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Textos da Iniciação Científica N˚5 1 TEXTOS DA INICIAÇÃO CIENTÍFICA. N˚ 5 Orientação: Profª. Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti Departamento de Antropologia Cultural O SAMBA RURAL PAULISTA E A FESTA DE BOM JESUS DE PIRAPORA: MÁRIO DE ANDRADE, MÁRIO WAGNER VIEIRA DA CUNHA E A PESQUISA FOLCLÓRICA Cecília Mendonça Dezembro, 2004. [email protected]

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Samba rural paulista

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Textos da Iniciação Científica N˚5

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TEXTOS DA INICIAÇÃO CIENTÍFICA. N˚ 5

Orientação: Profª. Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti

Departamento de Antropologia Cultural

O SAMBA RURAL PAULISTA E A FESTA DE BOM JESUS DE

PIRAPORA: MÁRIO DE ANDRADE, MÁRIO WAGNER VIEIRA

DA CUNHA E A PESQUISA FOLCLÓRICA

Cecília Mendonça

Dezembro, 2004.

[email protected]

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O samba rural paulista e a festa de Bom Jesus de Pirapora: Mário de Andrade;

Mário Wagner Vieira da Cunha e a pesquisa folclórica

Resumo: Este trabalho analisa a pesquisa de Mário de Andrade sobre o samba rural

paulista, e o texto de Mário Wagner Vieira da Cunha sobre a festa de Bom Jesus de

Pirapora. Esses artigos foram publicados em 1937 na Revista do Arquivo Municipal que,

nessa época, foi um veículo de divulgação das pesquisas da Sociedade de Etnografia e

Folclore e também do Departamento de Municipal de Cultura de São Paulo. Esses dois

textos são entendidos como complementares. Andrade escreve mais interessado no aspecto

musical do samba rural. O texto de Mário Wagner é um estudo da festa de Bom Jesus de

Pirapora, do contexto etnográfico em que o samba rural ocorre.

Palavras-chave: samba rural; Bom Jesus de Pirapora; pesquisa folclórica; etnografia; Mário

de Andrade; Mário Wagner Vieira da Cunha.

As pesquisas em São Paulo

O final da década de 1930, em especial os anos de 1936 a 1938, foram anos muitos

intensos para Mário de Andrade no desenvolvimento de suas pesquisas folclóricas. Como

diretor do Departamento Municipal de Cultura de São Paulo, Mário de Andrade conseguiu

desenvolver algumas ações nessa área de estudo em que sempre esteve envolvido, segundo

ele, de forma amadorística.

Logo em 1936, ano em que se tornou diretor do Departamento de Cultura,

Andrade organizou um Curso de Folclore, regido por Dina Lévi-Strauss, que estava no

Brasil nesse período, acompanhando seu marido Claude Lévi-Strauss, contratado como

professor de Sociologia da recém-criada Universidade de São Paulo. Dina Lévi-Strauss,

professora agregée da Universidade de Paris e assistente do Musée de l’Homme, realizou

durante um ano o Curso de Folclore que segundo Mário de Andrade era um curso

“realizado em bases eminentemente práticas, teve como intenção principal formar

folclorista para trabalhos de campo” (apud. Soares, 1983: 9). Este curso foi importante

“para despertar a atenção dos pesquisadores para o Folclore de São Paulo, uma vez que se

considerava que ele existisse somente no Nordeste” (apud. Soares, 1983: 10).

Das atividades desse curso nasceu a Sociedade de Etnografia e Folclore. Durante

esse período Mário de Andrade e outros membros da Sociedade iram dar maior

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importância ao folclore de São Paulo. No início dos anos 1930, recém chegado de sua

viagem ao nordeste, Andrade iniciou por acaso, durante um carnaval paulistano, suas

pesquisas sobre o samba rural paulista. Pesquisa que levou a frente depois: “Só me

interessava naquele tempo o Nordeste, cuja musica é bem mais rica” (Andrade, 1991: 130).

Andrade tinha conhecido o nordeste numa viagem realizada entre dezembro de 1928 e

fevereiro de 1929 e tinha lá realizado intensa pesquisa folclórica cujo material está reunido,

principalmente, em duas obras póstumas “Turista Aprendiz” e “Danças Dramáticas do

Brasil”.

