    3 Creio que signi cativo destacar a suspeitosa vi-zinhana que existe se no me engano entre essa noo de acaso (= ignorncia) e a de milagre. Chama a ateno encontrar sinais desta vizinhan-

    a entre acaso e milagre, por exemplo, na j ci-tada obra de Gordon Kaufman, God the Problem (pp. 120-121). Segundo a de nio comumente aceita, milagre seria tudo aquilo que no pode ser produzido pelas foras naturais e que, no obs-tante, acontece. Onde est, perguntar o leitor, essa pretensa semelhana? Para reconhec-la, su ciente constatar que a noo de milagre su-pe que se conheam os limites das causalidades naturais. Mas, uma vez que aceitamos nossa ig-norncia sobre muitas causalidades ainda ocultas e desconhecidas, algo impossvel determinar o milagre, em concreto, com certeza. Parece que em alguns santurios religiosos, onde se pretende que tenham acontecido fatos milagrosos, existe uma instituio investigadora para determinar se, em tais casos, se trata ou no de milagres. claro que, dessa maneira, a instituio religiosa pode rejeitar muitos falsos milagres, mostrando a causa real da pretensa mudana prodigiosa, que se alega. Mas, sempre me perguntei qual poderia ser um critrio para saber se se trata de um milagre real ou no. De fato, isso suporia conhecer as possibilidades de todas as leis naturais. Mas, continuamente, es-tas vo aumentando e utilizam-se outras novas. De modo muito semelhante, foram sendo atribu-das ao acaso ao puro acaso coisas cujas leis cient cas se desconhecem (e, por isso, apenas se fazem clculos probabilsticos sobre elas). Assim, para determinar um processo devido, unicamente, ao puro acaso, faz-se um processo paralelo, que se usa para determinar um milagre: descartar a causalidade natural, quando ela est longe de ser totalmente conhecida. H alguns anos, atribuam-se ao acaso coisas, cujas causas naturais foram determinadas, logo depois. Em ambos os casos, a ignorncia das leis da natureza, que d origem atribuio de um fato ao acaso como tal, ou ao milagre como tal, provisria. E complementria de certa ordem, mente, ou nalidade. Creio que seria til trabalhar com tais conceitos, de modo sumamente cauteloso. Por exemplo, no campo da evoluo biolgica, dizer, como Monod, que tudo isso aconteceu, porque nosso nmero saiu no jogo de Montecarlo (op. cit., p. 160) mais do que uma m metfora: um erro epistemolgico.

    4 Aqui como na nota anterior, da qual esta seria complementria seria possvel mostrar que o acaso no pode aumentar, de maneira contnua embora, lentamente, para nossa observao ou nossos desejos a neguentropia (= criao de energia mais rica), a no ser atravs de uma funo cognitiva (J. Monod, ib., p. 71). E con-

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    cedendo, bvio, que a entropia (= tendncia degradao da energia) surgir em outra parte do sistema, mantendo a segunda lei da termodinmi-ca (cf. ib.). A essa funo cognitiva que capta o acaso e o transforma num aparelho teleonmi-co, cada vez mais potente, dado, numa lingua-gem gurada, o nome de demnio de Maxwell, seguindo o teorema que imaginou esse fsico, para explicar a possibilidade da neguentropia (cf. ib., p. 70). Cada passo da evoluo foi, na realidade, obra desse demnio. Mas, aqui, de forma incrvel, Monod usa essa constatao (de que, a partir das enzimas at s formas mais complexas da vida, em de nitivo, funcionam exatamente maneira do demnio de Maxwell: ib., p. 71), para no le-var a srio, cienti camente, que isso que atua como o demnio de Maxwell. Esta metfora serve-lhe, ao mesmo tempo, para escapar-se ao falar de evoluo e para desacreditar como mitologia (ou como animismo) o que, com mais lgica, outros cientistas srios chamam de mente (Bateson), o interior das coisas, ou energia radial (Teilhard).

