04 rio-mar - madeira

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O Rio Madeira, como os demais amazônicos caudais, possui um encantamento próprio, suas barrentas águas fluem céleres buscando o Rio-Mar, nas suas margens ribeirinhos hospitaleiros nos saúdam alegremente e os menos tímidos nos alcançam de voadeira convidando-nos para fazer uma breve parada para um lanche ou almoço, os enormes gigantes da floresta, tombados, são arrastados pela fria correnteza, transformando-se em verdadeiros aríetes contra os cascos das frágeis embarcações, os pequenos afluentes pululam de vida, os amigos golfinhos, volta e meia, nos acompanham por vários quilômetros, alegrando-nos e animando-nos, com suas graciosas piruetas.

Visitamos, em Porto Velho, Rondônia, as instalações do 5° Batalhão de Engenharia de Construção (5° BEC), o “Batalhão dos ermos e dos sem fim”, cujas gloriosas e heroicas páginas escritas com suor e sangue por nossos engenheiros militares, lançaram, através das rodovias pioneiras, verdadeiras artérias por onde fluía o desenvolvimento e a esperança de tantos brasileiros desassistidos pelos poderes públicos, as sementes da brasilidade aos “brasis ainda sem Brasil”. Conhecemos Hidrelétrica de Santo Antônio, modelo de organização e competência de nossos engenheiros, a Universidade de Rondônia (UNIR), a bela e progressista Porto Velho e o trabalho de restauração que está sendo feito em relação ao patrimônio histórico da Madeira-Mamoré. Pesquisamos encantados as origens de um passado heroico da construção desta ferrovia em que empresários arrojados se lançaram a um empreendimento épico enfrentando a selva, as doenças tropicais e dificuldades logísticas.

Entrevistamos, em nosso trajeto, algumas personalidades citadinas conhecidas e anônimos ribeirinhos cujas histórias de vida reportamos com muito carinho e consideração. Observamos com interesse e curiosidade o trabalho árduo dos garimpeiros, descobrimos, amargurados, a exploração irregular dos recursos naturais e nos alegramos, contrapartida, conhecendo projetos onde as ações públicas e privadas se preocupavam com a exploração sustentável dos recursos naturais.

Recorremos a autores pretéritos para reportar a história da Bacia do Madeira, prenhes de obstinação e coragem que permitiram aos nossos irmãos luso-brasileiros estender com desassombrada obstinação nossas fronteiras para muito além de antigos Tratados luso-castelhanos. Madrugando no passado, acompanhamos as páginas heroicas que nossos empreendedores e destemidos irmãos luso-brasileiros demarcaram com coragem as fronteiras do nosso Extremo Oeste, e acompanhamos sua luta pela manutenção do território materializada pela construção de fortins, fortalezas.

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Prefácio

Por Sérgio Pedrinho Minúscoli

Mais um alentado volume a abordar nossas imensas riquezas espalhadas pelo Criador em nossa terra. Tantos bens despertaram a cobiça dos outros povos. Estas riquezas estão a nosso dispor, apenas é preciso que saibamos usufruir tais benesses com sustentabilidade proporcionando benefícios aos habitantes da Amazônia e dos brasileiros em geral. Este grande tesouro foi conquistado por valorosos desbravadores que, sem medir esforços, adentraram em florestas imensas, atravessaram rios caudalosos, semearam povoações, cultura e língua que provam a conquista definitiva de um povo, de uma nação. Temos ainda um longo caminho a percorrer, muita “mata” a conquistar, muito chão a “abrasileirar”, mas a fibra mostrada por nossos antecessores é prova de que somos dignos de ser os donos deste chão. Toda essa imensa extensão, não ficará assim! A pujança, a fome de expandir logo alcançarão também aqueles rincões e logo tudo será parte integrante de um grande e progressista Brasil.

Esta conquista efetiva parece estar a se realizar com os trabalhos de um novo explorador – um Rondon moderno – um desbravador do século XXI, a fim de levar aos brasileiros o conhecimento de regiões amazônicas “desconhecidas”. Como só amamos aquilo que conhecemos, o valente e indômito engenheiro Hiram Reis e Silva mostra-nos o muito que possuímos e – também – o pouco que aproveitamos de um bem imenso, incalculável, que é a Amazônia!

Imune às dificuldades de toda a ordem que enfrentou em suas andanças por florestas e rios, brindou-nos com quatro volumosos “documentários” sobre nossas riquezas imensas e pouco exploradas.

Quem dera que imediatamente nos demos conta dos bens que estão a nosso dispor e saibamos aproveitá-los agregando-lhes valor e não só exportando-os “in natura” deixando que estrangeiros cobiçosos aufiram as vantagens inerentes a sua industrialização e depois no-los exportem a preços exorbitantes. Já aconteceu isto com a borracha, roubando-nos as sementes e matando a economia da Amazônia no século passado!

Olhares cúpidos sobre essa imensa região já foram externados pelo mundo, dando-nos como incompetentes de administrar essas terras e pleiteando que sejam internacionalizadas. Também já teriam aventado mandar para cá (Amazônia) uma “gente” com outro estofo cultural, mas a finalidade precípua seria roubar-nos a hegemonia de todos os bens que a floresta proporciona! Essas vozes estariam apregoando uma verdadeira extorsão internacional sobre um bem que é comprovadamente brasileiro.

Lastimável é que, às vezes, encontremos vozes “brasileiras” e, de certa forma, coniventes com interesses contrários as nossos! Não seria o momento de repetirmos Sepé Tiarajú com “Esta terra tem dono”?

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Que o desassombro e acendrado amor à Pátria deste valoroso engenheiro, “aventureiro desbravador” professor Hiram, do Colégio Militar de Porto Alegre, com quem tive a ventura de privar nas dependências desse modelar Educandário, demonstrem aos brasileiros o quanto temos de lutar para mais conhecer, desenvolver e usufruir de tantos bens, quase inesgotáveis de que dispomos.

Este livro, a desvendar-nos a imensa Região Norte do país, que poucos brasileiros conhecem, e que exigem denodados esforços do autor, não fique só a enfeitar prateleiras, mas seja folheado, lido, assimilado por grande númeo de leitores e reforce o amor a esta terra. Somente desta forma, creio, os suores do professor Hiram serão recompensados e dignamente reconhecidos!

Boa e proveitosa leitura.

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Agradecimentos

À Vanessa, Danielle e João Paulo, meus filhos queridos que, mesmo diante de todas as dificuldades pelas quais estamos passando com o grave problema de saúde de minha esposa inválida e consequentes dificuldades de toda ordem, sempre me apoiaram e incentivaram;

Ao meu irmão caçula, engenheiro Carlos Henrique Reis e Silva, amigo de todas as horas, o apoio irrestrito e oportuno à minha família;

Ao querido amigo e Ir:. Coronel Leonardo Roberto Carvalho de Araújo, esteio fundamental na divulgação do Projeto e conselheiro, criterioso, das minhas entrevistas e artigos;

Ao Professor Sérgio Pedrinho Minúscoli, do Colégio Militar de Porto Alegre, que nos auxiliou, na revisão deste livro e a companheira Rosângela Maria de Vargas Schardosim, de Bagé que, incansavelmente, contribuiu nas pesquisas, sugestões, divulgação de artigos relativos ao Projeto-aventura e a questões amazônicas em diversos periódicos nacionais, além de me assessorar no planejamento e coordenação da captação de recursos;

Aos amigos da Polícia Militar do Estado do Amazonas e do Pará, em especial a seus Comandantes Coronel Almir David e Daniel Borges Mendes que colocaram pessoal e viaturas à nossa disposição;

Ao amigo Marcelo Fichtner, proprietário do “Parque Fazenda Itaponã”, Guaíba, RS, e seu fiel escudeiro Juarez Boneberg que permitiram que usasse sua belíssima propriedade como ponto de parada nas minhas infindas remadas;

E a todos os que, de uma forma ou de outra me apoiaram antes, durante ou mesmo depois da execução do empreendimento. Estejam certos de que sua contribuição foi um patriótico investimento.

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Amigos Investidores

Bons Amigos (Machado de Assis)

Abençoados os que possuem amigos, os que os têm sem pedir.

Porque amigo não se pede, não se compra, nem se vende.

Amigo a gente sente!

Benditos os que sofrem por amigos, os que falam com o olhar.

Porque amigo não se cala, não questiona, nem se rende.

Amigo a gente entende!

Benditos os que guardam amigos, os que entregam o ombro pra chorar.

Porque amigo sofre e chora.

Amigo não tem hora pra consolar!

Benditos sejam os amigos que acreditam na tua verdade ou te apontam a realidade.

Porque amigo é a direção.

Amigo é a base quando falta o chão!

Benditos sejam todos os amigos de raízes, verdadeiros.

Porque amigos são herdeiros da real sagacidade.

Ter amigos é a melhor cumplicidade!

Há pessoas que choram por saber que as rosas têm espinho,

Há outras que sorriem por saber que os espinhos têm rosas!

Mais uma vez só conseguimos levar adiante nosso desiderato graças ao apoio de amigos. Alguns poucos nos apoiam fielmente, desde 2008, quando iniciamos nossos amazônicos desafios, outros foram gradualmente aderindo ao projeto ao longo dos anos e hoje somos uma companhia de patriotas a navegar pelas terras e águas procelosas dos imensos caudais. Agradeço, sinceramente, a cada um de vocês que tornou possível mais esta jornada capaz, foram 2.000 quilômetros de muita dedicação, esforço e aprendizado que procuraremos reportar nas páginas que se seguem.

Investidores: A.D.T., Adão Maciel, Ademir Bisotto, Aderbal D. Tortato, Adriano Pires Ribas, AHIMTB, Alberto Moreira, Alberto Mota Porto Alegre, Alfredo José Coelho dos Santos, Altino Berthier Brasil, Álvaro Nereu Klaus Calazans, Álvaro Pereira, Aman — Tu 75, Amarcy de Castro e Araujo, Américo Adnauer Heckert, Ana Elizabeth Noll Prudente, André Luiz Oliveira Conceição, André Tiago S., Antônio de Pádua Sousa Lopes, Antônio Fernando Rosa Dini, Antônio Loureiro, Arnalberto Jacques Nunes Seixas, Batalhão de Engenheiros — Província de São Pedro, Cacinaldo Gomes Kobayashi, Carlos Alberto Da Cás, Carlos H. Furlan, Carlos Henrique Reis e Silva, Carlos Humberto Furlan, Carlos Vilmar, Centro de Estudos Themas, Cesar Eduardo Pintos Trindade, Cícero Novo Fornari, Círculo Militar de Campinas, Clayton Barroso Colvello, Cristian Mairesse Cavalheiro, Daniel Luís Costa Scherer, David Daniel C. Prado, David Waisman, Décio José Dias, Deoclécio José de Souza, Edison Bittencourt, Edmir Mármora Jr., Eduardo de Moura Gomes, Eduíno Carlos Barboza, Elias dos Santos Cavalcante, Elieser Girão Monteiro Filho, Eneida Aparecida Mader, Eneida Mader, Enzo PI, Ernesto Jorge Alvorcem Neto, Everton Marc, Félix Maier, Floriano Gonçalves Filho, Francisco B. C., Gelio Augusto Barbosa Fregapani, Geraldo de Souza Romano, Gerson Batistella (Rotary Barril), Getulio de Souza Neiva, Gilberto Machado da Rosa, Gisele Pandolfo Braga, Glaucir Lopes, Helio M. Mello,

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Hiram de Freitas Câmara, Humberto R. Sodré, João Batista Carneiro Borges, Johnson Bertolucci, Jorge Alberto Barreto, Jorge Alberto Forrer Garcia, Jorge Luiz Ribeiro Morales, Jorge Mello, José de Araujo Madeiro, José Luiz Dalla Vechia, José Luiz Poncio Tristão, Leandro Enor Danelus, Leonardo Roberto Carvalho de Araújo, Levy Paulo da Silva Falcão, Luciano Martins Tavares, Luciano S. Campos, Lúcio Batista Guaraldi Ebling, Luís Andreoli, Luiz A. Oliveira, Luiz C. N. Bueno, Luiz Caramurú Xavier, Luiz Carlos Bado Bittencourt, Luiz Carlos Nunes Bueno, Luiz Ernani Caminha Giorgis, Luiz Roberto Dias Nunes, Luiz Roberto J., Mães da AACV (CMPA), Magnus Bertoglio, Manoel Soriano Neto, Marcelo Agusto S. Barros, Marco A. Dias P., Marco Antônio Andrés Pascual, Marcos Coimbra, Marcus Antônio Balbi, Maria de Vargas Schardosim, Maria Helena Gravina, Milton B. Viana, Moacir Barbosa, Olavo Montauri Silva Severo Jr., Osmarino Borges, Patrícia Buche, Paulo Augusto Lacaz, Paulo Emílio Silva, Paulo Ricardo Chies, Pedro Arnóbio de Medeiros, Pedro da Veiga, Pedro Eduardo Paes de Almeida, Pedro Fernando Malta, Petrônio Maia Vieira do Nascimento e Sá, R.S.F., Renato Dias da Costa Aita, Renato Dutra de Oliveira, Renato Pozolo, Rogério Amaro, Rogério João Baggio, Rogério Oliveira da Cunha, Roner Guerra Fabris, Rosângela Maria de Vargas Schardosim, Sérgio Tavares Ventura, Sidney Charles Day, Stelson Santos Ponce de Azevedo, Tibério Kimmel de Macedo, Tullio Enzo Perozzi, Turma 82 (Eng-AMAN), Turma C Infor Nr 3 (atual 1ª CTA), Uirassú Litwinski Gonçalves, Valmir Fonseca Azevedo Pereira, Venesiano de Brito Almeida, Virgílio Ribeiro Muxfeldt, Vitor Mário Scipioni Chiesa.

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Mensagens

Professor Luiz Carlos Bado Bittencourt

Caro amigo Hiram,

Parabéns pela perseverança, nesta missão auto-atribuída, de “mostrar” a Amazônia aos brasileiros.

Para navegar, nas condições e com a frequência com que fazes, não basta ser forte fisicamente. É necessário ter uma vontade inabalável! Imagino que algumas pessoas possam te comparar com o genial personagem de Cervantes, Don Quijote de la Mancha, nesta luta, pessoal, desigual, que travas com a imensidão da Amazônia, tentando fazê-la mais conhecida entre nós brasileiros de todos os quadrantes. Havendo essa comparação, perdoa-os, não sabem o que fazem!

Temos urgência que ELA seja “nossa”, penetre em nossas mentes e corações, seja nossa “amiga”, familiar, íntima. A Amazônia é única, em nosso planeta! E, olhos cúpidos a observam, muitos, com propósitos inconfessáveis!

É premente que se compreenda essa tua determinação de nos mostrar que nos observam, não moinhos de vento, obsoletos, estáticos, históricos. Há pouco tempo, para que nós “decifremos” o destino da Amazônia e para que ela não seja devorada.

Acorda, Brasil!

Saúde, amigo!

Abraços Bittencourt.

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Bom dia, Irmão,

Acabei de ler, com calma, sua postagem bem denominada de Amigos...

Uma curiosidade! Esse General Tibério é irmão do Waldstein Iran Kümmel? A quem conheço e devo alguns conselhos e orientações, quando servimos no (CBas AMAN). Eu, Ten; ele Cap, respectivamente Adjunto e S4 do CBas. Hiram: lendo-te, creio que tua alma aventureira inclina-se para roçar a poesia, natural, como as capivaras do Camaquã, a vegetação, ora verde, ora queimada pelo frio e aquelas rochas, das margens, cheias de mensagens de um passado longínquo e com máscaras antropomórficas, lembrando o teatro ancestral de Atenas. No mais, a correção do texto torna-o robusto, mas agradável a uma excelente leitura!

Vou fazer ALTO! Sei de teus afazeres e não roubarei tempo precioso.

Saúde e alegria!

Abraços Bittencourt

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Mestre João Silveira Machado

Lutador incansável, guerreiro, explorando água, selvas, conhecendo sítios, descobrindo gente, guerreiro, imperador conquistando créditos, vencedor, amigo dos amigos em destemido vigor.

Sem armas, sem munição, sem cavalaria, sem tanques, sem nada, mas com tudo e a coragem de vencedor, avança passo a passo rasgando fronteiras pela única arma que um homem de bem pode carregar: o argumento, a língua que fala, esta segunda pele que nos envolve e desenvolve, mostrando-nos momentos heroicos na simplicidade dos contatos com nativos, civilizados e incivilizados homens que povoam nossa terra, nossas águas, nossas matas, dentro da demarcação territorial.

Sem menosprezar seus colegas de todas as armas, sua atividade patriótica perpassa as fronteiras do heroísmo indo além do esperado. Distante da acomodação e da ataraxia na imperturbabilidade esperando promoção, este militar austero se joga no mundo do desconhecido na busca do esclarecimento, da informação, do reconhecimento, visualizando aquilo que nós desconhecemos e sequer imaginamos, quando nem os livros didáticos nos mostram a riqueza dos detalhes que só um aventureiro astuto consegue fisgar e sabe mostrar.

Se todos os homens da sua envergadura corajosa tivessem a mesma iniciativa, nosso continente teria outra demarcação no que concerne a território, povos, hábitos e costumes, cultura e destino e, historicamente, nossa sociedade teria outra visibilidade internacional isenta de tantas iatrogenias.

Só o exemplo do desbravamento destemido e desassombrado, regrado à coragem e ao discernimento, já é um ato de heroísmo com direito à medalha exposta e merecida de herói marechal sem guerras.

Permita-me chamá-lo de Hiram Reis e Silva, o Marechal da Paz.

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Homenagem Especial

A descida nesta 4ª Fase do Projeto Aventura Desafiando o Rio-Mar, pelos Rios Madeira e Amazonas, homenageia o querido Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA), Colégio dos Presidentes, o nosso Velho Casarão da Várzea que comemora, em 2012, o seu Centenário. Um Colégio que faz parte de um Sistema de Ensino que serve de modelo em um país onde a educação não recebe a devida consideração por parte do poder público.

Este preito ao CMPA é também um tributo ao meu pai Cassiano Reis e Silva, meus dois irmãos Luiz Carlos Reis e Silva e Carlos Henrique Reis e Silva e meus três filhos Vanessa Mota Reis e Silva, Danielle Mota Reis e Silva e João Paulo Reis e Silva que tiveram a grata honra e o privilégio de transitar, como alunos, as centenárias e tradicionais arcadas do Velho Casarão da Várzea, modelar estabelecimento de ensino do nosso querido Brasil.

A proposta pedagógica do Sistema Colégio Militar do Brasil (SCMB) tem, como meta principal, proporcionar uma educação integral que ofereça aos jovens a formação necessária ao desenvolvimento de suas potencialidades como elemento de autorrealização, qualificação para o trabalho e preparo para o exercício consciente da vida de cidadão brasileiro.

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Sumário

Prefácio ............................................................................................... 3

Agradecimentos ................................................................................... 5

Amigos Investidores ............................................................................. 7

Mensagens .......................................................................................... 9

Homenagem Especial .......................................................................... 11

Sumário ............................................................................................ 13

Colégio Militar de Porto Alegre.............................................................. 17

Travessia da Laguna dos Patos – Margem Oriental .................................. 25

Laguna dos “Patos” ............................................................................. 41

O Suor Poupa o Sangue! ..................................................................... 55

Nas Águas da Família Schiefelbein ........................................................ 63

Travessia da Laguna dos Patos – Margem Ocidental ................................ 65

O Resgate do Bravo Anaico .................................................................. 97

A Magia do Camaquã ........................................................................ 101

Rio Madeira ..................................................................................... 105

“Bandeira” de Francisco de Mello Palheta ............................................. 139

Viagem da “Real Escolta” ................................................................... 159

Viagem ao Redor do Brasil (1875 – 1878) ........................................... 207

Desbravadores dos “Ermos e dos Sem Fim” ......................................... 253

Os Corsários Franceses no Brasil ........................................................ 275

Real Forte do Príncipe da Beira ........................................................... 309

Madeira-Mamoré - Ferrovia do Diabo .................................................. 363

Rumo a Porto Velho, RO .................................................................... 409

Porto Velho, RO ................................................................................ 411

Sargento Áureo ................................................................................ 415

Hidrelétricas do Rio Madeira ............................................................... 421

Partida para Humaitá, AM .................................................................. 433

Humaitá - Manicoré .......................................................................... 441

Estada em Manicoré, AM ................................................................... 449

Município de Manicoré, AM ................................................................. 453

TG 12-002 de Manicoré, AM, um Paradigma ......................................... 457

COVEMA .......................................................................................... 459

Rumo a Nova Aripuanã, AM ............................................................... 467

Município de Nova Aripuanã, AM ......................................................... 471

Golfinhos Mágicos da Amazônia .......................................................... 475

Rumo a Borba .................................................................................. 479

Município de Borba, AM ..................................................................... 481

Partida para Nova Olinda do Norte, AM ................................................ 487

Município de Nova Olinda do Norte, AM ............................................... 489

Rumo a Foz do Rio Madeira ................................................................ 493

A Amazônia para os Negros Americanos .............................................. 495

A Corrida do Ouro no Rio Madeira ....................................................... 499

Manaus/Itacoatiara ........................................................................... 505

Itacoatiara/Parintins ......................................................................... 509

Questões de Fronteira Amazonas/Pará ................................................ 517

Parintins/Oriximiná ........................................................................... 529

Energia Amazônica ........................................................................... 533

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Oriximiná/Óbidos/Santarém ............................................................... 537

Santarém e a Volta à Realidade ......................................................... 543

Treinando para Travessia da Laguna dos Patos .................................... 549

Travessia da Laguna dos Patos - Uma Ode ao CMPA ............................. 555

Bibliografia ...................................................................................... 569

Fotos

Figura 01 – Margem Oriental da Laguna dos Patos – Bojuru – RS ............. 57

Figura 02 – Laguna dos Patos – Bojuru – RS .......................................... 57

Figura 03 – Laguna dos Patos – Trilhas Criminosas em Bojuru – RS .......... 58

Figura 04 – Laguna dos Patos – Farol de Bojuru – RS ............................. 58

Figura 05 – Laguna dos Patos – Bojuru – RS .......................................... 59

Figura 06 – Laguna dos Patos – Bojuru – RS .......................................... 59

Figura 07 – Laguna dos Patos – Bojuru – RS .......................................... 60

Figura 08 – Laguna dos Patos – Bojuru – RS .......................................... 60

Figura 09 – Laguna dos Patos – Bojuru – RS .......................................... 61

Figura 10 – Tatielly, Autor e Zé do Dedé – Com. do Estreito – RS ............. 61

Mapa 1: Travessia da Laguna dos Patos – Margem Oriental. .................... 62

Figura 11 – Tarrã - Granja do Valente – Bagé – RS ................................. 89

Figura 12 – Ninho de João Grande – Granja do Valente – Bagé – RS ......... 89

Figura 13 – Ovo de João Grande – Granja do Valente – Bagé – RS ........... 90

Figura 14 – Ninhal de Maguaris – Granja do Valente – Bagé – RS ............. 90

Figura 15 – Ponta da Feitoria – Pelotas – RS .......................................... 91

Figura 16 – Ponta da Feitoria – Pelotas – RS .......................................... 91

Figura 17 – Casarão da Soteia – Ponta da Feitoria – Pelotas – RS ............. 92

Figura 18 – Casarão da Soteia – Ponta da Feitoria – Pelotas – RS ............. 92

Figura 19 – Flor da Praia – Arambaré – RS ............................................ 93

Figura 20 – Antigo Engenho da Família Cibils – Arambaré – RS ................ 93

Figura 21 – Banco da Dona Maria – RS ................................................. 94

Figura 22 – Tapes – RS ....................................................................... 94

Figura 23 – Costa de Santo Antônio – Barra do Ribeiro – RS .................... 95

Figura 24 – Costa de Santo Antônio – Barra do Ribeiro – RS .................... 95

Mapa 2: Travesia da Laguna dos Patos – Margem Ocidental ..................... 96

Figura 25 – Canoa – Franz Keller ........................................................ 136

Figura 26 – Salto Teotônio (Franz Keller)............................................. 145

Figura 27 – Caldeirão do Inferno (Franz Keller) .................................... 146

Figura 28 – Carta Hidrográfica de José Gonçalves da Fonseca ................ 162

Figura 29 – Descida das Cachoeiras (Fonseca) ..................................... 219

Figura 30 – Guajará-mirim (Fonseca - Google) ..................................... 220

Figura 31 – Guajará-açu (Fonseca - Google) ........................................ 222

Figura 32 – Cabeça Bananeiras (Fonseca - Google)............................... 223

Figura 33 – Cauda Bananeiras (Fonseca - Google) ................................ 224

Figura 34 – Pau Grande (Fonseca - Google) ......................................... 225

Figura 35 – Laje (Fonseca - Google) ................................................... 226

Figura 36 – Madeira (Fonseca - Google) .............................................. 231

Figura 37 – Misericórdia e Ribeirão (Google) ........................................ 233

Figura 38 – Araras (Fonseca - Google) ................................................ 235

Figura 39 – Pederneiras (Fonseca - Google) ......................................... 236

Figura 40 – Paredão (Fonseca - Google) .............................................. 237

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Figura 41 – Três Irmãos (Google) ....................................................... 238

Figura 42 – Jirau (Fonseca - Google) ................................................... 240

Figura 43 – Varadouro do Salto do Jirau (Fonseca) ............................... 241

Figura 44 – Caldeirão do Inferno (Fonseca - Google) ............................. 242

Figura 45 – Franz Keller – Cachoeira do Ribeirão .................................. 244

Figura 46 – Morrinhos (Fonseca - Google) ........................................... 246

Figura 47 – Teotônio (Fonseca - Google) ............................................. 247

Figura 48 – Sirga dos Macacos (Google) .............................................. 248

Figura 49 – S. Antônio (Fonseca - Google) ........................................... 249

Figura 50 – Cachoeiras do Rio Madeira (Autor) ..................................... 251

Figura 51 – Pedras Negras (Fonseca) .................................................. 319

Figura 52 – Fortaleza N. Sª. da Conceição (DGS/5ª DL, RJ) ................... 322

Figura 53 – Forte Príncipe da Beira (Mapoteca Itamaraty) ...................... 338

Figura 54 – Forte Príncipe da Beira (IHGB, RJ) ..................................... 346

Figura 55 – Forte Príncipe da Beira (Google) ........................................ 361

Figura 56 – Parque Memorial Madeira Mamoré – Porto Velho – RO .......... 427

Figura 57 – Parque Memorial Madeira Mamoré – Porto Velho – RO .......... 427

Figura 58 – Praça Caixas D’água – Porto Velho – RO ............................. 428

Figura 59 – Ponte BR 319 – Porto Velho – RO ...................................... 428

Figura 60 – Tribunal de Justiça – Porto Velho – RO .............................. 429

Figura 61 – Visita Sede Eletronorte – Porto Velho – RO ......................... 429

Figura 62 – Hidrelétrica de Santo Antônio – Porto Velho – RO ................ 430

Figura 63 – Hidrelétrica de Santo Antônio – Porto Velho – RO ................ 430

Figura 64 – Hidrelétrica de Santo Antônio – Porto Velho – RO ................ 431

Figura 65 – Entrevista à Rede TV – Porto Velho – RO ............................ 431

Mapa 3: Porto Velho – Humaitá .......................................................... 432

Figura 66 – João Paulo e os Garimpos do Rio Madeira – RO ................... 437

Figura 67 – João Paulo na Foz do Rio Jamari – RO ................................ 437

Figura 68 – Comunidade Boa Hora – RO .............................................. 438

Figura 69 – Lago de Santo Antônio – AM ............................................. 438

Figura 70 – Flutuante na Boca do Cará – AM ........................................ 439

Figura 71 – João Paulo e o B/M Piquiatuba – AM ................................... 439

Mapa 4: Humaitá – Boca do Cará ....................................................... 440

Figura 72 – O Autor e João Paulo no Rio Madeira – AM .......................... 461

Figura 73 – Igreja de Santo Antônio – Borba – AM ................................ 461

Figura 74 – Iguana – Borba – AM ....................................................... 462

Figura 75 – Balsa Boiadeira subindo o Rio Amazonas – AM .................... 462

Figura 76 – Igarapé N. Sª. das Graças (cheia) – Itacoatiara – AM ........... 463

Figura 77 – Itacoatiara – AM .............................................................. 463

Mapa 5: Boca do Cará – Nova Aripuanã ............................................... 464

Mapa 6: Nova Aripuanã – Nova Olinda do Norte ................................... 465

Mapa 7: Nova Olinda do Norte – Manaus – Foz do Ramos ...................... 466

Figura 78 – Dupla nas águas de Parintins – AM .................................... 523

Figura 79 – Ilha do Padre – Parintins – AM .......................................... 523

Figura 80 – Ninho de Jaçanã – Parintins – AM ...................................... 524

Figura 81 – Sd Mário abastecendo-nos com suco – AM/PA ..................... 524

Figura 82 – Passeio no Rio Cuminá – PA .............................................. 525

Figura 83 – Óbidos – PA .................................................................... 525

Figura 84 – Óbidos – PA .................................................................... 526

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Figura 85 – Argonautas e Equipe de Apoio – Santarém – PA .................. 526

Mapa 8: Ponta Grossa – Óbidos .......................................................... 527

Mapa 9: Óbidos – Santarém .............................................................. 528

Figura 86 – Ponta da Feitoria – Pelotas – RS ........................................ 565

Figura 87 – Equipe de Apoio – Arroio Grande – RS ............................... 565

Figura 88 – Boqueirão – São Lourenço – RS ........................................ 566

Figura 89 – São Lourenço – RS .......................................................... 566

Figura 90 – Fazenda do Sobrado – São Lourenço – RS .......................... 567

Figura 91 – Monumentos Arbóreos – Arambaré – RS ............................ 567

Figura 92 – Ponta da Formiga – Barra do Ribeiro – RS .......................... 568

Figura 93 – Ponta da Faxina – Barra do Ribeiro – RS ............................ 568

Poesias

Da Noite do Rio .................................................................................. 64

As Barrancas ..................................................................................... 88

Alma de Marujo ................................................................................ 100

Luar amazônico ................................................................................ 104

O Sermão da selva ........................................................................... 158

Velho tronco .................................................................................... 252

Caminhos de Rio .............................................................................. 274

Águas puras... águas barrentas... ....................................................... 408

O Mar ............................................................................................. 420

O Gigante de Pedra .......................................................................... 426

Os Lusíadas ..................................................................................... 436

Últimos Momentos de D. Quixote ........................................................ 448

Marinha........................................................................................... 456

Depois do sol... ................................................................................ 470

Indômitus ........................................................................................ 474

Canção do exílio ............................................................................... 492

As duas Ilhas ................................................................................... 504

Quando eu Morrer ............................................................................ 508

Aves de arribação ............................................................................. 516

Soldado .......................................................................................... 532

Marinha........................................................................................... 536

O Mar ............................................................................................. 542

O Mar, a Escada e o Homem .............................................................. 554

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Colégio Militar de Porto Alegre

Solicitei ao meu grande amigo e Ir:. Coronel Leonardo Roberto Carvalho de Araújo que nos brindasse com uma síntese histórica do melhor educandário do Rio Grande do Sul e um dos mais destacados de todo o Brasil.

O Mano Araújo, além de ser o mais credenciado Historiador do CMPA, desempenha as funções de Coordenador do Museu Casarão da Várzea, Chefe do Projeto de Potencialização e Enriquecimento (PROPEN) e Oficial de Comunicação Social.

Síntese Histórica

O Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA) foi criado pelo Decreto n° 9.397, de 28 de fevereiro de 1912, sendo Presidente da República o Marechal Hermes Rodrigues da Fonseca, e Ministro da Guerra o General-de-Divisão Adolfo da Fontoura Menna Barreto. Seu aniversário é comemorado em 22 de março, data em que aconteceu a primeira aula.

O portentoso prédio em que funciona faz parte do patrimônio histórico da cidade de Porto Alegre desde sua fundação em 1872. A bela arquitetura que o caracteriza, onde predomina o estilo neoclássico, mudou a “fisionomia” da várzea onde foi construído, criando um espaço onde questões ligadas ao ensino e à vida da cidade, do Estado e do Brasil foram intensamente vividas por aqueles que circulavam pelas arcadas do “Velho Casarão da Várzea”. Constituído, inicialmente, de um quadrilátero térreo e cinco “castelos” de dois pisos, o prédio foi aumentado de um piso em três fases distintas: 1914/15, 1936/37 e 1969/70. As estátuas de Marte/Ares (deus da guerra) e Minerva/Atena (deusa guerreira da sabedoria), existentes no seu frontispício, são as maiores estátuas de adorno de Porto Alegre e foram colocadas quando da primeira ampliação em 1914/15.

O torreão existente sobre o Salão Nobre do CMPA é chamado de torre-lanterna, ou simplesmente de lanterna, tendo sido colocado para simbolizar “a lanterna do saber com que os antigos Mestres conduziam seus discípulos pelas trevas da ignorância”. A iluminação colocada em fins de 2006, ressaltando a lanterna, os deuses e a Bandeira Nacional, tornou-se um espetáculo noturno na cidade.

Várias instituições de ensino funcionaram no edifício da atual Avenida José Bonifácio: a Escola Militar da Província do RS (1883-88), a Escola Militar do Rio Grande do Sul (1889-1898), a Escola Preparatória e de Táctica (1898 e 1903-05), a Escola de Guerra (1906-11), o Colégio Militar de Porto Alegre (1912-1938), a Escola Preparatória de Porto Alegre (1939-61) e, novamente, o Colégio Militar de Porto Alegre, desde 1962.

É necessário esclarecer que as origens da Escola Militar remontam ao ano de 1851, quando foi criado o Curso de Infantaria e Cavalaria da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul. Esta escola passou por várias denominações e sedes provisórias, até se fixar no local então conhecido como Várzea, Campos da Várzea, Várzea do Portão ou Potreiro da Várzea.

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Durante essas várias fases, a contribuição de alunos e professores à comunidade Rio-grandense foi intensa. Dos primórdios da antiga Escola Militar até o ano de 1911, pode-se destacar a atuação de várias personagens dessa instituição nas mais diferentes áreas.

Nas décadas de 70 e 80 do Século XIX, alunos, professores e instrutores da Escola Militar, direta ou indiretamente tiveram participação ativa em questões ligadas à abolição da escravatura e à proclamação da República. Entre estes, mencionam-se os então Mal. José Antônio Corrêa da Câmara (redator da Lei Áurea), Cel. Fernando Setembrino de Carvalho, Cel. José Simeão de Oliveira, Cel. Dionísio Evangelista de Castro Cerqueira, Ten. Cel. Joaquim de Salles Torres Homem, Maj. Ernesto Augusto da Cunha Mattos, Maj. Frederico Sólon de Sampaio Ribeiro e Cap. Adolfo da Fontoura Menna Barreto.

Professores da Escola Militar como Antônio Augusto de Arruda, Henrique Martins e Lannes de Lima Costa foram precursores na publicação de livros didáticos de suas disciplinas, na década de oitenta do século XIX.

Também na área da educação, é impossível deixar de mencionar a relevante atuação do Capitão João José Pereira Parobé, professor da Escola Militar do RS. Além de ter sido Deputado Estadual e Secretário de Obras do RS, esteve diretamente ligado à fundação da Escola de Engenharia em 1896, precursora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), onde foi diretor por dezessete anos. O Cap. Parobé também foi o fundador do Colégio Júlio de Castilhos, da escola técnica que hoje leva seu nome e de vários dos institutos da atual UFRGS. Por sua enorme colaboração para a educação do Rio Grande do Sul, o Cap Parobé constitui-se no maior expoente gaúcho nessa área. Da Escola Militar do RS também saíram, em 1896, os cinco tenentes professores que fundaram a Escola de Engenharia. De maneira semelhante, o primeiro reitor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) (anteriormente também reitor da UFRGS), Armando Pereira da Câmara, foi aluno do CMPA.

Ainda no campo da Educação, é lícito ressaltar que a Escola Militar foi o primeiro curso de ensino superior do Estado e que contribui de forma decisiva, através de seus fundadores e primeiros professores, para a criação e a evolução da UFRGS.

Nos campos do tradicionalismo e da etnografia, é notória a participação do Major João Cezimbra Jacques, instrutor da Escola Militar, idealizador e fundador do Grêmio Gaúcho em 1898, primeira entidade destinada ao estudo e ao culto das tradições Rio-grandenses, motivo pelo qual foi consagrado como Patrono do Tradicionalismo Gaúcho. Cezimbra Jacques, autor de dezesseis livros que variaram entre a etnografia, antropologia, política e linguística, produziu, ainda em 1883, a obra “Ensaio sobre os Costumes do Rio Grande do Sul”, estudo pioneiro sobre o assunto e base fundamental para aqueles que se dedicam a hoje estudar e pesquisar a etnografia gaúcha. É com orgulho, pois, que o Casarão da Várzea reivindica ser o berço do Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG). Para continuar o culto às tradições gaúchas e honrar a memória do Major João Cezimbra Jacques, em 1985, sob a inspiração do então Capitão e tradicionalista Ivo Benfatto, foi fundado o CTG Potreiro da Várzea.

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Também deve ser lembrado o 1° Tenente Otávio Francisco da Rocha, outro aluno e professor da Escola Militar que se destacou na administração pública como intendente de Porto Alegre, sendo dele os primeiros trabalhos de urbanização do Parque Farroupilha.

Pelas centenárias arcadas do Velho Casarão da Várzea transitaram, como alunos, oficiais ou praças, oito presidentes da República (João de Deus Menna Barreto, Getúlio Dornelles Vargas, Eurico Gaspar Dutra, Humberto de Alencar Castelo Branco, Arthur da Costa e Silva, Emílio Garrastazu Médici, Ernesto Geisel e João Baptista de Oliveira Figueiredo), o que o fez ser alcunhado como “Colégio dos Presidentes”, além de um Primeiro-Ministro (Francisco de Paula Brochado da Rocha), um Vice-Presidente (Adalberto Pereira dos Santos), vários heróis militares brasileiros (Marechal Câmara, Coronel Plácido de Castro, Marechal Mascarenhas de Morais, General Góes Monteiro, Marechal João N. M. Mallet e outros), vários Ministros, Governadores e ocupantes de outros altos cargos políticos, um elevado número de Oficiais-generais e outros militares de destaque, eminências da vida civil em todos os campos do conhecimento, como o poeta Mário Quintana, o artista plástico Vasco Prado, o escritor e advogado Darcy Pereira de Azambuja, os ex-reitores da UFRGS Armando Pereira da Câmara e José Carlos Ferraz Hennemann, o Presidente da Intel/Brasil Oscar Vaz Clarke e o Vice-Presidente mundial do Google Nélson Mendonça Mattos, além de outras destacadas personalidades que podem ser vistas no link “ex-integrantes ilustres”.

É relevante ressaltar que a primeira publicação das poesias de Mário Quintana e das gravuras de Vasco Prado foi feita nas páginas da Revista Hyloea, em 1922 e 1933, respectivamente. A Hyloea - Revista Literária fundada em 1922 pelos alunos integrantes da então Sociedade Cívica e Literária - é até hoje publicada pelo CMPA.

Foi igualmente importante a contribuição da Escola Militar na vida cultural da cidade, por intermédio da circulação de revistas e pequenos jornais de estudantes, como “A Luz”, “Ocidente”, “A Cruzada” e, a mais importante delas, a “Hyloea” (ou Hiléia).

Além de estar vinculado umbilicalmente à fundação da UFRGS e do culto às tradições gaúchas, o Casarão da Várzea tem seu nome ligado também ao nascimento do futebol e do ensino esportivo no Rio Grande do Sul. Em 1910, quando da criação da Liga de Futebol de Porto Alegre, o primeiro campeão da cidade foi o “Militar Foot Ball Club”, time dos alunos da Escola de Guerra, então sediada no Casarão da Várzea. Foi contra este mesmo time que o Sport Club Internacional obteve sua primeira vitória em 1909. Extinto em 1913, os jogadores do Militar foram ajudar a fundar o Esporte Clube Cruzeiro. Este clube foi campeão da cidade em 1918, 1921 e 1929 (quando obteve também seu único título gaúcho, jogando com um time misto, composto por alunos da UFRGS e do CMPA).

O Estádio Ramiro Souto, hoje situado no lado Norte do Parque Farroupilha, foi construído em 1936 pelo CMPA, aproveitando instalações da Exposição Farroupilha de 1935. Esse estádio, com capacidade para cinco mil pessoas sentadas, era considerado o maior do RS e se situava onde está hoje o Monumento à Força Expedicionária Brasileira, dispondo inclusive de piscina para natação (atual Lago retangular).

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Ainda no campo esportivo, já na década de 40, o Capitão Olavo Amaro da Silveira, instrutor da Escola Preparatória de Cadetes, junto com outros oficiais e civis, fundava a entidade que é hoje a Escola de Educação Física da UFRGS, tornando-se seu primeiro diretor.

Outro fato que o distingue pelo pioneirismo educacional no Estado é o de, entre 1915 - ano em que a primeira turma de alunos se formou - e 1938 – quando foi transformado em Escola Preparatória de Cadetes – seus formandos receberem também o diploma de “Agrimensor”, já saindo com uma profissão definida. Assim, o CMPA antecipou-se em mais de meio século à introdução do ensino profissionalizante na educação básica do Estado.

Atualidade

Atualmente, o CMPA é a única escola de educação básica do País a possuir um observatório astronômico (Observatório Capitão Parobé) dotado de um telescópio robótico de última geração. Construído em 2002, através de um convênio com a UFRGS, a USP e a Fundação Vitae, o observatório se destina a um ambicioso projeto multidisciplinar nacional que tem na Astronomia o mote para o estímulo ao aprendizado das Ciências, da História, da Geografia e das Artes.

Nas férias de verão de 2002 e nas de 2003, através de um convênio com a 1ª DL e com a UFRGS, os alunos do Projeto de Potencialização e Enriquecimento (PROPEN), em iniciativa pioneira no Sistema Colégio Militar do Brasil, (SCMB), realizaram um curso e estágio remunerado na 1ª Divisão de Levantamento, o qual lhes proporcionou um certificado de extensão universitária em Geoprocessamento para Sistemas de Informação Geográfica expedido pela UFRGS, habilitando-os a uma nova profissão.

Dois de seus alunos classificaram-se para representar o Brasil na VII Olimpíada Internacional de Astronomia (VIII OIA), realizada na Rússia em 2002, repetindo o feito em 2005, com um aluno participando da X Olimpíada Internacional de Astronomia, realizada em Pequim, na China. Em 2008, novamente dois alunos foram selecionados, um para a 2ª Olimpíada Internacional de Astronomia, em Trieste – Itália, e outro para a Olimpíada Internacional de Astronomia e Astrofísica em Bandung – Indonésia. Em 2009, um aluno foi selecionado como um dos cinco brasileiros a compor a equipe olímpica que disputou a 3ª Olimpíada Internacional de Astronomia e Astrofísica, realizada Teerã, no Irã.

O CMPA teve os únicos alunos gaúchos selecionados para cursarem a Escola do Espaço em 2001, a Escola Avançada de Física em 2003, a 1ª, a 3ª e a 5ª edições da Jornada Espacial em 2005, 2007 e 2009, todas no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE).

Desde 2007, em iniciativa pioneira, o Clube de Química desenvolve o Projeto Biodiesel, o qual visa produzir biodiesel a partir da utilização do óleo de cozinha que foi utilizado no preparo das refeições. Em 2008, foi comprovada a viabilidade do combustível através de um teste de campo realizado com um trator agrícola e com um caminhão do Exército.

Seus formandos têm o mais alto índice percentual de aprovação no vestibular da UFRGS entre as escolas gaúchas (42% em 2005, 44% em

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2006, 44,79% em 2007, 61,11% em 2008, 48,70% em 2009 e 57,45% em 2010).

Há vários anos, é uma das poucas escolas gaúchas a aprovar alunos para o Instituto Militar de Engenharia (IME), para o Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA), para a Academia da Força Aérea (AFA) e para a Escola de Formação de Oficiais da Marinha Mercante (EFOMM).

Do “Colégio dos Presidentes” saíram as únicas duas gaúchas selecionadas para integrar as respectivas turmas pioneiras de mulheres da Aeronáutica: uma em 1996, para a Intendência da FAB, e a outra, em 2003, para realizar o curso de piloto de combate na Academia da Força Aérea Brasileira.

Em 2005, o Colégio obteve a primeira colocação entre todas as escolas gaúchas que realizaram o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), sendo a única a obter média superior a 70 pontos, o que a incluiu entre o seleto grupo das escolas brasileiras com conceito “Excelente”. Em 2006, novamente houve-se muito bem nessa prova, classificando-se como a melhor escola pública do Rio Grande do Sul e a 11ª em todo o País. Em 2007, foi destacado como o melhor Colégio gaúcho e único a atingir 80 pontos ou mais nessa prova. Em 2008, obteve a melhor colocação entre as escolas públicas do Estado e a 17ª colocação entre as brasileiras, sendo a única gaúcha a atingir o nível de excelência (70 pontos ou mais). Em 2009, repetiu o feito do ano anterior.

Nos últimos anos, teve a satisfação de ver vários de seus alunos receberem medalhas de ouro, prata e bronze em olimpíadas intelectuais, como as de Matemática, Física e Química.

Em 2008 e 2009, os únicos gaúchos selecionados como Jovens Embaixadores junto aos Estados Unidos eram alunos do CMPA, e nesse país cumpriram quinze dias de atividades diplomáticas. O Colégio Militar também teve um dos cinco alunos gaúchos selecionados como Deputado Jovem junto à Câmara dos Deputados, lá passando uma semana em atividades legislativas.

Como reconhecimento às tradições e vitórias do Colégio Militar de Porto Alegre, o Exército outorgou-lhe, em 2005, a denominação histórica de “Colégio Casarão da Várzea”.

São feitos que orgulham os integrantes do Velho Casarão da Várzea, fazendo com que, apesar de todas as adversidades porventura encontradas, continuem a contribuir, através da educação em seu sentido mais amplo, para o engrandecimento do País. Assim, com base em uma tradição de eficiência, disciplina, valores morais, camaradagem, patriotismo e ensino de alto nível, o CMPA procura formar, não só o cidadão do amanhã, como também homens e mulheres aptos e dignos para serem os líderes que conduzirão os destinos da próspera Pátria com que todos sonhamos. Por essa presença marcante na vida regional e brasileira, o Colégio Militar de Porto Alegre constitui-se hoje não apenas em um patrimônio de Porto Alegre e do Rio Grande do Sul, mas também de todo o Brasil.

Para preservar a história, as tradições e as glórias desta centenária escola, em 06 de fevereiro de 2003 foi inaugurado o Museu Casarão da Várzea, o

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qual passou a se constituir em legítimo acervo e referência para a pesquisa do ensino militar no Rio Grande do Sul.

Características

Tradicionalmente, o CMPA inicia seu ano escolar com cerca de 1.100 alunos, sendo que, via de regra, aproximadamente 57% deles são meninos e 43% são meninas. O ingresso se dá no 6° Ano do Ensino Fundamental e no 1° Ano do Ensino Médio, através de concurso público aberto a toda a população. Em face do caráter assistencial da norma legal que rege todo o Sistema Colégio Militar do Brasil, os militares transferidos para a sua área de abrangência têm direito a pleitear matrícula direta para seus dependentes, submetendo-se, porém, à existência de vagas.

O Colégio Militar é mantido com verbas do Exército e sua estrutura administrativa (não-docente) é composta, prioritariamente, por militares, sendo uma escola que ministra a Educação Básica normal no País, com as particularidades previstas na Lei de Ensino do Exército. Apesar de seu nome, o CMPA não se dedica ao ensino das artes bélicas, nem visa unicamente à preparação para a carreira militar, sendo esta apenas uma opção de seus alunos.

O Colégio possui cento e vinte professores, dos quais setenta e cinco são civis concursados e quarenta e cinco são militares.

Entre os professores civis que não possuem dedicação exclusiva, vários lecionam também em outros colégios e faculdades de Porto Alegre e cidades vizinhas, possibilitando, assim, uma salutar e desejável interação com outras realidades escolares.

Possuindo cerca de 60% de mestres e doutores entre seus docentes, o CMPA busca e incentiva, incessantemente, o aperfeiçoamento profissional de seus professores.

Proposta Pedagógica

Seu diferencial educacional consiste no fato de possuir uma proposta pedagógica que o particulariza, na busca da almejada educação integral. O objetivo desta é, não só proporcionar uma sólida base em conteúdos disciplinares, mas também preparar o jovem para a vida cidadã que encontrará ao sair do Colégio, com todas as suas exigências em valores morais e afetivos, ordem, disciplina e respeito, mas sempre dentro de um clima de sadia amizade e sã camaradagem.

Seus professores estão adaptados à era do conhecimento, procurando interagir com seus alunos e se tornando seus facilitadores no processo do “aprender a aprender”, tudo inserido no bojo da interdisciplinaridade e da contextualização tão necessárias ao momento educacional que vivemos.

Síntese de algumas razões do sucesso do CMPA

- Cerca 60% de seus docentes são mestres ou doutores. O Colégio busca e incentiva, incessantemente, o aperfeiçoamento profissional de seu Corpo docente.

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- A estrutura de ensino contempla um criterioso planejamento e organização do ano letivo e das avaliações. A existência de uma Supervisão Escolar, de Seções e Subseções de Ensino, de uma Seção Psicopedagógica e de uma Seção Técnica de Ensino fornece a infra-estrutura que suporta o rigoroso planejamento, organização e condução da educação.

- As provas bimestrais são confeccionadas pelos respectivos professores, mas passam por mais cinco crivos: chefe de Subseção (Cadeira), chefe de Seção de Ensino, Seção Técnica de Ensino, Subdiretor de Ensino e Diretor de Ensino. No final do processo, a prova não é apenas responsabilidade do professor, mas sim do Colégio Militar.

- À semelhança da vida cidadã futura que encontrará após sua formatura, os alunos são submetidos a um sistema meritocrático de merecimento, onde se destacam aqueles que mais se dedicam e estudam, bem como os que melhor se conduzem dentro dos parâmetros exigidos pelo Colégio. Dentro desse contexto é que existe o Batalhão Escolar, onde os alunos têm uma classificação hierárquica de grau, e a Legião de Honra, para a qual são convidados os que mais se destacam em comportamento, procedimentos e aplicação.

- A carga horária anual é superior à mínima estabelecida pelo MEC.

- Além dos conteúdos disciplinares, são oferecidas ao aluno atividades extraclasse, como: diversas modalidades de esporte, xadrez, astronomia, coral, banda de música, teatro, clubes de disciplinas (Matemática, História, Literatura, Ciências, Filosofia, etc.) e grêmios sócio-recreativos. É incentivada a participação em olimpíadas educacionais, como: Astronomia, Física, Biologia, Matemática, etc., e em projetos sócio-assistenciais de apoio a pessoas carentes.

- A adoção de uniforme para todas as atividades possibilita que os alunos se destaquem apenas pelo que verdadeiramente são, e não pelo que vestem ou ostentam.

- Alunos, profissionais ou grupos que obtenham qualquer tipo de atuação positiva destacada intra ou extracolégio, recebem o reconhecimento do CMPA através de destaque em reuniões de alunos, de profissionais ou de ambos, ou ainda a citação em Boletim Interno e/ou no Portal Internet da instituição.

- A educação não se limita aos conteúdos das disciplinas. São também trabalhados e cultuados valores, como: respeito, ordem, organização, honestidade, honra, princípios morais, lealdade e responsabilidade pessoal e social, mas sempre dentro de um clima de amizade e camaradagem. Esse fato motiva uma forte e perene ligação afetiva entre alunos e ex-alunos com o Colégio Militar.

- A educação está baseada na harmonia e interação, profícua e constante, entre três vetores: escola, aluno e família.

- Historicamente, o CMPA trabalha com cerca de trinta alunos em cada sala de aula, admitindo, em casos excepcionais, um máximo de trinta e cinco

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alunos, possibilitando ao professor controlar e acompanhar o processo individual de ensino/aprendizagem.

- O Colégio possui uma excelente infraestrutura de apoio, alicerçada na administração militar. Como integrante do Sistema Colégio Militar do Brasil, beneficia-se da troca de experiências e vivências, educacionais e administrativas, entre os doze colégios militares que compõem o sistema.

- A existência da Associação dos Amigos do Casarão da Várzea (AACV), congregando pais, alunos, ex-alunos, professores, funcionários e amigos do CMPA, apoia, de forma decisiva e fundamental, as iniciativas educacionais, sociais e culturais empreendidas pelo Colégio e por seus integrantes.

- O Casarão da Várzea possui 98 anos de tradição como Colégio e 138 anos como escola, tendo um extenso rol de ex-alunos que se destacaram no cenário nacional. Durante esse longo período, forjou-se a tradição de um ensino de excelência, a qual implica em maior responsabilidade para os alunos e profissionais de hoje.

- Muitos dos profissionais são ex-alunos, o que traz uma relação afetiva que potencializa as atividades e relações profissionais.

CMPA: FORMANDO HOJE O CIDADÃO DO AMANHÃ!

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Travessia da Laguna dos Patos – Margem Oriental

Bela Lagoa dos Patos (Daniela da Cunha)

Quando o Sol desce por entre as nuvens Posso ver o anoitecer chegando.

Lagoa te quero sempre assim, linda nos meus sonhos sempre me alegrando.

Depois da longa noite quando pensei que não vinhas ouvi teu doce balançar no cais

das tristes lembranças minhas. (...)

Mais uma vez me proponho a desvendar os arcanos e enfrentar os desafios da Laguna dos Patos, o maior manancial de água doce brasileiro com 265 quilômetros de comprimento e uma superfície de 10.144 quilômetros quadrados, conhecida também como “Mar de dentro”.

Nas tentativas dos anos anteriores (2009 e 2010), os ventos e ondas superiores a dois metros e meio determinaram que eu abortasse a missão, um fracasso temporário, jamais definitivo. A jornada pela margem Oriental me fascina tendo em vista a mesma proporcionar maiores dificuldades e não abrigar nenhum núcleo populacional importante em sua margem.

O Coronel PM Sérgio Pastl se prontificou em nos apoiar com seu veleiro “Ana Claci” acompanhado do Professor Mestre de Educação Física Hélio Riche Bandeira, do Colégio Militar de Porto Alegre.

- Largada da Praia da Varzinha (10 de abril) (30°19’17,52”S / 50°54’21,85”O)

Às quatro horas em ponto, do dia 10 de abril do corrente (2011), o Soldado PM Jorge Luz Gomes de Campos, motorista do Coronel Pastl, chegou à minha residência para transportar a mim, o Professor Romeu Henrique Chala e os caiaques até a Praia da Varzinha, local da largada. No caminho, encontramo-nos com alguns canoístas do Clube de Regatas Almirante Barroso que nos acompanhariam na largada.

Já na margem da Laguna, aguardamos alguns retardatários e partimos, acompanhados de dois caiaques duplos oceânicos e dois da classe turismo, às 6h35 rumo à Ponta do Abreu, lá chegando por volta das 8h15 depois de remar dez quilômetros. As ondas, de través, chegavam a oitenta centímetros e o Romeu estava tendo sérias dificuldades em navegar no meu caiaque modelo Anaico da KTM, retardando consideravelmente a progressão.

Fizemos um alto horário nas proximidades da Ponta do Abreu onde Romeu resolveu trocar o Anaico por um modelo turismo da equipe do Almirante Barroso. Despedimo-nos dos companheiros canoístas e rumamos direto para a Costa da Salvação, enfrentando ondas mais brandas, de meio metro de altura. O Romeu ainda progredia lentamente e me confessou, durante o percurso, que estava preocupado com o ombro contundido, recentemente e, por isso, diminui a velocidade de 4 (7,2 km/h) para 3,5 nós (6,3 km/h). Aportamos a 800 metros ao Sul da Ponta do Casamento, depois de navegar nove quilômetros.

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Tentei comunicar-me com o Coronel Pastl mas, infelizmente, minha operadora (CLARO) mais uma vez me deixou na mão. Descansamos um pouco, nos reidratamos e prosseguimos, ainda lentamente, nosso curso. Fizemos uma parada de mais de uma hora na Costa da Salvação, tentando em vão contatar via telefone ou vislumbrar no horizonte algum sinal do veleiro “Ana Claci”.

Partimos com a intenção de não só tentar achar nossos amigos, mas também de procurar um abrigo para o pernoite, no caso de um desencontro já que todo o material necessário, sacos de dormir, roupas secas e mantimentos estavam embarcados no veleiro.

- Pernoite na Costa da Salvação (30°34’18,1”S / 50°40’51,2”O)

Aportamos por volta das 17h15, depois de remar apenas 42 km, próximo a um canal de irrigação onde havia um bolante (casa móvel construída sobre troncos) e, depois de verificar que estava aberto e em condições de nos abrigar, fui tentar, em vão, encontrar alguém que nos autorizasse a utilizá-lo. Não encontrei ninguém e resolvi acantonar assim mesmo. No abrigo, arrastei umas telhas de amianto para um canto, improvisei uma vassoura de capim e varri o aposento. Usei meu neoprene como colchão e deixei à mão um saco aluminizado que havia levado para alguma emergência, a madrugada fria me forçou a usá-lo.

- Partida para Mostardas (11 de abril)

O Rio (Manuel Bandeira)

Se há estrelas no céu, refleti-las E se os céus se pejam de nuvens, Como o Rio as nuvens são água, Refleti-las também sem mágoa Nas profundidades tranquilas.

Acordamos às 5h30, arrumamos, ainda no escuro, nossas tralhas e partimos às 6h10. A ausência dos ventos proporcionou um momento mágico; no horizonte, as nuvens fundiam-se nas águas tranquilas da Laguna amalgamando céu e a Terra. Eu tinha a nítida sensação de mergulhar o remo nas nuvens e deslizar silente rumo ao infinito. Os prognósticos pareciam ser alvissareiros, partimos com a determinação de encontrar a equipe de apoio e cumprir a jornada mais longa de todo o trajeto. Depois de remar, aproximadamente, vinte quilômetros, encontramos o “Ana Claci”, cumprimentamos eufóricos seus tripulantes e embarcamos para uma pequena refeição. Novamente n’água, rumamos para a Ponta de São Simão. Por volta das catorze horas, o Coronel Pastl nos convidou para o almoço, o Romeu subiu a bordo e eu declinei do convite, pois não faço nenhuma refeição pesada durante o deslocamento. Remei devagar e aguardei o Romeu na Ponta de São Simão. O Romeu chegou e arrastamos os caiaques sobre o enorme banco de areia que se estende por uns 25 quilômetros de extensão e cuja profundidade varia de 30 a 60 centímetros.

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O veleiro sumiu no horizonte contornando o enorme banco de areia já que a sua quilha de 1,5 metros não é retrátil. Apontei a proa diretamente para o ponto assinalado pelo GPS como sendo o Porto do Barquinho, mantendo a velocidade constante de 4 nós.

- Susto no Barquinho

Chegamos ao Porto do Barquinho às 18h10, uma jornada de doze horas, sendo 10h30 de remada, num percurso de 73 km. Na chegada piquei a voga para não perder a oportunidade de fotografar o pôr do sol que se avizinhava. Atracamos nos molhes do Porto e ficamos admirando os magníficos matizes que graciosamente se alternavam nas diáfanas nuvens. Aguardamos o veleiro até o anoitecer e, como nossos amigos não apareceram, resolvemos aportar para esticar as pernas.

Por volta das 22h30 o Ana Claci, finalmente, entrou no Porto e eu sinalizei nossa posição com flashes de minha máquina fotográfica. Os motores do veleiro roncaram ruidosamente até que abruptamente pararam. Resolvemos embarcar nos caiaques e nos aproximarmos para ver o que acontecera. A embarcação encalhara e o Professor Hélio e eu saltamos, imediatamente, n’água para tentar arrastá-la para águas mais profundas. Depois de algum tempo de um hercúleo esforço, conseguimos liberá-la e o veleiro se afastou buscando águas mais profundas.

O Hélio e eu resolvemos nadar até o barco mas, no caminho, as forças nos abandonaram e solicitamos apoio de nossos camaradas. O Coronel Pastl jogou um salva-vidas para o Hélio, e eu aguardei calmamente, boiando, que o Romeu se aproximasse com o caiaque. Felizmente, foi apenas um susto fruto de Corpos exauridos por esforços prolongados e submetidos ainda à prova de desencalhar um veleiro do lodo do Porto do Barquinho. O assoreamento do Porto e a ausência de qualquer tipo de estrutura de apoio são uma mostra do descaso das autoridades responsáveis.

- Porto do Barquinho (31°2’53,11”S / 51°0’25,10”O)

O Porto próximo à sede do Município de Mostardas abriga navegadores que fogem dos perigosos rebojos da Laguna ou que simplesmente vem apreciar as belezas do local.

O Porto do Barquinho é uma impressionante obra na Costa Leste da Laguna dos Patos. (...) Foi construído em lugar ermo e isolado, a uns 12 km de Mostardas, mas sem qualquer via de acesso. A intenção era, ou seria, dar escoamento às safras de arroz e da cebola da região. Foram construídos molhes com grandes pedras, trazidas de muito longe, já que não existem na região. O molhe Leste tem 837 m de extensão e o do lado Oeste tem 762 m perfazendo, pois, um total de mais de um quilômetro e meio. A distância entre os molhes é de 350 m. Um razoável tamanho em termos de Lagoa dos Patos e em função da finalidade a que se destinaria.

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O projeto inicial foi feito em 1924, prevendo apenas um abrigo e atracadouro na Foz do Arroio do Barquinho. Em 1949, o Projeto foi refeito e foi iniciada a construção do primeiro molhe. As pedras foram então trazidas da Serraria, no Rio Guaíba, por duas chatas: a “Doca I” e a “Doca II”, rebocadas pelo rebocador “Júlio de Castilhos”. Foram feitas 57 viagens no total, sem que se conseguisse levar pedras suficientes para o primeiro molhe. Muitas destas viagens eram verdadeiras aventuras, quando o vento soprava forte. As chatas, carregadas ao máximo, eram varridas pelas ondas, e faziam muita água, ficando na iminência de afundar. Depois de três anos, em 1952, os trabalhos foram interrompidos.

Em 1977, o Projeto foi reformulado, com verbas mais generosas. As pedras passaram então a ser transportadas via rodoviária da região de Vasconcelos, do outro lado da Laguna, até Tapes. Em Tapes, foi construído um belíssimo Porto, também com molhes de pedra, onde hoje se encontra nosso querido Clube Náutico Tapense. Do Porto de Tapes, as enormes pedras foram transportadas pela barca “Walda III”, adquirida para essa finalidade e que originalmente fazia a travessia entre o Rio de Janeiro e Niterói. (...) Desta vez foram feitas 165 viagens. No Barquinho havia uma potente draga para movimentação de areia, bem com escavadeiras, guindastes, caçambas e muito mais: um canteiro de obras completo. Foi uma tarefa difícil, grandiosa e onerosa. Sob ponto de vista técnico, não se poderiam fazer críticas; houve execução competente do que então estava idealizado. Ficou quase concluída em 1979. (Fonte: Geraldo Knippling)

O Município de Mostardas sonha com a possibilidade de o Porto do Barquinho ser reativado e modernizado com a concretização da Hidrovia do Mercosul. O Complexo Hidroviário prevê obras de dragagem, drenagem, derrocamento, modernização dos terminais de cargas. A Hidrovia de mais de 600 quilômetros de extensão liga as Lagunas Mirim e dos Patos aos Rios Jacuí e Taquari, contribuindo para o aumento do transporte de cargas nos portos de Pelotas, Porto Alegre, Cachoeira do Sul e Estrela.

- Partida para o Farol Capão da Marca (12 de abril)

Acordamos às 5h30 e partimos às 6h10 para o Farol Capão da Marca. Apontei a proa para o Farol Cristóvão Pereira, a 15 km de distância e navegamos nas águas calmas durante aproximadamente duas horas. Aportamos nas proximidades do magnífico Farol, de 30 metros de altura, para descansar.

- Farol Cristóvão Pereira (31°03’42”S / 51°10’12”O)

Construído, em alvenaria, a cerca de vinte e cinco quilômetros a Oeste de Mostardas, ao Norte da Lagoa do Sumidouro, no formato de uma torre de planta quadrada caiada de branco. O Farol tem um lampejo de coloração branca, com uma frequência de dez segundos, plano focal de 30 metros e alcance de treze milhas náuticas. A construção teve início em 1858, e foi assim registrada na Correspondência do Intendente do estado para o Vice-Rei no Rio de Janeiro, no seu relatório de atividades de 09.03.1859:

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(…) escavou-se o terreno a uma profundidade a encontrar bastante água, estacou-se com 84 moirões de (madeira de) lei toda a superfície, sobre os quais engradou-se com vigas de lei na distância de três palmos de uma a outra, e depois de encavilhadas (unidas com cavilha, peça metálica, que une as vigas) encheu-se os intervalos de pedra seca bem calcada: sobre este engradamento levantou-se a sapata de pedra e cal até dez palmos, e sobre esta levantaram-se as paredes da torre e as das meias-águas seguindo sempre com a planta em vista. Acha-se presente esta obra com os arcos fechados do segundo pavimento e a receber o respectivo madeiramento, e a 45 palmos de altura acima do terreno (…).

O Farol, concluído em 1886, começou a funcionar um ano depois, permanecendo ativo até hoje. Em 1992, a Marinha do Brasil demoliu as antigas instalações destinadas ao faroleiro, e selou as portas e janelas da construção com tijolos. O dique que circunda o Farol e lhe serve de proteção, reformado em 2004, se encontra em péssimo estado de conservação, permitindo que as águas revoltas atinjam diretamente a base do Farol comprometendo sua estrutura.

- Um tal Cristóvão Pereira de Abreu (Fonte: Barbosa Lessa – Rodeio dos Ventos)

O rico fidalgo português Cristóvão Pereira de Abreu, descendente do condestável Nuno Álvares Pereira, nasceu em Ponte de Lima (Vila portuguesa do Distrito de Viana do Castelo), em 1680. Aos 24 anos de idade, veio para o Rio de Janeiro, onde casou com D. Clara de Amorim; mas não teve filhos. Aos 42 anos arrematou, em leilão promovido pelo Rei, o monopólio de couros do Sul do Brasil, mediante o compromisso de pagar à Fazenda Real 70.000 cruzados por ano. Por seu dinamismo de empresário, a Colônia do Sacramento se tornou o maior empório mundial de comércio e contrabando de couros no primeiro quartel do século XVIII, chegando a exportar 500.000 peças por ano. Entenda-se: quinhentos mil bois, caçados pelos índios “Minuano” ou comprados às estâncias jesuíticas, para aproveitamento do couro, ficando a carne a apodrecer no chão das vacarias.

Cristovão Pereira era um apaixonado do Rio Grande – nessa época sem nenhuma Povoação fixa -, e foi um dos primeiros a estabelecer estância, na verde pastagem entre o canal de Rio Grande e a planície de Quintão. Em Carta para o matemático Padre Diogo Soares, que se aprestava para viajar para o Sul a fim de proceder ao primeiro mapeamento do litoral, escreveu:

Compõe-se esta região de um clima muito ameno, saudável e criador de riquíssimas e férteis terras em que se produzem, com vantagem mui crescida, todos os frutos da Europa: trigo, vinho, linho, toda a casta de frutas, podendo causar inveja aos de qualquer parte do mundo. Sei que Vossa Reverendíssima em breve aqui estará. Por enquanto, para não parecer encarecido e para não cair na censura de ignorante, não direi que o Rio Grande é uma das mais vistosas coisas que a Natureza criou; mas expondo apenas sua grandeza, deixarei o louvor à ponderação de Vossa Reverendíssima.

Por essa época, a ligação entre o Sul e o Centro era feita exclusivamente por navios, que saíam da Colônia do Sacramento (diante de Buenos Aires), tocavam em Laguna e seguiam até São Vicente e Santos. Por terra, ninguém imaginava cruzar, pois entre a planície e o planalto surgiam escarpas praticamente intransponíveis.

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Mas o Cristóvão Pereira sonhou integrar o Continente do Rio Grande ao restante do Brasil. Com admirável senso mercadológico, percebeu que as áridas montanhas de Minas Gerais produziam ouro, mas não dispunham de pastagens para criar cavalos e mulas, com isto encarecendo o transporte feito ao lombo dos escravos negros. No despovoado triângulo entre Laguna, Colônia e Missões, havia fartura desses animais. Os lagunenses, colonistas, missioneiros e, principalmente, os índios charrua e minuano, poderiam fornecer o produto por baixíssimo preço. Mas perdurava um sério problema: a inexistência de um caminho por terra.

Então associou-se ao lagunense Francisco de Souza Faria que, com filhos e agregados, levou dois anos até abrir um pobre roteiro serra acima entre o Morro dos Conventos, à beira do Atlântico, e os Campos de Curitiba, no planalto. Por aí subiu Cristóvão Pereira com uma primeira leva de 800 cavalos e mulas, viabilizando a ligação entre o Sul e a longínqua Vila de Sorocaba.

Assegurando-se do apoio do Capitão-general da Capitania de São Paulo, Conde de Sarzedas – que via um bom negócio na cobrança dos quintos ou 20% (20/100 = 1/5) devidos à Coroa – e obtendo capital com prestamistas da Vila de Santos – que viam um bom negócio na cobrança de juros – Cristóvão Pereira tornou a voltar ao Sul.

Sua segunda viagem – agora com 130 tropeiros levando 3000 animais – durou um ano e dois meses até Sorocaba, e nesse percurso foi alargando e melhorando o caminho, inclusive com a construção de quase 300 pontilhões. Valeu a pena: somente os quintos para a Fazenda Real significaram o montante de 10.000 cruzados!

O negócio prometia ser ainda mais rentável que o comércio e exportação de couros, e o Conde de Sarzedas pediu aos agiotas que não molestassem Cristóvão Pereira até que ele voltasse, com ainda maior número de mulas.

E assim se iniciou o fabuloso ciclo dos tropeiros, interligando o Rio Grande a Sorocaba – centro de comercialização – para fornecimento de cavalgaduras às Minas Gerais e ao Porto do Rio de Janeiro.

Encurtando caminho, sem ir até o Morro dos Conventos, Cristóvão Pereira abriu um novo roteiro, diretamente entre os campos de Viamão e os Campos de Lajes, e por aí foram surgindo os primeiros esboços de povoações: Santo Antônio da Patrulha, São Francisco de Paula e Capela de Nossa Senhora da Oliveira da Vacaria.

Tal movimentação despertou, obviamente, a reação de Espanha: a leste da Colônia do Sacramento é fundada, atrevidamente, a cidadela de Montevidéu.

Em 1735, Cristóvão Pereira encontrava-se nas Minas Gerais, firmando novos contratos para o fornecimento de mulas, quando é convocado para uma reunião urgente no Rio de Janeiro. Ali o recebem o Capitão-general daquela Capitania, Brigadeiro José da Silva Pais, o Capitão-general de São Paulo, Conde de Sarzedas, e o respeitável General Gomes Freire de Andrade, chegado de Lisboa como representante pessoal do Rei D. João V.

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O próprio General Gomes Freire foi quem lhe expôs o problema: os espanhóis de Buenos Aires e da nascente Povoação de Montevidéu, com apoio dos espanhóis das Missões Jesuíticas, estavam decididos a invadir o Continente até a Ilha de Santa Catarina. Se não houvesse uma pronta operação de defesa, aquele território seria irremediavelmente perdido. Então D. João V, reconhecendo não haver entre as tropas regulares um oficial com experiência bastante para exercer comando naquela despovoada região, pedia que Cristóvão Pereira assumisse a chefia das operações de terra, em conexão com o Brigadeiro José da Silva Pais, que desceria com navios até algum ponto de encontro no Sul. Aceitando a temerária incumbência, Cristóvão Pereira recebeu um bando (anúncio público), assinado pelo Conde de Sarzedas e assim lido à sua passagem rumo ao Sul:

Toda a pessoa que quiser ir em defesa da campanha do Rio Grande fará seus os saques do que em guerra tão justa tomar ao inimigo, tanto de cavalgaduras e boiadas como de ouro e prata. Além disso, será premiada com todas as honras que merecer o avultado da ação que cada um obrar. E, outrossim, toda pessoa que quiser com sua família ou por si povoar aquela mesma campanha, desta parte lhe serão dadas as sesmarias que pedir.

Apesar de tão atraentes promessas, apenas 160 heróis se apresentaram, voluntariamente, ao Coronel Cristóvão Pereira de Abreu. E com esse punhado de homens, ele susteve, à entrada do canal de Rio Grande, eventual ataque inimigo, enquanto o prometido apoio por Mar não lhe chegava. Passaram-se um mês, dois meses, três meses, quatro, cinco, até que apontaram no horizonte as esperadas naus. O valoroso Coronel preparou o local que lhe parecia mais adequado ao estabelecimento de uma povoação fortificada. E a 19 de fevereiro de 1737, o Brigadeiro Silva Pais descia a terra, com um contingente de 254 arcabuzeiros e dragões, dando nascimento ao quartel e Vila de Rio Grande – núcleo inicial da Capitania Real de São Pedro do Rio Grande do Sul. Cristóvão Pereira faleceu a 22 de novembro de 1755, naquela própria Vila de que fora o fundador.

- Rumo ao Farol Capão da Marca

Contornamos o Cristóvão Pereira e seguimos para o Sul rumo ao Farol Capão da Marca. Antes da segunda parada, encontramos diversos Capororocas e um solitário Cisne-de-pescoço-preto.

Capororoca (Coscoroba coscoroba): possui plumagem branca com a ponta das asas negras, o bico e os pés são vermelhos. O capororoca parece mais um ganso, mas alguns biólogos, erroneamente, o classificam como cisne tendo em vista seu tamanho. (Nota do Autor)

Cisne-de-pescoço-preto (Cygnus melancoryphus): asas inteiramente brancas, cabeça e pescoço negros, base do bico e pés vermelhos. Considerado por alguns biólogos como o único cisne Sul-americano. É uma espécie ameaçada de extinção. (Nota do Autor)

Na segunda parada, encontramos um bando de cágados (Phrynops hilarii) que se aqueciam indolentemente ao sol e um solitário pescador acampado no deserto de pinheiros que infestam as margens da Laguna, afugentando a fauna, sufocando a flora nativa e uniformizando monotonamente sua paisagem.

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Phrynops hilarii: espécie de cágado de água doce pertencente à família Chelidae, conhecido como cágado-cinza ou cágado-de-barbelas. Possui carapaça oval e achatada, podendo atingir 40 cm de comprimento e um peso de 5 kg e viver por até 40 anos. A cabeça é achatada, com focinho pontudo e dois barbelos (apêndices pendentes da parte inferior da cabeça) bicolores. A espécie é onívora e habita Riachos, Lagos e brejos onde existe abundância de vegetação aquática. As posturas ocorrem, normalmente, nos períodos de fevereiro a maio e de setembro a dezembro. A fêmea põe de 9 a 14 ovos, podendo, em casos excepcionais, pôr até 32 ovos, cujo período de incubação é de aproximadamente cinco meses. (Nota do Autor)

Na terceira parada, tentamos aportar junto a uma curiosa placa de trânsito interrompido, em plena Praia, que apontava para os pilotos de Rallye a rota a ser seguida. Saímos às pressas, perseguidos por marimbondos que estavam construindo sua casa na dita placa. Paramos a uns cinquenta metros adiante e travamos contato com o simpático senhor Ne, morador de Tavares. Depois do descanso, remamos diretamente para o Farol e, no caminho, cruzamos por um bando de mais de trinta Capororocas. Fizemos um reconhecimento do Farol, conversamos com pescadores de Cidreira que ali tinham se instalado temporariamente. Tomei um bom banho e aguardamos a equipe de apoio por três horas antes de embarcar para o pernoite.

- Farol Capão da Marca (31°18′55,7″S / 51°9′50,2″O)

O Governo da Província de São Pedro do Sul havia encaminhado, em 1827, sem sucesso, ao Imperador D. Pedro I, um pedido de instalação de faróis na região. O Governo da Província resolveu, então, dar andamento ao projeto com recursos próprios. Pouco mais de duas décadas se passaram antes de entrar em operação os primeiros faróis da Laguna, entre eles Capão da Marca, inaugurado em 5 de setembro de 1849, situado aproximadamente a onze quilômetros a SO de Tavares. O precário farol era composto de uma torre de madeira com pouco mais de 7 metros de altura, equipada com um lampião cujo alcance era de 5 milhas.

Em 25 de março de 1881, foi aceso o novo farol, uma torre octogonal de ferro, de 19 m de altura, fabricado pela empresa francesa BBT (Barbier, Benard e Turénne), criada, em 1862, com o nome de Barbier & Fenèstre, e que fornece instalações e equipamentos para faróis em todo o mundo. O lampião foi substituído por um aparelho de luz fixa de 4ª ordem, aumentando o alcance para 11 milhas. A montagem foi dirigida pelo próprio Diretor de Faróis, Capitão-de-Fragata Pedro Benjamin de Cerqueira Lima. O modelo, único do país, foi pintado de roxo-terra por volta do início do século XX e assim permaneceu até sua automatização, com equipamentos a gás acetileno, em 1960.

Atualmente o farol totalmente pintado de branco, está equipado com sistema de balizamento estroboscópico automático, alimentado por energia solar, emitindo sinais de luz vermelha com alcance de 13 milhas náuticas (24 km).

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- Partida para Bojuru (13 de abril)

Antes de partir, fui até a Praia, acompanhado pelo professor Hélio, fotografar o Farol. Depois partimos, o Romeu e eu, rumo a Bojuru. Aportamos, para descansar, em um banco de areia e avistamos, ao longe, o veleiro parado. O Romeu resolveu remar rapidamente na sua direção, achando que a intenção dos tripulantes era orientar nossa progressão e servir de apoio no meio da Laguna para descanso.

Ledo engano! A nave penetrou na densa e distante bruma que se formava e sumiu no horizonte. Eu tinha alinhado a proa diretamente para a Ponta do Bojuru para diminuir a distância da remada, mas o Romeu preferiu aportar a meio caminho para esticar as pernas. Alterei a rota e aportamos em uma Praia igualmente tomada pelos nefastos pinheiros. Voltamos para a água e, como o Romeu não estivesse em condições de remar diretamente para a Ponta do Bojuru, alinhei a proa para um enorme barranco ao longe. A imagem era conhecida, o Comandante Geraldo Knippling havia imortalizado o enorme cômoro (duna) e suas centenárias figueiras no seu livro: “O Guaíba e a Lagoa dos Patos”. (KNIPPLING)

Aportamos aos pés do magnífico monumento natural. Deste ponto, uma área de preservação permanente, a natureza era soberana, a bela e diversificada mata nativa me encantava. Resolvi escalá-lo para registrar as belas imagens das cercanias.

Do alto de uma centenária figueira, consegui contatar precariamente o Coronel Pastl e informá-lo de nossa posição. As três belas figueiras de Knippling estavam sendo ameaçadas por praticantes de Rallye. As duas trilhas tangenciavam suas colossais raízes, arrancando a vegetação rasteira e acelerando a erosão, expondo, dramaticamente as raízes dos formidáveis e seculares colossos naturais. Curiosamente os praticantes deste esporte se intitulam “amantes da natureza”. Depois do descanso, partimos para mais um “tiro” de doze quilômetros até as ruínas do Farol de Bojuru onde nos aguardava a equipe de apoio.

– Farol de Bojuru (ou Bujuru) Fonte: Carlos Altmayer Gonçalves - Manotaço

O antigo Farol de Bujuru foi construído junto com os faróis de Itapuã, Cristóvão Pereira e Ponta Alegre (este na Lagoa Mirim). Estas obras iniciaram no ano de 1858. O projeto era o mesmo, com exceção ao de Itapuã, com a diferença que Cristóvão tem 30 m de altura e os outros 2 apenas 20 metros. Bujuru já caiu. Quando eu o conheci há cerca de 33 anos, tinha ainda a casa do faroleiro, o pátio e as figueiras; coisas que hoje não existem mais, foram comidas pelas águas. Quem passa pela ponta de Bujuru avista uma ilhota, afastada cerca de 100 m da ponta de areia. Aquilo é a ruína do farol. Note-se que ele foi construído a cerca de 100 m da ponta de areia, terra adentro é claro. Logo a ponta recuou perto de 200 m ao longo destes 150 anos. (MANOTAÇO)

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– Bojuru

Aportei na Ilha onde antes existira o belo Farol para tirar algumas fotografias das ruínas, as pequenas figueiras resistiam estoicamente agarrando-se nos escombros. Depois das fotos, partimos rumo ao “Ana Claci” encontrar a equipe de apoio. Combinamos que, nas proximidades da Barra Falsa do Bojuru, eu iria de precursor do veleiro fazendo a sondagem, com o remo, verificando uma rota que permitisse ao “Ana Claci” chegar ao Porto. Durante o deslocamento, eu admirava, extasiado, a bela vegetação do Capão de Mato da Barra Falsa do Bojuru.

Barra Falsa do Bojuru: segundo o Coronel PM Sérgio Pastl, o nome de “Barra Falsa” foi dado em virtude de alguns incautos navegadores confundirem-na com a Barra de Rio Grande. (Nota do Autor)

Depois de um percurso exaustivo em que eu usava o remo para sondar e remar ao mesmo tempo, ancoramos no Porto do engenho de arroz do Sr. Paulo Santana que nos recebeu gentilmente e determinou ao seu capataz que nos desse toda a atenção necessária. Como se tivéssemos combinado o horário, chegou o último membro da expedição, o Tenente-Coronel PM Luís Kruger, uma lenda viva do Corpo de bombeiros do Rio Grande do Sul, um recordista de salvamentos.

O Coronel Kruger mal chegou e já foi fazendo uma fogueira para assar uns frangos que comprara, na cidade de Bojuru, a mando do Coronel Pastl. Depois do jantar, fomos nos instalar em uma casa do engenho que tinha como ponto alto um chuveiro de água quente. No dia seguinte (14 de abril) permanecemos em Bojuru, tendo em vista as condições meteorológicas adversas. O Coronel Kruger aproveitou para pescar alguns lambaris para o almoço e depois, atendendo a um convite do Romeu, correram oito quilômetros.

Eu e o Hélio fomos de caiaque até o Capão de Mato que nos encantara no trajeto. Desembarcamos na ponta Sul do Capão e saímos a pé para apreciar e fotografar a vegetação nativa. Os troncos das enormes figueiras eram verdadeiros jardins suspensos, tomados por bromélias, orquídeas, fungos e líquens. O passeio, pela diversificada vegetação emoldurada pelas dunas majestosas, era uma verdadeira ode ao espírito e aos sentidos humanos, descobrimos um espécime de orquídea em plena floração extemporânea, encantamo-nos com as longas barbas de bode ondulando ao vento, produzindo um maravilhoso efeito de animação aos gigantescos e estáticos troncos dos formidáveis monumentos arbóreos ao mesmo tempo em que impunham um ar fantasmagórico a um solitário ninho de João de Barro, experimentamos a textura dos exóticos fungos e líquens e fomos envolvidos pelo inebriante aroma das flores do funcho silvestre. Ao retornar ao Porto, um espetáculo a parte, um belo cisne-de-pescoço-preto nadava despreocupadamente a pouco mais de 50 metros de nossos caiaques. No dia seguinte, 15 de abril, às nove horas, fomos avisados que a previsão do tempo falhara, as condições meteorológicas haviam melhorado e resolvemos partir imediatamente.

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- Partida para a Ponta dos Lençóis (15 de abril)

Novamente parti como precursor do veleiro, executando a exaustiva sondagem. Liberado da sondagem, partimos diretamente para a margem a Oeste de nosso deslocamento. A pedido do Romeu, fizemos a primeira parada. Meu companheiro, que em vez de tentar recompor as energias, no dia anterior, preferira correr oito quilômetros com o Coronel Kruger apresentava nitidamente sinais de cansaço. Partimos, e o Romeu continuava remando lentamente, embora as ondas de través não ultrapassassem os trinta centímetros. Fizemos mais uma parada para que o Romeu me alcançasse. Fui até o veleiro e comentei com o Coronel Pastl a respeito de minha dúvida em relação à distância em que se encontrava a tal Ponta dos Lençóis.

Fiz mais uma parada rumando diretamente para um enorme bando de flamingos que mariscavam desatentos. Cheguei a uns 40 metros deles e os belos animais me olharam sem esboçar qualquer tipo de reação. Aportei e dirigi-me lentamente até o bando que, finalmente, levantou vôo exibindo sua magnífica plumagem. Infelizmente eu havia deixado a máquina fotográfica no barco de apoio.

Flamingos (Phoenicopterus chilensis): animais de hábitos migratórios podem voar até 500 km por dia em busca de alimento e locais para nidificação. Botam apenas um ovo que eclode após 29 dias. Sua dieta compõe-se principalmente de vegetação e invertebrados aquáticos. Esses invertebrados ricos em caroteno conferem-lhes a coloração rosada. Na ausência dessa substância, as penas tornam-se esbranquiçadas. (Nota do Autor)

Hidratados, embarcamos nos caiaques e nos deslocamos rumo ao Canal dos Gordos (31°45’56,2”S / 51°39’27,3”O) um estreito Canal de 90 cm de profundidade, localizado a SW da Lagoa Doce. Lá chegando, fui até o veleiro perguntar ao Coronel Pastl aonde atracaríamos. Nosso caro amigo informou que havia se enganado e que nosso destino (Ponta dos Lençóis) ficava a 11 milhas náuticas (19,8 km) adiante. Informei que devido ao adiantado da hora não conseguiríamos chegar até a Ponta, mas que iríamos tentar nos aproximar o mais perto possível e que, antes disso precisávamos fazer uma pequena pausa para descanso. Depois da parada, partimos e observei preocupado que o veleiro continuava parado, mais tarde soube que eles não haviam notado nossa partida.