A Sociedade Etnografia com o apoio do Departamento de Cultura desenvolveu

algumas pesquisas. Foram pesquisadas, nessa época, Congadas, Moçambiques, Jongos,

Dança de Santa Cruz, Cavalhadas. Em dezembro de 1937, foi publicado, no boletim da

Sociedade de Etnografia e Folclore, a seguinte nota, que expressa o espírito da época:

O conselho técnico da Sociedade de Etnografia e Folclore organizou uma primeira lista de delegados para o interior do Estado, cuja função será de acordo com os estatutos, trazer a Sociedade ao corrente de qualquer acontecimento de interesse etnográfico e folclórico; tomar a iniciativa de pesquisa etnográficas e folclóricas; colaborar com os poderes públicos para assegurar a proteção, conservação e preservação de todos os documentos ou manifestações de caráter etnográfico e folclórico. (Mário de Andrade, 1983: 33).

Com isso a Sociedade tinha o interesse em organizar uma cronologia das festas

populares do Estado de São Paulo:

A Sociedade solicita também a todas as pessoas (...) que lhe enviem notícias sobre festas que aconteçam. Poderá assim a Sociedade enriquecer o fichário de festas populares, em realização, e que de tão grande utilidade será para todos os estudiosos do folclore, pois os porá a par de ocasiões ótimas para suas pesquisa. (Mário de Andrade, 1983: 38).

Através dessas iniciativas, o Departamento de Cultura e a Sociedade de Etnografia e

Folclore de São Paulo produziram uma série mapas folclóricos de danças populares e de

medicina popular. Há mapas de sambas e batuques; congadas e suas variantes fonéticas e

de cura de terçol com anel.

Apesar de todo esse investimento, essas pesquisas foram muito pouco divulgadas e

valorizadas. Das ações do Departamento de Cultura sobre folclore, o que se conhece hoje

são as pesquisas realizadas pela missão folclórica de 1938, ao nordeste do país. O que

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mostra que, no fundo, Mário de Andrade, idealizador da missão, estava realmente mais

interessado no folclore nordestino.

Um veículo de divulgação das pesquisas da Sociedade de Etnografia e Folclore e

das ações do Departamento de Cultura foi a Revista do Arquivo Municipal.

Em seu número 12, passou a ser órgão do Departamento de Cultura, então criado, a Revista do Arquivo, mudava completamente de feição, dirigida por Mário de Andrade, tendo Sergio Milliet com secretário. Desde então foi um crescendo que nunca mais parou. Saiu regularmente todos os meses. (...) publicava artigos e ensaios etnológicos, sociológicos, (...), estudos de folclore e muitos outros trabalhos de alto interesse cultural. (Duarte, 1985: 97)

Em novembro de 1937, a revista publicou o texto de Mário de Andrade “O samba

rural paulista” e também o texto de Mário Wagner sobre as festas de Pirapora, intitulado

“A festa de Bom Jesus de Pirapora”.

A partir do texto de Mário de Andrade e considerando também o texto de Mário

Wagner, este trabalho sistematiza pesquisas feitas por Andrade em São Paulo capital e em

Pirapora, interior de São Paulo, sobre os sambas que ele e outros pesquisadores como Luis

Saia e Mário Wagner Vieira da Cunha tiveram a oportunidade de observar, todos eles

membros da Sociedade de Etnografia e Folclore.

O samba rural paulista e a festa de Bom Jesus de Pirapora

a) introdução aos textos

No mesmo volume da Revista do Arquivo Municipal (11/1937), saíram os textos

“O samba rural paulista”, de Mario de Andrade, e “A festa de Bom Jesus de Pirapora”, de

Mário Wagner. Como os próprios títulos já deixam claro, o texto de Mário de Andrade é

um estudo sobre o Samba Rural Paulista, em especial sobre seu aspecto musical, e o texto

de Mário Wagner é um estudo etnográfico da festa de Bom Jesus de Pirapora. São textos,

num certo sentido, complementares. Mário de Andrade faz um estudo minucioso do

samba, fala de sua coreografia, de seus “textos-melodias”, de seu instrumental, de sua

estrutura. Mário Wagner faz um relato da festa como um todo, de seus aspectos religiosos e

profanos, falando do samba no contexto profano da Festa de Bom Jesus.