    5 Cf. Trinh Xuan Thuan, op. cit., pp. 208-217 do cap. V de Le livre de lhistoire de lunivers.

    6 Roger Haight, An Alternative Vision. An Interpre-tation of Liberation Theology. Paulist Press. N. Y., 1985, p. 100; o grifo meu. O texto citado pareceria concluir, atribuindo o fundamento da importante distino introduzida a um dualismo metafsico. Mas se no me engano , Haight no aceitaria, pelo menos explicitamente, tal con-cluso. De fato, como acontece muitas vezes, e tentei mostr-lo no primeiro captulo desta obra, o dualismo faz sua entrada num pensamento (so-bretudo teolgico), de um modo no re exo. Em tal sentido, as investigaes que Haight fez sobre a loso a da ao de Blondel podem ter ido apro-ximando seu pensamento de um certo dualismo. Apesar de tudo o que me aproxima dele, perma-nece ainda, em alguns pontos, alheio a certos questionamentos que, por outro lado e no meu modo de ver sugere, como neste ponto. No qual, sob a in uncia desta distino sobre a es-piritualidade e, mais especialmente, sobre a espi-ritualidade inaciana, Haight ocupou-se dela, com tanto mais razo quanto que os Exerccios Espiri-tuais de lncio de Loyola se apresentam, j a par-tir de seu ttulo, como encaminhados a buscar e encontrar a vontade divina na disposio da vida (primeira anotao, n. l). Sobre este ponto, veja-se R. Haight, Foundational lssues in Jesuit Spiritual-ity, artigo apresentado na publicao peridica Studies in the Spirituality of Jesuits, (St. Louis, MO,

    19/4, sept., 1987, especialmente os pargrafos intitulados Election and the will of God e The Discemment of Spirits, pp. 32-39).

    7 J. M. Le Blond, tudes, Paris, 1953, III, p. 353.8 A este respeito, comparem-se duas poesias sobre

    o mesmo tema: a ascenso de Jesus ao cu. A pri-meira do clebre poeta do sculo de ouro espa-nhol, Fray Luis de Len, que comea com a cle-bre estrofe: E deixas, pastor santo/ tua grei, neste vale profundo, escuro/ com solido e choro/ e tu, rompendo o puro/ ar, vai-te ao imortal seguro! (os dois primeiros versos guram como exergo nos versos de Len Felipe, enfatizando a inteno de opor uma poesia outra). A segunda o poema, praticamente contemporneo de Len Felipe, com o mesmo ttulo de La Ascensin: Veio aqui/ e foi embora./ Veio... marcou-nos nossa tarefa/ e foi embora./ Veio aqui/ e foi embora./ Veio... encheu nosso cofre com tesouros/ com milhes de sculos e de sculos,/ deixou-nos umas ferramentas.../ e foi embora./ Ele, que sabe tudo,/ sabe que estando sozinhos,/ sem deuses para nos olhar,/ trabalhamos melhor./ Atrs de ti no h ningum. Ningum/ Nem um mestre, nem um senhor, nem um patro./ Mas o tempo teu./ O tempo e este formo/ com o qual Deus comeou a criao/.

    9 Ch. Pguy, Le porche du mystre..., op. cit., p. 213. Paris, 1944 (63), p. 213.

    10 Deus-demasiado-perto, Deus-demasiado-longe, os dois extremos desumanizadores na concepo da providncia divina, podem ser vistos, talvez ilustrados por duas novelas, bas-tante conhecidas em sua poca, e de qual-quer modo profundas, de Franz Kafka: EI Proceso y EI Castillo (Trad. cast. Ed. Emece. Buenos Aires). claro que nenhuma das duas obras se apresenta como a descrio de uma experincia humana precisamente religio-sa. No entanto, a clave religiosa dessas duas obras foi reconhecida por muitos crticos, e difcil negar-lhes o fato de que sem nomear digitalmente, pelo menos Deus, ambas se referem realidade ltima para o sentido da existncia de um mesmo protagonista, K... (= Kafka), embora ambas terminem, de certo modo, dando essa batalha por perdida. O Pro-cesso apresenta uma fora moral condenat-ria, que invade a vida normal de um homem at apoderar-se dela, substitu-la pela certeza de uma culpa, e mat-la no nal. O Castelo apresenta a terrvel e, em certo sentido, c-mica luta de um ser humano, para ser ad-mitido porque se tornou importante no

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    domnio do Absoluto, o Castelo. Kafka no conseguiu termin-la. Max Brod, seu amigo, conta (no nal da citada traduo de El Cas-tillo) que seu autor pensava termin-la deste modo: K... continua lutando, sem retroceder um centmetro. Mas, morre de cansao. Ao redor de seu leito de morte, rene-se a comu-na da aldeia (= vida humana subordinada ao servio do Castelo, mas sem pertencer a ele, nem entrar nele), e nesse momento chega do Castelo a deciso que declara que K... na rea-lidade, no tem direito de cidadania na aldeia, mas que, por certas circunstncias acessrias, -lhe permitido viver e trabalhar a (grifos meus). Distncia, longa distncia entre Deus e a liberdade...