Entramos em uma área de pesca de camarão, os milhares de calões que suportam as redes lembravam o mastro de nosso veleiro dificultando sua identificação. A progressão era facilitada pelo vento de popa e eu surfava rapidamente enquanto o Romeu lutava para dominar seu caiaque. Comecei a me preocupar, não enxergava o veleiro, de repente avistei uma luz no horizonte, achei que se tratava do mastro do “Ana Claci”, apontei a proa naquela direção e, logo em seguida, outras luzes começaram a pipocar em todos os calões. Desisti de tentar identificar nosso barco de apoio. O sol estava próximo do horizonte e voltei minha atenção para a margem em busca de abrigo. Identifiquei uma pequena Colônia de Pescadores e, mais além, apenas dunas de areia, decidi buscar guarida junto a eles.

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- Comunidade de Pescadores do Estreito (31°47’20,7”S / 51°45’19”O)

Contatei, em terra, a senhora Sabrina e perguntei se ela teria um lugar que pudéssemos pernoitar. Ela apontou para um barraco próximo e disse que, logo que o marido voltasse da pescaria, ele nos entregaria a chave do mesmo. Arrastei o meu caiaque para perto do barraco. De repente, apareceu o Sr. José Luís Jardim da Silva (Zé do Dedé) que ajudou o Romeu a carregar o seu caiaque e disse que pernoitaríamos no seu barraco. Ofereceu-nos café e roupa seca já que nosso material estava todo no veleiro. Sua nora Tatielly Silva de Farias arrumou uma cama e cobertas para dormirmos em um barraco ao lado do deles.

Mais tarde, jantamos com os amigos pescadores. Durante o jantar, o Zé apontou para umas luzes a Sudoeste, dizendo que deveriam ser nossos amigos atracados. As luzes se afastaram (soubemos, no dia seguinte, que o “Ana Claci” perdera uma das âncoras) e retornaram mais tarde. Não estávamos em condições de arriscar uma navegação noturna até um alvo não confirmado. Depois do saboroso prato de camarão servido no jantar, fomos para nosso barraco dormir.

No dia seguinte (16 de abril), tomávamos café quando o Zé avistou o veleiro passando em frente à Comunidade, o Romeu embarcou no Barco do Josué Amaral da Silva (filho do Zé) e eu montei na garupa da moto do José Luís e fomos à frente para sinalizar que estávamos por ali.

O veleiro ancorou e o Coronel Pastl subiu no barco do Josué e veio me encontrar em terra. O Coronel Pastl confirmou que eram eles que tinham ancorado a Sudoeste da Comunidade e que tinham avariado o casco da embarcação e os forçara a passar a noite retirando água do veleiro. Precisavam retornar a Tapes para consertar o barco e nós teríamos de prosseguir sozinhos para Rio Grande.

Fomos a bordo pegar algumas roupas quentes, sacos de dormir e uma pequena barraca. Decidimos partir, no dia seguinte, diretamente para Rio Grande. De tardezinha, acompanhamos nossos amigos pescadores na sua faina diária de preparar as redes e colocar as luzes nos calões para atrair os camarões.

- Partida para a Ponta Rasa (17 de abril)

Acordamos cedo arrumamos o barraco e resolvemos não incomodar nossos anfitriões que ainda dormiam e partimos por volta da seis horas. Os ventos do quadrante Oeste formavam ondas de sessenta centímetros que atingiam perigosamente o barco a Boreste, forçando-me a bordejar (ziguezaguear). O esforço de remar contra as ondas era compensado com a possibilidade de surfá-las no retorno. Eu inclinava o Corpo contra as ondas e, eventualmente, apoiava o remo a bombordo para evitar o tombamento.

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- Naufrágio na Ponta dos Lençóis

O Romeu foi derrubado por duas vezes e ajudei-o a esvaziar o caiaque cheio d’água. Resolvi navegar em uma área protegida por um banco de areia e o Romeu insistiu em arriscar a navegação em área aberta. Novamente meu companheiro, colhido pelas águas, teve seu caiaque virado e parei para ajudá-lo. Meu parceiro estava visivelmente abatido, fui a pé mais à frente reconhecer nosso trajeto e procurar uma alternativa mais segura. A uns quatrocentos metros à frente, poderíamos nos deslocar protegidos pelo banco de areia até a Ponta dos Lençóis. Arrastei meu caiaque pelas águas rasas até onde poderíamos reiniciar a navegação e fui ajudar o Romeu com o seu caiaque. Isto feito, reiniciamos nossa jornada até a Ponta dos Lençóis onde passamos por um grupo de pescadores e enormes bandos de biguás.

- Ponta dos Lençóis (31°48’9.6”S / 51°50’29.2”O)

Paramos perto da Ponta dos Lençóis e mostrei ao Romeu nosso destino, a Ponta Rasa, a uns dezessete quilômetros a Oeste. A pouca profundidade garantia uma travessia segura, mas meu companheiro não estava em condições psicológicas de enfrentar uma travessia, sem possibilidadede aportar, de, no mínimo 2h30. Concordamos em margear, o que aumentaria o percurso em mais de dez quilômetros. Ultrapassada a Ponta, o vento mudou, vindo de Nordeste, auxiliando a progressão. Depois de remar 40 minutos, parei e comuniquei ao Romeu que estávamos progredindo muito lentamente (3 km/h) e que precisávamos atalhar, aproveitando o vento, para a margem oposta. Feito isso, eu conseguia progredir com muito pouco esforço, surfando e usando o corpo como uma vela para impulsionar o caiaque enquanto meu companheiro, ressabiado, procurou o abrigo seguro das margens, retardando a progressão.

Aguardei o Romeu em um acampamento de pescadores e, depois de declinar do churrasco e café que gentilmente nos ofereceram, continuamos a navegação. O anunciado ciclone se desviara para o Oceano aumentando, porém, a intensidade dos ventos para rajadas de até 40 km/h, facilitando bastante a progressão. Navegava na minha velocidade cruzeiro (7,2km/h) sem remar, simplesmente surfando, usando o leme para manter o caiaque no alinhamento das ondas e o remo, na horizontal, como velas. Volta e meia eu olhava para trás para ver se o Romeu estava me acompanhando e verifiquei que ele havia atracado em um Capão de Mato à retaguarda, resolvi parar também, mais adiante, próximo a um acampamento de pescadores.

- Acampamento do Irailson (31°51’47.54”S / 51°50’40.98”O)

O Romeu apareceu algum tempo depois, sem o caiaque, dizendo que não estava em condições de me acompanhar e sugeriu que eu continuasse sozinho. Recomendei que ele buscasse o caiaque e que aguardássemos o tempo melhorar para depois tomarmos uma decisão.

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Ele chegou arrastando o seu caiaque e, depois de tomar um café quente, oferecido pelo amigo Gilmar Santana Costa, decidimos, de comum acordo, partir de madrugada para Rio Grande. No acampamento, conhecemos o inquieto, alegre e inteligente Thainan Vaz Costa e seu pai Delvair Silveira Costa (Neneco).

Como o meu telefone (da operadora CLARO), mais uma vez, não funcionasse, o Thainan se prontificou a avisar os familiares e amigos que estávamos bem apesar do “ciclone extratropical, três naufrágios e quase dois afogamentos”. Declinei da oferta e qualifiquei-o como “terrorista”, tendo em vista que seu aviso provocaria mais preocupação do que tranquilidade. Depois da tempestade, as águas se aquietaram, a chuva se foi e o sol apareceu radiante.

O Gilmar nos brindou com um saboroso almoço, o Romeu aproveitou para deitar e descansar um pouco e eu fui com o Neneco, na sua moto, até um orelhão, na BR 101, que, infelizmente, estava inoperante por falta de energia provocada pelo temporal.

Ao retornar, ele encontrou um amigo que solicitamente permitiu que eu usasse seu celular (VIVO) para notificar à equipe de apoio terrestre nosso paradeiro e programação futura. Regressamos ao acampamento e encontramos o Irailson que voltara para auxiliar o Gilmar a colocar as luzes nos calões e lançar uma rede de uns 400 metros para as tainhas. Resolvemos acompanhá-los e fomos brindados com um pôr do sol e uma lua cheia magníficos.

- Hospitalidade Gaúcha

Amizade de Gaudério (Maurício Tomazini)

(...) Vem, te aprochega gaudério Não tenhas medo de conversar Não estás sozinho nesta jornada Diga peão, que aqui te espero Como um soltar de invernada

Sem muito jeito, porém sincero.

(...) Num gesto da amizade existe Um coração a pulsar calado Cruzo campos sem cansar Nesta vida sem ser matreiro

Sempre uma mão amiga a pairar Num rancho pobre de algum campeiro.

Retornando ao acampamento, o Irailson fez questão que dormíssemos em dois confortáveis barracos de sua propriedade, foi um excelente pernoite. A perspectiva de concluir a missão no dia seguinte, bem alimentados e uma cama seca e quente para dormir justificava essa afirmativa. Mais uma vez a hospitalidade gaúcha se fazia presente e em nós crescia a esperança e a fé na humanidade de nossa gente.

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- Partida para Rio Grande (18 de abril)

O Gilmar preparou um café antes de sairmos e, juntamente com o Neneco, foi assistir a nossa partida. Às cinco horas da manhã, deixamos para trás os queridos e hospitaleiros amigos que esperamos, se o Patrão Velho de Todas as Querências permitir, reencontrar futuramente. A calmaria das margens foi substituída por ondas de proa de quarenta centímetros quando nos afastamos da costa. Insisti, por diversas vezes, com o Romeu que aproasse com a lua, mas o companheiro socialista parece ter uma tendência direitista arraigada no cerne de sua alma que o levava a se afastar rumo a ondas maiores de Boreste.

Fizemos uma parada antes das sete da manhã e prosseguimos navegando um tanto afastados da costa em virtude da pouca profundidade ao longo de toda a Ponta Rasa. Fizemos mais uma parada antes de contornar a Ponta Rasa e avistar Rio Grande. Paramos numa pequena Ilha situada na extremidade NO da Ponta Rasa (31°50’24,3”S / 52°5’55,2”O) e decidi atravessar direto para a outra margem (Ilha da Torotama), levando em conta a leve brisa e os calões, ao longe, que acusavam a pouca profundidade do local. Apontei para uma caixa d’água que se avistava ao longe e informei o Romeu da rota (SO) a ser seguida. Meu companheiro, mais uma vez se afastava do alvo, adotando uma rota para Oeste. No meio do canal, gritei para ele alertando que, se continuasse assim, ele acabaria aportando em Pelotas e ele corrigiu, finalmente, a rota. Aportamos nas praias de um casario mais ao Sul da Ilha da Torotama, e, logicamente, mais próximo da Ilha dos Marinheiros por volta das 12h30.

- Foco na Missão

Pela segunda vez, em todo o trajeto, minha sofrível operadora de celular (CLARO) deu sinal de vida. Eram os bombeiros, acionados pelo Coronel Pastl, avisando que estavam em condições de nos acompanhar. Avisei que às quinze horas estaríamos aportando na Marina do Rio Grande Yacht Club. Tomei um pouco de água, a última cápsula de guaraná e me preparei para partir. Chamei o Romeu, que insistia em fazer uma refeição e descansar um pouco. Disse que precisávamos partir, já que os bombeiros nos aguardavam. Engoli um sanduíche que ele havia feito e segui meu destino. Meu parceiro não enfrentaria nenhum perigo no deslocamento já que todo o percurso era extremamente raso.

- Chegada em Rio Grande

Imprimi um ritmo forte (7,5 km/h) e, a meio caminho entre a Ilha da Torotama e a Ilha dos Marinheiros, avistei os amigos bombeiros que manobravam para escapar dos baixios ao Norte da Ilha dos Marinheiros. Informei que meu companheiro viria mais tarde e segui para a Marina do Rio Grande Yacht Club. Quando me aproximava de meu alvo, avistei minha amiga e colaboradora Rosângela Schardosim me aguardando no cais. Aportei, descarreguei o caiaque e fui tomar um banho antes de partir para Bagé, onde um churrasco de cordeiro me aguardava na casa da mãe dela.

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Aguardei o Romeu chegar e parti para a bela cidade de Bagé. No trajeto, os belos campos cobertos de mata nativa e magníficas rochas me reportavam os tempos de infância, quando visitava com meus pais as fazendas de amigos. Em Bagé, as antigas construções emprestam à cidade uma beleza ímpar que, infelizmente, as autoridades e alguns proprietários ignorantes teimam em destruir. Como seria bom que o poder público incentivasse os proprietários dessas relíquias arquitetônicas com isenções nos seus IPTUs desde que as mantivessem intactas e bem conservadas.

- Conjunto Canoísta/Caiaque

Quero deixar registrado meu profundo agradecimento aos amigos pescadores que tão gentilmente nos acolheram nessa difícil jornada. Como ensinamento afirmo, mais uma vez, que o conjunto canoísta/caiaque é por demais importante. O canoísta precisa aprender a enfrentar condições adversas e manter o equilíbrio, além de considerar que um caiaque inadequado pode vir a comprometer a missão e os prazos planejados como foi o caso do caiaque do Professor Romeu. Mais uma vez tenho de louvar a performance do Caiaque Oceânico Individual Cabo Horn, da Opium FiberGlass.

O amigo Fábio Paiva está de parabéns! Sob as mais adversas condições, seu caiaque deu demonstração de ser único no gênero. Tenho constantemente colocado em cheque sua estabilidade, conforto e capacidade de carga e, em nenhuma delas, ele me desapontou.

- Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA) - Casarão da Várzea

Canção do CMPA (Barbosa e Souza/Arão Lobo)

Somos espadas de um povo altaneiro, Somos escudos de grande nação,

Em nossos passos marcham guerreiros Avança a glória num pendão.

Na nossa escola forja-se a grandeza, Temos no peito amor juvenil,

Em nossas cores, toda a natureza,

Nós somos filhos do Brasil.

Salve o Brasil, CMPA ! Salve o Brasil, CMPA !

No valor de nossos avós, Salve o Brasil, CMPA ! Salve o Brasil, CMPA !

na bravura dos seus heróis.

Ano que vem, faremos a travessia de Pelotas a Porto Alegre pela margem Ocidental da Laguna dos Patos, um tributo ao Centenário do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA).

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Laguna dos “Patos”

Os Lusíadas Canto II – 20

(Luís Vaz de Camões)

Já na água erguendo vão, com grande pressa, Com as argênteas caudas, branca escuma;

Cloto co’o peito corta e atravessa Com mais furor o Mar do que costuma.

Salta Nise, Nerine se arremessa, Por cima da água crespa, em força suma.

Abrem caminho as ondas encurvadas, De temor das Nereidas apressadas.

A origem do nome da Laguna dos Patos é, por demais, contraditória. A literatura do século XVI vincula o seu nome às aves palmípedes e, a partir do século XVII, faz alusão aos Índios Patos, como eram chamados os Carijós que povoavam a zona litorânea.

Nas minhas Travessias pela Laguna dos Patos, tenho encontrado diversos Capororocas, Patos-do-mato (também conhecido como pato-crioulo, pato-bravo, pato-mudo, pato-argentino, pato-selvagem ou cairina), biguás (também chamado corvo-marinho, pata-d’água, biguaúna, imbiuá, mergulhão e miuá) e outros tantos palmípedes que povoam nossas Lagunas litorâneas e que podem ter sido os responsáveis pelo batismo da Laguna dos Patos.

Pato-do-mato (Cairina moschata): vive em pequenos grupos, de até uma dúzia. Pousa sobre árvores desfolhadas para vigiar, descansar ou dormir. Faz seus ninhos nos ocos das árvores e em palmeiras mortas próximas à água. Raramente avistado nas proximidades da Laguna dos Patos. (Nota do Autor)

Biguá (Phalacrocorax brasilianus): mergulha para pescar e para facilitar a imersão elimina o ar que fica normalmente entre as penas. É visto em grandes bandos voando rente à água, em formação em “V”, e como essas revoadas são semelhantes à dos patos, são confundidos como tais por elementos não especializados. O biguá possui uma glândula uropigial que produz uma secreção que usa para impermeabilizar suas penas, permitindo-lhe mergulhar mais rápido e alcançar uma velocidade de aproximadamente 14 km/h, tornando-o um predador altamente eficaz na captura de peixes. (Nota do Autor)

Não creio que tenha sido uma determinada espécie o que mais chamou a atenção dos cronistas pretéritos, pouco afeitos à ornitologia, para nominar nossos acidentes geográficos e sim a abundância das aves. A narrativa de Francisco Lopez de Camará, mencionando “patos negros sin pluma, y con el pico curvo”, nos leva a considerar o biguá que possui o bico encurvado e que depois de mergulhar parece mesmo não possuir penas, além disso, até hoje os intermináveis e numerosos bandos impressionam a quem os avista.

A Laguna naqueles tempos pretéritos, quase despovoada, era muito mais piscosa do que nos dias atuais e, em consequência, abrigava um número igualmente considerável de Biguás (Phalacrocorax brasilianus).

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Outros pesquisadores, no entanto, defendem a tese de que o nome da Laguna teria sua origem nos tais Índios Patos, o que acho menos plausível.

O biógrafo, historiador, ensaísta, lexicógrafo, romancista e professor brasileiro Afonso d’Escragnolle Taunay, filho de Alfredo d’Escragnolle Taunay (Visconde de Taunay), nascido em Nossa Senhora do Desterro (Florianópolis), SC, em 11 de julho de 1876, narra, na sua “História Geral Bandeiras Paulistas”, editada em 1928, pela Typographia Ideal, que:

Um grupo de Índios Carijós que vivia na região da Laguna, em SC, conhecidos no Brasil como Patos.

A monumental obra de Afonso d’Eseragnolle Taunay foi baseada em volumosa documentação encontrada nos arquivos brasileiros, portugueses e espanhóis. São onze volumes, publicados no período de 1924 a 1950, onde o autor incorporou contribuições tanto de cronistas coloniais como dos pesquisadores de sua época. O estudo de Taunay, além de fundamentar-se nos arquivos brasileiros, contemplou também os arquivos ultramarinos, em particular os espanhóis.

O historiador brasileiro Capitão-Tenente Lucas Alexandre Boiteux, nascido em Nova Trento, SC, no dia 23 de outubro de 1881, membro da Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro, do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e da Academia Catarinense de Letras, faz um relato esclarecedor nas suas “Notas para a História Catarinense”, editado em 1912, pela Livraria Moderna, que:

A grande tribo dos “Carijós” limitava-se ao Nordeste com os “Tupinikins”, ao Norte com os “Guayanás”, a Noroeste com os “Cai-acangs”, a Oeste com os “Guandos”, e finalmente ao Sul com os “Tapes”. Querem alguns historiadores que a nossa costa tivesse sido também habitada por uma tribo chamada – Patos. Os nossos cronistas antigos não se referem a ela. A confusão provém de terem sido denominados - dos Patos - a Bahia e Porto de Santa Catarina, que lá habitavam, diziam - os Índios dos Patos, e daí os Índios Patos, os Patos, etc. O Padre Simão de Vasconcellos nos explica que esta tribo era a mesma dos “Carijós” e que assim a denominavam porque habitavam a costa.

Sabe-se, através de sítios arqueológicos e sambaquis, que os Índios Carijós, do grupo Tupi-guarani, habitavam o litoral Sul do país há aproximadamente 4.000 anos, e que alguns de seus membros domesticavam o Pato-do-mato, o que poderia ter levado os europeus a denominá-los de Índios dos Patos. Com tempo, a denominação foi abreviada para Índios Patos o que finalmente teria servido para nominar a enorme Laguna litorânea.

O fato de alguns pesquisadores, menos informados, vincularem ao nome de Patos pelo fato de estes, supostamente, possuírem pés grandes tem uma explicação lógica, tendo em vista a confusão entre Patos e Patagones (Patagões). Vamos rememorar...

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Fernão de Magalhães, servindo ao Rei de Espanha, ao realizar a primeira viagem de circum-navegação pela Terra, foi o primeiro europeu a atravessar o Estreito de Magalhães, batizado com o seu nome, e a navegar o Oceano Pacífico. Ao desembarcar no extremo Sul da América Latina, Magalhães encontrou a região povoada pelos “Tehuelches”.

Os Tehuelches eram caçadores nômades que utilizavam couros de Guanaco para protegerem-se do frio e cobriam os pés com as mesmas peles aparentando ter os pés grandes. Como a palavra “pata”, significa “perna” ou mesmo “pé”, no espanhol coloquial, esses nativos de grandes “patas” foram denominados, então, de Patagões e sua região de Patagônia.

Guanaco (Lama guanicoe): mamífero ruminante semelhante às lhamas (Lama glama). Alcança cerca de 1 a 1,25m de altura nas espáduas. O pelo é longo e macio, castanho-avermelhado em cima, e branco embaixo. Os guanacos vivem em grupos nas montanhas e planícies e, outrora vagavam em grandes bandos. O lhama e a alpaca (Vicugna pacos) da América do Sul são descendentes do guanaco. (Nota do Autor)

O marinheiro, geógrafo e escritor italiano Antônio Pigafetta, nascido em Vicenza, Itália, em 1491, pagou expressiva quantia para acompanhar Fernão de Magalhães em sua viagem. Pigafetta foi o cronista da viagem, e um dos dezoito homens que logrou retornar à Espanha, com vida, em 1522, depois de completar a circum-navegação, sob o comando de Juan Sebastián Elcano, após a morte de Magalhães. Pigafetta assim mencionou seu encontro com os nativos da patagônia:

19 DE MAIO DE 1520 — Porto de San Julián – Distanciando-se destas ilhas para continuar nossa rota, chegamos aos 49°30’ de Latitude Meridional, onde encontramos um bom Porto. E como o inverno se aproximava, julgamos ser aconselhável passar ali aquela má estação.

Um gigante — Transcorreram dois meses sem que víssemos nenhum habitante do país. Um dia, quando menos esperávamos, um homem de figura gigantesca se apresentou ante nós. Estava sobre a areia, quase nu, e cantava e dançava ao mesmo tempo, jogando “poeira” sobre a cabeça.

Jogando poeira sobre a cabeça: segundo James Cook, habitantes das Ilhas do Mar do Sul derramavam “água” na cabeça em sinal de paz. (Nota do Autor)

O Capitão enviou à terra um de nossos marinheiros, com ordem de fazer os mesmos gestos em sinal de paz e amizade, o que foi muito bem compreendido pelo gigante, que se deixou conduzir a uma pequena Ilha, onde o Capitão havia descido. Eu me encontrava ali com muitos outros. Deu mostras de grande estranheza ao ver-nos e levantando o dedo queria dizer que acreditava que nós havíamos descido do céu.

Sua Figura — Este homem era tão grande que nossas cabeças chegavam apenas até a sua cintura. De porte formoso, seu rosto era largo e pintado de vermelho, exceto os olhos, que eram rodeados por um círculo amarelo e dois traços em forma de coração nas bochechas. Seus cabelos, escassos, pareciam branqueados por algum pó.

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Seu Traje — Seu vestido, ou melhor dito, seu manto, era feito de peles muito bem costuradas, de um animal que abunda no país como veremos a seguir.

Animal Estranho — Este animal (guanaco) tem cabeça e orelhas de mula, corpo de camelo, patas de cervo, cauda de cavalo e relincha como este. Calçava uma espécie de sapato feita com a mesma pele.

Sapatos de Peles: estes sapatos tornavam as pegadas dos gigantes ainda maiores, levando Magalhães a denominá-los “patagões”. (Nota do Autor)

Armas — Tinha na mão esquerda um arco curto e maciço, cuja corda era feita do intestino de tartaruga. Na outra mão, empunhava várias flechas pequenas, feitas de bambu, tendo num extremo plumas, como as nossas, e na outra, em lugar de ferro, uma ponteira de um material vitrificado branco e preto. Deste mesmo material fazem instrumentos para cortar lenha.

Presentes — O Capitão-geral mandou dar-lhe de comer e beber e, entre outras bugigangas, presenteou-o com um espelho grande de aço. O gigante, que não tinha a menor idéia deste utensílio e que, sem dúvida, via pela primeira vez a sua figura, retrocedeu tão assustado que derrubou quatro de nossos homens que o rodeavam. Depois de receber mais alguns presentes, como pente e contas de vidro, retornou a terra, acompanhado por quatro homens bem armados.

Cerimônias — Um companheiro seu que havia se recusado a subir a bordo, vendo-o voltar, correu a avisar e chamar os outros, os quais, ao perceberem que nossos homens armados se aproximavam, se colocaram em fila, sem armas e desnudos. Em seguida, começaram sua dança e seu cântico, levantando o dedo indicador para o céu, para dar-nos a entender que nos consideravam como seres desconhecidos do alto. Não tendo outra coisa que dar-nos a comer, ofereceram uma espécie de pó branco em panelas de argila. Os nossos convidaram-nos, por senhas, a que passassem aos navios e ofereceram para ajudar a transportar o que quisessem levar consigo. Vieram, com efeito, mas conduzindo apenas arcos e flechas, toda a carga haviam deixado sobre os ombros das mulheres, como se estas fossem mulas de carga. (...)

Outro Gigante — Seis dias depois, estando nossa gente atarefada em fazer lenha para provisão da esquadra, viram outro gigante vestido como os que acabávamos de deixar e armado igualmente de arco e flecha. Ao aproximar-se, tocou a cabeça e o Corpo, elevando em seguida as mãos ao céu, gestos que os nossos imitaram. O Capitão-general enviou um bote à terra para conduzir o gigante até uma ilhota próxima do Porto e na qual se havia construído uma casa para abrigar uma forja e um armazém para algumas mercadorias.

Amigos dos Espanhóis — Este homem era maior e mais bem formado que os outros. Tinha também os modos mais suaves, mas dançava e saltava tão alto e com tanta força, que seus pés se distanciavam várias polegadas da areia. Passou alguns dias conosco e lhe ensinamos a pronunciar o nome de Jesus, a rezar o Pai Nosso, etc. Chegou a recitar esta oração tão bem quanto nós, porém na sua fortíssima voz. Por fim, batizamo-lo, colocando-lhe o nome de João. (...)

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Em 1766, a tripulação do HMS Dolphin, capitaneada por “Commodore” John Byron, quando retornou à Grã-Bretanha, deixou vazar o boato de que tinham visto uma tribo de nativos da Patagônia com 9 pés de altura (2,74m), quando passaram por lá em sua circunavegação do globo. No entanto, quando uma edição desta viagem foi publicada, em 1773, os patagônios foram registrados como tendo 6 pés e 6 polegadas de altura (1,98m); enquanto a estatura média de um europeu na época era de 1,68m.

O escritor Sinval Medina, no seu romance “Tratado da Altura das Estrelas”, descreve, à sua maneira, este encontro:

(...) o piloto João Carvalho, o escravo Hanriques, o fidalgo Pedro Eanes, o escriba Antônio Pigafetta e o menino Carvalhinho, eis que deparam com gigantesca figura de gentio que os observa com mui absorto olhar, e andam já dois arcabuzeiros a alumiar as mechas para abatê-lo sem mercê quando se põe a triste espécie de abantesma (fantasma, espectro) a cantar e dançar em visíveis sinais de paz e amizade.

De imediato começa o Carvalhinho arremedando-o, e nisso ensaia a troca de algumas palavras, que o gigante, com grande dificuldade, parece compreender e tomar a bem. E lá, com ditos e sinais, para espanto de todos, vão se entendendo.

Apresenta o tal gentio tão avantajada estatura que a cabeça dos cristãos mal lhe ultrapassa a cintura. Traz sobre o Corpo apenas um saiote de pele de veado (guanaco), pese a frieza dos ares, e a face pintada de um branco terroso; e por armas, arco e flechas de cana com ponta de pederneira. Encurtando explicações, será o gigante recebido a bordo da Trinidad com grandes festas, a que retribui com sorrisos e abraços, pese temerem-lhe alguns o formidando amplexo.

Afinal, leva-o o Carvalhinho à presença do Capitão-general que, apesar do mal de tripas, mostra-se maravilhado e satisfeito com o porte do aborígene. Tal é sua estatura que se ajoelha ao adentrar a câmara, e assim permanece durante toda a entrevista, o que o Almirante toma como sinal de respeito. Quando vão os dois gentios a retirar-se, vira-se Magalhães para Carvalhinho e comenta, “carago, mira que pata mais tamanha tem esse animal”, dito que enseja a algum espirituoso pôr no gigante a alcunha de Patagão.

De tudo quanto vê a bordo, a admiração maior do disforme será para sua própria imagem refletida num espelho que lhe regala o Comandante. Oferecem-lhe de comer e beber, e ele, sem cerimônia, engole em três bocadas um saco de bolachas, dois ratos não esfolados — sobram apenas rabo e patas — e um corote: de água fresca. Em seguida, voltando-se para o Carvalhinho, declara que precisa retornar aos seus, e sem mais aquela, despe-se das peles que o vestem, embrulha-as em forma de trouxa e pula na água, vencendo em meia dúzia de braçadas a distância que o separa da Praia. A súbita partida do gigante deixa mestre Pigafetta contrafeito, sempre diligente em anotar minudências sobre as humanidades que vai encontrando na viagem. Não se agaste, Dom Antônio. Tranquiliza-o o Carvalhinho informando que o Patagão prometeu retornar no dia seguinte para continuar a prosa.

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Corote: pequeno barril, próprio para o transporte de água ou vinho. (Nota do Autor)

Minudências: minúcias, observações escrupulosas. (Nota do Autor)

O médico e historiador brasileiro Alexandre José de Mello Moraes, nascido em Maceió, AL, no dia 23 de julho de 1816, relatou na sua “Corographia Histórica, Chronographica, Genealógica, Nobiliária, e Política do Império do Brazil”, editada pela Typographia Americana, em 1858, que:

(...) Magalhães dera o nome de Patagões aos habitantes das terras do Sul da América conhecidos pelos outros gentios pelo nome de Morças, por terem os pés como patos, e estarem envolvidos em pele de um animal, que parecia ter cabeça e orelhas grandes, como mula, com Corpo de camelo, e cauda de cavalo; e acrescenta mais, que os Patagões, que estiveram a bordo eram gigantes, e que um homem de estatura ordinária chegava-lhe com a cabeça à cintura. Tudo isto é completamente falso, ou exagerado.

(...) a pele de animal com que se cobria o Patagônio era de Lhamas do Peru ou do Chile, e das Cordilheiras do Estreito de Magalhães; e os tais gigantes, nunca tiveram a estatura notada por Pigafetta: mas, todavia são homens mui altos, chegando a seis pés e três polegadas inglesas o mais robusto e corpulento que se tem encontrado nestes últimos tempos; e é provável, que, desde o ano de 1518 ou 1519 até agora, esta raça de homens da natureza não tenha degenerado.

A revista do Museu Paulista publicou interessante artigo a respeito do tema em questão em 1907.

REVISTA DO MUSEU PAULISTA

Publicada por Rodolpho von Ihering

Diretor Interino do Museu Paulista

Volume VII

S. PAULO

Typ. Cardozo, Filho & Ciª

35, Rua Direita, 35

1907

Os Índios Patos e o nome da Lagoa dos Patos

pelo Dr. Hermann von Ihering

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Tendo vivido por muitos anos à margem da Lagoa dos Patos e publicado sobre ela dois estudos, liguei interesse especial ao nome desta Lagoa e por fim adotei a opinião de que este nome não lhe provinha das aves aquáticas denominadas “Patos”, mas de uma tribo de Índios, aliás, pouco conhecida, dos Patos. Esta opinião foi combatida por Alfredo F. Rodrigues no seu artigo “O nome de Lagoa dos Patos”, declarando ele imaginária a dita tribo dos Patos.

Pretendendo em seguida tratar por extenso do assunto, reproduzo aqui a maior parte do referido artigo do Sr. Alfredo F. Rodrigues.

Com referência à ideia de que a Lagoa dos Patos tomou o nome de uma tribo de Índios, que habitara em suas margens, ele diz o seguinte:

O erro data de Ayres de Casal, ou pelo menos foi ele que o vulgarizou, pela notoriedade que alcançou a sua “Chorographia Brazileira”. Diz ele que: a Lagoa dos Patos tomou o nome de uma nação hoje desconhecida.

Referindo-se ao canal entre a Ilha de Santa Catarina e o continente, diz também:

Rio dos Patos lhe chamavam os primeiros descobridores, porque servia de limite entre os Índios deste nome que se estendiam até S. Pedro e os Carijós para o Norte até Cananéia.

Contra esta afirmativa foi o primeiro a protestar José Feliciano Fernandes Pinheiro, o Visconde de S. Leopoldo, nos “Annaes da Província de S. Pedro”, citando a opinião do Padre Simão de Vasconcellos:

Não longe da costa, divisa-se a cordilheira de imensa serrania, que reparte o Brasil: pelo torneio e aspecto do país, assim nossos antepassados classificavam a numerosa nação dos Carijós, que dominava toda esta região, em Carijós do Sertão ou do interior, e em Carijós do Mar ou dos Patos; a origem deste apelido esquadrinhou, e nos transmitiu o Padre Simão de Vasconcellos, que precedeu de uma armada espanhola, que em viagem para o Rio da Prata em 1554, obrigada por temporais, arribara à deserta Ilha, denominada ao depois de Santa Catarina, e deixara ali alguns patos, que procriando maravilhosamente, se foram espalhando em “copiosíssimos” bandos por todo aquele litoral; e foi a causa de onde as Alagoas, e toda aquela terra se chamaram dos Patos, e até hoje lhes dura este nome.

Alguns navios espanhóis, que em 1554 demandavam o Prata, tiveram de entrar no Rio Grande acossados pelo temporal: ali deixaram uns poucos de patos, que se multiplicarão a ponto de com a sua multidão cobrirem as águas que se ficarão chamando Lagoa dos Patos. (SOUTHEY)

Eram estes Carijós dos Patos fáceis no trato, pacíficos, se não irritados, e com alguma indústria; de sorte que, depois de 1554, entretinham os moradores do Porto de Santos comércio com eles, levando-lhes nas embarcações resgates de ferramentas, anzóis, facas, e outros gêneros, que permutavam por algodão, o qual plantavam e colhiam, redes, e índios que, ou cativavam na guerra, ou por castigo degradavam, etc. De tal maneira acessíveis, animaram os Missionários para empresas sagradas, e os Portugueses zelosos para fundação de povoações, com que dilataram nossos domínios.

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Em nota acrescenta ainda:

Nestes pontos de pura tradição, inclino-me a seguir antes o Padre Vasconcellos que, provincial e cronista da Companhia de Jesus no Brasil, escrevendo na Bahia, pelos anos de 1663, viveu mais próximo aos fatos e teve mais proporções de averiguá-los do que o Padre Casal na “Chorographia Brasileira” que, aliás, merecendo grande conceito no que escreveu das Províncias do Norte, que examinou “ocularmente”, não passando do Rio de Janeiro para o Sul, escreveu por meras informações; por isso não é muito que claudicasse a ponto de adicionar Províncias ao Império do Brasil que não lhe pertenciam, e entre outras cousas mais, dando existência a uma Nação dos Patos de que não se encontram os mínimos vestígios. Vide a enumeração que faz das Nações Índias o mesmo Padre Vasconcellos nas Notícias antecedentes das cousas do Brasil, n° 151 e 152.

A mesma versão se encontra no Santuário Mariano, Crônica escrita pelos Jesuítas, cujo primeiro volume se publicou em 1707, aparecendo o último em 1723:

Ilha de Santa Catarina — Patos — Cobrem estas aves as praias e terras da beira-Mar, por distância de 50 léguas e mais. São os mesmos da Europa. Ali os soltaram uns espanhóis que faziam viagem para o Rio da Prata em 1554.

Enganaram-se na data, porém, tanto o Visconde de S. Leopoldo como os dois cronistas Jesuítas, pois que aí já existiam patos muitos anos antes, sendo conhecidos por este nome diversos lugares na costa desde Santa Catarina até o Rio da Prata.

De fato, João Dias de Solis, chegando, em princípios de 1516, à Ilha de Santa Catarina, deu-lhe o nome de Ilha dos Patos; e na embocadura do Rio da Prata, denominou Rio dos Patos a um Arroio entre 35° e 34 1/3°. Não existe o roteiro da viagem de Solis, por isso não se pode precisar o motivo por que ele escolheu o nome “Patos” para esses dois lugares. Pode-se, porém, afirmar que não o tirou de uma tribo de Índios, pois que nenhum dos historiadores do século XVI, que se referem à sua viagem (Oviedo, Guevara e Herrera, 1535, 1552 e 1601) faz menção de tais Índios, citando pelo contrário os Charruas e outros. Devia, portanto, provir o nome da grande quantidade de “patos” aí encontrados. Isto não é uma simples conjectura sem base, porém um fato confirmado por documentos que datam de poucos anos depois. No Roteiro da Viagem de Diogo Garcia, realizada em 1526 e 1527, lê-se o seguinte:

E andando en el camino allegamos a un río que se llama el río de los Patos questá a 27 grados, que ay una buena geracíon que hacen muy buena obra a los cristianos, e llaman-se los Carrioces, que allí nos deram muchas vituallas que se llama millo e harina de mandioca, e muchas calabazas e muchos patos e otros muchos bastimentos porque eran buenos indios.

Na Carta em que Luiz Ramirez descreve a viagem de Sebastião Gaboto, realizada ao mesmo tempo que a de Garcia, tendo-se os dois exploradores encontrado em Santa Catarina, lê-se também:

Dijeron que cuatro meses poco más o menos antes allegásemos a este puerto de los Patos, que así se llamaba de elles estaban (...) En esta isla había muchas palmas en este puerto nos traían los indios infinito bastimento así de faisanes, de gallinas, babas, patos, perdices, venados, que de esto todo y de otras muchas maneras de caza había en abundancia y mucha miel.

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Em nenhum destes dois documentos, que assinalam a existência de patos em Santa Catarina, se fala em Índios com tal nome, apesar de virem relacionadas as tribos encontradas pela costa. Diogo Garcia dá mesmo o nome dos Índios de Santa Catarina, os Carrioces.

Outro testemunho confirma ainda estes dois. O Adelantado D. Álvaro Nunes Cabeça de Vaca, tendo arribado a Santa Catarina, em 29 de março de 1541, cruzou dali em direção ao Paraguai, pelo sertão, onde encontrou, dias depois, uma tribo de Índios, que o receberam com mostras de amizade.

Adelantado (adiantado): funcionário do Reino de Castela que tinha a máxima autoridade judicial e governativa sobre um Distrito. (Nota do Autor)

Nos Comentários da expedição, lê-se:

Esta nação chama-se Guarani, são lavradores que, duas vezes por ano, semeiam milho. Cultivam também mandioca (caçabi), criam galinhas e patos à maneira de Espanha e em suas habitações têm muitos papagaios.

Há ainda uma objeção a refutar, e esta oposta pelo Dr. Hermann von Ihering que, encarando a questão sob um ponto de vista diferente, negou a existência na Lagoa e em Santa Catarina do Pato Comum (Pato do mato - Cairina moschata), concluindo daí que não podia ter ele dado origem ao nome que, no seu entender, provem dos Índios Patos. O argumento do ilustre naturalista que, a primeira vista, parece resolver a questão, não resiste a exame. Os primeiros exploradores da costa, não sendo entendidos em História Natural, podiam tomar pelo Pato Europeu qualquer outro palmípede, que se lhe assemelhasse um pouco.

Do exposto, podem-se tirar três conclusões:

1° Em toda a costa de Santa Catarina ao Rio da Prata, havia grande abundância de patos, que foram vistos por Solis, Diogo Garcia, Sebastião Gaboto e Cabeça de Vaca;

2° Nenhum dos cronistas e roteiros do século XVI faz menção de Índios Patos, apesar de relacionarem as tribos da Costa;

3° Simão de Vasconcellos explicou bem a origem dos nomes Lagoa dos Patos, Rio dos Patos, Laguna dos Patos; porém enganou-se, afirmando que os patos começaram a procriar aí em 1554.

Deve ficar, portanto, como certo, que o nome da Lagoa dos Patos provém das aves desse nome e não de uma tribo de Índios assim chamada.

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A questão tem, como se vê, duas faces, uma ornitológica e outra etnográfica que, em seguida, trataremos separadamente.

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- O ponto de vista ornitológico

As opiniões dos autores divergem muito sobre esta questão, opinando uns por aves domésticas importadas, outros por diversas aves indígenas, entre as quais é preciso mencionar particularmente: o Pato do Brasil, o Biguá e o Pinguim. O nome “Pato” cabe em geral às espécies maiores dos Palmípedes comestíveis da família Anatidæ, cujas espécies menores são denominadas Marrecas.

Esta palavra de “Pato” acha-se, em sua aplicação no Brasil, restrita à Cairina moschata (Linn.), denominada “Pato real” pelos espanhóis. Esta espécie pertence em geral mais às regiões centrais do Brasil, sendo rara, ou faltando mesmo, na maior parte do nosso litoral. No Rio Grande do Sul, é encontrada particularmente ao longo dos grandes Rios, marginados por mato alto; mas não é ave da Lagoa dos Patos.

Há nesta um cisne, Cygnus melanocoryphus (cisne-de-pescoço-negro), denominado “Pato arminho”. Embora seja certo que o número das aves aquáticas nas margens da “Lagoa dos Patos” diminuiu bastante nos últimos cinquenta anos, assim mesmo perto da cidade do Rio Grande obtive nada menos de 14 espécies de Anatidas; não estava incluído, entretanto, neste número, a Cairina moschata. Como as minhas observações estão de acordo com as de Wied, Azara e outros observadores, é certo que o nome da Lagoa dos Patos não pode ser derivada de patos silvestres do gênero Cairina, posto que se tome por base as atuais condições faunísticas. Este fato, contudo, não exclui a hipótese de este nome provir de patos domesticados. Infelizmente é muito insuficiente o nosso conhecimento das aves criadas pelos indígenas antigos do Brasil.

Uma das informações mais valiosas neste sentido devemos a Alvar Nunes Cabeça de Vaca que, em sua expedição pelo interior do Estado de Santa Catarina, em 1541, notou que os indígenas “criam galinhas e gansos à maneira dos Espanhóis”. Esta indicação evidentemente se refere a Jacus e Patos e observo que eu mesmo tive, no terreiro da minha propriedade na Barra do Camaquã, Jacus e também uma Cairina moschata silvestre, em estado mais ou menos domesticado.

Penso que entre todas nossas aves, o pato é o que com mais facilidade pode ser domesticado e cruzado com as marrecas e patos criados. Os Jacus também são amansados com relativa facilidade, mas de noite não são capazes de entrar no galinheiro, empoleirando-se, pelo contrário, na cumeeira da casa.

Von Martins diz que, na região amazônica, se criam espécies de Psophía e Crax e no Brasil Oriental o Mutum (Crax carunculata Temm.). Markgrav descreve bem o pato, mas não diz que seja criado pelos indígenas, acontecendo o mesmo com Azara, Wied e tantos outros autores, que consultei. O Padre Nóbrega diz que, no Estado de S. Paulo, houve muita caça de mato e patos, que os Índios criam; bois, vacas, ovelhas, cabras e galinhas se dão também na terra e há delas grande quantidade. Outra informação valiosa referente ao Estado da Bahia devemos a Gabriel Soares que diz:

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criam-se mais ao longo destes Rios e nas lagoas muitas aves, a que o gentio chama “upeca”, que são da feição das da Espanha, mas muito maiores, as quais dormem em árvores altas, e criam no chão perto da água. Comem peixe, e da mandioca que está a curtir nas ribeiras, tomam os Índios estas aves, quando são novas, e criam-nas em casa, onde se fazem muito domésticas.

É certo que o Pato europeu não é mais senão um descendente da Cairina moschata da América Meridional. Han diz que já em tempos remotos se criavam patos na América.

Na sua segunda viagem, Colombo viu destas aves em S. Domingos e entre elas também brancas. Southey conta que os indígenas no Paraguai criavam nas suas casas patos almiscarados, o que se refere à Cairina moschata. Presume-se que o pato, que era a única ave criada pelos antigos Peruanos chamado “nuñuma”, veio do Peru à Europa, passando pela África.

A primeira descrição desta ave deu, na Europa, Conrad Gesner, em 1555 e, no mesmo ano, em Paris já se ofereciam patos como fina iguaria. Na América Meridional, os patos eram criados, segundo estes dados, no Peru, Paraguai e no Brasil.

Parece, entretanto, pouco provável que já então houvesse patos domesticados na costa, como se depreende também do trecho indicado de Alvar Nunes Cabeça de Vaca. Por esta razão não podemos admitir que a Ilha de Santa Catarina e diversos Rios, portos e a Lagoa dos Patos tivessem recebido seus nomes de patos domesticados do gênero Cairina.

F. F. Outes dá sobre o nome da Ilha de S. Catarina a seguinte informação:

Santa Cruz en su “Islario” da a entender claramente que tanto a la isla de Santa Catarina como al territorio continental adyacente se conocía en la primera época del descubrimiento bajo el nombre de los Patos “por los muchos de ellos que allí se vieron la primera vez que fué descubierto”. Esta afirmación del ilustre cosmógrafo se halla confirmada en muchos documentos de la época.

Me bastará citar las declaraciones de Antônio de Montoya y El “maestre” Juan en respuesta a la 20ª pregunta del interrogatorio en el pleito del Capitán Francisco del Rojas con Sebastián Caboto. Entre los autores modernos todos han aceptado La denominación antedicha ...

La causa del mencionado nombre parece estar en la gran cantidad de “patos negros sin pluma, y con el pico curvo”, conforme a expresa de Francisco Lopez de Camará (Historia General de las Indias, in Historiadores primitivos de Indias). Estas aves, continua Outes, algunos autores supunham serem pingüinos.

Estas informações antes dificultam do que facilitam a explicação. Não podemos admitir que estes patos tivessem sido Pinguins - Spheniscus magellanicus (pinguim-de-magalhães) porque estes, embora aparecendo às vezes nas costas do Brasil Meridional, nunca entram na água doce, não podendo, por conseguinte, dar o seu nome a Rios e lagoas. Além disto, a cor é diferente e também o bico é direito sem ponta recurvada.

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O caráter indicado do bico nos faz pensar no Biguá (Carbo vigua Vieill.) que também é de cor uniforme preta, mas a expressão “sem penas” não pode ser aplicada nem a esta, nem com relação a qualquer outra espécie. Além disto, o Biguá, muito semelhante a espécie congênere da Europa, conhecido como “Corvo marinho”, não pode ser confundido com patos e marrecas e ocorre nas costas da América Meridional desde a Patagônia até a Guiana.

Observando os biguás pousados nos troncos secos ou nas margens , secando-se ao sol, após seus longos mergulhos em busca das presas, os antigos cronistas podem ter sido levados a acharem que estes palmípedes não possuíam penas. (Nota do Autor)

Observo ainda que não é fácil explicar o nome de “Biguassu” ou Biguá grande, dado a um Rio de Santa Catarina, visto que há uma só espécie de Biguá. Há outra ave, bastante diferente em cor e bico, que é denominada Biguá-tinga (Plotus anhinga L.), porém é mais ou menos do mesmo tamanho e não ocorre na costa, mas nos grandes Rios no interior do Brasil.

Biguá-tinga: conhecido também como carará na Amazônia. (Nota do Autor)

Deste modo entende-se que os patos a que se referem os historiadores não podem ter sido nem pinguins nem biguás (?), sendo possível que se tratasse da Cairina moschata, provavelmente então muito mais comum na zona litoral do Brasil Meridional do que hoje.

- Ponto de vista etimológico

Numerosos escritores dos séculos XVIII e XIX referem-se a uma tribo de Índios Patos. Sobre o domicílio dela diz o Coronel José J. Machado de Oliveira:

O Rio dos Patos é hoje conhecido com o nome de Biguassu, que desemboca no canal que separa do continente a Ilha de Santa Catarina; servia ele de confins às tribos dos Carijós e dos Patos, que habitavam a primeira, o litoral entre a Conceição e o Biguassu, e a segunda o que decorre deste para o Sul.

Na sua história da Capitania de S. Vicente, publicada em 1772, diz Pedro Taques de Almeida Paes Leme:

É certo que da Vila de S. Vicente saíram, em 24 de agosto de 1554, os Padres Jesuítas Pedro Corrêa e João de Souza para a missão dos gentios Tupis e Carijós dos Patos e ambos foram mortos pela barbaridade destes Índios, como escreve o Padre Simão de Vasconcellos na “Chronica do Brazil”, onde mostra que Pedro Corrêa era sujeito de nobreza conhecida, e se fizera opulento na Vila de S. Vicente, para onde tinha vindo com o fidalgo Martim Alfonso de Souza, porém que, deixando a vida secular, tomara a roupeta (hábito talar dos sacerdotes) no Colégio de S. Vicente, e, ordenado, de presbítero, empregara o seu talento e ciência da língua dos gentios em convertê-los à fé católica, até que encontrara com a coroa do martírio pelos bárbaros Índios Carijós do Sertão dos Patos.

Outras informações sobre a região ocupada pelos Patos encontram-se no artigo de Felix F. Outes, “El puerto de los patos”, que reproduz vários Mapas antigos do Brasil e do Paraguai que, além dos dados geográficos, contêm indicações sobre as diversas tribos indígenas. Estes Mapas dão para a região do Rio Grande do Sul e parte contígua de Santa Catarina o nome dos Índios Patos.

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O mais antigo destes Mapas com tal indicação é o da Est. VIII, “construído por los jesuitas (1646-1649)”. Todos os outros Mapas seguintes indicam na mesma região os Índios Patos. Os Mapas mais antigos, publicados por Outes, não dão os nomes das tribos indígenas.

Não parece existir nenhuma informação exata sobre estes Patos. Tomando em consideração que o território do Rio Grande do Sul, nos tempos antigos, não foi explorado e só bem tarde foi colonizado, não é de admirar que sejam escassos e insuficientes os dados referentes aos primitivos habitantes do Rio Grande do Sul. É singular, entretanto, que o livro do Padre Gay, tratando minuciosamente dos indígenas do Brasil Meridional e do Paraguai, nem sequer nos transmita o nome de uma nação dos Patos. É bastante notável neste sentido o manuscrito do ano de 1612 que Gay reproduz com referência aos indígenas do Rio Grande do Sul, mencionando Guaranis, Arachanes, Charruas e Goianás.

Nem o manuscrito anônimo de 1584, nem Gabriel Soares mencionam os Patos, tratando, aliás, apenas dos indígenas desde o Pará até Santa Catarina.

Com referência ao livro de Ayres Casal, diz Alfredo F. Rodrigues, ter ele sido o primeiro a mencionar os Índios Patos, ao passo, que segundo F. Outes, ele se teria referido não a Índios, mas à ave Pato. Neste sentido, trata-se de um engano do último dos dois autores, visto que o livro de Ayres Casal se refere exclusivamente a Índios — “A Lagoa dos Patos, que tomou o nome duma Nação desconhecida ...”

Em geral podemos verificar que os escritores do século XVI não mencionam Índios Patos, referindo-se apenas às aves palmípedes e que nas publicações do século XVII se acha registrada uma tribo de Patos, sem que, entretanto, fossem dadas informações exatas.

- Conclusões

Resulta da exposição precedente que, para a explicação dos nomes da Lagoa dos Patos, do Rio dos Patos, etc. na literatura antiga há duas versões: Uma que se refere às aves palmípedes de que trata a literatura do século XVI e outra referente aos Índios Patos segundo a literatura do século XVII e seguintes. Contra esta segunda opinião pode-se objetar a falta de informações, referentes a estes indígenas na literatura mais antiga e isto no próprio manuscrito anônimo de 1612, publicado por Gay.

É preciso, entretanto, considerar que algum dos outros nomes de tribos Rio-grandenses, indicados naquele manuscrito, pode ser sinônimo do dos Patos e, mais, que argumentos de caráter negativo nada provam, particularmente, sendo, como é, a literatura antiga deficiente em informações etnográficas aproveitáveis. Por sua vez, a literatura do século XVI contém várias informações sobre a origem ornitológica destas denominações, mas as mesmas são contraditórias entre si. As aves a que se referem os antigos escritores, é licito supor-se, não devem ter sido nem pinguins ou biguás nem marrecas ou patos domesticados. Já João Dias de Solis, em 1515, deu à Ilha de S. Catarina o nome de Ilha dos Patos, sendo impossível supor que isto dissesse respeito a aves domesticadas, importadas da Europa.

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Se as diversas denominações dos “Patos” fazem referência a aves aquáticas, pode-se tratar apenas do “Pato Real” (Cairina moschata), devendo-se supor que esta ave tenha existido naquela época em muito maior número que hoje, nas costas do Brasil Meridional. Se assim for, não seria para admirar que os exploradores tivessem dado a várias localidades a denominação dos “Patos”, visto representar esta ave, sem dúvida, a caça mais valiosa entre as aves aquáticas daquela região.

Em favor desta hipótese posso acrescentar o resultado de um estudo geológico por mim publicado, que prova uma modificação profunda no caráter da vegetação no litoral do Rio Grande do Sul. Perto da costa observei, na vizinhança da cidade de Rio Grande do Sul, Colinas, coroadas de uma vegetação de arbustos espinhosos, que mostravam, pouco em baixo da superfície uma camada argilosa, humosa, com conchas terrestres e fluviais, que sugerem uma modificação profunda da flora e da fauna.

De experiências desta ordem devem lembrar-se os engenheiros que pretenderam melhorar as condições da Barra; recomenda-se, como auxílio indispensável, a defesa das terras por meio de vegetação, não só nas margens do canal, mas também numa faixa de 1 a 2 léguas de largura.

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É preciso confessar que os dados aqui expostos não conduziram a um resultado seguro.

Admitindo que os autores que falam de Índios Patos tivessem cometido um erro, a mesma suposição é aplicável aos autores do século XVI, cujas informações a respeito das aves “patos” são contraditórias, mas também em parte incompreensíveis e evidentemente falsas. A explicação, entretanto, que nas atuais circunstâncias mais se recomenda, é a do Sr. Alfredo F. Rodrigues, que precisa ser modificada só no que diz respeito às aves que causaram a dita denominação.

O caso seria então o de ter sido, antigamente, o Pato Real muito mais frequente no Brasil Meridional do que atualmente, tendo causado a denominação de várias localidades porque, como excelente caça que é, tornou-se digno de toda atenção por parte dos descobridores. O que neste sentido nos confirma mais nesta opinião é o fato de existirem também, em outros Estados do Brasil, localidades com a denominação de “Patos”, como nos estados de Minas Gerais e Paraíba. Não podemos atribuir estes nomes também naqueles Estados a uma tribo desconhecida dos Patos, sendo ao contrário evidente que a explicação, que deriva de uma origem comum a todas estas denominações, é a mais aceitável.

São Paulo, 8 de agosto de 1903.

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O Suor Poupa o Sangue!

Oração do Paraquedista

Dai-me, Senhor meu Deus, o que Vos resta; Aquilo que ninguém Vos pede.

Não Vos peço o repouso nem a tranquilidade, Nem da alma nem do Corpo.

Não Vos peço a riqueza nem o êxito nem a saúde; Tantos Vos pedem isso, meu Deus,

Que já não Vos deve sobrar para dar.

Dai-me, Senhor, o que Vos resta, Dai-me aquilo que todos recusam.

Quero a insegurança e a inquietação, Quero a luta e a tormenta.

Dai-me isso, meu Deus, definitivamente; Dai-me a certeza de que essa será a minha parte para sempre,

Porque nem sempre terei a coragem de Vo-la pedir.

Dai-me, Senhor, o que Vos resta, Dai-me aquilo que os outros não querem;

Mas dai-me, também, a coragem E a força e a fé.

- Lemas Eternos

O Suor Poupa o Sangue! Instrução Dura... Combate Fácil!

Andorinha que Anda com Morcego Acaba Voando de Cabeça para Baixo!

Ainda ecoam na minha alma alguns brados eternamente repetidos nas magistrais arcadas de minha saudosa Academia Militar das Agulhas Negras. Nossos instrutores, selecionados a dedo, eram combatentes de escol e nos ensinaram a controlar nossos medos e a enfrentá-los e, sobretudo, a ultrapassar nossos limites físicos e psicológicos para atingir os objetivos propostos.

Os Lusíadas Canto X - 153

(Luís Vaz de Camões)

De Formião, filósofo elegante, Vereis como Aníbal escarnecia, Quando das artes bélicas, diante Dele, com larga voz tratava e lia.

A disciplina militar prestante Não se aprende, Senhor, na fantasia, Sonhando, imaginando ou estudando, Senão vendo, tratando e pelejando.

Alguns mais desavisados teimam em afirmar que os tempos mudaram e que a rigidez dos treinamentos de outrora já não tem mais sentido. A pressão psicológica, as noites indormidas, o esforço físico levado ao limite, a alimentação escassa têm uma única finalidade, tentar colocar o guerreiro em uma situação similar à que ele vai encontrar no combate onde, sob condições extremamente adversas, ele terá de ser capaz de tomar a melhor decisão no momento oportuno.

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– Treinamentos

O inverno mais uma vez tem prejudicado sensivelmente minhas jornadas náuticas mas, graças aos ensinamentos que adquiri em Resende, sempre que possível parto para o confronto direto enfrentando o frio cortante e a procela.

No último fim de semana, confiei nos “homens do tempo” que prometiam frio na parte da manhã, mas muito sol na tarde de domingo e empreendi minha navegação pelas lagunas litorâneas. O frio intenso se tornava suportável graças aos abrasadores raios solares e procurei me distrair com a paisagem. Fui recompensado com a visão de um bando de doze capivaras que “lagarteavam” preguiçosamente na margem do Canal Manoel Nunes. Eram quatro fêmeas adultas com dois filhotes cada uma. Continuei minha saga e, depois de remar por duas horas, sem parar, para não esfriar o Corpo, as nuvens, repentinamente, encobriram o sol e, imediatamente, a temperatura cai e trouxe consigo uma garoa fina e gelada.

Cheguei a meu destino, Barra do Rio Tramandaí, literalmente “encarangado”. Depois de um reconfortante banho quente, mergulhei os pés em uma bacia de água quente e provei um delicioso chá preparado pela Rosângela. Depois de sofrer, por mais de duas horas, com o frio intenso, consegui, graças aos cuidados de minha querida amiga, recuperar-me plenamente.

O treinamento não pode, absolutamente, ser interrompido porque, na Semana Farroupilha, segunda quinzena de setembro, estarei junto com o Coronel Pastl e o Professor Hélio subindo a Laguna dos Patos de Pelotas a Porto Alegre. Será um reconhecimento para a Travessia a ser realizada em abril de 2012 em homenagem ao Centenário do Colégio Militar de Porto Alegre.

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Figura 01 – Margem Oriental da Laguna dos Patos – Bojuru – RS

Figura 02 – Laguna dos Patos – Bojuru – RS

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Figura 03 – Laguna dos Patos – Trilhas Criminosas em Bojuru – RS

Figura 04 – Laguna dos Patos – Farol de Bojuru – RS

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Figura 05 – Laguna dos Patos – Bojuru – RS

Figura 06 – Laguna dos Patos – Bojuru – RS

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Figura 07 – Laguna dos Patos – Bojuru – RS

Figura 08 – Laguna dos Patos – Bojuru – RS

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Figura 09 – Laguna dos Patos – Bojuru – RS

Figura 10 – Tatielly, Autor e Zé do Dedé – Com. do Estreito – RS

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Mapa 1: Travessia da Laguna dos Patos – Margem Oriental.

Chegada

Largada

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Nas Águas da Família Schiefelbein

Durante o vôo, o maguari e alguns outros pernaltas esticam o pescoço em linha reta. As grandes garças, ao contrário, inclinam o longo pescoço para trás numa belíssima curva, de

maneira que a cabeça fica bem próxima das espáduas. (Theodore Roosevelt)

Desde pequeno, as Maguaris (Ardea cocoi) me fascinam e parece que, volta e meia, as circunstâncias nos envolvem numa bela e emocionante trama. Às vésperas de minha jornada pela Margem Ocidental da Laguna dos Patos, eu precisava encontrar, em Bagé, um lugar adequado para treinar e que não ficasse muito longe da cidade. Minha querida compnheira Rosângela sugeriu que solicitássemos à família Schiefelbein o uso de sua bela barragem, na Granja do Valente.

A recepção não poderia ser mais cordial e os amigos prontamente aquiesceram. Ao contrário do pequeno Rio Negro, em Bagé, aqui eu podia desenvolver meu treinamento mais adequadamente e com mais rigor. A volta pelo perímetro da represa, incluindo a entrada por um canal de tomada d’água para a lavoura, era vencida entre 40 e 50 minutos o que facilitava meu controle e me permitia desenvolver uma velocidade similar à que vou imprimir na Laguna dos Patos.

A montante da barragem, as árvores submersas exibiam, além de seus galhos secos, aproximadamente 30 ninhos das formidáveis Maguaris. Foi a primeira vez que eu tive a oportunidade de admirar de perto um ninhal de tal envergadura. Já observara inúmeros ninhais de outras espécies, no Pantanal Mato-grossense e na Amazônia, mas nenhum de Maguaris.

A navegação a cada volta ganhava um momento mágico que era poder admirar minhas caras amigas de perto e de lambuja um ninho, à altura de meus olhos, de um João Grande (Ciconia euxenura) com três grandes ovos. Graças aos Schiefelbein, revivi, nestes poucos dias em que permaneci em Bagé, a ave de meus encantos juvenis.

- Ardea cocoi

A garça-moura ou maguari é uma ave ciconiiforme da família Ardeidae. É a maior das garças do Brasil, atingindo 1,20 m de altura, uma envergadura de 1,80 m e um peso de 3 quilos. Durante o vôo, as batidas de asas são ritmadas e lentas. Em deslocamentos médios ou longos, encolhem graciosamente o pescoço ao mesmo tempo em que estendem as pernas completamente, apenas em vôos curtos mantém o pescoço esticado em linha reta, como menciona Roosevelt no início deste capítulo.

Fora do período reprodutivo, vive solitária e, mesmo nessa época, a maioria mantém-se isolada durante a alimentação. Permanece pousada nas margens dos mananciais, em meio à vegetação, pescando peixes, rãs, pererecas, crustáceos, moluscos e pequenos répteis. Graças às suas longas pernas e pescoço, consegue capturar presas de lugares mais profundos do que as demais garças.

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Possui um longo período de acasalamento e nidificação que se estende de janeiro a outubro quando então se reúnem em ninhais coletivos. Os grandes ninhos construídos com gravetos e forrados com gramíneas são construídos na parte superior e externa das árvores de maneira a permitir a aproximação das grandes aves. O casal se reveza desde período do choco até a alimentação dos 3 ou 4 filhotes de sua ninhada. O ninhal favorece a segurança contra os principais predadores, nesta fase, que são os carcarás e urubus, que tentam se apoderar dos ovos e filhotes.

Neste período, a plumagem dos pais é acrescida de um pequeno tufo de leves penas brancas na base do pescoço, além de as penas acinzentadas e negras ficarem mais nítidas. O mesmo acontece com as penugens ao redor dos olhos que ficam mais azuladas e o bico que ganha um amarelo mais vivo. Os filhotes ostentam as mesmas cores dos pais, mas bem mais esmaecida, e não possuem a listra negra do pescoço ou do ventre.

Da Noite do Rio (Alcides Werk Gomes de Matos)

Nesta noite sem medida

eu todo banhado em sombras fugi de casa, fugi

para o branco desta Praia, como se a aurora que busco

neste Rio se afogou.

Preciso acordar o Rio que está cansado de viagens

para ver se me alivio da morte que trago em mim com falas de cobras-grandes e de mortos pescadores que fazem parte do Rio

e estão assim como estou.

No céu repleto de nuvens há nuvens cheias de chuva: por que não chove? Quisera molhar-me dentro da noite, tremer de fome e de frio

por remissão dos meus males deixar meu Corpo vazio guardando o castelo inútil e partir buscando a aurora para que venha depressa banhar as águas do Rio e minha face marcada

dos ventos com que lutei.

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Travessia da Laguna dos Patos – Margem Ocidental

Eu vi Corpos de tropas mais numerosas, batalhas mais disputadas, mas nunca vi, em nenhuma parte, homens mais valentes, nem cavaleiros mais brilhantes que os da bela cavalaria Rio-

grandense, em cujas fileiras aprendi a desprezar o perigo e combater dignamente pela causa sagrada das nações. Quantas vezes fui tentado a patentear ao mundo os feitos assombrosos que vi realizar por essa viril e destemida gente, que sustentou, por mais de nove anos contra

um poderoso império, a mais encarniçada e gloriosa luta! (Giuseppe Garibaldi)

O treinamento na represa da Granja do Valente, de propriedade da família Schiefelbein, em Bagé, produziu-me um efeito salutar tanto físico como moral. Eu estava, definitivamente, pronto para enfrentar, mais uma vez, a “inconstância tumultuária” da Laguna dos Patos. Minha apreensão anterior em relação à preparação física, prejudicada pelos rigores do inverno “pampeano”, foi substituída pela fé e pela confiança. A rigorosa travessia, realizada em plena “Semana Farroupilha”, era uma justa homenagem ao “herói de dois mundos”, Giuseppe Garibaldi. Vamos ressaltar aqui a travessia terrestre de Garibaldi que, guardadas as devida proporções, procuramos homenagear realizando a transposição do Pontal de Tapes para encurtar, consideravelmente, o trajeto.

– Herói de dois mundos

Era belo e forte como um atleta, e as melenas alouradas caindo-lhe até os ombros, davam-lhe a mais romântica das aparências - uma estranha e buliçosa aparência de

espadachim inquieto... (Brasil Gerson)

O Herói Farroupilha Giuseppe Garibaldi é conhecido, na historiografia, como “herói de dois mundos” por ter participado de conflitos nos continentes europeu e americano. Prestando serviço à marinha republicana, Garibaldi foi aquinhoado com duas canhoneiras imperiais aprisionadas por Bento Manoel Ribeiro além de receber a missão de construir dois lanchões, em um barracão improvisado às margens do Rio Camaquã, para combater a frota imperial que patrulhava a Laguna dos Patos, com o objetivo de evitar que o Porto de Rio Grande fosse tomado pelos Heróis Farroupilhas.

Elma Sant’Ana e André Sant’Ana Stolaruck, na sua obra “A Odisséia de Garibaldi no Capivari”, assim se referem às dificuldades encontradas por Garibaldi em transformar ex-escravos, “Centauros dos Pampas”, em carpinteiros, armadores e por fim marinheiros:

O Estaleiro da República

Possuía a República um pequeno estaleiro na Foz do Rio Camaquã, usado para a construção de barcos para futuros combates. De acordo com as sugestões de Domingos José de Almeida, resolveu-se que Garibaldi deveria organizar um corso nas águas interiores. Afinal, Garibaldi era um homem do Mar e deveriam aproveitar a sua experiência. Para lá dirige-se Garibaldi. Tem que improvisar marinheiros e reúne italianos aventureiros de toda a laia, um Norte-americano quaker da Virgínia chamado John Griggs, ex-escravos e gaúchos de bota e espora. Mas tem que improvisar também armadores e carpinteiros. Como não tem barcos, vê-se obrigado a fabricá-los, com toda a precariedade de recursos que a República Rio-Grandense lhe oferece.

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É aqui, verdadeiramente, que começa a brilhar o seu gênio, que mais tarde assombrará o mundo. Constrói e arma dois lanchões de guerra e faz prodígios operando nas águas rasas da Lagoa dos Patos, pondo em xeque a poderosa esquadra imperial brasileira, comandada por um experiente Almirante inglês, chamado de John Pascoe Grenfell, mercenário a serviço da Corte no Rio de Janeiro.

Conseguiu do Governo que Luigi Rossetti fosse a Montevidéu a fim de buscar a ajuda de Carniglia e outros profissionais indispensáveis. Após algumas semanas, tinha completa a equipagem de mestres e operários. Vieram alguns marinheiros de Montevidéu e outros foram recrutados pelas redondezas.

Em 1° de setembro de 1838, Giuseppe Garibaldi é nomeado Capitão-Tenente, Comandante da Marinha Farroupilha. Aparece o 1° número do Jornal Oficial dos Farrapos - O POVO, editado pelo jornalista italiano Luigi Rossetti, fiel companheiro de Garibaldi. Em 26 de outubro, Eduardo Mutru, amigo de infância de Garibaldi, une-se a ele, conforme decreto oficial, publicado no jornal O POVO:

Expediente pela Repartição da Guerra e Marinha.

Ao Capitão-Tenente José Garibaldi, comunicando-lhe haver sido despachado Eduardo Mutru, 2° Tenente para a Marinha da República, o qual marcha nessa data a reunir-se-lhe. (SANT’ANA)

O escritor Paulo Markun, no seu livro “Anita Garibaldi, uma heroína brasileira” relata:

As duas lanchas foram batizadas com nomes que evocavam vitórias farroupilhas: a maior, Rio Pardo, era destinada a Garibaldi, enquanto o Seival ficaria com o Norte-americano John Griggs. Cada uma delas tinha dois pequenos canhões de bronze. Em termos bélicos, isso significava que só a destreza dos marinheiros, a pequena profundidade das águas do Camaquã e uma dose extra de sorte impediriam um fracasso logo na primeira saída. Setenta homens, sendo sete italianos, compunham a tripulação, assim descrita pelo chefe das Forças Navais da República (Giuseppe Garibaldi):

Uma verdadeira chusma cosmopolita composta de tudo, tanto na cor quanto na nacionalidade. Americanos em sua maioria, e na maior parte constituídos de negros e mulatos libertos e, no geral, os melhores e mais fiéis. Entre os europeus, eu contava com italianos, dentre os quais o meu Luigi e Eduardo Mutro, meu companheiro de infância — ao todo, sete com quem podia contar. O resto compunha-se daquela classe de marujos aventureiros conhecidos nas ribas americanas do Atlântico e do Pacífico pelo nome de Irmãos da Costa, classe que certamente havia fornecido as equipagens dos flibusteiros, dos bucaneiros e que ainda hoje fornece seu contingente ao tráfico de negros. (MARKUN)

Continuam Elma Sant’Ana e André Sant’Ana Stolaruck:

O Império, informado de tal estaleiro, mandou barcos vigiar a saída de barcos para a Lagoa. Porém, Garibaldi, como tinha previsto, saiu junto à costa da Lagoa, junto aos juncos, não sendo notado pelos imperiais. Em suas “Memórias”, ele faz o seguinte relato: (...)

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Começaram então as nossas correrias pela Lagoa dos Patos. Passaram-se alguns dias sem fazermos mais do que presas insignificantes. Os imperiais tinham trinta navios de guerra e um barco a vapor. Porém, nós tínhamos a nosso favor os baixios das águas. A Lagoa não era navegável para os grandes barcos, senão numa espécie de canal que se seguia ao longo da sua margem no oriente. No lado oposto, sucedia o contrário, porque o solo era cortado em declive e nos víamo-nos, às vezes, encalhados antes de tocar na margem. Os bancos de areia estendiam-se pela Lagoa à semelhança dos dentes de um pente e só havia de bom que estes dentes eram bastante afastados uns dos outros. Quando éramos forçados a encalhar, ou os canhões do navio de guerra ou do vapor nos incomodavam, dizia:

Avante, meus patos. saltemos à água! E os meus patos caíam n’água e à força nos braços erguiam o lanchão, transportando-o para o outro lado do banco de areia.

A vida que passávamos era laboriosa e cercada de perigos, em razão da superioridade numérica do inimigo mas, ao mesmo tempo, essa vida era encantadora, pitoresca e muito em harmonia com o meu caráter. Não éramos unicamente marítimos, seríamos também cavaleiros no caso de necessidade. No momento do perigo, encontraríamos quantos cavalos quiséssemos e formaríamos um esquadrão, senão elegante, ao menos temível.

Nas margens da Lagoa, encontravam-se estâncias que, pela aproximação da guerra, tinham sido abandonadas pelos proprietários, onde achamos muita abundância de cavalos e o necessário para o seu sustento; por outro lado, nas herdades (grande propriedade rural, geralmente composta de montados, terras de semeadura e casa de habitação), existiam terrenos cultivados, onde colhíamos abundância de trigo, batatas doces e muitas vezes, excelentes laranjas, que são as melhores de toda a América do Sul.

A gente que me acompanhava, verdadeira tropa cosmopolita, era composta de homens de todas as cores e todas as nações - todos obedeciam a minha primeira ordem e nunca me fatigaram, nem me vi na necessidade de os punir. (SANT’ANA)

Prossegue o escritor Paulo Markun:

Na primeira quinzena de maio, os lanchões farroupilhas entraram na Lagoa dos Patos pela primeira vez. Circularam por ali durante nove dias, procurando uma presa. Finalmente surgiram duas, no rumo de Porto Alegre, sem escolta e com a bandeira do império hasteada. A Rio Pardo se aproximou, seguida pelo Seival. Depois de dispararem um único tiro de canhão, abordaram a desguarnecida sumaca Mineira, cujos tripulantes fugiram num batelão, para serem presos em terra, não longe dali, enquanto outro veleiro, o patacho Novo Acordo, escapava, indo rumo ao Rio Grande, levando a notícia do ataque. Essa primeira captura virou uma festa: a sumaca acabou inutilizada, ao encalhar na margem, mas tudo o que havia dentro foi aproveitado. Cordas, velas e equipamentos seriam usados em outros lanchões. A maior parte da carga — quinhentas barricas de farinha — foi entregue ao Governo, que as distribuiu por várias cidades, incluindo a capital, Piratini. Os marinheiros receberam parte do butim, incluindo uniformes.

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Sumaca: barco pequeno, de dois mastros. (Nota do Autor)

Como resposta. o almirante Grenfell mandou para a lagoa quatro navios de guerra. Mas não era fácil apanhar barcos pequenos e de pouco calado, cujos tripulantes agiam como guerrilheiros. Só atacavam quando o inimigo era mais fraco, conheciam todos os meandros daquelas águas e, vez por outra, desembarcavam com seus cavalos — havia sete a bordo — mostrando a mesma competência exibida minutos antes nas escotas e adriças, com rédeas e arreios.

Escota: corda presa a um canto inferior de uma vela, para fixá-la e regular sua orientação. (Nota do Autor)

Adriça: cabo para içar vergas, velas e bandeiras. (Nota do Autor)

Sempre que havia um baixio pela frente, os lanchões, perseguidos pelos imperiais, corriam o risco de encalhar. Nesse momento, Garibaldi gritava:

- À água, patos.

Os marinheiros obedeciam com alegria. Seguravam o barco sobre os ombros — Garibaldi entre eles — e o carregavam para o outro lado da ponta, desnorteando o inimigo. Muitas vezes, tiveram de ficar horas dentro da água fria da Lagoa e o bom humor desaparecia, mas bastava surgir nova situação de risco e lá iam os patos de Garibaldi para dentro da água.

Mas essa brincadeira de esconde-esconde terminou quando a cúpula Farroupilha concluiu que era indispensável conquistar o Porto de Laguna — com a ajuda daquele arremedo de Força Naval.

O projeto não era segredo, como mostra esta notícia publicada no Rio de Janeiro pelo Jornal do Commercio, de 8 de junho de 1839:

Os insurgentes têm o propósito de mandar, por estes dias, uma expedição a Santa Catarina, sob a direção do Coronel Onofre Pires, com o fim de sublevarem os pacíficos habitantes daquela Província e os obrigarem a separarem-se da comunhão brasileira. Esta notícia, que a muitos não merece peso, julgamos que deve merecer toda a atenção da parte do Governo; pois não há dúvida que se têm preparado os ânimos em Santa Catarina para a revolta; e que muitos dos nossos revolucionados se foram abrigar naquela Província; e por isso ali existem os elementos necessários e só falta quem lhe dê começo. Esse alguém foi Davi José Martins, ou melhor, o General Davi Canabarro. No desastre de “Rincón de Las Gallinas”, em que as tropas imperiais foram derrotadas, ganhara o galardão de Tenente e a fama de bravo, ao enfrentar o inimigo de forma desesperada, para permitir que os outros recuassem. Nos tempos de paz, ao trabalhar com seu tio, Antônio Ferreira Canabarro, conquistara o sobrenome com que passaria à história.

Quando a Farroupilha começou, estava quieto no seu canto. Tempos depois, cingiu novamente a espada e apresentou-se como voluntário. Seis meses antes de a expedição Farroupilha virar manchete no Jornal do Commercio, o Governo republicano tinha mandado uma comissão de especialistas até a parte Norte da Lagoa dos Patos. Quem consulta um simples Atlas Geográfico Escolar vê uma linha escura demarcando a costa gaúcha desde Torres até São José do Norte. Nenhuma barra de Rio, nenhuma baía, nada. Mas ali existe um acesso. Tão pequeno que foi ignorado pelos primeiros navegadores e cartógrafos.

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É a Barra do Rio Tramandaí. Segundo os entendidos, um acidente geográfico completamente inútil para fins de navegação. Garibaldi e o General Canabarro estiveram no local e concluíram que era possível utilizá-la para alcançar o Atlântico. Mas como chegar do Rio Capivari até as Lagoas que levariam a essa Barra quase impossível?

Garibaldi tinha um plano. Apresentou-o ao Governo e obteve o indispensável sinal verde, certamente com o aval de Canabarro.

Outros já haviam usado o mesmo expediente: Marco Antônio, o Imperador romano, Mohamed II, o Sultão, bem como os venezianos e, mais recentemente, não muito distante do Tramandaí, corsários a soldo da Confederação. Charles Fournier, um francês a serviço dos uruguaios, teve seu navio “Profeta Bandarra” aprisionado pela escuna “Leal Paulistana”. Como vingança, atacou a base de Maldonado, transportando sobre carretas e com a força de juntas de bois um lanchão e dez baleeiras. (MARKUN)

Elma Sant’Ana e André Sant’Ana Stolaruck descrevem, com detalhes, “A Odisseia de Garibaldi no Capivari”:

Na margem Oriental da Lagoa, num fundo de saco chamado “Roça Velha”, não muito acima do Itapuã, desemboca o pequeno Rio Capivari, cujas cabeceiras se encontram numas águas de pouco fundo que circundam os contrafortes meridionais da Serra Geral. Foi nessas paragens de difícil acesso que se embrenharam os corsários, perseguidos de perto pelos legalistas, escreve Lindolfo Collor. Encurralado na Lagoa do Casamento, Garibaldi remonta o pequeno Rio Capivari, cujas águas, com profundidade máxima de 4,5 metros e de largura menor do que isso, até onde permitia o reduzido calado dos lanchões. Enquanto isso, Greenfell comunicava ao Presidente da Província que os rebeldes haviam abandonado as suas posições do ltapuã e da Ponta do Junco e que seguira atrás deles, com a barca “Cassiopea”, “examinando com cuidado toda a costa do Capivari, lugar onde, constava-me, os outros lanchões inimigos estavam reunidos. Estando o mato ocupado por infantaria inimiga, vi que nada podia fazer sem força da terra”. Greenfell dá ordens ao Primeiro-Tenente José Ricardo Coelho de Abreu para bloquear a entrada do Rio Capivari e retorna a Porto Alegre. Precisa preparar a expedição para destruir o estaleiro em Camaquã — a base dos corsários. “OS ENGARRAFADOS DO CAPIVARI FICAVAM PARA DEPOIS...”

Os legalistas mantinham guarda à Barra do Capivari, supondo que a rendição era somente uma questão de dias. “As canhoneiras do Tenente Abreu, cautelosas, guardavam os acessos à enseada da Roça Velha”, narra Lindolfo Collor. Garibaldi sabe que a Foz acha-se sob vigilância das forças imperiais. “Com efeito, diz ele em suas Memórias, na margem Meridional localizava-se a cidade-Fortaleza de Rio Grande e, na margem Setentrional, São José do Norte, cidade menor, mas também fortificada, assim como Porto Alegre, encontravam-se ainda sob o poder imperial e faziam dele, o senhor da entrada e da saída do Lago. O Império controlava somente esses três pontos, os quais, no entanto, bastavam-lhe amplamente”. “Propus a construção de duas carretas — prossegue Garibaldi — grandes o suficiente e resistentes o bastante para que se colocasse um lanchão sobre cada uma delas — e a atrelagem de bois e de cavalos na quantidade necessária para puxá-las. Minha proposta foi aceita e eu fui incumbido de levá-la a efeito”.

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Enquanto isso, o Coronel David Canabarro descia em direção a Mostardas, para examinar o terreno mais favorável para a travessia e, ao mesmo tempo, requisitava o gado disponível nos campos, para escolher duzentos bois, no mínimo, em condições de serem aproveitados.

Outros trabalhadores abatiam as árvores e roçavam os matos das margens do Capivari, com seus machados e facões. Procuravam nivelar a ribanceira, “um extenso plano inclinado, pelo qual seriam levadas à água, as pesadas rodas que se estavam construindo em fazenda próxima, sob as vistas do hábil carpinteiro Joaquim de Abreu”.

Mais difícil do que traçar o itinerário do Capivari ao Tramandaí é chegar-se à conclusão referente a carretas que transportaram os lanchões.

Wolfgang Ludwig Rauls, o maior escritor e pesquisador sobre Anita Garibaldi no Brasil, nos dá uma análise mais detalhada do transporte dos barcos do Capivari ao Tramandaí, especialmente das carretas utilizadas por Garibaldi, nesta épica empreitada, como ele se refere.

Mandei construir oito enormes rodas de uma solidez a toda prova, com cubos proporcionados ao peso que deviam suportar. Numa das extremidades da Lagoa, que é oposta a Rio Grande, a Noroeste, existe no fundo de uma ravina um pequeno Ribeiro, que corre da Lagoa dos Patos para o Lago de Tramandaí, ao qual tratávamos de levar os dois lanchões. Fiz descer a esta ravina, imergindo-o o mais possível, um dos nossos carros; depois levantamos o lanchão até que repousasse sobre o duplo-eixo. Cem bois mansos foram atrelados aos varais mediante nossas cordas mais fortes, e vi então, com prazer, que não posso exprimir, o maior de nossos lanchões caminhar como se fosse um fardo qualquer. O segundo carro desceu por sua vez, foi carregado como o primeiro e deslocou-se com igual êxito. Chegados à margem do Lago Tramandaí, foram os lanchões deitados à água do mesmo modo por que tinham sido embarcados.

Garibaldi penetrou pela Foz do Capivari, remontou o Arroio duas léguas para fugir à vigilância dos imperiais, abrigando-se por detrás de uma volta propícia e mascarando os mastros por meio de folhagens. Foi daí que começou o percurso terrestre; primeiro através de estrada aberta no mato, depois por vasta superfície quase nua de pastios, quase toda coberta de areias que, da bacia interna, se estende até o Tramandaí, a barra nunca antes praticada, por onde os Farrapos pretendiam ganhar o Atlântico.

Desmanchadas logo as grosseiras e agora inúteis rodas, os navios foram trazidos à beira mais cômoda para o efeito. Procedeu-se em seguida à remontagem da artilharia, recarga das praças-de-arma, paióis e porões; bem como a recondução dos minguados teres da equipagem aos reduzidos camarotes.

Wolfgang Ludwig Rau prossegue a análise das descrições e deduz o seguinte:

1. Cada carreta tinha quatro rodas, pois se mencionam oito grandes rodas e duas carretas.

2. As rodas eram de dimensões muito maiores que as comuns na época e deve-se pensar que as rodas normais naqueles tempos tinham por volta de dois metros de diâmetro.

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3. Em 1839, não era conhecido o sistema de prato e disco para fazer girar veículos de quatro rodas, e o sistema de eixo e pino não teria sido eficaz para a enorme carga que representavam os barcos. Não existem dúvidas que Garibaldi encontrou a mais feliz solução que poderia obter naquela época e com os meios ao seu alcance; aproximou os eixos de madeira para que fosse relativamente fácil fazer curvas. Isto se deduz do termo “duplo-eixo”, pois se referisse a dois eixos separadamente, usaria a expressão “dois eixos”. A denominação “duplo-eixo” parece indicar que ele queria usar um único eixo, mas que, devido ao peso, se viu obrigado a colocar dois.

4. A estrutura da carreta estava abaixo dos eixos, pois se fala que o lanchão se apoiava no duplo-eixo.

5. Deduz-se também que a carreta não tinha estrutura de suporte para o barco, e que a estrutura deste era suficientemente forte para resistir sem deformações ao transporte, sujeitado somente ao eixo duplo.

Independentemente das considerações anteriores, analisa Rau, deve-se ter em conta que Garibaldi não dispunha de ferro, nem de uma indústria avançada, pois as cidades onde poderia encontrar esses elementos estavam em mãos imperiais. Conclui-se, então, que os sistemas de eixos e cubos fossem de madeira de lei, lubrificada com graxa animal. Por estes motivos, o anel periférico das rodas estava recoberto por couro cru.

Para a dedução das dimensões, partiu-se das seguintes considerações básicas:

a) que o peso do lanchão vazio, mais os mastros, eram de 25 toneladas;

b) que o peso da carreta e rodas eram de oito toneladas;

c) que existiu uma margem de segurança de 7 toneladas (Garibaldi fala da grande resistência das rodas).

Somando os pesos e dividindo o total pelas quatro rodas de cada carreta, encontramos que cada uma deveria ser calculada para suportar 10 toneladas. A carga máxima para um sistema eixo-bucha de madeira de lei, com lubrificação de graxa animal, não deve passar de 4 quilos por centímetro quadrado. Supondo que o eixo tinha um diâmetro de 35 cm e que o cubo da roda tinha 80 cm de largura, teremos uma superfície de 2.800 cm2 para resistir a uma carga de 10.000 kg, do que resultam 3,51 kg/cm2 — valor perfeitamente aceitável para o sistema. A massa da roda se chama de “Cubo”, embora seja cilíndrica, porque a peça de madeira da qual se parte é precisamente um cubo. Logo, se a largura do cubo era de 80 cm, também seu diâmetro deveria ser de 80 cm.