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O texto de Mário de Andrade “O Samba Rural Paulista” é, segundo Travassos, uma

monografia científica. Nesse estudo, ao contrário dos outros realizados no Nordeste,

Andrade teve mais tempo para observar a manifestação por ele estudada:

De seus escritos sobre folclore, este é o mais preso à descrição do pormenor empiricamente observável, mais sistematicamente analítico da forma poético-musical, e um dos poucos que não deixou inacabado. Foi escrito em pleno entusiasmo das reuniões da Sociedade de Etnografia e Folclore, estando imbuído do ideal de cientificidade elaborado e reafirmado naquele fórum. A monografia é uma cuidadosa inspeção das heranças culturais e musicais africanas porventura vivas no samba e de suas transformações ao contato com a cultura européia. (Travassos, 2002: 98)

O texto de Mário Wagner, também, me parece estar nos moldes de um trabalho

científico. Mais especificamente, trata-se de um trabalho etnográfico sobre a Festa de Bom

Jesus de Pirapora. Ele vai descrevendo a festa nos seus pormenores, as transformações que

ocorrem na cidade, quais os tipos de freqüentadores, onde se alojam. Ele diferencia os

aspectos religiosos, marcados pelo cumprimento das promessas e os aspectos profanos no

qual reina a licenciosidade. Tenta também entender sua decadência que, segundo ele, estaria

ocorrendo tanto nos aspectos religiosos com nos aspectos profanos. Em uma das partes do

texto, ele analisa mais sistematicamente o samba.

Mário Wagner foi aluno das primeiras turmas da Escola Livre de Sociologia e

Política de São Paulo e depois estudou antropologia na Universidade de Chicago. Isso tudo

demonstra seu grande interesse pela etnografia e seu preparo para um bom trabalho

científico. Seu trabalho sobre a festa de Pirapora foi uma de muitas pesquisas que Mário

Wagner fez em cidades do interior de São Paulo.

b) as descrições do samba pelos dois Mários

Mario de Andrade conheceu o samba rural paulista, como já mencionei, por acaso,

no carnaval paulistano de 1931. Segundo ele “roncava um samba grosso. Nada tinha a ver

com os sambas cariocas de Carnaval. Nem na coreografia nem na música” (Andrade, 1991:

112). Já aí tomou algumas notas e recolheu quatro textos. Nos anos de 1933 e 1934,

recolheu ainda mais algumas músicas. Neste último ano, houve samba, mas o “grupo já se

desagregara, ou deixara de vir lá de sua terra. São Paulo era inóspito para a folia deles. (...)

No carnaval seguinte ninguém estava mais lá” (Andrade, 1991: 113). Andrade teve ainda a

oportunidade de ir a uma festa em Pirapora, isso foi no ano de 1937. Segundo ele, nesta

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parada em Pirapora, “apesar de uma colheita muito mais frutuosa e completada. (...) a

festança estava fraca (...) em vez dos pelo menos três grupos de samba que esperava

encontrar, um só reinava”1 (Andrade, 1991: 113). “O mais humorístico do caso é que o

grupo (...) tinha ido de São Paulo. (...) Parei uma noite em Pirapora, fatigadíssimo e poento,

para colher coisas paulistanas que se realizavam às minhas próprias barbas desatentas”

(Andrade, 1991: 114).

Mário de Andrade descreveu o Samba Rural a partir dessas quatro observações que

fez, contou ainda com a ajuda de um companheiro de viagem, José Bento Faria Ferraz que,

como ele, registrou os textos dos sambas. O “samba rural” se caracterizava pela reunião de

indivíduos de ambos os sexos e de variadas idades, na maioria negros e seus descendentes.

Havia sempre um chefe, o “dono-do-samba”. “Manda sem muita força, obedecido sem

muita obrigação” (Andrade, 1991: 115).