A descrição das carretas da época nos ensina que o diâmetro das rodas era quatro vezes o diâmetro do cubo, e que a largura do anel periférico da roda devia ser igual à metade do diâmetro do cubo, bem como tinham as rodas um número ímpar de raios, porque se supunha que os raios diametralmente opostos podiam rachar o cubo. Daí deduzimos que as rodas da carreta deveriam ter 3,20 m de diâmetro, e uma largura do anel periférico de 40 cm. Feito um estudo de verificação de tensões, no anel e nos raios, determinou-se que o número de raios deveria ser de 11.

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Como diz Rau, os anéis periféricos estavam cobertos de couro cru. Este, se colocava molhado e cozido com tentos em três capas: a primeira era circunferencial, e uma vez seca, era engraxada, e depois coberta com outras duas capas de couro, dispostas em diagonal, que davam um aspecto característico às rodas. Supondo que o “Seival” tivesse 5 metros de boca (largura máxima), podemos dizer que o eixo tinha um comprimento de 5,40 m com 35 cm de diâmetro. Um eixo com estas dimensões em madeira de lei satisfaz as solicitações a que está submetido. Garibaldi diz em seu relato que o lanchão ia simplesmente apoiado no duplo-eixo. Portanto, sobre os mesmos eixos se fixavam quatro peças com tarugos de madeira de lei, que serviam de cama ao barco. A fixação das rodas nos eixos, para que estas pudessem girar sem sair fora, foi a clássica, com cunhas possantes que atravessavam o eixo.

Garibaldi fala de “Varais”, quer dizer mais de um, onde estavam presos os bois. Cita também a quantidade de bois: cem para cada carreta (50 juntas). O problema que se apresenta é saber como estavam distribuídos os animais. Eles poderiam ter sido colocados em linha de 4 ou 5; mas por razões de simetria, é evidente que o número escolhido foi 4.

É fácil deduzir que a carreta tinha dois grandes troncos ou varais de uns 11 metros de comprimento, unidos aos eixos por tarugos de madeira de lei, fixados com cunhas. A união era completada por cordas de couro cru. Dois reforços diagonais colocados sobre os varais e entre o duplo-eixo asseguravam a rigidez transversal do sistema, já que a rigidez vertical se obtinha pela forte união, por meio de cordas entre a carreta e o lanchão, com o que se obtinha um conjunto de notável solidez. Atrelados os bois em 4 filas de 25 cada uma, e colocado em movimento o conjunto carreta-lanchão, este contava com uma grande estabilidade devido a seus 6 metros de bitola. A disposição das rodas em duplo-eixo lhes permitia girar facilmente e, em caso de curvas fechadas, bastava colocar diante das rodas de um dos lados, pedras ou madeiras que as imobilizassem, para obter, em consequência, a rotação da carreta.

A análise acima permitiu a reprodução racional das carretas de Garibaldi, capacitadas a realizarem as tarefas de 1839 — sem utilizar uma única peça de metal, conclui Wolfgang Ludwig Rau, na sua análise técnica.

Este estudo foi realizado por engenheiros do Estaleiro Só, no ano de 1970, quando estavam construindo uma réplica do Seival, em tamanho natural. (Nota do Autor)

Em “Anita — a guerreira das Repúblicas”, o autor, Dr. Adilcio Cadorin, reforça a análise feita por Rau de que Garibaldi “determinou a construção de dois carretões, com rodas de quase quatro metros de diâmetro, que sendo construídos somente com madeira encaixada, sem nenhum prego ou parafuso, foram colocadas na água até submergi-los. Depois deslizaram as naus sobre a água, até onde estavam submersos os lanchões, quando então duzentos bois emparelhados e atrelados puxaram as carretas e sobre ela vieram para fora d’água os lanchões. Seria essa, por certo, acrescenta Lindolfo Collor, a parte mais difícil da empresa. Alguns botes tocados a remo e numerosos nadadores, afrontando as águas gélidas do Capivari, gastaram horas a fio no trabalho, que se diria impossível, de sotopor (pôr por baixo) as enormes rodas aos cascos dos navios”.

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No dia 5 de julho, Garibaldi remonta o pequeno Rio Capivari, onde não podem manobrar os pesados barcos do império, puxando sobre rodados para a terra os dois lanchões artilhados e, assim, transformando lanças de guerra em picanas. Assula juntas de bois, atravessando ásperos caminhos, através dos campos úmidos - em alguns trechos completamente submersos. Piquetes corriam os campos entulhando atoleiros. Outros cuidavam da boiada. Garibaldi vê “os moradores do lugar deleitarem-se com um espetáculo invulgar e bizarro: duas naves atravessando em carretas puxadas por duzentos bois, num espaço de 54 milhas ou dezoito léguas - e tudo isto sem a menor dificuldade, sem um mínimo acidente”. Levam seis dias até a Lagoa Tomas José, chegando, portanto, a onze de julho. Cada barco tinha dois eixos e naturalmente quatro rodas imensas, revestidas de couro cru. No dia 13, seguem, da Lagoa Tomás José, para a Barra do Tramandaí, sob o Oceano Atlântico e no dia 15, lança-se ao Mar com sua tripulação mista: 70 homens - Garibaldi comanda o Farroupilha, com dezoito toneladas, e Griggs, o Seival, com doze toneladas. Ambos armados com quatro canhões de doze polegadas e eram de molde “escuna”, informa Cary Ramos Valli.

A célebre operação de transposição terrestre contou com a cumplicidade e o sigilo da população local o que garantiu o êxito do projeto.

– Professor Hélio um Samurai das Águas

Emprestei ao Professor Mestre de Educação Física do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA) Hélio Riche Bandeira um antigo caiaque fabricado pela “KTM”, modelo Anaico, que usei nas provas de águas brancas (descidas de corredeiras e quedas d’água) no Mato Grosso do Sul, final da década de 80, quando residia em Aquidauana, MS.

É um caiaque super-reforçado, mas que se torna um tanto bandoleiro quando recebe vento de popa e ondas de través. No último fim de semana testamos nossas forças saindo da Raia 1 até a Ilha do Chico Manoel, perfazendo quarenta quilômetros, num intervalo de cinco horas de ida e volta, sem demonstrarmos cansaço ou perda de ritmo.

O primeiro grande Desafio do Hélio, como canoísta, e o primeiro obstáculo que ele teria de vencer era o domínio de um caiaque em águas turbulentas como as da Laguna dos Patos. Há décadas que venho apregoando que o conjunto Canoísta-caiaque tem de ser aperfeiçoado até que se tenha forjado um sistema singular e monolítico. As grandes ondas, os ventos fortes e as rajadas imprevistas, tão comuns na Laguna dos Patos, não concedem ao canoísta tempo suficiente para pensar na melhor maneira de reagir e podem, em uma fração de segundo, provocar um indesejado naufrágio. As reações precisam ser instintivas, rápidas, havendo necessidade de uma grande interação do conjunto Canoísta-caiaque com a natureza que o cerca, é fundamental saber interpretar o pulsar das águas e o compasso dos ventos com apurada precisão cartesiana, mas com a alma de um artista. O Professor Hélio levou a sério os conselhos e treinou durante quase três semanas para a desafiadora jornada. A disciplina invulgar do Mestre de artes marciais aliada à sua determinação permitiu-lhe dominar a técnica da canoagem em poucos dias.

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– Equipe de Apoio

A previsão de ventos fortes durante todo o trajeto impediu que o Coronel PM Sérgio Pastl nos apoiasse com seu veleiro Ana Cleci. Nosso fiel amigo escudeiro, porém não nos deixou na mão e o apoio naval foi então substituído pelo terrestre.

O Coronel Pastl contava, ainda, com o concurso dos destacamentos da Brigada Militar existentes ao longo do trajeto, da parceira Rosângela Schardosim, dos novos amigos Pedro Auso Cardoso da Rosa e sua querida esposa Vera Regina Sant’Anna Py além dos dois netos do Coronel Pastl Pedro Sérgio Londero Pastl e Brian Pastl Wechenfelder.

– Partida de Bagé (16 de setembro)

Saímos eu e a Rosângela de Bagé depois do almoço, do dia 16 de setembro, rumo à Praia do Laranjal, em Pelotas. Contatamos o Professor Hélio, por volta das 15 horas, já no local de destino, e procuramos uma pousada para nos alojar. Os ventos fortes acima de 25 nós (45km/h) e ondas superiores a 1,5 metros prenunciavam sérias dificuldades para o dia da largada.

– Partida da Praia do Laranjal (17 de setembro)

A Tempestade (Gonçalves Dias)

Fogem do vento que ruge As nuvens aurinevadas, Como ovelhas assustadas Dum fero lobo cerval;

Estilham-se como as velas Que no alto Mar apanha, Ardendo na usada sanha,

Subitâneo vendaval.

Bem como serpentes que o frio Em nós emaranha, — salgadas As ondas s’estanham, pesadas

Batendo no frouxo areal. Disseras que viras vagando

Nas furnas do céu entreabertas Que mudas fuzilam, — incertas Fantasmas do gênio do mal!

Partimos às 06h15 enfrentando o mesmo Nordestão e as mesmas ondas que avistáramos no dia anterior. Felizmente as ondas de proa podiam ser vencidas com facilidade pelo caiaque de meu parceiro sem grandes dificuldades técnicas mas, em contrapartida, exigiam de nós um grande esforço físico. Em condições normais, nossa velocidade cruzeiro é de 4 nós (7,2km/h), o forte vento de proa, porém, não permitiu que chegássemos sequer aos 2 nós.

Depois de 01h15, tendo navegado apenas três quilômetros e meio, fizemos a primeira parada numa Praia (31°43’15,60”S / 52°11’27,48”O) onde um amistoso e carente “guaipeca” se aproximou e foi brindado com um pedaçinho de barra de cereal. As perspectivas não eram alvissareiras, nesta velocidade chegaríamos a São Lourenço somente na madrugada do dia seguinte. Descansamos e prosseguimos nossa saga confiando que a meteorologia confirmasse seus prognósticos que anunciavam ventos do quadrante Sul a partir do início da tarde. Passamos pela grande Colônia de Pescadores Z3 (31°42’04,06”S / 52°09’17,97”O).

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Colônia de Pescadores Z3: também conhecida como Colônia de São Pedro ou Arroio Sujo, foi fundada em 29 de junho de 1921. Alguns moradores mais antigos afirmam que a família “Costa” foi uma das primeiras a se estabelecer na região personificada pelo casal Olegário e Adelaide Costa. No início eram poucas pessoas e famílias, vivendo em casas de madeira e palha, oriundas de diversas regiões. Na primeira fase, no início do século XX, os moradores eram do Estado do Rio Grande do Sul, agricultores de cidades como Piratini, Tapes, Viamão e Rio Grande. Já numa segunda fase, a partir da década de 1950, vieram grupos oriundos do Estado de Santa Catarina, oriundos de cidades como Laguna, Itajaí, Florianópolis, entre outras. A partir da década de 1960, começaram a vir famílias oriundas de uma Ilha conhecida como “Ilha da Feitoria”, localizada a uma hora de barco da Colônia Z3. Numa fase final, a partir do início da década de 1990, começaram a surgir grupos oriundos das periferias urbanas e da zona rural de Pelotas. (Ecomuseu da Colônia Z3)

Fizemos nova parada na Margem Ocidental da boca da Lagoa Pequena sem notar qualquer mudança nas condições do tempo. Depois de comunicarmos ao pessoal de apoio nossa posição e nossas apreensões, partimos rumo à Ponta da Feitoria, na Ilha da Feitoria. A meio caminho, uma repentina mudança nos entusiasmou, os ventos abrandaram. A alegria durou pouco e uma chuva extremamente fria nos envolveu. São Pedro de Cafarnaum, o “manda-chuva” batizava o novo canoísta. Aportamos, às 12h30, na Ponta da Feitoria (31°41’36,50”S / 52°02’22,18”O) e novamente uma doce calmaria nos empolgou. Ledo engano, estávamos protegidos pela vegetação da Ponta Feitoria. Uma pequena capelinha e umas poucas casas de pescadores compunham o bucólico cenário. Depois de mais de seis horas de navegação, estávamos a apenas 21 km de distância, em linha reta, do ponto de partida, um terço do trajeto previsto. Fotografamos os arredores e animados, partimos.

Contornamos a Ponta da Feitoria e nos defrontamos, novamente, com o “Nordestão” que não perdera sua impetuosidade. Navegamos por mais de uma hora e paramos frente a uma pequena moradia onde residia o seu Fernando. Conversamos com o solitário caseiro que nos contou seu infortúnio, naufragara o pequeno barco e o seu motor de popa estava sem condições de uso. Fernando nos informou que mais adiante encontraríamos o senhor Flávio Oliveira Botelho e que ele certamente nos providenciaria abrigo. Comuniquei ao pessoal de apoio a mudança de planos, faríamos uma parada intermediária, em decorrência do vento que não sofreara seu ímpeto. Partimos para nosso último lance e aportamos junto às belas ruínas da centenária sede da Estância Soteia (31°37’52,31”S / 52°00’57,38”O) mais conhecida como Casarão da Soteia, construído pelos índios Guaranis, nos idos de 1780, e que remonta à época da Real Feitoria de Linho Cânhamo embora não tenha sido a sede da mesma. Apesar do triste estado em que se encontram as ruínas, ainda é possível visualizar-lhe o belo terraço (soteia), de frente para a Laguna dos Patos, que lhe empresta o nome. Nenhuma árvore foi plantada na frente voltada para a Laguna para não comprometer a vista a partir do grande terraço. Em volta do casarão, porém, cinco estóicas paineiras dão um toque especial ao conjunto.

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Essas paineiras por serem centenárias, não possuem mais espinhos no caule e galhos mais baixos. Algumas paineiras costumam, a partir dos vinte anos de idade, com o engrossamento da casca, perder os espinhos inicialmente na parte mais baixa do caule e, com o passar dos anos, a queda se estende às partes mais altas da árvore.

Real Feitoria de Linho Cânhamo (1783-1789): instalada, em 1783, na região de Canguçu velho, Município de Canguçu, sob a inspeção do Padre Francisco Xavier Prates, acompanhado de Antônio Gonçalves Pereira de Faria, um Furriel para Almoxarife, quatro Soldados europeus, e quarenta escravos de Sua Majestade trazidos do Rio de Janeiro, para trabalhar no cultivo e industrialização das duas plantas têxteis. Estes produtos, na época, eram empregados na fabricação de cabos e velas das embarcações. O nome do Município de Arroio do Padre tem origem em um acidente ocorrido com o Padre Francisco. Conta a tradição que o Padre e seu cavalo foram arrastados pelas águas do Arroio e que ele só se salvou do afogamento porque conseguiu agarrar-se a alguns galhos. Desde então, o local ficou conhecido como Arroio do Padre. (Nota do Autor)

O Padre Francisco faleceu em 1784 e a Feitoria, a partir de sua morte, entrou em franco declínio, tendo em vista a pouca produtividade das colheitas, até ser transferida para São Leopoldo. Seu irmão Paulo Xavier Rodrigues Prates tornou-se mais tarde proprietário da região da cidade de Canguçu, da Ilha da Feitoria e de todo o primitivo Rincão do Canguçu.

Carreteiro (Jayme Caetano Braun)

Nobre cardápio crioulo das primitivas jornadas, Nascido nas carreteadas do Rio Grande abarbarado, Por certo nisso inspirado, o xiru velho campeiro

Te batizou de “Carreteiro”, meu velho arroz com guisado.

Leváramos o dobro do tempo previsto para percorrer pouco mais de 30km e seguramente a energia suficiente para percorrer 90km. O senhor Flávio Oliveira Botelho havia sugerido, inicialmente, que ocupássemos uma instalação ao lado do grande casarão e mencionou que precisava tirar um gato morto de lá antes de instalar-nos. Ao verificar que nossas embarcações eram simples caiaques, o bom homem se comoveu, levou-nos para sua casa e brindou-nos com suas encantadoras histórias e um saboroso carreteiro, permitindo ainda que usássemos as camas de sua moradia. Na propriedade existe a mais bela figueira que já tive a oportunidade de admirar! Segundo o Sr. Flávio, ela já foi fotografada para constar de calendários de Pelotas e São Lourenço. Foi uma noite agradável onde tivemos, graças à acolhida do senhor Flávio, a possibilidade de recuperar nossas energias para a empreitada do dia seguinte.

– Partida do Casarão da Soteia (18 de setembro)

Depois de uma boa noite de sono partimos, às 07h15, para São Lourenço. As condições meteorológicas haviam melhorado significativamente e fizemos três paradas estratégicas para poder observar as belezas naturais, em especial as frondosas figueiras e as belas orquídeas que emprestavam suas belas formas e cores aos troncos retorcidos, arrebatados das margens pela fúria das águas da Laguna.

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Avistamos, ao longe, São Lourenço por volta das 11 horas e a partir daí até nossa chegada, por volta das 13 horas, as tainhas saltavam graciosamente à frente das embarcações projetando seus belos, esguios e hidrodinâmicos corpos prateados sobre a linha do horizonte. Avistamos a Rosângela, o Coronel Pastl e seus dois netos Pedro Sérgio e Brian que nos esperavam na Foz do Rio São Lourenço (31°22’41,35”S / 51°57’58,27”O).

– Pérola da Laguna

Em São Lourenço, degustamos o precioso churrasco preparado pelo Coronel Pastl no acampamento montado no Iate Clube e, depois da refeição, arrumamos nossos pertences. O Professor Hélio permaneceu no acampamento e eu fui para a Pousada da Laguna Apart Hotel, reservada pela Rosângela. A confortável Pousada é a única que concede desconto de 50% para idosos e, graças a isso, pude aproveitar essa rara regalia.

Depois de um reconfortante banho, fomos conhecer a aprazível cidade com suas belas casas e a agradável orla à margem esquerda do São Lourenço.

A origem do Município remonta ao final do século XVIII, quando a coroa portuguesa distribuiu terras nas margens da Lagoa dos Patos a militares que se destacaram nas guerras contra os espanhóis. Os proprietários erigiram capelas em devoção aos seus santos prediletos. Em 1807, os moradores da Fazenda do Boqueirão construíram a Capela de Nossa Senhora da Conceição, ao redor da qual desenvolveu-se o Povoado que é o berço do Município. Em 1830, o Povoado da Fazenda do Boqueirão foi elevado a Freguesia, por Dom Pedro I, sendo desmembrado da Vila de Rio Grande e incorporado à Vila de São Francisco de Paula, atual Pelotas.

Na Fazenda de São Lourenço, situada na margem esquerda do Arroio do mesmo nome, foi edificada, em 1815, uma Capela devotada a São Lourenço. No Arroio São Lourenço, o italiano Giuseppe Garibaldi, a serviço da República Rio-grandense, improvisou o estaleiro onde foram construídos os dois lanchões armados usados para combater a frota imperial baseada na Lagoa dos Patos e empregados mais tarde na expedição Farroupilha a Laguna. As águas rasas do Arroio serviam de refúgio para a flotilha Farroupilha, sempre que ameaçada pelo maior poder de fogo dos barcos imperiais. São Lourenço foi palco de vários combates entre o exército Farroupilha e o imperial. (Fonte: www.saolourencodosul.rs.gov.br)

Nenhum historiador ou pesquisador sério confirma o Arroio São Lourenço como local escolhido para a fabricação dos lanchões de Garibaldi e sim o Rio Camaquã.

Em 1850, o Coronel José Antônio de Oliveira Guimarães doou parte das terras da fazenda para uma nova Povoação e, em 1858, firmou contrato com o prussiano Jacob Rheingantz, para o estabelecimento de colonos alemães na região. O pequeno porto, localizado na embocadura do Arroio São Lourenço, tornou-se então um dos mais importantes portos de veleiros mercantes do Sul do Brasil, contribuindo para o progresso da colônia que foi grande produtora de batata durante o século XIX e parte do século XX.

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A casa onde Rheingantz instalou a administração da Colônia e a sua residência está preservada e integrada ao patrimônio arquitetônico do Município. Muito embora a Freguesia de Boqueirão tenha sido elevada à condição de Vila e emancipada de Pelotas em 26.04.1884, a sede do novo Município foi transferida em 15.02.1890 para São Lourenço, promovida então a Vila. Em 31.03.1938 passa a ser cidade. (Fonte: www.saolourencodosul.rs.gov.br)

Na pousada, consegui secar as roupas molhadas e me reorganizar para a próxima empreitada. O atendimento cordial da gerência, o preço diferenciado para idosos e a qualidade das instalações da Pousada da Laguna Apart Hotel certamente nos servirão de referência para a próxima travessia em abril de 2012.

– Partida de São Lourenço (19 de setembro)

O merecido descanso em São Lourenço nos recompôs e partimos confiantes para a terceira etapa de nossa travessia na Laguna dos Patos rumo ao Rio Camaquã. Os ventos, porém, e as ondas de través não haviam diminuído sua intensidade exigindo de nós um esforço muito grande para progredir. Fizemos uma parada intermediária (31°19’58,83”S / 51°55’40,26”O) antes da Ponta do Quilombo, de onde rumamos diretamente para Este pegando, a partir daí, o vento de proa, novamente o Professor Hélio conseguiu assumir o comando de seu voluntarioso caiaque “Anaico” e avançamos celeremente a uma velocidade de 4 nós (7,2km/h).

Paramos na Ponta do Quilombo (31°20’00,83”S / 51°51’20,96”O) e mostrei ao Hélio nosso objetivo a Nordeste, a Foz do Camaquã. Ele sugeriu uma parada a uns cinco quilômetros adiante no que parecia, pelo Mapa do Google Earth, uma extensa Praia de areias brancas. O vento ia golpear o caiaque do Hélio com ondas de través, novamente prejudicando-lhe a progressão. Avancei diretamente para o ponto sugerido (31°17’58,45”S / 51°49’32,76”O) e aguardei o companheiro em terra. O Hélio mal parou para descansar e resolveu continuar a progressão acompanhando a costa enquanto eu, depois de aguardar um tempo, procurei orientar minha rota diretamente para a Foz do Camaquã.

Aportei próximo à Foz (31°17’10,18”S / 51°46’17,01”O) e arrastei o caiaque para um banco de areia mais ao Sul, deixando-o de lado para que o professor pudesse avistá-lo de longe. Calibrei o GPS e fiquei, algum tempo, admirando as aves que emprestavam um colorido especial à mesopotâmia camaquense. Um bando de oito colhereiros cor-de-rosa chamou-me, em especial, a atenção com suas graciosas evoluções e cores que se mesclavam com o azul celeste.

Colhereiros cor-de-rosa (Platalea ajaja): para obter alimento, a ave arrasta o seu bico sensível em forma de colher de um lado para o outro revirando o lodo. No período reprodutivo, exibe uma bela plumagem cor-de-rosa. A ingestão de peixes, insetos, camarões, moluscos e crustáceos que contenham carotenóides dão uma coloração rosada ao colhereiro, que se torna mais intensa na época da reprodução. (Nota do Autor)

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O Hélio demorou um pouco, pois confundira-se com a trama aquática da região e, depois de descansar um pouco, partimos, contornando o Delta assoreado do Camaquã, para nosso destino na Ilha de Santo Antônio. Avistamos uma pequena Ilha na entrada da Barra Grande e penetramos confiantes nas águas do Camaquã. Logo na entrada observei, intrigado, uma estranha embarcação que se aproximava. Eram os amigos Pedro Auso Cardoso da Rosa e sua esposa Vera Regina Sant’Anna Py em seu caíque oceânico duplo, totalmente modificado com dois estabilizadores na popa e suportes para carga na proa. Os parceiros nos conduziram até a cabana (31°14’42,63”S / 51°44’54,37”O) de seu amigo Henrique, na Ilha de Santo Antônio, onde pernoitaríamos.

Na cabana nos aguardavam o Coronel Sérgio Pastl e seus dois netos Pedro Sérgio e Brian. O Mestre Pedro fez questão de transportar os caiaques no seu reboque da Praia até a cabana. Depois de arrumarmos nossas tralhas e tomarmos um bom banho, saboreamos a refeição preparada pelo Coronel Pastl. Dormimos cedo para enfrentar a jornada seguinte.

– Vera Regina Sant’Anna Py

Rio Camaquã (Vera Regina)

Em cada volta de Praia Em cada barranca do Rio

Ficaram as pegadas somente Da capivara assustada

E do canoísta Que dali partiu.

Belo Rio Camaquã! Do serpentear do teu leito Levamos a grata lembrança Do vigilante Martim-pescador,

Do vôo da Garça moura, Do saltar da tainha,

Da espuma da correnteza, Da rede do pescador...

A professora Vera Regina, gaúcha de Guaíba, reside em Camaquã, RS, é graduada em Ciências, especialista em meio ambiente e toxicologia aplicada. A canoagem lhe proporcionou uma mágica aventura pelo cânion Fortaleza, em Cambará do Sul, RS, que ela procurou materializar, pela primeira vez, através de um poema. Companheira fiel de seu esposo Pedro Auso, ela o acompanha nas remadas, caminhadas, pedaladas e outras tantas aventuras radicais pelos nossos rincões. A poetisa-escritora faz uma crítica contundente ao desrespeito à natureza promovido pelo ser humano afirmando: “acho que o homem necessita acordar urgentemente para um verdadeiro respeito pela natureza”.

Vera Regina presenteou-nos com seu belo e inspirado livro “O Rio Camaquã e a Canoa” que, como ela mesma afirma, “é um entrelaçar de esporte e poesia, com conhecimento ecológico, pois percorri os 230 km do Rio e quero que vocês também o façam comigo”.

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– Partida para a Casa Vermelha (20 de setembro)

Os amigos ficaram aguardando a balsa para transpor o Rio quando descemos o Camaquã rumo à Casa Vermelha como a professora Vera identificara nosso destino final. O vento forte nos fez procurar abrigo na margem esquerda do Rio e chegamos à Foz sem grandes problemas. Iríamos enfrentar fortes ventos de proa, novamente, sugeri uma parada intermediária e nela aguardei o Hélio admirando e fotografando a vegetação do entorno.

Quando decidi seguir rumo à Ponta do Vitoriano, meu suporte do leme partiu e comecei a sofrer com os problemas de navegação similares aos que afligiam o professor Hélio. Depois de tentar, durante algum tempo, impingir uma rota fixa ao “Cabo Horn” forçando por demais o braço direito já que os ventos formando ondas de través atingiam primeiramente a popa à Boreste arrastando o caiaque para a direita, decidi remar naturalmente. Deixava o caiaque fazer uma longa curva na direção das ondas, afastando-me da margem e depois surfava até a costa aproveitando a energia das ondas de popa, era um ziguezaguear constante que, embora aumentasse a distância, me poupava o desgaste do braço direito. A meio caminho entre a Foz do Camaquã e a Ponta do Vitoriano, avistamos uma bóia de sinalização encalhada e depois, na Ponta do Vitoriano, mais outras duas. O Coronel Pastl me assegurou que, por mais de uma, vez fez reclamou às autoridades competentes, mas que até hoje nenhuma providência havia sido tomada, deixando os grandes e perigosos Bancos de Areia sem qualquer tipo de sinalização visual.

Da Ponta do Vitoriano, avistamos a chaminé de uma antiga instalação do IRGA (31°12’03,49”S / 51°38’34,34”O) na Praia do Areal e, mais adiante, a tal Casa Vermelha mencionada pela amiga Vera Regina. O Hélio seguiu costeando e eu apontei a proa para a chaminé, surfando nas ondas de través. Sem o leme, porém, a tendência do “Cabo Horn” era desviar para Boreste, dificultando um pouco a navegação. Aportei nas proximidades da chaminé, junto a um grupo de pescadores que retirava o fruto de seu labor das redes. Estavam, já há algum tempo, instalados no complexo do IRGA e, como a instalação tinha sido vendida, recentemente, a particulares, eles teriam de abandonar o local. Combinei com o Hélio a próxima rota, diretamente para a Casa Vermelha e parti.

Aportei na Praia da tal Casa Vermelha - Fazenda Flor da Praia (31°08’25,59”S / 51°37’06,85”O), e procurei alguém para me informar onde estariam meus parceiros. As instalações da fazenda eram impressionantes e achei que desta vez usufruiríamos de acomodações confortáveis para o pernoite. Ledo engano! O capataz, devidamente armado, apareceu muito tempo depois e nos informou que não recebera nenhuma ordem no sentido de nos hospedar e que nossos amigos deveriam estar mais adiante nas antigas instalações da fazenda onde estavam acampados outros pescadores. Nesta altura, o Hélio e eu, muito cansados e encarangados tivemos, desolados, de nos resignar e continuar até a instalação indicada.

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Acabei de falar com o Sr Gabriel da Fazenda Flor da Praia, que nos autorizou a entrar na propriedade e acampar na beira da Praia. Peguei também uma Carta na 1ª DL, que nos dá a posição do local como: 31°54’10”S / 51°40’11”W. Há três prédios pela vista da Carta (galpões bem junto à Praia). Como referência é mais ou menos o dobro da distância entre a raiz do Banco do Vitoriano e a chaminé do Engenho da Praia do Areal. (E-mail do Coronel Pastl – 16.09.2011)

O último lance foi especialmente complicado para o Hélio que virou por mais de uma vez o caiaque golpeado pelas fortes ondas de través. Resolvi picar a voga para não virar também e para tentar conseguir um barco de resgate com algum pescador.

Cheguei à Praia (31°07’42,23”S / 51°34’41,57”O) onde avistei o Pedro Sérgio e o Brian, netos do Cel Pastl, que me informaram que só eles estavam ocupando as instalações, portanto não havia nada a ser feito a não ser esperar pelo Hélio que chegou, depois de algum tempo, a pé depois de deixar o caiaque escondido numa vala.

– São Pedro de Cafarnaum x Sr Pedro de Camaquã

Por isso Eu te digo: tu és Pedro, e sobre esta pedra construirei a minha Igreja, e o poder da morte nunca poderá vencê-la. (São Mateus, 16, 18)

Até então São Pedro de Cafarnaum ( Aldeia de Naum), o “Príncipe dos Apóstolos”, conhecido também como “Porteiro do Céu”, “Padroeiro dos pescadores” e, sobretudo, “Manda-chuva” tinha imposto à nossa travessia todo o tipo de obstáculos e dificuldades. Dificuldades essas que foram amenizadas, em grande parte, com a chegada de seu xará, o Senhor Pedro de Camaquã (Rio Correntoso). Os amigos brigadianos de Camaquã, comandados pelo Sargento PM Juliano, atendendo ao pedido do Coronel Pastl que solicitara a indicação de um vaqueano da região, conhecedor não somente dos locais de paragem ao longo da Laguna dos Patos, mas que fosse prestativo e tivesse livre trânsito entre os moradores locais, chegaram, finalmente, ao amigo Pedro graças à indicação de seu sobrinho Josemar Rosa de Sousa.

Raramente em minha seis décadas de vida tive a oportunidade de conhecer uma pessoa mais afável, criativa e prestativa. O Pedro só sossegou depois de resgatar o caiaque do Hélio que tinha ficado na margem. A operação, que se estendeu noite adentro, enfrentou porteiras fechadas a cadeado e com isso a equipe formada pelo Sr. Pedro, Professor Hélio, Coronel Pastl e seus dois netos teve de carregar por quase três quilômetros, o caiaque até o reboque antes de transportá-lo ao acantonamento. Em Porto Alegre, haviam adaptado um leme no caiaque do Hélio que não estava sendo utilizado porque o tinham colocado totalmente fora do alinhamento além de perfurarem o casco. O Pedro resolveu então substituir o meu suporte do leme quebrado pelo do caiaque do Hélio e só retornou à sua cidade depois de concretizar sua missão. A colocação resolveria meu problema de navegação, mas o professor Hélio continuaria enfrentando mais surpresas pela frente.

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Finalmente, um dia de sol e ventos amenos. A noite foi longa, a residência não tinha portas nem janelas e o vento frio castigou-nos durante toda a noite. O saco de dormir estendido diretamente sobre o piso duro também não era nada confortável. Saímos depois das sete horas para permitir que o sol aquecesse um pouco o ambiente e secasse nossas roupas de viagem. O Coronel Pastl partiu com os netos prometendo deixar acertado nosso pernoite nas instalações do destacamento da Brigada Militar de Arambaré.

– Partida da Fazenda Flor da Praia (21 de setembro)

Indescritível o cenário e a hospitalidade na Costa Oeste. Somente conhecendo o povo, especialmente na Fazenda Flor da Praia e na Ilha do Camaquã, e os brigadianos da região para aquilatar. O tempo atrasou nossos nautas entre o Laranjal e a Feitoria, que chegaram apenas domingo à tarde em São Lourenço.

Segunda-feira rumaram ao Camaquã, na Ilha Santo Antônio, onde tivemos apoio do Sr. Pedro Auso e sua Senhora, Professora Vera, pessoas de fino trato e robustas nas aventuras de caiaque pelas águas do Rio Grande. Na terça, chegaram os nautas, com luta, quebra de leme, capotagens no “ventão” até a Fazenda Flor da Praia, e hoje em Arambaré. Amanhã irão a Tapes, onde haverá pausa até sábado, quando partirão para a Ilha Barba Negra. Vamos contar com o Major Vitor Hugo e o Major Nunes nesta perna da jornada. Breve mandaremos relatos mais completos. Por enquanto, muito obrigado, vocês são mesmo pessoas muito importantes e boas apoiando este Projeto. (E-mail do Coronel Pastl – 21.09.2011)

Iniciamos nossa remada até o Banco da Dona Maria imprimindo um ritmo forte e constante de 4 nós (7,2 km/h). Fizemos uma parada intermediária em um ponto de captação d’água para as plantações de arroz (31°06’10,73”S / 51°30’05,34”O), a vegetação nativa esbanjava beleza com inúmeras bromélias e orquídeas, e a grande quantidade de pegadas de pequenos animais na areia e nas trilhas mostrava que ali a natureza se encontrava em perfeito equilíbrio.

Descansados, continuamos nossa navegação e, mais adiante, passamos por umas ruínas mencionadas pelo Sr. Pedro Auso. O Pedro já acampara ali uma vez aproveitando a proteção da construção de alvenaria. Paramos na Ponta da Dona Maria e mostrei para o Hélio o canal de acesso à Lagoa do Graxaim em cujas margens se encontra o Povoado de Santa Rita do Sul. O sol forte e os ventos fracos contrastavam com as condições climáticas que enfrentáramos até então.

Aportamos na Boca da Lagoa do Graxaim (31°03’50,74”S / 51°28’01,12”O) onde consegui me comunicar com o pessoal de apoio pela Operadora VIVO. As grandes Garças Mouras e um descuidado João Grande pescavam despreocupadamente à margem da Lagoa, parecendo não notar nossa presença. Continuamos costeando e admirando a mata nativa e as belas figueiras encasteladas nas enormes dunas de areia.

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Um conjunto, em especial, chamou-me a atenção e paramos para escalar as dunas e admirar as figueiras, totalmente tomadas pelas bromélias e orquídeas (31°01’35,98”S / 51°29’09,89”O). Os monumentos arbóreos cravaram suas raízes nas voláteis e alvas areias tentando, em vão, equilibrar-se enquanto as areias lenta, inexorável e criminosamente escoavam duna abaixo expondo mais e mais as magníficas fundações das centenárias figueiras. A beleza do entorno era fantástica, infelizmente minha máquina fotográfica emperrara e eu não pude materializar a bela paisagem que nos cercava.

Topamos no caminho com algumas lontras ariscas que nadavam graciosamente em busca de suas presas e, logo adiante, vislumbramos ao longe a chaminé do antigo complexo do Hotel e Engenho da Família Cibilis que, na década de 40 e 50, era o esteio da economia do Município de Arambaré. Admiramos a bela Praia da Costa Doce de aproximadamente 6 km de extensão de muita beleza e entramos no Arroio Velhaco que nasce na cidade de São Jerônimo. Logo em seguida, aportamos no Clube Náutico (30°54’38,01”S / 51°29’47,50”O) onde estacionamos nossos caiaques e fomos procurar abrigo junto ao Destacamento da Brigada Militar. Fomos gentilmente recebidos pelo Soldado PM Paulo que, depois de nos instalar nas dependências do Destacamento, levou-nos até o Posto de Saúde para que o Professor Hélio fosse atendido. O Hélio estava com uma infecção no tornozelo e foi prontamente atendido e medicado nas instalações impecáveis do Posto. Fizemos ainda um pequeno “tour” pela cidade para conhecer parte das quase duzentas figueiras cadastradas no perímetro urbano, e a maior figueira do estado. Às belas figueiras urbanas e domesticadas falta, no entanto, o encanto das selvagens e fundamentalmente a magia da beleza agreste do seu entorno. A luta constante contra as intempéries empresta àquelas um charme impregnado de poesia e coragem que as suas irmãs citadinas desconhecem. À noite, o Sr. Pedro Auso apareceu com o leme de seu caiaque para adaptá-lo no caiaque do professor Hélio. Teríamos apenas que regulá-lo na margem de acordo com o ângulo de incidência das ondas de través.

– Capital das Figueiras

Inicialmente chamava-se “Barra do Velhaco”, por estar situada na Foz do Arroio Velhaco. Em 1938, passou a denominar-se “Paraguassu” e, em 1945, adotou o nome de “Arambaré”, que quer dizer “o sacerdote que espalha luz”. Nesta localidade, conhecida desde os tempos coloniais de 1714, moravam índios com costumes especiais - pescadores e comerciantes de peles que tinham mãos e pés bem desenvolvidos (grandes). Eram os índios Arachas, também conhecidos como Arachanes ou Arachãs, que na língua tupi significa “patos”. Por volta de 1763, casais açorianos vindos para o Sul estabeleceram-se na margem esquerda do estuário do Guaíba e na margem direita da Lagoa dos Patos, fundando fazendas e charqueadas até o Rio Camaquã. Desde essa época, os habitantes do então Distrito de Arambaré uniram-se na busca do desenvolvimento através da agricultura, da pecuária e, sobretudo pelo grande potencial turístico e pela beleza natural da localidade, emancipada em 20 de março de 1992 do Município de Camaquã e de parte do Município de Tapes. (Fonte: www.portalarambare.rs.gov.br)

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– Partida de Arambaré (22 de setembro)

Partimos cedo contando mais uma vez com o apoio dos amigos brigadianos. O tempo favorecia e chegamos em tempo recorde até o Banco dos Desertores onde o amigo Pedro Auso eventualmente acampa (30°52’43,87”S / 51°23’22,13”O). Infelizmente alguns campistas ignorantes fazem fogo junto às raízes das seculares figueiras que hoje dão visíveis sinais de fragilidade e dentro em breve tombarão vítimas silentes da inconsequência humana.

Ultrapassamos o Banco dos Desertores e seguimos rumo Norte penetrando na enorme enseada conhecida como “Saco de Tapes”. Os bosques de pinus, ao longe, não respeitam as fronteiras humanas e estão invadindo, lenta e progressivamente, as áreas de mata nativa, derramando-se pelas areias brancas das dunas. Como os hunos de outrora, as hordas bárbaras sufocam e padronizam com sua intensa monotonia os belos campos. Indefesas figueiras prestes a serem sufocadas pelos rudes pinheiros aguardam estáticas as impiedosas mortalhas que avassaladoras se aproximam.

Outros sinais fatídicos da presença humana se fazem presentes na poluição das águas, o mau cheiro e a espuma flutuando na superfície marcam sua presença. A enseada que protege Tapes de poluições de outros centros não permite esconder o descaso dos seus governantes em relação ao sagrado manancial que poluem sem qualquer critério, um crime ambiental para uma cidade que se propõe a abrigar um balneário turístico às margens da Lagoa. Encontramos, numa das paradas, uma pequena tartaruguinha que tentava nadar nas águas sujas e agitadas, resolvi deixá-la em um pequeno afluente mais calmo.

Chegaram hoje às 15h em Tapes os nautas, que tiveram ontem novamente o inestimável apoio do Sr. Pedro Auso de Camaquã, bem como da guarnição da BM de Arambaré, destacando-se o Sd PM Paulo, Sd PM Lima e o Sd PM Guastuci. Pernoitaram e fizeram as refeições no Destacamento, e o Sd PM Guastuci gentilmente despachou o material de dormitório e cozinha hoje pelo ônibus para Tapes, onde o apanhei às 16h. No Clube Náutico Tapense fizeram uma refeição forte no Restaurante do Sr Roger, e hospedaram-se na casa de veraneio do Valmir e da Nara (ele é irmão da Aninha), no Balneário Pinvest. (E-mail do Coronel Pastl – 22.09.2011)

– Tapes a “Namorada da Lagoa”

A região foi habitada por índios da tradição Tupi-Guarani. Por volta de 1808, atraídos pela fertilidade do solo e pela abundância das pastagens da região, imigrantes açorianos estabeleceram-se na área, instalando estâncias e charqueadas que foram a base da economia local por algum tempo. Posteriormente, decorrentes da própria configuração geográfica, desenvolveram-se a prática da agricultura e da pecuária que constituem atualmente a principais riquezas do Município. Mesclado com a cultura indígena, os açorianos e negros, seguidos dos imigrantes, desenvolveram aqui suas tradições, seus usos e costumes que hoje ainda fazem parte do nosso cotidiano.

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Em 1824, Patrício Vieira Rodrigues adquiriu a antiga Sesmaria de Nossa Senhora do Carmo. No ano seguinte, estabeleceu uma charqueada na Foz de um Arroio na Lagoa dos Patos, e passou a chamar-se Arroio da Charqueada. Em função desta atividade é criado, no local, um Porto, que deu origem à Cidade de Tapes. A primeira sede do Município, denominada Freguesia de Nossa Senhora das Dores de Camaquã, foi criada dia 29 de agosto de 1833. Sua emancipação política e administrativa ocorreu em 12 de maio de 1857 mas, por questões políticas ou econômicas, a Freguesia passava a integrar ora no território de Porto Alegre, ora de Camaquã, chegando inclusive a pertencer a Triunfo e Rio Pardo. Em 16 de dezembro de 1857, foi elevada à categoria de Vila, sendo esta a data considerada como a de emancipação política do Município.

Em 25 de junho de 1913, o Município desincorporou-se definitivamente de Porto Alegre e, em 22 de maio de 1929, através de um plebiscito, foi realizada a transferência da Sede da Vila de Nossa Senhora das Dores para o Porto de Tapes, então 2° Distrito. Posteriormente, o Decreto n° 10 de 21 de setembro de 1929 muda o nome de “Município de Dores de Camaquã” para “Município de Tapes”, sendo Primeiro Intendente o Sr. Manoel Dias Ferreira Pinto. (Fonte: www.riogrande.com.br)

– Partida para Costa - Latitude da I. Barba Negra (24 de setembro)

Amanhã deverão repousar e partirão sábado às 05h30, em direção ao Acampamento do Sr. Willi (Capão da Lancha), farão a travessia dos caiaques pela areia da restinga do pontal, e prosseguirão costeando ao Norte em direção à Ilha da Barba Negra. De outra banda, o Comandante Vitor Hugo com este colaborador e o Major Nunes partiremos às 08h de sábado no impecável “Marbe 24” do Comandante Vitor em direção contrária, estimando o Vitor Hugo cinco horas até Itapuã e mais duas horas e meia até o Morro da Formiga, a partir de onde iremos descendo, costeando ao Sul. Combinei com o Comandante Hiram que ao crepúsculo, se ainda não tivermos nos encontrado, que ele aportará à terra, e nós prosseguiremos com as luzes acesas no veleiro, e então ele lançará sinalizadores ao nos avistar. (E-mail do Coronel Pastl – 22.09.2011)

Tentamos passar a noite, na véspera da partida, no veleiro do Coronel Pastl, mas os fortes ventos tornaram isso impossível. Partimos antes das seis horas, depois de pernoitar na sauna do Clube Náutico Tapense. Os ventos de Este, de 15 nós (27 km), não permitiam que atacássemos diretamente o estreito do Pontal de Tapes e apontamos a proa para o acampamento do Sr. Willi. No meio da travessia, o vento mudou para Sudeste, permitindo que eu alterasse a rota diretamente para o local da passagem. O Hélio resolveu seguir mais próximo à costa para se proteger um pouco da ação dos ventos. A marcação pelo GPS não podia ser mais precisa. No ponto de travessia terrestre havia um pequeno rebaixamento que certamente, nas grandes cheias, deve servir de passagem das águas da Laguna dos Patos até o Saco de Tapes. Carregamos os caiaques e as tralhas pelo estreito para a margem da Laguna, parodiando numa escala infinitamente menor a travessia de Giuseppe Garibaldi, da Lagoa do Capivari até Tramandaí. Comunicamos nossa passagem ao Coronel Pastl que se preparava com o Comandante Vitor Hugo para zarpar do Clube Náutico Itapuã.

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A navegação transcorreu favoravelmente até as 13h quando atracamos a uns quatro quilômetros do ponto previsto para nosso acampamento. Mantendo este ritmo, conseguiríamos ultrapassar em uns 10 km o ponto previsto para estacionamento. Descansamos um pouco e, nesse intervalo, o vento alterou novamente para Este e aumentou sua intensidade para 25 nós (45 km/h) dificultando bastante a progressão. A exatos 999 metros do ponto, o caiaque do Hélio virou e ele resolveu rebocá-lo pela margem até o ponto de encontro com a equipe de apoio. Brinquei com o professor que a culpa era da numerologia, escrevendo a distância que faltava na areia e pedindo que ele a lesse mantendo-se de frente para mim (666).

Naveguei vigorosamente até o local previsto, estacionei o caiaque e peguei uma corda para ajudar a rebocar o caiaque do Hélio. Amarrei a corda nas alças de proa e popa e inclinei o caiaque 45° com a direção das ondas e deixei que elas o empurrassem até o acampamento. Carregamos, exaustivamente, toras de lenha seca durante três horas para usar como sinalização para a equipe de apoio que infelizmente não apareceu. Improvisamos um acampamento no alto de uma duna protegido dos ventos. Passei a noite inteira alimentando uma pequena fogueira para nos aquecer e, vez por outra, subia até o topo da elevação para ver se avistava as luzes da embarcação da equipe de apoio. Levantei antes de o sol raiar e chamei o Hélio para iniciarmos os preparativos para vencer o último lance de nossa travessia.

Os ventos de Este continuavam vigorosos e o Hélio teve de parar logo à frente. A popa do caiaque, enfraquecida pelos quatro furos feitos para a colocação do leme improvisado, tinham enfraquecido a estrutura e apresentava uma fissura pela qual a água entrava com facilidade. Não havia mais condições de o parceiro continuar naquelas condições. Subi até a duna mais alta e, como na tarde e noite anterior, não consegui contatar a equipe de apoio, reportei, então, ao amigo Pedro Auso nossa situação que me assegurou que tomaria alguma providência.

No final de todo o imbróglio tivemos de deixar o caiaque, pilotado pelo professor Hélio, escondido nas dunas para ser resgatado futuramente e o “Cabo Horn” foi tracionado pelo “Marbe 24” que teve de lançar mão do motor de popa para vencer os ventos de proa. Mais uma vez o “Cabo Horn”, da Opium Fiberglass, que durante todo o percurso dera mostras de sua capacidade de enfrentar ondas de todos os tipos e tamanhos, percorreu durante quase três horas o percurso até o Morro da Formiga sem apresentar qualquer tipo de dificuldade no seu controle, mesmo enfrentando ondas superiores a 2 metros.

No Morro da Formiga, encontramos o Pedro Auso e sua esposa Vera Regina que se deslocaram especialmente de Camaquã para nos apoiar até o Destacamento da Brigada Militar de Barra do Ribeiro, de onde minha querida Rosângela Schardosim e sua sobrinha Caroline nos resgataram.

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– Analogias à Parte

Nossa jornada e a de Garibaldi tiveram trechos comuns como a Laguna dos Patos, a Foz do Camaquã e uma pequena travessia terrestre. Uma das embarcações de Garibaldi, o Farroupilha, naufragou antes de completar a missão de atingir Laguna, SC, o mesmo acontecendo com o caiaque pilotado pelo professor Hélio que avariado não pôde chegar até o Guaíba. O apelo histórico talvez tenha sido forte demais e tenha interposto obstáculos adicionais à consecução de nossa proeza. Esse foi apenas um treinamento para que, em abril do ano que vem (2012), possamos realizar a travessia, sem surpresas, em homenagem ao Centenário do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA).

Enfrenta Tudo Sem Medo! (Maria Augusta Sá)

Mete-te no teu caiaque e sem medo faz-te ao Rio

e sente no coração um baque e a adrenalina de fio a pavio... E grita e tuas emoções liberta, vence um e mais outro rápido até chegares a zona aberta onde o Rio para perdido...

Faz-te ao Rio ardiloso, e sente-te vivo, bem vivo, sente-te o ser mui poderoso que tens o mundo em ti cativo São esses desafios muito duros que te põem as resistências à prova e derrubas muros e que felicidade provas!

Estamos envidando esforços de todo tipo para que o Professor Hélio consiga, para a travessia de abril de 2012, um caiaque oceânico modelo “Cabo Horn”. Isto evitaria surpresas e um desgaste físico desnecessário, já que este modelo é, sem sombras de dúvida, o caiaque ideal para enfrentar a Laguna dos Patos e suas condições meteorológicas adversas.

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As Barrancas (Maria José Hosanah)

Na barra de tua saia,

as barrancas bordadas na barra de barro e madeira, de gentes em bando.

A mulher que se quisera bela

vestira-se de branco, de cimento e pedra, de adorno em brinco, mas mulher descalça.

Na barra de tua saia rendada,

do barro que pisavas, dos bilros de estacas, dos berros das gentes

– as barrancas.

A mulher que se quisera bela ornara-se de rendas, de salões cristal,

de painéis de lendas, mas de pés descalços.

Na margem de tua saia, madeiras moldadas, marginais de lama, barradas imagens, entre o Rio e fama – as barrancas.

A mulher que se quisera bela

fizera-se Ilha, em verde e em Rio, em raízes-pilhas,

em rádios e palhas, dúplice ao meio

d’argamassa barro.

No friso de tua saia – Mana-os

guizos e risos, bardos-bordados, berros-barrados,

Maninha as barrancas.

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Figura 11 – Tarrã - Granja do Valente – Bagé – RS

Figura 12 – Ninho de João Grande – Granja do Valente – Bagé – RS

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Figura 13 – Ovo de João Grande – Granja do Valente – Bagé – RS

Figura 14 – Ninhal de Maguaris – Granja do Valente – Bagé – RS

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Figura 15 – Ponta da Feitoria – Pelotas – RS

Figura 16 – Ponta da Feitoria – Pelotas – RS

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Figura 17 – Casarão da Soteia – Ponta da Feitoria – Pelotas – RS

Figura 18 – Casarão da Soteia – Ponta da Feitoria – Pelotas – RS

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Figura 19 – Flor da Praia – Arambaré – RS

Figura 20 – Antigo Engenho da Família Cibils – Arambaré – RS

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Figura 21 – Banco da Dona Maria – RS

Figura 22 – Tapes – RS

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Figura 23 – Costa de Santo Antônio – Barra do Ribeiro – RS

Figura 24 – Costa de Santo Antônio – Barra do Ribeiro – RS

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Mapa 2: Travesia da Laguna dos Patos – Margem Ocidental.

Término

Largada

Resgate

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O Resgate do Bravo Anaico

A Canoa Fantástica (Castro Alves)

Pelas sombras temerosas Onde vai esta canoa?

Vai tripulada ou perdida? Vai ao certo ou vai à toa?

Semelha um tronco gigante De palmeira, que s’escoa...

No dorso da correnteza, Como boia esta canoa! ...

Na última Travessia fomos forçados a abandonar o caiaque pilotado pelo Professor Hélio, na Costa de Santo Antônio (30°29’44,2”S / 51°16’23,5”O), entre o Pontal de Tapes e o Morro da Formiga. Estávamos aguardando a manutenção do veleiro do Coronel Pastl para resgatá-lo, mas os adiamentos sucessivos aumentavam a probabilidade de não mais encontrarmos nosso velho parceiro. Havia comprado o “Anaico”, da KTM, na década de 80, e com ele desafiado as águas brancas e quedas d’água dos mananciais do Mato Grosso do Sul onde ele se mostrara insuperável nessa modalidade, o seu valor sentimental, portanto, não era, absolutamente, mensurável.

- Destacamento Precursor

Ele e sua esposa Vera já haviam encontrado o melhor e mais perto acesso por terra para cumprir esta missão. Era através da Fazenda Boa Vista, que se situava ao Norte do Município de Tapes e ia até a Laguna dos Patos próximo ao local em que estava o caiaque a ser resgatado. (Professor Hélio)

O Pedro Auso e sua esposa Vera Regina, de Camaquã, decidiram fazer uma incursão terrestre exploratória com sua camionete, no dia 8 de outubro, sábado, e conseguiram autorização para adentrar na Fazenda Boa Vista. O Pedro tinha uma ideia aproximada da localização e conseguiu, chegar com sua camionete o mais próximo possível das praias da Laguna dos Patos, aproximadamente 1,7 km em linha reta. Comunicou-me a proeza e combinamos que, no dia seguinte, nos encontraríamos, acompanhados do Professor Hélio e sua filha Dafne para efetuarmos o resgate do “Anaico”.

- Fazenda Boa Vista

Localizada a 15 km da sede do Município de Barra do Ribeiro, a Fazenda Boa Vista (ou Fazenda do Zé Taylor) de propriedade do Dr. José Taylor Castro Fagundes, às margens da Laguna dos Patos, é pródiga em belas paisagens e diversidade de biomas. Borges de Medeiros, segundo o Dr. Taylor, cultivou arroz nestas paragens e as catorze figueiras, de sua antiga sede, teriam sido plantadas pelos Jesuítas. A Fazenda serve de referência para os adeptos das cavalgadas e jipeiros que a incluem, sistematicamente, no seu trajeto, além de proporcionar belos locais de pescaria em seus inúmeros açudes.

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- Operação Resgate

Somente dia 9 de outubro, num domingo em que até o sol apareceu contrariando a previsão do tempo que era de chuvas esparsas em quase todo o estado, conseguimos ir fazer o resgate do caiaque que havia ficado avariado e escondido atrás de uma duna de areia no último ponto de nossa travessia. Eram 06h30 quando eu e minha filha Dafne passamos na casa do Coronel Hiram para então nos deslocarmos até o quilômetro 332 da BR 116, em Tapes, onde nos encontraríamos com o Sr Pedro, mais identificado como “São Pedro” por toda proteção e ajuda a nós prestada. (Professor Hélio)

No domingo, 9 de setembro, partimos de Porto Alegre, às 06h40 em direção à BR 116, a meio caminho entre Barra do Ribeiro e Tapes, para encontrar o Pedro Auso no acesso à Fazenda Boa Vista.

Chegamos ao ponto de encontro com seu Pedro cronometradamente juntos e nos dirigimos para a sede da Fazenda Boa Vista, onde deixamos o carro do Coronel Hiram e seguimos na camionete rural do Sr Pedro, sendo que somente esta conseguiria vencer os precários caminhos a serem percorridos. Durante este trajeto de carro, o Sr Pedro nos contou que, no dia anterior ele e dona Vera já haviam ido a este local e caminhado diversos quilômetros tentando achar o caiaque, mas sem sucesso. Por este motivo que a dona Vera, embora tenha admirado muito o local, teve que ficar descansando em casa. (Professor Hélio)

Chegamos juntos ao local do encontro a exatos vinte minutos antes da hora marcada, oito horas. Como ele já tinha feito um reconhecimento prévio, fomos até a sede da Fazenda, deixamos o meu carro e partimos, os quatro, na sua camionete.

Perto da penúltima porteira transposta, encontramos um bando de emas correndo pelos campos e avistamos a casa sede da antiga fazenda, cercada por lindas e centenárias figueiras. O trajeto até os limites da Fazenda, com a região das Areias da margem da Laguna, é de uma beleza impressionante.

Chegando ao destino, verifiquei o GPS e constatei que o caiaque se encontrava a 4,5 km ao Sul. Seguiríamos diretamente para a Praia para diminuir a caminhada pelas dunas e, depois, pela Praia até o caiaque. Hidratamo-nos, carregamos o mínimo de material necessário e partimos rumo à Praia, percorrendo dunas e terrenos alagadiços. Na Praia, identificamos os eucaliptos mencionados pelos pescadores e o Sr. Pedro, e novamente verifiquei a distância até nosso objetivo – 3,3 km. Caminhamos junto à água para evitar as areias fofas da margem e, no caminho, fomos admirando a vegetação, as imensas e sofridas figueiras e as inúmeras bromélias e orquídeas.

Ao caminhar pela Praia, também observamos belas orquídeas e bromélias junto das dunas contrastando com o lixo junto às margens levado pelas águas e inúmeros mexilhões dourados mortos, às vezes, causando mau cheiro. (Professor Hélio)

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Depois de caminhar por uns quarenta minutos, chegamos ao local onde deixáramos nosso caiaque e, felizmente, lá estava ele, o remo, leme, e a saia. Como as águas da Laguna ainda estavam bastante calmas, sugeri, ao Hélio que fosse remando até os eucaliptos e lá nos aguardasse.

Nos eucaliptos, fizemos uma pausa para alimentação e hidratação antes de partirmos para o percurso mais estafante, carregar o caiaque pelas dunas e terrenos alagadiços.

Iniciei, com o Hélio, o transporte pelas dunas e, logo de início, verificamos o quanto seria cansativo tal procedimento. A Dafne carregou o remo e fomos lentamente vencendo os obstáculos. Mais adiante, o Pedro me substituiu e nos revezamos até chegar exaustos ao local onde estava estacionada a camionete.

Quando chegamos ao carro, descansamos um pouco, comemos algumas frutas, prendemos o caiaque e partimos satisfeitos com o sucesso da missão. (Professor Hélio)

Fizemos uma parada para descanso e um pequeno lanche antes de carregarmos o caiaque na camionete e retornarmos à sede onde transferimos o caiaque para o meu carro.

Encerramos nossa missão com um almoço no Restaurante das Cucas, na BR 116, km 338. Nossas expedições pelos brasileiros caudais nos têm propiciado encontrar pessoas fantásticas e muito prestativas como o caso do amigo Pedro Auso e tantos outros cujas amizades fazemos questão de solidificar.

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Alma de Marujo (Antônio Mavignier de Castro)

Amo, às vezes, fitar como os marujos do velho cais, ao céu crepuscular, o perfil oscilante dos saveiros

e o adeus das velas para o meu olhar.

Ao contato dos barcos forasteiros, sinto em mim o desejo singular

de correr mundo como os marinheiros, de ser marujo dominando o Mar...

É que, de certo, em épocas remotas, as minhas ilusões foram gaivotas

no anil dos mares, ao rugir do Sul...

E, além seguiram – desgraçadas delas! – o roteiro de sol das caravelas

talvez perdidas nesse abismo azul!...

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A Magia do Camaquã

Poema da Água (Raul Machado)

A água também tem a sua infância - quando apenas Riacho cantarola brinca de roda nos redemoinhos

salta os seixos que encontra e faz apostas de corrida - travessa -

por entre as grotas e peraus e arranca as flores que a marginam para engrinaldar a cabeleira solta sobre o leito revolto das areias...

- Granja do Valente

O Amigo Pedro Auso Cardoso da Rosa estava programando uma descida pelas águas do Rio Camaquã, com direito a acampamento e tudo mais, infelizmente contratempos de toda ordem forçaram-me a adiar o evento. Vim para Bagé com o propósito de dar continuidade ao meu treinamento na Granja do Valente, de propriedade da Família Schiefelbein, mas com a firme determinação de conhecer o Rio Camaquã. Na barragem, o ninhal de maguaris, cheio de vida em setembro, estava abandonado, apenas vestígios de cascas de ovos sinalizavam sua eclosão e a passagem das majestosas aves pela área.

Soneto (Augusto dos Anjos)

(Ao meu primeiro filho nascido morto com 7 meses incompletos)

Agregado infeliz de sangue e cal, Fruto rubro de carne agonizante, Filho da grande força fecundante De minha brônzea trama neuronial

Que poder embriológico fatal Destruiu, com a sinergia de um gigante,

Em tua morfogênese de infante A minha morfogênese ancestral?!

Porção de minha plásmica substância, Em que lugar irás passar a infância, Tragicamente anônimo, a feder?!...

Ah! Possas tu dormir feto esquecido, Panteisticamente dissolvido

Na noumenalidade do NÃO SER!

Apenas o grande ninho do João Grande (Figura 13 – Ovo de João Grande) continuava ocupado como se a ave ainda estivesse chocando. Cuidadosamente consegui me aproximar e fotografar o único ovo que restara dos três que examinara em setembro. Peguei o ovo, curioso, pois o período de eclosão desde há muito se passara. Confirmando as expectativas, verifiquei que o mesmo estava gorado e o retirei. Nos dias seguintes, verifiquei que a zelosa mãe não estava mais no seu ninho, liberada que fora do compromisso de chocar a calcária câmara mortuária. Se a pobre ave soubesse o que estava chocando, talvez fosse capaz de entender a desconsolada e trágica essência da sobredita poesia de Augusto dos Anjos.

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A barragem continuava me surpreendendo, um casal de marrecas pés-vermelhos apresentava um comportamento estranho como se estivessem com dificuldades para voar, se aproximando bastante do caiaque sem demonstrar medo. Depois de algum tempo, pude verificar a razão do bizarro comportamento, os pais tentavam desviar minha atenção de três marrequinhas que mergulhavam procurando esconder-se de minhas vistas.

Uma delas, mais próxima da margem, mergulhava comicamente apenas a cabeça deixando a cauda de fora, aproximei-me mais um pouco para fotografá-la, e a pequenina mergulhou completamente, emaranhando-se nas finas algas. Agarrei-a e a desembaracei da fluída e verdolenga armadilha e, ao soltá-la, ela nadou rapidamente, chegando a correr sobre as águas, na direção dos pais que grasnavam freneticamente.

– Rio Camaquã

A Rosângela me apresentou o Dr. Diogo Madruga Duarte, um vaqueano preservacionista e irmãos das águas. O Dr. Madruga coordena periódicas descidas no Rio Camaquã e me repassou algumas importantes dicas a respeito do trajeto que eu planejara para o sábado, sugerindo que eu partisse do Passo dos Enforcados (30°52’54,4” S / 53°35’53,3” O) e não da Ponte sobre o Rio Camaquã (30°51’46,1” S / 53°36’59,4” O) cujo acesso era impraticável.

Disse que pretendia ir até o Passo do Cação (30°57’30,4” S / 53°28’56,6” O) onde a Rosângela me aguardaria para pernoitarmos na Fazenda Remanso da amiga Rosi Medeiros. Um deslocamento de aproximadamente 40 quilômetros que, graças à velocidade da correnteza do Rio poderia ser vencido, folgadamente, em seis horas de navegação.

Parti do Passo dos Enforcados às 08h30 de sábado. O estreito canal fluía espremido por grandes paredões de arenito debruçados majestosamente sobre o Rio e que vez por outra se apresentavam somente em uma das margens. O arenito é o resultado da petrificação de partículas de areia que, misturadas com minerais agregadores, como o quartzo e a calcita, foram submetidas a grande pressão, durante séculos.

Imerso nas telúricas entranhas, eu podia admirar as belas estratificações formadas pela alternância de camadas sedimentares com granulação e cores diferentes. As belas camadas de seixos de tamanhos diferentes permitiam que eu comparasse os aspectos geológicos do erodido terreno atual com os do longínquo pretérito.

No leito, a ação das águas diluía a ação dos tempos, separando novamente as antigas partículas cimentadas em longínquas eras, permitindo que a imaginação vagasse pelo formoso túnel do tempo camaquense. As camadas sedimentares, qual páginas amarelecidas do livro da mãe Terra, descreviam uma história de transformações mescladas de cataclismos radicais e pachorrentas acomodações ancestrais.

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As belas formações moldadas pelas forças da natureza através dos tempos me encantavam e eu me sentia imensamente feliz em poder contemplar estas verdadeiras esculturas moldadas pelas mãos do Grande Arquiteto do Universo.

A diversidade de imagens, as nítidas colorações das camadas sedimentares, os seixos incrustados no arenito, o canto das aves, produziam um efeito transcendental em todo o meu ser, eu empreendera uma cruzada mágica.

Logo que iniciei minha jornada, dois biguás me serviram de precursores. Assustados com a proximidade do caiaque, voavam até a próxima curva do serpenteante manancial e esperavam que eu me aproximasse para repetir o gesto novamente. Fui encontrando outros grupos pelo caminho e, quando cheguei a meu destino, eram nove as aves que me antecediam.

Cruzei, no trajeto, por cinco veados-campeiros (Ozotocerus bezoarticus) que bebiam placidamente as águas do Camaquã e se afastaram vagarosamente ao notar minha presença. Dois grupos de capivaras não foram tão discretos assim, atirando-se ruidosamente nas águas. Em um dos grupos, pude perceber a presença de um grande macho; além do tamanho, sua identificação é facilitada pela enorme glândula que possui entre o focinho e a testa. O cheiro forte e característico que dela emana serve para identificar as fêmeas conquistadas, seus filhotes e demarcar território.

A curta jornada fluvial foi uma das mais belas que empreendi até hoje e agradeço a todos que a tornaram possível e, em especial, minha cara Rosângela Schardosim.

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Luar amazônico (Antônio Mavignier de Castro)

Verão. Rio em deflúvio. A lua cheia alonga perspectivas pela mata; só a fauna da noite ali vagueia

à sombra errante que o luar dilata...

Álgido, estreito igarapé serpeia, qual sinuosa lâmina de prata... Que melopeia o urutau flauteia na solidão lunar da terra grata!

Amanhece; mas imitando um rito

sobre a mata flutua um véu de neve... E o Sol – patena de ouro do Infinito,

espera que no altar da selva nua,

o Sacerdote imaterial eleve a imagem eucarística da lua!

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Rio Madeira

- Rio Madeira

O Rio Madeira, afluente da margem direita do Rio Amazonas, banha os estados de Rondônia e do Amazonas e tem um comprimento total aproximado de 1.450 km. Possui uma extensão navegável de 1.056 km entre a sua Foz no Rio Amazonas (AM) e a cidade de Porto Velho (RO). Tem uma profundidade mínima de 2 metros, na vazante, principalmente no trecho entre a cidade de Humaitá (AM) e Porto Velho (RO), e máxima de 20 a 30 metros.

É navegável em toda sua extensão durante todo o ano, com atenção especial na estiagem (agosto a outubro) aos bancos de areias e pedrais, principalmente no trecho entre a cidade de Humaitá (AM) e Porto Velho (RO). Seu período de enchente máxima vai de março a maio.

Nas suas águas vive uma subespécie de “boto endêmica” (Inia boliviensis) da bacia do Madeira a jusante das corredeiras.

Golfinho boliviano: O golfinho boliviano Inia boliviensis compartilha muitas semelhanças anatômicas com a espécie Inia geoffrensis. À diferença do gênero Sotalia, que são os golfinhos que vivem em ambientes marinhos e de águas continentais, as espécies do gênero Inia vivem estritamente em água doce, por isso apresentam algumas adaptações ao ambiente em que vivem. Manuel Ruiz Garcia, biólogo espanhol pesquisador de golfinhos na América do Sul, explica que algumas das características notáveis do Inia boliviensis são o tamanho médio da população, que é ligeiramente menor que o tamanho médio dos botos-cor-de-rosa que existem no Peru e no Brasil. Outra diferença é a cor, já que o golfinho boliviano é mais claro, o que para alguns pesquisadores é provavelmente devido à temperatura, transparência da água, atividade física e da localização dos indivíduos. “É um cinza mais escuro que caracteriza as populações de outras localidades. Estes animais são de menor comprimento, mas certas partes do Corpo, como o pescoço ou o peito, são mais grossas”, diz Ruiz García, e continua: “Esses golfinhos bolivianos têm um maior número de dentes e parece que a capacidade craniana é menor do que o encontrado em outras formas de golfinhos de Rio”. Na Bolívia, este golfinho endêmico do país tem sua distribuição nos Rios da bacia amazônica, nos departamentos de Cochabamba, Santa Cruz, Beni e Pando. (Fonte: Giovanny Vera)

O Rio Madeira nasce com o nome de Rio Beni na Cordilheira dos Andes, Bolívia e desce em direção ao Norte recebendo as águas do Rio Mamoré pela margem direita formando, a partir desta confluência, o Rio Madeira, que delimita a fronteira entre Brasil e Bolívia até encontrar o Rio Abunã. A partir daí, o Rio segue em direção ao Nordeste atravessando dezenas de Cachoeiras até chegar a Porto Velho, onde se inicia a Hidrovia do Rio Madeira.

Hidrovia do Rio Madeira: a Hidrovia do Madeira, com suas 570 milhas (1.056 km) navegáveis, é de vital importância para o desenvolvimento regional devido a sua posição estratégica. Constitui-se praticamente como a única via de transporte para a população que vive nas cidades às suas margens, excluindo-se apenas a cidade de Humaitá, AM.

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A Hidrovia do Madeira inicia-se em Porto Velho, no estado de Rondônia e vai até a sua Foz, na confluência com Rio Amazonas, no estado de mesmo nome, do qual recebe classificação “A”. Nesse trecho, são movimentados diversos tipos de cargas, as principais são: Soja, fertilizantes, derivados de petróleo, cimento, frutas, eletroeletrônicos, veículos, produtos frigorificados, seixo, bebidas, carga geral, etc. O período de águas altas está compreendido entre os meses de março a maio e o de águas baixas nos meses de agosto e outubro. (Fonte: www.ahimoc.com.br)

A sua Foz, no Amazonas, forma um grande delta onde se encontra a enorme Ilha Tupinambarana, uma região de alagados. Na estação chuvosa (dezembro a maio), ao mesmo tempo em que o Rio aumenta de volume com as águas das chuvas, ele é invadido pelas águas do Amazonas e sobe cerca de 17 metros, alagando Cachoeiras, invadindo áreas de várzea e praias. Seu nome de batismo tem origem na grande quantidade de troncos e restos de madeira das árvores que flutuam na sua superfície neste período.

Na estação seca, as águas do Rio, que fluem em direção ao Amazonas, formam praias belas ao longo de suas margens e neste período avistam-se grande quantidade de pedras que ajudam a formar corredeiras.

- Relatos Pretéritos - Rio Madeira

Gaspar de Carvajal (1541)

Neste dia, nós paramos em um monte e descansamos no dia seguinte. No outro prosseguimos. Não tínhamos navegado nem quatro léguas, quando vimos pela margem direita um grande e poderoso Rio maior ainda do que aquele em que nós estávamos, e por ser tão grande, denominamo-lo Rio Grande (Madeira). (CARVAJAL)

Cristóbal de Acuña (1639)

LXVIII - Prossegue a Viagem e do Rio Madeira

Redigido este documento e comunicado ao Capitão-mor, ele alegrou-se muito de ter alguém que se pusesse ao seu lado e, reconhecendo a força dos argumentos, mandou no mesmo instante recolher as velas, cessar todos os preparativos e dispor para que, no dia seguinte, voltando a desembocar pela Foz do Rio Negro, prosseguimos todos, pelo Rio Amazonas abaixo, nossa viagem. Assim o fizemos e, 44 léguas abaixo, demos com o grande Rio da Madeira, assim chamado pelos portugueses pela muita grossa madeira que trazia quando ali passaram, embora seu nome próprio, entre os nativos que o habitam, seja Cayari. Desce pelo lado Sul e, de acordo com o que averiguamos, forma-se pela junção de dois caudalosos Rios algumas léguas adentro, pelos quais, segundo boas demarcações e de acordo com as informações dos Tupinambás, que por ele desceram, é por onde, mais rápido que por qualquer outro caminho, se há de descobrir saída para os Rios mais próximos da Comarca de Potosi. Das tribos deste Rio, que são muitas, as primeiras se chamam Zurina e Cayana e depois vão se seguindo os Ururihau, Anamari, Guatinuma, Curunari, Erepunaca e Abacaxis.

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E desde a Foz do Rio, indo pelo Rio das Amazonas abaixo, vivem os Zapucaya e os Urubutinga, que são muito curiosos em lavrar coisas de madeira. Depois deles vêm os Guaranaguaca, Maragua, Quimau, Burai, Punoy, Oreguatu, e Apera, além de outros cujos nomes não pude averiguar com certeza. (ACUÑA)

João Filipe Bettendorff (1698)

LIVRO VI - CAPÍTULO XIV

VISITA DO PADRE IODOCO PERES A MISSÃO DO RIO DAS AMAZONAS, E CHEGA AO RIO DA MADEIRA E LOGO DEPOIS VAI VISITAR O MARANHÃO

Era essa glória reservada ao Padre Antônio Pereira, navegou o Padre Superior Iodoco Peres pelo Rio das Amazonas a riba, e como tinha ouvido cousas grandes do Rio da Madeira, foi ele o primeiro Superior da Missão que entrou por ele, para ver se lá podia pôr uma nova residência; ao cabo de uns nove dias de viagem, chegou aos Irurizes, nação afamada sobre todas as mais; praticou-os sobre a nossa Santa Fé e ficou com eles que lhe mandaria um Padre Missionário para lhes assistir e, para que não lhes faltasse língua, trouxe consigo um filho do Principal para o Pará, para lá aprender a língua geral em um Colégio, onde ficou até que a soube, recebeu o Santo Batismo, algum tempo depois; voltou com o Padre João Ângelo o qual, com o Padre José Barreiros, companheiro seu, foi mandado para Missionário dos Irurizes.

É este Rio da Madeira um dos mais famosos que há pelo Estado, por grande e espaçoso, porém demorado pelas caldeiras (Cachoeiras) que tem, em que somem as canoas com tudo o que levam, havendo descuido dos guias ou pilotos, e tem várias castas de peixe, até peixe-boi, piraíbas, mas os índios não os comem, sustentam-se de uma casta de peixe que chamam tambaquis, mui gostosos; as suas águas são as mesmas como as do Rio das Amazonas, pois é braço dele, que muitas jornadas para cima se reparte, fazendo uma Ilha grande em que moram os Irurizes, os Jaquezes e outras muitas nações; as suas terras são boas para todo o gênero de mantimentos, suas matas têm muita caça de porcos, cutias, pacas e pássaros; porém os Irurizes não matam nem comem porco-do-mato, e só são amigos de pássaros que têm por seu mais regalado sustento.

Frequentam os portugueses aquele Rio da Madeira, assim chamado pela muita madeira que traz consigo para baixo a sua grande correnteza, porquanto há muita abundância de cacaueiros por ele, os quais dão o melhor cacau que há no estado todo, por ser mais doce e mais grosso que os das outras partes.

São repartidos os Irurizes em cinco Aldeias, cada uma delas com seu Principal; dizem que procede de uma mulher que veio prenhe do céu e pariu cinco filhos, dos quais o primeiro se chama Iruri, o segundo Unicoré, o terceiro Aripuana, o quarto Sururi, o quinto, finalmente, Paraparichara, e que esta mulher, estando um dia comendo peixe assado, que chamam “mocaém”, e vendo-se apanhada por seus filhos com essa iguaria, se envergonhara e se retirara para o Céu, de onde tinha vindo, e disso procede que os índios Irurizes aborrecem aquele gênero de iguaria assada.

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Têm contíguos a si os Jaquezes que são seus inimigos, como também várias outras nações que em si compreende a Ilha; estes Jaquezes comem carne humana e gostam sumamente das inimigas, principalmente da das mulheres, por isso andam continuamente à caça delas, e achando-as, as trespassam com umas lanças que chamam zagaias, e apanhadas, lhes quebram o espinhaço, repartindo-as em quartos que as levam, deixando a zagaia com suas penas no lugar da matança, como pagamento de sua presa; chegados às suas casas, comem uma parte, e a outra têm por costume, passado em obrigação, de dar a seu Principal e mais parentes que aí se acham. As mulheres dos Irurizes estão tão recolhidas em casa, que nem com os parentes podem falar sem grandes cautelas (...).

Tinham dificuldade de deixá-las ir à Igreja pelos primeiros princípios da assistência dos Padres Missionários com eles. Têm mais particular medo do recebimento de suas visitas, o que se pode ver de uma que fez um grande Principal de fora, estando o Padre João Ângelo e o Padre José Barreiros já de assistência em sua terra. Chegou esse Principal em uma tarde ao Porto da Aldeia Iruriz, onde se deixou estar, pelas leis de sua severidade em suas canoas e com sua gente até o dia seguinte; então pela madrugada, dispôs seu acompanhamento de sorte que o precediam seus muitos vassalos com seus arcos e flechas, e a estes seguiam os oficiais de guerra com suas insígnias pelas mãos e ao cabo deles todos, o Principal, com sua espada nua levantada para o ar; desta sorte foi-se andando para a Aldeia. De lá lhe veio encontrar o Principal dos Irurizes com seus cavaleiros, e dadas as boas-vindas, o levou para a casa do paricá, feita em meio do terreiro, para tomarem seu paricá e fazerem suas danças e bebedices. Lá o agasalhou com todo o seu segmento, e com grandes demonstrações de alegria e festas, não lhes faltando do que comer e beber; trataram-se os negros entre si com toda a amizade e privança alguns dias, porém não deram, os Irurizes, licença às mulheres, ainda que suas próprias, de, correndo a Aldeia, visitarem os de pazes senão por despedida, pela qual lhes falaram, deixando-as mui chorosas do seu apartamento; finalmente acudiram eles com muita liberalidade aos que as tinham vindo visitar, presenteando-as com tudo que tinham para poderem comodamente voltar para suas casas, sem lhes faltar cousa alguma para sua viagem.

São os Irurizes mui curiosos, e lavram com singular arte as suas trombetas ou mumbiz e bordões de várias castas, que vendem aos que vão para suas terras. Não fazem grande caso das ferramentas dos portugueses, porque lhes vêm do Rio Negro outras muito melhores que lhes trazem os índios daquelas bandas, que contratam com os estrangeiros ou bem com as nações que lhes são chegadas. (...)

LIVRO VII - CAPÍTULO XXV

MANDA O PADRE SUPERIOR DA MISSÃO IODOCO PERES AO PADRE JOÃO ÂNGELO COM O PADRE JOSÉ BARREIROS À NOVA MISSÃO DOS IRURIZES

(...) Governam-se as Aldeias dos Irurizes com Principais eletivos de tal sorte que o mais capaz entre eles é o que sucede pela morte de seu Principal; e em as Aldeias só os que são parentes podem ter casa à parte, porque os vassalos moram em roças dos que governam, com que as Aldeias contem somente Principais, os quais elegem sobre si um Cabo, que é como o cabeça de todos.

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Havia no tempo que lhes assistiu o Padre João Ângelo com o Padre José Barreiros, cinco Aldeias grandes desta mesma nação; a primeira de Irurizes, a segunda de Paraparixanas, a terceira de Aripuanas, a quarta de Onicores, e a quinta de Tororizes, além de algumas aldeotas de pouca consideração, porém estas cinco continham mais de vinte Aldeias, porquanto cada roça daqueles Principais era uma boa Aldeia de vassalos. Os Padres Missionários, para melhor Governo de todas elas, assim em o temporal como em o espiritual, que lhes competia pelas leis de Sua Majestade, mandaram chamar um dia os Principais todos para lhes dar informações dos intentos de sua vinda para suas terras. Obedeceram logo e para que de um se conheça o modo com que chegam, referirei somente o do Paraparixana, que era o mais vizinho e veio pelo modo seguinte.

Chegou uma tarde ao Porto da Aldeia com grande numero de canoas e, sem desembarcar alma viva, mandou um mensageiro dar parte ao Principal Mamoriny como era chegado o Principal Paraparixana, e assim, estando todos dentro de suas canoas, sem se bulir em coisa alguma, pela manhã tornou a mandar segundo recado, pedindo licença de sair para terra. Estes recados todos trazia logo o Principal Missionário aos Padres pedindo-lhes seu consetimento; com ele finalmente começaram a vir para a Aldeia com grande número de índios carregados de mil curiosidades, de assentos, de bordões, tapiocas e beijus e estes eram os mimos que o Principal Paraparixana mandava adiante de si a todos os moradores daquela Aldeia. Atrás destes ia uma tropa de mancebos pintados a mil maravilhas, os quais andavam dois em dois, com grande modéstia e compostura e, levando seus arcos e flechas pela mão, se encaminharam para a casa do Paricá; após deles começaram a vir os moradores da Aldeia do Paraparixana, os quais traziam nas mãos umas varas rachadas e abertas pela ponta, em sinal que tinham vassalos e eram fidalgos entre os seus e por isso também cada qual deles levava uns pajens adiante de si com arcos e flechas pelas mãos; finalmente, ao cabo de todos estes fidalgos, vinha o Paraparixana, vestido de seda verde, com um terçado arvorado em a mão, e assim como levava diante de si grande número de pajens, também o seguia em ordem uma grande multidão de vassalos.

Passou toda esta procissão pela porta da residência dos Padres e não obstante estarem lá eles e o Principal Mamoriny que lhes estava explicando os passos daquela entrada e os nomes dos Principais, contudo nenhum deles se atreveu a falar nem a olhar para eles, e assim foram à casa do Paricá, onde se lhes armaram as redes e os jacazes, e assentados aqui todos pediu o Principal Mamoriny licença aos Padres de os ir visitar, assim como ele foi foram também em sua companhia os mais Principais da Aldeia, e, assentados uns defronte dos outros, mandou logo o Principal Paraparixana dizer ao Padre João Ângelo que ele era chegado, e que ele desejava sumamente que viesse. Ele logo veio com todo o seu acompanhamento à porta da casa da residência, porém ele só entrou dentro fez-lhe a visita, e daí tornou outra vez para a casa do Paricá, onde de todas as casas da Aldeia lhe foi um presente para o jantar, e jantaram alegremente todos, porém sem vinhaça alguma, e aí estiveram quatro ou cinco dias, sem nunca entrarem em casas daquela Aldeia, não obstante que tinham aí seus parentes mais chegados por estarem casados uns com os outros; finalmente quando se quiseram ir para a canoa, então foram correndo todos juntos, por todas as casas donde as mulheres lhes davam seus mimos para a viagem. (BETTENDORFF)

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Charles Marie de La Condamine (1744)

As águas claras e cristalinas do Rio Negro mal tinham perdido a sua transparência, misturando-se com as esbranquiçadas e turvas do Amazonas, quando encontramos do lado do Sul a primeira embocadura dum outro afluente que nada cede ao anterior, e que não é menos visitado pelos portugueses. É o que chamam Rio Madeira, talvez por causa da quantidade de árvores que carrega no tempo das cheias. Para dar idéia da extensão de seu curso, basta dizer que, em 1741 (1749 – “Viagem da Real Escolta” - José Gonçalves da Fonseca), subiram por ele até as proximidades de Santa Cruz de la Sierra, Cidade episcopal do Alto Peru, situada a 17°30’ de Latitude Austral.

Este Rio tem o nome de Mamoré na sua parte superior, onde se acham as missões Mojos, de que os Jesuítas da Província de Lima fizeram uma Carta em 1713, que foi inserta no tomo XII das “Cartas Edificantes e Curiosas”; mas a fonte mais distante do Madeira é vizinha do Potosi e pouco afastada da origem do Pilcomaio, que vai lançar-se no grande Rio da Prata. (CONDAMINE)

Bernardo Pereira Berredo (1749)

Carta do M.R.P.M. Bento da Fonseca, da Companhia de Jesus, Procurador Geral do Maranhão.

M.R.P.M.

Agradeço a Vossa Paternidade a antecipação, que me faz dos Annaes Históricos do Maranhão, e fico obrigadíssimo a Vossa Paternidade pela sua obsequiosa lembrança. (...)

No ano de 1739, se soube que o Rio Negro se comunicava com o Rio Orinoco, por Cartas que escreveram os Padres Missionários, da Companhia de Jesus, da Província do Novo Reino de Granada, ao R. P. Achiles Maria Avogadro, da minha Companhia, e da Província do Maranhão, que se achava no dito Rio Negro descendo, e praticando índios à nossa Santa Fé, e examinando outros, que os Portugueses resgatavam no dito Rio por escravos. Por estas Cartas, e com esta ocasião se soube, que o Rio Negro tem perto de três meses de viagem navegável, que desce do Poente para o Nascente qual paralelo ao Rio das Amazonas, que por hum braço se comunica com o Rio Orinoco, e que do Pará se pode por Rios, e por água sem pôr pé em terra, subir, e descer até a Cidade de Guayanna, e Ilha da Trindade, que lhe fica fronteira; ficando certo, que todo o continente de Guayanna fica sendo uma Ilha cercada do Mar, e dos Rios Amazonas, Negro, e Orinoco.

O Rio Madeira corre do Sul para o Norte, e desemboca no Rio Amazonas em altura de 2 graus e 20 minutos de Latitude Austral. Do Pará até a Boca do dito Rio se gastam três semanas de viagem. Foi descoberto o Rio Madeira a primeira vez pelo Sargento-mor Francisco de Mello Palheta, no ano de 1725.

Na verdade Palheta percorreu o Rio Madeira no período de 11 de novembro de 1722 a 12 de setembro de 1723. (Nota do Autor)

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No de 1728, fundou o Padre João de Sampaio, da Companhia de Jesus, da Província do Maranhão, uma Aldeia de Índios junto às primeiras Cachoeiras do dito Rio, que distam da boca dele cousa de vinte e cinco dias de viagem. Da dita Aldeia subiu o Padre Sampaio pelo Rio acima até as Aldeias dos Padres da Companhia da Província do Peru, e galgou até as primeiras dezesseis dias em canoa bastante grande; e referiu, que os ditos Padres nas cabeceiras do dito Rio, e seus braços tinham dezesseis Aldeias de Índios até Santa Cruz de la Sierra, em que tem as suas cabeceiras o dito Rio, e lhe dá o nome lá de Rio Mamoré.