Os instrumentos são todos de percussão e o bumbo é o que domina. A sua alocação, sempre central na fila dos instrumentistas, bem como por ser da decisão dele o iniício de cada dança lhe indicam francamente a primazia entre os instrumentos. Enfileirados os instrumentos, com o bumbo ao centro, todos se aglomeram em torno deste, no geral inclinados para frente, como que escutando uma consulta feita em segredo. As mulheres nunca tocam. Os homens, pelo contrário, todos tocam, e indiferentemente qualquer dos instrumentos, passando esses de mão em mão. (Andrade, 1991: 115)

Os instrumentos iniciam tocando, avançam em fila para frente. As filas de

dançantes que os defrontam recuam. Depois são estas que avançam enquanto os

instrumentos recuam.

A visão que se tem é de um bolo humano mais ou menos ordenado em fila, e que estreitamente apertado, num áspero movimento de inclinar e erguer de torso, avança e recua em poucos passos. (...) Na aparência a coreografia é muito precária. Incerto rebolar das ancas, nenhuma virtuosidade com os pés, nunca vi a umbigada tradicional. (...) Apenas aquela marcha pesada para frente, e no recuo, uns como que saltinhos inda mais pesados, apesar de rápidos. (Andrade, 1991: 116)

Mário Wagner, que faz referência apenas ao samba da festa de Pirapora de 1936,

teve no entanto a oportunidade de ver três grupos diferentes. Segundo ele:

1 Mário de Andrade já conhecia o trabalho de Mário Wagner que tinha ida à festa de Pirapora um ano antes e observado três grupos diferentes de samba. Por isso, ele esperava encontrar três grupos de samba.

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Dança-se o samba no barracão B a qualquer hora do dia e da noite, o espaço não excede 3x3 metros, ao samba convém ser dançado em áreas acanhadas. Exige para estar animado, um roçar e esfregar dos corpos. Não há número certo de participantes. Diz-se concorrido quando reúne mais de vinte pessoas. Há um continuo revezamento de seus componentes, o que explica que o samba possa durar muitas horas sem interrupção. Cada participante entra e sai a qualquer momento. Isso não significa que qualquer pessoa possa entrar para o samba. Os sambadores formam grupos distintos denominados batalhões2. Quem é de um batalhão não dança no outro batalhão e quem não pertença a nenhum batalhão está condenado a não sambar. (Cunha, 1937)

Segundo a descrição de Mário Wagner, “nunca falta num samba o tamborim, o

pandeiro, o quaiá e o bumbo. A esses instrumentos se ajuntam por vezes uma cuíca, um

reque-reque ou um tambor médio”. Iniciada a dança com a deixa, por si não terminaria

mais. O ritmo da música, o monótono ir e vir acabariam por colocar a todos, assistente e

dançadores num estado de hipnose.

c) as descrições da festa pelos Mários

Mário de Andrade menciona uma única vez o fato de que a pesquisa em Pirapora

ocorreu durante uma festa religiosa. A festa de Pirapora estava, para ele, em visível

decadência e dois fatores contribuíam para isso a “reação dos padres e o excesso de

repressão policial contra a parte profana dos festejos” (Andrade, 1991: 114). Ele passou

apenas um dia na cidade, fez apenas sua pesquisa do samba, não estava atento para o resto

da festa.

Quem melhor relata essa suposta decadência é Mário Wagner que teve a

oportunidade de ir à festa de Pirapora um ano antes. Mário Wagner faz uma minuciosa

descrição da festa de Bom Jesus de Pirapora. A festa de Pirapora é vista como sendo por

essência uma festa religiosa que acontece nos dias 3, 4, 5 e 6 de agosto. O dia 6 de agosto é

o dia de Bom Jesus e há uma grande procissão. “O Samba é o elemento primordial da festa

profana”. Mário Wagner interpreta a idéia da decadência apontada por Mário de Andrade:

como uma prova do crescente desenvolvimento da festa profana, ameaçando, mesmo, a festa religiosa, era o que notamos quando, por outra comprovamos o número enorme de pessoas que se mantinham de todo ou quase todo alheias às festas religiosas, presas, porém de corpo e alma ao samba e aos fusos.3 Uma causa comum teve o poder de quebrar

2 Mario de Andrade não usa o terno batalhão ele fala do samba como “um ajuntamento que mantém a noção de coletividade (...) um rancho, um cordão, uma associação” (Andrade, 1991: 115). 3 Fusos eram como se chamavam os bailes que os brancos faziam para se divertir na madrugada, uma vez que não tomavam parte nos sambas.

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o equilíbrio entre as duas festas (...) o desequilíbrio começa a surgir quando crescendo a facilidade de ir a Pirapora cresceu o número dos que aí vieram somente atraídos pela festa profana. (Cunha, 1937)

Tais indivíduos teriam influenciado a festa de dois modos, contribuíram para a sua

decadência e introduziram elementos estranhos ao samba. Essa facilidade de acesso a

Pirapora ia, segundo Mário Wagner, “imprimindo à festa um cunho cosmopolita” (Cunha,

1937). Antes de haver ônibus para Pirapora, os romeiros iam andando e isto já fazia parte

de suas promessas era como uma provação. Houve o que Mário Wagner chamou de

“quebra de espírito de grupo”, inclusive nos próprios grupos de samba. “Os grupos de

sambadores, pelas próprias condições do samba recompõem-se a cada ano em Pirapora. Se

os sambas guardam o nome de certa localidade, o certo é que a recomposição facilitou a

reunião de elementos de cidades diversas” (Cunha, 1937). Na festa de 1936, Mário Wagner

teve a oportunidade de conhecer três grupos de samba que se reuniam no barracão B:

Havia em Pirapora três batalhões os quais se reuniam ali há anos. O mais antigo é o batalhão de Campinas, chefiado por João Diogo, apelidado pai João. (...) O mais novo dos batalhões é o de São Paulo, sob a direção de Zé Soldado4 (...) O terceiro é o batalhão de Itu. Comanda-o João Mundão. (Cunha, 1937)

No ano de 1937, proibiu-se o samba no barracão:

Foi preciso improvisar de uma hora para outra, novo lugar para sambar. Sambaram no meio da rua. Uma poeira sufocante. Automóveis que, debaixo de um tinir enervante de buzina, se intrometiam no meio do grupo de dançadores. E muitas vezes o samba se dissolveu por causa da chuva. (Cunha, 1937)

Consulta coletiva e desafio

Em momento algum, Mário Wagner menciona a expressão samba rural paulista.

Ele diz que os integrantes dos grupos estudados referiam-se tanto à dança como à música

como “samba”, o que me faz pensar que este nome “Samba Rural Paulista” tenha sido

dado por Mário de Andrade no intuito de distingui-lo do samba carioca. O curioso é que,

justamente, aquele samba que Andrade diz ser o que mais lhe rendeu elementos para

pesquisa era o samba vindo da capital. Levando em conta o fato de a pesquisa ter sido feita

4 Único que esteve presente na Festa de Pirapora de 1937 e que Mario de Andrade teve a oportunidade de conhecer, fazendo inclusive referencia a Zé Soldado.

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nos anos 1930, época em que a urbanização ainda não tinha a dimensão atual, o próprio

estado de São Paulo tinha características rurais e talvez o samba e as pessoas tivessem

vindo da área rural, como é o caso do jongo no Rio de Janeiro que, com o êxodo rural, se

instalou nos morros cariocas.

Mário de Andrade diz ter tido a oportunidade de assistir a um jongo em São Luís de

Paraitinga, e durante todo o texto faz referência ao jongo, ora para diferenciar como nessas

afirmações: “samba paulista posso agora concluir que ele tem sua coreografia própria. Julgo

ser esta que determina o samba rural legítimo” (Andrade, 1991: 132). “A extensão que um

terreno de samba exige é mínima, ao contrário do jongo que forma rodas largas. Um

terreno de 5 metros por 5 é suficiente para um samba de trinta pessoas” (Andrade, 1991:

116). Ora para comparar, pois Mário de Andrade vê clara correspondência na estrutura de

ambas as danças: “as peças do samba se confundem com as do jongo, e mesmo com as dos

cocos nordestinos menos elaborados” (Andrade, 1991: 132).