Duas vezes desceram depois disto Portugueses das nossas Minas do Mato Grosso, que agora se criou Governo, e foi por seu primeiro Governador D. Antônio Rolim, irmão do Conde de Val dos Reys o ano passado, os quais vieram ao Pará por este Rio Madeira. O primeiro foi um Manoel Telles, que assiste ainda hoje no Maranhão, e os segundos foram Miguel da Silva, e Gaspar Barbosa Lima, assistentes ambos na Capitania do Pará. Por relação destes se têm a notícia que, desde o Mato Grosso até certo Riacho, ou braço do Rio Madeira, gastam-se três dias de jornada por terra; e embarcando-se, se gastam até uma das Aldeias chamada S. Joaquim, dez dias de viagem; e desta até a boca do Rio Madeira, dezesseis dias, por ser grande a correnteza do Rio. Conforme esta relação, se é verdadeira, se chega do Mato Grosso ao Pará em quarenta e quatro dias, contando-se quinze, como são da boca de Madeira ao Pará. É tão confiante esta notícia, que houveram muitos votos para que o Governador do Mato Grosso fosse para o dito Governo pelo Pará, e por este Rio Madeira. (BERREDO)

João Daniel (1757)

Abaixo deste deságua o Rio Madeira, fazendo maior figura que todos os mais supra (citados anteriormente), pelo que houve historiadores que escreveram ser este o próprio Rio Amazonas, a quem o Rio Madeira se sujeita, vangloriando-se de ter, como o mesmo Amazonas, duas bocas, e mais que ele três cabeças ou braços. O primeiro vem de Oeste chamado Beni; o segundo do Sul, e se chama o Rio Mamuré (Mamoré), nasce perto da Cidade de Santa Cruz de la Sierra. O terceiro vem de Leste, e nasce na Chapada Grande, ou Cume da Serra, entre Mato Grosso e Cuiabá; e se chama aí Rio Guaporé. Deságuam nele muitos outros Rios de uma, e outra banda; entre eles é célebre o Rio dos Diamantes, de que falaremos adiante. É navegável o Rio Madeira para cima de dois meses e meio de viagem. Tem muitos, e grandes Lagos; e por eles se comunica com o Rio Purus. É a estrada seguida dos mineiros, e mais moradores do Governo, e minas de Mato Grosso; por ele descem, e sobem a fazer seus provimentos à Cidade do Pará (Belém), por lhes ficar muito em cômodo, e evitarem as grandes, e molestas demoras que antes experimentavam pelo Rio de Janeiro. Tem um sorvedouro (redemoinho), com que parece querer intimidar, e está ameaçando aos mineiros e navegantes, mas debalde, porque a cobiça do ouro os faz desprezar todos os perigos, e tão destemidos, que nem da boca, sorvedouro, e formidável caldeirão do inferno, temem. Tem algumas catadupas (quedas d’água), das quais a maior é a primeira (Santo Antônio), que de nenhuma sorte dá passo aos navegantes, por muito alta; em cujo Distrito puxam por terra as embarcações e transportam as suas cargas, e passada, se tornam a embarcar e prosseguem viagem. É igualmente comum a portugueses, e espanhóis a sua navegação das Cachoeiras, ou catadupas para cima. (DANIEL)

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José Monteiro de Noronha (1768)

75. De Arauató até chegar defronte da Barra do Rio da Madeira são cinco léguas. Este grande Rio desce do Sul ao Norte, e deságua na margem Austral do Amazonas em três graus, e vinte e cinco minutos. O Sr. de Condamine diz, na página 73 do seu Diário, que o Rio Madeira corre paralelo ao Rio Bani, ou Beni, que supõe ser o que na sua Barra se chama Purus e de que se tratará nos parágrafos 89, e 90; no que padeceu grande equivocação porque o Rio Beni, junto com o Inim, formam o verdadeiro Rio da Madeira, que conflui com o Mamoré entre a quinta Cachoeira, chamada da Barra, na altura de quase dez graus, depois de o último haver recebido em si as águas do Guaporé na altura de quase onze graus. Na Oriental do Rio Madeira deságuam os Rios Aripuanã, Mataurá, Marmelos, Araraparaná, Unicoré, Uriponi, Paraxião, Giparana, e Jamari, acima do qual principiam as catadupas, ou Cachoeiras. Há no Rio da Madeira muito cacau e gentio, cujas nações mais conhecidas e distintas são: Arara, Marupá, Pama, Torá, Matanawi, Urupá, Tukumãfet, Mamí, Karipúna, Iuquí, Yauaretiuara.

76. Governando o Estado do Pará, o Senhor Cristóvão da Costa Freire fez uma expedição de guerra contra os índios da nação Torá, por várias irrupções (incursões inopinadas) que fizeram às Aldeias de Canumá e Abacaxis e hostilidades que praticaram. Foi Comandante da expedição o Capitão-mor da Praça João de Barros Guerra que, recolhendo-se obrigado por uma moléstia, teve o infortúnio de naufragar e morrer por ocasião de um grande pau que, da margem do Rio caiu sobre a embarcação em que vinha. Na sua ausência continuaram as diligências da guerra dirigidas pelo Capitão de infantaria Diogo Pinto da Gaia e pelo Sargento-mor das ordenanças Francisco Fernandes. Reduzidos os índios à última consternação, pediram paz, que lhes foi concedida com a condição de se descerem, e agregarem à Aldeia de Abacaxis, hoje Vila de Serpa, ficando, porém, muitos que, por mais remotos, não foram invadidos ou escaparam do furor da guerra.

77. As margens do Rio Madeira são habitadas pelos índios da nação Mura, que são de corso, não admitem paz nem fala e costumam acometer, matar e roubar os navegantes. Não passam, contudo, do Rio Jamari para cima.

78. Na margem Oriental do Rio Madeira e distante da sua barra vinte e quatro léguas, está fundada a Vila de Borba. A sua primeira situação foi no Rio Jamari, de onde se mudou para Camuam, na Barra do Rio Giparaná, e depois para Pirocam ou Paraxião e, ultimamente, para a paragem chamada Trocano onde presentemente está, sendo causa das suas mudanças a perseguição, que faziam os Muras aos seus moradores. (NORONHA)

D. J. G de Magalhães (1781)

ROTEIRO COROGRÁFICO

Da viagem que se costuma fazer da cidade de Belém do Pará à Vila Bela de Mato Grosso.

Tirado do Diário Astronômico, que ao Rio Madeira fizeram os oficiais engenheiros e doutores-matemáticos, mandados no ano de 1781 por Sua

Majestade Fidelíssima a demarcar a 1ª Divisão dos reais limites.

Sargento-mor engenheiro João Vasco Manoel Braum

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Daí a outras duas léguas, vê-se a Vila de Serpa, situada no lugar a que chamam Itacoatiara, que quer dizer — Pedra Pintada, — e perto daí passa o quarto furo. Largando desta Vila, Rio acima, se encontrará na distância de três léguas o quinto furo do sobredito Lago, chamado Aybu; e subindo mais meia légua, o sexto e último furo, conhecido pelo nome de Arauató.

Deste furo se poderá já passar para a margem Austral do Amazonas aonde, vencidas cinco léguas, se aportará à Barra do Rio Madeira. Entrando, pois, por este Rio se deixará, por Estibordo, o Amazonas, e com proa a SO, navegar-se-á pela margem Oriental acima, encontrando nela, em distância de onze léguas e meia, a boca do Rio ou Furo Tupinambarana, que vai desaguar pela boca, que já se contemplou no Amazonas; defronte daquele furo se acha a Ilha Maraia.

Navegando mais onze léguas, se chegará à Vila de Borba. E largando deste Porto Rio acima, que pela distância de quase duas léguas vai na direção de E, tornando depois ao seu rumo geral de SO, se deixará por Estibordo a boca do furo Uautás, que dista quatro léguas e meia da Vila de Borba. Deste Furo para cima, corre o Rio no rumo do S, na distância de quase sete léguas, em que se encontram remarcáveis praias e Ilhas, sendo a primeira a da Mandiúba, logo adiante duas paralelas, chamadas de Carapanatuba; e quase aonde o Rio toma o seu rumo geral está a Ilha do Jacaré, e duas léguas superior se acham as Ilhas de José João, deixando mais por Estibordo a boca do Rio Ariupanã, que fica dezessete léguas acima do Uautás. Da referida boca do Ariupanã se segue a viagem do rumo geral, encontrando logo as Ilhas das Araras, que tem 4 léguas de comprido, e a costa da margem Oriental, por onde se navega, de altas barreiras de ocres de diferentes cores, desembocando nela, defronte da última ponta das sobreditas Ilhas, o Rio do mesmo nome.

Prosseguindo a viagem se encontrará duas léguas adiante a Ilha Uruá, que tem outras duas léguas de comprido, e mais duas superiores em a mesma margem Oriental a boca do Rio Mataurá, que fica distante do Rio Ariupanã dez léguas e meia. O Rio Mataurá comunica-se com o Tupinambarana pelo Rio Camuam.

Da boca do Mataurá para cima, leva o Madeira a direção de O por quase três léguas, e delas para diante busca outra vez o seu rumo geral até a boca do Rio Anhangatiny, que dista do Mataurá cinco léguas e meia. No meio deste intervalo, se acha a Ilha do Jenipapo, que tem duas léguas de extensão com grandes praias, e trabalhosas correntezas.

Da Foz do Anhangatiny, segue o Rio a direção de O por quase duas léguas, voltando depois ao seu geral rumo até a boca do Rio Manicoré, que deságua no Madeira em a margem Oriental, sete léguas e meia distante do Anhangatiny. Entre a distância, em que ficam estes dois Rios, se encontram as duas grandes Ilhas e praias chamadas do Mutupiri e Mouracatuba.

Continuando a viagem pelo Madeira acima, rumo de O até ao Rio Capanã, que fica também sete léguas e meia distante do Manicoré, se encontram várias praias, e se fazem diversas voltas, sendo uma tão oposta, que logo do S se vira ao N, aonde se acham as Ilhas conhecidas pelo nome de Jatuaranas, que são três, e compreendem três léguas na curva, que ali descreve o Rio.

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Prosseguindo da Boca do Rio Capanã para cima, se navegará no rumo de E a distância de duas léguas, fazendo depois delas proa de S, por ser esta a direção que o Rio Madeira aqui leva com algumas pequenas voltas. Três léguas superior à dita Boca, se encontram as Ilhas do Urupé que tem duas léguas de comprido; e cinco acima está a Ponta da Ilha do Marmelo, que tem três léguas de extensão, ficando pouco antes do seu extremo superior na margem Oriental a Boca do Rio do Marmelo; e duas léguas acima as duas Ilhas de Aruapiara, que tem duas léguas de comprido, e formam também a boca do Rio do mesmo nome, que se deixará por bombordo no meio das referidas Ilhas, distante do Capava onze léguas e meia.

Do extremo superior da última Ilha Aruapiara, se navega com proa de O a distância de seis léguas, e continuando duas mais com rumo geral de SO se encontrará na margem Ocidental a Boca do pequeno Rio Baetas, ficando meia légua antes a Boca do Igarapé Jarauari. Pouco acima da Boca do dito Rio Baetas, se encontra uma Ilha do mesmo nome, e prosseguindo avante com proa de S a Ilha dos Muras, que fica seis léguas do Rio Baetas, e quatorze distante do Aruapiara. Seguindo viagem, se costeará a Ilha dos Muras pela parte Oriental, aonde se encontram muitas praias e grandes correntezas, ainda que menores que as do outro lado. Esta remarcável Ilha tem a sua direção de N a S com quase três léguas de comprido, e uma de largo. Do extremo dela se navegará com proa de O, por ser o rumo que ali leva o Rio; uma légua acima quase a terra de bombordo se encontrarão as três Ilhas chamadas de Santo Antônio; e tendo navegado naquele rumo a distância de quatro léguas, corre o Rio ao S com cuja proa se avistará logo a Ilha dos Pagãos ou Saraíma, e uma légua superior a Ilha dos Periquitos, que tem uma légua de comprido. Duas acima está o Igarapé Pirayuara com uma Ilha imediata, que tem o mesmo nome, e uma légua de extensão.

Da boca deste Igarapé se dirige o Rio outra vez para O, em que se demora a distância de duas léguas para tornar ao S, três léguas acima daquela última Ilha se encontrarão as das Piraíbas, que têm duas léguas de comprimento, formando todas duas grandes, e vistosas praias. Outras três léguas acima das Paraíbas principiam as três Ilhas das Arraias, que se acham ao longo do Rio com duas léguas de extensão. Superior a elas, na distância de uma légua se chegará à boca do pequeno Rio das Arraias, que fica na margem Ocidental, e distante da Ilha dos Muras vinte e duas léguas.

Prosseguindo viagem mais duas léguas, com proa do S, volta o Rio pela extensão de uma légua com a direção de SE, aonde se acha a Ilha chamada do Batuque, em que o Rio torna ao S. acabada a dita Ilha, que tem uma légua de comprido, se segue logo a das Flechas com duas léguas. Ambas estas Ilhas se acham encostadas à margem Oriental do Rio. A quatro léguas e meia acima das Flechas está a Boca do Rio ou Igarapé Mahicy; e légua e meia superior se acha a do Rio Machado, ambos na margem Oriental, e este distante do Rio das Arraias onze léguas e meia.

Do fim da referida Praia, se navega com proa de S0 até ao Igarapé Maiacypé, que fica por bombordo na distância de três léguas, e voltando aqui o Rio a O, se encontra légua e meia superior, na margem Austral, a Boca do pequeno Rio Pananema; e a uma légua mais em a mesma margem o Igarapé Puncam, da Boca do qual volta o Rio ao S, ficando pouco mais acima duas Ilhas do mesmo nome.

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Vogando mais quatro léguas e meia, se deixará por bombordo a Boca do Lago ou Igarapé Puinaré, defronte de uma Ilha do mesmo nome, desaguando duas léguas superior em a margem Oriental do Madeira o Rio Jamary que dista do Machado quatorze léguas e meia. Partindo deste lugar, Rio acima, com proa de S, se encontrará a uma légua de distância a Ilha de Mariuhy, que tem meia légua de comprido, e a pouco mais de uma fica a Ilha dos Guaribas, sendo a costa de E destas Ilhas de grandes e altas barreiras com suas pontas de pedras, que formam trabalhosas correntezas. Da Ilha das Guaribas corre o Rio para O, e nesta volta se deixa por bombordo a tapera do Trocano, lugar em que residiram ultimamente os moradores da Vila de Borba (...).

Navegando mais uma légua, se encontram as Ilhas do Mandihy, que compreendem quase duas léguas na sua extensão. Delas volta o Rio para o seu rumo geral de S0, e subindo por este rumo pouco mais de duas léguas, se encontrará a grande e famosa Praia do Tamanduá, onde se fazem as mais vantajosas pescarias de tartarugas, por irem a ela muitas desovar. Desta Praia até pouco mais de uma légua, se dirige o Rio para o O, e vencida ela, prossegue por mais de três léguas à direção de S, ficando em ambas as margens as bocas de muitos Lagos até a 1ª Cachoeira, chamada de Santo Antônio, que dista do Jamary doze léguas e meia.

Acabada de conseguir a passagem da dita Cachoeira, se prosseguirá avante quase uma légua pelo rumo do S, e voltando a distância de outra com o rumo de SO, se encontrarão muitos e altos penedos, que atravessam o Rio, e formam nele uma grande correnteza e sirga, a que chamam do Macaco, a qual se passa com bastante trabalho, ficando pouco mais acima uma Praia, onde se costuma descansar, já distante da dita Cachoeira de Santo Antônio duas léguas e meia.

Sirga (espia): a extremidade de um cabo de sisal era amarrada ao mastro do veleiro, ou na popa da embarcação, e a outra passada à volta de um galho ou tronco de árvore. As embarcações eram então tracionadas até um determinado ponto onde aguardavam que se repetisse o mesmo processo com outro cabo. (Nota do Autor)

Prosseguindo Rio e correntezas acima, se chegará à 2ª Cachoeira, chamada do Salto (Teotônio), onde é indispensável descarregar as canoas e estivar o varadouro, que tem mais de 250 braças de extensão pela falda de um monte ou morro de lajedo e terra, que há de ter mais de sessenta palmos de alto, com áspero declive.

Desta Cachoeira se navega com proa de S encontrando-se uma légua acima infinitos penedos dispersos por toda a largura do Rio, o que produz trabalhosas correntezas, e enfadonhas voltas, até se navegarem três léguas e meia de caminho, onde se encontra a 3ª Cachoeira, chamada dos Morrinhos, que se costuma vadear pelo canal do meio, e quase sempre em meia carga.

Vencida, pois, a passagem desta Cachoeira, se prossegue uma légua de viagem com proa de O e mais três e meia a S0, encontrando-se nesta distância uma grande Ilha em que há fortes correntezas e, na margem Oriental do Madeira, a Boca do Rio Jacipará; dela para diante torna aquele Rio a direção de O; navegando pouco mais se encontram três Ilhas conhecidas pelo dito nome, e bastantes correntezas.

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Três léguas acima, se acha uma Ilha chamada de Santa Anna, onde volta o Rio ao SO, encontrando-se duas léguas superior na margem Ocidental a Boca do Rio Maparaná, e uma acima a 4ª Cachoeira, conhecida pelo nome de Caldeirão do Inferno, que dista da Cachoeira dos Morrinhos dez léguas. Da saída do dito Caldeirão corre o Rio no rumo de S0, e havendo por ele navegado uma légua, se encontra a 5ª Cachoeira, chamada do Girau (Jirau).

Por esta altura, em a margem Oriental, vive o gentio Pâma, que muitas vezes vem a esta Cachoeira ajudar, e presentear os passageiros; é muito manso, mais branco do que o do Rio Amazonas, e entre eles há muitos batizados. Na margem oposta, habita também o gentio da nação Caripûna, que é inteiramente selvagem; tem o rosto mascarado de vermelho, as orelhas furadas, e nelas trazem ossos; a cartilagem do nariz também furada, atravessando por este furo um tubo de goma alambreada, muito dura, que terá três polegadas de comprido, e quatro linhas de grosso. Alguns têm umas curtas barbas ou bigodes, e do meio deles lhes pendem uns semelhantes tubos, porém mais grossos e compridos; ornam a cabeça com um círculo guarnecido de curtas penas, sendo as da parte posterior de Araras, as quais lhes caem sobre as costas; são muito desconfiados, ladrões, robustos e ferozes.

Da dita Cachoeira se prosseguirá com o mesmo rumo a distância de duas léguas, vencendo-se nelas trabalhosas correntezas; e mudando depois o Rio para o S até a distância de cinco léguas e meia, se encontrará a 6ª Cachoeira, chamada dos Três Irmãos, que dista do Girau sete léguas e meia.

Vencida esta Cachoeira, se navegará com proa de O a distância de quatro léguas pelo Madeira que nesta paragem é muito estreito, e guarnecido pela costa Austral de Colinas que terminam na margem do Rio, e pela Setentrional, de terras elevadas, havendo no álveo (canal) do Rio diferentes penedos fora d’água, que produzem incômodas correntezas até a 7ª Cachoeira, chamada do Paredão, a qual dista da 6ª cinco léguas e meia.

Com a proa a O, se continua a viagem, vencendo repetidas correntezas até a 8ª Cachoeira, conhecida pelo nome de Pederneira, distante da do Paredão três léguas.

Acabada esta trabalhosa passagem, se prossegue avante com o rumo de SSO, deixando em a margem Ocidental, distante quatro léguas, a Boca do Rio Abunã. Deste lugar, volta o Madeira no rumo de SE e, vencidas com esta proa quatro léguas e meia, se muda para a do S por mais duas léguas e meia, com que se chega À 9ª Cachoeira, chamada das Araras, que fica onze léguas da Pederneira.

Prosseguindo viagem a rumo do S, com a oposição de continuadas correntezas, se chega à 10ª Cachoeira, intitulada do Ribeirão, que está situada três léguas acima das Araras. Vencidas, pois, as grandes dificuldades daquela horrorosa Cachoeira, que tem duas léguas de comprido, se continuará a viagem por entre penedos e correntezas até a distância de meia légua, onde se encontra a 11ª Cachoeira, chamada da Misericórdia.

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Da dita Cachoeira se dirige o Rio pelo rumo do S até a Cachoeira, conhecida pelo nome do Madeira (12ª), que dista da Misericórdia duas léguas. Vadeada que seja aquela Cachoeira, se navega com proa de S até a boca do Rio Mamoré, que fica duas léguas distante da Cachoeira do Madeira, e deixando por estibordo na direção de SO o Rio Madeira, se prossegue avante a distância de uma légua, com o mesmo rumo do S, ficando por bombordo um pequeno Rio d’água negra, e meia légua superior a 13ª Cachoeira, chamada das Lajes. Prosseguindo viagem, se chegará com légua e meia de caminho à 14ª Cachoeira, denominada do Pau-Grande.

Largando a dita Cachoeira água acima e rumo do S, se encontrará na distância de duas léguas a 15ª Cachoeira, conhecida pelo nome das Bananeiras. Nesta Cachoeira, se varam quase sempre as canoas por terra, tendo o Rio mais ou menos água, o qual neste lugar é larguíssimo, e cheio de inumeráveis Ilhas, pedras, correntezas e saltos, sendo esta Cachoeira; e a do Ribeirão, as duas mais escabrosas e extensas, pois em qualquer das grandes sirgas, ou saltos, de que se compõe, arrebentando o cabo, porque se puxa cada uma das canoas, não só se farão em pedaços, mas dificultosamente se salvará a gente, que nelas for.

Vencida a dita Cachoeira e algumas correntezas que se lhes seguem, se navegará com proa de E a distância de uma légua; e com proa de S légua e meia para chegar à 16ª Cachoeira, chamada do Guajará-açu. Conseguida esta Cachoeira, e as seguintes correntezas, que enchem quase todo o quarto de légua de distância, se acha a 17ª Cachoeira, intitulada da Guajará-mirim, que sem notável trabalho se vence, prosseguindo avante até uma Ilha, que o Rio ali forma, e em que termina uma légua de distância.

A respeito de Cachoeiras não se pode dizer positivamente nem o seu estado, nem o tempo que se gastará em passar cada uma delas. Dois palmos d’água mais ou menos lhe fazem uma considerável diferença, pois esta pequena quantidade basta para diminuir em umas as sirgas e saltos, facilitando-lhes breves canais, e em outras fazer suceder tudo pelo contrário, aumentando a ruína das canoas e a demora dos seus consertos; não falando ainda nas moléstias, que provém aos índios, quando andam dias continuados trabalhando dentro d’água, mormente se o Rio traz repiquete (onda que desce das cabeceiras dos Rios, com as primeiras chuvas que ali caem, sem que tenha chovido no resto do seu curso).

Deixando, pois, a dita última Cachoeira, se navega com o rumo de SE até deixar por bombordo a boca do Rio Pacanova, e levando deste lugar a direção do S interpolada de muitas e diferentes voltas, se chegará a duas pequenas conhecidas pelo nome das Capiuaras, que ficam nove léguas e três quartos distantes do Guajará-mirim. Das ditas Ilhas para cima, aumenta o Rio tantas e tão sucessivas voltas, que seria confusa a sua narração, sendo entre elas a de maior extensão ao S e SE até chegar a Foz do Rio Mamoré que fica dezesseis léguas e meia das Capiuaras.

Deixando a dita Foz ou confluência destes dois Rios (Mamoré-Guaporé), se entra pelo Guaporé, que é muito mais estreito, e de águas cristalinas; e navegando-se à distância de uma légua com proa de S se seguirá depois o rumo geral de E com a interpolação de muitas voltas até chegar a Ilha das Rondas, que fica seis léguas por este Rio acima.

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Desta Ilha segue o Rio a direção do S pela distância de uma légua, onde principia a fazer quatro apertadas e unidas voltas sobre os rumos de N e S, de légua de cumprimento cada uma. Acabadas elas, se navega com proa de E a distância de duas léguas até a boca do Rio Cautário que é bastante largo, e entra no Guaporé pela margem Setentrional. Prosseguindo avante, se encontra na mesma margem a boca do Cautário Pequeno, e deste lugar para diante leva o Rio a direção de S por uma larga distância, voltando depois na de E até encontrar a Fortaleza Velha, que fica treze léguas e meia da Ilha das Rondas.

Um quarto de légua acima se acha o Forte do Príncipe da Beira, chamado antigamente Lugar de Santa Rosa.

Forte do Príncipe da Beira: é um quadrado fortificado pelo sistema de Mr. de Vaubam, revestido de cantaria, erigido em terreno solido, e próprio para uma defesa, por ser o mais elevado que se encontra desde a Foz do Mamoré até a do Baurez, além da situação geográfica do Mamoré, Guaporé, Itonamaz, e dito Baurez (Rios que comunicam as missões espanholas de Moscos neles estabelecidas, passando necessariamente as canoas desta nação com muita frequência pelo espaço intermediário); pelo que concludentemente se deixa ver a precisão que ali havia de uma Fortaleza, que fosse fronteira a tantos pontos para os estabelecimentos portugueses, e que ao mesmo tempo servisse de registro aos comboieiros, que todos os anos sobem do Pará, e pagam nele os direitos de Sua Majestade, pois só daqui para cima se poderá extraviar fazendas. (MAGALHÃES)

Alexandre Rodrigues Ferreira (1786)

Ofício do 1° de agosto de 1758

Pela Carta de V.S.ª de 22 de novembro do ano próximo passado, foi presente a Sua Majestade a relação que a V.S.ª fez João Fortes Aragão, de haver achado junto ao Rio Madeira, e da nova Aldeia que intentava estabelecer naquela parte com os dez principais dos índios Maguez, a amostra de ouro e as pedras cristalinas que V.S.ª remeteu à real presença do mesmo Senhor para se examinarem, concluindo haver ouro nas serras que formam as Cachoeiras do Rio Madeira.

Pelo claro conhecimento que Sua Majestade tem de que o aumento desse Estado só pode conseguir-se pelos utilíssimos estabelecimentos da agricultura e do comércio, e que estes descairão (declinarão), se os povos que neles se devem empregar se divertirem (desviarem) para as minas, não pode o mesmo Senhor deixar de prevenir tão prejudiciais consequências, ordenando a V.S.ª que não só não promova o sobredito descobrimento de ouro nas serras que formam as Cachoeiras do Rio Madeira, mas que tenha particular cuidado de o impedir por todos os modos diretos e indiretos que possível lhe forem.

Quanto, porém, aos índios Maguez, deve V.S.ª promover o estabelecimento das Aldeias e a civilização dos mesmos índios; porque nestes dois pontos consiste o principal interesse desse Estado e se reduzem os principais objetos das ordens de Sua Majestade. (FERREIRA)

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Manuel Aires de Casal (1817)

O Rio Madeira, assim chamado dos grandes troncos que trazem as suas cheias, alguns de cedro duma grossura extraordinária, toma esse nome na confluência do Guaporé (como dissemos) com o Mamoré, que nasce na Província de Potosi, atravessa a de Santa Cruz de la Sierra, descrevendo um vasto semicírculo pelo nascente para o Setentrião, engrossando com grande número de outros que se lhe unem por um e outro lado até a mencionada confluência com o Guaporé na Latitude de 10°22’; quarenta léguas acima desta paragem, no paralelo de 13°, comunica este Rio com o Bem pelo Rio da Exaltação, que sai do Lago Rogagualo, do qual sai outro de curta extensão para aquele, que passa pouco afastado, se é que o Rio Beni não reparte as suas águas para aquele Lago, que poderá ter seis ou sete léguas de comprimento Leste-Oeste.

Em frente do ângulo da confluência do Mamoré com o Guaporé, ou Itenez, há um ilhéu de rocha com capacidade para um Forte. Contam por água duzentas e sessenta léguas desta paragem até a Foz do Madeira. No espaço das primeiras sessenta, com pouca diferença, há doze Cachoeiras notáveis. A primeira, que tem o mesmo nome do Rio, fica pouco abaixo do mencionado ilhéu, e é formada de três saltos ou degraus no espaço de meia légua. As canoas sobem a sirga descarregadas, obra de trezentas braças. Segue-se a da Misericórdia, meia légua abaixo. O perigo e o trabalho dependem aqui da altura, ou da diminuição das águas do Rio. Passado outro igual intervalo, está a Cachoeira do Ribeirão, formada de cinco saltos no espaço de quatro milhas, onde as cargas são levadas às costas obra de três mil passos, e as canoas puxadas à sirga, e em parte também arrastadas por terra. Segue-se depois de quatro léguas, a da Figueira, aliás das Araras, formada de ilhotes e penedos, com pouca extensão, e onde se sobe sem maior trabalho. Doze léguas abaixo está a das Pederneiras, onde o Rio é semeado de penedos à flor d’água, obrigando a descarregar as canoas que sobem a sirga, e as cargas aos ombros por espaço de duzentas e quarenta braças.

Três léguas mais adiante se encontra a do Paredão, onde o Rio corre apertado e rápido por entre rochedos, mas curto espaço. Depois de seis léguas, encontra-se a dos Três Irmãos, formada de vários degraus, geralmente pequenos, no espaço de um quarto de légua, e onde não há maior incômodo. Oito léguas mais abaixo, está a do Jirau, onde o Rio passa rápido e apertado, por entre morros, sendo indispensável arrastar as canoas por terra obra de trezentas e cinquenta braças. É formado de cinco saltos num curto espaço. Légua e meia adiante, está a do Caldeirão do Inferno, com três milhas de comprimento, formando em certa paragem um sorvedoiro perigosíssimo, que obriga a muita vigilância e trabalho. Obra de seis léguas abaixo, está a Cachoeira dos Morrinhos, aludindo a três morros pequenos, e pouco afastados da margem Ocidental, cobertos de salsaparrilha. Quatro léguas mais adiante, está a denominada Salto do Teotônio, que é um açude de rocha com mais de trinta e seis pés de altura, quebrando em quatro partes, repartindo as águas do Madeira em outros tantos canais, sendo cada um deles um Rio caudaloso. Paralelamente com este majestoso dique corre, da margem Oriental um recife até bem perto da Ocidental, impedindo a passagem às águas de três canais, fazendo-as passar todas rapidamente por um estreito, entre a extremidade do mesmo recife e a margem esquerda do Rio.

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As canoas são arrastadas por terra com muito trabalho, obra de duzentas e cinquenta braças. Pouco mais de uma légua abaixo, está a Cachoeira de Santo Antônio, onde o Rio passa repartido em três canais, formados por dois ilhotes de penedia, sendo preciso aliviar as canoas para poderem subir. É a primeira para os que sobem, e está na Latitude de 8°48’. Três meses ordinariamente gastam os navegantes em subir desta Cachoeira até a do Guajiru-Mirim (Guajará-mirim), no Guaporé. Da Cachoeira de Santo Antônio até a embocadura do Madeira contam-se mais de trinta Ilhas de uma até três léguas de comprimento, quase todas povoadas de arvoredo soberbo. As de menor grandeza são muito mais numerosas. A maior é a das Minas, que sobre dez milhas de comprimento, tem mais de légua de largura, e fica dezessete léguas abaixo da Foz do Rio dos Marmelos. (CASAL)

Johann Baptist von Spix (1819)

A 15 de outubro, avistamos, entre um grande banco de areia a Leste, e uma ponte de terra coberta de mata baixa, a Oeste, a Foz do caudaloso Rio Madeira. Embora se apresentasse dividida por uma grande Ilha, tínhamos, contudo, diante de nós, desde a margem Norte até aquele Rio, um verdadeiro Mar de água doce. Depois de meio dia, chegamos às altas e íngremes costas de Amatari que, pelo duplo escoadouro do relativamente pequeno Rio Amatari, se tornam Ilhas. Conquanto existisse outrora nessas Ilhas uma Aldeia dirigida pelos mercenários, da qual ainda pareciam dar testemunho algumas capoeiras baixas, tudo havia, entretanto, voltado à primitiva selva e, em vez daqueles Padres devotos, estavam instaladas ali algumas famílias de Muras errantes.

Bastam poucos decênios, neste país, para dar à natureza poder ilimitado sobre a obra do homem. Do lado Meridional, depararam-se-nos ilhotas de areia, que surgiam das águas, e nas quais se viam inúmeros bandos de toda espécie de aves aquáticas. A sua gritaria confusa chegava até nós, e elas não pareciam assustar-se com ruído algum, nem com a aproximação dos homens. Constante é a briga entre os ciconídeos grandes e os patos, e a ela assiste impassível, em geral pousada numa árvore, a garça branca Ardea (Ardea egretta). Em outra Ilha, jazia morto um jacaré grande, em volta do qual esvoaçavam urubus. Os nossos índios fizeram-nos observar que um urubu-Rei (Cathartes papa) havia justamente voado dali, deixando campo livre para os outros. Quanto mais altas se elevavam as barrancas, tanto mais cresciam as dificuldades de navegação, por aumentar a correnteza. Tornou-se particularmente impetuosa acima da ponta de Amatari, de modo que, só por meio de tirantes amarrados na margem (espias), pudemos fazer avançar a canoa.

Num ponto onde o Rio redemoinhava em torno de um paredão de grés (rocha formada de areias consolidadas) de mais de 20 pés de altura, foram amarrados dois fortes cabos nas árvores da margem e no mastro da proa, e, apesar da forte arrancada dos nossos índios, gastamos várias horas para vencer a correnteza. Depois do meio-dia, prosseguiu a viagem do mesmo modo, e enquanto a montaria, à frente, levava os tirantes para a margem, julgamo-nos de repente favorecidos pela sorte, ao ver soprar inesperadamente vento fresco de Leste, que começou a encrespar as águas do Rio.

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Infelizmente, o céu num instante todo se toldou de nuvens negras; as ondas do Rio empinaram-se e sobreveio o tufão, acompanhado de pavorosos trovões. Dentro de três minutos, o dia claro tornara-se noite tão profunda, que só ao clarão dos relâmpagos reconhecíamos as margens; e, embora tivéssemos a fortuna de enrolar de novo as velas apenas armadas, a ventania, acompanhada de chuva, nos tocava Rio acima com a rapidez de uma flecha de modo que em poucos minutos fizemos quase meia légua. Conseguimos, finalmente, pôr a canoa a salvo na margem, e também vimos, com regozijo, chegar a montaria ilesa de estragos, passado o temporal; a não ser uma verga partida, só lamentamos a perda de alguns papagaios, os quais naquela confusão foram atirados do convés ao Rio. (SPIX e MARTIUS)

Georg Heinrich von Langsdorff (1828)

Quatro meses inteiros esperamos aqui pelo Sr. Riedel. Afinal chegou ele, por seu turno magro e combalido pelas moléstias que apanhara no Rio Madeira, onde sofrera tanto como nós. (LANGSDORFF)

Antônio Ladislau Monteiro Baena (1839)

O Rio Madeira tem o seu berço na Latitude Austral de 17°34’ e na Longitude de 310°30’ nas montanhas do Alto Peru que, de Santa Cruz de la Sierra, se encadeiam até à Cidade de La Paz. A posição geográfica da sua barra no Amazonas é o Paralelo Austrino 3°23’ cruzado pelo Meridiano Oriental à Ilha do Ferro 318°52’ e a largura é de 998 braças craveiras (1 braça craveira = 2,2 m, 998 braças craveiras = 2.195,6 m). A direção do seu curso, desde a Foz até à boca do Abuná, é ao Sudoeste; do Abuná até à confluência do Guaporé, ao Sul; daqui torna ao Sudoeste; e da boca do Rio Amantala, ao Sul. O Madeira é um dos Rios mais caudalosos e despenhados (que se precipita de grande altura) da Província; as suas águas são esverdeadas, claras e de bom gosto desde a embocadura até defronte do Lago que existe na margem Ocidental acima do canal do Uautás; do mesmo Lago para cima, aparecem turvas nas partes em que as ribanceiras são de terra lodosa e onde se entornam Lagos mas, nas partes pedregosas ou barreiras, apresenta-se a água menos viciosa. A velocidade da corrente é de 2.961 braças por hora (6,5 km/h).

No mês de abril mostra-se maior a força da enchente do Rio e, no mês de setembro, ele parece deslizar tão plácido e tão tardo que a navegação da descida é quase igual à da subida. Na quadra das chuvas, uma canoa impulsionada por meio de cinco remos vinga em uma hora 1.357 braças (2,7 km). A Foz do Madeira está entre duas pontas de terra baixa, revestida de bosques semelhantes aos do Amazonas e incapaz de dar campo a tetos porque toda se alaga com o Rio cheio e entesta (defronta) com muitas Ilhas do Amazonas. As correntezas do Madeira estão salpicadas de mais três dezenas de Ilhas entre a Foz e a primeira Cachoeira, e algumas coroas de área a que chamam praias, nas quais há ingente abundância de tartarugas no tempo da sua produção, que é na queda da vazante do Rio, na Lua Nova de outubro. Destas praias, as mais frequentadas pelos agarradores daqueles excelentes “crustáceos” (?) são as que têm o nome de Tucunaré, do Mutum e Tamanduá, a qual é maior de todas, e jaz entre o Rio Jamari e a primeira Cachoeira na margem Ocidental do Madeira.

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As suas margens da Foz para dentro até à primeira catadupa (queda dágua) são inundadas todos os anos nos meses de cheia em distância de uma a duas léguas para o centro segundo o inverno é mais ou menos pluvioso; disto resulta ficar o terreno malhado de inumeráveis Lagos, que aparecem na vazante maculando as ribeiras e de modo que sendo raras as paragens em que a terra é empolada nunca chega a haver uma légua de ribanceira alta e por isto estas curtas assomadas que os Lagos circunfundem figuram Ilhas.

Esta índole topográfica muda das vizinhanças da primeira catadupa para cima; então começa-se a ver ribanceira alta, correspondendo com o centro e não consentindo ser alagada; e vê-se bosque altaneiro e frondoso e limpo da balsa ordinária nos terrenos ensopados. É daqui para diante que o Madeira desfere o seu curso por entre serras, que se dilatam por uma e outra banda a vários rumos.

Acima da última Cachoeira, também o Guaporé apresenta pantanais na sua margem, todos provenientes do transbordamento do Rio que chega a mais de duas léguas para o interior, e estende-se consideravelmente ao longo da ribeira, e que desta arte forma um Lago imenso e vistoso pelas ilhotas arvorejadas que o salpicam. Barreiras vermelhas, ribanceiras de pedras, outras de pedra talhada, barreiras pedregosas, ribanceiras espinhadas de penhascos, enseadas de terras alagadas, terras soltas de ribanceiras que estão desabando com árvores enormes, que elas brotam, restingas de pedra, troncos coacervados (amontoados) em suma quantidade; eis tudo o que constitui os passos que se encontram iterados por uma e outra margem do Rio e que junto com o trânsito afanoso (laborioso, trabalhoso) das Cachoeiras faz a navegação prolongada, mui perigosa e trava de muitas dificuldades.

É grande a opulência vegetal das broncas selvas do Madeira. São muitas as árvores de vária e fina espécie assim para construção de embarcações como para se lavrarem os trastes que o luxo tem introduzido para sua pompa falaz (ilusória), mas agradável. Há também, além das matas de castanhal e cacau, uma grande produção de frutas monteses para alimento do homem e uma prodigiosa multidão de caça volátil e quadrúpede, mormente de porcos, a cuja multiplicidade se pode atribuir a destruição dos perniciosos répteis, cujas odiosas famílias nascidas por assim dizer da corrupção que o clima favorece, infectam todos os países da zona tórrida e talvez se multiplicam com mais celeridade na América Equinocial, onde os seus indivíduos adquirem uma grandura (grandeza) desmesurada e grossura monstruosa. O Madeira e todos os Rios que nele difundem o seu cabedal são copiosíssimos de anfíbios e de peixes de bom sabor sobretudo no Distrito das catadupas, onde também a água é mais barrenta que a que está abaixo delas. Os Lagos, que alguns a falar com propriedade se podem apelidar mediterrâneos de água doce e que se comunicam com o Rio pelos Riachos seus oriundos, prestam no inverno um pronto asilo a milhares de peixes de todas as castas e ao homem uma subsistência segura todas as vezes que ali lhes for armar ciladas. Entre esses Lagos mui notável é o chamado Jurupari pirá (Lago que tem “Peixe do Diabo”) no qual o peixe todo que nele vive e se apascenta há dotado de uma tão extraordinária insipidez, que nem assado nem guisado com temperos tem sabor a coisa alguma. (BAENA, 2004)

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Jurupari pirá ou Peixe do Diabo (Satanoperca Jurupari): descrito por Heckel em 1840, esta espécie fazia parte das coleções feitas por Johann Natterer. O específico nome, Jurupari, é uma derivação da palavra “Juruparipindi,” de origem Tupi, que significa “Demônio da Floresta”. Apresenta uma chamativa coloração, com tons em verde esmeralda e cobre. Seus olhos parecem ter em seu interior uma cor laranja que se destaca em locais com pouca iluminação. (Nota do Autor)

Satanoperca daemon: daemon = espírito do mal, demônio, diabo, vulgarmente conhecido como “cará”. Satanoperca daemon também foi descrito por Heckel a partir da coleção de Natterer. Embora os nativos se referissem do mesmo modo a este peixe como o “Juruparipindi,” Heckel observou varias diferenças em sua coloração e descreveu-as como uma segunda espécie. (Nota do Autor)

Há produtos do reino vegetal que, sendo artigos de subsistência e de manufatura, podem fazer um quantioso (valioso) e variado objeto de circulação mercantil ou de câmbio de equivalentes, tanto compensativo como lucrativo. O cacau tem o primado destes produtos, porquanto a mão munífica (pródiga) da natureza ou Vênus física acobertou (cobriu) as margens do Madeira e dos Rios seus feudatários, de cacauzeiras que, em anos alternos, assoalham milhares de arrobas da sua amêndoa de nenhuma sorte inferior à de Guatemala, Veraguas (Panamá) e Caracas, na qual carregam a estima e os gabos dos seus prezadores. Além deste produto natural, há a castanha doce, a salsaparrilha, o óleo de copaíba ainda que em pouca abundância, a estopa da casca estomada do castanheiro, o guaraná em mediana abundância e o anil, cuja fécula colorante emparelha com a do Rio Negro e Guatemala. Até hoje não se tem descoberto a casca Peruviana, puxiri, cravo, minas de algum metal ou salitre; novas pesquisas, que penetrem o âmago da espessura, darão notícia mais positiva, que a este respeito falta.

Pode-se também inserir na classe das apontadas produções as diferentes icthiócollas e as manteigas dos ovos das Tartarugas e Tracajás, cujo fabrico sobre fácil e pouco dispendioso é assaz interessante pelo bom preço que a sua venda sempre há de ter. As plantas educadas pela mão do homem podem ser várias e numerosas porque a terra é apta para produzir os frutos em magna cópia sem pedir ao colono duro lavor. A experiência já tem demonstrado que o terreno produz bem o tabaco, cuja planta cresce e faz-se tão boa como a de Cuba, Virgínia e Províncias meridionais do Império. O mesmo se verifica com a cana de açúcar, com as raízes de todas as qualidades de mandioca, que faz a base da subsistência do País, com os legumes, com todos os grãos, milho, trigo do Industão ou arroz e com o algodão que, em todas as partes do mundo, se chama planta de ouro por excelência. Gêneros estes que todos vegetam com produção superior à centenária nesta plaga Equinocial. Árduas cataratas principiam a abrolhar o Rio na Latitude Austral de 8°50’ e na Longitude de 313°49’30”; elas são em número de 17 mas destas estão 12 surgidas no mesmo Madeira até junto da garganta do Beni e 5 no Guaporé, abaixo da confluência do Mamoré. A primeira de todas, para quem remonta o Rio, dista da Vila de Borba 160 léguas, e a última 230, e os nomes delas, consideradas na mesma ordem da subida, são Aroaya, Gamon, Natal, Guaraassu, Cuati, Arapacoá, Paricá, Maiari, Tamanduá, Mamorini, Uainumu, Tapioca, Tejuca, Javalis, Papagaios, Cordas, Panela.

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Mas hoje, no Mapa deste Rio, formado segundo as observações astronômicas feitas em consequência da demarcação de limites até ao ano de 1790, as ditas cataratas tem os nomes seguintes: Santo Antônio, Salto do Theotonio (Teotônio), Morrinhos, Caldeirão do Inferno, Girau (Jirau), Três Irmãos, Paredão, Pederneira, Araras, Ribeirão, Misericórdia, Madira, Lajes, Pau Grande, Bananeira, Guajara-assú (Guajará-açu), Guajará-miri (Guajará-mirim). Todas as referidas catadupas abraçam 70 léguas de extensão, as quais, subtraídas de 494, que vão da Foz do Madeira pelo Guaporé à Cidade de Mato Grosso, restam 424 desempachadas (livres) de horríveis empeços (impedimentos).

As serras de que principiam estas catadupas são vistas para a parte Ocidental pelo navegante estando ao pé de uma Ilha fronteira às altas barreiras vermelhas jacentes (que estão situadas) acima do Rio Machado. Um minuto de recreio e medo promove, no espírito do viajante, o aspecto da maior parte destas catadupas; é assunto de medonha contemplação a magna valentia com que a água, despenhando-se de alterosos penhascos, ribomba e cobre de alva espuma alcantis (rochas altas e escarpadas) e fráguas, jorra claras espadanas das quebradas dos rochedos, circunflui furiosamente os aspérrimos penedos dos canais, os grandes e desordenados grupos de rochas e os morros de pedra em forma de ilhetas, uns escalvados e outros arvorejados, e retrocede formando túrgidas (dilatadas) ondas, terríveis correntezas, rilheiros (redemoínhos) e voragens (sumidouros). Conduzidos pelas correntezas, idosos cedros colossais e outras árvores gigantes que, abaladas por temporais bravos, não puderam zombar da pujança de ventanias clamorosas, conservando-se como troféus da natureza e ornamento da terra, caem nas ditas voragens, somem-se no fundo, ressurgem muitas vezes pinchadas para o ar, rodopiam com rapidez incrível e rompem uma tão possante represa volvido seu tempo. O nome do Madeira era Cayari quando, em 1637, o Capitão Pedro Teixeira subiu o Amazonas para Quito; os portugueses deram-lhe depois o nome que tem por verem que lhes arremessava muitas e corpulentas árvores. A primeira expedição que consta se fizesse a explorar este Rio, foi a de Francisco de Mello Palheta mandado, em 1723, pelo General Governador do Pará João da Maia da Gama por haver tido notícia de alguns contratadores de gentios do Madeira que, acima das suas Cachoeiras, haviam habitações de gente europeia sem se saber ao certo se de portugueses ou espanhóis. O dito explorador, acompanhado de uma tropa, navegando a parte superior das Cachoeiras, encontrou perto da Foz do Mamoré uma canoa de índios castelhanos, governada por um mestiço; este o guiou à Aldeia da Exaltação de Santa Cruz dos Cujubabas sita (situada) na margem Ocidental do Mamoré, entre os Rios Iruiname e Manique, na qual falou com os Missionários e regressou ao Pará onde, dando notícia do que achou, nada disse do Beni, que havia de encontrar entre as Cachoeiras, nem do Guaporé que, tanto na entrada como na saída do Mamoré, não podia deixar de ver. Antes do mencionado Mello Palheta, já, em 1716, havia entrado no Madeira o Capitão-mor do Pará, João de Barros da Guerra, mas ele não foi ali a explorar, foi a castigar como castigou e extinguiu, de ordem de Christovão da Costa Freire, Governador e Capitão-general do Estado do Maranhão e Grão Pará, os silvícolas Turazes pela sua atrevida previcácia de saírem no Amazonas a roubar e matar a gente das canoas, que iam do Pará ao Solimões, a colher cacau e não passou da ribanceira vermelha acima do Lago Manicoré, em que assentou o seu Arraial, ribanceira apartada 70 léguas da embocadura do Madeira.

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Em 1742, desceu este mesmo Rio para a Cidade do Pará Joaquim Ferreira Chaves, morador do Cuiabá, com dois outros da mesma terra, tendo se apartado dos que com ele tinham ido comprar gado e cavalos aos Padres castelhanos da Aldeia de Santa Cruz dos Cujubabas, no Mamoré. O General Governador do Pará, João de Abreu Castello Branco, os mandou prender e remeter dois para o Ministério por transgressores da lei, que lhes vedava a entrada nas colônias estrangeiras e assentar praça de Soldado ao dito Ferreira Chaves, o qual desertou para o Maranhão, buscou Goiás e passou ao Cuiabá e depois a Mato Grosso, cujos habitadores por este homem tiveram a primeira notícia de que pelo Madeira podia haver comércio com o Pará.

A segunda exploração que se operou no Rio Madeira foi no ano de 1749, por ordem do Monarca, José Gonçalves da Fonseca, encarregado dela, isto é, de tomar as alturas e observar os de sorte que o não soubessem os castelhanos, saiu do Pará a 14 de julho do referido ano e chegou no dia 16 de abril de 1750 ao Arraial de São Francisco Xavier de Mato Grosso. Ele foi acompanhado do Padre Frei João de São Thiago, religioso capucho (Frade da Ordem dos Franciscanos) da Província da Conceição da Beira, dos Missionários de Mato Grosso, José Leme do Prado, Paulo Leme e Francisco Xavier, de João Leme, irmão daqueles, do cirurgião Francisco Rodrigues da Costa, de Tristão da Cunha Gago e de uma escolta debaixo do mando de um Sargento-Mor, de cujo nome o fiaria das indagações não fez menção, e da qual escolta era ajudante e incumbido dos mantimentos dos Soldados e dos índios, Aniceto Francisco de Távora.

O dito observador, na conta que deu aos Ministros de El Rei da sua diligência, foi de opinião que o Madeira continuava do Beni para cima no seu rumo com as suas Ilhas e Cachoeiras na mesma direção que levava até defronte da boca do mesmo Beni; e fundou esta opinião em trazer o Madeira mais água naquela parte em que aceita o Beni. Esta informação deu lugar a que os Tratados de 1750 e 1777 supusessem que a undosa (que apresenta ondulações) união do Mamoré e do Guaporé é que formava o Madeira. Porém os astrônomos e geógrafos que trataram da demarcação de limites desde 1781 a 1790, fazendo a este respeito as observações e achando a largura da Foz do Beni maior que a da confluência do Guaporé com o mesmo Beni, assentaram que as vertentes do Madeira eram as deste e que portanto ele fazia a continuação do Madeira. (BAENA, 2004)

James Cooley Fletcher e Daniel P. Kidder (1845)

Nas quedas do Rio Madeira, o viajante estaca e contempla com admiração a vasta multidão de seres de toda espécie e tamanho, desde o gigantesco peixe-boi, até a pequena sardinha, lutando com energia e decisão para subir a corrente espumante, sem a menor esperança de sucesso. Alguns desses monstros tomam banho em bandos, com representantes de espécies pequenas congêneres, quando subitamente aparece um cardume de todas as variedades e tamanhos de peixes, saltando no ar, e tentando evitar os seus perigosos perseguidores. Quem deseja pescar, basta apenas tomar do remo, e bater com ele para a direita e para a esquerda, pois certamente atingirá algum; não há meio de enganar-se. Aqui se encontram sempre muitos índios pescando, salgando e secando peixe.

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O peixe-boi é excelente para alimentação; pode logo ser levado à mesa, partido em postas, ou inteiro, como a melhor vitualha; realmente, podia substituir qualquer outro alimento, e é igual à melhor das carnes secas, pelo custo, segundo a opinião de muitos. O Rio Madeira é também um belo Rio; é navegável por toda espécie de vapores fluviais, até às Cachoeiras, mas em tempo algum pode um vapor subir os seus rápidos. Contudo, acima de 12 desses rápidos, há água suficiente para várias centenas de milhas, que podem ser navegadas por um pequeno vapor durante o ano todo. (FLETCHER e KIDDER)

J. C. R. Milliet de Saint-Adolphe (1845)

Madeira ou Cayari: Rio da América Meridional e o de mais cabedal, entre quantos são tributários do Amazonas. Nasce das vizinhanças de Santa-Cruz-da-Sierra, corre por espaço de coisa de quinhentas léguas com diversos nomes, divide os Estados - do Peru, do Império do Brasil, e atravessa as Províncias de Mato Grosso e do Pará, do Sul ao Nordeste , até 3°43’ de Latitude Meridional, e neste ponto se ajunta com o Amazonas pela margem direita, por uma Boca que tem 464 braças de largura. Os índios apelidavam a este Rio Cayari, nome que conservou até o ano de 1725, no decurso do qual Francisco de Mello Palheta explorou grande parte dele, e lhe pôs o nome que hoje tem por causa dos grandes troncos de árvores que flutuavam em suas águas, e embaraçavam a passagem. Passados doze anos, subirão os Jesuítas por este Rio, com intento de doutrinar na religião os selvagens que viviam em ambas as margens dele e partiram em uma Aldeia, a pequena distância da Cachoeira a que puseram o nome de Santo Antônio, a qual jaz em 8°48’ Latitude. Manoel de Lima foi o primeiro que, em 1742, com cinco índios, três pardos e um negro, desceu pelo Guaporé, Madeira e Rio das Amazonas até a cidade de Belém, onde chegou sem saber que lá iria ter; porém, enquanto descia pelos sobreditos Rios, um mercador do Pará, chamado Joaquim Ferreira, tinha ido ter à missão espanhola da Exaltação, subindo pelo Madeira e pelo Mamoré.

Em 1747, João de Souza d’Azevedo abalançou-se com alguns dos seus, a abrir uma nova estrada descendo pelo Arinos, Tapajós e Amazonas, e indo desembarcar em Belém, onde aportou por mero acaso, costeando sempre a margem que lhe ficava à direita, e voltou daí para a Província de Mato Grosso, com várias canoas carregadas de fazendas; mas no regresso preferiu subir pelo Rio Madeira, seguindo o itinerário dos que haviam subido por ele alguns anos atrás. Quase neste mesmo tempo, Miguel da Silva e Gaspar Barboza de Lima se embarcarão em São-Luiz-do-Maranhão, levando muitas fazendas e subiram igualmente pelo Amazonas, Madeira e Guaporé, e as venderam com grande lucro em Vila-Bela, atualmente cidade de Mato Grosso.

Desde então começou o Rio Guaporé a ser mais frequentado que o Arinos e o Tapajós, bem que a viagem fosse mais comprida, de 150 léguas pelo menos, e atalhada por um maior número de Cachoeiras. Os geógrafos até o presente discordam sobre a nascença do Madeira mais remota de seu confluente ou embocadura. Uns lhe assinam o Rio Beni, que nasce na serra de Santa Cruz no Peru, e se ajunta dizem, com o Mamoré, ao passo que outros sustentam que o Beni se ajunta com o Rio Apurimac, em 11° de Latitude, toma o nome de Ucayáli e vai-se unir com o Tanguragua, os quais juntos dão princípio ao Rio chamado das Amazonas.

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Parece-nos, porém verossímil que o mais remoto nascente do Madeira é o Rio da Paz, que nasce perto da Vila do mesmo nome, corre para Essueste entre 17° e 19° de Latitude, e dali faz uma volta para o Oeste e, caminhando depois rumo de Nordeste, se vai ajuntar com o Mamoré, que vem do Potosi. Sendo este Rio muito mais caudaloso que o da Paz, conserva o seu nome, e inclinando-se para Leste obra de 60 léguas, se une ao Guaporé, em 10°22’ de Latitude Sul e suas águas juntas tomam o nome de Rio da Madeira.

Abaixo desta confluência, existe uma ilhota de rocha onde se poderia fazer um Forte para defender o trânsito destes dois Rios a todos quantos quisessem atravessá-los hostilmente. A começar desta ilhota, encontram-se em diferentes distâncias, no decurso de 70 léguas, doze arrecifes que tornam a navegação sobre difícil arriscada, e às vezes impossível; são estes arrecifes ou Cachoeiras os seguintes nesta ordem: 1°, Madeira; 2°, Misericórdia; 3°, Ribeirão; 4°, Figueira ou Araras; 5°, Pederneira; 6°, Paredão; 7°, Três Irmãos; 8°, Girao; 9°, Caldeirão do Inferno; 10°, Morrinhos; 11°, Salto de Teotônio; 12°, Santo Antônio.

Esta porção do Madeira é navegada por canoas de 6 para 7 braças e meia de largura, que levam mais de 2.000 arrobas de carga; mas, em se chegando aos diversos saltos, é mister transportarem-nas por terra bem que algumas se aventuram a ir por diante com manifesto risco das vidas e das fazendas. Uma língua de terra que se adianta da margem direita deste Rio para o Oeste de 9°45’ de Latitude Sul, até 68°30’ de Longitude Oeste, é considerada como o ponto mais Ocidental da Província de Mato Grosso.

As canoas que descem pelo Guaporé e pelo Madeira levam ordinariamente 20 dias a ir da cidade de Mato Grosso até o confluente do Mamoré, e deste confluente onde o Madeira toma o seu nome até o Amazonas, 16; e 10 do confluente do Madeira até a cidade de Belém, sendo o total de 46 dias; mas para subir pelos mesmos Rios levam, conforme a estação, três, quatro, e às vezes cinco meses. Ambas as margens do Rio da Madeira são povoadas de cacauzeiros e de árvores de cravo, e outras de sumo preço, e abundam em salsaparrilha, baunilha, e várias plantas medicinais que ali se dão espontaneamente.

Um sem número de tribos índias, nômades ou não, ali vive de frutas e da carne e ovos das tartarugas que pululam de toda parte. Os índios sujeitos aos Estados do Peru, e apelidados Mochos, fabricam chocolate sem açúcar que se conserva por muitos anos. Segundo a diversa temperatura dos diversos países regados pelo Madeira, podem se cultivar em suas margens quase todos os vegetais dos trópicos, e muitos dos da Europa. A estes dons da natureza ajunta este Rio a vantagem de se achar numa posição que o destina a dar uma espécie de vida a países desconhecidos que, com o correr do tempo, se converterão em ricos Estados. Quão extenso seria, com efeito, o comércio das Províncias interiores do Brasil, se se abrisse um canal entre os Rios Arinos e Porrudos, e entre o primeiro destes Rios e o Madeira, passadas as Cachoeiras! Por este meio, juntar-se-ia com o Amazonas o Rio da Prata, e se navegaria com toda a facilidade pelos sertões do Pará e de Mato Grosso e pelo Paraguai defronte da parte que respeita ao Poente da Província de São Pedro do Rio Grande até o Rio da Prata nas raias dos Estados do Chile, do Paraguai, de Entre Rios e de Buenos Aires.

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Na falta deste projeto, que talvez se taxasse de nimiamente (demasiadamente) grandioso atento à escassez da população nas margens dos Rios de que acabamos de falar, poderia o Governo do Brasil concertar-se com os das Repúblicas do Peru, para, senão destruir de todo, arrasar pelo menos os arrecifes que pertencem aos respectivos Estados, e em breve ver-se-ia simples lugarejos transformarem-se em povoações consideráveis, surgirem nas margens destes Rios, Vilas opulentas, e porem-se em cultivo campos imensos; ver-se-iam povoadas solidões profundas e bosques seculares, onde ninguém atualmente ousa penetrar. (SAINT-ADOLPHE)

Paul Marcoy (1846)

Defronte a São José do Amatari, na margem direita do Rio (Amazonas), abria-se a embocadura do Rio Madeira, que La Condamine avaliou em 2900 varas castelhanas, ou 7.700 pés (2.346,96 m) de largura. Apesar da minha inclinação a questionar a autoridade do célebre acadêmico reduzindo-lhe ligeiramente as avaliações, fui obrigado a seguir adiante desse ponto porque a Ilha de Mantegueira (Trindade) me impediu de repente a visão do Madeira com seu cinturão de palmeira Miriti. O Madeira é um daqueles Rios de água brancas onde as tartarugas, desde que abandonaram as Praias Reais, vêm depositar os seus ovos. Essa circunstância, conhecida pelos pescadores e fazedores de óleo das vizinhanças, faz com que eles venham todos os anos para o Madeira junto com os quelônios e, durante quinze dias, entre 30 de agosto e 15 de setembro, suas barracas e mosquiteiros cobrem as duas margens dos Rios.

Formado no interior pela junção dos Rios Beni, Mamoré e Guaporé, eles mesmos engrossados por numerosos afluentes, o Madeira, no seu curso através das planícies da América do Sul, carrega como o Ucayáli troncos de árvores caídas nas florestas de Sorata, Pelechuco e Apolobamba e transportadas pelo Beni. É a essas árvores flutuantes que o Rio da Madeira deve o seu nome, que lhe foi dado por Pedro Teixeira e seus companheiros na sua viagem para Quito. O nome substitui, definitivamente, o de Cayari, que levava antigamente.

Naquela época, a embocadura do Madeira e o canal pelo qual ele se comunica com o Amazonas eram habitados por remanescentes da grande nação Tupi ou Tupinambás que os portugueses, ao chegarem ao Pará, haviam encontrado estabelecida na margem direita do baixo Amazonas. (...)

Canal (furo dos Abacaxis ou dos Tupinambás): situado na margem direita do Madeira, a dez léguas da sua embocadura, chama-se Urariá, no trecho superior e, Tupinambarana no inferior; sua extensão é de 32 léguas e sua largura varia de 150 a 300 metros. (Nota do Autor)

Em 1716, um certo Capitão João de Barros Guerra subiu o Rio pela primeira vez até a junção do Jamari, um de seus afluentes. Essa viagem, empreendida exclusivamente para reprimir hostilidade dos índios Toras contra as já citadas missões de Abacaxis e Maués, foi fatal ao aventureiro, morto pela queda de uma árvore. Mas ele havia conseguido exterminar metade dos Torás e pôr em fuga a outra metade; a consciência de que com isso havia realmente servido o seu Deus, o seu Rei e ao seu país deve ter aliviado a amargura da sua última hora.

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Em 1725, uma segunda exploração do Madeira foi empreendida pelo Sargento-mor Francisco de Melo Palheta, que subiu até a boca do Rio Cayuyabas, um afluente do Beni, observou a direção do seu curso, determinou a posição das suas doze Cachoeiras ou corredeiras e deu a cada uma delas nomes portugueses, embora um tanto estranhos (Morrinhos, Paredinha, Misericórdia, Bananeira, Estaca Grande...), o que de resto era seu pleno direito.

Ao Sargento-mor sucedeu, três anos depois (1728), um Jesuíta chamado José de Sampaio, ele explorou o interior, onde reuniu alguns Torás sobreviventes do massacre de 1716 e, continuando sua viagem pelo Mamoré, chegou às possessões espanholas. Uma vez conhecido, o curso do Madeira tornou-se a rota principal, seguida de preferências ao Tapajós pelos comerciantes, mineiros e aventureiros que a descoberta e a fama da minas do Mato Grosso e Cuiabá atraíam para essas Províncias.

Em 1756, os portugueses fundaram nesse Rio a Vila de Borba. Destruída três vezes pelos Muras e três vezes reconstruída em novo sítio pelos portugueses decididos a não ceder, a Vila renasceu das cinzas pela quarta vez a vinte léguas da Foz do Madeira, onde está até hoje.

Novo Sítio: a primeira vez foi erguida no interior do Rio Jupari; a segunda na Boca do Rio Jiparaná; a terceira, no Canal Praxiaon; a quarta e última no sítio do antigo povoado de Trocano, fundado pelos Jesuítas. (Nota do Autor)

Auguste de Saint-Hilaire (1847)

Luiz Antônio da Silva e Sousa diz, falando do Lago do Padre Aranda, situado na Província de Goiás, que é habitado por minhocões, e acrescenta que esses monstros, é assim que se exprime, já têm arrastado para o fundo d’água, onde vivem ordinariamente, cavalos e bois; Pizarro repete mais ou menos a mesma coisa, e indica a Lagoa Feia, que pertence também a Goiás, como servindo igualmente de habitação aos minhocões.

Ouvira já falar, por várias vezes, desses animais e considerava-os ainda como fabulosos quando tais desaparições de cavalos, burros e bois nas travessias de Rios me foram confirmadas por tanta gente, que me pareceu impossível pô-las em dúvida. Quando estive no Rio dos Pilões, falaram-me também muito dos minhocões; disseram-me que existiam muito nesse Rio e que, na época das grandes chuvas, tinham frequentemente levado cavalos e burros, enquanto estes atravessavam o Rio a nado. A palavra minhocão é um aumentativo de minhoca, que significa em português, verme da terra e, efetivamente, pretende-se que o monstro de que se trata parece-se em absoluto com esses vermes, com a única diferença que tem boca visível; acrescenta-se que é negro, curto, de grande grossura; que não vem à superfície da água, mas faz desaparecer os animais enlaçando-os por baixo do ventre. Quando, cerca de vinte dias após deixar o Rio e a Povoação de Pilões, hospedei-me, como veremos, em casa do Comandante de Meiaponte, o Sr. Joaquim Alves de Oliveira, um dos homens mais respeitáveis que já encontrei, interroguei-o a respeito dos minhocões; confirmou-me o que me disseram; citou-me vários exemplos recentes de desgraças causadas por esses monstros, e assegurou-me, também, de acordo com o que disseram vários pescadores, que o minhocão, apesar da sua forma muito roliça, era um verdadeiro peixe provido de nadadeiras.

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Pensei a princípio que o minhocão fosse o Gymnotes Carapa que, segundo Pohl, se encontra no Rio Vermelho; parece, porém, pela descrição desse autor, que o citado peixe tem na região o nome de terma-termi e, aliás, os efeitos produzidos pelos Gymntes ou enguias elétricas (poraquês), bem conhecidos, não têm nada de comum com o que se conta do minhocão. O professor Gervais, a quem comuniquei minhas dúvidas, chamou-me a atenção para a descrição que P. L. Bischoff fez da Lepidosiren; e, na realidade, o pouco que sabemos do minhocão coincide bem com o que se relata do animal raro e curioso descoberto pelo sr. Natterer. Este naturalista encontrou o seu Lepidosiren nas águas estagnadas próximas do Rio Madeira e do Amazonas; assinala-se o minhocão não só em Rios como também em Lagos. (SAINT-HILAIRE)

Henry Walter Bates (1849)

No dia 31 (dezembro) deixamos para trás a última Ilha e avistamos, para ambos os lados do Sul, uma imensa extensão de águas; era ali que o Madeira, o maior afluente do Amazonas se junta ao grande Rio, após um curso de 3.000km de extensão. Eu não me achava preparado para encontrar um volume de água tão vasto como aquele a quase 1.400 km do Mar. Depois de viajar semana após semana por monótonos cursos d’água, quase sempre margeados por Ilhas, a ponto de me acostumar a esse tipo de paisagem, minha noção da magnitude do vasto sistema fluvial amazônico tinha ficado um pouco esquecida; mas aquela majestosa visão fez renascer o meu primitivo assombro. Sentimo-nos inclinados, em lugares como esse, a achar que os paraenses não exageram quando dizem que o Amazonas é o Mediterrâneo da América do Sul. Abaixo da Foz do Madeira, o Amazonas continua a fluir majestosamente, sem dar nem de leve a impressão de se ter tornado mais largo e mais volumoso depois de receber o Madeira. As águas deste Rio não sobem nem baixam na mesma época que as do Amazonas e sim dois meses antes, razão por que ele se mostrava muito mais cheio, nessa ocasião, do que este último e, em consequência, se despejava turbulentamente de sua Foz, trazendo de roldão um punhado de árvores arrancadas das terras baixas e soltas de suas margens. Suas águas, entretanto, não se juntavam à corrente principal, no centro, e sim fluíam ao longo da margem Meridional.

Creio que seria proveitoso dar agora alguns dados sobre esse Rio. O Madeira é navegável numa extensão de 700 km (1.050 km) a partir de sua Foz; uma série de cataratas e corredeiras surge então estendendo-se por 240 km e intercaladas de trechos de águas tranquilas, depois das quais ele se torna navegável de novo. Frequentemente descem embarcações de Vila Bela, no interior da Província do Mato Grosso, mas o seu número não é tão grande como em outros tempos, e pelo que fiquei sabendo, poucas foram as pessoas que se aventuraram a subir o Rio até aquele ponto, nos últimos anos. O Madeira foi explorado pelos portugueses nas primeiras décadas do século XVIII, tendo sido, em 1756, fundada Borba, a principal Cidade em suas margens, e atualmente a única. Até o ano de 1853, a parte baixa do Rio, numa extensão de cerca de 150 km depois de Borba, era visitada regularmente por mercadores de Vila Nova, Serpa e Barra, os quais iam buscar ali salsaparrilha, bálsamo de copaíba e óleo de tartaruga, e comerciar com os índios, com os quais geralmente mantinham relações cordiais.

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Naquele ano, muitos coletores de borracha se voltaram para essa região, animados pelo alto preço que o produto estava alcançando no Pará; foi então que os Araras, uma tribo de índios hostis, começaram a criar problemas, atacando diversas embarcações e trucidando todos a bordo, não só os mercadores brancos quanto os tripulantes indígenas. Seu sistema de ataque consistia em se postarem de tocaia perto das praias onde geralmente os barcos ficavam atracados durante a noite e, quando todos estavam dormindo, caíam de surpresa sobre eles. Às vezes fingiam querer fazer negócio mas, tão logo tinham o mercador a seu alcance, atiravam nele por detrás das árvores, matando em seguida a tripulação.

Suas armas eram porretes e flechas de taquara, sendo esta última uma arma terrível, em cuja extremidade era fixada uma lasca de bambu aguçada como a ponta de uma lança. Tamanha era a força com que eles a lançavam que a flecha trespassava facilmente o Corpo de um homem. Os homens brancos de Borba começaram a fazer represálias, persuadindo os Mundurucus, que tinham uma rixa antiga com os Araras, a alvejá-los. Esse estado de coisas durou dois ou três anos, fazendo com que uma viagem pelo Madeira acima constituísse uma arriscada aventura, já que os selvagens atacavam qualquer embarcação, indiscriminadamente. (BATES)

Alfred Russel Wallace (1851)

Pelos trabalhos realizados por brasileiros da Província do Pará, estabeleceu-se, para velocidade média da correnteza do Rio Madeira, 2.970 braças, ou cerca de três e meia milhas por hora (6,5 km/h), na estação das águas. (...) O P. viridis encontra-se nas florestas do Pará, em Vila Nova, na margem meridional do Amazonas, e pelo Rio Madeira acima, onde é avistado em Borba, na sua margem oriental. (WALLACE)

P. viridis (Psychotria viridis): conhecida como “chacrona rainha”, é usada por praticantes do Santo Daime, Barquinha e União do Vegetal, na preparação de uma bebida chamada ayahuasca. O alucinógeno é preparado a partir do cipó caapi (Banisteriopsis caapi) e das folhas da chacrona. (Nota do Autor)

Robert Avé-Lallemant (1859)

De todos os Rios que deságuam no Amazonas, é o Madeira o mais importante; o Rio Negro mesmo lhe é inferior em extensão. Seus afluentes mais importantes vêm da Cordilheira, de cerca de 20° de Latitude Sul, a escassos dois graus de Longitude, em linha reta do Pacífico. Os cursos Sudoeste e Oeste recebem águas do Rio Cochabamba, descrevem formidável arco em volta do ressalto Oeste da Cordilheira, as Serras Altíssimas, e correm, sob o nome de Rio Mamoré, para o Noroeste, Norte e depois para o Nordeste, até quase ao 10° de Latitude Sul, onde o Rio alcança o território brasileiro. Aí se junta sob o 12° de Latitude Sul aos Rios reunidos Ubaí, que nasce no 20° de Latitude Sul e, correndo paralelamente com o Mamoré, atravessa a vasta região dos índios Chiquitos, - e o Guaporé, que nasce no longínquo Oeste da Província brasileira de Mato Grosso, e corre, muito sinuoso, para o Noroeste e Oeste, até alcançar o Ubaí. Depois do encontro desses dois Rios com o Mamoré, sob os 10° de Latitude Sul, o Rio assim formado passa a chamar-se Rio Madeira, que depois de muito serpear (andar dando voltas como a serpente) na direção do Noroeste e do Norte, alcança o Amazonas, cerca de 3° de Latitude Sul.

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Chama-se Rio Madeira, graças às imensas florestas de boas madeiras, através das quais flui, como fonte de inesgotável riqueza. Infelizmente, porém, o Rio parece querer opor-se agora e por muito tempo mesmo, a um comércio regular com o interior das regiões circunvizinhas. Uma navegação livre só é possível até a localidade de Crato, cerca de 6° de Latitude Sul; o vapor “Guajará”, em janeiro de 1859, fez uma viagem de exploração no Rio Madeira, tendo podido chegar até a Cidade sem encontrar tropeços. Daí para cima, o Rio se encachoeira, desce por degraus ao sair de suas florestas; e as canoas, que querem viajar, têm que contornar os saltos, sendo transportadas com grande trabalho por terra, até que, no Mamoré, no Ubaí e no Guaporé lhes seja em parte possível a navegação fluvial que, por meio de curiosas ligações por água, leva até ao Ucaiali.

A impetuosidade do Rio refletia-se nos seus habitantes. Mais do que todos os outros índios, algumas tribos do Madeira têm resistido a todas as tentativas de civilização. Os Araras, que habitam nas margens do Madeira, ainda hoje são canibais, que apanham outros homens para comer. Os Botocudos no Mucuri comiam os cadáveres dos inimigos, por acharem que fazia pena, uma vez que estavam mortos, desperdiçar tanta carne boa para comer. Os Araras, porém, matam para comer. Os seringueiros do Madeira sofreram muito com eles. Perseguem sobretudo os Muras, menos selvagens, uma tribo muito espalhada. Estes últimos já não são tão refratários e adaptam-se a uma espécie de civilização. Por acaso, um dos passageiros embarcados em Serpa, era diretor dos Otas e dos Muras no Baixo Madeira. Calculava em mais de 1.000 almas o número de índios da sua Aldeia, gente que, embora bastante moderada, muitas vezes se insubordinava. O Senhor José Lopes da Gama - creio que este era o seu nome - contou-me muitas coisas singulares dos seus índios. Nós mesmos podíamos, olhando de bordo, apreciar muita coisa interessante nas margens do Rio, cada vez mais altas, onde começava a vida tranquila dos Muras. Diante duma cabana muito pequena, contamos 19 pessoas, três cachorros e algumas galinhas e porcos. Todos, porém, encontram lugar no rancho apertado e mesquinho. (LALLEMANT)

Eduardo José de Moraes (1869)

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ADITAMENTO

Só ultimamente, quando tratávamos de coordenar os documentos para a publicação do presente trabalho, é que tivemos ocasião de ler o relatório do Ministério da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, apresentado às câmaras no ano de 1865. Nessa época nos achávamos fora do Império.

Tratando do Rio Madeira, dizia o distinto cavalheiro que dirigia aquela repartição:

Madeira - Em junho do ano passado, o Presidente do Amazonas incumbiu o engenheiro João Martins da Silva Coutinho de explorar este importante continente da margem meridional do Amazonas.

O Madeira marca os limites Ocidentais do Império com as Repúblicas do Peru e da Bolívia, e tem um desenvolvimento superior a 480 léguas, seguindo o curso do Guaporé, que nos pertence.

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Durante quase a última metade do século passado, foi o único caminho, que nos era franco para a antiga capital de Mato Grosso, à exceção da via terrestre de Goiás, de mais de 400 léguas. Não se trata de um Rio desconhecido; o Madeira já foi muito navegado e até explorado por hábeis engenheiros, que dele levantaram plantas as mais circunstanciadas: haja visto as explorações do Dr. Lacerda, Almeida Serra e outros.

É, pois, o curso e regime de suas águas, suas condições de navegabilidade, a riqueza natural dos terrenos por ele banhados, quanto lhe diz respeito enfim tem sido objeto de estudos e trabalhos numerosos, que correm impressos. Interessa ao país que a sua navegação seja de novo estabelecida porque, não só nos leva ao Mato Grosso, como aos Estados limítrofes pelo Beni (seu curso superior), Mamoré e outros tributários.

Tem o Rio Madeira 186 léguas de navegação franca, da sua Foz ate a 1ª Cachoeira, 60 a 70 léguas de dificuldades, que se poderão aplainar por meio de uma estrada.

Transpostas as Cachoeiras, prossegue franca a sua navegação por mais 40 léguas até a confluência do Guaporé e Mamoré, e daí em diante, pelas águas daquele tributado, mais 200 léguas para o interior de Mato Grosso; sendo muito para notar que, das águas do Guaporé, se pode passar facilmente para as do Paraguai, por um varadouro de 5.322 braças, que tal é a distância que separa o Rio Alegre do Aguapehy.

Foram outrora povoadas as margens do Madeira; hoje de Borba ao Forte do Príncipe, não há um só povoado; tribos de índios vagueiam por essas solidões entregues ao mais deplorável abandono.

O Madeira contém em si um futuro de inesgotáveis riquezas, e chama vossa atenção especialmente pelo desenvolvimento de nossas comunicações internas e com os povos vizinhos.

Na mesma ocasião em que S. Exª assim se expressava, dirigindo-se ao parlamento, dizia o Presidente do Amazonas, passando a administração da Província a seu sucessor:

A estrada do Madeira parece destinada a exercer uma grande influência sobre a Bolívia, quando lhe for franqueada a navegação deste Rio e a do Amazonas. Então, as vantagens que ela promete se hão de estender à mor parte do território vizinho, visto como as comunicações entre Cobija e os principais centros de produção da República são lentas e dificílimas, conforme já demonstrei em outro lugar.

Fazem-se por ásperos caminhos e através de um extenso deserto, que só os camelos podem vencer. Da Europa ao Pará, a viagem é incomparavelmente mais curta, a navegação muito menos travada de perigos, e portanto os fretes muito menores do que para Cobija.

Em Chuquisaca, quase 4/5 do preço por que chegam as mercadorias representam o frete!Pôde-se por ai avaliar o custo fabulosíssimo delas nos ricos departamentos que nos ficam vizinhos, e mais distantes da costa do Pacífico. Tudo isso, impossível é desconhecê-lo, contribui poderosamente para que o Madeira e o Amazonas sejam o caminho por onde se realizará no futuro o melhor comércio da Bolívia.

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Quando a população desenvolver-se no vale do Beni, será de grande conveniência proporcionar-lhe a saída pelo Purus, que é o caminho natural desta outra região. Aproveitando alguns afluentes de um e outro Rio, se economizará uma grande distância por terra, reduzindo-se a travessia talvez a 12 léguas. Não vos é desconhecida a importância das antigas relações entre Mato Grosso e o Amazonas por via do Madeira. Muitos dos seus Governadores e principais magistrados penetraram na Província vizinha, seguindo as águas do nosso Rio. O comércio também por aqui se encaminhava então.

Os canhões, que ainda hoje guarnecem o Forte do Príncipe da Beira, e todo o mais trem bélico de que necessitava a fronteira, foram conduzidos pelo Madeira e Guaporé. No intuito de facilitar e proteger a navegação, fundaram-se, além de outras acima daquele Forte, as povoações de Trocano, na Foz do Hyamary, de Theotonio e Ribeirão, nas Cachoeiras.

A cidade de Mato Grosso, antiga Vila-Bela, chegou a conter 12.000 habitantes. Em suas vizinhanças prosperava a criação e a agricultura. Hoje tudo isso desapareceu com a transferência da capital para Cuiabá.

A população indígena, que auxiliava eficazmente a navegação, reduziu-se consideravelmente, depois que, extintas as missões, surgiram os regatões e os diretores.

Das povoações de que acima falei nem vestígios restam. Daí resultou, como era natural, o enfraquecimento das relações pelo Madeira.

Mas o que acabou de matar a sua navegação foi, de certo, o abandono que disso fez a administração, segura como estava de fronteira por este lado.

Entretanto, é o Madeira a melhor via de comunicação para Mato-Grosso.

A exceção das 60 léguas interceptadas pelas Cachoeiras, o Rio pode ser livremente navegado na parte superior, durante talvez 9 meses do ano; e na inferior, segundo informa o engenheiro Coutinho, e o prova a viagem do Inca no mês de agosto do ano passado, para que o seja por navios de maior calado, mesmo na quadra da máxima vazante, bastará desobstruir o canal nos dois pontos indicados precedentemente.

A despesa que exige este melhoramento poderá importar, quando muito, em 200:000$, segundo a opinião daquele distinto professional.

As Cachoeiras, como sabeis e tenho ponderado, podem ser evitadas por meio de uma estrada, cuja extensão será pouco mais ou menos 45 léguas, visto dever seguir diretamente pela margem direita desde a primeira até á última Cachoeira, cortando a volta que o Rio descreve para o Poente.

Nem o Tapajós, nem o Tocantins oferecem iguais facilidades: o primeiro, porque contém em seu leito embaraços insuperáveis; o segundo, porque, além de quase idênticos obstáculos, deixa sempre entre o seu último ponto navegável e a cidade de Cuiabá uma distância de cerca de 90 léguas, isto é, quase o dobro da extensão que deve ter a estrada de que me ocupo.

A falta de Índios para a navegação há de supri-la o vapor; os gêneros alimentícios, no-los cederá a Bolívia, tão interessada como o Brasil, ou ainda mais do que o Brasil, no aperfeiçoamento dos transportes pelo Madeira.

O Governo imperial tomará certamente a iniciativa deste grande melhoramento, favorecendo os interesses das duas Províncias do Amazonas e Mato Grosso, e as do Império em geral, bem como as justas aspirações da Bolívia. (MORAES)

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François Auguste Biard (1945)

Parte da tartaruga foi cozinhada no próprio casco e assaram ligeiramente o resto num espeto. Tínhamos provisões para alguns dias. Cada homem recebeu seu quinhão para comê-lo como melhor o entendesse. Eu pus a gamela entre as pernas e fui molhando as bolachas no caldo, o que me pareceu delicioso. Depois se distribuiu cachaça, tendo aumentado a ração diária para encorajar mais minha gente. Não era tarefa de pouca monta ir-se procurar à margem direita do Amazonas uma das bocas do Rio Madeira. O guarda, digna parelha de Policarpo (seria uma referência ao personagem Policarpo Quaresma de Lima Barreto?), nada ainda fizera de útil. Mas, agora, tornava-se indispensável forçá-lo a uma tarefa qualquer: não se tratava mais de nos entregarmos à correnteza e sim de atravessar o próprio talvegue do Amazonas. Dei o exemplo e peguei num remo; confiei outro ao guarda. E a canoa voou. Algumas horas passaram e entramos nesse Madeira tão pouco conhecido e que devia corresponder a todas as nossas esperanças.

Nesse momento, julguei descobrir indícios de mau humor nos meus companheiros: não lhes causava agrado saber que teriam de, por algum tempo, navegar contra forte correnteza. Não mais deixar o tempo passar olhando as águas, mas ganhar a vida com esforço, remando. Mal entráramos no Madeira, ao cair do sol, os maruins nos assaltaram. Lembrei-me da noite passada a bordo do vapor, no Amazonas. Os índios se embrulharam na vela da canoa; nem por isto puderam dormir um minuto. Eu, apesar do calor, embrulhara-me na capa e enfiara na cabeça uma rede de pegar borboletas que uma senhora me oferecera no Pará. Ah! Não podendo me atacar o rosto, os bichinhos me investem os pés. Não conseguindo meio de vencer os atacantes, passamos a noite inteira a nos defender com as mãos. Ao amanhecer, outros carrascos nos aguardavam: uma mosca chamada mutuca. Age contra o Corpo humano à semelhança do moscardo contra o cavalo; morde e fica agarrada à ferida, sugando-a. Como o borrachudo, faz o sangue vir logo à superfície. Essa mosca não voa muito; esconde-se num canto escuro e dele se atira contra a vítima. Depois torna a se ocultar.

Desde que atingíramos o Madeira, tinha pernas e pés inchados a ponto de não suportar o calçado. Ao me assentar para fazer qualquer coisa, metia as pernas num estreito espaço entre o toldo e as tábuas sobre as quais colocara minha bagagem. Nessas regiões baixas e sombrias, moravam hordas de mutucas e maruins. Quando não podia mais aguentar as picadas e procurava me coçar, as mãos enchiam-se de sangue. Como a canoa fizesse água, trazia quase sempre meus pés mergulhados. De outras vezes, distraía-me em armar ciladas às mutucas, ficando contente quando conseguia afogar algumas. Não se imagina quanto me atraía esse novo gênero de caça: batia-me mais o coração, suspendia a respiração, enquanto permanecia com os pés fora d’água e de repente mergulhava-os quando os meus inimigos menos esperavam por esse gesto. Uma morte instantânea seria doce demais para eles: eu esmagara milhares e quis afogar outros tantos, o que creio haver conseguido. (BIARD)

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Figura 25 – Canoa – Franz Keller

Antônio Alves da Câmara (1937)

Os índios Paumarys, e outros do Rio Madeira e afluentes do Amazonas, as fazem de guaxinduba, madeira de uma árvore que dá leite. (...) Tratando do Rio Madeira, assim se manifesta o P. Christoval d’Acuña a respeito do fabrico das canoas, e superabundância da madeira para elas.

SU COMERCIO ES POR EL AGUA EN CANOAS

(…) todo su trato es por agua, en embarcaciones pequeñas, que llaman canoas; estas de ordinario son de cedro; de que la Providencia de Dios les proveo abundantemente, sin que les cueste trabajo de córtalos, ni sacarlos del monte, enviándoselos con las avenidas del Río, que para suplir esta necesidad, los arranca de las mas distantes Cordilleras del Perú, y se los pone a las puertas de sus casas, donde cada uno escoge lo que mas acuerdo le parece. Y es de admirar, ver entre tanta infinidad de Indios, que cada uno necesita, por lo menos para su familia, de uno, o dos palos, de que labre una, o dos canoas, como de hecho las tienen; a ninguno le cuesta mas trabajo, que saliendo a la orilla echarle en cuando va palazoando, y amarrarle a los mismos umbrales de sus puertas, donde queda preso, hasta que avenido ya bajado las aguas, y aplicando cada uno su industria y trabajo, labra la embarcación, de que tiene necesidad.

Para construção das outras, derrubam a árvore na época lunar conveniente, ou não, racham a casca, e a extraem inteira; outras vezes a tiram da árvore em pé. Amarram as extremidades com cipós depois de cortarem alguma porção para não ficarem muito grossas, e poderem apertar com mais facilidade. Atravessam pedaços de madeira forte, como o macucu e outros, para abrir o bojo, e tomarem a configuração de canoas. Assim preparadas, em pouco tempo secam, e ficam rijas, suportando durante anos o peso de

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homens e pequenas cargas na navegação dos Rios. Elas são feitas geralmente da casca da paxiúba e jutaí.

Jutaí (Himenaea Oblongi-folia): jutaí-da-várzea é o nome popular de uma árvore da família das Fabáceas (ex-Leguminosas), originária do Brasil. (Nota do Autor)

O fabrico das grandes é diferente. Tiram da árvore em pé, ou derrubada, a casca cortada já em uma forma proximamente elíptica, e a colocam sobre uma fogueira, que fazem do comprimento dela, para dar-lhe a concavidade e a forma de canoa, procurando terminar em ângulo muito agudo as duas extremidades. Esta preparação assim ao fogo é também empregada com o fim de darem mais duração às cascas, curá-las, para não apodrecerem, expostas como ficam à intempérie. Depois de algum tempo, porém, de serviço, elas ficam encolhidas, ou arqueadas entre as bancadas.

Aurélio Pinheiro (1937)

No Rio Madeira aparece o vulto de Frei João de Sampaio, peregrinando pacientemente entre selvagens, combatido pelos Muras temíveis que, afinal, conseguiram expulsá-lo dessa região. Mas tempos depois, ressurgia o frade obstinado dirigindo a Missão de Trocano, no mesmo Rio, afrontando serenamente as iras da tribo. (...) Começando pelos autores mais antigos, vemos que Sant’Anna Nery (The Land of the Amazons) faz referências a exploradores do Rio Madeira que, no tempo colonial, viram e colheram pepitas de ouro naquele Rio e no Gy-Paraná, onde prosseguiram as pesquisas com algum sucesso. (...) Na Cachoeira do Ribeirão Preto, ainda no Rio Madeira, antigos garimpeiros descobriram ouro e pedras preciosas. Tais são as informações de Sant’Anna Nery, que conclui com estas palavras as suas várias asserções:

Encontram-se, realmente, nas escavações feitas em diversos lugares do Estado, muitas amostras de ágata, machados de diorito polida, de sienito e jade; ornatos verdes talhados em feldspato e grande quantidade de pedras de amolar de xisto, como também enfeites para os lábios de indígenas em nefrita, berilo, quartzo hialino e ortose verde. (PINHEIRO)

Theodoro Roosevelt (1944)

(...) Sua excursão mais importante, mais demorada e mais cheia de perigos e provações foi iniciada em 1909, a 3 de maio, aniversário da descoberta do Brasil. Deixando naquele dia Tapirapoã, chegou ao Rio Madeira a 25 de dezembro do mesmo ano, tendo descido o Rio Ji-Paraná. A Foz deste Rio era, havia muito, conhecida, mas a metade de seu curso superior era absolutamente inexplorada quando Rondon por ele passou. Entre os que, sob seu comando, participaram dessa parte das explorações, achavam-se o atual Capitão Amílcar e o Tenente Lira; e seria impossível encontrar dois homens melhores e mais eficientes para semelhante obra de desbravamento. Em nossa expedição, serviam eles como principais auxiliares do Coronel. Em 1909, a comitiva teve seus recursos de alimentação esgotados, incluindo-se o sal, no mês de agosto. Durante os últimos quatro meses viveram, de caça, frutos e mel silvestres. Suas bagagens limitavam-se ao que se podia conduzir às costas dos camaradas. Quando atingiram o Rio Madeira, estavam esgotados pela fadiga, pelas

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intempéries, pela fome insatisfeita e com os organismos enfraquecidos, devorados pela febre.

A obra de exploração realizada pelo Coronel Rondon e seus companheiros, durante esses anos, foi tão notável quanto quaisquer empreendimentos similares efetuados em outros pontos da terra, mais ou menos pela mesma ocasião, e seus resultados ainda mais importantes que os deles. Seu valor foi reconhecido no Brasil, mas não teve repercussão nas sociedades geográficas da Europa e dos Estados Unidos. (ROOSEVELT)

Cândido de Melo Leitão (1941)

E na longa viagem (que pelo que ainda hoje apresenta de penoso, bem se pode imaginar o que seria nesse fim do século XVIII) não se esquecem esses nossos ilustres e abnegados compatriotas de fazer com o maior zelo e cuidado as observações necessárias, afinando quase todo o diário de Ricardo Franco de Almeida Serra por este período inicial, minucioso e preciso:

Tendo saído da Vila de Barcelos pelas seis horas da tarde do dia primeiro de setembro de 1781, chegamos à boca do Rio Madeira no dia 9 pelas oito horas da manhã, onde se abateram árvores na ponta Setentrional do Rio, para se fazerem as observações astronômicas, em que se gastou esse dia e parte da manhã seguinte. Latitude Austral deste lugar — 3°23’2,43”, e Longitude — 18°52’ (da Ilha do Ferro, como lembra em Nota Final). Variação da agulha — para E 6°45’. (...)

O ponto de junção do Rio Mamoré com o Madeira (Beni) parece o mais natural e próprio para dele se lançar a linha de Este a Oeste até ao Rio Javari, conforme o artigo XI do Tratado de Limites (naturalmente se referia ao de 1777), tanto porque só assim se conservam as atuais possessões das duas nações confinantes, como por não terem os espanhóis dele águas abaixo estabelecimento algum com que se possam comunicar.

Aos 7 de janeiro de 1782, “deixando o Mamoré a Poente”, entram pelo Guaporé (pois os dois tratados determinavam que a raia limítrofe, a partir da boca do Sararé, baixasse “por toda a corrente do Rio Guaporé”). No dia 11 de janeiro alcançam a Fortaleza Velha da Conceição, demorando-se aí uma semana. Passam mais um dia no novo Forte do Príncipe da Beira e, continuando a subir o Guaporé, exploram em parte os vinte Rios que nele se despejam, até que chegam afinal à Vila da Santíssima Trindade (fundada, em 19 de março de 1752, por Dom Antônio Rolim de Moura Tavares, depois Conde de Azambuja, primeiro e privativo Capitão-general da Capitania de Mato Grosso).

Francisco José de Lacerda e Almeida apresentou, alguns anos mais tarde, o Mapa do Guaporé, desde Vila Bella até à sua confluência com o Mamoré, compreendendo igualmente os Rios Itonamas, Maxupó, Baures, Branco, da Conceição e de São Joaquim, “todos pertencentes aos espanhóis e que confundem as suas águas com o Guaporé”. Percorrendo em começos deste século a mesma região, diz o grande brasileiro General Cândido Mariano da Silva Rondon, que os trabalhos da Comissão Almeida Serra “lançam sobre as páginas da história da Capitania de Mato Grosso um fulgor de talento, de hombridade e operosidade de que em vão se procuraria o equivalente nas outras Capitanias do Brasil”. (LEITÃO)

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“Bandeira” de Francisco de Mello Palheta

Na Bacia do Madeira, Francisco de Mello Palheta, experimentado homem dos sertões amazônicos, subindo o Rio, em 1722, em missão oficial, verificou o exercício da soberania

lusitana em toda a extensão da grande artéria. E atingindo as missões espanholas jesuíticas de Moxos, complementando a sondagem política que estava realizando, intimou os Missionários a abandonar aquelas posições, afirmando-lhes que estavam operando em terras pertencentes à

Coroa Portuguesa. Não fosse obedecida a intimação e os governantes paraenses possuíam matérias para obrigá-los a executar o que lhes determinava (REIS, 1948).

Embora se tenha notícia de que, por volta de 1650, a “Bandeira dos Limites de Antônio Raposo Tavares” tenha descido todo o Rio Madeira e alcançado Belém três anos depois de ter saído da Vila de São Paulo, não existe nenhum registro de sua porfia pelas Cachoeiras do Rio Madeira. Missionários e militares penetraram, mais tarde, no vale do Madeira, mas sem percorrê-lo por inteiro, por isso, a “Bandeira” de Francisco de Mello Palheta é considerada a primeira e uma das mais importantes realizadas no século XVIII.

- Francisco de Mello Palheta

O jornal “A Tribuna”, de Santos, São Paulo, na sua edição especial de 26 de janeiro de 1939, comemorativa do centenário da elevação de Santos à categoria de cidade, publicou interessante matéria sobre o café, onde desponta a figura de Palheta. O artigo foi baseado no livro “A antiga produção e exportação do Pará” do escritor Manuel de Mello Cardoso Barata. Reproduzo fragmentos de ambos os textos que aludem ao insigne militar.

“A Tribuna” relata:

Francisco de Mello Palheta, o Bandeirante do café - Dentre as zonas do nosso gigantesco solo, coube ao Pará a prioridade do cultivo da preciosa rubiácea, e a Francisco de Mello Palheta a glória de ser o portador de mil e tantas bagas e cinco espécimes dela, desde a Guiana Francesa até aquela circunscrição da nossa pátria, então simples possessão portuguesa. Por ocasião do ingresso do café, ali, era Governador o Capitão-general do Estado do Maranhão e Grão-Pará, João da Maia Gama, que havia sucedido, em 1727, a Bernardo Pereira de Berredo, o conhecido autor dos Annaes Históricos do Maranhão. Houve, a esse tempo, necessidade de mandar-se à fronteira, assim como a Caiena, para quaisquer entendimentos com os franceses da Guiana, uma ligeira missão de caráter oficial. A fim de dirigi-la, foi escolhido o Sargento-mor (posto que hoje corresponderia a Major) do exército colonial e brasileiro de nascimento, Francisco de Mello Palheta, que já se salientara muito, em 1722-23, na exploração do Rio Madeira, e que também tinha o posto de Capitão-Tenente da Guarda Costa, sendo assim militar de terra e Mar. Pois bem, ao retornar a expedição da Guiana, trazia consigo o seu esforçado Comandante mil e tantas frutas e cinco plantas do vegetal alienígena, que se tornaria, de futuro, o tesouro da agricultura nacional. Que a Mello Palheta se enderece, pois, a gratidão de todos nós, brasileiros, pelas meritórias consequências da sua ação prestimosa e relevante. E aqui seja dito de passagem: De Clieu, o introdutor do café na Martinica, (...), já teve, em Fort-de-France, a devida consagração, enquanto que a memória de Palheta ainda espera a homenagem que indeclinavelmente lhe deve a nacionalidade.

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Assim é narrada a viagem da expedição:

Deixando Belém em 1727 (maio) - conforme opinou o denodado Sargento-mor, chegando a Caiena, conheceu de perto a valiosa rubiácea, que já viçava havia alguns anos. Percebeu, logo, com aguda perspicácia, os magníficos proventos que adviriam para a Pátria e a Real Coroa do vegetal exótico, e procurou sem tardança obter mudas e bagas novas.

É de crer lhe custasse isso riscos e sacrifícios, pois entre os franceses se adotara o terrível monopólio holandês, a ponto de o Governador decretar que ninguém desse aos portugueses café capaz de reproduzir-se.

Galanteria de uma dama francesa - A insciência (falta de saber) do modo exato por que foi conseguido na Guiana o café introduzido no Brasil, em maio de 1727, pelo audaz explorador, e bem assim a alta valia dessa façanha, contribuíram para tecer-se em torno do caso uma sorte de lenda - propalada pelo bispo D. João de S. José, prelado Beneditino, depois de sua viagem e visita ao bispado do Grão-Pará em 1762 e 1763, escreveu na “Viagem e visita do sertão em o bispado do Grão - Pará em 1762 e 1763” e aceita por escritores subsequentes:

Aqui vimos, pela primeira vez, a árvore do cacau, plantada pela natureza, de que estas linhas do Rio abundam nas vizinhanças de Gurupá, são assim das árvores do café, pois todas desta espécie têm sido plantadas, e primeiro vindas de Caiena, em tempo do Governador do Estado - João da Maia -, o que se deveu à generosidade de uma francesa, mulher do Governador da Praça, que, sabendo a proibição e estudo com que andavam os seus nacionais para que se não comunicasse a um português, de quem ignoramos o nome, e só sabemos ser Palheta, que ali se achava, indo este visitar seu marido, e saindo todos a passeio, ela generosamente lhe ofereceu, em presença do esposo (que se sorriu) uma mão cheia de pevides (sementes) de café, praticando a galanteria de ser a mesma que lhas introduziu no bolso da casaca, obrigando-o de tal sorte que lhe não sobejaram as expressões com que mostrou agradecer muito à madame esta franqueza e bizarria; e logo em Belém se repartiram pelo Governador e homens de negócio, entre os quais não foi dos segundos Agostinho Domingos, natural do Arcebispado de Braga, junto às Caldas do Gerez, e casado em Belém, homem de muita honra, verdade e cabedais, cujo procedimento autoriza bem as suas cãs (cabelos brancos) na avançada idade de oitenta anos, de quem recebemos imediatamente essa espécie, quando nos mostrou seus cafezais do Rio Guamá. (A Tribuna, 26.01.1939)

Damos sequência com o texto de Manuel de Mello Cardoso Barata:

(...) não é verdadeira, nem verossímil, a versão, propalado pelo bispo D. Frei João do São José de Queiroz e repetida por outros escritores, de que as sementes de café trazidas por Francisco de Mello Palheta foram-lhe dadas pela mulher do Governador de Caiena (Claude D’Orvilliers), a qual, por galanteria, metera no bolso da casaca (do colete, dizem outros) de Palheta uma mão-cheia delas, na presença do próprio Governador.

Sabendo-se, porém, que esse mesmo Governador havia ordenado, por um bando (anúncio público), que pessoa alguma desse aos portugueses (Palheta e seus companheiros de viagem) “café capaz de nascer”, não se pode crer que a própria mulher desse Governador transgredisse a ordem dada, e na sua presença, mesmo por galanteria, descabida e criminosa, no caso.

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Além disso, Palheta trouxe “mil e tantas frutas e cinco plantas de café”, que naturalmente não poderiam ter caído em todos os seus bolsos, da casaca ou do colete.

Pela petição dirigida por Palheta ao seu monarca, alegando serviços prestados, e solicitando concessão de favores, podemos verificar como ele próprio conta o caso do café, de modo que não se pode pôr em dúvida a veracidade da sua afirmativa. Nenhuma referência faz ele à aludida galanteria da senhora D’Orvilliers, o que parece não deveria ter tido ele motivo para calar, e antes para referir com louvor. Acham-se os meandros do problema, no entanto, positivamente iluminados por uma petição do próprio Palheta, inserta nos “Annaes da Bibliotheca e Archivo Público do Pará” (Cod. de Alvarás, Cartas Régias e Decisões. Reinado de D. João V. 1734), reproduzida no livro de Manuel de Mello Cardoso Barata, conforme se lê a seguir, e dirigida a D. João V:

Sr. - Diz Francisco de Mello Palheta, Capitão-Tenente da Guarda-Costa, que ele, Suplicante está atualmente ocupado no serviço de Vossa Majestade e somente com quarenta e oito militares de soldo; fazendo gastos excessivos e experimentando grandes perdas, como na viagem do descobrimento do Rio da Madeira, fez de gasto um conto, e duzentos mil réis; porque o mandou o Governador João da Maia Gama ao do descobrimento até as Índias de Espanha, como fez, até chegar à Cidade de S. Cruz, e nas grandes Cachoeiras teve três alagações em que perdeu tudo quanto levava, e depois foi mandado pelo nosso Governador a correr à Costa e à Vila de Caiena; fazendo também grandes gastos, sem que das viagens fizesse negociações algumas; e vendo o Suplicante que o Governador de Caiena deitava um bando à sua chegada que ninguém desse café aos Portugueses capaz de nascer, se informou o Suplicante do valor daquela droga, e vendo o que era fez diligências por trazer algumas sementes com algum dispêndio da sua Fazenda, zeloso dos aumentos das Reais rendas de V. Majestade; e não só trouxe mil e tantas frutas que entregou aos Oficiais do Senado (Vereadores da Câmara Municipal) para que as repartissem com os moradores, como também cinco plantas, de que já hoje há muito no Estado; e como o Suplicante se acha muito falto de servos, e tem mil e tantos pés de Café, e três mil pés de Cacau, e não tem quem lhos cultive, e se acha com cinco filhos, peço a vossa Majestade lhe faça mercê conceder por seu Alvará cem casais de escravos de Sertão do Rio Negro, ou outro qualquer, que se lhe oferecer, como também mandar se deem ao Suplicante cinquenta Índios das Aldeias de Cahabe (por Cacté, hoje Bragança), Mortigure (por Murtigura, hoje Vila do Conde), Simouma (por Sumauma, hoje Beja), Bocus (por Bócas, hoje Oeiras), Caricuru (por Uricuru, hoje Melgaço), Mongabeiras (por Mangabeiras, hoje Ponta de Pedra), Camutá, Gorjones (por Guaianas, depois Lugar de Vilar, hoje extinto), para fazer os ditos resgates; e como o Suplicante está alcançado, e não tem com que comprar o necessário da Fazenda dos resgates, mandar se lhe dê tudo o necessário da Fazenda dos resgates para que depois o Suplicante inteire, e pague da mesma viagem o custo que fizer.

E. R. Mcê. (Excelentíssima e Reverendíssima Senhoria)

Esta petição não foi assinada, nem datada, segundo era costume do tempo em que ainda não se tinha inventado o imposto do selo; mas, a julgar pela data da Ordem Régia, que é de 16 do fevereiro de 1734 (original, no Cod. e Arquivo Público do Pará), junto à qual por cópia enviada, por cópia autêntica, ao Governador do Estado, para informar, deve ter sido escrita provavelmente em 1733. (BARATA)

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- No Encalço da Narração

Após concluir minha jornada pelo Rio Madeira, solicitei aos meus amigos que me ajudassem a encontrar a “Narração da viagem do descobrimento que fez o Sargento-mor Francisco de Mello Palheta no Rio Madeira e suas vertentes...”. A mobilização foi impressionante e em seguida obtive a informação desejada. Vou reportar apenas as duas primeiras que chegaram, coincidentemente, no mesmo dia (01.04.2012).

A primeira de um velho amigo e um ícone da Engenharia Militar Brasileira, o General de Brigada Tibério Kimmel de Macedo, autor da obra “Eles não viveram em vão”, que conta a epopeia do 5° Batalhão de Engenharia de Construção:

(...) Abaixo, vai a mensagem que mandei para meu amigo Emanuel Pontes Pinto, historiador residente em Porto Velho. Espero que ele te possa ajudar. Neste texto que mando, abaixo, há uma referência à obra de Capistrano de Abreu. Quem sabe poderás encontrar, ainda, um exemplar da dita cuja. (...)

Em, em seguida (04.04.2012), o grande pioneiro comunicou que:

(...) Acabo de receber o livro “Caiari” que me mandou o Dr. Emanuel Pontes Pinto. O Anexo II traz o relato da Expedição do Palheta. (...)

A segunda foi a do Professor Doutor Dante Fonseca, da Universidade Federal de Rondônia, historiador e escritor renomado a quem tive a honra e o privilégio de conhecer e entrevistar em sua residência em Porto Velho, RO, antes de meu périplo pelo Madeira:

ABREU, J. Capistrano. Caminhos antigos e povoamento do Brasil. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1989, você encontrará o anexo “A Bandeira de Francisco de Mello Palheta ao Madeira”.

Graças ao empenho dos caros amigos compilei a Narração da Viagem de Palheta e publiquei na imprensa o artigo - “Bandeira” de Francisco de Mello Palheta. Alguns amigos pesquisadores, mais afeitos aos “detalhes”, não gostaram do título afirmando que não havia sido uma “Bandeira” e sim uma “Entrada”. Informei, então, que baseara o título do artigo na minha fonte, o Anexo ao livro do grande historiador João Capistrano Honório de Abreu, que o denominara “A Bandeira de Francisco de Mello Palheta ao Madeira e o Documento da Narração da Viagem”.

Embora geralmente se defina como “Entradas” as expedições oficiais, organizadas pelo governo da autoridade colonial e como “Bandeiras” as que tinham motivação particular, organizadas pelos colonos, sabe-se que algumas das supostas “Bandeiras” recebiam subsídios das autoridades coloniais com o objetivo de não acirrar os ânimos castelhanos, deixando, portanto esta definição bastante permeável. Grande parte dos historiadores portugueses não se preocupam com este tipo de distinção generalizando as incursões pelos sertões brasileiros somente como “Bandeiras”.

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- Contexto Histórico

Em 1714, o Governador da Capitania do Maranhão, João de Maia da Gama, foi informado pelo Padre Bartolomeu Rodrigues, da Missão de Tupinambarana, da existência de índios predadores e de europeus no Alto Madeira, embora não tivesse condições de confirmar se estes eram espanhóis ou portugueses, além disso, D. João V, Rei de Portugal, já manifestara o desejo de tomar posse de todo o Vale do Rio Madeira. Em 1715, os Tora e Mura declararam guerra aos colonos luso-brasileiros expulsando-os do Baixo Madeira. O Governador do Grão-Pará determinou ao Capitão João de Barro Guerra que os expulsasse da Foz do Rio Madeira. O Capitão João de Barro perseguiu os Tora, Rio Madeira acima fazendo-os recuar até a altura de Manicoré. No período de 1718 a 1722, os Mura foram atacados pelas tropas de resgate comandadas pelo Capitão Diogo Pinto Gaia que conseguiu aprisionar mais de quarenta guerreiros conduzindo-os para Santa Maria de Belém do Grão-Pará (Belém). O Governador João de Maia decidiu, então, organizar uma Bandeira ao Rio Madeira, que deveria percorrê-lo, desde a Foz até a nascente, confiando o Comando da Missão ao Sargento-mor Francisco de Mello Palheta. A Bandeira era formada por 30 Soldados e 98 índios flecheiros embarcados em 7 canoas, e devia realizar o levantamento da fisiografia do Vale do Rio Madeira, descobrir suas nascentes, contatar pacificamente os nativos e levantar as atividades econômicas e políticas dos colonos e religiosos lusos e espanhóis.

Em 1722, setenta e dois anos depois de Raposo Tavares, Mello Palheta sobe o Rio Madeira, enfrentando suas Cachoeiras, uma odisseia que foi relatada por um dos membros de sua expedição, que permanece anônimo, e publicada, pela primeira vez, nos números 19 e 20, ano I, de 11.10.1884 e 24.11.1884, da Gazeta Literária, Rio de Janeiro, sob o título:

Narração da viagem do descobrimento que fez o Sargento-mor Francisco de Mello Palheta no Rio Madeira e suas vertentes, por ordem do Senhor João

da Maia Gama, do Conselho de Sua Majestade, que Deus guarde seu Governador e Capitão-general do Estado do Maranhão,

desde 11 de novembro de 1722 até 12 de setembro de 1723.

Em 11.11.1722, a Bandeira partiu de Santa Maria de Belém do Grão-Pará, chegando à Foz do Rio Madeira, no dia 02.02.1723, navegando Rio acima até o dia 19, aportando em Jumas onde iniciaram a construção de um Arraial onde edificaram uma Igreja dedicada a Santa Cruz do Irumá, quartel, armazém, casas e seis canoas menores capazes de realizar a travessia das Cachoeiras.

Partiu a tropa da Cidade de Belém, Praça do Grão Pará, a 11 de novembro, em que veio o próprio General despedir-se do Sargento-mor e Cabo (Palheta), acompanhado da nobreza da terra; e já despedidos demos uma salva geral, e emproando as proas ao Norte que seguíamos Leste-Oeste, nos fomos despedir de Nossa Senhora do Monte Carmo, a quem nos encomendamos e a tomamos por estrela e nossa advogada, para com seu patrocínio vencermos este impossível e um descobrimento de todos tão desejado.

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A continuar nossa derrota se seguia a galera “Santa Eufrozina” e “São Ignácio”, em que vai o Cabo, que esta é nossa capitânia; seguia-lhe a galeota do Padre Capelão com a invocação de “Santa Rita e Almas”, e a esta, a canoa “São José e Almas”, que serve de armazém em que vai o maior computo de Soldados; a esta se seguia a galeota “Menino Deus”, em que vai o Sargento com mais a infantaria, e por último a galeota “Santa Rosa”, em que vai o Capitão de infantaria da mesma tropa servindo de Almirante.

Fomos buscando o Rio Moju, e seguindo por ele a nossa jornada até o estreito do Igarapé-mirim, que desemboca no Rio dos Tocantins, onde está fundada a Vila de Cametá, em dois graus ao Sul; nessa dita Vila estivemos três dias, à espera da infantaria volante que dela nos acompanhou e levamos de guarnição; e daqui demos ordem a partir buscando o rumo que havemos de seguir pelo grande Rio das Amazonas, o qual é um dos maiores que no mundo se tem descoberto, que corre de Leste a Oeste; e o seguimos até embocarmos pelo famoso Rio da Madeira (ou Rio Venes, como é chamado Beni pelos espanhóis das Índias de Espanha no Reino do Peru), que nele agora descobrimos, e corre este de Sul a Norte, pelo qual fizemos entrada, a 2 de fevereiro de 1723, e gastamos dias de boa marcha 17 até aonde nos aposentamos (abrigamos) a fazer Arraial em uma tapera do gentio Iumas, sítio admirável em tudo, assim para a nossa segurança, como em o necessário no qual o Cabo se lhe pusesse por invocação Santa Cruz de Iriumar, onde fizemos Igreja, armazém, Corpo da guarda e casas necessárias; aqui mandou o Cabo repartir a infantaria em duas esquadras, donde atualmente havia uma sentinela que guardava munições e fazenda real e de noite uma ronda para rondar a sentinela, canoas e todo o Arraial.

Depois de tudo acima disposto, ordenou o Cabo se fizesse seis galeotas para se poder nelas passar as Cachoeiras; o que fez pela informação que teve se não podia fazer entrada com as grandes com que nos achávamos pela terribilidade das pedras. Feitas as ditas galeotas, as preparamos de todo o necessário e de quantidade de cabos para as puxarmos pelas Cachoeiras; neste tempo se esperava já pelo socorro da cidade (Belém do Pará), o qual chegou a 4 de junho, e havia muito tempo que os miseráveis Soldados, índios e inda o Cabo, depois das frutas do mato acabadas, comia unicamente carne de lagartos, camaleões e capivaras, por não haver outro mantimento, pois não tínhamos outra coisa a que tomássemos.

Permaneceram em Jumas aguardando os mantimentos solicitados a Belém do Pará, que chegaram, em 04.06.1723, juntamente com o Padre João de Sampaio. No dia 10 de junho, Palheta nomeou Lourenço de Mello Governador do Arraial de Jumas, distribuiu os 118 expedicionários em dez canoas e iniciou a subida do Rio Madeira.

Com o dito socorro também veio Reverendo Padre Mestre João de Sampaio em sua galeota, e tanto que o Cabo se viu socorrido de nosso Excelentíssimo General, tratou logo de se pôr a caminho, o que o fez a 10 de junho do dito mês de junho com 10 canoas pequenas, que são as seis que se fizeram e quatro que tínhamos. Antes de embarcar, encarregou a Lourenço de Mello o Governo do Arraial encaminhando-lhe muita paz, união e conservação da gente que lhe deixava, assim Soldados como índios, deixando-lhe as disposições por escrito firmado do seu nome.

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Figura 26 – Salto Teotônio (Franz Keller)

No dia 13 de junho, festa de Santo Antônio, foi celebrada a Missa pelo Capelão da frota na Ilha Nova próximo ao igarapé Carapanatuba.

Fomos seguindo nossa viagem por aquele temerário e horrível Rio e o Padre Mestre João de Sampaio nos acompanhou um dia de viagem, donde se despediu de nós tornando para sua Missão, e nós fomos seguindo nossa derrota até a Ilha Nova da Praia de Santo Antônio, onde tivemos Missa no dia do dito Santo, razão por que assim o invocamos. Aqui mandou o Cabo tirar a soma da gente com que se submetia ao seguimento daquele Rio e de suas vertentes e achamos por conta 118 pessoas, 30 armas de fogo e 88 índios de flechar, e com este número de gente prosseguimos viagem.

No dia 20 de junho, a expedição alcançou a Foz do Rio Jamari, no dia 22, chegam à primeira Cachoeira do Rio Madeira, a de Santo Antônio, denominada pelo narrador da expedição como Maguari e, no dia 23, a Cachoeira de Iaguerites (atual Teotônio).

Chegamos ao Rio Jamari com dez dias de viagem, e continuamos para cima; aos 22 do mês (de junho), chegamos à Cachoeira chamada Maguari (Santo Antônio) e, na passagem dela, se alagou Damaso Botelho em uma galeota, na qual perdeu o Cabo a sua capa, o que deu por bem empregado por ser em serviço de Sua Majestade que Deus guarde. Daqui fomos à Cachoeira dos Iaguerites (Teotônio), onde chegamos às vésperas de São João e nela vimos sem encarecimento uma figura do inferno (...), pois nenhuma se iguala nem tem paridade a esta do Rio Madeira, na sua grandeza e despenhadeiros de pedras e rochedos tão altos que nos pareceu impossível a passagem, como na realidade, pois para passarmos foi necessário fazer-se caminho, cortando uma ponta de terra onde fizemos faxinas, sendo o Cabo o primeiro no trabalho a dar-nos exemplo.

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Figura 27 – Caldeirão do Inferno (Franz Keller)

Fizemos uma boa grade de madeira por onde se puxaram as galeotas; no dito dia ainda se puxaram quatro, suposto que com muita fadiga, e já acabamos tarde; e no outro dia, que foi o do nascimento de São João, se puxaram as mais e se carregaram outra vez com farinhas e munições, que as fomos comboiar mais de meia légua de caminho por terra.

Daqui continuamos nossa jornada passando Cachoeiras umas atrás das outras e chegamos à quinta Cachoeira, a que chamam Mamiu (Caldeirão do Inferno), que gastamos três dias em passar nela as galeotas a corda, não havendo exceção de pessoa neste grande trabalho, e com tal perseguição de pragas de piuns, que cada mordedura é uma sangria, e ficamos em uma ponta aonde foi julgada que humanamente se não podia passar; e passamos as galeotas a outra banda do Rio para haver de melhor passar, e o Cabo mandou puxar a sua galeota por cima das lajes e as duas mais pequenas que servem de espia, e foi esperar pelas mais canoas à Ilha chamada das Capivaras, e pela tardança deram bem cuidado ao Cabo até 9 horas da noite, que nos ajuntamos; e logo que amanheceu fomos seguindo nossa viagem à Cachoeira chamada Apama (Jirau) véspera de São Pedro; e fazendo faxinas igualmente Soldados e índios, rompemos as matas terra a dentro dois quartos de légua, em que gastamos dois dias em fazer caminho e grade, rompendo a golpe de machado e alavancas grandes pedras e afastando outras aos nossos ombros com bem risco de vida.

Esta Cachoeira assinalada dos Apamas, é tão terrível e tão monstruosa e horrível, que aos mesmos naturais de Cachoeiras mete horror e faz desanimar, porque de contínuo está no mais violento curso de sua desatada corrente, o que não encareço por não ser suspeitoso, porém deixo à consideração e representação dos experientes, pois por muito que dissera não dizia nem ainda a terça parte do que é, o que se pode perguntar igualmente assim ao Cabo e Capitão como a todos os mais da Companhia.

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Aqui demos ordem a puxar as galeotas, e se puxaram três a meio caminho, porque uma galeota botou o beque (parte mais avançada da proa) fora cérceo (rente), desfazendo a amura (quadra da proa) e as conchas (caçoleta do canhão) que foi necessário pôr-se-lhes rodela, ao outro dia se puxaram as mais; e a 2 de julho, depois das galeotas consertadas e breadas (revestidas de breu) que se acabaram pelas 10 do dia, partimos e fomos seguindo a nossa jornada todo aquele dia, se acharmos Porto capaz até às 8 da noite, porque este Rio em si está a cair toda a beirada continuamente e de tal sorte caem pedaços de terra, que deixa uma enseada feita, e fomos dormir a uma Ilha de pedras donde achamos boa ressaca para as galeotas se amarrarem seguras; e logo que amanheceu, seguimos viagem ao Porto dos Montes, onde disse o guia vira um caminho que descia ao Porto que era do Gentio, que habitava naquele lugar, mas não se viram trilhas nem caminhos, por estar já deserto; neste dito Porto, fomos visitados de uma praga de abelhas, assim a quantidade das grandes, como uma máquina das pequenas tão espessas como nuvens, buscando-nos olhos, e ouvidos e boca, e todos engoliram bastantes, porque se as enxotassem das rações ficaríamos destituídos de toda a limitação que temos de farinha, que é tão limitada a medida em que se dá, que apenas é para dois bocados de boca, e fechada cabe em uma mão toda; logo também o que vamos comendo, são camaleões e uns animais a que chamam capivaras, e alguns, por se não atrever a estas poucas carnes, comem só os ovos dos ditos lagartos. Peixe de nenhuma casta nem sorte se acha, que das pobres espingardas é que vamos passando a remediar a vida.

O Cabo que nos rege não dorme nem sossega antevendo o futuro e por isso é tão previsto e assim vamos com muita regra com a farinha; e tornando à nossa derrota, fomos caminhando até a noite que aportamos na beirada de uma Cachoeira (Três Irmãos) e determinamos passá-la no seguinte dia. Neste lugar, deu parte o Principal Joseph Aranha ao Cabo haver visto uma mui grande aboiada (Sucuri - Eunectes murinus), que afirmam todos os que a viram teria de comprimento pouco menos de 40 passos e de grossura julgaram ter 15 a 17 pés.

Grandes monstruosidades de animais semelhantes têm este Rio, porque com esta são duas que se tem visto nesta viagem, e outras maiores imundices se podem ver nele, porque não há dúvida que estas veemências de pedras (nas concavidades que têm) muito mais podem criar. E assim que amanheceu, fomos seguindo nossa jornada até ser hora de parar e tomamos Porto pelas 11 do dia.

Aos 7 do mês de julho, indo gente a descobrir campo, viram trilha nova de gentio e lugares frescos, o que logo deram a saber ao Cabo que, no mesmo instante, mandou gente bastante para ter encontro a qualquer invasão, ordenando ao Soldado Vicente Bicudo os seguisse e os mandasse praticar para que viesse o principal à sua presença, declarando-lhe os não mandava fazer mortes ou amarrações nem outro gênero de agravo.

Haveria espaço de duas horas que tinha partido o dito Soldado, quando chegaram as mais galeotas da conserva, que de retaguarda vinham, mandou logo o Cabo ao ajudante Manuel Freire com grosso poder, fazendo-lhe a mesma advertência e que declarasse logo pazes com o dito gentio pelos meios mais suaves de dádivas.

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Partiu o ajudante a incorporar-se com o Soldado Bicudo e, por ser já tarde, dormiram no mato e depois que o dito ajudante partiu, ordenou mais o Cabo a Damaso Botelho engenhasse uma picada em forma de trincheira, o que logo se fez com três guaritas (pequeno abrigo onde se recolhem as sentinelas), em que ficamos seguros como já para ter encontro ao inimigo.

Assim que amanheceu, foi um Soldado com dois índios nossos (de licença do Cabo) a buscar a vida, quando nas mesmas horas voltou a dar parte tinha ouvido rumor de gentio e chorar de criança, o que ouvido pelo nosso Cabo mandou logo ao Capitão fosse mandar praticar ao dito gentio, mas estes, como nunca tinha visto brancos, se puseram de fugida debaixo de suas armas, e despedido o Capitão para a diligência, mandou o nosso Cabo guarnecer as guaritas, e os poucos índios com que nos achávamos a desfilada pela coartina (troço do reparo situado entre dois baluartes), já para ter mão ao que pudesse suceder, mas tudo se acabou com a chegada do Capitão, apresentando por presa a um velho que no pé esquerdo não tinha dedos, três índias e três crianças.

Chegou logo o ajudante com um lote de gente onde vinha o Principal, índio moço e mui arrogante, e é certo que chegou com mui pouca vontade porque dizem se atracara com um índio nosso, mas que, vendo o nosso poder, aplacara da fúria, e assim solto o trouxeram à presença do nosso Cabo.

Acompanhavam a este dito Principal dois mocetões, seus filhos, de pouco mais que 15 a 12 anos e duas índias, mães dos ditos e mulheres do Principal, com mais um rapaz e uma rapariga e todos faziam cômputo de treze cabeças.

Fez o Cabo o possível por uma língua para os mandar praticar, mas não se achou quem os entendesse, porque falando a nossa língua, batiam com as mãos nos ouvidos, mostrando ter sentimento de não ouvir a nossa prática, mas com grandiosos mimos e dádivas ficaram mui contentes e satisfeitos no que mostravam.

Aqui Nossa Senhora do Carmo, que não falta a seus devotos, espiritou a língua em falar-lhes em língua de outro gentio seus Conhamenas, logo respondeu o Principal gentio com um agrado ao que lhe propunha a nossa língua por cuja gíria foi continuando a prática, e sobre e por razão da paz firme e valiosa que com eles pretendíamos fazer, e na mudança de vida para virem ao grêmio da Igreja, avassalando-se como os mais gentios fizeram, a que respondeu estava contente e certo nas cláusulas e firmeza da paz, e dizendo ao Cabo que o esperasse que o queria vir visitar da sua Província e trazer-lhe algumas coisas em reconhecimento do bom trato e mimos que lhe havia dado, se queria recolher; ao que o Cabo respondeu mandando-lhe dizer que tudo agradecia e que se fosse em paz, que sua vontade era seguir para cima o Rio, fazendo pazes e descobrimento, que não vinha fazer escravos, senão amigável paz com todos; e aqueles que lhe quiseram impedir sua jornada tomando armas para ele, que a este sim lhe declararia guerra.

Foi o Principal gentio em paz para a sua Província, o qual na estatura e presença muito bem parecido e os enfeites que trazia era uma coleira de miúdas contas de fruta do mato, muito negras, e o cabelo atado atrás em molho e nele um penacho, e por diante trazia o cabelo cortado, de orelha a

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orelha, os beiços tintos de vermelho de uma casca de pau que mordia; as índias cobriam, o que a natureza ocultar ensina, com uma franja de fio tecido, e cingiam no cinto uma enfiada de contas das ditas frutas do mato; era para ver como festejavam os nossos avelórios (peça de roupa com vários pingentes colocados na gola e na manga da camiseta ou na barra da calça): é este gentio muito pobre; as suas redes são de casca de pau aqui chamados embira. Despedidos eles, ficamos de aposento até ao outro dia ao amanhecer, que fomos seguindo a viagem, e sendo por horas de vésperas chegamos a paragem em que o Rio estava tapado com uma grande Cachoeira (Ribeirão) e andamos buscando canal com excessivo trabalho.

No dia 1° de agosto, prosseguem subindo o Rio Mamoré, passam pela Foz do Rio Guaporé (Itenes) e no dia 08 chegam à Povoação espanhola de Santa Cruz de Cajuava, onde foram recebidos e hospedados pelo Padre Miguel Sanches de Arquino, Superior da Missão. Nos dias 09 e 10, reuniram-se com os Padres Superiores das Províncias de Moxos e Chiquitos, João Batista de Bosson, Missionário de Santa Ana, Gaspar dos Prados, Missionário de São Miguel e Nicolau de Vargas, Missionário de São Pedro. Palheta informou-lhes estar a serviço Rei Dom João V de Portugal e do Capitão-general Maia da Gama, Governador do Maranhão, e recomendou-lhes que limitassem suas ações às margens esquerdas dos Rios Guaporé e Mamoré, não ultrapassarem suas respectivas fozes e nem recrutassem indígenas dessas margens Rio abaixo por pertencerem a Portugal, desde 1639.

Começamos a passar a 9 de julho e a 12 do dito é que saímos dela, e logo avistamos o apartamento (desvio) do Rio (Beni) que vai ao Sul, para onde seguíamos a nossa jornada, deixando o famoso Rio da Madeira a Oeste, entramos pelo dito a que os espanhóis chamam Mamuré (Mamoré), e neste mesmo dia passamos dele a primeira Cachoeira (Lajes).

Sendo pela manhã do dia seguinte depois de Missa partimos a passar a dita temeridade da Cachoeira, e posta a galeota do Cabo para ser a primeira na passagem, não foi possível, porque assim que fomos puxando por ela, para subir um degrau, que só teria seis palmos de altura, por ser muito direita a queda que fazia a água com a velocidade que despenha (precipita-se) a fúria da correnteza, logo sem mais tempo nem dar tempo se foi a pique largando toda a pobreza que levava dentro em si, sem dar tempo a que lhe pudéssemos acudir, porque inda que fossem as amarras do mais fino linho não poderiam ter mão a estas grandiosas correntes.

Ficou o nosso Cabo nesta alagação destituído de tudo, que uma viagem com dois naufrágios é grande perdição, e sem poder neste sertão remediar-se do preciso; aqui ia morrendo um Soldado afogado se lhe não acudissem; vendo o Principal José Aranha que a primeira se afundava nem por isso deixou de se submeter ao perigo, e querendo passar a sua, lhe disse o Cabo repetidas vezes: quantos hoje hão de ficar órfãos; e indo-se já puxando por duas grossas cordas, tornou a repetir o Cabo aos índios que na galeota iam, que tirassem as camisas para as não perderem; não tinha bem acabado de dizer, quando logo se foi a galeota a pique arrebentando as duas cordas, e por grande diligência do Cabo, a tiramos do fundo do Mar, que já estava cativa das temerárias pedras e soberbas ondas que faz, levantando outra vez ao alto a correnteza que vai de riba.

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Aqui obrou Nossa Senhora do Carmo um grande milagre, porque um índio nosso chamado Martinho, por enfermo dos olhos estava em uma rede debaixo dos paióis da canoa e escapou sem moléstia quando a canoa se subverteu, de sorte que o susto bastava para molestar. Estivemos dois dias consertando as duas galeotas e no terceiro dia fomos seguindo viagem, sempre levando por proa aquela máquina de pedras e com o trabalho de ir puxando as nossas galeotas até o Porto do gentio chamado Cavaripuna, e como os espias deram com um caminho seguido de gentio, mandou o Cabo uma escolta boa procurando ao Principal daquela nação, e se recolheu a dita escolta com seis pessoas, a saber, um índio de meia idade com dois filhos maiores, duas crianças e a índia mãe desta família. E vindo estes tais à presença do Cabo, lhes mandou perguntar se entre eles vinha algum Principal, ao que respondeu o índio pai da família que não, e que temido dos brancos de cativá-los, viviam separados, cada um por seu Norte distinguidos e de sua nação, solitário ele vivia naquelas brenhas, mas que sabia que o Principal Capejú, que da outra banda do Rio vivia, desejava muito de ter fala de brancos para se comerciar.

Ouvido pelo Cabo e certificado de seu dizer, lhe perguntou que dias se gastaria a chamar o dito Principal Capeju; disse que quatro dias e que ele mesmo o iria chamar e que esperássemos depois de passada a última Cachoeira (Guajará-mirim), e que por firmeza de sua palavra deixaria na nossa companhia sua mulher e filhos; despediu o Cabo ao índio (com dois índios mais nossos que lhe falavam a gíria) com bastantes mimos, de ferramentas, facas e avelório aos 18 de julho.

Logo que amanheceu o seguinte dia, nos fomos aposentar na espera do gentio, onde estivemos dez dias e como não vieram, prosseguimos nossa derrota até as bocas dos Rios de água branca e de água preta, onde chegamos no 1° de agosto.

Este caudaloso Rio d’água preta se aparta do Rio Branco, correndo na boca a Sueste Quarta de Sul, a cujo Rio chamam os espanhóis Itenis (Guaporé), e o dito Rio Branco parte a Sudoeste Quarta de Oeste, na entrada a que também os espanhóis chamam Mamuré (Mamoré). Entre estes dois Rios nos aposentamos em uma longa Praia de areia e daqui seguimos o Rio Branco por nos parecer mais pequeno (como é) e este declarar sinais de habitado, porque não há estalagem de gente que nele cursa que não tenha cruz. Doutrina seguida em aquela Povoação já seguimos (com estes vestígios) a nossa fatal viagem com a esperança de aproveitar com fruto tanto trabalho e perigos de vida.

E sendo a 6 de agosto, a sentinela que fazia o quarto da lua falou a uma canoa que vinha Rio abaixo com dez índios espanhóis, foi o Cabo em pessoa na sua galeota tomar-lhes o encontro e falar com eles, e trazendo-os para a Praia d’onde estávamos se informou o nosso Cabo cabalmente e tomamos um guia para nos levar seguros ao Porto da grande Povoação de Santa Cruz de Cajuava e, no seguinte dia, por horas de vésperas, encontramos cinco canoas que iam deste Rio Mamuré para o de Itenis (Guaporé) e, assim que nos avistaram, levantaram uma cruz por bandeira e perguntando-nos se éramos cristãos, lhes respondemos que sim e portugueses, a que, sorrindo-se e benzendo-se todos a um tempo: cristãos portugueses? Nós o somos de S. Pedro e, falando com o Cabo, tomamos terra, onde jantamos.

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Estiveram conosco este gentio pouco mais de uma hora, e neste limitado prazo tiveram eles e tivemos nós um grande contentamento, de sorte que apagaram-se todos os trabalhos de antes; despediram-se para baixo e nós prosseguimos; e já daqui se não vêem matos senão tudo campos gerais assim de uma como de outra parte do Rio e pela terra a dentro.

Pelas 4 horas da tarde, ouvimos zurros de gado vacum, e ordenou o Cabo fosse o Sargento Damaso Botelho a dar a entrada e lhe recomendou a força da diligência e manifestação ao Regedor.

Daqui, dizia o guia não chegaremos à Povoação senão amanhã, e como logo ouvido isto, mandou o Cabo se marchasse toda a noite, e se não parasse senão juntos da dita Povoação, aonde esperaria pelo Ajudante, que enviou adiante com a embaixada de sua vinda, o qual chegado pelas 7 horas da manhã, o levaram pela Povoação dentro os índios, dela com tal amor e cortesia que fazia admirar e, chegando à praça, falou aos Padres que estavam naquele Colégio, os quais o receberam com repiques de sinos e grande alvoroço daquele povo, mostrando com instrumentos de órgão, cravo e músicas e com clarins e charamelas (instrumento musical de sopro, feito de madeira, com palheta dupla ou simples) o como nos festejavam alegres.

A saudação que os ditos Padres fizeram ao Ajudante foi beijando-lhe a mão com o nome da Santíssima Trindade, Padre, Filho e Espírito Santo, e o levou para dentro donde estavam mais dois religiosos, dos quais foi abraçado e o levaram para dentro porque se não entendiam nem se podia ouvir a fala de uma pessoa a outra pelo grande rumor da muita gente que a rodeava.

Chegado com os ditos Padres o Ajudante ao sobrado, onde em uma capelinha estava uma imagem do Senhor Crucificado em um grave nicho, que de uma e outra parte tinha janelas rasgadas que caíam sobre o jardim: aqui ajoelhou o Ajudante com uma devida reverência, dando graças a Deus de haver chegado à terra de cristandade com tão bom sucesso depois de tantos trabalhos. Acabada a oração, lhe ofereceram os Padres assento e, pondo-se em silêncio, interrompeu o nosso entrevistado dizendo:

Reverendíssimos Padres, nós somos vassalos do senhor Rei Dom João Quinto de Portugal que Deus guarde e por notícias e sinais que se viu neste Rio de muitas cruzes se resolveu o Senhor João de Maia da Gama, nosso Excelentíssimo Governador e Capitão General, a mandar dez galeotas armadas em guerra com infantaria e cravineiros a fazer descobrimento, e trazemos um Sargento-Mor por Cabo da tropa, o qual me envia a dizer a Vossas Reverendíssimas que se não alterem, nem a gente deste povo, pois que vem com todo o sossego, paz e quietação até chegar aqui, e por razão de Estado me enviou a dar parte a Vossas Reverendíssimas e ao Regedor deste povo, para que assim se não assustem com a sua entrada.

Respondeu o Padre Miguel Sanches de Aquino que já havia muitos anos esperavam a vinda dos senhores portugueses a aquelas índias, e perguntando que gente trazíamos, lhe deu por conta o nosso Ajudante que 118 pessoas; perguntou se era o Cabo Cavaleiro e lhe foi respondido com a verdade de que era dos Principais da terra na Capitania do Pará; perguntou mais se trazíamos Missionário e de que religião, foi-lhe dito que só um clérigo levávamos por Capelão; perguntou mais pelos nomes, o que tudo se lhe disse, principalmente do Cabo, Capitão, Capelão e Ajudante.

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Então disse o Padre Miguel Sanches de Aquino que mandava ao Padre Irmão Oliberlo Nogua com Sua Mercê a receber o Cabo, e que estimava muito a sua boa vinda a aquela Povoação e que não só lhe mandava beijar os pés, mas oferecer-se para lhe obedecer em tudo, e que entrassem na hora de Deus, que tudo estava sossegado e nem a cortesia dos honrados e valorosos portugueses podia em nada alterar os corações e que o seu estava aberto para nele e nos braços o receber com grande gosto; que só tinha o pesar de ser esta vinda em ano tão estéril pela inundação do passado; tornaram a abraçar todos ao nosso Ajudante com demonstrações de muito contentamento e debaixo de um chapéu de sol a uso da terra, o qual é feito de penas de avestruz, acompanhado do Padre Irmão, se foram buscando o Porto do desembarque, em busca do Cabo, que o estava esperando da outra parte do Rio. Embarcou-se o Ajudante e juntamente o Padre Irmão e Capitães e Alcaides e, se a galera pudera com mais gente, muitos mais iriam nela a receber o Cabo porém, nas que se achavam no Porto, também se embarcaram para acompanhar ao Ajudante e, dando este a senha com um tiro, respondeu a tropa junta com uma descarga ao recebimento do Padre Irmão e, ao salvarem-se com o Cabo, outra; e ultimamente, a três vivas dos Reis, três cargas, abalando-se as galeotas da tropa com o mesmo concerto e desfilada (seguindo ao nosso Cabo), os mais fomos aportar à Povoação, e já no Porto estariam duas mil pessoas à nossa espera, para nos cortejarem e, assim com este acompanhamento, entramos pela Povoação, e chegando o nosso Cabo àquela grande praça do Colégio, vieram os mais Padres a recebê-lo; estavam as três portas da Igreja todas abertas e os sinos se desfaziam com repiques, charamelas, clarins, órgãos e todos os mais instrumentos e música, que fazia uma grande entoação.

O Altar-mor da Igreja estava ornado e com seis velas de libra acesas, e fazendo oração o nosso Cabo e os mais da sua guarda em ação de graças, entoamos a salva de Nossa Senhora com a sua ladainha e tivemos Missa logo, donde ao levantar a Deus entoamos o Tantum Ergo (palavras iniciais dos dois últimos versos do “Pange Língua”, um Hino Latino Medieval escrito por São Tomás de Aquino) e no fim dela o “Bendito”, o que tudo acabado, vieram os Padres e levaram ao nosso Cabo em braços para uma grande casa, que parece é quarto feito naquele Colégio para hospedar pessoas grandes, onde estava ornado um grande e famoso bufete (buffet, bufê) cheio de flores e outras delícias daquelas índias, e a um e outro lado da grande casa tamboretes, catre e rede, à usança da terra, armário com o necessário, e se puseram os Padres a praticar com o nosso Cabo no que a cada um tocava e, sendo horas de jantar, se pôs à mesa onde jantou o nosso Cabo e o Padre Capelão, e os guisados que lhe puseram passaram de trinta iguarias e não vinha vianda alguma que não viesse coberta de flores, e, assim que o nosso Cabo se pôs à mesa, começaram dois índios a tocar harpa e rabeca que certamente enlevavam; os índios é que serviram a mesa sem haver descuido algum nem falta do necessário e com boa compostura e limpeza; acabado o Cabo de jantar, se jantou na própria mesa que, acabado de comer a infantaria, vieram os Padres pedir mil perdões ao nosso Cabo do pouco com que se achavam para receber a sua pessoa e tiveram meia hora de conversa os Padres com o nosso Cabo, e se foram recolher até que às 2 horas que tornaram a vir. A cortesia e o modo e afagos que nos fizeram foi mais de muito e naquelas mesmas horas que nós chegamos se avisaram todas aquelas povoações por terra a cavalo e assim.

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Logo a outro dia, pelas 9 horas, chegou o Padre João Baptista de Bosson, sobrinho do Duque de Banhos, o qual é Missionário da Povoação de Santa Ana, veio a cavalo e o acompanhavam seis cavaleiros índios; o modo e o carinho desta grande pessoa foi a maior coisa que vi; logo no outro dia, chegou mais o Padre Gaspar dos Prados; este Padre veio em canoa, da Missão de São Miguel de Moxoquinos; neste mesmo dia, chegou mais o Padre Nicolau de Vargas, da Povoação de São Pedro dos Moxos, e se mais dias estivéramos mais Padres creio chegariam, que a todos os grandes desejos de ver portugueses os fazia vir tão prontos e prestes, e finalmente disse o Padre Nicolau de Vargas que, se nos não topasse ali, havia ir Rio abaixo só para nos ver e falar; mas este o que devia ao sangue português é que o fazia ter este grande desejo.

No dia de São Lourenço, 10 de agosto, rezou o nosso Capelão a Missa da terça neste Santo Colégio de Santa Cruz de Cajuvava, cuja Povoação está situada em 14 graus e meio ao Sul e a cidade de Santa Cruz de La Sierra em 17 graus. O Governador desta grande cidade se chama Dom Luiz Alvares Gatto, e o Bispo se chama Dom Leonardo de Valdima Arcaya; este Bispo de três em três anos visita todos os povos que estão situados nos Rios que declara o Mapa incluso deste seu bispado.

Da cidade de Santa Cruz de La Sierra se seguem estradas ao Reino do Peru, Porto de Mar, cuja cidade tem Vice-Rei, a quem chamam Dom Thomaz de Espego, tem Arcebispo e Bispo; está logo a grande cidade de Lima e a cidade Joam, Cavélica Episcopal, esta outra cidade chamada Guamanga; também Episcopal, e outra que lhe chamam Cuzco, Corte antiga das Índias, mais a cidade de La Paz, Episcopal; cuja verdadeira notícia nos deu o Padre Mestre João Baptista de Bosson.

E além do que tenho escrito, me deu a saber o Rio Sará, que fica Leste-Oeste com a cidade de Lima, e que a água daquele Rio é tão grossa que coalha e faz formar tijolos e que em formas as deixam congelar da sorte que querem, e que tomava a cor parda, muito forte para limpar ferro e muito leve no peso.

E perguntando-lhe se seria esta a que cá lhe chamamos pedra pomes, me disse que a pedra pomes era uma serraria ou montes que todos os anos arde e arrebenta com a força do incêndio, o qual se achava em um Lago donde acaba o Rio Nagu, donde com a cheia vinham pelo Rio abaixo, mas que esta pedra que da dita água se congela servia para edifícios e portais; também me disse que, pelo grande Rio de Xiriguanas, há víboras, que engolem uma besta inteira e que o gentio dele lhe fazem guerra com tropas de cavalos; também me afirmou que o ano de 1722, com uma inundação, se fora a pique uma Ilha chamada Chamayca com 200 navios que estavam ao redor dela ancorados e que esta tal Ilha era povoada da nação inglesa.

Os canaviais em Santa Cruz de La Sierra, que nestas povoações duram 60 anos, e até aqui onde chegamos duram 20 e 30 anos, cujas canas são todas unas no comprimento e grossura, e a calda mui forte que tudo é açúcar, como o experimentamos por ver, estas terras dão açafrão, que é o contrato destes índios, cera branca, panos acolchoados e bordados que fazem, e há índios que têm 100 bestas suas e mui bem ensinadas para vaquejar 3 e 4 mil cabeças de gado que cada um tem e há outros índios que têm muito mais.

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Estes índios de natureza são mui curiosos, muitos tocam harpa, órgão, rabecas e cantam Missa, são músicos de coro, e vários sabem ler, e são pintores e com boas ações e melhor sombra, o óleo com que pintam é leite de vacas, são bordadores eminentíssimos, que nos surpreenderam admirados ver três casulas, uma capa de asperge, dalmáticas, estolas e manípulas, bolsas, palas, véu, frontais, panos de púlpito, tudo bordado com as mais galhardas flores e ramos, tudo em sua ordem e tão bem matizado que não é possível encarecer.

Casula ou planeta: vestimenta característica daqueles que celebram a Santa Missa. Os livros litúrgicos usavam as duas palavras, em latim casula e planeta, como sinônimos. Enquanto o nome planeta foi usado em particular em Roma e acabou por permanecer na Itália, o nome casula deriva da forma típica da vestimenta, que originalmente circundava todo o Corpo do Ministro sagrado que a portava. (Fonte: christusvinchit.blogs.sapo.pt)

Capa de Asperge: capa usada principalmente durante a bênção do Santíssimo, conhecida como capa pluvial. (Idem)

Dalmática: túnica originária da Dalmácia. É usada pelo diácono nas Missas solenes. O subdiácono usa, nas Missas solenes, a tunicela, bastante parecida com a dalmática, mas que deve ser um pouco mais curta e menos adornada que esta. (Idem)

Estola: é o elemento distintivo de um Ministro ordenado e é sempre usada na celebração dos sacramentos e sacramentais. É uma faixa de tecido, em geral bordado, cuja cor varia de acordo com o tempo litúrgico ou o dia santo. (Idem)

Manípulo: um paramento litúrgico usado nas celebrações da Santa Missa segundo a forma extraordinária do Rito Romano; caiu em desuso nos anos da reforma litúrgica, embora não tenha sido abolido. É semelhante à estola, mas de menor comprimento, inferior a um metro, e é fixado por meio de presilhas ou fitas como as da casula. Durante a Santa Missa em sua forma extraordinária, o celebrante, o diácono e subdiácono o portam sobre o antebraço esquerdo.

É possível que este paramento derive de um lenço (mappula) utilizado pelos romanos amarrado ao braço esquerdo. Uma vez que era utilizado para enxugar as lágrimas e o suor da face, escritores eclesiásticos medievais atribuíram ao manípulo um simbolismo associado às fadigas do sacerdócio. (Idem)

Bolsa Viático: usada pelos Ministros ou pessoas que levam a hóstia consagrada aos enfermos ou pessoas que não têm condições de irem à Igreja. Dentro da bolsa tem um estojo chamado Teca onde são colocadas estas Hóstias. (Idem)

Pala: pequeno retângulo de pano de linho com que se pode cobrir o cálice, pode-se usá-lo nas cores do tempo litúrgico ou o dia santo. (Idem)

Véu Umeral: véu que recai sobre os ombros, com o qual o sacerdote utiliza junto com a capa nos momentos de adoração e bênção do Santíssimo. (Idem)

Frontal litúrgico: peça de pano que pende na parte dianteira do altar e vai até o chão. (Idem)

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Também vimos um tapete muito grande que estendido do Altar-mor, chegava aos degraus abaixo confronteiro às portas da sacristia, com tão admiráveis lavores que enlevavam os olhos. Do Altar-mor para cima, obra deles, uma estante dourada, um missal com chapadura de prata todo aberto ao buril por matiz e capa de veludo carmesim, um cálice dourado, uma patena (pratinho de metal em que se coloca a hóstia na Missa) e as galhetas (pequeno vaso que contém o vinho ou a água, para o serviço de Missa) que teriam um coito de altura, uma salva (bandeja) que serve de prato deles e todas estas três peças de prata dourada, a sacra e o Evangelho de São João com molduras douradas, seis castiçais de prata de boa altura, logo o trono ou camarim (nicho, por cima do altar-mor, onde se arma o trono para exposição do Santíssimo Sacramento) dourado por dentro com uma invenção para encerrar, casa-boa (?), o retábulo (obra de arte de pedra ou madeira esculpida, de encontro ao altar) obra miúda, mas inda não estava dourado.

O Governo deste povo é na forma seguinte: tem dois Regedores e estes dois Capitães e os Capitães têm dois Alcaides e, quando quer um daqueles índios colher as suas sementeiras ou plantar as suas roças, vai à casa do Regedor dizer-lhe que tem este ou aquele trabalho que fazer, este manda ao Capitão lhe dê gente e o Alcaide os vai avisar aquilo que é necessário para fazer aquele trabalho e lhe assinam (firmam) dia certo, no qual não faltam à porta do lavrador, e acabado o trabalho, se paga a todos os que ajudaram e assim observam geralmente, por isso todos têm e são ricos: os Padres que ali assistem são como vigários deste povo, e lhes pagam os moradores, fora as primícias das novidades, e eles não fazem mais que administrar-lhes os sacramentos.

Em tudo o que é necessário para a Igreja concorre o povo, uns com dinheiro, outros com tapetes, gados, cera branca, arroz, milho, fio, panos e tudo remetem por carregação à cidade de Santa Cruz de La Sierra, aonde tudo se lhes vende e lhes vem o necessário. Esta Povoação tem Quatro sinos grandes e dois pequenos, fora garridas (sinetas) e rodas de campainhas, e são estes índios tributários a seu Rei.

Depois das três badaladas da madrugada, se ajuntam todos à porta da Igreja para ouvirem Missa, onde rezam o Rosário de Nossa Senhora com tal devoção que, nomeando o nome de Jesus, dão juntos um ai, batendo no peito; ao levantar da hóstia, tocam órgão e cantam o “Te Deum Laudamus” e no fim da Missa tocam charamelas e com baixões entoam o “Bendito”; e acabado cada um vai para o seu trabalho. Ao meio-dia, nas badaladas, rezam de joelhos; de manhã, dizem: “Santos dias dê Deus a Vossa Mercê”; à tarde, dizem: “Santas tardes lhe dê Deus”. Pelas 4 da tarde, se ajuntam todos, assim homens como mulheres, rapazes, raparigas e meninos, ao redor da Cruz que está na praça, a rezar o Rosário de Nossa Senhora em voz alta, e tanto que o Padre vê terem acabado os mistérios decorosos, antes dos gloriosos, se chega e ajoelha com o povo juntamente e oferece; no fim rezam o Ato da contrição e ali mesmo rezam as trindades; vi neste povo todo o gênero de ofícios.

No dia 11 de agosto, a expedição inicia a descida do Rio Mamoré até a Foz do Rio Guaporé, subindo este durante seis dias até a aldeia dos índios Itenes, da Missão de São Miguel, onde Palheta faz as mesmas recomendações transmitidas aos Padres em Santa Cruz.

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Sendo aos 11 do mês de agosto, nos despedimos, porque o nosso Cabo disse aos Padres que lhe não permita mais o seu regimento que três dias ele hospede, bem contra a vontade dos religiosos, que seus desejos mostravam que estivéssemos mais alguns dias com eles; antes desta despedida, havia ordenado o nosso Cabo que todos geralmente se confessassem, pois tornávamos a vir passar as terribilidades e riscos de vida nas Cachoeiras o que todos assim fizeram. Pelas 3 horas da tarde, nos ajuntamos todos na Igreja por ordem do Cabo para, depois de orarmos, beijarmos o Santo Lenho e alcançarmos a bênção papal, que aqueles Padres, com grandes indulgências, concedem por privilégio particular, o que feito nos despedimos daquela boa companhia, que até ao embarcar do Cabo nos estiveram abraçando e pedindo muitos perdões e mostrando-se mais agradecidos à cortesia, urbanidade e trato do Cabo, pois tão cabalmente se soube haver com eles.

Propôs de novo o nosso Cabo a estes Padres publicamente, recomendando e requerendo da parte do nosso excelentíssimo General, e em virtude do Tratado feito entre os nossos reis e pela conservação dos povos, que lhe assinalava de hoje por diante não passassem para baixo da boca dos Rios Mamuré (Mamoré) e Itenis (Guaporé) nem interessassem daí para baixo gentilidade alguma, por estes pertencerem ao sereníssimo senhor nosso Rei de Portugal, pois de 1639 que senhoreava o Rio das Amazonas até a Laguna onde se achavam os marcos pertencentes à coroa de Portugal e 400 léguas da boca do Rio Madeira até o dito marco, como diz o Padre Acuña no seu livro Maranhão, e quando excedam, fazendo o contrário do requerimento, que inda Sua Majestade que Deus guarde tinha poderes neste Estado para fazer entregar e pôr tudo o que tocasse a seus domínios e senhorios; e com estas mesmas cláusulas faríamos de nossa parte, o que ouvido pelos ditos Padres prometeram cumprir e guardar tudo acima requerido.

Desta Povoação partimos buscando o rumo do Norte e gastamos Rio abaixo dois dias e duas noites às bocas dos ditos Rios consignados e, no dia seguinte, embocamos o Rio Itenis (Guaporé). Este corre de Leste a Oeste, aonde faz o seu apartamento, e vai caminhando para as grandes povoações dos Baures e Moxos. Seguimos este Rio seis dias acima e demos nos currais da criação de infinito gado e bestas; e falamos com índios da nação Itenis, pertencentes à Povoação de São Miguel; disse o Cabo lhe não permitia o seu regimento a que se estendesse mais, donde fizemos a volta para baixo e, véspera de S. Bartolomeu, levantamos ferro já de rota batida, deixando aqueles deliciosos ares e climas mui diferentes e terra tão abundante de toda a criação e plantas férteis e campos aprazíveis.

Deste local regressaram Rio abaixo até a sua Foz no Rio Mamoré, seguindo por este até estacionarem, no dia 25 de agosto, nas proximidades a região das Cachoeiras, onde lhes aguardava o Tuxaua Capeju da nação Cavaripuna. O chefe indígena reforçou seu propósito de ser aliado dos portugueses e obediente à Igreja Católica e solicitou que ele e toda a sua gente que fossem batizados. Palheta demonstrou-se satisfeito pela aliança e pela decisão de se converterem ao catolicismo mas, quanto ao batismo, só seria possível batizar as crianças e os adolescentes por se tratarem de inocentes, enquanto os adultos só o seriam após tomarem conhecimento da doutrina cristã, deixando com eles o índio catequista Manuel Camacho.

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Chegamos à paragem dos nossos enviados índios da chamada do Principal Capeju a 25 de agosto, e avistamos que, no meio do Rio, nos vinham a encontrar 3 Tapuios em uma limitada casca de pau, chegaram à galeota do Cabo, a quem disseram que ali estavam prontos como se lhes tinha mandado, e que suas vontades era serem compadres e amigos dos brancos com a lealdade de vassalos à coroa de Portugal; estimou muito o Cabo, esta resolução para a mudança de vida e sujeição ao grêmio da Igreja, fazendo serviço a Deus e a Sua Majestade que Deus guarde.

Pediram todos se queriam batizar, ao que o nosso Cabo lhes disse, aprendessem primeiro a doutrina cristã, para o que lhes deixava um índio catequista; isso sim, se batizaram os filhos menores por serem crianças, e o mesmo Sargento-Mor que é o dito nosso Cabo e o Capitão foram padrinhos daqueles inocentes.

Este gentio fica descido e doméstico e são da nação Cavaripunas, e dois dias que estivemos na sua aposentadoria, sítio que o Cabo lhes consignou para Aldeia, só a dormir se apartavam de nós, satisfaziam-se olhando para nós e vendo o nosso trato; às tardes, quando rezávamos as ladainhas de Nossa Senhora (que temos por devoção), se ajuntava toda aquela família e nos rodeava de joelhos até acabarmos de rezar, porque o que vêm fazer, fazem. O índio a quem o Cabo encarregou lhes ensinasse a doutrina, se chama Manuel Camacho, o qual é de boas práticas e muito fiel aos brancos, a quem deixamos com este gentio e com ferramentas bastantes para ensinar também a fazer roças e plantar, na forma dos índios de baixo e em toda a América se pratica.

Também fica praticado para si descerem os da nação Apamas e a Matiris, cujas povoações são cunhamenas (aliados políticos inter-tribais. As alianças geralmente eram seladas através de casamentos com as filhas dos chefes ou outras mulheres por eles indicadas, donde o prefixo “cunhã” do termo cunhamena) desta nação Cavaripunas e agora já, estarão juntos e descidos, para roçarem sobre o Rio, que são confinantes umas às outras, a quem também o nosso Cabo mandou dar ferramentas e outros mimos.

A Bandeira prosseguiu descendo o Rio Mamoré até a sua confluência com o Rio Beni, entrando no Rio Madeira, chegando ao Arraial Jumas, em 09 de setembro, cumprindo a missão com pleno êxito sem perdas de vidas e sem ninguém adoecer, os prejuízos foram apenas materiais. Palheta regressou a Belém no final do mês de setembro. O Rio Madeira tinha sido oficialmente descoberto e estava assegurada sua posse por Portugal.

Chegamos ao nosso Arraial em 9 de setembro com feliz sucesso, sem nos adoecer ninguém da campanha, nem nos morrer nenhum graças ao bendito Deus e à sua Santíssima Mãe N. Sª. do Carmo, é certo que com grandes perdas pelas alagações que tivemos, como fica dito.

Vinte e três (vinte) Cachoeiras se contam no Rio da Madeira, das quais dez se não podem passar, por nenhum meio, porque são impossíveis, e as passamos cortando pontas de terras e fazendo grades de madeira, não pelo Rio senão por terra em seco, cujos caminhos ficam feitos para quem vier atrás. Neste nosso Arraial achamos a falta de três Soldados volantes ou aventureiros, que trouxemos na campanha, os quais desertaram atrás de nós, e finalmente chegamos a esta cidade, em setembro de 1723.

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O Sermão da selva (Max Carphentier Luiz da Costa)

IV

(...)

Bem–aventuradas as mãos que multiplicam o verde e os verdes movimentos do caule erguendo–se da terra,

e os longos círculos de sonho em que a flor se transfigura, em que o fruto se entrega e em que as folhas resistem

na úmida e dadivosa sinergia.

Bem–aventurados os que cultivam e os que repartem as lendas, filhas da solidão dos remos peregrinos,

das sombras que de noite andam de medo em medo as redes embalando à luz das lamparinas.

Porque lenda é mensagem, e a selva sempre soube que, além de alma e matéria, o homem é sonho.

Bem–aventurados todos os que antes da revelação eletrônica já se comunicavam com as plantas, já as sentiam

e com elas partilhavam da luz e da emoção, e as respeitam assim nessa comunidade da selva.

Bem–aventurados os que em lei, verso, vontade,

na retorta, na prece e na palavra a selva defenderem e seus mistérios lerem e fundarem a sua paz na paz da selva.

Porque o Reino será desses, daqueles que cumprirem

o destino de Deus neste transido mundo que nos suporta enquanto o temos.

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Viagem da “Real Escolta”

Muito diferente dos homens públicos brasileiros da atualidade, nossos irmãos lusitanos jamais negligenciaram dos assuntos atinentes aos interesses de suas Províncias Ultramarinas. A pretérita visão estratégica portuguesa deveria servir de luzeiro aos nossos políticos atuais para tirá-los do obscurantismo doentio em que teimam permanecer ao tratar de assuntos que envolvem nossa soberania. A sucessão de equívocos no trato das delimitações de Terras Indígenas mostra que os representantes dos três poderes da República ignoram a nossa Carta Magna, a nossa história, os interesses da maioria esmagadora de nosso povo e se submetem pacífica e subservientemente ao arbítrio de uma minoria atuante a soldo de inconfessos interesses alienígenas no trato de questões nacionais relevantes.

A Viagem de José Gonçalves da Fonseca, realizada quase três décadas depois da Bandeira de Palheta, foi muito relevante em virtude da missão que lhe foi atribuída pela coroa portuguesa e, por isso mesmo, dedicamos a ela um capítulo especial neste livro.

- Rota Fluvial Guaporé-Mamoré-Madeira

Marco António de Azevedo Coutinho, Primeiro-Ministro de Portugal (Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra), de 4 de outubro de 1747 a 1750, ordenou, em setembro de 1748, que o Capitão-mor do Estado do Maranhão e Grão-Pará, Francisco Pedro de Mendonça Gorjão, organizasse uma expedição de reconhecimento do Rio Madeira. Azevedo Coutinho temia a expansão das Missões de Moxos, da Província do Peru, para Oeste do Eixo Fluvial formado pelos Rios Guaporé, Mamoré e Madeira, temor agravado com a fundação, em 1743, da missão de Santa Rosa, no Rio Guaporé e de uma possível descoberta de ouro nas suas cercanias ou mesmo em outras regiões do Vale do Madeira, o que certamente atrairia garimpeiros espanhóis. De uma hora para outra, poderia ser colocado em cheque o controle português da navegação da Rota Fluvial, que permitia a integração do Pará com o Mato Grosso e que, se perdido, provocaria, com certeza, o despovoamento das regiões mineiras de Cuiabá e do Mato Grosso. Além disso, desde 1747, as duas Cortes Ibéricas negociavam um novo Tratado de Limites sobre seus respectivos domínios na América do Sul.

Marco António de Azevedo Coutinho comenta:

Suposto o que deixo explicado, tem-se por necessário e conveniente, não só apossarmo-nos da navegação do Rio da Madeira até o Mato Grosso, mas tomar a tempo as medidas para que a dita nova Missão Espanhola nos não cause os prejuízos, que podemos recear, ou procurando os meios para a tirar dali, sem escândalo, ou rodeando-a em alguma distância com habitações e sesmarias dos nossos, de sorte que se não possam os Castelhanos alargar, nem tentar outros estabelecimentos da parte Oriental do Rio da Madeira, e talvez virá a ser conveniente para este efeito permitir-se e frequentar-se a comunicação do Pará com o Mato Grosso por aquele Rio.

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Este Rio da Madeira é para nós hoje mais conhecido da parte de cima e até as Missões dos Moxos, do que da parte de baixo, sem embargo de ser nesta parte ocupado com Missões dos nossos Jesuítas do Pará; porém até agora não houve a curiosidade de se remeter, nem Mapa, nem relação disso mesmo, que ocupamos, e muito menos, do que fica para cima. Sabe-se, contudo, que já algumas vezes foram Portugueses do Rio das Amazonas, com canoas de voga, e saveiros até as Missões dos Moxos, que é o que basta para constar que até o Mato Grosso se pode navegar com a mesma comodidade pois, dos Moxos para cima, não tem embaraço algum.

Na verdade, em 1747, o Secretário do Governo do Estado do Maranhão e Grão-Pará, José Gonçalves da Fonseca, já havia desenhado um Mapa do Rio Madeira baseado nas parcas informações da Bandeira de Francisco de Mello Palheta e outros sertanistas e Missionários que haviam percorrido a região enviando-o a Alexandre de Gusmão.

O Primeiro-Ministro Azevedo Coutinho conhecia o trabalho de Gonçalves da Fonseca, mas considerava que, desde a expedição de Palheta (1723), a exploração do Rio Madeira tinha sido feita à revelia da coroa portuguesa e do Estado do Maranhão e Grão-Pará, pelos sertanistas, Missionários e colonos que abriram, por iniciativa própria, a rota fluvial ligando os Rios Guaporé, Mamoré e Madeira.

- Preparação da Expedição de Reconhecimento da Rota do Madeira

Em julho de 1749, o Capitão-mor do Estado do Maranhão e Grão-Pará, Francisco Pedro de Mendonça Gorjão, cumprindo as ordens de Azevedo Coutinho, atribuiu ao Sargento-mor Luís Fagundes Machado o comando da expedição, instruindo-o sobre os propósitos daquela navegação:

Empreenderá a viagem pelo Rio da Madeira dando lugar a que, desde a boca até ao Mato Grosso, se façam os exames e observações pelo que leva a instrução necessária José Gonçalves da Fonseca (...) e alguma matéria que sobre este particular conferir o mesmo José Gonçalves, e o piloto António Nunes com o dito Cabo, este concorrerá com o seu parecer no que for conveniente para qualquer averiguação das que levam a seu cargo; pois todas as que houverem de fazer na forma da referida instrução são mui importantes ao serviço de Sua Majestade.

José Gonçalves da Fonseca e o piloto António Nunes realizariam, portanto, observações astronômicas. Gonçalves da Fonseca deveria ainda colher informações que seriam relatadas em um diário e ainda elaborar Mapas de todo trajeto da “Real Escolta”.

Marco António de Azevedo Coutinho especifica:

descreverá o mesmo Amazonas em Mapas, combinando as alturas, voltas e Rios, com as que descrevem o Mapa do Padre Acuña, e Monsieur de La Condamine, em que seguirá o que achar mais exato, segundo a conferência que fizer com o Piloto António Nunes, que será obrigado a fazer todas as observações necessárias em cada dia.

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António Nunes deveria levar consigo “todos os instrumentos capazes de tomar as alturas e agulha de observar os rumos”; e era obrigado a fazer o seu próprio Diário da Viagem, onde deveria anotar os dias de navegação e as Latitudes observadas. Já as instruções de Fonseca eram ainda mais precisas quanto ao que devia fazer a partir do momento em que a expedição entrasse no Rio Madeira: esperava-se que tivesse um cuidado redobrado nas observações que fosse realizando, anotando os rumos da corrente do Madeira, o número de Cachoeiras, as dificuldades em atravessá-las e as distâncias entre elas. A preocupação com o cálculo das Latitudes era uma constante: todos os dias deviam tomar a altura do Sol, principalmente na Boca dos Rios. Para além de novos Mapas do Amazonas, que antes referimos, deveria Fonseca desenhar um Mapa do Rio Madeira que mostrasse por onde se devia navegar e que permitisse visualizar as informações que fosse anotando sobre o Rio e seus afluentes, e sobre as missões de Moxos. Uma vez chegado ao Mato Grosso, também lhe era pedido que fizesse um Mapa onde registrasse todos os dados relativos à rede hidrográfica, ao relevo e às povoações portuguesas e espanholas, nomeadamente sobre Cuiabá e o caminho que ligava esta Vila ao Mato Grosso.

- O Diário

O diário de Gonçalves da Fonseca é dividido em três partes:

- a viagem a partir de Belém do Pará até a boca do Rio Madeira; - a navegação do Rio Madeira e a travessia de suas 19 Cachoeiras; - a subida do Rio Guaporé até Mato Grosso.

Somente, em 1826, o Diário da Viagem foi publicado, em Portugal, pela Academia das Ciências de Lisboa e, em 1866, no Brasil, a Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro publicou a “Notícia da Situação de Mato Grosso e Cuyabá”. Em janeiro de 1750, ao ser assinado em o Tratado de Madri, as autoridades portuguesas fingiram desconhecer os resultados da expedição de Gonçalves da Fonseca o que, certamente, justificava o texto bastante vago do artigo VII do Tratado, relativo às demarcações a realizar no território situado entre os Rios Jauru e Guaporé.

Tratado de Madri

Artigo VII

(...) os Comissários, que se hão de despachar para o regulamento dos confins nesta parte na face do país, acharem entre os Rios Jauru e Guaporé outros Rios, ou balizas naturais, por onde mais comodamente, e com maior certeza se possa assinalar a raia naquela paragem, salvando sempre a navegação do Jauru, que deve ser privativa dos portugueses, e o caminho que eles costumam fazer do Cuiabá para o Mato Grosso; os dois altos contraentes consentem, e aprovam, que assim se estabeleça, sem atender a alguma porção mais ou menos no terreno, que possa ficar a uma ou a outra parte. (...)

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Figura 28 – Carta Hidrográfica de José Gonçalves da Fonseca

Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal, enviou, no dia 10 de maio de 1753, uma Carta a seu irmão Francisco Xavier de Mendonça Furtado, Governador do Grão-Pará e Maranhão, datada, onde se mostra bastante preocupado sobre a implementação do Tratado:

Observando-se, porém, a outra Grande Carta que se fez na viagem de José Gonçalves da Fonseca, se manifesta por ela que, se o Rio dos Porrudos, o Rio Paraguai, o Rio Jauru e Lagoa dos Xaraes correm e jazem nos lugares e na figura em que os descreveram, daqui podem surgir grandes dificuldades. (...) Para melhor informação vossa e maior clareza de tudo o que deixo referido, ajuntarei a esta Carta o Mapa que se delineou na viagem de José Gonçalves da Fonseca, o qual contém a navegação que ele fez, desde essa Capital até o Mato Grosso. Também vão juntas as quatro relações que o sobredito escreveu, explicando os sucessos da mesma navegação, e a Carta em que a recopilou o Governador Francisco Pedro de Mendonça Gorjão.

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A Carta Hidrográfica produzida por José Gonçalves da Fonseca descrevia as nascentes de diversos Rios da América Meridional Portuguesa e em especial a do Rio Madeira. Francisco Xavier de Mendonça Furtado e as autoridades portuguesas, em geral, contestavam a validade de alguns elementos que figuravam no Mapa de Fonseca, pois isto significaria colocar em cheque a legitimidade da posse portuguesa dos territórios das minas do Mato Grosso e de Cuiabá, mesmo tendo ciência de que nenhuma expedição portuguesa se embrenhara com tanto afinco por aqueles rincões e que o Mapa de Gonçalves da Fonseca era, sem dúvida, o mais preciso traçado até então.

Mendonça Furtado afirmava:

Como o ouvi discorrer com este fundamento, me dei por instruído das notícias do tal José Gonçalves, que não é destituído de préstimos, mas era preciso que tivesse o coração mais puro do que na verdade tem.

Uma das principais consequências da viagem de José Gonçalves da Fonseca foi a abertura da rota do Rio Madeira à navegação, em 23 de outubro de 1752 que, em seguida, adquiriu importância comercial relevante além de assegurar a defesa da fronteira do extremo-Oeste brasileiro.

A Viagem acirrou, também, o debate em torno do problema das demarcações de limites evidenciadas pelas disparidades encontradas entre o Mapa das Cortes e a Carta Hidrográfica de Gonçalves da Fonseca.

- Viagem da “Real Escolta”

Vamos reproduzir, na íntegra, apenas a segunda parte da Viagem tendo em vista que essa trata da navegação do Rio Madeira e da travessia de suas 19 Cachoeiras (fragmentos publicados na Parte I, Tomo LXVII, da RIHGB, de 1904).

Artigo Extraído das Atas da Academia Real das Ciências da Sessão de 6 de junho de 1826.

Determina a Academia Real das Ciências, que a Navegação feita da Cidade do Grão Pará até à boca do Rio da Madeira, se imprima à sua

custa, e debaixo do seu privilégio.

Secretaria da Academia em 1 de julho de 1826.

Navegação feita da Cidade do Grão Pará até a Boca do Rio da Madeira pela Escolta que por este Rio subiu às Minas do Mato Grosso, por ordem mui recomendada de Sua Majestade Fidelíssima, no ano de 1749, escrita por José Gonçalves da Fonseca no mesmo Ano.

Saíram as canoas de S. Majestade em 14 de julho do Porto da Cidade do Grão Pará com o desígnio de fazer viagem pelo Rio das Amazonas, e deste entrar no Madeira seu confluente pela margem do Sul, e buscar por ele os Arraiais do Mato Grosso na forma das ordens de El-Rei Nosso Senhor. (...)

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Navegação do Rio da Madeira principiada em 25 de setembro de 1749.

Antes de se entrar pelo Rio da Madeira se fez alto pela madrugada do dia 25 de setembro, em uma Praia mui dilatada, que procede de uma Ilha das muitas que há no Rio das Amazonas fronteiras à boca do dito Madeira.

Com a luz da manhã, se deixou perceber todo o horizonte, que se terminava pela parte de Oeste e Leste com as imensas águas do Amazonas, e pela do Sudoeste com as do Madeira na Barra que faz no mesmo Amazonas, que terá de Boca oitocentas braças, desaguando entre duas pontas de terra baixa, em que há arvoredo ordinário sem diferença do das Amazonas. Entrou-se a atravessar da referida Praia a buscar o Madeira pelas sete horas da manhã, e com uma hora de caminho no rumo de Sudoeste a remo, se entrou na sua Barra, sem nela se perceber correnteza maior que a do Amazonas até aquele lugar. Antes de se chegar à primeira volta que faz o Rio, foi preciso esperar a hora do meio-dia para se fazer observação, a qual com efeito se executou, e por ela constou estar aquela entrada em 4 graus e 14 minutos de Latitude Austral (3°41’51,16”S).

Nesta primeira volta do Rio se notou não haver terra firme nem da parte Oriental, que é à esquerda (margem direita), nem da Ocidental, capaz de habitação, porque toda se alaga com o Rio cheio; e a que estava descoberta em razão de se entrar quase no fim da vazante, mostrava ser enlodada, a que no País chamam de alagadiço; e a mesma qualidade de terra é a do Amazonas pela parte de Leste e Oeste, aonde o Madeira desemboca. Feita a observação, se continuou viagem no rumo de Sudoeste e, logo voltando a segunda ponta, se navegou a Susudoeste, que logo aí mostrou ser o verdadeiro rumo.

Antes de passar a primeira ponta, à parte direita está um Lago que enche com as águas grandes, e diminui com a vazante; nele há peixe com abundância de que se aproveitam os viajantes. Voltando à segunda que se seguia, se acha à parte Ocidental uma Praia, em que se vai formando uma Ilha; e nesta Praia há muita abundância de tartarugas no tempo da sua produção, que é na vazante do Rio na lua nova de outubro.

Chegando à terceira ponta, se notou ser de pedras, de que se forma aí a ribanceira não muito alta da parte direita; mas não se alaga com a enchente do Rio: no princípio da enseada, que começa nesta ponta na mesma qualidade da ribanceira, está um lugar que foi Aldeia de gentio, e nele permanecem vestígios de habitação em árvores de fruto, que ali se conservam; no seu interior há cacoais, e aqui é que dá princípio grande quantidade deles que há neste Rio. Neste sítio, fazem assento alguns moradores, que vão fazer salgas de peixe.