O samba rural, o jongo, o coco são manifestações afro-brasileiras marcadas pelo

caráter da improvisação e da consulta coletiva. Diferem de manifestações como a Dança de

Santa Cruz e o Moçambique que seriam, segundo Mário de Andrade, “marcadas pela

fixidez textual em palavras religiosas sempre”. Quem participa dessas danças são caipiras

brancos. E a influência do processo afro-brasileiro sobre o caipira não lhe parece possível.

“Consulta coletiva” é o termo Andrade utilizou para nomear o processo que inicia

o samba, ele a descreve da seguinte forma:

o grupo parado e sem acompanhamento instrumental, se conserta pra diante das inspirações ou relembranças de um solista, escolher a nova dança, nesses momentos de verdadeira pesquisa popular é que as criações melódicas e textuais variam mais, aparecem mais ricas, às vezes de caráter improvisatório, bem bonitas. (Andrade, 1991: 120)

Segundo Mário Wagner, esse é o momento inicial em que se tira a deixa ou pode-se

falar atirar a deixa:

bem próximo do bumbo aquele que pretende apresentar uma deixa para o samba põe-se a cantá-lo baixo. Os músicos procuram acertar pelo canto o toque de seus instrumentos. Quando o conseguem já todos estão a par da letra e da musica da nova deixa. Então as vozes se elevam, os instrumentos soam fortemente e começa a dança. (Cunha, 1937).

Uma questão interessante que Mário Wagner propõe são os desafios. Desafios no

samba e desafio de samba. No primeiro indivíduos competem por meio de verso, em um

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processo parecido com “amarrar o ponto” e “desatar o ponto” nos jongos, citados por

Mário de Andrade. “enquanto alguém não se desata o ponto, entrando com um novo canto

de resposta, o ponto permanece amarrado” (Andrade, 1991: 121). No segundo caso, dois

batalhões procuram ver qual samba é cantado e dançado por mais tempo. Mario de

Andrade não pode conhecer esse “desafio de samba”, pois não viu o encontro de grupos

de samba como Mário Wagner.

d) o processo de coleta na pesquisa

Mário de Andrade e Mário Wagner fizeram ricas descrições do que é o samba rural

paulista ou simplesmente samba. De Mário de Andrade, há algumas fotos bem

interessantes do samba no ano de 1937 e, de Mário Wagner, há algumas fotos da cidade de

Pirapora, da procissão e da porta de um batalhão amontoado de observadores do samba.

Infelizmente, não há nenhum registro sonoro ou fílmico. Nesse período o Departamento

de Cultura já havia feito gravações de manifestações folclóricas como de uma congada em

Mogi das Cruzes em 1936. Mário de Andrade já estava nessa época falando da importância

do registro mecânico e também de suas precariedades.

Há que recorrer à gravação por meios mecânicos, disco e filme. Convém, todavia, não esquecer as deficiências das insensíveis máquinas registradoras. (...) O registro não será no caso o mais importante. Será um complemento das colheitas por meios não manuais, destinado apenas a fixar o infixável por meios não mecânicos: timbre, sonoridade geral, possivelmente algumas variantes, e (filme) o aspecto geral e particularidades individualistas da coreografia. (Andrade, 1991: 119)

Mário de Andrade, como bom pesquisador musical, escrevia partituras das músicas

que colhia. “Para escrever, grafo primeiro a melodia, depois lhe ajunto o texto. Terminada a

registração comparo-a com o que estou escutando, primeiro de longe, depois de perto,

fazendo quando necessário as correções que a verdade ouvida exige”. (Andrade, 1991: 120)

Outras pesquisas e o referencial Nordestino

Em 1938, os sonhos do Departamento de Cultura foram cortados pela raiz com a

ditadura Vargas. Instaurado o Estado, Novo Mário de Andrade foi afastado do seu cargo

de chefia juntamente com a maioria de seus colaboradores. A Missão de Pesquisas

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folclóricas foi, segundo Paulo Duarte, a última ação do Departamento de Cultura. Talvez a

mais importante, ou pelo menos, a mais valorizada pelos estudiosos de Mário de Andrade.