Continuando viagem a vela (ainda neste dia e no seguinte se alcançou vento geral) nos rumos referidos, chegamos pelas sete horas da noite a portar (3°33’17,73”S / 58°56’16,87”O) entre uma Ilha e a terra da parte direita, aonde chamam Paraná-mirim (quer dizer no idioma da terra Rio pequeno, não que o haja ali pela terra dentro, mas por chamarem assim os índios aquela porção de água, que medeia entre a terra e a Ilha). Nesta espera, se fez experiência de pescaria, e em breve tempo mostrou a sua fertilidade o Rio em peixe de linha, que bastou para aquela ocasião.

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Em sete horas de caminho que se andou neste dia, se venceriam 4 léguas.

No dia 26 (setembro), pelas 6 horas da manhã, se principiou a navegar a remo no rumo de Sudoeste até Susueste, e a pouco mais de uma hora de caminho, se atravessou a parte esquerda a passar por um canal, que há entre a terra firme e a outra Ilha, que atravessa o Rio quase de uma a outra parte. Na da parte direita, fronteira a esta mesma Ilha está um Lago chamado do Padre Sampaio: nele há imensa quantidade de tartarugas e outros peixes de salga em abundância.

Continuando a viagem da parte direita, se foi costeando uma dilatada enseada, na qual há outro Lago, mas de menor grandeza e utilidade que o antecedente, e dele vão correndo umas barreiras não muito altas, que em partes têm pedra até o lugar em sue se acha a Aldeia chamada dos Abacaxis, aonde se chegou pelas 10 horas da manhã; e em quatro de caminho se andaria duas léguas que, com as quatro do dia antecedente, farão seis léguas, e é a distância que há da boca do Rio até esta primeira Aldeia.

Acha-se situada sobre a ribanceira da enseada referida, fronteira a uma Ilha que corre ao comprimento do Rio; a qual é alagadiça da mesma sorte que as antecedentes. Esta Aldeia se achava estabelecida no Braço do Rio Madeira, que sai às Amazonas com nome dos Abacaxis ou Tupinambás, e daqui se mudou para a parte mencionada em razão de que o sítio antigo era rodeado de vários Lagos, donde resultava muita doença e mortandade nos aldeanos, os quais no sítio em que de presente se achão, ainda não estão de todo remediados de semelhante calamidade; porque o presente sitio está fundado em uma pequena porção de terra que medeia entre o Rio e um Lago que, no tempo da seca, lhes ocasiona doença, por cuja razão habitam poucos na Aldeia, e a maior parte se acha espalhada pelas roças que fabricaram nas terras firmes daquela vizinhança.

Pelas mortandades que tem experimentado não só pela malignidade do clima, mas pelos dois contágios de bexigas e sarampo, que afligiram o Estado desde o ano de 1743 até o presente de 1749, se acha com menos da terça parte dos habitadores, os quais só de índios de guerra e serviço passaram de mil em tempo que os administrava o Padre João de Sampaio da Companhia antes das epidemias mencionadas. Tem suficiente fertilidade, pescarias de tartarugas e de outros vários peixes; porém de farinha havia tanta penúria, que aos Reverendos Missionários era preciso mandar ir da cidade a de que necessitavam para o seu sustento, e também de alguns índios que não têm lavouras.

Foi precísissimo fazer demora nesta Aldeia (8 km a jusante de Nova Olinda do Norte) dois dias para dela se receberem quinze índios destinados a conduzir as canoas grandes para baixo, depois de se embarcar a comitiva nas pequenas que, antes das Cachoeiras, se haviam de fabricar; o que com efeito se executou na forma que adiante se dirá.

Entregues os referidos índios no dia 28 (setembro) pelas onze horas do dia, se continuou viagem pelas quatro da tarde no rumo de Sudoeste, costeando a parte esquerda e, depois ao voltar da ponta da enseada em que está a Aldeia referida, se seguiu a de Susudoeste e Oessudoeste; e nitidamente ao Sul a buscar a Boca Abacaxis, donde o Madeira entra por aquela parte a buscar o Amazonas.

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Pelas oito horas da noite, portaram as canoas com seis horas de caminho, em que se andaria duas léguas, na entrada da parte do Norte a que chamam Boca dos Tupinambás (Rio Mapiá - 3°55’12,5”S / 59°8’46,75”O); porquanto o Rio da Madeira forma o Braço dos Abacaxis, introduzindo-o por duas partes, deixando uma Ilha em meio, e cortando a terra até sair ao Amazonas. Deságua no referido braço, além de 23 Lagos de uma e outra parte, um Rio chamado Canomá, que corre da terra firme bastantemente caudaloso, e nele habitam várias nações de gentio, que não é do mais feroz; mas não admite prática de civilidade, sem embargo de algumas diligências que se têm feito amigavelmente a este fim.

Nestes termos, se mostra com evidência que o Rio da Madeira entra no Amazonas por duas bocas, fazendo Barra principal a mãe do Rio, e inferior à dos Abacaxis que recebe as águas do Canomá, deixando Ilha aquela grande porção de terra que se costeia pelo Amazonas, pelo mesmo Madeira, e pelos Abacaxis, de sorte que, não tendo prática e experiência, vários autores de Cartas Geográficas situam esta grande Ilha em meio do Amazonas fronteira à boca do Madeira, dando-lhe o nome de Tupinambás: e o que ultimamente a descreveu, como na verdade é, foi Monsieur La Condamine na Carta em que descreveu o Rio das Amazonas e seus confluentes, impressa em Amsterdam no ano de 1745, que explicou no Diário que, com a mesma Carta, imprimiu quando navegou o Amazonas desde a Província de Quito ao Pará; e sem embargo de que este Matemático não entrasse no Madeira nem examinasse praticamente a forma da sua comunicação com o Amazonas pelos Abacaxis, se valeu de notícias verdadeiras, que lhe deram pessoas de experiência assistentes no Pará, que haviam navegado por uma e outra parte o mesmo Madeira: e a não fazer esta indagação cabida no erro comum dos mais Geógrafos nesta parte, assim como por menos exação não descreveu o mesmo Condamine na referida Carta em termos próprios a grande Ilha de Joannes na boca do Amazonas, nem a imensidade de Ilhas do Tajupuru, persuadindo-se talvez que não mediava mais água entre a terra firme Oriental e a dita Ilha do que aquela, que fazia o canal por onde ele transitou, quando passou o Pará e depois a costa do Cabo do Norte.

No dia 29 (setembro), pelas três horas da manhã, se principiou viagem a buscar sítio acomodado para se dizer Missa e, ao amanhecer, portaram as canoas em outra Ilha menor (4°3’47,47”S / 59°21’29,34”O) que a antecedente, fronteira à outra boca do Tupinambá, em que havia boa Praia para se armar o altar portatil, e se apelidou aquela Ilha com o nome de S. Miguel, por ser dia deste glorioso Arcanjo em que ali se celebrou Missa. Haverá uma légua de distância da boca da parte do Norte, donde se saiu de madrugada até a da parte do Sul, aonde amanheceu; tanto a Ilha de S. Miguel, como a antecedente, e terra firme que faz a boca dos Tupinambás, é tudo alagadiço em tempo de cheia. Depois de celebrado o santo sacrifício da Missa, se continuou viagem a vela e remo no rumo de Sudoeste e depois Oessudoeste; costeando à parte esquerda terras alagadiças de uma e outra margem, e pela Oriental três Lagos, se portou com 6 horas de caminho em que se andariam cinco léguas. Pelo meio do Rio, na jornada desse dia, se notarão três Ilhas em pouca distância umas das outras, que alagam no tempo da cheia; e uma correnteza grande da mesma parte esquerda no remate de uma enseada em que havia pedras arrimadas à ribanceira. Portaram as canoas na margem do Rio pouco acima da referida correnteza, passada a ponta da enseada.

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A 30 (setembro) se principiou viagem às seis horas da manhã no rumo de Sudoeste, e logo à Oessudoeste e Susudoeste, e outra vez a Sudoeste, em cuja volta, no meio de uma enseada, achamos situada a Aldeia chamada Trocano (Borba - 4°23’35,30”S / 59°35’36,69”O), fronteira a uma Ilha que se prolonga ao comprimento do Rio: quatro horas de caminho se gastou a remo, em que se andaria duas léguas; e vem a distância desta Aldeia pouco mais ou menos da dos Abacaxis nove léguas.

Desde que se entrou no Rio da Madeira até a ponta da parte do Norte da enseada, em que está a referida Aldeia, conserva o Rio a largura de trezentas e cinquenta a quatrocentas braças; porém chegando perto da dita enseada, depois de se passarem duas Ilhas que estão à parte direita, vai estreitando por espaço de meia légua de margem em que haverá distância de pouco mais de cem braças ao voltar a ponta em que principia a referida enseada, em cujo lugar passada a ponta, em que há uma Praia que quase atravessa o Rio, se acham bastantes pedras sobre que se levanta a ribanceira da parte Oriental, e a margem que se segue até a dita Aldeia é de barreira em parte não muito alta, que não alaga em tempo de cheia. Esta Aldeia chamada do Trocano (Borba) é a que, com a invenção de Santo Antônio, se fundou entre o Rio Jamari e a primeira Cachoeira do Madeira, e se compunha de gente que se praticou na ocasião que no ano de 1752 andou com uma tropa de exploração por todo o Madeira Francisco de Mello Palheta.

Foi Missionário deste estabelecimento o Reverendo Padre João de Sampaio, da Companhia de Jesus e, passados alguns anos, vendo que o sítio não era acomodado para a saúde dos índios, e que estes eram vexados pelas nações bárbaras vizinhas, tomou o expediente de a mudar para o sítio do Trocano, em que de presente existe.

É a sua fundação em uma planície que há sobre umas barreiras da referida enseada da parte Oriental do Madeira. Os ares são aprazíveis, e mais salutíferos (saudáveis) que os dos Abacaxis, e a construção da Aldeia por melhor forma que a antecedente. É missionada pelos Religiosos da Companhia, cujo Padre se não achava na ocasião na Aldeia, por ter subido ao Rio Negro na diligência de praticar gente do mato para a Mesma Aldeia - e não só por esta razão, mas por se evitar alguma desordem dos dias, farão portar as canoas nas praias de uma Ilha que corre Rio acima da parte direita, e se termina ainda à vista da Aldeia em mais de meia légua de distância, e em canoa ligeira se ia tratar do que era conveniente para o serviço da escolta.

A menos de um dia de viagem desta Aldeia pelo Rio acima, há várias habitações de gentio, o qual já tem tido o atrevimento de investir a dita Povoação, e para cautela de semelhantes insultos vive o Missionário em uma casa entrincheirada de estacada, para dela se defender melhor de alguma invasão, socorrido de dois seculares que lhe assistem, e estavam administrando a Aldeia na ausência do Padre no tempo que ali chegaram as canoas, e se houveram com tão pouca pontualidade em executar as insinuações do mesmo Missionário para darem socorro de índios à escolta, que um deles se escondeu no mato com a maior parte dos índios, e alguns que dali se tiraram para voltarem com as canoas grandes (...).

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Da mesma sorte se não pode aí fazer fornecimento de víveres, porque suposto houvesse bastante criação, não havia quem a vendesse, o que sucedeu também com a farinha, que era socorro mais essencial.

A dois de outubro, pelas 7 horas da manhã, deixando na Aldeia uma canoa ligeira com um oficial e dois Soldados na diligência de fazerem alguma compra de farinha, partiram as canoas com vento fresco no rumo de Nornoroeste, e depois de passar uma ponta da parte direita em que havia uma grande Praia, se navegou ao Susudoeste e, com três horas de caminho, em que se andariam três lagoas, partiram na Praia de uma Ilha situada à parte direita, onde esperamos pela dita canoinha o resto do dia referido e o seguinte que foram três.

Quando se navegou ao Sudoeste buscando a parte direita do Madeira, se passou junto à boca de um Rio que deságua em uma pequena enseada chamado Goaotá (Tapunã); não é caudaloso, as terras donde desemboca são alagadiças, e como se não entrou nele não se pôde examinar a direção da sua corrente, e costeando a mesma parte Ocidental na enseada que se seguia, se achou uma Ilha com Praia mui dilatada até chegar à ponta de outra enseada, no meio da qual em outra Ilha semelhante à antecedente, partiram as canoas na Praia dela, como fica dito.

Defronte desta Ilha (do Mandi), se via a boca de um Lago que há da parte Oriental mui abundante de peixe, e este é o primeiro alojamento de gentio bravo, e sem embargo de que não foi visto, se deu aqui princípio a toda a cautela necessária para rebater qualquer acontecimento dos bárbaros.

A água do Rio Madeira, desde a sua entrada até este sítio, é clara e de bom gosto porém, já desta altura, principiou a achar-se turva nas partes em que as ribanceiras são de terra enlodada; e aonde desaguavam Lagos e só donde havia barreiras ou pedras se achava menos defeituosa; e até este sítio ainda alcançavam os ventos gerais, mas já diminutos, de sorte que só com trovoada é que havia neles atividade para ajudarem os remos contra a correnteza.

No dia 4 de outubro, tendo chegado de madrugada a canoinha que ficou na Aldeia, sem negociar coisa de consideração, se celebrou Missa na referida Praia, por ser o dia dedicado a S. Francisco de Assis, em cujo obséquio se apelidou a Ilha do nome deste Santo, e partindo às sete horas no rumo de Susudoeste, se deixou à mão direita uma grande Praia de areia, e com o rumo do Sul se navegou a buscar duas Ilhas (Carapanatuba e Ganchos) que estavam à parte esquerda, em cuja margem há bastantes cacoais; porém as terras da ribanceira, que têm por detrás um grande Lago (Lagoas Chata, Branca e Preta), são soltas, e continuamente estão caindo com árvores mui grandes, que aí se produzem; este passo (de que há muitos por uma e outra margem deste Rio) é o de maior perigo e o mais formidável que se pode imaginar, e finalmente não tem até às Cachoeiras outro Rio de maior consequência esta navegação.

As Ilhas referidas que estão uma junto da outra se chamam de Carapanatuba pelo idioma dos índios, e no português significa terra de muito mosquito; com o mesmo nome se apelida e Lago, de que já se fez menção.

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Passando as referidas Ilhas no rumo de Sudoeste que assim correm ambas costeando a parte esquerda, no meio de uma enseada há uma ponta de pedras, em que de Rio cheio faz uma grande correnteza e, neste lugar, pelas 4 horas da tarde, foram vistos alguns gentios assentados nas pedras que, avistando uma canoa ligeira em que iam por exploradores um Soldado e dois índios, se meteram para o mato a observar, e feito sinal para se prevenirem as mais canoas, logo que estas foram chegando, desapareceram os gentios das vigias, e se recolheram ao interior. Vencida a correnteza das pedras, sem se dar mostras de que se fazia caso do encontro, se passarão as canoas à outra parte do Rio a buscar hum canal que há entre a terra e a Ilha do Jacaré (4°50’54,41”S / 59°56’35,33”O), por quanto o caminho da parte Oriental tem grande correnteza, e de Rio cheio faz no meio do canal um sorvedouro (no país se chama Caldeirão) que dá grande trabalho para se escapar dela, e costeando a enseada da parte Ocidental, cuja ribanceira é de terra solta, buscamos a Praia da Ilha, e nela se portou à noite com as cautelas necessárias. No canal da parte Ocidental, deságua um Lago chamado também do Jacaré (Lagoa Grande - 4°49’3,46”S / 59°59’0,73”O); neste dia, em cinco horas e meia de caminho, se andara três léguas.

A cinco (outubro), continuando viagem, se costeou à parte direita no rumo do Sul e Susudoeste e com três horas de caminho a remo, se encontrou a Ilha nomeada de José João (4°54’9,71”S / 60°7’34,08”O), tomou este nome de um morador do Pará assim chamado que muitos anos fazia nela feitoria de cacau, de que a mesma Ilha é abundante, e logo junto desta Ilha se seguia outra mais pequena, mas com uma grande Praia que se prolongava ao comprimento do Rio, o qual se foi continuando a navegar no rumo do Sul e Sudoeste, e logo ao lado Ocidental pouco acima da referida Praia, em cuja margem havia junto à terra um areal, se viu um posto que mostrava ser frequentado de gentio, porém não se avistou nenhum. Passada uma ponta de pedras à parte esquerda, em que o Rio é mais estreito, está um Lago a que os Indios dão o nome de Matamatá: nele não há mais que tartarugas, de que os gentios se aproveitam. Atravessou-se o Rio à parte direita, e já quase noite portamos na margem junto à ribanceira, por não haver Praia nem Ilha, onde se pudesse pernoitar com mais segurança. Neste dia, em oito horas de caminho, a maior parte a vela, se andaria quatro léguas, no discurso das quais se não ofereceu mais coisa alguma que notar, porquanto as terras são alagadiças, o arvoredo todo silvestre pelas margens, sem dar indício de que nele houvesse préstimo.

No dia 6 (outubro), se principiou viagem no rumo de Oeste, Sudoeste e Susudoeste, costeando a margem direita, e com dez horas de caminho a remo e vela se andaria seis léguas, sem no discurso delas haver coisa de que se desse fazer memórias. A sete, se continuou viagem navegando ao Sul, costeando a parte direita, e com duas horas de caminho a remo se avistou à parte esquerda o Rio chamado Aripuanã (5°7’10.34”S / 60°23’5.37”O) e, atravessando a examinar a sua desembocadura, se achou teria de largura oitenta braças, mostrando a sua direção ser quase de Leste para Oeste; a água deste Rio era clara e de melhor gosto que a do Madeira, no qual deságua defronte de uma Ilheta (Ilha Santa Luzia) de figura quase ovada que corre de Norte a Sul no mesmo Madeira em mui pequena distância da margem em que faz Barra o referido Aripuanã, no qual habitam algumas nações de gentio, razão por que se não tem navegado para saber ao certo a sua origem e a qualidade das terras por que discorre.

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Deixando a boca de Aripuanã, se prosseguiu viagem ao rumo de Sudoeste costeando à esquerda, em cuja margem junto ao mato se achou uma casca de pau de três braças de comprido, e meia de largo, atracadas as extremidades com cipós em forma que faziam popa e proa de embarcação, deixando no meio uma concavidade de pouco mais de dois palmos, e desta qualidade são as de que usa o gentio, de todo o Rio; e nesta que se achou tinham ido alguns àquele sítio, e que estariam no mato na diligência de alguma caça; por quanto semelhantes embarcações nunca o gentio as tem nos seus portos, sem as guardarem debaixo da água; e de mergulho as vão desatar, e fazem boiar para se servirem delas.

Esta que se topou sustentava dentro quatro pessoas com aptidão para poderem remar e navegar, mas em ocasião de tranquilidade porque, a haver quaisquer ondas por pequenas que sejam, alagam a embarcação, de cujas casualidades se sabem livrar admiravelmente os gentios, pondo-se a nado esgotando-lhe uns a água, e os outros guardando as flechas, que é ordinariamente o cabedal (recurso) de mais importância que os acompanha.

Continuou-se viagem no rumo de Oeste a buscar a Ilha chamada dos Araras (Ilha Santa Luzia), que se avista da boca do Aripuanã já referido e, chegando a ela, se achou ser de terra firme, e nela habitava uma nação de gentio chamada dos Araras, donde toma o nome a mesma Ilha, a qual forma o Madeira quase com igual distância de água por uma e outra parte, que será de duzentas braças no mais largo; corre esta Ilha com as enseadas do Rio por espaço de duas léguas, que tanto terá de comprimento, a largura não se pode ajuizar ao certo o que terá. Navegou-se entre a dita Ilha e margem da parte esquerda no rumo de Sudoeste, costeando uma enseada que se terminou com uma ponta de pedras, em que havia uma grande correnteza, e antes de chegar à referida ponta, desaguava um pequeno Lago (Lagoa Castanhal - 5°7’48,23”S / 60°25’12,80”O) e, depois de passada a correnteza, desembocava outro também de igual entidade. Em pouca distância deste sítio, na mesma margem, portaram as canoas em uma Ilheta de pedras que havia em pouca distância de terra, mas não aparece em tempo de Rio cheio, por ser a sua elevação a metade menos da que tem a ribanceira da terra, que também alaga com a cheia. Neste dia, em oito horas de caminho, se andara pouco mais de três léguas em razão de não haver vento.

Da Ilheta de pedras se principiou viagem às 8 no rumo de Susueste, costeando a parte esquerda e, antes de chegar à ponta da enseada, deságua um Lago de pouca consideração (5°15’42,56”S / 60°33’12,69”O); e seguindo o rumo do Sul, depois de passar uma Praia de areia que há na referida ponta, se encontrou com a maior correnteza que até aquela parte se havia topado, porquanto havendo uma Ilha (Ilha do Uruá - 5°20’49,46”S / 60°43’58,58”O) no meio do Rio com uma grande Praia, que se avizinha à da ponta mencionada, fazia a água grande força pelo pouco fundo que havia por todas as partes, e foi preciso arrimar as canoas à Ilha, e puxá-las à corda até horas de jantar em que se descansou. Na margem da parte direita defronte da ponta desta Ilha, estando um Antônio Correia, morador do Pará, em sua feitoria de cacau, o investirão nela de noite os Muras, e o matarão a flechadas e a cinco índios domésticos.

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Continuando logo viagem no rumo de Susudoeste com o mesmo impulso da corda junto à Praia da Ilha, sucedeu apartar-se das canoas grandes uma ligeira de exploradores e, passando à parte esquerda da margem, saíram de repente à ribanceira coisa de dez ou doze gentios Muras, e largaram sobre a canoinha uma descarga de flechas, das quais não perigou pessoa alguma, e tendo-se da canoinha o acordo de usar das suas espingardas, se retiraram logo os agressores, e não foram mais vistos em todo o resto da tarde, que foi preciso gastar na condução das canoas à corda enquanto se costeava a referida Ilha, na qual se pernoitou aquela noite com grande vigilância e cautela. Neste dia, em oito horas de caminho, se venceram três léguas, em razão do embaraço da correnteza, a qual ficou vencida até o lugar mencionado em que pernoitou.

No dia 9 (outubro), sendo já dia claro, se deu princípio à viagem buscando a margem esquerda continente à em que apareceu o gentio, e costeando no rumo de Susudoeste abeirando uma Praia que havia daquela parte, se achou na areia da mesma uma flecha cravada, que disseram os práticos era sinal que o gentio fazia de desafio, e entendendo-se que os bárbaros nos estariam esperando na ponta da enseada, onde havia correnteza; se caminhou por ela com o cuidado necessário. Não houve novidade nesta passagem, porém indo a dobrar outra ponta que se seguia, descobriram as duas canoinhas da vanguarda cinco canoetas de gentio, navegando para baixo mui junto da ribanceira, e sem mostrar receio se empenhavam no encontro; porém apenas avistaram a primeira canoa grande, com incrível ligeireza saltaram em terra, e sumiram as cascas de pau em que navegavam, de sorte que nem rasto se achou de nada. Eram estas canoas da qualidade da que acima se dá notícia. Do meio da enseada, passada a referida ponta, se atravessou a parte direita em que havia ribanceira mais alta, e há no seu interior bastante cacaual, e se foi costeando no rumo de Susudoeste, e Oessudoeste, e ultimamente a Sudoeste, até chegar à Ilha chamada Mataurá (5°31’47,92”S / 60°52’51,87”O), defronte da qual portaram as canoas em uma ponta de terra baixa, aonde não havia receio de ataque, sem embaraço de que sempre se passou a noite com as cautelas costumadas. Quase defronte desta Ilha deságua, pela parte esquerda, um Riachão (Rio Mataurá - 5°27’59,00”S / 60°43’58,89”O), de que a Ilha toma o nome, de sorte que uma e outra coisa se chama Mataurá. Não houve ocasião de se lhe examinar a Barra, por se chegar de noite à sua vizinhança, mas dizem os práticos ser de menor grandeza que o Rio Aripuanã já mencionado no dia sete, e que neste Mataurá habitam várias nações de gentio. A enseada em que deságua, que é até a ponta donde saíam as canoinhas, é superior a enchente do Rio, e mostrava ser de boa qualidade para lavrar porque o arvoredo, além de ser alto e frondoso, era limpo da espessura ordinária, que há nas partes que alaga o Rio. Na viagem deste dia, em sete horas e meia de caminho se andaria três léguas.

A 10 (outubro), de madrugada, atravessando a parte direita, se navegou no rumo do Sul, e logo no Sudoeste com bastante correnteza, e depois de três horas de caminho se avistou, da parte esquerda, uma barreira vermelha, a que no idioma geral dos índios se chama Guarapiranga, e dilatando-se por um quarto de légua, com seu arvoredo de mata virgem, desemboca no fim desta ribanceira um Riacho chamado Matapi não mui caudaloso, que tem defronte da boca uma Ilha (5°39’28,18”S / 61°15’22,29”O) com sua Praia em uma e outra ponta, que correm ao Essudoeste.

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Passada esta Ilha, se encontra, na margem direita barreira vermelha semelhante à da parte esquerda, mas de menor extensão no cumprimento. Continuou-se viagem até as seis horas da tarde, e portaram as canoas em uma ponta da ribanceira da parte esquerda, e em nove horas de caminho se andara três léguas e meia, a maior parte no rumo de Sudoeste.

No dia onze (outubro), ao romper da manhã, se continuou viagem no turno do Sul e Susueste costeando a parte esquerda, na qual logo se encontrou com uma ribanceira de pedras, defronte da qual se prolongava uma Ilheta ao comprimento do Rio, por entre a qual e a margem direita se fez viagem, para salvar a correnteza que havia nas pedras da parte esquerda; nesta se seguia a dita ribanceira uma dilatada enseada de terra baixa no meio da qual deságua um grande Lago chamado Manicoré, e a última ponta da dita enseada rematava com uma feitoria de cacau. Defronte desta, principiava uma grande Praia ou coroa de areia que, se levantando pelo meio do Rio ao seu comprimento, o divide em dois canais: da parte direita deságuam dois Lagos pequenos, e toda a sua ribanceira é de terra caída que, depois de costeado ao largo, se chegou às sete horas da noite defronte da Boca do Rio Manicoré (5°51’25.97”S / 61°19’36.75”O), que deságua na margem esquerda quase fronteiro à ponta de uma Ilha, em cuja Praia portaram as canoas.

Este Rio Unicoré é medianamente caudaloso, a sua direção é para Sueste, e se acha habitado de gentio bravo.

Neste dia, com dez horas de caminho, se andara cinco léguas por se ajudar da vela toda a tarde com uma trovoada à popa. Rumo principal: Sudoeste.

A 12 (outubro), se prosseguiu viagem costeando a parte esquerda, canal que fazia o Rio entre a ribanceira e a Ilha mencionada, cuja Praia, da parte do Sul, se dilata por espaço de mais de uma légua nos rumos de Sul até Sueste por toda a enseada, no fim da qual, a buscar o rumo de Sudoeste ao principiar outra enseada, se encontraram três Ilhas, e por entre os seus canais, em que havia menor correnteza, se fez caminho até às quatro horas, ficaram pela popa, e seguindo no rumo do Sul a findar a enseada, portaram as canoas em uma Praia, que da ponta da enseada da parte esquerda se dilatava até meio do Rio. Neste dia, em nove horas de caminho, se andara quatro léguas; seu rumo principal: Sudoeste.

Dia 13 (outubro). Neste dia se não andou mais que uma enseada toda desde o rumo do Sul para Leste até chegar ao Norte; toda a enseada era de terríveis correntezas. À parte direita, caminhando já a rumo de Leste, principiou uma ribanceira de terra vermelha, em que havia uma ponta de pedras, onde corria a água com grande fúria. Dilata-se a ribanceira por espaço de três quartos de légua ao comprimento do Rio: achou-se ser a sua mata de castanhal e cacau. Remata em um Lago chamado pelos índios Capanã (5°59’54,22”S / 61°45’22,22”O). É este pedaço de continente o mais capaz de fundação de Aldeia que até aqui se havia encontrado porque, além da terra ser capaz de lavoura, é o Rio (5°54’59,69”S / 61°42’26,59”O) nesta enseada abundante de peixe e muita caça volátil e quadrúpede. A ribanceira da parte esquerda quase toda é de terra cabida, e estava a madeira amontoada pela margem em suma quantidade. Portaram as canoas às 6 horas da tarde, em uma Praia que sai da última ponta da enseada da parte direita até quase ao meio do Rio.

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No dia 14 (outubro), se principiou viagem às 6 horas da manhã, costeando a parte direita por um canal entre a ribanceira e uma Ilha (das Onças) nos rumos de Sueste, Sul, Sudoeste, até chegar a Oeste e, a meia légua de enseada, se viu a boca de um igarapé que, cortando ao centro, deságua no Lago, de que se fez menção no dia antecedente, chamado Capanã; e continuando no rumo de Oeste, pelas quatro horas da tarde ajudou uma trovoada o remo, e portaram às 6 horas as canoas em uma Ilha nova e, em dez horas de caminho, se andara quatro léguas.

Seguia-se a esta Ilhota em que se portou, outra (Ilha Marmelos - 6°7’2,94”S / 61°47’30,83”O) de bastante extensão, e por entre a Boca que uma e outra faz, se avista a ribanceira da parte esquerda, em cujo lugar teve Arraial o Capitão João de Barros da Guerra quando, no ano de 1719, foi mandado por Cabo de uma tropa a destruir os gentios chamados Torazes, os quais habitavam estes Distritos, e eram de tanta ousadia que, navegando Rio abaixo, saíam ao Amazonas e roubavam as canoas que do Pará subiam ao cacau dos Solimões, e matavam a gente. A guerra que lhes fez o dito Capitão os deixou extintos.

Dia 15 (outubro). Pelas 6 horas da manhã, se prosseguiu viagem no rumo de Oeste por um canal entre a Terra da parte direita e uma Ilha, que se prolongava ao comprimento do Rio, e quase na ponta dela deságua, pela margem esquerda, um Rio chamado Araxiá (Foz do Rio Marmelos - 6°8’36,21”S / 61°47’2,34”O), que mostrava na sua direção vir do rumo de Leste. Continuando a derrota do mesmo canal, a quatro horas de caminho, se encontrou com terra mais elevada e vermelha, passada a qual se viu desaguar um Lago chamado Macoapi (Lago Ipixuna - 6°20’9,43”S / 62°1’0,22”O), em que há uma cobra de extraordinária grandeza, a que os índios, pelo seu idioma geral, chamam — Boiaçu — que quer dizer, no nosso vulgar, Cobra Grande. Contam os mesmos índios deste gênero de animais coisas que parecem incríveis, razão por que se remete esta notícia à curiosidade.

Passada a Boca (6°16’16,45”S / 61°52’16,71”O) do referido Lago em distância de três horas de caminho, da mesma parte direita ficando já a referida Ilha pela popa, se observou sair uma fumaça da margem junto à água e, chegando ao lugar donde havia sinal de fogo, da canoa da vanguarda ainda foram vistos uns poucos gentios que o faziam, os quais, apenas se deixaram ver, logo se esconderam, emboscando-se pela espessura do arvoredo. Continuou-se a derrota, sem fazer caso da novidade, e daí a uma hora de caminho portaram as canoas na ponta de uma dilatada Praia, que oferecia uma Ilha (Ilha do Bom Intento - 6°15’13,30”S / 62°2’20.06”O) encostada à margem esquerda. Neste dia, em oito horas de caminho, se andara três léguas.

Dia 16 (outubro). Fazendo viagem pelo canal que havia entre a terra da parte direita e a Ilha mencionada, se continuou ainda o rumo de Oeste por espaço de duas horas de caminho, em que finalizava a ponta de uma enseada, em meio da qual (já depois de passada a Ilha) saía uma ponta de pedras, aonde o Rio cheio costuma haver mui grande correnteza. Ao entrar na enseada que se seguia, andou a agulha para Oessudoeste, e passado pouco espaço chegou ao rumo geral, Sudoeste, e neste se perseguiu caminho costeando à direita, cuja ribanceira é de terra alta e vermelha, que terá meia légua de distância no seu comprimento abeirando o Rio, porém

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no centro se dilata esta terra firme, na qual fez seu alojamento o Capitão Francisco de Mello Palheta quando, no ano de 1723, foi despachado pelo Governo do Pará a explorar este Rio da Madeira e, neste lugar, se fabricaram as canoas ligeiras, em que se prosseguiu derrota, que foi até chegar a Santa Cruz de Los Cajubabas, ou por outro nome, a Exaltação, Aldeia situada na margem direita do Rio Mamoré, pelo qual entramos, deixando o Madeira à esquerda em que deságua o Mamoré. Passada a referida terra firme, em cujo lugar se fez pausa a jantar, se prosseguiu viagem abeirando a ribanceira que se seguia de terra solta, que continuamente estava caindo e com ela algumas árvores: e com o susto que causava este perigo que se não podia evitar em razão de ser a outra margem sem fundo capaz de se navegar, se saiu deste trabalho às 6 horas da tarde, em que o Rio nos ofereceu uma Ilha (Boca do Cará - 6°14’52,46”S / 62°14’52,95”O) com sua Praia, em que portaram as canoas sem os viajantes terem mais cuidado que o ordinário de fazerem sentinela ao gentio. Neste dia, por causa de ser já maior a correnteza do Rio se andara três léguas em nove horas de caminho.

No dia 17 (outubro), se principiou viagem de madrugada, costeando a margem direita no rumo do Sul por entre a Ilha, que corre na direção do Rio e, depois de passada em breve espaço, daí a meia hora de caminho, se principiou a passar outra Ilha (6°22’5,19”S / 62°14’47,90”O) já no rumo de Sudoeste, que chegada à margem esquerda se dilata com as mesmas enseadas do Rio por espaço de cinco horas de caminho. No canal menor que faz o Rio entre esta Ilha e a terra da parte Oriental, deságua um Rio chamado Vrupuni, cuja direção não foi possível averiguar, porque o canal, cheio de baixos e correnteza não permitia passagem a canoa grande. Neste Rio, habita gentio Mura, e das queimadas que eles faziam neste Distrito se manifestava de noite o clarão dos Fogos, como se observou na deste dia e na do seguinte. Passada a referida Ilha, se segue outra a uma hora de caminho de muito maior extensão, também encostada à parte esquerda, cuja extensão é conforme as enseadas que faz o Rio, sendo o seu rumo principal a Sudoeste. Quase na ponta desta Ilha (6°28’55,55”S / 62°17’42,27”O) portaram as canoas com dez horas de caminho, em que se andara, no referido rumo, 4 léguas, por ser já por essa altura mui frequente a correnteza, e quase insuperável a canoas grandes.

Dia 18 (outubro). Neste dia, se principiou viagem costeando a referida Ilha pelo braço maior do Rio entre ela e a margem direita, e não se venceu mais neste dia de caminho do que duas enseadas, em que se andara três léguas por causa da grande correnteza. O rumo principal foi Sudoeste. Em uma Praia que saía da ponta da Ilha (6°36’33,71”S / 62°19’38,40”O) em que ela finalizou, portaram as canoas, e na mesma Praia se conservaram no dia 19.

Como já por este Distrito eram grandes as correntezas, e mui frequentes os baixios, que tudo dificultava a navegação de canoas grandes, se gastou todo o dia 19 (outubro) em explorar as matas da mesma Ilha e da terra da parte Oriental, na diligência de se achar madeiros capazes de fabricar embarcações ligeiras para nelas se prosseguir viagem, tanto para se vencerem os obstáculos referidos, como para o trânsito das Cachoeiras, para cujo trabalhoso passo se ia avizinhando a derrota.

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Não se acharam na dita Ilha troncos com capacidade da obra que se projetava, e somente na margem Oriental de terra firme se acharam os precisos e próprios para o intento, porém com o desconto de ser preciso formar o Arraial para a fatura das canoas no mesmo continente, em que de necessidade havia maior risco dos ataques do gentio, do que poderia suceder na Ilha, aonde não costumam invadir os viajantes, por não terem retiro fácil depois de cometida a hostilidade, o que não lhes sucede em terra firme, aonde mais a seu salvo acometem favorecidos do terreno e dos bosques, em que se embrenham, o que depois se verificou por experiência.

Não houve outro arbítrio se não fazer alojamento na terra da margem Oriental do Rio, cuja planície por então estava desalagada, e para efeito de se entrar à operação das novas canoas passaram as grandes no dia vinte ao amanhecer ao sítio que na parte referida se achou mais próprio para formar alojamento, para o qual se reservou parte suficiente dos índios, e a outra se destinou ao corte dos troncos que eram precisos, para deles se fabricarem as novas embarcações, e com felicidade se acharam os tais madeiros na vizinhança do alojamento, e de mais desta comodidade se encontrou também a abundância conveniente de víveres para o sustento, assim de caça como de peixe; e só de um Lago (6°34’55,75”S / 62°17’49,75”O) que se descobriu perto do Arraial, houve uma tal fertilidade de tartarugas que, além de ministrarem a maior parte do sustento a toda a escolta, ainda dele se tiraram, na despedida do sítio, as que bastarão para fornecimento de muitos dias de viagem.

Construído no dia referido e 21 (outubro) o Arraial, cingido de uma trincheira de estacarias, e faxina para reparo suficiente de qualquer invasão dos bárbaros, se guarnecia de noite aquela circunferência com sentinelas, que eram três, para fazerem sinal de qualquer movimento que se oferecesse, observando-se também o estilo militar de rondarem os Oficiais da escolta as ditas sentinelas para evitar algum descuido.

Doze dias se passaram de alojamento sem neles haver sinal de gentio, até que, na madrugada de três de novembro, estando de fora da trincheira uma porção de índios abrindo o casco da canoa a fogo (serviço que só aquela hora é proveitoso, em razão de não haver vento, que é mui prejudicial à obra) de repente se sentiram assaltados de gentio Mura que, favorecidos do escuro e espessura do mato, dispararam quantidade de flechas sobre os ditos índios, que se achavam com suas armas, e escoltados pelo Sargento-mor, Comandante, e Ajudante da Tropa.

Nesta avançada, não houve ofensa na nossa parte, antes um dos nossos índios teve o acordo de poder empregar uma flecha em um dos inimigos, que avistou em parte que a luz do fogo lho fez perceber. Tocou-se a rebate, e posto todo o Arraial em armas (ficando guarda conveniente às canoas que estiavam no Porto) sucedeu que, ao sair um índio do seu alojamento acudindo ao rebate, o apanhou uma flecha por entre o osso da fúrcula (clavícula) e o pescoço da parte esquerda, que logo o deixou sem vida.

Botou-se um cordão de gente por fora à trincheira da parte acometida, e outro pelo mato com desígnio de se apanharem ao romper do dia em cerco onde fosse castigado o seu atrevimento; não teve efeito o projeto, porque os Muras, carregando o seu ferido que dava grandes brados, se acharam longe daquele sítio quando aclarou o dia. Não houve lugar, na ocasião do ataque, de ter efeito o uso das espingardas, porque se não podia ver onde

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fazer pontaria; caíam as flechas, porém não se distinguia o vulto que as impelia; cessou ainda assim a flecharia, depois que, para aquela parte donde saíam, se disparou uma descarga de quatro armas. Para se continuar o serviço da fábrica das canoas, foi preciso dobrar as sentinelas na trincheira e, quando era necessário ir ao mato buscar cipó, folhas, estopa, e outros materiais, sempre os índios iam escoltados, e só em uma ocasião apareceram os Muras em um corte de pau, porém, como foram vistos, e atenderam a disposição de armas, usaram da sua covardia retirando-se sem obrarem ação alguma. Somente de noite rodeavam ao largo o Arraial, e não se resolveram mais chegar perto da trincheira, sem embargo que das portas para dentro, é que se abriram as mais canoas a fogo. Como aos índios trabalhadores era já mui custoso de dia lavraram madeira e de noite fazer sentinela, pareceu conveniente, depois de estarem cinco cascos de canoas abertos, que eram os precisos, mudar o Arraial para a parte mais acomodada, em que os desvelos noturnos nos fossem de menos trabalho; e tomada esta resolução, se abandonou aquele lugar no dia 19 de novembro no qual, com quatro horas de caminho Rio acima, se elegeu uma Ilha pequena com sua Praia onde, no dia 20, se armaram somente os estaleiros em que se acabassem as cinco canoas, o que se efetuou sem a menor perturbação do gentio até o dia primeiro de dezembro, em que carregando-se as novas embarcações, se expediram no dia seguinte de manhã as canoas grandes para baixo, preparadas de mantimentos, armas e lenha, para evitar o portar em terra a cortá-la, com ordem os soldados que as governavam de portarem na Aldeia dos Abacaxis, e aí esperarem a volta da escolta.

Esta, no dia 3 de dezembro, pelas oito horas da manhã, principiou sua derrota Rio acima, no rumo de Oeste, e logo a Sudoeste rumo geral. Costeou-se à parte esquerda, que quase toda a ribanceira é de terra caída, e à parte direita deságua um Lago mui abundante de Peixe, o qual, ou seja guisado com temperos ou assado, não tem sabor a coisa alguma, razão por que os índios, no idioma da sua língua geral, lhe chamam Lago de Jerupari-pirá, que no Português quer dizer: Lago que tem peixe do Diabo. Não se sabe atribuir ao certo de que procede aquela insipidez tão extraordinária. Sendo já noite portaram as canoas em uma Ilha chamada de Santo Antônio (6°46’31,42”S / 62°25’27,76”O): e em oito horas de caminho se andara três léguas nos rumos já referidos.

Em 4 de dezembro, se prosseguiu viagem costeando à esquerda uma grande enseada de terra alagada, sendo a outra terra da margem direita de barreiras vermelhas. No fim da dita enseada, deságua um Lago chamado Pirá Jacaré (Carapanatuba), defronte de cuja boca principia uma Ilha encostada à parte direita, que se dilatava até a meia enseada que se seguia. Defronte da ponta desta enseada, havia uma restinga de pedras, em que havia grandíssima correnteza, passada a qual, sendo já de noite, portaram as canoas na ribanceira da parte esquerda com 13 horas de caminho, em que se andara 4 léguas nos rumos do Sul a que se principiou, e logo a maior parte do caminho a Sudoeste, e se portou no de Oeste (7°0’35,22”S / 62°48’3,06”O).

A 5 (dezembro), se continuou viagem costeando à esquerda no rumo de Sudoeste e Sul, terra alagadiça; defronte desaguavam dois Lagos de terra que não alagava. Passada a enseada, se seguiam três Ilhas lançadas a rumo de Sueste ao qual se navegou pelos que fazia o Rio e, passando a

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enseada, se costeou à direita, e entrou já de noite por um canal entre a terra e uma Ilha, e se portou na ribanceira às 8 horas da noite, e em 15 horas de caminho, se andara cinco léguas.

No dia 6 (dezembro), que sucedeu ser mui tempestuoso de chuva e vento, se continuou a navegar o canal referido nos rumos de Sudoeste e Sul, seguindo-se mais duas Ilhas à antecedente, e saindo a enseada, costeando à direita, foi visto um gentio na ribanceira encarando o arco para disparar flecha sobre a gente de uma canoa; porém andando mais destra a espingarda de um soldado em ser disparada por ele, não se sabe ao certo se foi ou não chumbado, porém é sem duvida que não foi mais visto. Seguiu-se logo na mesma ribanceira uma restinga de pedras, em que, com algum trabalho, foi preciso sirgar (puxar) as canoas à corda, e acabada esta operação por ser quase noite, portaram as canoas em uma Praia de Ilha que havia no meio do Rio. Neste dia, em 6 horas de caminho, se andara nos ditos remos 2 léguas.

Dia 7 (dezembro). Prosseguiu-se viagem costeando à esquerda no rumo de Susudoeste e Sul, e da margem direita deságua defronte da ponta da enseada um Lago, e logo mais adiante um Ribeiro de pouca entidade, e a este se seguia outro de pouca entidade também e, antes de chegar umas barreiras vermelhas, desaguavam dois Lagos também insignificantes. Passadas as ditas barreiras, fazia barra um Riacho chamado Marani (Lago Puruzinho - 7°23’14,90”S / 63°0’1,82”O), que teria de Boca (ao parecer) 50 braças, e a sua direção mostrava ser a Oeste. Continuando a derrota da parte esquerda no rumo de Lessueste, se achou a terra da ribanceira mais alta (Humaitá), e à vista da água várias vigias (à maneira de guaritas) cobertas de palha, em que o gentio costuma registrar o que passa pelo Rio, e quando descobrem as suas praias, para eles saírem a pescar; no fim desta margem mais alta deságua um Lago chamado das Piranhas. Deste lugar, já sobre a tarde, se avistaram umas Ilhas (Salomão e Fausto), por entre as quais se dividia o Rio em vários canais com uma tal disposição, a verdura do arvoredo representada na tranquilidade das águas oferecia aos olhos o mais agradável objeto que até esse passo se havia logrado. Já de noite, portaram as canoas na Praia de uma das Ilhas (Ilha Fausto - 7°39’25,57”S / 62°56’18,23”O); com doze horas de caminho, em que se andara cinco léguas.

No dia 8 de dezembro, por ser dedicado ao sagrado mistério da Conceição puríssima da Virgem Senhora, a cuja soberana proteção havíamos dedicado o Arraial da fábrica das canoas, de comum acordo se destinou a manhã deste dia a ouvir Missa somente e, com efeito, executado este projeto, se fez viagem só de tarde no rumo de Sueste e Sul, e com seis horas de caminho se andara duas léguas.

A 9 (dezembro), principiando viagem, pelas 3 horas da manhã, se passou à parte esquerda do Rio, e foi prosseguindo caminho no rumo de Sul e, passada a primeira enseada, se continuou a Sueste na segunda, cuja ribanceira era alta de terra vermelha, e a meio barranco (7°58’34,72”S / 62°52’2,02”O) saía uma fonte de água cristalina e de bom gosto, que se despenhava até o Rio; no fim desta terra desembocava um Lago, e defronte principiava uma Ilha, entre a qual e a terra mediava canal estreito e, passando ao mais largo, que era da parte direita, se navegou no rumo de Sueste, e logo ao Sul, onde portaram as canoas já noite na Praia de uma

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Ilha (7°48’38,28”S / 62°55’37,05”O) que havia no meio do Rio. Neste dia, em 12 horas de caminho, se andara 4 léguas nos referidos rumos.

No dia dez (dezembro), saindo da dita Ilha no rumo do Sul, logo se passou ao Sudoeste, e com três horas de caminho, em que se andara uma légua, se chegou neste rumo à boca do Rio chamado Ji-Paraná (Foz - 8°2’51,74”S / 62°53’49,37”O) pelo idioma geral dos índios que, em Português, quer dizer Machado do Mar. Este nome lhe puseram os colonos por acharem neste Rio uns mariscos semelhantes às ostras, cujas conchas lhes serviam para cortar paus miúdos. Por ser este Rio o maior que, até este lugar, se havia encontrado desaguar no Madeira, foi preciso fazer nele algum exame para se individuar (individualizar), quanto fosse possível, a sua direção, grandeza, e altura do polo em que deságua. Entrega este Rio as suas águas ao Madeira por entre uma ribanceira alta: divide-se em dois braços por lhe dar esta figura uma Ilha de pouca largura, porém de dilatado comprimento, que correndo com o rumo do mesmo Ji-Paraná, dizem ser necessário dois dias de viagem para a vencer. O canal da parte de Leste tem de largura na boca entre a terra e a ponta da Ilha, 257 varas portuguesas e, o da parte de Oeste, tem 177, que todas fazem 434 boca total do mesmo Rio, o qual navegando-se por espaço de duas horas mostrou ser o seu rumo sueste, a Leste é a sua entrada. Observou-se a altura, e se achou estar a sua desembocadura em 9 graus de Latitude Austral. Sobre a origem deste Rio se fará algum discurso quando se tratar do Rio Jamari que se lhe segue. Pelas 3 horas da tarde do mesmo dia se deixou a Boca do Ji-Paraná e, continuando derrota no rumo de Sudoeste, costeando a ribanceira esquerda de barreiras vermelhas as mais altas que até este passo se haviam encontrado; e sendo preciso atravessar o Rio para buscar a Praia de uma Ilha (Assunção - 8°9’58,72”S / 63°1’57.56”O) encostada à parte Ocidental, se avistaram do meio do Rio no referido rumo umas serras, que representavam estar em bastante distância daquele lugar, e se averiguou serem aquelas, donde principiavam as Cachoeiras que de necessidade havíamos de encontrar. Portou-se com efeito na dita Praia já de noite, e com 4 horas de caminho no dito rumo se andara duas léguas.

A 11 do mesmo mês de dezembro, saindo da referida Praia de madrugada no rumo de Sudoeste, se navegou à direita, e a 6 horas de caminho se achou a ribanceira, que se costeava, ser de pedra talhada e, logo no fim dela, desembocava um Riacho pequeno, que foi habitação dos gentios Torazes; que passaram vizinhas com os Muras, onde se lhes deu a guerra, de que já se fez menção. Defronte da ribanceira de pedra, na margem Oriental, desaguava um Lago (Igarapé das Abelhas) de pouca consideração. Fazendo-se no resto do dia caminho a Oessudoeste e Oeste, portaram as canoas na Ribanceira Ocidental (meio caminho entre Rio Aponiã e Igarapé Prainha) com 12 horas de viagem, em que se andaram 4 léguas, por se haverem encontrado neste dia formidáveis correntezas.

Dia 12 (dezembro). Principiou-se a navegar a Oeste à parte direita, e a uma hora de caminho se chegou a uma ribanceira de pedra em que havia grande correnteza, e foi preciso retirar dela e buscar a margem esquerda, que se navegou com menos trabalho e, seguindo ao rumo do Sul, se achou desaguar por aquela parte um Riacho de pouca entidade. Fronteira à sua Boca, uma grande Praia, que já se ia povoando de arvoredo que, em breves anos, a constituirá Ilha (8°16’4,13”S / 63°21’47,94”O): por entre ela e já a terra da parte direita se prosseguiu derrota no mesmo rumo do Sul, e antes

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de sair do canal se observou desaguar um Riacho, no qual esteve situada a Aldeia de Santo Antônio, e hoje se chama Aldeia de Trocano, de que já se fez menção. Este Riacho se chama Aponiao, e por ele dizem haver boas terras para lavouras: não é caudaloso, e a sua direção é para Oeste. Logo se seguiu a passagem de 4 Ilhetas com suas praias, por entre as quais se dividia o Rio em vários braços, e pelo maior que era à parte direita saíram as canoas a enseada, e virando a ponta dela já noite portaram as canoas com onze horas de caminho, em que se andara 4 léguas nos ditos rumos de Oeste e Sul.

No dia 13 (dezembro), ao rumo de Oeste, se principiou viagem por entre a terra da parte direita e uma Ilha chamada do Tucunaré, fronteira a ela era a ribanceira da parte esquerda de barreira vermelha, e no fim dela deságua o Lago chamado também Tucunaré; passada a Ilha deste nome, se seguiu logo outra, que se principia a formar em uma Praia no meio do Rio, por onde navegando ao Sul se avistou a boca do Rio Jamari (8°26’57,01”S / 63°29’54,68”O), para a qual se atravessou no rumo de Susudoeste, e pelas dez horas da manhã se portou nela com cinco horas de caminho, em que se andaria 3 léguas sem correnteza. Este Rio Jamari é de maior nome no Pará, do que outro qualquer dos que deságuam no Madeira, e a razão por que este Rio tem grande abundância de cacau silvestre, que os moradores do Pará vêm colher no tempo de estar sazonado, juntando-se para este efeito quatro e cinco canoas para incorporadas resistirem às invasões dos Muras e, quando não pode haver esta sociedade, toda aquela grande colheita se perde, exposta ao uso dos bárbaros e desperdício dos animais. Entra-se neste Rio no rumo de Sueste, e depois a Leste até chegar ao Norte, encaminha-se outra vez ao Sueste, que será provável ter este por legítimo rumo. Esta conjetura se fez em duas horas de caminho, em que se foi por ele acima logo que portaram as canoas.

Não tem correnteza de consideração: as suas águas são cristalinas e gratas ao paladar, especialmente dos que andavam habituados à água turva do Madeira, que nas do Ji-Paraná e agora nestas do Jamari acharam uma transitória recreação. Deságua o Jamari no Madeira com 240 varas portuguesas de largura na sua barra, que se acha em 9°20’ de elevação Austral, segundo constou pela observação do quadrante feita neste dia em horizonte bem proporcionado. Nesta ocasião se discorreu a respeito das origens deste Rio e do Ji-Paraná, servindo de fundamento as notícias que davam dois moradores do Mato Grosso, que faziam viagem na escolta dizendo que, pelo rumo que levava o Madeira ao Poente, presumiam ser um dos dois Rios mencionados, um que com nome de Rio das Candeas tinha as suas cabeceiras ao Norte das do Rio Galera, que fazia barra no Aporé, com a diferença que o Candeas de necessidade havia de cortar de Leste para Oeste a buscar o Madeira, a Leste de serrania geral, e a Oeste da mesma cordilheira; quase de Norte a Sul caminhava o Galera a entrar no Aporé; e o não haver nesta controvérsia é por se ter navegado todo, e o Candeas somente as suas cabeceiras.

Nesta dúvida se apelou para a experiência examinando toda a margem Oriental com atenção até se topar outra Barra de Rio, que igualasse com a dos dois antecedentes para dar mais opositores às origens do Candeas; aliás continuar no Ji-Paraná e Jamari a contingência referida. A Seu tempo se tratará desta matéria com mais individuação e clareza.

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Dia 14 (dezembro). Continuou-se viagem no mesmo dia saindo da boca do Jamari e, no rumo de Sudoeste, pela uma hora da tarde, se costeou à esquerda, e às 4 horas da tarde indo a rumo de Sul sobrevieram umas trovoadas grandes, que obrigaram a tomar Porto na Praia de uma Ilha (Jamarizinho - 8°34’14,44”S / 63°38’31,44”O) encostada à margem esquerda, e ali se pernoitou. Andaram as canoas pouco mais de uma légua. A razão que houve para a demora de quase um dia no Jamari foi porque além das averiguações que nele se fizeram, requererão os índios a limpeza da sua roupa, por não haver tão cedo esperanças de achar água limpa.

No dia 15 (dezembro), ao romper da manhã saindo da Ilha mencionada no rumo de Sudoeste se prosseguiu derrota costeando à esquerda e, passada uma pequena enseada, se entrou a navegar outra nos rumos de Sul e Sueste por entre uma Ilha e a terra, cuja ribanceira era de pedra que finalizava com uma restinga, em que havia grande correnteza, e para desvio dela foi preciso passar à direita; e no rumo de Sudoeste, ficando as pedras já pela popa, se passou outra vez à esquerda a horas de meio-dia, e no meio de uma pequena enseada de terra sólida desaguava um regato, no qual logo à entrada esteve fundada a Aldeia já referida do Trocano, a primeira vez que se desceu a sua gente do mato, contiguo à segunda Cachoeira, de que depois se fará menção. Neste lugar se acharam ainda bastantes limões, laranjas, bicaes e outras frutas, que se produzem naquele lugar desde o tempo que ali houve a dita habitação. Daqui se buscou, no rumo de Sudoeste, uma Ilha grande, passada a qual portaram as canoas já noite na Praia da sua última ponta. Neste dia, com oito horas de caminho, se andara 3 léguas.

Dia 16 (dezembro). No rumo de Oeste se principiou viagem costeando à esquerda; defronte da Praia desaguava, da parte direita, um ribeiro de pouca nota, e logo na mesma enseada um Lago. Prosseguiu-se caminho no rumo de Sudoeste em um dilatada enseada e, passando à direita para livrar de grandíssima correnteza, se caminhou a rumo de Oeste, e nele se portou em uma Praia que havia no meio do Rio, na qual havia imensidade de criação de tartarugas de que se fez bastante provimento, e foi a última fartura que ofereceu o Madeira desta espécie de peixe, pois a não há daí para diante, em que principiam as Cachoeiras. Neste dia, em 6 horas de caminho, se andara duas léguas e meia nos rumos referidos, sendo o principal Sudoeste.

No dia 17 (dezembro) se principiou viagem no rumo de Sudoeste, costeando a direita de uma enseada, no fim da qual, ao voltar para outra, se achou uma correnteza tão violenta (resulta de uma restinga de pedras que ali havia) que por nenhum modo se pôde vencer: atravessou-se à parte esquerda e, vencendo-se alguns baixos de coroas de areia, se navegou um pequeno espaço a Oeste, e logo a Sudoeste e Sul uma mui dilatada enseada, no fim da qual entrando em outra a Sudoeste, se avistou neste rumo a primeira Cachoeira, e no mesmo se chegou a portar junto dela pelas cinco horas da tarde; em 8 horas do caminho se andara 3 léguas. A ribanceira da enseada que ia topar na dita Cachoeira é de terra alta que principia em uma ponta de pedras da parte esquerda. Tem bom arvoredo, e mostrava toda porção de terra ser capaz de habitação e lavoura.

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Breve Notícia das Serranias de que Procedem as Cachoeiras do Rio da Madeira

Como há de ser mui preciso neste Diário o falar repetidas vezes na cordilheira donde resultam as Cachoeiras do nosso Rio, pareceu conveniente antes de entrar a descrevê-las oferecer neste lugar uma ideal da extensão daquelas serranias assim pelo que constou ocularmente no progresso da viagem nas partes, em que ou pela sua vizinhança com o Rio, ou pela sua grande elevação mais ao centro se deixavam avistar, como também pela indagação que se fez dos rumos que traz desde a sua origem, segundo noticiaram pessoas fidedignas, que viajaram grande parte do dilatado terreno que elas ocupam.

Ainda que entre os Expositores sagrados se ofereça a questão, se existiam já ou não no mundo as serras e montes, que por todas as quatro partes cingem a sua grande máquina, antes do dilúvio universal; contudo, ou fosse obra da criação (que será o mais provável) ou desafogo da natureza, quando se viu oprimido o globo com aquela inundação geral das águas, sempre estes gigantes da terra que muitos chegam a competir com as nuvens, são objetos dignos de se admirar nelas a grandeza de Deus Artífice Supremo das maravilhas criadas: e assim todos sabem pelas histórias antigas e modernas, sacras e profanas, o quanto o mundo está povoado destes prodígios da natureza.

E passando dos termos expressivos aos figurados, em todas as Cartas Geográficas, ou sejam universais ou particulares, fazem os seus autores uniformes demonstrações das serras e montes mais célebres, que em diversas posituras se dilatam pelo antigo e novo mundo. Nesta certeza se tratará aqui somente das que fazem congruência ao intento acima expressado.

Os historiadores de melhor aceitação e os Geógrafos mais pontuais descrevendo e delineando a celebre cordilheira dos Andes, lhe conferem a larguíssima extensão que há desde o Estreito Magalhânico até a Nova Espanha discorrendo por toda a costa de Chile, Peru e Istmo de Panamá, cuja vasta direção compreende mais de mil léguas de terreno; certificando ser a sua elevação em partes tão excessiva que dizem não a podem superar com o vôo as mais ligeiras aves.

A esta muralha levantada pela natureza como para defender a terra das invasões do grande Mar do Sul, que dos empedernidos retiros da sua agigantada estatura se desentranham os tesouros de ouro e prata, que faz a opulência das Índias Ocidentais, que enriquece a Monarquia Castelhana, corresponde outra cordilheira não menos avultada na grandeza, nem menos abundante de preciosos metais e pedras finíssimas, brilhante adorno com que se esmalta a Real Coroa da Majestade Augusta Portuguesa, que fazendo frente ao Mar do Norte costeando todo o Brasil desde a Capitania do Ceará, caminhando ao Sul faz o Cabo de Santa Maria, Promontório que termina a ponta Setentrional, por onde desemboca o grande Rio da Prata no Mar do Paraguai.

Esta direção traz a serrania, quando em altura de 23 graus de Latitude Austral, logo ao Sul da Vila de Santos, lança outra cordilheira desde o lugar chamado serra do Mar, que penetrando o sertão em vários rumos se ramifica por todo o continente das Minas Gerais e Goiás.

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Nas vizinhanças da cidade de S. Paulo principia esta serrania a fertilizar a terra com copiosas águas, dando (entre outros muitos) nascimento ao Rio grande nomeado nas Cartas estrangeiras Paraná, o qual, caminhando a Oeste, se junta com o Paraguai, não sem alguma competência no disputar a primazia de Madre Geral daquelas imensas águas: contudo ele perde o nome no Paraguai em altura de ... (omitido no original) graus de elevação Austral.

Na mesma serrania tem suas Origens o famoso Rio de S. Francisco que, recolhendo em si as águas de outros muitos Rios, que têm suas fontes na mesma cordilheira discorre com um meio círculo ao Norte, e se entrega ao Oceano Brasiliense entre o Cabo de Santo Agostinho, e a cidade da Bahia em altura de ... (omitido no original)

Finalmente depois que desta cordilheira nasce no Distrito de Goiás o célebre Rio Tocantins, que se engrossa com grande número de Riachos vertentes da mesma serrania, se encaminha esta ao rumo de Oeste, e como se fosse uma baliza terminante dos domínios que pagam fluído tributo ao Oceano, reparte em distância de mais de duzentas léguas as águas em caudalosos Rios, uns que buscam no rumo do Norte terminar seu curso no célebre e grande Rio das Amazonas, e outro para o Sul a fazer o Rio da Prata ou Paraguai, como se dará noticia individual em lugar mais oportuno.

No referido rumo de Oeste, fazendo vários meios círculos de montanhas, e lançando muitos braços para o Sul (não consta que também para o Norte), se vai dilatando a serrania até finalizarem os Campos Paricizes, que deixa da parte do Norte paralelos às Fontes dos Rios Madeira e Jahurí, como a diante se fará mais distinta menção; e buscando a margem do mesmo Madeira, deixando o rumo de Oeste, acompanha este Rio no de Oesnoroeste por espaço de mais de cento e oitenta léguas.

Voltando com o mesmo Rio para o Nordeste por espaço de sessenta léguas, forma as Cachoeiras, que adiante se descrevem, até que na altura de 9 graus de Latitude Austral, em que deixa as primeiras, busca o rumo de Oeste , em cuja direção se perde de vista; e será provável se irá unir com as serras do Peru, que fazem a mencionada Cordilheira dos Andes.

A imensidade de Nações gentílicas que habitam a fragosidade (áreas de penhascos) da parte superior e interior destas serranias com mais inclinação à sociedade das feras que à dos homens, pede um Tratado particular, que faria grande volume para se noticiar ao mundo a muita parte que ainda há daquele infeliz Paganismo, do qual neste Diário se fará memória breve onde for conveniente, como também da abundância de riquezas, de que nesta serrania tem havido descobrimentos, os quais ainda se espera continuem nas partes em que a mesma cordilheira é mais Ocidental no Distrito de que tratamos.

Com o nome de cordilheira das Gerais ou Chapada Grande se apelida esta serrania pelos moradores do Cuiabá e Mato Grosso, e de uma ou outra denominação se usará no progresso deste Diário.

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Descrevem-se as Cachoeiras do Rio da Madeira Principiadas a passar no Dia 3 de dezembro de 1749.

PRIMEIRA CACHOEIRA (Santo Antônio)

Chegando, no dia 17 de dezembro, pelas 4 horas da tarde, à vizinhança da Cachoeira chamada pelos índios Aroaya, e pelos Portugueses de S. João, se mandaram os índios mais experimentados em uma canoa a examinar qual dos canais, que fazia o Rio por entre morros de pedras, seria mais capaz de se poder passar com menos perigo: e pela informação que deram, se averiguou ser conveniente puxar as canoas pela margem esquerda e não pela direita, porque pelo meio ela impraticável; e da mesma sorte pela parte direita se fazia igualmente perigoso, em razão de ter já o Rio principiado a encher, e descarregar por aquela margem maior peso de correnteza do que pela esquerda: concordado este parecer se empreendeu no dia seguinte a passagem, que foi com trabalho , mas feliz sucesso.

Desde que se entrou a navegar o Rio da Madeira a este lugar da primeira Cachoeira, se achou serem ambas as margens alagadiças, que nos meses de cheia se inundam todos os anos em distância de uma e duas léguas para o centro de cada parte conforme a quantidade de água que chove nos invernos, que uns são mais copiosos do que outros, donde resulta a imensidade de Lagos, que na vazante do Rio ficam por ambas as margens, de sorte que sendo raras as partes em que a terra se levanta mais do ordinário (que nunca chega a mostrar uma légua de ribanceira alta) sempre se acham estas pequenas distâncias cercadas de Lagos, em forma que mais parecem ilhas do que terra firme; porém indo-se avizinhando à primeira Cachoeira já a ribanceira alta corresponde com o centro, e não dá lugar a inundações, e nesta parte principiam as serras da cordilheira geral a quem navega Rio acima, e finalizam aos que rodam para baixo. E estas mesmas serras são as que se haviam avistado.

Essas serras se dilatam por uma e outra margem a vários rumos, e por entre elas faz caminho o Rio Madeira, e como sejam compostas de morraria de pedra, assim mesmo oferecem as suas extremidades a correnteza do Rio, de maneira que na primeira Cachoeira se observou fazer a terra uma pequena enseada da parte Oriental composta de morros de pedras (Corredeira dos Macacos), os quais atravessando o Rio formam nele duas Ilhas, uma delas maior e com arvoredo alto em distância de 200 braças da terra firme da banda esquerda, e outra menor e quase escalvada, que se opõe ao meio da correnteza do Rio. Da parte Ocidental principia uma dilatada enseada, e na ponta oposta à Oriental há semelhante pedraria da mesma qualidade e positura que a já referida.

Por entre as duas Ilhas e as duas pomas de terra firme, rompe a correnteza do Rio oferecendo à vista um espetáculo igualmente formidável e alegre; porque atendendo à valentia, com que a água para atropelar os impedimentos que se lhe opõem em parte, se precipita dos penedos, e saindo por entre outros já despedaçados vai formando em diversos giros varias fenômenos em rodamoinhos (redemoinho) e fervedouros, até sonegar em remansos mui quietos nas enseadas, em cuja tranquilidade se está debuxando o arvoredo sempre viçoso das margens. Tudo junto dá assunto à contemplação para o recreio; porém oferece aos viajantes horríveis objetos para o temor.

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Nestes termos, três são os canais que se acham nessa Cachoeira: pelo do meio ainda ninguém passou, nem pode sem acabar infalivelmente na empresa; pelo da parte direita, em tempo de seca, vai qualquer canoa sem perigo; porém, em tomando o Rio as primeiras enchentes, não resta mais que o canal da parte esquerda, que em tempo seco não tem água, e ainda na força de roda a cheia é por onde melhor se pode navegar. No tempo presente, como era princípio das primeiras águas, já neste canal havia a que bastava para se puxarem as canoas; o que se executou no dia 18, depois de celebrar-se Missa em obséquio da Senhora do Ó, cuja festividade celebrava a Igreja.

Dois puxadouros se ofereciam pela parte referida ambos por entre pedras, porém com a diferença que, pelo primeiro, podiam ir as canoas carregadas levadas à sirga com grande cuidado; o que se venceu em 4 horas de trabalho: e chegando a um remanso junto ao outro puxadouro, se descarregaram as embarcações, e conduzidas as cargas por cima de imensidade de pedraria em distância de 200 braças, se deixaram em parte conveniente, aonde já sem perigo se havia de embarcar. Feito este serviço, se entrou na diligência de transportar as canoas pelo último resto do canal, que era a quebrada de um morro, por onde saía água em altura de dois palmos com pouca correnteza, e teria de distância 30 braças; para o que foi preciso fazer estivas de madeira para salvar as canoas de alguma ruína, que lhes podia suceder nas pontas das pedras, que ainda não estavam cobertas. Com esta prevenção se puxaram as canoas com bom sucesso, e ficaram por toda a tarde transportadas a lugar seguro já livre dos perigos deste primeiro impedimento, e cada uma com a carga que lhe pertencia para no dia seguinte fazerem viagem.

A 19 (dezembro), já dia claro, se principiou viagem pelo remanso que havia entre o resto da Ilha e a terra firme da parte esquerda no rumo de Oesnoroeste; e em menos de meia hora costeando a Oeste se avistou a Cachoeira pela parte de cima, em que mostrava os primeiros princípios da água que cabia entre duas Ilhas e o canal da parte direita, que na verdade fazia muito mais funesta representação do que a já referida. Costeando a mesma margem esquerda, se acharam a uma hora de caminho, indo no rumo de Oessudoeste, encostados à terra, dois morros de pedra, um dos quais formava uma Ilha, e dela se prolongavam pedras até meio Rio, aonde fazia bastante correnteza, que se venceu a remo e, a não estarem já as pedras do meio bem cobertas de água, haveria aqui novo trabalho como de Cachoeira.

Desta parte, se atravessou à direita, costeando a qual se topou ainda à vista do morro antecedente outro mui semelhante, menos em formar Ilha, porém maior correnteza, que se não pode vadear se não a corda e com algum perigo: neste lugar havia na terra firme muitas árvores de cacau frutífero e já quase sazonado, e muito castanhal, e outras árvores de frutas do mato, que os índios comem. Vencido este passo, se principiou a ouvir o estrondo das águas da célebre Cachoeira chamada Gamon, e costeando a mesma parte direita nos rumos do Sudoeste e Sul, levando já por guia o ruído das referidas águas se avistou na volta do Susueste aquele promontório de água, que se despenhava por toda a largura do Rio, e no mesmo rumo chegamos a ela pela 4 horas da tarde: e em seis horas de caminho se andaram 3 léguas desde a 1ª Cachoeira até esta.

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SEGUNDA CACHOEIRA (Salto do Teotônio)

Da parte Oriental e Ocidental forma o Rio duas enseadas correspondendo uma a outra, de sorte que parece se fecha o Rio em um círculo igualando as pontas de cima fronteiras uma a outra no rumo de Noroeste e Sueste. Ambas estas pontas se formam cada uma de um morro de pedra sólida, e se comunicam ambas, fazendo como uma muralha desmantelada, por cujas ruínas, precipitando-se a água do Rio com furiosa violência, resulta um espantoso estrondo, que a haver nas suas margens povoações, seria provável padecerem os seus habitantes à surdez que dizem sucede aos que vivem junto das catadupas do Nilo. Neste impedimento que acha o Rio e rompe com tão furioso estrépito, não há caminho algum para os homens vencerem este passo por canais ou remansos; porque estes não os há junto às pedras, e aqueles se não percebem porque, entre as quebradas dos rochedos, tudo são fervedouros de água, que apenas se chegou a eles qualquer tronco por corpulento que seja, em um instante o sorve, e com brevidade o expele e logo torna a sumir, até que, daí a tempo, o lança em redemoinhos de água, em que anda detido em giros por muitos dias até haver maior enchente, que lhe faça caminho para sair daquela represália. De uma a outra ponta, poderá haver de Longitude e de Latitude de água precipitada duzentas e cinquenta braças. A altura da queda em partes mostrava nesta ocasião em que já crescia o Rio, ser no mais alto até 16 braças fazendo de longe a estimativa.

Como a furiosa correnteza que despede das quedas que dão as águas pelos rochedos, encosta à parte direita do Rio, porque topa com uma Ilha e Praia que, no meio da enseada, se lhe opõe, e dá passagem ao maior peso da água entre a terra da mesma parte direita e a Ilha, tomaram as canoas o caminho da margem esquerda, e portaram em uma enseada pequena, donde como era inútil a diligência de explorar canais, se descarregaram de tudo e, depois de transportados os mantimentos e trastes por terra, rodeando o morro por espaço de 600 braças, se puxaram pelo mesmo caminho as canoas por terra sobre estiva de madeiros, em cujo trabalho se gastou dois dias; e porque algumas canoas se desconjuntaram no puxadouro, em que havia uma elevação de terra donde foi preciso maior impulso para as mover, se gastou outro dia para as refazer do dano, dando o mato vizinho estopa em um pau chamado Jacepocaia, e se lhe tira entre a casca e tronco, e só com o pequeno benefício de desfiar aquela como membrana e enxugar o desfiado fica capaz do ministério a que se a aplica, e de outro pau chamado Cumaá se tirou o suco que serviu para brear (calafetar), e é ainda melhor material que o mesmo breu para estancar as costuras, que se calafetaram com a referida estopa. A terra contígua ao morro da parte direita, que lança a penedia de que se forma a Cachoeira, é de elevação de serra, e assim vai correndo para o centro, e a extremidade dela acaba na ponta do Noroeste em que fecha a Cachoeira. Na ribanceira da enseada da parte direita antes e depois de passada a Cachoeira, há uma qualidade de terra de tão extravagante qualidade, que dela unicamente se sustentam os animais quadrúpedes e voláteis que habitam por aqueles bosques, de sorte que as Antas, Javalis, e outros animais deste gênero, e os Papagaios, Araras, Mutuns, e outros desta espécie, que se apanham para sustento dos viajantes, não se lhes acha nos buxos e papos outra coisa que manifeste a sua nutrição mais do que a referida terra, e nela se acham comendo muitas vezes os animais e já é conhecida esta qualidade de terra pelas covas que deixam os que dela se mantêm.

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Gênesis VII, 13-14: Naquele mesmo dia, Noé entrou na arca com seus filhos Sem, Cam e Jafé, e com eles sua mulher e as três mulheres dos seus filhos. Juntamente com eles, entraram os animais selvagens, segundo as suas espécies, os animais domésticos, segundo as suas espécies, os répteis que rastejam pela terra, segundo as suas espécies, e todos os animais voláteis, todas as aves, tudo quanto possui asas, segundo as suas espécies.

Animais voláteis: uma das cinco classes em que se dividiam os vertebrados, de sangue quente, a qual compreende animais voláteis, bípedes, ovíparos, de corpo coberto de penas, bico córneo e sem dentes. (Nota do Autor)

O gosto desta qualidade de caça é mais insípido do que ordinariamente tem a que se sustenta de plantas e frutas do mato. O peixe, desde que se entrou nas Cachoeiras, é de muito melhor sabor do que aquele que se pescava antes de chegar a este Distrito.

Somente a água é ainda mais barrenta pelas Cachoeiras do que antes de chegar a elas; e para se beber sem escrúpulo de que os intestinos se reformem de barro, é preciso nas vasilhas em que se toma água lançar-lhe uma porção de pedra-ume (sulfato de alumina e potassa), a qual tem a virtude de fazer precipitar todo o lodo por sutilíssimo que seja, e deixa a água clara, a qual assim bebida é de muito bom gosto, porém sempre lhe fica a qualidade de pouco diurética.

Acha-se esta Cachoeira na altura de 9°40’ ao Sul da Equinocial, e não se tomou a altura na primeira Cachoeira por não haver horizonte capaz para se fazer observação com o quadrante.

A 23 (dezembro), se principiou viagem costeando a parte esquerda no rumo de Sudoeste, e nele com pouco mais de uma hora de caminho, se achou haver uma Cachoeira já quase cobertas as pedras de que se compõe; razão por que foi fácil o vadeá-la, e se acharam canais à parte direita e esquerda, por onde com pouco trabalho se puxaram as canoas à corda. Da margem esquerda do Rio sai, neste lugar, uma ponta de pedra, que se dilata formando vários morros até atravessar o Rio à parte direita que tem três Ilhetas (8°53’23,48”S / 64°5’20,22”O) formadas da mesma pedra, que tem bastante arvoredo silvestre e, por entre estas Ilhas e a terra firme, se navegou na forma referida por espaço de meia hora no rumo do Sul e Susueste; e indo já a remo, costeando a enseada, se tornou no Sul e Susudoeste e, no fim da enseada, se acha uma Ilha (8°55’13,32”S / 64°5’20,99”O) cercada de pedras em partes de figura quase redonda no meio do Rio, e oferece passagem por entre ela e a terra firme de uma e outra parte sem correnteza nem trabalho.

Passada a Ilha, se continuou viagem virando a ponta da enseada ao rumo de Oessudoeste, e costeando a Oeste se achou ser a ribanceira, que principiava na referida ponta, uma parede de pedra talhada a prumo de bastante altura, e logo uma correnteza grande, procedida de umas pedras (8°58’41,26”S / 64° 6’16,33”O), que da mesma margem saíam até o meio do Rio, e se passou sirgando a corda com pouco trabalho.

Seguindo o mesmo rumo de Oeste, e passando a sudoeste costeando a mesma parte direita, se topou com uma Cachoeira (8°59’41,67”S / 64°8’34,83”O) semelhante à antecedente, composta de várias Ilhetas rodeadas de pedras, que se dilatavam de uma a outra parte do Rio quase Noroeste e Sueste; e como a água cobria já grande parte das pedras, nos

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deu passagem entre a terra firme da parte direita e uma Ilheta, sirgando com pouco trabalho, e o mesmo sucedeu às outras canoas da conserva que tomaram à parte esquerda; com que se veio no conhecimento de que tanto a presente Cachoeira e a antecedente tem passagem com facilidade por uma e outra parte do Rio entre a sua ribanceira e os Penedos. Daqui se foi costeando no mesmo rumo até uma enseada pequena, em que já noite portaram as canoas da mesma parte direita, e em 9 horas de caminho se andara três léguas.

TERCEIRA CACHOEIRA (Morrinhos)

No dia 24 (dezembro), se principiou viagem no rumo de Oessudoeste, atravessando à parte esquerda para livrar de uma correnteza que havia passada a ponta da pequena enseada, em que se pernoitou, procedida de umas pedras, que em pequena distância de terra apareciam fora da água porém costeando no rumo de Sudoeste uma mediana volta, se topou no meio dela com pouco mais de hora e meia de caminho com uma ponta de pedras, que se estendia até quase meio Rio, em que havia grande correnteza, a qual se passou à sirga; e costeando no mesmo rumo, por espaço de hora e meia, chegamos à Cachoeira chamada pelo idioma dos índios ... (omitido do original) presentemente respeitando a celebridade do nascimento de Cristo Senhor nosso se apelidou Cachoeira do Natal. Em três horas de caminho, se andara uma légua. Consta esta Cachoeira de duas Ilhas de pedra (9°1’44,17”S / 64°12’4.93”O) com arvoredo espesso, que ambas atravessam o Rio no turno de Noroeste e Sueste; das ribanceiras Oriental e Ocidental correspondentes a estas Ilhas, sai quantidade de pedraria, que ocupa um e outro canal entre as Ilhas e a terra firme, razão por que se oferece grande dificuldade na passagem de qualquer deles em Rio que não esteja cheio. O espaço que medeia entre uma e outra Ilha também é povoado de penedia, por onde se precipita o Rio com a maior força da sua correnteza; e por esta causa é intratável a subida ou descida por semelhante parte. Nestes termos, tendo à vista um objeto, que por todos os lados parecia formidável, noticiaram os práticos que à parte esquerda é que costumava haver passagem mais favorável, e nesta consideração se expediram os guias a examinar o canal que, com efeito, se achou em termos de se passarem as canoas em meia carga, por não estarem ainda de todo bem cobertas as pedras por onde se oferecia caminho. Descarregadas as canoas na forma referida, se executou o transporte delas, e por todo aquele dia ficaram da outra parte da Cachoeira, cada uma com a carga que lhe tocava, com o que se venceu uma grande correnteza, que restava na enseada e, concluída, portaram as canoas na ribanceira da parte esquerda. Logo que amanheceu, se buscou lugar acomodado para celebrar Missa, e não se ofereceu outro mais apto e a propósito, do que uma pequena Praia que havia na Ilha da parte do Noroeste, já salva a Cachoeira; e para aquele lugar se atravessou o Rio, no dia 25, pela manhã, até o sítio mencionado, em que se ouviram as três Missas permitidas na celebridade do Sagrado Nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Neste dia 25 (dezembro), pelas três horas da tarde, se continuou viagem atravessando à parte esquerda e costeando no rumo de Oeste, Oessudoeste, e Sudoeste, foi preciso com três horas de caminho atravessar à parte direita, aportar em uma pequena Praia; o que se executou já de noite, e se andara nas ditas três horas légua e meia.

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A 26 (dezembro) depois de se ouvir Missa, se principiou viagem às sete horas no rumo de Susudoeste, atravessando à parte esquerda, e costeando ao Sul entre uma grande Ilha (Liverpool - 9°6’42,69”S / 64°20’11.05”O) e a terra se navegou outra vez ao Sudoeste até chegar a uma ponta de pedra em que principiava uma dilatada enseada, na qual se encontraram três Ilhas (9°9’56,68”S / 64°22’23,12”O)que corriam ao comprimento do Rio, por entre as quais havia grande correnteza, a qual se embravecia em partes onde nas pontas das mesmas Ilhas topavam pedras; e sem embargo destes embaraços, se portou já noite em uma Praia no meio do Rio contígua à última das ditas três Ilhas, e em dez horas de caminho se avançaria dele 4 léguas.

Na dia 27 (dezembro), se continuou viagem atravessando à parte direita do Rio; e no rumo de Oeste se foi costeando por espaço de uma hora, e depois se navegou a Oesnoroeste, e logo outra vez a Oeste, e deste rumo se foi passando em breve espaço ao do Sudoeste e Susudoeste; e nesta volta se avistaram umas serras altas, que mostravam correr de Leste a Oeste, na ponta de uma das quais se achava a Cachoeira para onde se dirigia a derrota, na qual se passaram duas Ilhas, uma da parte direita do Rio que se prolongava ao meio dele, e outra à parte esquerda junto à terra, e corria com a volta da enseada; e continuando esta no mesmo rumo de Sudoeste, se avistou a 4ª Cachoeira, e portaram as canoas à parte esquerda já noite em uma pequena Praia junto à ribanceira; e em dez horas de caminho se andara neste dia 4 léguas.

QUARTA CACHOEIRA (Caldeirão do Inferno)

Chegou o dia 28 (dezembro) e, depois de se celebrar Missa, se costeou à parte direita uma pequena enseada ao Sudoeste, e a ponta em que terminava se compunha de pedras que avançavam até ao meio do Rio, por entre as quais se navegou com bastante trabalho contra uma grande correnteza que havia neste lugar; e logo que se voltou a ponta, portaram as canoas junto à Cachoeira chamada pelo idioma dos índios Guará-açu (9°15’56,94”S / 64°38’50,59”O), que quer dizer Guará grande (Guará é um pássaro do tamanho de uma gaivota, e todas as penas de que se veste são de cor escarlate mui vivo), e ali se esperou o exame dos canais para saber-se por qual era mais conveniente passar.

Compunha-se esta Cachoeira de um labirinto de Ilhas cercadas de morraria de pedras, que atravessam o Rio de uma a outra parte no rumo de Noroeste e Sueste, em distância de quase meia légua, que tanta largura faz o Rio naquele lugar, porque forma duas enseadas ou baías de ambas as partes correspondentes na concavidade.

Quatro Ilhas têm a sua positura ao comprimento do Rio, que faziam frente à imensidade de outras mais pequenas que mediavam aos vãos, seguindo o mesmo rumo em distância de quase três quartos de légua em Latitude todas de rocha viva, em cujas superioridades produzem arvoredo cerrado e sumamente agreste.

Todas ramificam de si tanta cópia de penedos, que não tem o Rio desafogo algum, mais do que por entre imensidade de pedras fazer vários precipícios, e destes resultarem redemoinhos de água que costumam ser sumidouros de tudo o que neles se mete, ou seja canoa, pau, ou outro qualquer corpo capaz de padecer a desgraça de ser levado ao fundo com incrível violência.

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Em tempo que o Rio está de meia enchente, e até esta ser completa, que estejam muitas pedras, ou todas cobertas no canal entre a terra do Sudoeste e a Ilha imediata, há por este lugar suficiente passagem; porém na ocasião presente em que a água principiava a crescer, tudo por esta parte eram precipícios de água e sorvedouros. Pelos canais do meio não havia que tratar por ser mais formidável a saída das águas com a violência de toda a correnteza, razão por que se buscou o recurso de se explorar o canal da parte de Noroeste, e nele costeando a Ilha contígua se achou passagem, mas a mais trabalhosa que até este lugar se havia experimentado. Três são os canais que, por entre as quatro Ilhas, fazem passagem no Rio com a violência mencionada; porém como em distância de 50 braças pouco mais ou menos se lhe opõe uma Ilha de pedras que atravessa o Rio no mesmo rumo de Noroeste e Sudoeste, nela quebram as águas a fúria com que rompem por entre os penedos dos canais referidos; e pela parte inferior da mesma Ilha faz a água um sossegado remanso, pelo qual atravessaram as canoas à parte do Noroeste; e costeando a Ilha que corre ao comprimento do Rio, se acham nela duas pontas de morros de pedras, por entre as quais se puxaram as canoas, em cujo serviço se gastou a tarde do dia 28, e ali se esperou o seguinte para continuar a passagem de maior perigo.

No dia 29 (dezembro), se navegou pelos remansos que mediavam entre as correntezas da terra firme e da Ilha, e se intentou a passagem de uma ponta de pedras, que havia em outra Ilha fronteira à mencionada, por onde se podiam puxar as canoas em meia carga, e deste transporte passava a um remanso mui dilatado, que mediava entre este lugar e outras Ilhas da parte de cima, e por ele se podia passar sem perigo à outra margem do Rio a vencer o último salto que nela se oferecia; porém, ao varar a primeira canoa em meia carga, havendo desordem nos índios em puxar pelas cordas sem que os mandassem, pois ainda não estava desviada de uma pedra em que fazia o maior cachão de água, a fizeram montar com impulso intempestivo de proa em cima da pedra, e logo inclinando o todo para a parte da correnteza, se encheu de água, de sorte que não houveram forças para a sustentar. Largaram-se as cordas e, em um instante, levou a correnteza a canoa até um remanso que fazia detrás de outra Ilha, onde com toda a diligência se achou aboiada; rebocou-se para terra, descarregou-se, e desalagou-se sem nela haver mais perda que molhar-se o trem que nela havia embarcado, e a razão de ser este sucesso menos funesto do que podia acontecer na perda de tudo, foi ser a canoa (como também eram as mais) fabricada de pau que não vai ao fundo em semelhantes acasos.

Por ocasião desta desordem, foi preciso demorar o dia 30 e 31 (dezembro) para se enxugar roupas e beneficiar os mantimentos que se haviam molhado, e no dia 1° de janeiro do novo ano de 1750, se mudou de derrota passando outra vez à Ilha, que no dia 29 se havia costeado, e descarregando de tudo, as canoas passaram à corda duas pontas de pedras, em cujo trabalho se gastou até as 4 horas da tarde, tempo em que, pelo remanso que havia entre o grosso da Cachoeira e as últimas Ilhas de pedra, se atravessou à parte Oriental do Rio, e ficaram portadas as canoas junto do último impedimento desta Cachoeira, que era um canal entre morraria de pedra que saía da terra firme, e outro semelhante promontório, que se comunicava de uma das Ilhas em que finalizava o labirinto das que compunham esta trabalhosa Cachoeira.

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Chegando o dia 2 (janeiro) se descarregaram de todo as canoas, e com bom sucesso se puxaram por cima das pedras mal cobertas do canal, onde foi preciso fazer estivas de madeiras grossas para evitar o dano que podia resultar das pedras, e para suavizar uma pequena elevação que elas faziam em distância de cinco braças. Transportadas as canoas, e já carregadas da outra parte da Cachoeira, se entrou a navegar pelas duas horas da tarde do mesmo dia, costeando a terra da mesma parte Oriental. Desde a primeira passagem até esta última, haverá meia légua de Longitude, e um terço de Latitude.

QUINTA CACHOEIRA (Jirau)

No mesmo dia, pelas três horas da tarde se continuou, com efeito, viagem costeando à esquerda no rumo de Oeste, e logo a Sudoeste se avistou, à parte direita do Rio, umas serras que lhe faziam margem, e corriam para Oeste: eram de bastante altura, e povoadas de áspero arvoredo mui serrado; e chegando a uma enseada já no rumo de Susudoeste, se encontrou uma mui furiosa correnteza ocasionada de uma restinga de pedras, que com grande trabalho se passou sirgando as canoas e, tomando o rumo do Sul, se avistou a Cachoeira chamada ... (omitido do original) e se chegou a ela com 4 horas de viagem.

É esta Cachoeira ( Jirau - 9°19’34,95”S / 64°43’52,39”O) a mais terrível que até aqui se havia encontrado; porquanto continuando as serras antecedentes à margem direita deixam neste lugar tão grande e desordenada porção de penedos por toda a largura do Rio, que não dão outra passagem às águas, mais do que elas podem fazer atropelando aquela descomposta máquina por mais de 800 braças de comprimento sem canal algum por onde se pudesse passar canoa, ainda que fosse à custa de todo o trabalho; em cujos termos não houve outro arbítrio, senão o descarregar as canoas e vará-las por terra pela margem esquerda até salvar toda a referida distância de impedimento.

Dois dias se gastaram em estiva o caminho de troncos para sobre eles rolarem as canoas, e como a terra era com bastante elevação, e semeada de penedos em distância de um terço de légua, se consumiram outros dois dias em transportar as canoas e suas cargas, em cujos termos no dia 7 é que houve lugar de prosseguir viagem, levando 4 dias de imenso trabalho esta Cachoeira importuna.

Com efeito, no dia 7 (janeiro), ás 6 horas da manhã, se principiou viagem no rumo do Sul costeando à esquerda, e logo se topou com uma restinga de pedra (relíquia ainda da Cachoeira antecedente) bastantemenre custosa de passar porém, vencida que foi, se costeou a Oeste uma dilatada enseada, que à parte direita continuava a mesma serrania, mas de menos altura que a antecedente, e seguia o mesmo rumo de Oeste.

Acabada a dita enseada, se entrou a costear outra no rumo do Sul, no princípio da qual da mesma parte esquerda havia na ribanceira a célebre terra, que costumam comer a aves: logo se passou a Sudoeste, e no rumo de Sueste com 10 horas de caminho portaram as canoas já de noite, e se andara 3 léguas.

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SEXTA CACHOEIRA (Três Irmãos)

No dia 8 (janeiro), pelas 6 horas da manhã, se principiou viagem no rumo de Susueste, e logo Sueste, e Sudoeste por duas enseadas no fim das quais se entrou uma grande Ilha (9°35’16,26”S / 64°54’7,58”O), que dividia o Rio em dois canais: o da parte direita se via embaraçadíssimo com morros de pedra, por onde despedia a água com tal violência, que se encontrando com a que saída do canal da parte Oriental resultava uma rápida e furiosa correnteza, que da ponta da Ilha se dilatava Rio abaixo em bastante distância.

Costeando à parte esquerda, se entrou com bastante trabalho o que por ela se seguia no rumo de Susudoeste; e com 10 horas de caminho se andara duas léguas, e portaram as canoas na Ilha referida já de noite.

Dessa Ilha e da terra firme de uma e outra margem saem as pedras, que fazem a Cachoeira chamada Arapacoá, razão por que, no dia seguinte, que se contam 9, se continuou pelo mesmo canal no rumo de Susudoeste e Sudoeste, costeando a Ilha até chegar à última ponta, onde é o grosso da Cachoeira, em cujo lugar se repartem as águas para os dois canais referidos e, ao sair do que se navegava, se passou à Cachoeira a remo, vencendo somente as correntezas, que resultavam das pedras já cobertas de água, por cuja razão se facilitou aquele passo, sem mais trabalho que o referido de remo.

Desde a ponta da Ilha da parte Ocidental, corria ao longo do Rio, a mais alta serrania que até aquele lugar se havia notado. Seguiam estas serras a mesma direção que as antecedentes de Leste para Oeste, e com elas pela ribanceira da parte direita se foi costeando à esquerda no mesmo dia 9 no rumo de Oeste, Oesnoroeste e Noroeste; e com 10 horas de caminho se andaram duas léguas e meia.

A 10 (janeiro), se principiou viagem costeando à esquerda no rumo de Oessudoeste, continuando as serras da parte direita a direção acima mencionada. Por uma quebrada que elas faziam, corria um Ribeirão, na boca do qual se achavam seis canoinhas de casca de pau postas em resguardo, indício certo de que no interior daquele lugar havia gentio, que nas tais canoinhas navegavam o Rio, quando lhes era necessário. No mesmo lugar se lhe deixaram e continuando viagem já ao Sudoeste com 4 horas de caminho, em que se andara légua e meia, se esconderam as serras para o centro no seu rumo de Oeste.

Prosseguiu-se viagem a Oeste deixando no meio do Rio, depois de passadas as serras, uma grande quantidade de pedras ainda mal cobertas, que ocasionavam grande correnteza e, vencida esta, se deu princípio a passar as primeiras correntezas, que resultam da Cachoeira que se achava próxima.

SÉTIMA CACHOEIRA (Paredão)

Não foi possível naquele dia ou tarde dele avançar mais caminho do que levar as canoas à sirga por duas pontas de pedra com grande trabalho, e se portou em uma pequena enseada com dez horas de jornada, em que se andara duas léguas e meia.

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No lugar em que se ofereceu a primeira ponta de pedra acima mencionada, na margem esquerda, sai um canal grande entre a terra firme e uma Ilha (9°34’58,56”S / 65°9’29,49”O) que se prolonga ao comprimento do Rio, a qual tem por fundamento rocha viva que, lançando para um e outro canal quantidade de pedras de monstruosa grandeza, deixa o da parte Ocidental intratável à navegação, por que a Lagoa nele não tem outro desafogo mais do que precipícios em tão confusa positura, que nem a vista podia fazer exame daquele intrincado passo. O canal da parte esquerda, que seguimos, o povoou de sorte sem penedos que, despedida deles a água com grande fúria, se ia encontrar com a que corria junto à ribanceira também de pedra com restingas que, do encontro destas duas furiosas correntezas, resultava uma série continuada de sumidouros, que cada instante uns em cachões, e outros sumiam ao fundo as águas, e tudo o mais que pudessem atrair. Por espaço de um terço de légua, se dilatava este espantoso caminho e, passado ele, se oferecem logo três Ilhetas de rochedo, onde batem as águas precipitadas do grosso da Cachoeira chamada Paricá, e por entre as Ilhetas correm tão furiosas, que a acrescendo-lhes o encontro de umas com as outras, ocasionam terríveis correntezas e fervedouros, como os antecedentes, que já à vista dos precipícios da Cachoeira e estrondo que delas resulta, fazem mais formidável aquele fluído espetáculo. Donde se remata a enseada que principia na primeira ponta de pedra acima mencionada, se levanta um promontório de agigantados penedos que, dilatando-se até meio Rio, dão lugar por algumas quebradas que a água faça precipitado caminho por elas. Na mesma direção destes penedos, se segue uma Ilha de pedras lançada ao comprimento do Rio, entre a qual e os penedos, em distância de 300 braças, há o maior canal intratável já naquela ocasião em que as águas tinham crescido até quase meio barranco. Entre a Ilha e a terra firme da parte dos penedos, havia outra saída às águas, porém de iguais precipícios ao canal da parte esquerda: e haverá de distância aqui de uma e outra margem novecentas braças com pouca diferença, e o seu rumo é de Leste a Oeste, sendo a sua Latitude Norte Sul, e neste corriam as Ilhas já mencionadas.

A 11 (janeiro), se continuou viagem levando as canoas à sirga junto à ribanceira que, por ser de pedra, deu um trabalho incrível este passo, no qual se consumirão 6 horas até chegar junto aos penedos da parte esquerda pela qual se costeou, e se andara meia légua de caminho. Recolhidas as canoas a um comorozinho (pequena elevação do terreno) que saía por detrás dos penedos, se transportou a carga delas para a outra parte da Cachoeira por caminho que se fez por terra, que teria 400 braças de distância; e este foi o serviço que se pôde fazer no resto do dia referido.

A 12 (janeiro), estivou de madeira uma quebrada que havia nos penedos, mais próximos à terra da mesma parte Oriental, por onde corria alguma água que, por pouca, não trazia violência de consideração, que deu lugar a se puxarem as canoas, que por toda a manhã ficaram da parte de cima da Cachoeira, com assaz trabalho grande e muita vigilância para evitar algum perigo. Pelas duas horas da tarde do mesmo dia, se continuou viagem no rumo de Noroeste, costeando à esquerda, e se avistou à direita uma serra Serra do Candomblé) que seguia o rumo das antecedentes, ainda à vista da Cachoeira. Passou-se ao rumo de Oeste, e depois de uma grande correnteza que resultava de umas pedras que havia no meio do Rio, portaram as canoas com 3 horas de caminho, em que se andara légua e meia.

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OITAVA CACHOEIRA (Pederneiras)

No dia 13 (janeiro), se prosseguiu derrota costeando à esquerda no rumo de Oeste e, com pouco mais de 4 horas de caminho indo já no rumo de Sudoeste, se encontrou com a Cachoeira chamada Maiari (Pederneiras - 9°31’29,60”S / 65°19’44,90”O), que consiste em uma grande porção de pedras que atravessam o Rio de uma e outra margem no rumo de Leste/Oeste, e por que as águas haviam já coberto as pedras mais chegadas à parte esquerda, por ela se levaram as canoas à corda para poderem vencer a correnteza grande que havia por espaço de 300 braças pouco mais ou menos, que tanto terá esta Cachoeira ao comprimento do Rio, do qual terá ali a sua largura mais de mil braças.

Passada esta Cachoeira sem mais trabalho que o referido, se costeou um pouco ao Sul, e logo ao Sudoeste, e no fim da enseada que levou este rumo, havia no meio do Rio uma grande pedra em forma de Ilha (9°34’23,56”S / 65°22’16,03”O) de que procedia correnteza furiosa de uma e outra margem; e como a menor era pela parte direita, a esta passaram as canoas, e navegando ao Sul se chegou à boca do Rio chamado Abunã (9°40’17,70”S / 65°26’47,40”O), onde portaram as canoas com 9 horas de caminho, em que se andara 4 léguas.

O Rio chamado Abunã deságua na margem Ocidental do Madeira com pouca violência em desembocadura de 300 braças. Navegou-se em uma canoeta ligeira meio-dia para se indagar a sua direção, e se achou ser de Oeste para Leste: não se penetrou mais adiante por se encontrar com uma Cachoeira, que tomava o Rio de uma a outra parte com bastante altura de rochedos, por onde a água se despenhava. É bastantemente fértil de Peixe, e as suas margens de caça. As suas águas são claras e de bom sabor. A ribanceira é alta de uma e outra parte, e em poucas alaga com a cheia. Há notícia de que neste Rio habita uma nação de gentio chamada Ferreirus, gente pacífica, e capaz de boa prática para se aldear em Missões. Foi preciso demorar aqui o dia 14 (janeiro) em que se fez o exame do Rio, e o dia 15 (janeiro) em que se acabaram de refazer as canoas de alguns consertos de que necessitavam. A 16 se principiou viagem, costeando à direita no rumo de Leste e Lessueste, e passada a enseada que se andou nestes dois rumos, se continuou no de Sueste outra volta, que acabou a Leste, e logo tornou a Sueste, e ultimamente a Sudoeste; sem haver neste dia coisa memorável, se portou com 10 horas de caminho, em que se andara 4 léguas.

No dia 17 (janeiro) se continuou derrota no rumo de Susudoeste e, logo ao Sul, no qual se andara meia hora, e indo a Sueste e Leste, partiu a agulha ao Sul, e neste rumo às 9 horas da manhã se encontrou a Cachoeira chamada Tamanduá (Araras).

NONA CACHOEIRA (Araras)

Com o rumo do Sul, corre uma enseada de parte Oriental principiando em uma ponta de pedras, ficando-lhe oposta outra enseada medeando uma Ilha de figura quase triangular, e de suficiente grandeza. Dois canais resultam da posição desta Ilha, o mais largo da parte direita, por onde despede o Rio a maior quantidade das suas águas, que entram atropelando imensidade de penedos que se lhe oferecem na embocadura do mesmo canal, por cuja razão se fazia impenetrável aquele trânsito.

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O mais estreito se achou ser o canal da parte esquerda, que suposto tivesse bastante correnteza, dava contudo lugar de poder-se vencer a remo, o que posto em execução, se transportaram as canoas com duas horas de caminho à parte de cima da Cachoeira, sem mais trabalho que romper a remo duas correntezas que, na embocadura do canal, procediam de pedras ainda mal cobertas de água, as quais atravessavam aquela passagem a fazer união com as do outro canal no rumo de quase Lesteoeste, para a qual formava várias Ilhas de pedras coroadas de arvoredo silvestre, que faziam à vista uma representação agradável.

DÉCIMA CACHOEIRA (Periquitos)

Passada na forma referida, a Cachoeira Tamanduá (Araras), e saindo dela ao rumo do Sul, se foi costeando à parte esquerda no de Susueste e Sueste, e neste com duas horas de caminho, se encontrou a Cachoeira chamada Mamorini (Periquitos - 10°5’28,11”S / 65°18’40,76”O), a qual se compõe unicamente de pedras, que atravessam o Rio de uma a outra parte no rumo de Noroeste e Sueste; e como a grandeza delas não era da mais avultada, se achavam quase todas cobertas, despedindo algumas correntezas, que se venceram a corda, e a remo à margem esquerda, e depois de ficar pela popa, em pouco mais de uma hora se continuou viagem no rumo de Susueste e ultimamente ao Sul, e portaram as canoas na margem direita com dez horas de caminho, em que se andara 5 léguas.

DÉCIMA PRIMEIRA CACHOEIRA (Ribeirão-Misericórdia)

No dia 18 (janeiro), seguindo o rumo do Sul, com duas horas de caminho se entrou com as primeiras pedras da mais trabalhosa, enfadonha, e perigosa Cachoeira, que até ali se havia encontrado. Por mais de légua e meia de caminho se dilata esta Cachoeira chamada Mamorini (Ribeirão-Misericórdia - 10°13’34,56”S / 65°17’29,35”O). Ilhas de pedras cobertas de arvoredo agreste e penedos escalvados atravessam o Rio de uma a outra margem, por entre os quais obstáculos rompe a água, fazendo variedades de fenômenos, porque em partes despenhando-se vai fazendo por entre outras pedras mais pequenas fervedouros continuados, que rebentam furiosos, e com rapidez atraem tudo o que se lhes avizinha, e por outras rompendo com brava correnteza de ondas arrebentadas como de Oceano tempestuoso, tudo o que se lhes opõe atropelam, e sem remédio soçobram. Este terrível espetáculo se continua Rio acima por espaço de uma légua antes de chegar ao grosso da Cachoeira, que consiste em vários precipícios de água que atravessam o Rio, e não dão passagem por nenhum modo, nem toda a indústria do mundo lho saberá introduzir, se não por terra varando por ela as canoas até as lançar da outra parte dos despenhadeiros, que de outra sorte seria acabar infalivelmente a empresa.

Isto suposto, se encostaram as canoas à margem esquerda e, no rumo do Sul, se passaram as primeiras correntezas de 3 pontas de pedras, que saíram da terra a buscar as que atravessavam o Rio e, para vencer esta primeira passagem, foi necessário ir com muito vagar fazendo pressa nos remos, com que se foi ajudando a sirga até chegar a um pequeno salto, que havia entre a terra e uma Ilha de pedras, passado o qual com grande trabalho se seguiu logo outro, que com igual fadiga se deixou vencer, e sendo já 6 horas da tarde, portaram as canoas com 6 horas de caminho, em que se andara um quarto de légua.

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A 19 (janeiro), se continuou viagem costeando a mesma margem esquerda no rumo do Sul e Sudoeste por entre a ribanceira do Rio e Ilhas de pedra, e restingas que saíam da terra firme, da mesma sorte que as do dia antecedente, e com igual trabalho de sirga por entre pedras e arbustos agrestes se navegou todo o dia até se avistar o monstruoso despenhadeiro de água que havia no mais alto da Cachoeira, que não era rocha talhada, mas um declive com mais de 500 braças de distância e com 7 horas de caminho se andara uma légua.

Dia 20 (janeiro), principiou-se viagem costeando no rumo de Susudoeste uma enseada, na qual iam bater as águas que saíam atropeladas dos despenhos da Cachoeira, que retrocedendo para a mesma parte donde corriam furiosas levando por toda a enseada ondas encapeladas que representam um golfo embravecido; e assim com grande perigo se navegou a mesma enseada até se refugiarem as canoas em um Riacho, que do centro deságua, onde a Cachoeira faz a última queda.

Duas horas levou a passagem da enseada, que teria um quarto de légua de distância até chegar ao Riacho, em que se portou pelas 9 horas da manhã. O resto do mesmo dia 20 se gastou em estivar de madeiros o caminho da terra para por ele se vararem as canoas, o que se executou no dia 20 e 21, e neste ficaram já transportadas as canoas da outra parte da Cachoeira com as cargas que a cada uma pertenciam. Terá este varadouro 600 braças de distância, na qual a elevação, por uma e outra parte, que o faz mais trabalhoso. Corre a Cachoeira a atravessar o Rio a rumo de Nordeste e Sudoeste.

No dia 22 (janeiro), saindo de Mamorini (Ribeirão-Misericórdia) no rumo do Sul, se costeou à esquerda, e passando em breve tempo ao Sudoeste; neste se encontrou com um disforme morro de pedra escalvada, que se avançava até quase à terça parte da largura do Rio. Encanava esta água por entre uma Ilha fronteira ao rochedo, como também por entre este e a terra firme da parte esquerda e pelo meio.

Do encontro de todas estas correntezas resultava uma tão grande, saindo da ponta do penedo, dilatando-se à largura do Rio, que não era possível poder-se romper a remo não só pela violência impetuosa das águas e ondas rebentadas que ali se formavam, mas também porque, por toda aquela espantosa rapidez, se levantavam fervedouros de águas, que a faziam subir (ao parecer) mais de 6 palmos, e logo se resolviam em sumidouros os mais formidáveis, de que até aqui se fez menção. Nestes termos, não houve outro arbítrio mais do que introduzir as canoas pelo pequeno canal mui embaraçado de pedras e arbustos agrestes que mediava entre o penedo e a ribanceira Oriental que se navegava; e com grande trabalho de sirga se conseguiu o projeto, que levou 4 horas de importuna passagem. Continuou-se viagem no mesmo rumo de Susudoeste, e portaram as canoas à vista da duodécima Cachoeira, e se andara neste dia 3 léguas.

DÉCIMA SEGUNDA CACHOEIRA (Madeira)

Compõe-se esta Cachoeira (Madeira - 10°21’28,68”S / 65°22’35,88”O) de vários morros de pedras em forma de Ilhetas com arvoredo silvestre, e outros escalvados em quase semelhante postura e qualidade aos que há na Cachoeira antecedente, antes de chegar aos maiores saltos dela.

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Também atravessam o Rio de uma e outra parte com a circunstância que, pela direita, não oferecem passagem em Rio já crescido, porque a ela se inclina o maior peso de água, com o qual rompendo por entre uns penedos, e encapelando-se por cima de outros, forma estranhas correntezas insuperáveis à força e indústria. Pela margem esquerda, se mostra mais tolerável entre as pedras talhadas mal cobertas de água e a terra firme; que também tem a sua ribanceira de mal composta penedia. No último remate de tanto rochedo bronco, há duas Ilhas lançadas (65°22’35,88”O / 65°23’13,35”O) de uma a outra parte do Rio rumo quase de Leste/Oeste, por entre as quais forma o Rio três canais, sendo o mais impetuoso, e mais terrível, o da parte Ocidental, como acima se declara. A formatura destas Ilhas no seu fundamento é tudo penedos, sobre os quais, havendo alguma tal ou qual planície, deram lugar a que a terra se introduzisse com a inundação do Rio para nelas produzir arvoredo frondoso de alegre representação aos olhos.

No dia 23 (janeiro), se fez viagem no rumo de Susudoeste, costeando à esquerda, e com meia hora de caminho se encontraram as primeiras pedras da Cachoeira acima mencionada chamada Vainumu (Madeira), e com o trabalho da corda pondo as canoas com meia carga, se venceu aquele primeiro impedimento, e também o segundo que logo se seguiu, e ultimamente o terceiro que juntos fizeram um dia de impertinente trabalho, e que se andaria um quarto de légua; e é o que esta Cachoeira terá ao comprimento do Rio, ou pouco mais, porque ele finalizava na realidade nas duas Ilhas acima relatadas.

Dia 24 (janeiro), passadas as Ilhas no rumo de Susudoeste, com duas horas de caminho se avistou a boca do Rio Beni (10°23’9,75”S / 65°23’46,33”O), para a qual se atravessou, e se portou nele da parte de dentro para se averiguar o que fosse possível da sua direção.

Feita naquele lugar a observação da altura, se achou desembocar o Rio Beni no Madeira em 12 graus de elevação Austral. A sua entrada é no rumo de Susudoeste, e navegando pelo mesmo Rio cinco horas, se achou ser aquele rumo o mais frequente, do qual parece trará a sua origem. É bastantemente caudaloso, e quase de igual correnteza ao Madeira, em que faz a sua entrada pela margem Ocidental com 800 braças de embocadura (ao parecer). As suas águas são barrentas por causa da muita terra que nas enchentes cai das suas ribanceiras, que são mui semelhantes em altura e arvoredo às do Madeira. Com este poderá o Beni disputar a maternidade das águas, se o Madeira não mostrasse que continua no seu rumo com as suas Ilhas e Cachoeiras na mesma direção que leva até aquele lugar, e juntamente ser o Madeira de maior largura, e trazer mais água naquela parte em que recebe o Beni, que, com efeito, ali perde o nome e ser de Rio.

Por este Rio Beni não há documento ou tradição, por onde conste que fosse navegado por Portugueses, nem Castelhanos, porque estes em cujas terras nasce o Beni, ignoravam até o ano de 1713 o verdadeiro destino deste Rio, pois supunham que ia desembocar no Amazonas sem concurso de outras águas, e os Portugueses que subiram no ano de 1723 até Santa Cruz de los Cajubabas, e outros que antecedentemente haviam ido a negociar gentio, não entraram por este Rio a diligência alguma; em cujos termos será razão que aqui se relate alguma notícia, ainda que seja abstrativa das origens deste Rio, segundo consta de um Mapa impresso no referido ano de 1713,

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suposto que a graduação dele não devia de ser a mais exata porque além de se não conformar com as Cartas Gerais Geográficas, padece uma grande equivocação nos graus de Latitude a respeito da que se fez nesta ocasião; por que o Autor do dito Mapa descrevendo nele o Rio Beni, o supõe ainda tal na altura de 11 graus de elevação Austral, ao mesmo tempo que pela observação no dito dia de 24 de janeiro de 1750 se acha que na altura de 12 graus se perde no Madeira, como acima fica expressado.

Das serras do Peru, paralelo à cidade de Paz, em altura de 12 graus ao Sul, se mostra ter nascimento o Rio Beni que, discorrendo por entre a mesma serrania se junta com o Chuquiabo, que vem da dita cidade que fica ao nascimento do Beni à parte do Ocidente; juntos os dois Rios se forma já o Beni mais caudaloso por entre as mesmas serras até a altura de 15 graus, donde, correndo por terra plana, vem desembocar no Madeira na parte acima mencionada.

Em toda a margem deste Rio de uma e outra parte, não mostra haver até aquele ano de 1713, mais Povoação do que uma Aldeia chamada os Reis, habitada de três mil pessoas de um e outro sexo e idade. Mais ao centro à parte Oriental dos Reis, havia outra da invocação de S. Paulo, povoada de duas mil e setecentas pessoas. As nações de gentio que habitam no Distrito do Beni se nomeiam Romanos, Chumanos, Chriribas e Toromanas. Pela parte do Poente, descem das serranias algumas ribeiras que vêm a incorporar-se com o Beni, onde este já discorre por planície, que são Apioana e Amantala, e há nos seus Distritos entre as montanhas três povoações, que são Apolobamba, S. João, e Pelechuco desde a altura de 15 graus de Latitude e 30 minutos até aos 14 e 40. Recebe também as águas da ribeira chamada Enin, que traz a sua origem das vizinhanças da cidade de Cusco, situada em 13 graus e 20 minutos de Latitude, e em 301 de Longitude. Feita a observação, e navegando em canoa ligeira cinco horas Rio acima o dito Beni, dele saímos no dia 25 pela uma hora da tarde, seguindo derrota costeando a margem direita no rumo de Susueste e Sul, e neste rumo se achou estar a Cachoeira Tejuca.

DÉCIMA TERCEIRA CACHOEIRA (Tejuca)

É conhecida esta Cachoeira com a denominação de Tejuca (10°25’5,58”S / 65°22’45,12”O): consiste o seu composto em quantidade de pedras não muito grandes, que atravessam o Rio de uma para outra no turno de Nordeste e Sudoeste; e como se achava já quase arrasada de água, deu fácil passagem à sirga pela margem direita que se navegava. Em cujos termos, com 5 horas de caminho nos rumos mencionados, portaram as canoas junto à Cachoeira chamada dos Javalis (Lajes - 10°26’50,83”S / 65°23’39,11”O); e se andara légua e meia desde a boca do Beni até este lugar.

DÉCIMA QUARTA CACHOEIRA (Lajes)

Dia 26 (janeiro), neste dia se não fez mais do que passar a Cachoeira mencionada até o meio-dia, a qual consiste em se oporem ao Rio duas Ilhas rodeadas de grandes lajeados de pedra, uma enseada à margem, e outra à esquerda no mesmo rumo da antecedente, Nordeste e Sudoeste. Estas duas Ilhas se comunicam com vários penedos, e lançam outros Rio abaixo em distância mais de 800 braças, de sorte que, querendo o Rio fazer caminho por entre estes impedimentos, forma três canais, um entre a ribanceira da

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parte direita e a Ilha, estreito e de medonha correnteza; outro no meio, em que a água, em vários precipícios, faz impraticável o seu transito; e outro entre a / Ilha da parte esquerda e a terra mais favorável ao intento da passagem, porque somente oferecia duas correntezas junto à terra, pelas quais descarregadas as canoas, se podiam levar à sirga. Assim se executou no dia referido até às duas horas da tarde, e pelas três se continuou viagem no rumo de Sudoeste, e nele, com meia légua de caminho, se encontrou 15ª Cachoeira, junto da qual portaram as canoas para, no dia seguinte, se empreender a sua passagem.

DÉCIMA QUINTA CACHOEIRA (Pau Grande)

Bastantemente intrincada se achou ser esta Cachoeira chamada dos Papagaios (Pau Grande - 10°28’1,70”S / 65°25’17,96”O), porque a formou a natureza, lançada de uma a outra parte do Rio no rumo de Oesnoroeste e Lessueste, composta de Ilhas rodeadas de rochedos e pedras monstruosas, que passam de umas às outras Ilhas com mui irregulares posições; por cuja razão o Rio se achava precisado a romper estes embaraços por modo quase estranho à propriedade de sua corrente, pois em partes se atravessava a vários rumos com oposição de umas com outras águas até saírem por entre os últimos penedos com ruidosa fúria e espumosa braveza. Apenas ofereceu um canal encostado à margem direita entre a ribanceira formada de alta penedia e uma Ilha encostada à mesma parte, por entre a qual corria menos furiosa a água, por não ser ainda muita a que propendia para esta parte, razão porque estavam as pedras mal cobertas, que foi preciso estivá-las de madeiros para sobre eles se puxarem as canoas descarregadas.

No dia 27 (janeiro), se executou a empresa sobredita com grandíssimo trabalho, que consumiu o dia inteiro daquele penoso serviço e, com efeito, no mesmo dia ficaram as canoas transportadas à parte de cima da Cachoeira, que terá um quarto de légua de distância ao comprimento do Rio.

No dia 28 (janeiro), se prosseguiu viagem costeando à parte direita no rumo de Sueste e nele, com pouco mais de uma hora de caminho, se achou a Cachoeira chamada Das Cordas (10°29’3,10”S / 65°25’48,28”O), que atravessa o Rio de uma e outra ribanceira no rumo de Noroeste e Sudoeste; e, por ter já quase todas as pedras no fundo se passou a remo vencendo somente duas correntezas entre a margem Ocidental e uma Ilha das que formam as mesmas Cachoeiras.

DÉCIMA SEXTA CACHOEIRA (Das Cordas)

De duas Ilhas formadas de rochedos se compõe esta Cachoeira chamada das Cordas, ambas adornadas de vistoso arvoredo, não mui alto, mas viçoso e recreativo, e no rumo referido atravessam o Rio: uma delas se acha mui chegada à margem esquerda, que em Rio a meia enchente nem ainda assim lhe concede canal; a outra, situada à parte direita, permite passagem a todo o tempo, menos o da última sacra, que é nos meses de setembro e outubro, quando somente o Rio acha canal, e os viajantes caminho pelo meio entre uma e outra Ilha, onde faz um declive de pedras com boa direção, em que, por espaço de 60 braças, se despenha a água com tolerável violência.

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Esta Cachoeira se passou na forma acima mencionada e, continuando viagem no mesmo rumo de Sueste, se achou desaguar pela margem direita um Ribeirão de água clara chamado Tiahoam (Yata - 10°29’12,56”S / 65°26’2,53”O); terá 100 braças de embocadura, e vai cair o seu pequeno cabedal de torrente quase sobre a Cachoeira passada, razão por que se achou nela a água mais limpa, e logo que se encontrou o Ribeirão, se decidiu a causa daquela novidade. Fronteiro ao lugar em que deságua aquele Riacho há, na margem Oriental, uma elevação de terra que forma uma pequena serra, povoada de arvoredo mui alto e espesso, e não chega a ter meia légua de extensão no longo do Rio; para o centro não houve ocasião de fazer exame da sua direção.

Passado o Riacho Tiahoam, se ia continuando viagem já no rumo de Lessueste quando, ao virar de uma ponta de pedras (10°30’7,59”S / 65°25’1,68”O), em que havia grande correnteza na mesma margem direita, quebrou a pá que servia do governo a uma canoa, e foi preciso portar para fazer outra, razão por que se não andou neste dia mais do que duas horas, em que se vencera de caminho pouco mais de meia légua.

Dia 29 (janeiro). Neste se principiou viagem costeando à direita no rumo de Lessueste, e logo ao do Sul, em que passada uma enseada, se continuou a Sueste, e neste rumo se achou a Cachoeira chamada Panela (Bananeiras - 10°35’5,34”S / 65°23’52,77”O), que é uma das maiores e mais embaraçosa que tem o Rio.

DÉCIMA SÉTIMA CACH0EIRA (Bananeiras)

De um intrincado labirinto de Ilhas fundadas todas sobre lajedos e rochas monstruosas, se forma esta Cachoeira em tão desordenada posição por espaço quase de uma légua ao comprimento do Rio, que este, para achar saída a tão estranhos embaraços, se derrama em uma confusão de canais por entre as Ilhas e penedos, de sorte que, em meia légua de largura que haverá de uma a outra margem, e em todo o espaço do comprimento, não acha a água outra coisa senão precipícios por todas as partes pelos quais, com ruído e fúria, se encontram as correntezas umas com as outras, irritadas dos penedos que passam, e de outros que vão atropelando. Muitos canais, vindo por ele a água em fervedouros e rápido ímpeto, topam em Ilhas ou rochedos, que se lhes opõem diante, que obrigam as águas a fazer caminho aos lados, e vão quebrando a fúria nas ribanceiras de uma e outra parte. Da dura resistência que acha aquele soberbo elemento nos penedos da margem, retrocede a água sobre si mesma, e forma tempestuosas ondas de mares encapelados mui difíceis de vadear. Finalmente, para se expor com miudeza todos os subterfúgios que aqui busca a água para passar esta Cachoeira, confesso que, sobre não achar termos próprios e expressivos, com que bem signifique tão embaraçadíssimo passo, seria fastidiosa uma grande digressão, com que ele se poderia descrever; e por esta causa me remesso à estampa, que poderá ser delineada em termos que por ela se possa formar ideia das figuras que aqui se dificultam expressar.

À vista de um tão formidável impedimento, que a todos os lados ameaçava funestas consequências na empresa de se vencer, sem varar por terra as canoas, foi fortuna achar um canal entre o barranco da parte direita e as Ilhas da Cachoeira, por onde, salvando um não muito grande espaço de ondas que resultavam do combate de uma correnteza com a penedia da terra firme, podiam chegar as canoas até um lugar acomodado, em que,

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sobre pedras ainda mal cobertas de água, podiam ter passagem; e com efeito, investindo com aquele canal, se foram vencendo a remo as suas correntezas sucessivas até chegar ao lugar mencionado, em que havia um como fluxo e refluxo de água, que levantava ondas furiosas por todo o canal em distância, ao comprimento dele, de mais de tiro de mosquete. Com muito cuidado e força de remo se atravessou aquele perigoso Distrito e, já de noite, portaram as canoas junto aos grandes penedos, por cujas aberturas no dia seguinte se havia de fazer caminho.

Chegou o dia 30 (janeiro) em que, com incrível diligência, se estivaram as pedras, descarregaram as canoas, e se puseram estas à parte de cima da Cachoeira até horas de meio-dia, e logo que se tornou a recolher nelas o trem, que a cada uma tocava, se prosseguiu viagem pelas três horas da tarde no rumo de Susudoeste, e nele se achou a Cachoeira chamada Quati (Guajara-açu - 10°37’0,70”S / 65°24’32,93”O) com uma hora de caminho, em que se andara de distância meia légua.

DÉCIMA OITAVA CACHOEIRA (Guajará-açu)

De melhor semblante do que na antecedente se ofereceu a presente Cachoeira, que consiste em uma Ilha de suficiente grandeza lançada ao rumo de Lesnordeste e Oessudoeste desta, que tem por fundamento imensa penedia, se distribui a todos os lados quantidade de lajes e penedos, porém dispostos pela natureza em forma que, repartido o Rio em dois canais, a que a Ilha (10°37’30,77”S / 65°24’33,84”O) a precisa, vai a água sem declive pela maior parte dos canais miúdos, que procedem das pedras espalhadas por uma e outra parte com pouca oposição de umas com outras. Nestes termos naquela mesma tarde do dia mencionado, se foi passando à parte direita tomando o seu canal a remo sem mais embaraço que algumas correntezas sem perigo, que se foram passando com felicidade até uma enseada, em que as águas se achavam em tranquilidade bem em meio da Cachoeira, onde portarão as canoas; e se andara uma légua no rumo mencionado.

No dia 31 (janeiro), se continuou a passar o que restava da Cachoeira Quati (Guajara-Açu), que só na embocadura do canal entre a ponta da Ilha e a terra houve algum trabalho; porque foi preciso usar de sirga por entre pedras e arbustos agrestes por espaço de dois tiros de mosquete. Da enseada se navegou ao Sueste e, ao sair do canal, foi a Leste. Terá esta Cachoeira uma légua ao comprimento do Rio; e na largura, meia. Desembaraçadas as canoas daquele trânsito até às nove horas do dia, se atravessou a parte esquerda do Rio, que se foi costeando a Susueste; e neste mesmo rumo partiram as canoas da margem direita com 6 horas de caminho, em que se andara 3 léguas.

Neste lugar se teve a primeira vista das serras chamadas Cordilheiras das Gerais, ou Chapada Grande, à parte esquerda do Rio, e corriam de Nordeste a Sudoeste rumo geral do Rio, e daqui principiam estas serras a atravessar o Rio, ou este a romper as suas extremidades e quebradas, em que se formam as Cachoeiras de que se tem tratado, e agora se fará o mesmo da última que resta a quem sobe, a primeira que se oferece a quem desce. Dia primeiro de fevereiro. Neste dia, saindo da enseada em que se havia germinado no rumo de Susueste, se avistou logo a Cachoeira chamada Tapioca (Guajará-mirim - 10°46’55,67”S / 65°21’5,41”O), que neste lugar é a última que se oferece.

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DÉCIMA NONA CACHOEIRA (Guajará-mirim)

Na enseada da parte Oriental, está situada uma Ilha de figura quase oval, fundada sobre pedras. Na margem Ocidental, faz o Rio outra enseada mui dilatada, e no seio dela se forma outra Ilha de igual qualidade à antecedente, porém de muito maior grandeza, porque ocupa todo o vão da enseada referida, a cuja parte côncava corresponde a Ilha com a convexa quase em perfeita proporção. Destas Ilhas se espalham infinitas pedras miúdas, e outras avultadas, que umas atravessam o Rio, e outras se dilatam ao comprimento dela por espaço de um quarto de légua. Três são os canais por onde o Rio faz a sua passagem por entre as Ilhas referidas e a terra firme de uma e outra parte, despedindo furiosa correnteza, e insuperável pela margem Oriental e pelo meio, pois por ambos estes canais nem ainda em Rio cheio (como já estava) se acabam de cobrir as pedras, que se opõem a estas duas correntezas. Nestes termos, examinado o braço Ocidental, se achou praticável, pois somente havia para vencer uma tolerável correnteza, que se passou à corda; e costeando à direita entre a Ilha Grande e a terra firme no rumo de Oeste, e sem mais embaraço se finalizou o mesmo círculo da enseada no de Leste, e sem mais embaraço que algumas correntezas que se passaram a remo, portaram as canoas já da outra parte da Cachoeira na margem direita, com 6 horas de caminho, em que se andaria duas léguas. Esta Cachoeira Tapioca (Guajará-mirim) atravessa o Rio no rumo de Lesnordeste e Oessudoeste, e é a última que se oferece antes de se incorporarem as águas do Rio Mamoré com as do Madeira, cuja viagem se foi prosseguindo (...)

Dia dois de fevereiro, neste se continuou viagem costeando à direita no rumo de Lessueste, deixando pela mesma margem os primeiros pantanais que há neste Rio, e consiste em exceder a mãe do Rio, e alagar a terra por espaço mais de duas léguas ao centro, que forma como Lago ao comprimento do fio em distância de muitas léguas mediando entre o pantanal uma breve porção de ribanceira, em que há arvoredo alto; e a terra que se segue ao centro que alaga é como campina, que somente tem alguns redutos ou Ilhas de arvoredo distantes umas das outras, que fazem mui vistosas aquelas dilatadas campinas. A estes pantanais se recolhe o peixe na ocasião que as águas fazem aquela inundação, e desampara de sorte a mãe do Rio, que neste por acaso ou maravilha se deixa pescar algum, e o mesmo sucede à caça volátil e quadrúpede, que se afasta para a terra firme, razão por que já deste lugar para cima se principiou a sentir esterilidade de víveres que, de ordinário, põe esta penúria em grande consternação os viajantes. No rumo referido pela margem Oriental, aparecia a Cordilheira Geral, seguindo ao largo o memso Rio a Lessueste, rumo que aqui principiou a dar nova direção ao Rio pela frequência com que a agulha já buscava a Leste e Sueste, nos quais, com seis horas de caminho, se andaria quatro léguas e meia portando as canoas, já noite, na margem Oriental, havendo partido pelo meio-dia do lugar em que portaram no dia antecedente, ocupando-se a manhã do presente em ouvir Missa e descansar do importuno trabalho das Cachoeiras, cujo trânsito se havia conseguido com a felicidade referida, não sem admiração dos experientes; pois em tantos e tão trabalhosos passos não perigou nem se molestou pessoa alguma da Comitiva que passava de cem pessoas entre brancos e índios, havendo muitas ocasiões em que todos trabalhavam sem exceção de pessoa.

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No dia três do mesmo mês, se principiou viagem costeando à esquerda no rumo de Sudoeste, e passada outra volta, no de Oessudoeste se atravessou à direita, e por esta se costeou no de Sudoeste e Sueste, e ultimamente a Sul; e com 12 horas de caminho, se andara oito léguas. No decurso deste dia não houve que notar coisa alguma mais do que não ter o Rio correnteza de consequência, e se atribuiu ao impedimento que iam achar as águas nas Cachoeiras, e por esta causa se detinham as águas como represadas e sem força em toda a navegação que se fez das Cachoeiras acima. No lugar em que portaram as canoas no dia três, que foi na margem Oriental do Rio, por haver naquele sítio o que era preciso para se guarnecerem as canoas do dano que haviam recebido na passagem das Cachoeiras, se passou o dia 4 no lugar referido, onde se consertaram as coisas danificadas das embarcações, para com mais comodidade se prosseguir viagem.

A cinco (fevereiro), pelas quatro horas da madrugada, se principiou viagem costeando à esquerda no rumo de Sueste e Sul e, ao romper do dia, se passou à parte direita, e se costeou a Sudoeste, Sul, Susueste e Sueste; e neste rumo se topou com uma Ilha, que corria com a volta do Rio, e por entre ela e a margem direita se navegou e nesta volta se correram todos os rumos desde o Sul até chegar a Leste, e depois se navegou a Sudoeste até o lugar em que se portou que foi na margem Oriental com onze horas de caminho, em que se andara oito léguas. Até este lugar, não houve correnteza.

No dia 6 (fevereiro), ao amanhecer, se prosseguiu viagem no rumo do Sul e Sueste costeando à esquerda uma grande enseada, e depois a Sueste, e ultimamente ao Sul; e com onze horas de caminho se andara sete léguas. Neste dia, já houve alguma correnteza, que se venceu sem grande trabalho.

Dia sete (fevereiro). Principiou-se viagem de madrugada costeando à direita no rumo de Sudoeste, e logo ao Sul e Sueste, e indo já no Lessueste se passou entre uma dilatada Ilha alagadiça e a terra firme Oriental, por cujo canal, saindo a Leste no fim da Ilha sobre a parte esquerda, se navegou a Nordeste, Norte, e outra vez a Nordeste voltando até Leste, em cujo rumo portaram as canoas fronteiro à ponta de outra Ilha pequena com dez horas de caminho a em que se andara sete léguas.

No dia oito (fevereiro), depois de Missa, partiram as canoas às 8 horas da manhã costeando à direita no rumo de Sueste e Sul por espaço de uma hora, e atravessando à esquerda se costeou a Leste, a Sueste e Sul; e neste rumo, sendo já 4 horas da tarde, se principiou a achar as águas do Rio menos barrentas, circunstância que se foi observando no resto da mesma tarde, até que, sendo já noite, se conheceu com luz ser a água de todo clara pela margem esquerda onde, parando a navegação, se observou daquele lugar haver no Rio três embocaduras, duas à parte do Sul, e uma à de Leste, cuja circunstância junto com a diversidade da água que se achava, se assentou, por certo, ser uma das duas bocas ao Sul a do Rio Mamoré.

Amanheceu o dia 9 (fevereiro) e, com a luz dele, o desengano do que a noite antecedente não deixava bem perceber. Com efeito, ao rumo de Sudoeste desembocava o Rio Mamoré (11°55’46,06”S / 65°1’31,11”O) em uma barra de mais de 500 braças, e para ela navegavam as canoas atravessando aquele quase golfo de água formado por este Rio, e pelo Aporé (Guaporé) na união que fazem umas e outras águas, sendo

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claríssimas as do Aporé (Guaporé) e as do Mamoré com a mesma turvação que têm as do Beni, a qual continua pelo dilatado espaço de que se fez menção no Diário em dia 2 de outubro do ano antecedente. Do concurso que há neste lugar de umas e outras águas se derramam estas pela margem Oriental, e formam vários Lagos, cuja embocadura à parte de Leste é a que se havia notado na noite antecedente.

Das serras do Peru, que fazem a Cordilheira Geral dos Andes, nasce o Rio Mamoré, em altura de 18°30’ Latitude Austral, e sendo a sua direção quase do Sul para o Norte se encontra com o Guapaix, que tem suas origens das mesmas serras mencionadas e passa por Chuquisaca ou Cidade de la Plata, e por Santa Cruz de la Sierra la Nueva, até que, na altura de 16°, faz no rumo do Norte a sua união com o Mamoré, e ambos incorporados recebendo várias torrentes que das partes Ocidental e Oriental o buscam, discorre pela Província chamada de los Mojos, terra plana, pouco fértil, e tão estéril de riquezas, que consta não haver nas suas dilatadas campinas gênero algum de metal; continua pela mesma planície e, passando as terras dos Índios chamados Cajubabas, mistura suas águas com as do Aporé (Guaporé) na altura de 12°40’ de Latitude Austral.

No ano de 1723, governando o Estado do Pará João da Gama da Maia, teve este notícia por alguns homens que iam a contratar gentio ao Rio da Madeira, que acima das suas Cachoeiras havia habitações de gente Europeia sem constar ao certo se de Portugueses ou Espanhóis: mandou explorar o dito Rio por uma tropa, de que foi Cabo Francisco de Mello Palheta, o qual, depois de passar as Cachoeiras indo navegando, encontrou perto da boca do Rio Mamoré canoa de Índios Castelhanos governada por um mestiço que guiou o referido Palheta até a Aldeia da exaltação de Santa Cruz dos Cajubabas, e tendo nela prática (conversação) com os Missionários que a região, voltou ao Pará com as notícias do que achou, sem fazer mais memórias de Rios, não só do Beni, que deságua entre as Cachoeiras de que já se fez menção, mas nem ainda do Aporé (Guaporé), que tão manifestamente se lhe mostrou, e era preciso atender na entrada ou saída do referido Mamoré.

Correndo os tempos e povoado o Mato Grosso pelos moradores do Cuiabá, nos anos de 1736 e 1737, sucedeu saírem daqueles novos Arraiais, no ano de 1742, homens na diligência de comerciarem com os Padres Castelhanos vizinhos, em ordem a refazer a dita Povoação de algum gado e cavalos, para cujo efeito, navegando o Aporé abaixo, chegaram a entrar pelo Mamoré, e com ... (omitido do original) de viagem, portaram na mesma Aldeia de Santa Cruz de los Cajubabas, onde foram bem recebidos, porém sem resultado do projeto intentado.

Destes companheiros se apartaram três que, rodando Rio abaixo, e salvando as Cachoeiras, chegaram ao Pará onde, sendo apreendidos, foram dois remetidos presos a S. Majestade por transgressores da lei de ... (omitido do original) e se assentou praça de soldado ao terceiro companheiro chamado Joaquim Ferreira Chaves, o qual, podendo-se escapar do serviço, desertou pelo Maranhão a buscar Goiás, e destas Minas passou ao Cuiabá, e ultimamente ao Mato Grosso onde, por este seu morador se teve a primeira notícia de que podia pelo Madeira haver comércio com o Pará.

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Neste meio tempo, tornaram alguns moradores a fazer viagem do Mato Grosso à Aldeia da exaltação, sem conseguir coisa alguma de negociação, até que, no ano de 1747, achando-se aqueles Arraiais em grande penúria de sal, passou um cirurgião chamado Francisco Rodrigues da Costa a comerciar algum deste gênero, e com efeito o conseguiu a troco de fazenda seca, e também negociou cera e pano de algodão, que tudo lhe fez boa conveniência, com interesse da qual estabeleceu uma quase sociedade com o Missionado da Aldeia referida, dando este um rol dos gêneros de que necessitavam para se comutarem pelos acima mencionados nomeando para a troca ao Missionado de Santa Rosa, estabelecida novamente na margem Oriental do Aporé.

Com efeito, no ano seguinte, de 1748, fazendo o mesmo, Francisco Rodrigues compra, no Mato Grosso, dos gêneros sorteados, de que levou a lembrança por escrito e, fazendo viagem até a dita Aldeia de Santa Rosa achou removida a sociedade, de sorte que, não somente não se fez a troca dos gêneros, mas nem ainda o Missionado quis fazer aceitação de um mimo, com que o dito Francisco Rodrigues pretendeu politicamente lisonjeá-lo dando a razão de dissolver-se o estipulado, que haviam recebido apertadíssimas ordens do seu Superior, residente em Santa Cruz de la Sierra, para não terem os Missionados daquela Província comércio algum com Portugueses do Mato Grosso. Voltou para aqueles Arraiais o referido cirurgião com os mesmos trastes mercantis que havia levado a Santa Rosa, e, na ocasião de chegar a escolta do Pará ao Arraial de S. Francisco Xavier, ali estavam a venda em loja pública.

Estas foram até o presente as navegações Portuguesas ao Rio Mamoré, tanto do Pará como do Mato Grosso, o que suposto, resta dar notícia das Aldeias que há no referido Mamoré, e do mais que houver memorável que lhe pertença. Navegando-se o Rio Mamoré correnteza acima, se achou, em meio dia de viagem, que se fez em canoa ligeira da escolta, ser a sua entrada ao Sudoeste, e limpo de Cachoeira, e não tem Ilhas.

Pelo que consta de informações que deram os Portugueses do Mato Grosso que o navegaram até à Exaltação, e pelo que se acha escrito em idioma Espanhol impresso, sabe-se ser esta Aldeia a primeira que se oferece na sua navegação 8 dias de viagem Rio acima: está fundada há mais de sete anos na margem Ocidental do Rio em terra plana, lançada em figura quase quadrada: a construção das suas casas de barro com cobertura de colmo, a Igreja a tem de telha, e é suficientemente ornada; tem Padres Missionários e Coadjutor da Religião de Santo Ignácio. Os Índios habitantes consta serem de nação chamada Cajubabas, e terá de um e outro sexo e idade quase três mil pessoas e, destas capazes de uso de armas, 460.

Ocupam-se estes Índios em fazer roças de milho para o seu sustento, e pastorear algum gado vacum. Os seus haveres consistem na extração de cera, que as abelhas fabricam naturalmente pelos troncos das árvores, lavram algodão de que se vestem, e dele também se utilizam para o comércio, como também de algum açúcar, de que tem engenho, indo a Santa Cruz de la Sierra comutar estas espécies pelos gêneros, que são precisos ao seu uso, e Viático para o Missionado.

Desta Aldeia, poucos dias de viagem, deságua na mesma margem Ocidental o Riacho chamado Aporé (Guaporé) o qual, na parte em que se divide em vários braços, está fundada a Aldeia de Santo Ignácio, composta de quase

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três mil almas de um e outro sexo e idade, e entra neste número mil trezentos e vinte oito catecúmenos, dos já batizados podem usar das armas 570.

Passada a Boca deste Rio, se acha, em pouca distância dela, à parte Oriental, a Aldeia de S. Pedro, que consta de mais de duas mil, em que entram 926 catecúmenos, e dos neófitos, 640 capazes de tomar armas. Continuando Rio acima, deságua na margem Ocidental o Riacho chamado Tiamachu, e logo acima da sua embocadura à parte esquerda está situada a Aldeia de S. Xavier, com perto de quatro mil almas, e destes Índios, 560 capazes de guerra. Acima da embocadura se acha, na margem Oriental, fundada a Aldeia da Santíssima Trindade, cujos povoadores se chamam Mojos, e tem 1.700 almas de um e outro sexo e idade batizados, e 1.106 catecúmenos, e dos neófitos, 750 capazes do uso de seus arcos. Onde o Rio Mamoré se junta com o Guapaix à parte Oriental está situada a Aldeia chamada Loreto, também de Mojos, com 2.900 almas, 923 catecúmenos, e dos batizados 660 capazes de armas. Seguindo Guapaix acima, já perto da Cidade de Santa Cruz de la Sierra, deságua à parte direita um Riacho chamado Palometa, no qual está fundada a Aldeia de S. José quase na falda da serrania dos Andes; tem 2.105 almas de um e outro sexo e idade, e destes tem 700 capazes do uso de suas flechas. Correndo pelo centro à parte Ocidental dos Mojos, está fundada outra Aldeia de S. José com 3.177 almas, em que entram 1.717 catecúmenos e, dos batizados, tem 500 capazes de armas.

Pelo mesmo centro, à parte Ocidental da Exaltação, está situada a nação dos Mobimas que, em 1709, apostatando a Fé, martirizaram o Venerável Padre Balthasar de Espinosa, que os havia instruído na vida Cristã. Desta nação se fundaram depois duas Aldeias quase nas cabeceiras do Riacho Maniqui, que deságua no Mamoré pouco abaixo da exaltação. S. Luiz e S. Borja se nomeiam estas duas povoações; a primeira consta de 1.630 almas, das quais quinhentas pessoas são capazes de armas, e a segunda é de 1.300 Índios, dos quais 400 podem usar de arco e flecha, armas de que usam todos os Índios acima mencionados.

Todas as Aldeias aqui apontadas são Missionadas pelos Religiosos de Santo Inácio, de cuja sagrada sociedade era aluno o Venerável Padre Espinosa, martirizado pelos Mobimas. O Superior destes Missionados assiste na Cidade de Santa Cruz de la Sierra, e pela direção deste Superior se governa toda esta Província, que se chama dos Mojos, por serem estes os primeiros que, largando a Idolatria, admitiram a promulgação Evangélica debaixo da proteção dos Monarcas de Castela.

A maior parte do terreno por onde discorre o Rio Mamoré, e estão fundadas as Aldeias referidas, é tão plano a que em tempo de águas rebojão os Rios de sorte que, alagadas as campinas, se fazem navegáveis, recebendo grande dano as sementeiras; também impedem a multiplicação do gado, e até as mesmas povoações padecem sustos grandes, não só pelo perigo que pode resultar-lhes das inundações, mas pela a que ficam aqueles povos condenados, quando são mui desordenadas as cheias. O clima desta região é sumariamente intemperado que, além de ocasionar doenças terríveis, contribuiu mui pouco para a fertilidade dos frutos e víveres, razão por que se padece de tudo bastante penúria em alguns dos povos aqui relatados. (...)

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Cachoeiras do Rio da Madeira

N° Nome Tipo Lat./Long.

01 Santo Antônio Cachoeira 08°48’05,90” 63°57’06,68”

02 Macacos Corredeiras 08°50’39,52” 64°00’56,31”

03 Teotônio Salto 08°51’31,27” 64°03’51,93”

04 Morrinhos Corredeiras 09°01’39,19” 64°11’53,46”

05 C. do Inferno Cachoeira 09°16’29,37” 64°39’35,18”

06 Jirau Salto 09°19’32,83” 64°43’52,23”

07 Três Irmãos Corredeiras 09°35’21,96” 64°55’31,94”

08 Paredão Cachoeira 09°33’50,59” 65°10’18,54”

09 Pederneiras Corredeiras 09°31’29,29” 65°19’47,73”

10 Araras Corredeiras 09°58’17,90” 65°19’38,21”

11 Periquitos Corredeiras 10°05’32,48” 65°18’36,65”

12 Chocolatal Corredeiras 10°10’12,63” 65°18’24,73”

13 Ribeirão Salto 10°12’44,60” 65°17’32,92”

14 Misericórdia Cachoeira 10°13’47,12” 65°17’38,62”

15 Madeira Cachoeira 10°21’53,70” 65°23’10,37”

16 Das Cordas Corredeiras 10°29’03,10” 65°25’48,28”

17 Lajes Corredeiras 10°26’48,43” 65°23’34,61”

18 Pau Grande Cachoeira 10°28’09,03” 65°25’31,47”

19 Bananeiras Cachoeira 10°35’11,60” 65°23’56,20”

20 Guajará-açu Corredeiras 10°37’00,65” 65°24’31,29”

21 Guajará-mirim Corredeiras 10°46’56,48” 65°21’08,56”

Vide Mapa da Figura 50

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Viagem ao Redor do Brasil (1875 – 1878)

Dentre as inúmeras viagens pretéritas pelo Rio Madeira esta, escrita pelo então Coronel João Severiano da Fonseca, integrante da Comissão de Limites entre o Brasil e a Bolívia, é, sem dúvida, a que mais me cativou. Reproduzi, neste livro, três delas por julgar terem sido as mais marcantes.

Nesta o insigne Patrono do Serviço de Saúde do Exército descreve os costumes e compila um glossário do vocabulário linguístico das diversas etnias indígenas com as quais a Comissão entrou em contato. A obra além de mostrar a participação dos nativos como auxiliares na exploração e colonização do território, narra com detalhes as dificuldades enfrentadas nas passagens pelas Cachoeiras e ilustra com gravuras as rotas utilizadas pelos expedicionários para ultrapassá-las.

- João Severiano da Fonseca

O Serviço de Saúde do Exército, após a instituição dos Patronos das Forças Armadas e a escolha feliz de Sampaio, Mallet, Osório e Cabrita, que bem evocam as qualidades máximas do intimorato (destemido, valente) infante, do artilheiro rígido, do alígero (veloz) hussardo (membro da cavalaria ligeira) e do engenheiro audaz, para padroeiros das armas militares do Exército, também desejou possuir o seu símbolo dos dons pacíficos do cientista invulgar e das acrisoladas (aperfeiçoadas) virtudes militares do soldado integérrimo (muito íntegro).

Justa a aspiração, que logo achou guarida nos órgãos de imprensa, como a “Nação Armada”, principalmente. Feriu-se o pleito entre os médicos, farmacêuticos e dentistas do Exército, disseminados pela vastidão do território nacional, recaindo a eleição, quase unânime, no vulto preeminente da cultura indígena, misto de médico, militar, professor, naturalista, escritor, geógrafo, historiador e político – o Dr. João Severiano da Fonseca. Não foi unânime porque escassos votos couberam a dois outros nomes também dignos, mas despidos da magnífica aureola que ataviou (adornou) o vulto ímpar daquele que, trilhando toda a afanosa e extensa hierarquia militar, atingiu o generalato médico: o Capitão Manoel de Aragão Gesteira, cirurgião exímio, que, com seus denodados companheiros, escreveu a epopeia da Retirada da Laguna, episódio da Guerra do Paraguai, profissional cônscio de quem Taunay soube afirmar: “debaixo do fogo já dera provas de dedicação e sangue frio, como verdadeiro discípulo do grande Larrey”, e o Dr. José Ribeiro de Souza Fontes, professor da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, titular do Império e Tenente-Coronel Médico do Exército.

Domique Jean Larrey: General médico do exército de Napoleão que muito contribuiu para os serviços Médicos de Urgência Atuais. Solidário com os combatentes feridos prestava-lhes atendimento imediato em pleno campo de batalha. (Nota do Autor)

Do posto inicial ao glorioso termo, de simples Tenente a General-de-Divisão e 8° Diretor do Serviço de Saúde do Exército, sua personalidade singular, forte e multiforme, descreveu a luminosa trajetória que o fez o merecido paradigma dos que labutam na defensão (defesa) da saúde daqueles que, a chamado da Pátria, se devotam, na caserna, a seu labor construtivo.

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É símbolo e exemplo. Oriundo de estirpe valorosa sua existência merece recordada (lembrança). Nasceu a 27 de maio de 1836, à margem da Lagoa Manguaba, na velha cidade de Alagoas – hoje Marechal Deodoro –, na Província das Alagoas, sendo seus genitores o Tenente-Coronel Manuel Mendes da Fonseca e Dona Rosa Maria Paulina da Fonseca.

Foi ele o sétimo descendente da numerosa prole desse feliz casal, constituída de dez filhos: Hermes Ernesto, Marechal; Severiano Martin, Marechal-de-Campo e Barão de Alagoas; Manuel Deodoro, Generalíssimo, Proclamador da República e seu primeiro Presidente; Pedro Paulino, Tenente reformado e Senador da República; Hipólito Mendes, Tenente, morto em Curupaiti; Eduardo Emiliano, Major, morto em Itororó; Joao Severiano, General-de-Divisão Médico; Emília Rosa da Fonseca Furtado de Mendonça, casada; Amélia Rosa da Fonseca Amaral, casada; e, Afonso Aurélio, Alferes, também morto em Curupaiti.

Neste passo é justo ressaltar-se que a respeitabilíssima matrona, que com desvelo os soube embalar ao regaço materno, logrou, pelas suas virtudes espartanas, sobreviver nos fastos da história cívica com o imortal epíteto (apelido) de “Mãe dos 7 Macabeus”. Ela, nordestina de fibra estoica, vibrava ante os feitos gloriosos de seus filhos, a ponto de iluminar sua casa à notícia de que haviam tombado inertes no campo da luta e da honra. Ao recordar a mártir dolorosa que, no reinado de Antíoco Epifânio, tanto mais daria em holocausto da Mãe Pátria, se preciso fora, três vezes o luto lhe envolveu o coração, que sempre procurou mostrar-se resignada para estímulo de outras mães a sacrifícios semelhantes.

Bíblia Sagrada - Livro II Macabeus, 7:

1. Havia também sete irmãos que foram um dia presos com sua mãe, e que o rei por meio de golpes de azorrage e de nervos de boi, quis coagir a comerem a proibida carne de porco.

2. Um dentre eles tomou a palavra e falou assim em nome de todos. Que nos pretendes perguntar e saber de nós? Estamos prontos a morrer antes de violar as leis de nossos pais.

3. O rei, fora de si, ordenou que aquecessem até a brasa sertãs e caldeirões.

4. Logo que ficaram em brasa ordenou que cortassem a língua do que falara (por) primeiro e, depois que lhe arrancassem a pele da cabeça, que lhe cortassem também as extremidades, tudo isso à vista de seus irmãos e de sua mãe.

5. Em seguida, mandou conduzi-lo ao fogo inerte e mal respirando, para assá-lo na sertã (frigideira larga e rasa). Enquanto o vapor da panela se espalhava em profusão, os outros com sua mãe, exortavam-se mutuamente a morrer com coragem. (...)

7. Morto desse modo o primeiro, conduziram o segundo ao suplício. (...)

10. Após este, torturaram o terceiro. Reclamada a língua, ele a apresentou logo, e estendeu as mãos corajosamente. (...)

13. Morto este, aplicaram os mesmos suplícios ao quarto, (...)

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15. Arrastaram em seguida o quinto e torturaram-no; (...)

18. Após este, fizeram achegar-se o sexto, (...)

20. Particularmente admirável e digna de elogios foi a mãe que viu perecer seus sete filhos no espaço de um só dia e o suportou com heroísmo, porque sua esperança repousava no Senhor. (...)

João Severiano, como os demais irmãos, foi educado nos salutares princípios que nortearam a educação da grande estirpe de seus ascendentes. Só ele não enveredou, de pronto, pela carreira das Armas. Todos os manos foram logo ser militares. Terminado o curso primário na Vila natal, veio fazer o secundário na Corte. Em seguida, matriculou-se na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, recebendo o grau de Doutor em Medicina em 1860. Fizera-se médico por vocação, mas aquele amor pela farda, que levara os Fonsecas à caserna, haveria de, outrossim, impelí-lo ao Exército.

De fato, fora por instinto vocacional que o jovem se decidiu pela profissão médica, não obstante a soma de sacrifícios e de renúncias a que se obrigaria ao cingir a cândida vestia.

Um oportuno parênteses curioso: - os doutorandos de 1860 foram os primeiros a usar o recém-criado anel simbólico de esmeralda, proposto pelo Professor Francisco Menezes Dias da Cruz, em 1856, para substituir o antigo com a efígie de Hipócrates.

No âmago do peito lhe calavam ainda as palavras da personagem do romancista Dr. José de Alencar, encarnando o médico devotado:

Amo as glórias da minha profissão, as únicas a que posso e devo aspirar. Nossos triunfos, não os obtemos na praça pública, diante da multidão que aplaude, mas lá na alcova secreta onde geme a criatura.

Para o Dr. João Severiano, que se destinava ao Exército, não lhe eram desconhecidos os trabalhos exaustivos na caserna e os ingentes esforços nas campanhas.

Todos sabemos que hoje, como outrora, a recuperação do soldado pelo Serviço de Saúde é a garantia dos efetivos guerreiros. A França, na guerra de 1914, perdeu cerca de 2.000 médicos por ação inimiga, enquanto, em certa época, seu Serviço de Saúde recuperou 100.000 homens por mês! Daí Clemenceau afirmar:

- Ganhamos a guerra com os nossos feridos.

Georges Benjamin Clemenceau: estadista, jornalista e médico francês (28.09.1841/24.11.1929).

E, a 20 de janeiro de 1862, assentava praça no Corpo de Saúde, como 2° Cirurgião Tenente, por Decreto, conforme se acha publicado em Ordem do Dia da Repartição do Ajudante General sob o n° 303, de 4 de fevereiro (1862). Nessa data prestou o devido juramento. Consorciava-se nesse comenos (momento) o homem afeito a ciência de curar, a divina profissão que espelha bondade, e o intrépido soldado vígil (sentinela, vigilante) nas cruas batalhas ou na defesa sanitária dos campos onde iria, de futuro, estar presente. Cirurgião e soldado, ele trazia para a classe em que seus irmãos

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já exceliam (eram excelentes), a sublimidade de seu apostolado médico e a vocação de seu sangue para a carreira das Armas, fatores que, postos a serviço do Brasil, o dignificaram, tornando-o, por justiça, o modelo vivo de civismo e do cientista talentoso em quem as qualidades invulgares de profissional competente rivalizavam com as louvabilíssimas de chefe íntegro e sereno.

Como simples estudante de medicina dera provas de altruísmo nos relevantes socorros que prestou durante a terrível epidemia de cólera-morbo, que assolou, em 1854, a capital do País. O Governo soube recompensá-lo, condecorando-o com o Grau de Cavaleiro da Imperial Ordem da Rosa, conspícuo (distinto) galardão (laurel).

Era o prenúncio de que sua carreira seria uma brilhante ascensão, pois os exemplos de renúncia e devotamento, que são o apanágio (qualidade inerente) do militar, ele os tinha no seio da própria família, onde pai e irmãos, desveladamente, com disciplina e amor, cooperaram para o progresso e a segurança das instituições nacionais.

A 6 de março (1859) entrava em exercício na Guarnição da Corte e era designado para o Hospital Militar.

Da Ordem do Dia n° 310, de 21 de abril, consta que apresentou o Diploma datado de 11 de janeiro de 1859, com que fora condecorado, por Decreto de 2 de dezembro do ano anterior, Cavaleiro da Ordem da Rosa, a que fizera jus quando acadêmico de medicina, como acima foi dito.

Em seguida, a 15 de junho (1859) era mandado servir na enfermaria da Escola Militar de Aplicação do Exército. Sua permanência aí foi transitória, porquanto, três meses e três dias após, a 18 de setembro (1859), regressava ao primitivo serviço hospitalar. Somente a 4 de maio de 1864, por Portaria Ministerial, foi nomeado para o 4° Batalhão de Infantaria, que seguia para a Província do Rio Grande do Sul, conforme consta da Ordem do Dia n° 398, do dia 6 seguinte. Mas esse ato iria ficar sem efeito logo no próximo dia 1°, em virtude de, naquela data da transferência, haver obtido, em inspeção a que se submetera, quatro meses para tratamento de saúde. Tão pronto se sentiu refeito, apresentou-se pronto para o serviço, a 13 de dezembro (1864), desistindo do restante da licença, pelo que foi elogiado pelo Ministro da Guerra, Brigadeiro Henrique de Beaurepaire Rohan, segundo a Ordem do Dia n° 341, de 17 de janeiro de 1865. Este seu procedimento calou bem nos seus superiores, sobretudo porque o destino que lhe estava reservado era a marcha para a Campanha do Uruguai. De fato, a 5 de fevereiro expedicionava para Montevidéu, integrando o serviço médico da Brigada sob o comando do Tenente-Coronel Dom José Baltazar da Silveira. Dez dias depois, desembarcando no Porto do Buceo, iria incorporar-se ao Exército Imperial, comandado pelo Marechal-de-Campo João Propício Mena Barreto, que cercava a Capital Oriental. Coube-lhe a honra de assistir a capitulação dessa praça, vitória que ajudou, embora em pouco tempo, a construir com galhardia e heroísmo.

O Tenente Dr. João Severiano ficou a dirigir o Serviço de Saúde da tropa de ocupação, até que foi mandado para idêntico encargo da Divisão, em Paissandu, o que se deu a 27 de abril (1865). Seus desvelos profissionais iriam, mais uma vez, ser postos a prova com a epidemia de varíola que grassava na localidade.

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Dizimado o flagelo, dirigiu-se ele, no dia 19 de junho (1865), para a Vila del Salto Oriental, conduzindo alguns bexiguentos convalescentes, onde chegou a 21, indo encarregar-se das enfermarias dos pontões do Rio Uruguai, por ordem do chefe interino do Corpo de Saúde.

O Brasil, entretanto, nessa altura, partícipe do Tratado da Tríplice Aliança, se empenhava em árdua luta contra o Paraguai, já que fora agredido brutalmente pelo ditador guarani Marechal Francisco Solano Lopez. O território brasileiro houvera sido invadido, de surpresa, como, por igual, atacado o Forte de Coimbra e apossada a Colônia de Dourados por seus janízaros (elite do exército dos Sultões otomanos). A pedra de toque fora o apresamento do vapor Marquês de Olinda, a cujo bordo viajava o Deputado Geral e Presidente da Província de Mato Grosso, Coronel Frederico Carneiro de Campos, em águas do Paraná.

A grande revolta espontânea que sacudiu todos os filhos da terra de Santa Cruz também fez vibrar, como era natural, os brios dos homens de farda que, a uma, desejavam partir para os campos de batalha. Entre esses o Dr. João Severiano da Fonseca obteve, a seu pedido, incorporar-se, a 30 do mesmo mês ao Exército do Brigadeiro Manuel Luís Osório, acampado à margem direita do Arroio Juqueri, na República Argentina. A princípio, a 1° de julho (1865), foi assegurar o serviço médico da 8ª Brigada de Infantaria, indo, no dia 15, para o da de Artilharia. Em tais funções andou com a tropa em busca do inimigo.

Havendo o Hospital Ambulante sido dividido em cinco seções, como reza a Ordem do Dia do Exército n° 91, de 3 de setembro (1865), coube-lhe a chefia de sua 5ª Seção.

A 5 de fevereiro de 1866, por Aviso Ministerial foi nomeado 1° Cirurgião de Comissão, posto correspondente, hoje, ao de Capitão.

No Exército, sempre em marcha, rumou, pelas Províncias argentinas de Entre-Rios e Corrientes, ao território inimigo, indo acampar, a 2 de abril, no Porto de Arandas, à margem esquerda do Rio Paraná, em frente ao Forte de Itapiru.

Entregue a seus penosos afazeres nos hospitais de sangue, teve ensejo de assistir aos bombardeamentos de 2 a 16 e aos combates de 10 e 16. A 17 (de abril de 1865) atravessou o Paraná e penetrou no país inimigo, vindo a prestar, a seu pedido, serviços nas linhas de fogo. No seguinte dia assistiu a ocupação e destruição do Forte de Itaipu, poderoso reduto paraguaio e, a 23, ocupava com o Exército o campo entrincheirado de Estero Bellaco, participando da Batalha de 2 de maio. Sua ação enérgica e eficiente, seu zelo desmedido, as constantes provas de inteligência e humanidade revelados em todos os transes dessa campanha memorável, ensejaram-lhe os merecidos encômios (elogios) que esmaltam (enaltecem) a Ordem do Dia n° 153, do General-Chefe, de 10 deste mesmo mês (de maio de 1865).

A 20, empenhava-se com os seus no ataque que desalojou o inimigo das linhas de Estero Rojas. Acampou, nesta data, em Tuiuti, assistindo ao reconhecimento de 22, empenhando-se na Batalha gloriosa, de 24 de maio de 1866, que de imarcescíveis (imperecíveis, eternos) louros cobriu o lábaro estrelado e fez sua já brilhante fé de ofício mais referta de justos elogios. A assistência desvelada que tributava aos feridos não era só o

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natural impulso do militar convicto de suas obrigações regulamentares, mas também, principalmente, a nítida noção humanitária que lhe advinha da altruística profissão que abraçara, como sacerdócio.

Empenhou-se no combate de 28 de maio, presenciou o bombardeio de 14 de junho e os combates que se seguiram de 16 a 18 de julho no Potrero Pires e trincheiras do Sauce, com zelo e atividade, pelo que foi louvado pelo Comandante-Chefe em sua Ordem do Dia n° 3, de 24 do referido último mês.

Em 2 de setembro, foi nomeado chefe do Serviço Médico das Forças Expedicionárias, em cujas funções beneméritas teve azo (oportunidade) de assistir aos inevitáveis e funestos bombardeamentos de 22 e 23 de setembro e 30 de outubro (1866). O primeiro desses assinala o malogrado ataque a Curupaiti, no qual perdeu ele seus dois irmãos, o Tenente Hipólito e o Alferes Afonso Aurélio.

Por serviços relevantes prestados naqueles combates de meados de abril a 24 de maio, foi promovido ao grau de Oficial da Ordem da Rosa, por Decreto de 17 de agosto e Diploma de 24 de outubro, tudo como consta da Ordem do Dia da Repartição do Ajudante General n° 536, de 30 de dezembro de 1866.

No ano seguinte (1867), a 5 de abril, por ocasião do surto epidêmico de cólera-morbo, coube-lhe organizar e dirigir o Serviço Médico da Ambulância Volante de Artilharia e muito bem se houve no executar a profilaxia e o combate contra esse terrível mal levantino, que vinha dizimando mais combatentes nos campos cruentos da luta que as mortíferas balas inimigas!

Ao lado de Osório, em 20 de julho, no comando da Ambulância, participava da evolução de flanco sobre Humaitá, seguindo depois para Tuiu-cuê, acompanhando o 1° Regimento de Artilharia a Cavalo, sob o comando de Emílio Luís Mallet, pelo que assistiu ao combate, de 31 de julho, sobre as avançadas inimigas e, a 6 de agosto, nos reconhecimentos sobre as linhas do Espinilho e do Passo Pocu.

Pela Ordem do Dia n° 579, de 17 de setembro (1867), consta haver sido agraciado com o grau de Cavaleiro da Ordem de Cristo pelos serviços prestados aos feridos nos combates no Potrero Pires e trincheiras do Sauce, em julho de 1866, por Decreto de 13 de abril e Diploma de 12 de junho, tudo de 1867. Por sua eficiente atuação nos hospitais de sangue de San Solano, Estabelecimento e Espinilho, no início do ano de 1868, foi fartamente elogiado nas Ordens do Dia do Exército em Operações.

A 4 de abril do mesmo ano (1868) marchou com o Exército que acampou em Pare-cuê. A 8 de maio assumia a direção do Serviço Médico das Forças Expedicionárias do Chaco. No arroio Guaicuru assistiu ao reconhecimento feito em 3 de julho. A 8, marchou a reunir-se ao 1° Corpo do Exército, o que fez a 17. A 22, incorporou-se ao 3° Corpo de Exército de Vanguarda, ao mando do Marques do Herval. No ataque e assalto do Passo Real do Tebicuari, a 29 de agosto, viu expirar, em seus braços, ferido mortalmente na testa, o Major Joaquim Pantaleão Tales de Queiroz, Comandante do 7° Regimento de Cavalaria, malgrado seus esforços de homem de ciência.

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Testemunhou o reconhecimento a mão armada sobre as linhas inimigas de Pequiciri e Angustura. Foi nas trincheiras avançadas, a frente desse primeiro sítio, que o ilustre médico militar teve conhecimento, pela Ordem do Dia do Ajudante General sob n° 638, de 28 de setembro (1868), que por Decreto de 11 de abril e Diploma de 2 de maio fora agraciado com o grau de Cavaleiro da Ordem Imperial do Cruzeiro, pelos excelentes serviços prestados nos prélios (combates) de 19 de fevereiro, sendo o primeiro oficial do Serviço de Saúde a receber esse laurel.

Sempre entregue a faina diuturna nos hospitais de sangue, vibrou de entusiasmo ante a capitulação da fortificação de Angustura. A 30 de janeiro de 1869, marchou para Assunção, onde chegou três dias após. Por Decreto de 20 de maio, publicado a 28, foi promovido ao posto de 1° Cirurgião efetivo, por merecimento em campanha e a 22 de junho passava a servir no Hospital Militar Brasileiro de Assunção. Em 22 de outubro era transferido para a Ambulância da Guarnição.

Conquanto a guerra houvesse tido fim, a 1 de março de 1870, sob a espada do Brigadeiro José Antônio Correa da Câmara, as margens do Aquidabanigui, o Capitão 1° Cirurgião Dr. Severiano continuou a servir no território do vencido, a princípio, a 3 de setembro, na enfermaria do Mangrulho e, depois, no Hospital de Assunção, em 7 de fevereiro de 1871. Foi aí que, um mês transcorrido, teve conhecimento pela Ordem do Dia do Ajudante General, n° 758, haver sido, por Decreto de 6 de setembro e Diploma de 28 do mesmo mês, tudo do ano anterior (1870), promovido, por proposta do Marques de Caxias, ao grau de Comendador da Ordem da Rosa, em atenção aos valiosos serviços prestados na guerra do Paraguai nos combates de dezembro de 1868. A 17 de novembro (1871) embarcou para a Capital do Império, conduzindo doentes de Assunção e Humaitá, apresentando-se no destino a 2 do mês seguinte, sendo designado pelo Cirurgião-mor do Exército, o Conselheiro Dr. José Ribeiro de Souza Fontes, para servir no Hospital Militar da Guarnição da Corte. Com o Diploma de 13 de julho foi-lhe conferida a Medalha Geral de Campanha do Paraguai, mandada cunhar com o próprio bronze dos canhões tomados ao inimigo, a qual trazia sobre a fita o passador de prata e o número 5, correspondente a totalidade dos anos em campanha que o Decreto de 6 de agosto de 1870 lhe outorgava (Ordem do Dia n° 877, de 18 de setembro de 1872). Dessa mesma Ordem do Dia constava haver sido nomeado para servir na Divisão organizada na Província do Rio Grande do Sul. A 21 do aludido mês, porém, era tornado sem efeito esse ato, devendo permanecer em serviço na Guarnição da Corte até segunda ordem. A 27 de março de 1875, por Portaria, foi posto a disposição do Ministério dos Estrangeiros, a fim de integrar a Comissão de Limites entre o Brasil e a Bolívia, ficando-lhe garantido o lugar de Segundo Cirurgião no nosocômio em que laborava, o que consta da Ordem do Dia n° 119, de 6 de abril (1875).

A 1° de maio (1875), acompanhando a Comissão, rumou para Corumbá, onde teve oportunidade de patentear, mais uma vez, as virtudes de seu largo coração fazendo acolher no Hospital de Caridade de São João os emigrados paraguaios que, fugindo a miséria pós-guerra, acompanharam as forças de ocupação, de regresso do país vizinho.

Nessa cidade mato-grossense, a 11 de janeiro de 1877, contraiu núpcias com D. Anália d’Alicourt Sabo, de cujo enlace houve dois filhos: Hermes

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Severiano e Afonso Deodoro, aquele nascido em Corumbá a 14 de setembro de 1877 e batizado em Cuiabá em 5 de março de 1878, que se fez militar, atingindo o posto de Coronel de Artilharia, e bacharel em Matemática e Ciências Físicas, e o último, natural do Rio de Janeiro a 25 de janeiro de 1880. Ambos não mais existem.

Na Comissão exerceu suas funções com devotamento, assiduidade e grande competência, o que ressalta dos copiosos louvores que enxameiam sua opulenta fé de ofício. Por Aviso do Ministério de Estrangeiros, sob n° 3, de 18 de fevereiro de 1878, foi dispensado dessa Comissão, merecendo mais um extenso elogio do Ministro Dr. Domingos de Souza Leão, 2° Barão de Vila Bela.

Por Portaria de 18 de abril, foi reintegrado no lugar que ocupava no Hospital Militar da Guarnição da Corte. A 22 de junho, foi-lhe conferida a medalha criada pelo Decreto n° 3.468, de 8 de maio de 1865, para os que lutaram na República Oriental do Uruguai de 1864/5, sob o comando do Marechal-de-Campo João Propício Mena Barreto, Barão de São Gabriel, conforme se lê na Ordem do Dia n° 1.412, de 28 de junho. Da mesma consta, ainda que por Decreto, de 2 de maio de 1877, e Diploma, de 9 do dito mês, foi nomeado Cavaleiro da Ordem de São Bento de Aviz, a única Ordem Nacional, que, como militar, lhe faltava possuir, por isso que sua outorga era condicionada, entre outras exigências, possuir o oficial, no mínimo, três lustros (quinquênios) de serviço. A 22 de abril do ano de 1880, era recebido na Academia Imperial de Medicina como membro efetivo, sendo destarte o primeiro médico militar a ter ali ingresso, honra assaz merecida. Até 30 de abril de 1870, exerceu interinamente o cargo de primeiro Cirurgião do Hospital Militar da Corte, o qual retomou a 6 de dezembro para deixá-lo de vez a 10 de maio de 1880, em que passou a servir como 2° Cirurgião do mesmo estabelecimento hospitalar.

A 17 de julho, apresentou às autoridades competentes a certidão de seu casamento e a do batismo de seu primogênito. A 6 de novembro assumia o lugar de primeiro médico do Hospital Militar do Andaraí, por troca feita com o Cirurgião-mor de Brigada Graduado Dr. Manuel Cardoso da Costa Lobo. Em 12 de fevereiro de 1881, entregou, para os efeitos legais, a certidão de batismo de seu segundo filho. Por Decreto, de 11 de junho, era promovido, por merecimento, a Cirurgião-mor de Brigada, posto correspondente a Major-médico, pelo que veio a chefiar a enfermaria da Escola Militar da Praia Vermelha, a 11 de abril de 1882. A 6 de outubro, no entanto, retornava ao Hospital Militar da Corte para exercer as funções de seu primeiro Cirurgião. Da Ordem do Dia n° 1.842, de 21 de maio de 1884, consta haver o Dr. João Severiano da Fonseca apresentado o Diploma de Membro da Academia Imperial de Medicina, com sede no Rio de Janeiro, para qual fora eleito em sessão, de 12 de abril de 1880, com o beneplácito de Sua Majestade o Imperador D. Pedro II expresso em Aviso de 17 do mesmo mês e ano. Sua monografia inédita apresentada àquele sodalício (agremiação, sociedade) versou sobre “Climatologia de Mato Grosso”.

Por Decreto, de 15 de abril de 1885, publicado na Ordem do Dia n° 1.921 do dia seguinte, foi promovido por merecimento a Cirurgião-mor de Divisão, posto correspondente a Tenente-Coronel médico. Continuou a exercer a função naquele Hospital e substituiu, por várias vezes, o Cirurgião-mor do

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Exército Dr. Antônio de Souza Dantas, durante as suas faltas e impedimentos.

A 13 de julho de 1889, foi nomeado, por Decreto, professor da cadeira de Ciências Físicas e Naturais do Imperial Colégio Militar, recém-instalado, consoante publicação na Ordem do Dia n° 2.269 de 17 desse mesmo mês.

A República, proclamada a 15 de novembro, veio encontrá-lo na direção interina do Hospital Militar da Guarnição da Corte e no exercício do magistério do novel educandário. Quatorze dias depois do evento que derrocara o regime governamental do Brasil, o insigne militar teve a coragem cívica de, na primeira sessão do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, realizada na noite de 29, propor que a cadeira em que o Imperador ora destronado costumava sentar-se durante as sessões fosse por jornais ocupada e envolvida em crepe, em homenagem ao magnânimo Monarca. “Eu me levanto, para pedir ao Instituto que no meio de seus arroubos pela mãe-pátria, não se esqueça da gratidão que deve àquele que foi um protetor e um pai e que nesta hora marcha para o exílio”, foram palavras de seu sentido discurso.

Desde 1° de outubro de 1880, fazia o Dr. João Severiano parte desse Instituto, do qual foi sócio correspondente, efetivo e honorário, chegando a ocupar os cargos de 2° e 1° Secretário e 1° Vice-Presidente. Aliás, pertenceu a várias outras agremiações literárias e científicas, entre as quais o Instituto de França, que lhe conferiu as Palmas Acadêmicas.