Em fevereiro de 1938 (...) partia para o nordeste a missão organizada por Mário de Andrade com o encargo de fazer pesquisas folclóricas. Regressou em julho do mesmo ano, trazendo 179 discos de vários tamanhos, com cerca de 1.300 fonogramas e algumas melodias gravadas, além de objetos de museu película e fotografias, em conexão com o material musical colhido. (Duarte, 1985: 64)

Tinha sido criada, pelo Departamento de Cultura, a Discoteca Pública que tinha

uma grande coleção de discos à disposição do público, e tinha também o serviço de

gravações

se compunha de três ramos principais: o registro da música erudita de São Paulo, o registro do folclore musical brasileiro e o Arquivo da Palavra. (...) Os registros científicos do folclore musical brasileiro começaram-se em maio de 1937. Contavam em agosto daquele ano com 28 fonogramas, achando-se já organizada uma excursão que devia durar cinco meses ao nordeste, a região folclorística mais importante do país. (...). Os fonogramas existentes, porém incluíam já uma congada mineira, a dança de santa cruz, (...) realizada em Itaquacetuba, em maio de 1937, e várias danças e cantigas mineiras. (...) existia já o inicio da coleção de fitas documentas etnográficas sobre os Bororos e o Caduveus e mais dez outras películas sobre danças populares. (Duarte, 1985: 63-64)

Uma das poucas colaboradoras de Mário de Andrade que se manteve no novo

governo foi Oneyda Alvarenga. Sua ação dela, dentro da Discoteca Pública, foi de enorme

importância para que esse acervo fosse preservado. Todo material trazido pela missão de

1938 foi organizado por ela. Hoje a discoteca do Município chama-se Discoteca Oneyda

Alvarenga em homenagem a seu trabalho. Parte das pesquisas realizadas por Mário de

Andrade no sudeste deste período, foi organizado Oneyda no 3o tomo das Danças

Dramáticas. São estudos incompletos como a maioria de seus estudos de folclore. Florestan

Fernandes diz que Andrade tinha consciência de suas limitações, seus trabalhos

se não são rigorosamente científicos, não são obra de diletantismo. (...) Deve-se deixar claro que o abandono dos problemas teóricos, em nada invalida a sua contribuição com folclorista (...) a sua mania de fichar tudo que via, ouvia e lia talharam-no para o papel de folclorista erudito e pesquisador. (...) Do ponto de vista qualitativo, da contribuição efetiva, das sugestões que deixa e das novas pistas que abre no campo do folclore musical, a questão muda de figura. (Fernandes, 1989: 162 e 168)

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Segundo Travassos,

os trabalhos etnográficos se consumados deveriam dar conta do processo criativo do povo, como é possível suspeitar das fichas denominadas ‘Psicologia dos Cantadores’ (...). Mas os trabalhos etnográficos ficaram, em grande parte, inacabados e a descrição da criação popular esboçada em numerosos escritos. (Travassos, 1997: 157)

Das danças dramáticas colhidas no sul, há uma congada de Lindóia (SP), outra de

Mogi das Cruzes (SP), uma de Atibaia (SP) e uma de Bragança Paulista (SP). Há também

um Moçambique colhido em Santa Isabel (SP) e outro de Mogi das Cruzes (SP). Em todos

esses escritos, uma questão bem característica é o referencial nordestino. Mário observava o

folclore paulista com a cabeça no nordeste e, em quase todos os escritos, há comparações,

quase sempre, em tom depreciativo. Ele diz observar maior infixidez, maior pobreza, se no

Nordeste as festas folclóricas estavam pra ele em decadência, no sudeste a decadência era

maior ainda.

Muitas dessas pesquisas em São Paulo estavam sendo registradas em filme, por isso

também ele mesmo diz serem deficientes suas colheitas: “tudo foi colhido em momentos

fugazes, ora isto, ora aquilo. Resultou dessas circunstancias, a colheita fragmentária”

(Andrade, 1982: 201). Essas foram talvez as últimas pesquisas em campo de Mário de

Andrade. Findas as atividades do Departamento de Cultura e da Sociedade de Etnografia e

Folclore, no pouco tempo em que ainda viveu, ele tratou de sistematizar suas pesquisas

folclóricas, principalmente aquelas que realizou no nordeste brasileiro.

BIBLIOGRAFIA

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Folclore e cultura popular: as várias faces de um debate. Série Encontro e Estudos, n°

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