Por Portaria de 4 de janeiro (1890), tornada pública pela Ordem do Dia n° 25, de 21 do referido mês (janeiro de 1890), foi nomeado para fazer parte da Comissão encarregada de elaborar um projeto de reorganização do Exército, consoante os modernos princípios das ciências militares, com prejuízo de suas funções hospitalares. A 3 de março (1890), foi mandado assumir as de Diretor interino do supra-aludido Hospital Militar da Guarnição do Rio de Janeiro. Por Decreto de 27 de março, publicado na Ordem do Dia n° 49 de 31 do mesmo mês, era promovido a Coronel-mor de 1ª classe. Por esse motivo, deixou, a 16 de abril, a direção do Hospital, entrando, a 17, no exercício de Inspetor do Pessoal do Serviço Sanitário do Exército. Por Decreto de 1° de maio (1890) foi promovido a General-de-Brigada graduado o que consta da Ordem do Dia n° 59, de 3 desse mês. Da Ordem do Dia n° 78, de 28 de junho, consta haver sido jubilado, a pedido, sem vencimentos no lugar de Professor da cadeira que lecionava no Colégio Militar (Decreto de 25 desse mesmo mês). De outra Ordem do Dia n° 85, de 29 de julho, consta lhe haver sido feita a entrega da Medalha da Argentina, comemorativa da guerra contra o Paraguai. A 16 de setembro assumia interinamente as funções de Inspetor Geral do Serviço Sanitário do Exército. Por Decreto, de 4 de outubro, constante da Ordem do Dia n° 116, de mais dois dias, era efetivado no posto de General-de-Brigada. A 24 do mês em curso, era condecorado com o grau de Oficial da Ordem Militar de São Bento de Aviz (Ordem do Dia n° 126, de 29 de outubro de 1890).

Em decorrência do artigo 80 do Regulamento aprovado pelo Decreto n° 307, de 10 de maio, tomou assento no Conselho Supremo Militar de Justiça conforme Aviso do Ministro da Guerra, de 20 de dezembro, para elucidar as questões de Medicina Legal nos processos de justiça.

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A 25 de fevereiro de 1891, era eleito Senador da República, representando o Distrito Federal. Encerrados os trabalhos do Congresso, reassumiu o seu cargo militar, ainda que por pouco tempo, em virtude de parte de doente que, a 13 de abril apresentou. Restabelecido de sua rápida enfermidade retornava a atividade, reassumindo as funções de Inspetor Geral, as quais deixou em 16 de junho por voltar a ocupar sua cadeira de Senador a 1ª Constituinte Republicana.

Em 12 de setembro, a Ordem do Dia n° 245 publicava sua nomeação para Membro da 4ª Seção da Comissão Técnica Militar Consultiva e a 5 de novembro reassumia o ilustre General as funções de Inspetor Geral.

Em 1892, a 8 de fevereiro, dava parte de doente, até que por Decreto de 7 de abril, publicado na Ordem do Dia n° 319, de 10 do mesmo mês, era reformado. Sua reforma não foi voluntária, todavia. É que, com o golpe de Estado desferido por seu mano, o Generalíssimo Manuel Deodoro da Fonseca e sua consequente renúncia em favor do Vice-Presidente da República o General Floriano Peixoto, 13 oficiais-generais de terra e mar exigiam, mercê de manifesto a esse último, entregue pelo Marechal José de Almeida Barreto, se procedessem a novas e imediatas eleições. Um dos signatários desse importante documento era o General Dr. João Severiano. No dia seguinte, 4 de abril, todos os treze oficiais-generais eram reformados, sendo que o médico no posto de General-de-Divisão.

No dia 10 (de fevereiro de 1892), seria ele preso juntamente com os Drs. José Joaquim Seabra, Artur Fernandes Campos da Paz, Clímaco Barbosa e Manuel Lavrador, no prédio n° 21 da Rua da Relação pelo próprio Chefe de Polícia Dr. Goldsmith, em virtude da notícia que tivera de que ali se achavam, armados de revólveres, conspirando.

A 4 de novembro de 1895, reassumia o cargo de Inspetor Geral, em virtude de, por Decreto de 31 de outubro, publicado na Ordem do Dia 5 daquele mês, o Presidente da República haver revogado o Decreto, de 7 de abril de 1892, julgado ilegal e inconstitucional pelo Acórdão do Supremo Tribunal Federal, de 19 de setembro do corrente ano.

A 3 de agosto de 1896, falecia sua esposa, Dona Anália d’Alincourt Fonseca, no Rio de Janeiro, tendo ele apresentado a certidão de óbito de 14 de setembro.

Sempre no exercício de suas altas funções, a 15 de março de 1897, contraia segundas núpcias com a Srª Horminda dos Santos Cruz de Figueiredo, de cujo enlace houve um filho Carlos, nascido a 2 de novembro (1897).

Cinco dias após o nascimento desse seu caçula, vinha a falecer na Capital da República o preclaro militar e cientista, com 61 anos, 7 meses e 10 dias de idade, de quem o Brasil esperava ainda inestimáveis serviços, ditados pelo seu sadio patriotismo, sua pujante cultura, seu acendrado amor a profissão médica e militar.

Seus reais méritos o levaram a Patrono do Serviço de Saúde do Exército, sem favor alias, por consenso unânime dos que o integravam, por ocasião do memorável prélio.

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O Dr. João Severiano da Fonseca reunia, de fato, qualidades excepcionais para merecer o justo galardão com que reconhecidos sufrágios souberam perpetuar sua memória.

Poeta inspirado, escritor primoroso, historiador fecundo, naturalista exímio, a Buffon somente comparável, suas obras ai estão a atestar conhecimentos precisos, a cintilância de uma pena vigorosa: “Da Moléstia em Geral” - tese de doutoramento; “Raças e Povos”; “A Gruta do Inferno da Província de Mato Grosso”; “Origem das Sociedades de Estudo”; “Viagem ao Redor do Brasil”, também escrito em Francês, “rico manancial de ensinamentos oportunos sobre as vastas regiões da nossa Amazônia”; “Climatologia de Mato Grosso”; “o Celibato Clerical e Religioso”; “Novas Investigações sobre Mato Grosso”; e, “Dicionário Geográfico de Mato Grosso”.

O Governo da República, tendo em conta a eleição que o Serviço de Saúde do Exército fizera de seu insigne Patrono, baixou o Decreto-lei n° 2.497, de 16 de agosto de 1940, concebido nos seguintes termos:

Decreto-lei n.o 2.497, de 16 de agosto de 1940.

O Presidente da República, usando da atribuição que lhe confere o artigo 180 da Constituição, e considerando

- que o General Dr. João Severiano da Fonseca, durante a sua carreira de médico militar, prestou ao Exército os mais assinalados serviços, tanto na paz como na guerra, consagrando à saúde do soldado todos os seus esforços e os maiores sacrifícios;

- que, por esse motivo, está seu nome vinculado às tradições do Serviço de Saúde do Exército, em cuja administração deixou um traço marcante de sua passagem;

Decreta:

Artigo Único. É considerado “Patrono do Serviço de Saúde do Exército” o General médico Dr. João Severiano da Fonseca.

Rio de Janeiro, 16 de agosto de 1940, 119° da Independência e 52° da República. (aa) Getúlio Vargas - Eurico Gaspar Dutra.

A seus títulos agremiativos e culturais, outros vieram juntar-se como: Membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (1882), do qual foi também secretário; do Instituto Farmacêutico do Rio de Janeiro; da Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro; da Sociedade de Geografia de Lisboa; da Sociedade de Geografia de Madri; do Instituto Arqueológico Alagoano; do Ateneu de Lima; e do Instituto Médico Brasileiro.

A Academia Alagoana de Letras traz em uma de suas cadeiras o festejado nome desse nordestino que, nos raros vagares de sua afanosa existência, votada a construção da paz e aos reclamos dos que sofriam, sendo um bravo na guerra, enriqueceu as letras pátrias com as gemas de seu talento de escol.

Desaparecido da lista dos vivos, suas obras beneméritas permanecem perenes a afirmar o sumo valor do primeiro médico que atingiu o generalato do Exército.

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Disse Scipião que “a morte não é senão o retorno à verdadeira vida”. Esta é, sem dúvida, perpetuada através da memória, a lembrança de feitos meritórios, a crença de que o túmulo é, na realidade, “um monumento levantado nos limites de dois mundos”.

Na duplicidade de seus árduos misteres, homem de farda e de avental níveo, pleno de bondade e de renúncia, sacerdote consolador das mágoas físicas, sempre se revelou leal e tolerante, inteligente e bondoso, digno e bravo, o mesmo homem de caráter ilibado, virtude que Gustavo Le Bon considerava fundamental na grandeza de um povo.

A nobreza de seus sentimentos humanitários, a retidão de sua conduta pela vida afora, a coragem máscula demonstrada a cada passo, o vigor de suas convicções ideológicas, fizeram-no o símbolo excelso do Serviço de Saúde do Exército - exemplo magnífico e resplandecente de glórias inconspurcáveis (imaculadas).

O maior preito que, ainda, se lhe poderia prestar era aqui transcrever trecho de seu discurso ao reassumir “o cargo de que fora violentamente espoliado em 7 de abril de 1892”; “Venho de novo ocupar o meu lugar. Já sabeis o meu modo de servir. Na balança de meus julgamentos não tem peso igual o brio e o desleixo, e tão pronto sou em reconhecer e afagar o merecimento e os bons serviços como o sou em profligar (deitar por terra) e punir a tibieza, a desídia e o desmazelo”.

Sua escolha para Patrono foi homologada pelo Decreto n° 51.429, de 13 de março de 1962, do Poder Executivo Federal. (PILLAR)

- Viagem ao Redor do Brasil (1875 – 1878)

Capítulo IV

As Cachoeiras

I

Iniciamos a navegação, por um trato de mais de quatrocentos quilômetros, toda atravancada de Penedos, Corredeiras, Cachoeiras e Saltos, que, impedindo-a completamente em alguns pontos, dificultam-na imenso no resto. Esses tropeços variam conforme a estação e a força das águas, que aumentam ou diminuem o número das Cachoeiras, tanto como o seu ímpeto e braveza. Cachoeiras há dificílimas de transpor, na enchente, que nas águas baixas são pouco sensíveis, e vice-versa; e é isso o que faz variar o seu número para os viajantes, dos quais uns contam vinte e uma, outros dezenove, outros menos ainda; sendo nestes casos as restantes designadas como simples corredeiras.

São altas Guajará-mirim, Guajará-açu, duas da Bananeira, Pau-Grande e Laje, no Mamoré; Madeira, Misericórdia, e duas do Ribeirão, Araras, Pederneiras, Paredão, Três-Irmãos, Salto do Jirau, Caldeirão do Inferno, Morrinhos, Salto do Teotônio, Macacos e Santo Antônio. Há ainda duas perigosas sirgas entre as Cachoeiras do Ribeirão e Araras, denominadas da Pedra-Grande e dos Periquitos, bem assustadoras no tempo das cheias.

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Figura 29 – Descida das Cachoeiras (Fonseca)

Essas denominações foram-lhes impostas, segundo diz Baena, pela Comissão de limites de 1782, que assim as consignou nos seus Mapas; sendo que anteriormente eram conhecidas pelos nomes de Panelas, Cordas, Papagaios, Javalis, Tejuco, Tapioca, Uainumu, Mamoriné, Tamanduá ou Arei, Maiari, Paricá, Arapacoá, Coati, Guara-assu (Guajará-açu), Natal, Gamon e Aroaiá, também chamada S. João.

A travessia das Cachoeiras é quase sempre feita à sirga e algumas vezes à toda força de remos. Quando à sirga, parte dos tripulantes salta nos penhascos laterais, espiando a embarcação com dois grandes cabos à proa; outra parte, por água, ora nadando, ora apoiando-se nos Penedos, aguenta-a com outra forte espia, que pouco a pouco vão dando de mão, para dar seguimento ao baixel (pequeno navio ou barco). À proa vão os dois mais possantes e experimentados remeiros, armados da zinga, grande vara que empregam muitas vezes em vez de remos, para dar impulso à embarcação, desviá-la dos penedos e também para aguentá-la na marcha: sobre a tolda, o piloto empunha o leme, dando a direção conveniente, mudável (mutável) a cada instante, porque a cada instante o Penhasco e o rebojo lhe estão na frente.

Quando a travessia é a remos, o que se faz nas Corredeiras ou Cachoeiras de pequenos saltos, vão todos os remeiros a postos, estugando-se (picando a voga, apressando-se) nas remadas; ora enterrando os remos, ora raspando apenas a superfície das águas, conforme as vozes do comando do piloto: “raspa, ou rema duro”: na proa, o remador de mais confiança tem em mão o remo grande, assim chamado por ser sua pá de três decímetros sobre dois e meio de largo, o qual só é empregado nas ocasiões difíceis em que o bote, impelido como uma flecha pela força da corrente, tem de mudar de direção, entre os Escolhos (penedos), o que, então, faz com uma rapidez pasmosa; soçobrando (naufragando) no caso contrário.

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Figura 30 – Guajará-mirim (Fonseca - Google)

Do concurso uniforme de todos depende a salvação da embarcação e de tudo o que conduz: perícia do piloto, pujança e rapidez de movimento do manejador do remo grande e uniformidade de ação em todos os outros remeiros. Se aqueles se descuidam por um instante, se destes algum afrouxa, tornando subitamente mais fraco o esforço de um lado do que do outro, rompe-se o equilíbrio na marcha, e a perda é inevitável.

Felizmente, esses passos difíceis são rápidos, tal a força vertiginosa da corrente mas, apesar disso, quando — passado o perigo, os remeiros afrouxam o manejo, é a água das Cachoeiras que os cobre, que oculta o suor que os banha, tal o esforço empregado. Sua posição, além de perigosa, é incômoda: sendo toldadas as canoas, deixam, apensa (pendente), um baldrame de um palmo, mais ou menos, de largura, onde eles se colocam mal assentados, com uma perna dobrada, e a outra pendente e dentro d’água. Nada tendo que os ampare nos banzeiros ou grandes escarcéus que os rebojos formam, e que dão à embarcação movimentos desordenados, têm por única garantia de salvação o passarem o braço num gancho de pau preso na tolda, o que nem sempre os livra de serem arrebatados pelo marulho (agitação das ondas).

É notável nessas paragens de Cachoeiras o movimento das águas: vê-se o Rio dividido em três zonas: no meio, a corredeira, onde a velocidade é enorme, e lateralmente os remansos imóveis como água estagnada; e entre estes e aquela uma outra corrente em sentido inverso da do Rio, sendo digna de observação tal diferença de movimentos em superfície tão unida, e cuja separação é por assim dizer linear.

Quando, algumas vezes, o remo grande não consegue desviar com suficiente ímpeto o baixel da corrente para o remanso, a embarcação penetra apenas a meio, é com supina (excessiva) dificuldade que a tripulação consegue fazê-la avançar, tornando-se necessário rebocá-la a nado, por isso que não só o remanso nenhuma resistência oferece à ação dos remos, como a força da corrente e os rebojos, na zona imediata, tendem a arrastar a popa para a corredeira.

Jamais passam as embarcações carregadas nas Cachoeiras, e raro nas corredeiras. O mais conveniente é folgá-las na proa, deixando à popa a carga necessária para não caturrarem (balançarem) nos banzeiros e alagarem-se.

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As principais Cachoeiras são, de ordinário, na volta dos Rios; sendo no ponto mais saliente da volta a sua maior força e também o maior perigo, por isso que os escarcéus (vagalhões) são aí maiores e as ondas espaldeiam a (investem contra os flancos da) embarcação.

Conhece-se a aproximação da Cachoeira pela maior velocidade que as águas vão adquirindo: os Portos são sempre imediatamente juntos ao perigo; e às vezes a corrente é, já, bem veloz, ao chegar-se ao ponto onde se deve abicar. Manobra-se, então, com a maior rapidez, energia e segurança de vista, para cair-se no remanso: abica-se e descarrega-se. Ao menor descuido pode a embarcação garrar (ficar a embarcação à mercê da água) e ir despenhar-se na Cachoeira. Quando esta é de salto impossível de ser transposto, varam-se as embarcações por terra, de um ponto ao outro.

II

O Guajará-mirim é uma das que mais variam, desaparecendo quando as águas do Mamoré se avolumam. Seu trajeto é breve, mas perigoso, por ser o Canal muito estreito. Fica este à margem esquerda, logo encostado à grande laje que a borda (C).

Assim que abicamos, foi o piloto Gomes reconhecer o passo, enquanto se procedia ao descarregamento do bote; indo as cargas conduzidas por um pequeno caminho (D) de duzentos e cinquenta metros de extensão, onde são Portos as pequeninas enseadas, marcadas com as letras A e B. Uma cordilheira de penedos, com uns cento e cinquenta metros de largura, atravessa o Rio de lado a lado, alargando-se em suas margens em duas enormes lajes de aparência diorítica, cuja maior é já designada à esquerda. Deixava ver em alguns lugares a formação porosa de uma espécie de canga envernizada (quartzo ferruginoso) semelhante ao fonólito (rocha vulcânica). O Rio, que era de cerca de quatrocentos metros, tem aqui dobrada largura. O caminho vai beirando quase a orla da barranca; a terra vegetal descobre-lhe xistos argilo-talcosos, sem estratificação conhecida.

Às 14h30, nossa embarcação desce à sirga, contida pelos grossos cabos à proa e popa que a guarnição aguenta, para não deixá-la ser tomada pela torrente; para o que os nossos homens ora seguem por cima das lajes e penhascos maiores, cheios de pontas e depressões, ora à nado na correnteza, ora agarrando-se aos penhascos ou socorrendo-se uns aos outros para não serem levados no cachão das águas. Receosos dos perigos da travessia, que pela primeira vez arrostávamos, desembarcamos todos à exceção do 1° Tenente Frederico que, digno Oficial do Mar, quis por si próprio conhecê-los e estudá-los. Três minutos durou a travessia, e o bote veio abicar e receber a carga no Porto de baixo.

Os engenheiros Keller colocam a Guajará-mirim à 10°44’32,8” de Latitude Sul e 22°3’42” Longitude Oeste do Rio de Janeiro; dando-lhe a altura de 144,06 metros (na verdade 118 metros) sobre o nível do Mar; Edward D. Mathews dá 510 pés ou 155,04 metros, alturas que entretanto me parecem mui fracas.

Aqui encontramos o resto de uma canoa de um desventurado negociante, chamado Pinheiro, que há ano e tanto subia com dois botes carregados de gêneros do Pará; e em viagem perdeu quase toda a tripulação de febres malignas.

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Figura 31 – Guajará-açu (Fonseca - Google)

Baldo de recursos e não tendo outro remédio a dar, abicou aqui; fez um rancho, onde depositou todo o seu carregamento, e seguiu Rio acima a buscar novos remadores, deixando gravado numa árvore seu nome e o motivo por que aí ficava a sua carga, a qual confiava à proteção dos passageiros: tal como Napoleão, e com o mesmo êxito, aliás, — confiou-se à generosidade dos ingleses, na falta de cousa melhor. Quando, dois meses passados, apenas, aí voltou, nada mais viu senão o rancho vazio e os restos do bote, tais quais hoje nós mesmos vemos. Vivem nestas regiões os índios Jacarés, tribo pacífica, e que às vezes vêm em socorro aos viandantes: uns atribuem-lhes o roubo, outros a viajantes bolivianos que por aí passaram.

No dia seguinte, 6, terça-feira, saímos da Guajará-mirim, por volta das 6 da manhã e, pouco depois de meia hora, abicamos ao Porto de cima (A) da Guajará-açu, também a margem esquerda e bastante parecida com aquela, com a diferença, apenas, que o seu qualificativo tupi indica. Dista uma Cachoeira da outra nove quilômetros, mais ou menos. Descarregou-se o bote, que desceu à sirga. A estrada das cargas é de uns quatrocentos metros; mas nas atuais circunstâncias de vazante do Rio pode-se-lhe encurtar a distância num terço, levando-se, como se fez, as cargas pelo pedregal da margem.

Às 2 da tarde, continuamos a derrota. Com um seguimento de doze minutos, descobrimos para NE um morrote que disseram-nos ser o da Cachoeira do Madeira, em frente à foz do Beni. O Rio já tornou-se piscoso; sendo digno de reparo a falta, quase absoluta, de peixe que encontramos nestes dias, mesmo nos remansos da outra Cachoeira, lugares que, por serem de águas mortas, são muito piscosos. Hoje tivemos algumas Piraíbas (Brachyplatystoma filamentosum), e Jaús (Zungaro jahu), de mais de metro e meio, algumas Traíras e Batuqueiros, a melhor espécie dos Pacus, muitas Piranhas e dois peixes, novos para mim, o Cascudo, espécie de Acará, e que é peixe muito comum nos Rios de Mato Grosso. Já se vê que o dia não foi mau para nós, que, sem sermos gastrônomos, bastante necessidade tínhamos de refazimento (provimento) da despensa; e veio amplamente compensar-nos das misérias passadas.

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Figura 32 – Cabeça Bananeiras (Fonseca - Google)

A 7 (quarta-feira), partimos, logo às 5h30. Meia hora depois, avistamos as primeiras lajes, Ilhotas avançadas da grande Cachoeira das Bananeiras, uma das maiores e mais respeitadas dos dois Rios. Às 7h40 passamos dois pequenos arroios, à direita e esquerda, a que se impuseram os nomes de Clemente e José Pires, em honra dos dois nossos excelentes auxiliares, o piloto e o proeiro, manejador do remo grande. Uma hora depois, com uma velocidade de nove milhas por hora, abordamos ao Porto superior da Cabeça da Cachoeira (A), à 3,5 léguas do Guajará.

Esta se estende por perto de dez quilômetros, apenas separada por um pequeno trato despido de rochas e parcéis; o que fê-la considerar-se uma só, distinguindo-se-lhe as divisões com os nomes de Cabeça e Cauda.

Ricardo Franco demarcou a cabeça, isto é, o Porto A, aos 10°37’, e o Porto B, aos 10°33’S. O Sr. Keller dá-lhe a altura de 137,3 metros (109 metros) sobre o Mar.

É a Cachoeira das Bananeiras, uma formidável corredeira, com saltos e passos dificílimos umas vezes, e outras impossíveis de transpor, na Cabeça há necessidade de varar as embarcações, isto é, de conduzi-las por terra do Porto A ao B, qualquer que seja o estado do Rio; e a Cauda, também oferece muita dificuldade, sendo todavia vencida, quase sempre, à sirga.

Chegados ao Porto de cima, A, da cabeça, às 6h35, e afiançando alguns da tripulação que na vazante a corredeira perdia muito da sua força e dava Canal, que o nosso bote podia transpor facilmente; descarregou-se este, e, às 10 horas, começou a descer à sirga. O Canal ficava próximo à orla direita de uma grande Ilha, quase a meio Rio, diziam haver, também, outros mais chegados à margem esquerda e procurados nas enchentes extraordinárias.

Apesar do trajeto daquele Canal (C) ser de uns seiscentos a setecentos metros, o bote só alcançou chegar ao Porto B, no dia seguinte, ao meio-dia. O varadouro é de duzentos e vinte metros: no Porto B há um bom local para acampamento, junto a uma pequena abra (baía), com Praia de fina e branca areia, onde se desliza um veiozinho de excelente água.

Carregando de novo, desceu o bote às 2 da tarde; tomou direção à margem direita, passando entre uma Ilha, que logo aí se encontra e à margem esquerda, sendo esse Canal, que é, entretanto o melhor, ainda atravancado por um pequeno salto de palmo de altura logo em seus começos.

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Figura 33 – Cauda Bananeiras (Fonseca - Google)

A montaria, que de tanta utilidade e necessidade nos era, desapareceu hoje, na passagem da Cachoeira, salvando-se a nado seus dois tripulantes. Vai-se-nos na pior ocasião, agora que os mantimentos nos vão escasseando; visto que com ela contávamos para os reconhecimentos do Rio, o exame dos passos difíceis e dos Canais, e também para prover-nos de peixe e de caça.

Às 2h45 chegamos à Cauda, ou segunda parte da Cachoeira, formada de um sem número de Ilhotas e penedos onde, na extensão de uns seis quilômetros, há necessidade de descarregar-se a canoa, de modo a folgar a proa. Saltaram também as mulheres, o criado e o servente. A remos, raspando com uniformidade, força e presteza, a superfície das águas, deslizou-se o bote com o ímpeto de uma flecha, até que as vozes enérgicas e rápidas do piloto: “Remo grande! e — Raspa duro!” deu-nos a entender que estávamos num rebojo, ou com rochedo à proa: o proeiro Clemente enterrou o remo grande, a guisa de leme; os remeiros dobraram de força e rapidez, mas roçando apenas a tona d’água; e o bote mudou de rumo, com uma prontidão e docilidade, à primeira vista, impossível em tão forte e vertiginosa corrente; fazendo-se em menos de seis minutos a travessia de mais de dois quilômetros dessa corredeira. Nesta estação é isso mais fácil, dizem os navegantes mas, nas enchentes há necessidade de descarregar-se toda a embarcação. No Porto (B) abicou-se: a noite carregou-se o bote e às 5h23 do dia 9, seguimos viagem. Quase uma hora depois, se passava o Rio Preto, de quarenta metros (90 metros) de foz, à margem esquerda e junto a um morrote. Às 7h10 chegava-se ao Porto de cima da Cachoeira do Pau-Grande, cerca de vinte quilômetros abaixo das Bananeiras, onde se descarregou completamente a embarcação para passá-la à sirga, no que gastou-se menos de duas horas.

O caminho por terra é de trezentos e sessenta metros: formoso e aprazível é o acampamento do Porto inferior (B), assombrado por gigantes gameleiras ou sapopembas. Uma delas, e a maior, jaz por terra, parecendo ter tombado há pouco tempo, tão viçosa ainda está: mede trinta e um palmos e duas polegadas de circuito, dois metros acima do solo; dando espaço suficiente para sobre seu tronco passearmos, era alguns metros, meus dois companheiros e eu, a par uns dos outros. Cobrem-no inúmeras parasitas, entre as quais uma formosa “echmoea discolor”, em plena florescência. Tem esta Cachoeira cerca de um quilômetro de extensão: dizem ser terrível nas cheias dos Rios. Nas cercanias do acampamento, encontrei o conamby (phyllantus c.), narcótico empregado pelos índios; e a spilanthes oleracea, ou jambu, também conhecida por agrião do Pará.

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Figura 34 – Pau Grande (Fonseca - Google)

Aparelhado o bote, pusemos-nos em marcha às 14h10. Às 14h51, chegamos à Laje, a pouco mais de seis quilômetros abaixo da precedente. Apresenta-se-nos como uma corredeira de uns mil e duzentos a mil e quinhentos metros, inçada de penhascos e lajedos como os da cauda das Bananeiras mas, em extensão menor. Saiu o nosso excelente piloto a reconhecer o estado atual da Cachoeira e procurar-lhe canal; o que teve de fazer por si só, saltando pedrouças, galgando penhascos, atravessando lugares difíceis, ora ajudando-se de uma vara, ora de uma corda, que passava na cabeça de um cachopo (obstáculo), segurando nas duas pontas, uma das quais soltava, logo que era vencido o passo; colhendo-a toda, para empregar do mesmo modo mais adiante; trabalho de iminente risco, mas de extrema necessidade, por faltar-nos qualquer outro meio para tais exames. Afinal voltou satisfeito do reconhecimento, e às 15h46 desceu o bote com todo o seu carregamento; deslizando-se em vertiginosa carreira na corredeira, que foi vencida em cinco minutos, havendo mister do auxílio do remo grande. Na força das águas, só à sirga pode ser vencida.

Às 4 da tarde, passamos pelo Ribeirão da Laje, de sessenta a setenta metros de Barra (40 metros), à margem direita. Areias, repousando sobre argila pardacenta, com núcleos de sílex, encobrem a formação geológica, que, entretanto bem se revela, poucos passos adiante, nos penhascos da Cachoeira.

Às 16h27, avistamos a foz do Beni, cerca de uma légua abaixo da laje, em cujo ponto de confluência, fundeamos às 5 horas em ponto.

Entre esse ponto e a Laje encontramos um bote boliviano, que subia quase já sem remadores, tendo perdido cinco, três dos quais, nos dois últimos dias, deixara enterrados na margem próxima. Ainda conduzia dois bastante enfermos, um deles agonizando. Deu-se-lhes alguns gêneros de refresco e ministrou-se-lhes medicamentos: o que temos feito sempre que encontramos necessitados, não somente doentes, mas, também, esses degredados do resto do mundo que, afeitos à sociedade e conhecedores do benefício da medicina, no-los pediam como uma providência do futuro e recebiam-nos como um dom do céu.

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Figura 35 – Laje (Fonseca - Google)

III

A reunião das águas do Mamoré e do Beni dão origem ao grande Madeira, o mais possante dos tributários do Rio-Mar. Por perto de quatrocentos quilômetros desce encachoeirado, num meandro infinito de Ilhas, Penhascos e Cachopos, rumorejante e precípite (rápido, veloz); dando ao cabo desse pedregal, em Santo Antônio, uma diferença de cem metros abaixo do nível daquela confluência.

Seu primitivo nome era Ucaiári ou Ucaiáli, vocábulos que dizem exprimir o mesmo que a denominação que hoje tem; e Irury, o Rio que treme, chamavam-lhe os Caripunas. Também na “Chorographia Histórica”, do erudito Dr. Mello Moraes (tomo II), lê-se que “na Instrução secretíssima (de 1 do setembro de 1772), com que S. M. manda passar à capital de Belém do Grão-Pará o Capitão-general João Pereira Caldas, ordena-lhe o Marquez de Pombal que estabeleça a Quinta Feitoria na duodécima Cachoeira do Rio Madeira, em frente às fozes dos dois notáveis Rios Beni e Enym”, nome que, pela primeira vez, vejo dado ao Mamoré. Sobre Ucayáli, alguns querem que esse termo seja tradução de Rio branco, o que não é desarrazoado em vista da cor das suas águas, tão barrentas como as do Mamoré; e isso quando dão também o nome de Rio preto a todos os de água clara, cristalina e pura, pela cor que aparentam ao confrontarem com os grandes Rios lodacentos a que afluem.

O nome Madeira, quer tradução de Ucayáli, quer não, é-lhe muito próprio, pela quantidade enorme de madeiros que acarreta em seu curso; e por forma tal que, depositados nas baixantes sobre os parcéis e cachopos e aí acomodados pouco a pouco, à medida que as águas vão crescendo, vão formando Ilhotas e tem formado Ilhas.

Enredados os troncos de árvores imensas, uns contra os outros, presos e como que arpoados aos penhascos, comprimidos e estreitados pela violência das águas, adquirem tal solidez na sua base de pedra que, às vezes, resistem vitoriosamente à fúria da torrente. Todos os detritos leves que as águas conduzem, os hydrophitos, que se desprendem das margens, as areias que vêm em suspensão, a argila, a marga (greda argilosa

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calcária), aí se acumulam: aparece uma vegetação nova, e a nova Ilha apresenta-se com os caracteres de terra firme; caracteres que nem sempre perduram, desagregando-se a Ilha com as enchentes e descendo o Rio.

Ao Beni chamaram também Rio dos Troncos, pela mesma razão.

A palavra Beni quer dizer Rio, torrente d’água, ba-eni, no dialeto Ariocali e dos Caripunas; e é tão oriunda da grande família Tupica, a primeira povoadora da metade Oriental da América do Sul, que vem associado a açu: Ueneaçu é a denominação que tem o Alto Rio Negro. Ao Rio Purus chamam também Beni os Pamaris.

O Vale do Madeira é um dos mais extensos do universo.

Começa nas escarpas dos Andes, tendo por limites laterais o araxá mato-grossense e o do Purus, e vai reunir-se ao do Amazonas. Chandless coloca suas vertentes a 1088 pés acima do nível do Mar.

É o Beni de um curso de 1200 quilômetros, isto é, quase igual ao do Mamoré. A Comissão de Limites do século passado dá a este 200 léguas, e 205 ao Beni; léguas de 20 ao grau.

Forma o Beni na sua embocadura duas Ilhas em seguida uma a outra; delas, a maior de quinhentos a seiscentos metros; ambas situadas a meio Rio. Sua foz medirá pouco mais de um quilômetro.

Os Srs. Keller colocam-na a 10°20’ Latitude Sul e 22°12’20” Longitude O. do Rio de Janeiro, e dão-lhe de altura apenas 122,45 metros sobre o nível do Mar.

A junção dos dois Rios, ele e o Mamoré, formou uma Ilha, da Confluência, onde os antigos planejaram a construção de um Forte para atacar e defender coisa nenhuma, mas atestar o senhorio do Mamoré e Madeira, como o Forte do Príncipe atesta o do Guaporé.

No arquivo militar existe um Mapa com o título: Planta do Forte que se construiu na Boca do Rio Madeira, junto da sua confluência com o Mamoré.

Os antigos supuseram ser o Beni o Alto Madeira, e deram-lhe o mesmo nome de Ucayari, pela mesma razão de acarretar profusão de madeiros, em qualquer época, mormente nas enchentes. Pertencem-lhe com efeito quase todos os que o grande Rio conduz; sendo mui escasso, senão nulo, o contingente que o Mamoré, seu outro braço, lhe fornece; indo ele despejá-los no Amazonas que, por sua vez, levando-os ao Oceano, as correntes marinhas vão depô-los até nas costas de Noruega e nos icebergs do polo.

Como já vimos, supõe-se que anteriormente a 1722 fora o Madeira percorrido por aventureiros em busca de escravos índios. Baena pretende que subira por ele, mas só até o Manicoré, o Capitão-mor do Pará, João do Barros Guerra, pelo correr de 1716. Narra a subida de Palheta, em 1723, de ordem de João da Mala da Gama, Governador daquela Capitania, por notícias obtidas de bandeirantes que tinham já ali ido em busca dos índios, e que diziam haver habitações de gente europeia acima das Cachoeiras; pelo que foi Palheta até a foz do Mamoré, encontrando uma canoa de índios castelhanos e um mestiço que os conduzia até a Aldeia da Exaltação dos

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Cayoabas, situada entre os Rios Iruéname e Manigue; sendo, porém, notável que, de volta ao Pará, nada dissesse sobre o Beni e o Guaporé, que tanto na ida como na descida — não podiam passar-lhe desapercebidos.

Mesmo a crer-se o Padre Patrício Hernandes, dataria essa navegação do tempo de Ñuflo de Chaves, que por este Rio desceria quando abandonou seu estabelecimento de Santa Cruz, por meados do século XVI. Mas, poucos visos têm de verdade essa asserção quando se medita na admiração que causou em Belém a chegada de Manoel Feliz de Lima em 1743; admiração que fora sem motivo se esse caminho já tivesse sido descoberto.

Ñuflo de Chávez (1518–1568): conquistador espanhol e fundador de Santa Cruz de la Sierra, em 26 de fevereiro de 1561. Alguns autores afirmam que Ñuflo desceu o Rio Bauré, Mamoré, Madeira e Amazonas chegando até o Oceano. (Nota do Autor)

Tem o Madeira de largura na sua origem cerca de três quilômetros; coberto literalmente aí, em todo o leito, de Penhas (rochas; penhascos) e Cachopos. Seu curso é de perto de mil e quatrocentos quilômetros, dos quais mais de mil de livre navegação. O Beni é formado pelas águas descidas dos Andes entre Cusco e Potosi: seus principais afluentes são o La Paz, Chalumairi, Maquiri, Ortuiche, Apolobamba e Madidi.

A navegação do Madeira foi entretida principalmente pela Capitania de Mato Grosso nos seus melhores tempos de prosperidade. Cedo, porém, os Muras e os Mundurucus romperam em hostilidades, idênticas às dos Payaguás e Bororós, com as monções do Rio Paraguai, e o comércio e a navegação foram-se entibiando (enfraquecendo).

IV

Vamos notando, com alguma apreensão, que os Rios, que já deviam ir enchendo, continuam a baixar, e muito. Sabido como é difícil a travessia pelos muitos cachopos que atravessam toda a esteira dos Rios, subiu-se o Beni para ver se nos daria uma livre passagem, para descermos por sua margem esquerda ao Madeira, mas não se encontrou passo até além do três léguas; tornando-se cada vez mais difícil o seu trajeto, e daí em diante impossível.

Sábado, 10, com alguma dificuldade, logramos entrar no Madeira, cortando a Barra do Beni, para investigar, nas proximidades do ponto de confluência da sua margem esquerda, o lugar conveniente para o estabelecimento do marco limítrofe, conforme um artigo das instruções, que exigia que fosse ele colocado:

1° à margem esquerda do Madeira, junto à confluência;

2° em frente ao curso do Mamoré, e

3° matematicamente no paralelo 10°20’.

Mas a natureza, que não fora ouvida nessa determinação, tinha resolvido diversamente. O ponto matemático não ficava em frente ao curso daquele Rio; e ainda o terreno era de tal maneira, que o marco nem podia ser construído junto à confluência, nem mesmo no ponto matemático. Pelo que não houve outro remédio senão deixar desatendida a determinação

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Ministerial, e ficou-se a quase uma légua (4.439,5 metros) do Beni; único local onde se encontrou terreno firme, e ainda assim não mui próprio, por ser sujeito às grandes enchentes do Rio; sendo entretanto o que mais correspondia àqueles exigentes quesitos.

Já nesta noite, dormimos na Província do Amazonas que a ela de direito pertence toda a margem esquerda do Madeira, como de fato também possui a outra toda.

A embarcação teve de ir completamente descarregada, de tudo o que não foi concernente à ereção do marco; ficando toda a mais carga na Ilha da confluência, cuja latitude demarcou-se, depois, aos 10°22’30,26”.

Soberba mataria de madeiras preciosas cresce nesses sítios, povoados também de quantidade inaudita de pássaros, especialmente araras, papagaios e periquitos, cuja algazarra indescritível só à noite cessava.

Junto ao local escolhido, caía no Madeira um pequeno regato de águas cristalinas, das quais o encontro é sempre para nós uma fortuna, por serem as águas do Beni iguais às do Mamoré e, por conseguinte, mesmas as do Madeira. Há no Sítio abundância da copaíba e de outros óleos preciosos como a hymenoea spectabilis (óleo vermelho) e o Myrocarpus frondosus (o. pardo); laurineas preciosas, angelins, ucuúbas, e a negra e duríssima biriba, cuja estopa aproveitou-se para o calafeto do bote.

Já aparecem as colossais sumaúmas (chorisia ventricosa) e a mangabeira (erythrina), que dão um caráter típico à região; do mesmo modo que algumas maparajubas (rhizophora?) de excelsa altura; castanheiros e o tauari (castanha-do-pará), cujas franças (conjunto de ramificações menores e mais altas das árvores) excedem a altura das demais árvores da gigante floresta e cujas raízes grossas e chatas prolongam-se desde a altura de dois metros até o solo, afetando a forma de triângulos retângulos.

Entre os arbustos, encontra-se alguma poaia (plantas eméticas e rubiáceas), uma formosa cufeia (família das litráceas) de flores róseas, uma gloxinia (planta que sobressai pelo colorido rico de suas folhas aveludadas e grandes flores em forma de campânula) de flores rubras, fetos gigantes, maiores que os dos terrenos “noruegos” de Minas e do Rio de Janeiro, mas sem dúvida dos “trichopteris excelsa”; lindas epidendreas (espécies de orquídeas) e “arethusas”, “pseudo-catleyas” e lélias (orquídeas brasileiras), tillandsias (gênero botânico pertencente à família das Bromélias) de todas as espécies, duas espécies de baunilha, a mexicana e o baunilhão, e uma formosa “liliácea” ou “alstroemeria”, Aurea Alexandrina, já encontrada por mim, em 1861, em Minas Gerais, e que, desde essa data até agora, não logrei tornar a ver; algumas orquídeas, uma “amomacea” mui semelhantes nas flores à “alpinia nutans”, mas de fibras inodoras; algumas “resteaceas” e “eryocaulons” e “maranthas”, famílias de que são riquíssimas essas regiões.

Muita caça nos bosques: e tal cópia (abundância) de mutuns, que vinham ao nosso próprio acampamento, onde eram mortos, entre as barracas. Vi pela primeira vez e próximo ao meu pouso um ninho do beija-flor troglodito, num buraco na barranca. Criava dois filhinhos ainda implumes e muito feios, que a mãe todas as manhãs trazia fora da toca para aquecerem-se ao sol: no dia em que, arrastando-se sozinhos até a porta, já

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iam experimentando as forças, uma cobra os devorou. Muita cópia também de outros beija-flores, entre as quais um assemelhado ao “esmeralda”, o “petasophoro cornutus”, com seu topete cor de fogo, e que é uma das mais brilhantes variedades da família, e que aí vi pela primeira vez vivo.

V

No dia 18 de novembro (1877), domingo, ficou erigido o marco aos 10°21’13,65” de Latitude Sul, e 22°14’37,65” de Longitude Oeste do Rio de Janeiro. Desde o dia 13, chovia copiosamente e, com muito trabalho e cuidados, pôde-se obter a sua construção em tal tempo e em tal terreno.

Às 8 horas da manhã, saímos por entre o intrincado labirinto de rochedos e Ilhas de madeiros, a carregar o bote na Ilha da Confluência, onde aportamos às 9h30; e por igual caminho descemos para o Porto superior da sexta Cachoeira, Cachoeira do Madeira, na margem direita, onde abicamos ao meio-dia, com uma hora de navegação de abrolhos (rochedos quase à flor da água). Entre a Ilha da Confluência e ele ficam outras duas Ilhotas, por entre as quais passa o Canal; nós, porém, passamos pela esquerda da mais externa, tomando a face Norte do morrote que avistamos do Guajará, junto à qual é o Porto.

As cargas seguiram por um caminho de duzentos e cinquenta metros; o bote desceu completamente leve, beirando a margem do Rio. A sirga foi bastante trabalhosa e a embarcação esteve por algumas horas engasgada numa pedra, em Sítio onde o Rio faz um salto de quase meio metro, já no fim da sirga. Com o emprego de uma talha, fê-la o 1° Tenente Frederico remontar novamente a corrente e descer por um canalete (Canal pequeno ou rego por onde corre a água), mais junto à margem. Nas enchentes, é essa Cachoeira pior, havendo necessidade de sirga desde o Mamoré.

Com exceção das duas primeiras Cachoeiras, a passagem, isto é, os Canais, que vamos encontrando melhores, são sempre pela margem direita.

Choveu ainda todo o dia. O acampamento é bom, debaixo de altas sapupembas e junto a extensas praias de areia. Na mata adjacente, bastante cacau, do verdadeiro e do cacauí: aí vi pela primeira vez o arbusto do guaraná, paulinia sorbitia, frutescente (que começa a frutificar), com seus cachos de bagas rubras.

A Cachoeira ocupa toda a largura do Rio, desde a entrada do Mamoré, e segue por mais de meia légua. Nos pedregais de sienito, notam-se buracos ovais e elípticos, de um palmo de longo, em grande quantidade e às vezes reunidos em grupos.

Sienito: rocha eruptiva, de textura granular, formada de feldspatos alcalinos e anfibólios, com nenhuma ou pequena quantidade de quartzo. (Nota do Autor)

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Figura 36 – Madeira (Fonseca - Google)

As rochas destas Cachoeiras são de formação plutônica e revelam à primeira vista sua origem vulcânica, modificada, talvez, pelo metamorfismo. Difíceis algumas, para mim, de classificar pelo duvidoso dos sinais de apresentação, noutras o “facies mineralógico” designava-as satisfatoriamente. As grandes lajes “trachyticas”, quase lisas, de cor férrea ou do negro luzidio do alcatrão, são formadas, em muitos lugares, de camadas superpostas, mais ou menos onduladas, com rebordos curvilíneos; como se tivessem provindo de uma mataria em fusão, espessa, derramada em grandes jatos, formando lençóis; os quais se esfriaram, antes de alcançarem as últimas o espaço em que as primeiras se estenderam. Grandes penedos, uns prismáticos, outros arredondados, ora diques de diorito (espécie de rocha ígnea composta de feldspato e anfíbola) e de elvan (rocha dura de origem ígnea), ora blocos soltos; uns partidos ao meio por uma só fenda, às vezes de mais de braça de largura, aparecem aqui e ali; do mesmo modo que grandes caldeirões, buracos perfeitamente redondos, abertos na laje, cuja formação facilmente se explica pelo atrito do seixos rolados em pequenas depressões, as quais pouco a pouco, pelo movimento das águas e o correr dos séculos, vão se aumentando e arredondando.

Não é, porém, tão fácil a explicação para os buracos elípticos de algumas dessas lajes, e dos quais já acima se falou; todos das mesmas dimensões, e quase dispostos em direções uniformes, uns após os outros, em duas e três fileiras; pelo que trazem à lembrança, ainda que sem semelhança alguma, as pegadas do homem. São mais notáveis as das Cachoeiras do Madeira, Bananeira, Ribeirão e Paredão: suas dimensões são um a três decímetros de longo, sobre um terço mais ou menos de largura e quase outro tanto de profundidade, conservando sempre a forma elipsóide. Serão sítios primitivamente ocupados por Corpos de fácil desagregação ou decomposição pelas águas, e que, com o tempo, ficassem vazias? Essas lajes, apesar de como que envernizadas pelo atrito das águas, e brilhantes de negro polido metálico, não é difícil classificá-las pela sua textura e sistema de aglutinação. São porhyros amphibolicos, obsidianas, sienitos, petro-silices, etc., rochas todas feldspáticas (de mineral duro, laminoso, composto de sílica alumina e potassa, que entra na constituição do granito).

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A canga (minério de ferro argiloso, pardacento) aparece em altos calotes, vermelho-negros, o que lhe valeu o nome túpico (relativo aos índios Tupis) tupanhonacanga; do mesmo modo que em outras Penhas sobrelevam-se diques de eurito (ou felsito - rocha ígnea, macrocristalina, densa, semelhante ao sílex na fratura, que consiste quase exclusivamente em feldspato e quartzo) compacto a irromper crostas metamórficas, ou que mostram-se engastados à rocha de gneisse (Rocha estratificada composta de feldspato e mica) em decomposição, cujas crostas derruídas pelo tempo deviam ter-lhes sido comuns. Nos grandes caldeirões, a seco, não são raros os conglomerados de seixos dioríticos, principalmente de dioríto negro, pequeninos, e que me pareceram aglutinados a ajudas do hidrato de ferro. Trouxe comigo algumas amostras mais notáveis dessas rochas, e bem assim dos seixos intercalados nas falhas das lajes; onde um novo processo de aglutinação deles com a areia do Rio e as argilas, que este traz em suspensão, constitui um pudding (pudim) tão concreto e firme, que, apesar da tendência que têm as águas para desunir, e não agregar as areias, já resiste ao emprego da força para dividi-lo; rochas de sedimentos, raras nos lugares onde as águas passam com fúria, mas muito frequentes nos seus remansos.

Em uma destas Cachoeiras, creio que na das Bananeiras, encontrei um pedaço de carvão vegetal, lameloso, de camadas paralelas nitidamente acentuadas, e completamente petrificado, revelando grande antiguidade. Está no museu do Instituto Arqueológico Alagoano. Em todo o trajeto encachoeirado dos Rios, só nos foi dado ver e investigar os terrenos mais adstritos à margem onde chegávamos; sendo que, quanto à fronteira, nem ainda a distância nos foi possível calcular, tão atravancado é sempre o Rio nesses pontos de inúmeras Ilhas e Cachopos.

Uma observação curiosa aí fizemos, entretanto, e que não me parece mero efeito de óptica: nessas regiões das Cachoeiras, as águas do Rio são sensivelmente mais elevadas do nível ainda mesmo quando se deslizam unidas e calmas, sem marulhos nem escarcéus; o que se explica pelo obstáculo que os parcéis opõem à água que desce, e que portanto aí se detém e avoluma.

VI

Às 5 da tarde de 19, saímos: andou-se uma hora num bonito estirão, livre de escolhos. No lugar onde pernoitamos, vimos a sepultura recente de um dos remadores do bote boliviano, encontrado na entrada do Mamoré.

A 20, saímos às 5 da manhã, e duas horas depois descíamos pela Cachoeira da Misericórdia, tão terrível nas cheias, que mereceu tal nome; o qual é uma revelação da angústia por que passam os seus navegantes; sendo então tão furiosa a sua corrente, que alguns botes têm perdido o governo e ido precipitar-se na Cachoeira imediata, com a qual nesses tempos se emenda. “A quelque chose malheur est bom” (Há males que vêm para bem): a extrema rasante do Rio livrou-nos desta Cachoeira, como espera o nosso piloto nos livrará de outras; sendo, porém, triste a compensação que outras nos trarão.

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Figura 37 – Misericórdia e Ribeirão (Google)

A Misericórdia apresentou-se-nos como uma enorme laje, à margem direita, estendendo-se triangularmente para o Rio, onde se intrometia até quase seu meio. Na margem fronteira, vê-se outra, menor. O Rio vai perfeitamente canalizando entre ambas; e nossa gente só teve que forçar remos e raspar duro para aguentar a rapidez da corrente e os balanços dos banzeiros.

Seguindo nossa derrota, às 8 chegamos à Cachoeira do Ribeirão, que é uma das mais temidas. É também à margem direita o Porto de cima à esquerda de um morrote. É igualmente dividida em cabeça e cauda, aquela formada por grandes Lagos cobertas de blocos de diorito, soltos, outros formando diques, alguns partidos e alguns prismáticos. Nota-se aí a existência dos caldeirões e buracos elípticos da que acima falo.

Não dá Canal em tempo algum, havendo sempre necessidade de varar as embarcações. A nossa, que tão mal vai de saúde, causa-nos sérias apreensões, por essa nova viagem por terra. Descarregou-se-a numa grande e mais ou menos lisa laje, de uns oitenta metros de largura, que prolonga-se da base do morrote; e sobre roletes foi conduzida numa distância de trinta e poucos metros, de onde fez-se-a sair um pouco para galgar a aba direita do monte, subindo por ele uns cem metros. Aí topou-se outra laje, lisa, de 25 metros de largura, e a uns quinze, apenas, do Ribeirão, donde a Cachoeira tirou o nome. Não foi difícil o varadouro; com apenas dez homens fizemo-lo em outras tantas horas. Cuidou-se logo, antes de pôr o bote n’água, em tomar-lhe as costuras e fendas, com a estopa de tocari (castanha-do-pará) que trazemos de prevenção, e quando a nado, ratificar-lhe os consertos.

À boca do Ribeirão há algumas pedras, perigosas agora, em tempo de seca, por trancarem-no quase inteiramente. Não contávamos com esse transtorno; entretanto, após difícil labutar, conseguimos vencê-lo às 8h44 do 23.

Passava este Sítio, antigamente, por aurífero; e essa foi sem duvida a raia que levou Caetano Pinto a nele estabelecer, em 1799, um Posto Militar,

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destacado do Forte do Príncipe, e também um aldeamento do índios e escravos da coroa, com o fim de plantar e fornecer mantimentos aos navegantes e garantir, por certo, os quintos do ouro. Era o destacamento de S. José do Ribeirão ou, segundo outros, de S. José do Montenegro. Durou até 1832, e ainda vem consignado em alguns Mapas, notadamente no Atlas do Senador Cândido Mendes, e Mapas de Ponte Ribeiro. Ricardo Franco demarcou o começo da Cachoeira aos 10°11’S, e a cauda em 10°10’.

No local do acampamento, bastante agradável, há uma espécie de grumixameira, que só cresce nas pedras tendo suas raízes e parte do tronco debaixo d’água: o fruto assemelha-se nas cores à mangaba, mas é terrivelmente ácido. Deles fazíamos ótimos refrescos. A árvore é de galhos muito nodosos e irregulares, nimiamente fortes e flexíveis. É uma eugênia, notável por ser aquática. Talvez seja a mesma de que trata o grande Vieira, na sua Carta ao Padre Provincial Francisco Gonçalves, escrita em 5 de outubro de 1653, dando conta da sua exploração no Tocantins:

Aqui deu lugar o Rio a que se remasse um bom espaço até que demos em uma ladeira de pedra e água muito comprida, pela qual foi necessário irem subindo as canoas como por uma escada, à pura força de cordas, de braços e de gente, já fincando-se sobre umas pedras, já encalhando-se, já virando em outras. Foi esse trabalho excessivo, principalmente por ser tomado no rigor do sol; e para que fosse de alguma maneira vencível, proveu a Divina Providência esse lugar de umas árvores não muito altas, nascidas nas mesmas penhas, as quais supriram nesta escada como de “maynús”, em que os índios se firmavam para poderem tirar pelas cordas e sustentarem-se a si e à canoa, contra a força da corrente. São estas árvores por uma parte tão fortes, que basta fazer preza em uma para suster a canoa contra todo o peso da água, e por outra tão flexíveis, que, se é necessário passar a canoa por cima dos ramos e ainda das mesmas árvores abatidas, cedem e tornam a surgir sem quebrar. Como nascem nas pedras a na água, parece que das pedras tomam o duro e da água o flexível, e de ambas o remédio para vencer a mesma dificuldade que ambas causam. Dão uma fruta semelhante e menores que as goiabas e araçás do Brasil, de que se duvida se são espécie, mas não se comem nem pode-se comer porque são duras como as pedras de que nascem.

A descrição quadra perfeitamente a grumixameira citada, notando-se-lhe apenas a diferença no fruto que aqui é brando, e se não se come é por ser nimiamente ácido, mas presta-se a excelentes refrescos, que suprem perfeitamente as limonadas. Em quarenta minutos, fomos chegados ao Porto superior da cauda (E), uns três quilômetros abaixo. Levou-se toda a carga por um caminho (G) de cerca de dois quilômetros, cortado de igarapés, que mostram pelos taludes serem fortes nas enchentes, e agora estão quase enxutos.

Numa grande gameleira, vimos gravadas, em altura mais ou menos de 3,5 metros, as palavras “Talento e Valor”, por algum viajante tão cônscio dos seus méritos como alheio à presunção. Tais, porém, fossem as dificuldades com que lutasse, e a habilidade com que as desfizesse, que a natural satisfação o levasse a lançar esse brado aos pósteros. Modesto, não quis deixar seu nome por sobrescrito; e eu, pachorrento cronista desta viagem, não sabendo, mas acreditando razoáveis tais predicados a quem se anima dirigir, sem ser como nós, obrigado, pela força das circunstâncias, viagens dessas — por estas Cachoeiras — consigno o episódio.

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Figura 38 – Araras (Fonseca - Google)

Desde a tarde de 24 que começou a descer o bote. A sirga vai sobremodo difícil, estando o Rio extraordinariamente baixo. Somente às 5h10 de 26 pôde-se abicar ao Porto F.

Às 10h30 da manhã seguinte, saímos, tendo-se previamente ido reconhecer a sirga da Pedra Grande, três quilômetros abaixo a qual, em tempos de água, converte-se em possante Cachoeira.

Às 11h20, passamo-la à sirga e sem novidade. Outros dois quilômetros adiante, tivemos também a sirga dos Periquitos, que goza da mesma reputação, e que passamos do mesmo modo. As duas constituem uma das dificuldades mais custosas de vencer, na Cachoeira do Ribeirão. Como já vimos, teve este ponto fama de aurífero: e Baena relata que João Fortes Arzão, apresentara ao terceiro bispo do Pará, D. Miguel de Bulhões, ouro e pedras preciosas nela e em outras dessas Cachoeiras achadas, pelo correr do ano de 1758.

À 1h30 avistamos a nona Cachoeira, Araras, cujo Canal se foi reconhecer, sendo encontrado mau, por seco, pelo que tomamos para o da margem esquerda, onde entramos às 3h40, com grande perigo, mas livrando-nos felizmente após dezoito minutos de travessia nimiamente violentada pelos marulhos e escarcéus graças, sobretudo, ao muito tino e sangue frio do nosso piloto José Pires.

Conhecem alguns esta Cachoeira pelo nome, também, de Figueiras, além do de Tamanduá que Baena lhe inculca, e Arey, como a trataram outros; mas o que mais lhe quadra é indubitavelmente o de Araras pela infinidade desses pássaros e ainda de papagaios, periquitos, maitacas, jaçanãs, etc., que, povoando todo esse sertão, têm aqui guarida especial; e levam, enquanto dura a luz do dia, a encher os ares de seus atroadores gritos. Os Srs. Keller colocam esta Cachoeira aos 9°55’5,8” de Latitude Sul e 22°15’20” de longitude Oeste. Dista do Ribeirão uns 27 quilômetros.

Às 5 horas da tarde, paramos na mesma margem e, no dia seguinte, 28, saímos, ao alvorecer, debaixo de repetidos e copiosos aguaceiros que, desde ontem à noite, se têm sucedido a pequenos intervalos. Com vinte minutos de seguimento deixamos, à mão esquerda, o Paredão das Araras, amontoado de rochas de grés, superpostas de modo a semelhar um muro.

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Figura 39 – Pederneiras (Fonseca - Google)

Às 9h10, passa-se o Abuná ou Rio Preto (9°40’14,94”S / 65°26’47,13”O), na margem esquerda. É o ponto mais Ocidental do Madeira, assim como o que lhe está fronteiro será o da Província de Mato Grosso. É aquele Rio de uns sessenta metros de largo na embocadura, e dista uns cinquenta quilômetros da Cachoeira das Araras, uns cem da foz do Beni; e mais de mil e trezentos da foz do Madeira. Os geógrafos da Comissão do século passado calculam essa distância em 229 léguas de 20 ao grau.

Às 11h30, chegamos à Cachoeira Pederneiras, a qual presentemente consiste numa crista de rochedos que atravessa o Rio de lado a lado, deixando-lhe quatro Canais.

Dá-lhe começo uma grande laje à margem direita. Passa por má a sua travessia nas baixas águas, pelo que decidimos que se proceda a reconhecimento dos Canais. O piloto opina pelo central e os remadores pelo da direita, que fica encostado à grande laje: prevalece esta opinião e segue-se pelo Canal indicado, obliquando-se o mais possível para tomar a esquerda de uma Ilhota que fica fronteira ao central, indo assim sair-se no prolongamento do segundo Canal. Vence-se a força da Cachoeira em dois minutos, ficando o bote alagado pelo embate dos fortes escarcéus que sofreu. Os antigos demarcaram-na aos 9°31’20”; sua distância à das Araras é de uns sessenta e cinco quilômetros.

Um pouco abaixo da Pederneiras, cai à margem esquerda do Madeira um Ribeirão, conhecido dos antigos pelo nome de Arapongas ou Ferreiros. Duas horas e meia depois, passamos por um pequeno morro que nos ficou à esquerda, já estando à vista a Cachoeira do Paredão, distante três e meia léguas da Pederneiras.

Às 2h20 da tarde, abicava-se no Porto (A); descarregou-se o bote o foi-se reconhecer a Cachoeira e verificar qual o Canal mais favorável.

No dia seguinte, 29, passamo-la. É mui semelhante na disposição dos escolhos às duas precedentes: é a mesma crista de penhascos atravessando o Rio, começando na grande laje da direita que vai até quase meio Rio. Na oposta elevam-se, bem fronteiros à Cachoeira, dois morrotes. É mais torrentosa e veloz do que aquelas outras.

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Figura 40 – Paredão (Fonseca - Google)

Aliviou-se completamente a proa: saltaram as mulheres como de costume mas, estando nós ainda em terra, soltou-se a embarcação antes que embarcássemos, e teve de continuar a derrota.

Vimos, então, e podemos avaliar o perigo a que se expõem essas embarcações, que passam como uma seta levada pela impetuosidade da corrente; ora sacudidas pelas ondas como se fossem uma cuia, ora caturrando feiamente e desgovernando, por ficar o leme fora do seu elemento. O nosso velho e estragado bote, por três ou quatro vezes seguidas, sofreu esse risco, sendo os marulhos a espaldar os remeiros tão fortes que encobriam o bote, afigurando-se-nos que o soçobrava.

Felizmente a ansiedade, apesar de parecer mui longa, foi de poucos minutos: o remo grande entrou em jogo; e o bote, deixando sua carreira precípite, rodou sobre si e caiu no remanso, vindo abicar na face direita da grande laje (B).

Apresentava-se esta, agora, com uma largura de cento e vinte e seis metros; faziam-lhe uma cintura, junto à margem, duas pequenas abras (fendas) que são-lhe os Portos, tendo aí apenas 85 metros de largo. Essa penha é um dos mais magníficos espécimes de rocha, com suas camadas superpostas, reveladoras do estado de liquefação em que foram aí depositadas; parecendo, assim úmidas do Rio, grande derrama de mel espesso e quase a cristalizar, que vai lentamente escorregando em largos panos sobre camadas já solidificadas; o que ainda parece revelar, ou que a cristalização foi mui rápida, ou mui demorados os jorros da mataria em fusão. Mais próxima ao Rio perde esse caráter e, em vez de sua lisura e polimento, torna-se grandemente anfractuosa (tem sucessivas saliências) sobre ela elevam-se diques de diorito, penhascos de três e seis metros de altura, enquanto que próximo afundam-se abismos, ou patenteia a rocha erosões largas e profundas, que serão bons Canais quando as águas as cubram suficientemente. A laje termina no Rio por um desses rochedos, de quatro metros de alto, o que vai orlando-a em toda a sua extensão. Na porção rasada, encontram-se caldeirões circulares, com metro e mais de diâmetro e fundo, e as pequenas escavações elípticas, do tamanho das observadas nas outras Cachoeiras. Algumas das lajes são coloradas de vermelho luzente, talvez devida ao trióxido de ferro; outras negro-luzidias, devendo essa cor ao óxido daquele metal ou ao peróxido de manganês.

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Figura 41 – Três Irmãos (Google)

Aparecem aqui e acolá ainda blocos fendidos longitudinalmente, e que guardam um paralelismo notável entre as faces da fenda, onde as saliências de uma correspondem às reentrâncias da outra.

Uns cinquenta metros abaixo da Cachoeira, e à mesma margem nota-se outro paredão, como o das Araras, formado de rochas superpostas de grés e gneise, afetando a forma dos “trapps”, com tanta naturalidade que se assemelha a uma velha muralha em ruínas. A textura de seu gneise assemelha-se ao basalto, mas a fratura é mais conchoide. Foi esse aglomerado o que deu o nome à Cachoeira. Daí em diante até à Cachoeira dos Três Irmãos, que dista quarenta e quatro quilômetros, vai o Rio todo inçado de pedras, principalmente para o lado esquerdo ; o que no tempo de vazante, qual o de agora, determina fortes e incômodas corredeiras. Pôde-se avaliar o que será na força das águas.

VII

Já se vão vendo, por este trecho de Rio, pequenas barracas ou palhoças dos seringueiros, desabitadas presentemente, e servindo apenas de sinal de propriedade e pouso quando aí trabalham. A terceira que enfrentamos e que é a maior, tem em volta de si uma plantação de milho e mandioca. Pertence ao Sr. José Ignácio, morador logo abaixo. No seringal da margem esquerda, há outra palhoça, que parece ser habitada, ou pelo menos frequentada. Extensa morraria segue por essa margem adiante.

Às 10 horas, encontramos um bote boliviano que subia, e saudou-nos com dois tiros de espingarda e rufos de um tambor. É uma manifestação de polidez e atenção idêntica à saudação de bandeira e salvas dos navios no Oceano, e que, aqui, é uma verdadeira demonstração da alegria de encontrarem-se homens civilizados em regiões deles tão pouco concorridas.

Às 10h20, passamos duas barracas e roças, e pouco depois abicamos à margem direita para fazer-se nosso almoço. Em frente começa uma grande Ilha com roçados de milho e mandioca, e algumas bananeiras e canas. Aqui soubemos que o bote encontrado era boliviano e vinha de Santo Antônio da

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Madeira, donde partira há seis meses tendo tido grande demora junto à Cachoeira do Caldeirão do Inferno, por haverem-lhe fugido os remadores.

Às 12h50 saímos. Passamos, à margem direita, o Sítio de José Ignácio, na encosta de um morrote fronteiro àquela Ilha. Estamos a uns quarenta quilômetros do Paredão, e pôde-se dizer que já aqui começa a Cachoeira dos Três Irmãos, tão temível no tempo das cheias, e que agora quase nenhuma diferença faz do curso natural do Rio, tão insignificante vai sua corredeira. Às 13h20, já tínhamo-la passado.

Abaixo do Sítio de José Ignácio, fica um Ribeirão que suponho seja o Mutum-paraná, onde viviam, há bem pouco tempo, os Caripunas, mansos, outrora tão solícitos em ajudar os canoeiros nos difíceis transes dessas Cachoeiras. O patrão do nosso bote, que não trouxera da Bolívia remadores suficientes para esta navegação, fiava-se nestes índios para os varadouros do Jirau e Teotônio; pelo que subiu o Ribeirão mas, voltou como fora por não havê-los encontrado. (...)

A um quarto de hora do Mutum-paraná há outra barraca, à mesma margem; e mais abaixo, onde termina a Ilha, outras duas, uma em cada orla do Rio. A margem direita se eleva aí numa Colina, com um morrete que não vem descrito nos Mapas. São muitos e extensos os seringais e cacauais destas comarcas dos cacaus, a espécie silvestre de que já falei, chamada cacauí, é desprezada, apesar de ser agradabilíssima no gosto e mui refrigerante. O Rio continua ainda atravancado de Ilhotas e cachopos.

Às 15h20, enfrentamos a outra barraca, à margem esquerda pertencente a bolivianos: meia hora depois duas outras, uma grande do mesmo lado, e outra pequena na margem oposta e junto a um morrete, onde começa um estirão, em cujo fim aparecem três outros morros, na mesma margem. Às 5 horas fundeamos na direita, adiante de uma pequenina barraca e em frente a outra maior, do lado oposto do Rio.

Sexta-feira, 30, saímos à hora costumeira, e poucos momentos depois deixávamos, à direita, uma plantação de milho e bananas, e duas barracas, onde apareceram duas mulheres. Às 7 horas, passávamos uma outra palhoça, à esquerda, e poucos momentos depois uma segunda. O Rio aqui mede, atualmente, uns quatro quilômetros de largura.

Às 7h44, entramos na cabeceira do Salto assim chamada por já começarem as águas a encachoeirar e correr precípites por entre os penhascos do Rio. Segue-se por uns dez minutos a sirga, para passar uma corredeira difícil; e depois a remos, até dobrar a volta do Rio, aí mui angulosa, e onde, perto, está o Porto do Salto (A). É esta a mais forte de todas quantas Cachoeiras temos passado, e a mais bonita, só tendo superior a do Teotônio, que é a segunda logo adiante. Fica também a quarenta e cinco quilômetros da dos Três Irmãos. Os antigos demarcaram-na aos 9°21’; os Srs. Keller em 9°20’5”S e 21°54’22”O. O Rio, depois de espraiar-se em quatro quilômetros de largura, estreita-se junto a uma pequena morraria de Colinas, numa volta à SE e desce por dois Canais, um a meio Rio, de cerca de trezentos metros, inçado de abrolhos e levantando formidáveis escarcéus ou banzeiros, e outro encostado à margem direita, de vinte a trinta metros de largo, que se precipita em vários saltos em escada, até um último de três metros, mais ou menos, de altura.

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Figura 42 – Jirau (Fonseca - Google)

Em tempos de cheia, cobre todo o lajeado da margem, e forma outro canalete numa erosão que agora se vê no pedregal descoberto. Há três para quatro anos, chegando aí três botes, o último não pôde, em tempo, encostar no Porto de cima, e quando, já a meio comprimento no remanso tinha ainda o resto na corredeira, esta fê-lo girar sobre si, arrebatou-o e foi despenhá-lo por este canalete. Deu-se então um episódio notável, a ser exato o que nos contaram: o patrão desse bote era filho do chefe da frota, que enlouqueceu ao ver o filho arrebatado: entretanto este salvou-se agarrando-se, no meio da força da corrente, a uma grumixameira d’água; e um índio, levado ainda com vida ao remanso oposto, pôde galgar uma pedra à esquerda do salto, donde foi também salvo. Semelhante a quase todas as outras Cachoeiras, é esta formada por uma estreita crista de rochedos, que ligam os morros das margens, os quais não distarão entre si mais de quinhentos metros. À esquerda do Rio, elevam-se quatro ou cinco Colinas e duas à direita; sendo maiores as que ficam no prolongamento do salto. O morro da direita oferece nos flancos as duas abras (A e B), que servem de portos para o varadouro. Este é de perto de oitocentos metros; bastante áspero e difícil na subida, e perigoso na descida, de qualquer modo que se o considere, pelo declive do terreno e pedregulhos que o atravancam. Cerca de trezentos metros bifurca-se o caminho, seguindo o varadouro por uns cem metros ainda, e outro caminho, para um terceiro Porto (B), único em que as embarcações podem carregar; descendo à sirga, e completamente leve, do fim do Porto do varadouro até aí, na distância talvez de quinhentos metros. Começou-se a varar à tarde; no dia seguinte, tinha-se conseguido subir apenas uns quarenta metros, partindo-se cabos e espias por várias vezes. Já estávamos tão afeitos a esses transtornos que nossa resignação era verdadeiramente a do Evangelho: nesse andar só nuns doze dias, pelo menos, conseguiríamos vencer o varadouro, dado que nossos homens não afrouxassem, ou que não sobreviesse algum empecilho novo. Felizmente, e quando menos contávamos com tamanha felicidade, ao meio-dia de 2 de dezembro, vimos aportar aí três botes com uns cinquenta homens e trinta mulheres, índios, e o dono, o Sr. D. Angel Chaves, e sua esposa, que vinham do povo de Trinidad para exploração da goma-elástica; e que, encontrando o varadouro ocupado, ajudou-nos da melhor vontade, e com tanta eficácia, que às 4 da tarde estava nosso bote a nado.

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Figura 43 – Varadouro do Salto do Jirau (Fonseca)

Ainda nessas tarde passaram-se dois botes de D. Angel, e o último na manhã de 3, fazendo-se então descer todo o carregamento para o Porto das cargas (B). Desceram os botes à sirga por um cavalete encostado à margem, e onde a corredeira é bastante forte. D. Angel partiu primeiro, que era de nossa delicadeza ceder-lhe o passo. Vem continuar seus trabalhos nos seringais; sua situação é abaixo da Cachoeira do Caldeirão do Inferno. De maneiras mui lhanas (francas, sinceras) e polidas, ele e sua senhora muito nos cativaram por sua amabilidade; e tanto mais soubemos apreciar esse encontro, quanto há longos meses não tínhamos a dita de praticar, já não digo com gente civilizada,mas com gente alguma. Às 11 horas, tinha chegado uma canoa do seringueiro João Ignácio. Cedemos-lhe o pouso e às 4h30 partimos.

Os dois acampamentos do Salto são bastante feios e agrestes; no de cima há ainda vestígios da Aldeia de Balsemão, estabelecimento de Luiz Pinto em 1768, com índios Pamas. Esse Capitão-general seguia do Pará para tomar conta de seu governo: com ele vinham quatrocentas e vinte e duas pessoas, em quarenta e cinco canoas: se era gente demais para puxar as canoas nos varadouros, não o era menos no consumo dos mantimentos; de que lhe foi de grande socorro a Aldeia do Salto Grande, estabelecida pelo Juiz Teotônio. À imitação desta, fundou a daqui; ordenando igualmente a plantação de mandiocas, milho, etc., para socorrimento dos navegantes.

É notável que esta Aldeia, como outras à beira destes Rios, cuja existência foi tão transitória, e das quais não se encontram quase vestígios, sejam ainda indicadas nos Mapas modernos; sendo mais admirável que lhes dê existência o do engenheiro residente da Estrada de Ferro do Madeira ao Mamoré, Edward D. Matthew no seu Map. to ilustred “Up the Amazon and Madeira Rivers trough Bolivia and Peru”; cuja residência era tão perto, cuja natureza de serviço lhe deveria ter dado pleno conhecimento desse território.

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Figura 44 – Caldeirão do Inferno (Fonseca - Google)

Nosso bote deixou o Canal entre a margem direita e uma grande Ilha, por pedregoso, e cortou diagonalmente a corrente até meio Rio, em cujo fio seguiu. Desde que entramos no Madeira, temos notado que as noites tornam-se bastante frescas; tão frescas quão cálidos os dias, regulando do 30° a 34° centígrados a temperatura destes, e 16° e 20° a daquelas.

VIII

Caldeirão do Inferno. Às 17h10, chegamos ao alto desta Cachoeira, que fica a pouco mais de légua da precedente. Deixamos à esquerda o Porto de cima (A), que é onde costumam descarregar as embarcações e, seguindo por uma veloz corredeira, no Canal próximo a essa margem, fomos parar numa ponta de pedras (G), fronteira à extrema superior de uma grande Ilha, a primeira da Cachoeira.

Aí tirou-se grande parte da carga, folgando-se sobretudo a proa; e o bote desceu a reconhecer o Canal, entre aquela Ilha e outra da esquerda, o qual fica em seguida e em frente à corredeira.

Nesse ponto, o Rio como que se dobra sobre a esquerda, espraiando-se consideravelmente de modo que, medindo apenas quatrocentos metros de largo, toma agora largura mais que dupla, seguindo por vários canaletes entre as margens, e quatro Ilhas que aí se apresentam como que enfileiradas em uma mesma linha.

Infinidade de cachopos eriça os leitos desses canaletes, e os faz encachoeirados: parecendo os principais de seus penhascos, pela posição que tomam, os cabeços de uma grande laje que atravesse todo o Rio, da qual são as Ilhas os pontos culminantes.

É formosíssimo o quadro que aí se desenrola aos olhos do espectador, que nessa ocasião esquece os perigos aí iminentes para só atender ao belo da perspectiva; beleza ainda aumentada pelo movimento contrário das águas, que trazem os hidrófitos (plantas aquáticas) numa dança contínua, fazendo suas pequenas e virentes (verdejantes) Ilhotas subir e descer em duas linhas contínuas, paralelas e quase contíguas, ao passo que quedam-se estacionárias as que por uma mais violenta impulsão da corrente, entraram no remanso, onde o movimento está nulificado (anulado).

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Dessas Ilhas, a mais chegada à margem esquerda chamaram os antigos Ilha dos Padres.

No tempo das águas, o canalete seguido é o do meio, em continuação do grande Canal da esquerda, por cuja corredeira descemos. É, aqui, entre as Ilhas, conhecido pelo nome de Canal dos Perdidos; entretanto, passa pelo melhor de todos, apesar do aterrorizador da denominação. Dele também foi que proveio à Cachoeira o título que tem pelos grandes rebojos, correntes desencontradas e rodamoinhos que, no fim desse Canal, formam as suas correntes com as dos Canais laterais os quais, estreitando-se o Rio logo abaixo dessas Ilhas, convergem todos naquela direção.

Tendo-se verificado estar a grande laje que, no começo do Canal dos Perdidos (E) atravessa o Rio, muito à flor d’água, e impossível de ser transposta, foi o prático reconhecer os outros dois Canais, o entre as Ilhas e o encostado à margem esquerda, opinando pelo último.

Aliviada, ainda mais, a proa do bote, remontou-se o Rio para buscar de novo o curso da corredeira, aproveitando-se agora a orla em que o movimento das águas é em sentido oposto. Desceu a embarcação, despedida como uma flecha até a extrema da ponte de pedra, onde descarregara e aí, com ajuda do remo grande, mudou rapidamente de direção à esquerda, indo abicar em uma pequena Praia (B) fronteira ao segundo Canal.

Descarregou-se completamente o bote, costeou-se o Rio em toda a volta que faz com as cargas, levando-se-as ora pelos pedregais (lugar onde há muitas pedras) e areias da barranca, ora por dentro do mato, até um local em baixo (D), na linha de terminação das Ilhas e Canais, onde o Rio se estreitava, seguindo, então, no leito natural.

Nessa margem pernoitamos; e terça-feira, 4 de dezembro, logo às 4h30, desceu o bote à sirga, encostado ao continente. Apesar de completamente descarregado, muitas vezes bateu e ficou preso nas pedras, chegando todavia, ao Porto de carregar-se, oito horas depois.

Abstraindo do perigoso da travessia, é essa Cachoeira um dos trechos mais formosos do Madeira, com esse espraiado e suas formosas Ilhotas tão iguais e tão bem alinhadas.

Por todos, exceto pelo segundo canalete da margem direita, tem-se navegado, conforme as ocasiões e, apesar da preferência que geralmente dão ao dos Perdidos, o seringueiro Ignácio de Araujo, que os tem explorado com interesse, adoptou (escolheu) aquele outro por encurtar muito o caminho, apesar de ter um salto, de dois ou três palmos, e de ser forte a sua correntada.

As héveas, o tocari e o cacau abundam extraordinariamente; e quase que com igual riqueza há copaíba, salsaparrilha e cravo. Sobre as cimas das altíssimas florestas, distingue-se a fronde do tocari, alta às vezes de trinta metros. Mas o que mais frisa a feição toda característica da flora destas paragens é a sumaumeira (chorizia ventricosa das stercularineas), formosa árvore, notável pela corpulência de seus ramos, os quais conservam grossura descomunal até quase seus últimos esgalhos.

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Figura 45 – Franz Keller – Cachoeira do Ribeirão

Nem aqui, nem nas Cachoeiras da Laje e do Ribeirão, encontrei as pedras com inscrições de que fala Keller, “rock covered with spiral lines and concentric rings, evenly carved in the black gneiss... a perfect inscription whose straight orderly lines can be thought the result of lasy Indianus.—Hours of Idleness”.

Vamos traduzir, na íntegra, as observações de Franz Keller a que faz referência João Severiano da Fonseca lembrando, porém, que a maioria dos amazônicos caudais são prolíficos em Inscrições Rupestres e Petróglifos e que estas normalmente foram gravadas pelos ancestrais indígenas nas vazantes e que ficam, por isso, total ou parcialmente submersas no período das cheias.

Enquanto os índios trabalhavam arduamente nos barcos para a última das corredeiras, eu segui a altitude Meridional do Sol e encontrei na escalada sobre as rochas da margem direita, outra “pedra escrita”, coberta com linhas em espiral e anéis concêntricos, uniformemente esculpidas no material tipo gnaisse preto e semelhantes às do Caldeirão. Procurando mais, descobri uma inscrição perfeita, cujas linhas retas ordenadas dificilmente podem ser consideradas o resultado de índios preguiçosos “Horas de Ócio”.

Estes caracteres foram esculpidos num bloco liso muito duro de 3 pés e 4 polegadas de comprimento e de 31/4 pés de altura e largura. Estava em um ângulo de 45°, apenas 8 pés acima da linha d’água, e perto da borda da segunda Cachoeira menor, a Cachoeira do Ribeirão. A seção transversal dos caracteres não é muito profunda, e sua superfície é tão desgastada quanto à da inscrição encontrada mais abaixo. Em alguns lugares estão quase apagados pelo tempo e podem ser vistos distintamente apenas com uma luz favorável.

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Uma cobertura de esmalte marrom escuro, encontrada em toda a superfície das pedras às vezes agrupadas pela água, cobre o bloco bem uniformemente, tanto nos glifos (grego glúpho, esculpir, gravar) côncavos como nas partes intocadas, que muito tempo deve ter se passado desde que algum Índio paciente tenha despendido longas horas para cortá-la com seu cinzel de quartzo. Como as linhas da inscrição correm quase perfeitamente na horizontal, e como as figuras próximas ao Caldeirão e à Cachoeira das Lajes estão muito pouco acima da marca da água, a posição atual do bloco parece ser a original. Infelizmente o nosso conhecimento da história da raça dos índios Sul-Americanos, antes da Conquista, é tão limitado (exceto, talvez, algumas tradições meio míticas, em relação ao Império dos Incas) que mesmo os mais importantes períodos da história, as andanças dos Tupis, por exemplo, são mais caracterizadas através de hipóteses inteligentes do que pelos fatos históricos. Sabemos das grandes expedições de conquistadores dos Incas. Pode ser que as inscrições no Vale do Madeira estejam conectadas com estas; ou serão ainda mais antigas? (KELLER)

Este engenheiro dá à Cachoeira a altura de 92,8 metros sobre o Mar; e determinou sua posição em 9°15’40”S e 21°52’14”O. Saímos às 2 da tarde. Com poucos minutos de viagem, passamos as barracas de Ignácio Araujo, em número de seis, sendo aquela em que habita de sobrado e coberta de zinco. Deste ponto, olhando-se para os Canais da Cachoeira, o dos Perdidos parece calmo, e bem ásperos o segundo, da predileção do seringueiro, e o quarto, imediato ao por nós seguido.

Numa Ilha, próxima à vivenda de Araujo, há outra barraca, e pastos, onde vimos alguns cavalos e cabras. As barracas dos empregados vão surgindo, aqui e ali, à medida que avançamos, ora numa ora noutra margem do Rio, margens sempre de risonha aparência.

Duas horas, mais, de viagem, e deixamos à esquerda o Maparaná, Riacho de uns trinta metros de foz; e uma hora depois, a Esperança, bela e risonha situação, de D. Angel Chaves, o nosso amável companheiro, no salto do Jirau, colocada numa alta barranca, que devassa longo e formoso estirão do Rio. Essa pitoresca vivenda é também de sobrado, construída e forrada quase toda de taquaruçus (taboca-gigante) e espigues (espigas) do carandá (carnaúba); cercada de varandas, cujas colunas de palmeira sustentam o teto. Cercam-na umas seis barracas de trabalhadores, pequenas o sem elegância.

Assistimos ao preparo da borracha; aceitamos o jantar com que D. Angel nos obsequiou e pernoitamos no Porto, agradecendo-lhe a delicadeza e extrema amabilidade com que nos queria agasalhar.

D. Angel colhe de quatro a cinco mil arrobas de borracha, tendo empregado no serviço uns cento e cinquenta trabalhadores. Mostra-se desanimado dessa indústria, que diz só aproveitar aos consignatários; os quais recebem o fruto desse trabalho por um preço quase nulo, que mal chega para satisfazer os juros dos empréstimos feitos aos seringueiros; sendo necessário muito esforço da parte destes e encontrarem mui ricos seringais, para conseguirem livrar-se das dívidas. E acrescentou— “Eis a razão por que ainda vim matar-me nesta indústria”. Fronteira à situação da Esperança fica a Ilha de Sant’Ana, já consignada nos Mapas dos antigos.

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Figura 46 – Morrinhos (Fonseca - Google)

IX

Às 5 da manhã de 5 de dezembro, deixamos o Porto da Esperança. Às 8h10, passamos, à margem direita, o Jaci-paraná, de cinquenta metros de largo, na Barra. Keller dá-lhe a Latitude Sul de 9°10’9” e a Longitude de 21°42’20”, do Rio de Janeiro.

Seguimos pelo braço à esquerda de uma comprida Ilha, conhecida pelo mesmo nome do Rio. Às 8h30, começamos a sentir as águas mais velozes, próximos da Cachoeira dos Morrinhos. Nessa altura, fica a barraca do seringueiro Pastor Oyolas, muito aprazível à vista, mas em terrenos baixos. Dizem colher de três a quatro mil arrobas de goma; empregando sessenta a setenta trabalhadores. Era, há poucos anos, uma das mais bonitas habitações dessas paragens; mas foi completamente devorada pelas chamas em 1875. Na outra margem, aparecem a pequenos intervalos três outras situações que nos indicaram como pertencendo aos Srs. Nicomedes, que tem uns quinze operários e colhe seiscentas arrobas; Justino, com vinte e cinco e colhendo mil; e Luigi Zárate, com vinte e tirando número igual de arrobas.

Dão nome à Cachoeira três morrotes à margem direita e um à esquerda, que se erguem fronteiros ao ponto, onde, pouco mais ou menos, a fúria das águas se abranda. Ao invés das outras, nesta Cachoeira o Rio se alarga um pouco, arqueando-se suas margens em largas reentrâncias. Uma grande Ilha cercada de Cachopos, principalmente na ponta inferior, está quase a meio Rio. Próxima à margem esquerda, que é lajeada, estende-se uma restinga de talvez sessenta a oitenta metros, com um Canalete que só dá passo nas enchentes. O Canal que tomamos é o que fica entre a restinga e os Cachopos à esquerda da Ilha. A Corredeira começa uns quatro quilômetros acima da Cachoeira: por ela descemos, e com auxílio do remo grande, caímos no remanso, acima da restinga e, junto à laje da margem esquerda (A), tirou-se toda a carga, que foi levada por um caminho de pedregais ao outro Porto (B), uns duzentos metros abaixo. Voltou o bote águas acima a buscar de novo a corredeira, e por ela precipitou-se, passando em dois minutos, entre a restinga e a Ilha, e quebrando rapidamente à esquerda, para abicar no Porto B, onde recebeu as cargas.

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Figura 47 – Teotônio (Fonseca - Google)

Keller determinou-lhe a posição em 9°1’45” Latitude Sul e 21°20’57” Longitude Oeste. Dista cerca de onze léguas da do Caldeirão. Seus arredores são ricos de seringa, cacau, salsaparrilha, cravo, baunilha, copaíba e puchuri (Nectandra puchury), sendo extraordinária a produção da salsaparrilha. Aí pernoitamos. Já ouve-se distintamente o estrondo da queda do Teotônio.

Entre essas duas Cachoeiras dá Baena a existência de uma Povoação de Santa Rosa, fundada em 1728, da qual nenhuma outra notícia temos; parecendo impossível que esse escritor assim se enganasse em data, nome e posição, confundindo-a com a do Balsemão, fundada em 1768, no Jirau.

Saídos às 5h10, do dia 6, às 8 horas passamos a Canal uma forte corredeira, onde há, de ordinário, necessidade de sirgar-se. Já é cabeceiras do grande salto, a cujo Porto superior (A), fomos chegar às 9h40. É também na margem direita, e dista dos Morrinhos umas cinco léguas. Keller dá-lhe a altura de 83,4 metros sobre o nível do Mar; sua Latitude é de 8°52’, segundo Ricardo Franco e Ferreira; Keller dá-lhe a Longitude de 21°30’57”O.

Como no Jirau, no Salto do Teotônio o Madeira estreita-se numa garganta. Um morrote se eleva na margem direita, assentado sobre uma grande laje, com penhascos e recifes que vão quase unidos até um terço do Rio; na esquerda, adianta-se outra laje quase na mesma extensão; e entre uma e outra, três fileiras de cachopos, uns altos, outros à flor d’água, formam os degraus de uma escada, deixando ver uns quatro canaletes intermediários. Cerca de trezentos metros da primeira fileira, baixa o Rio do nível, talvez em toda a largura, fazendo um salto de dois metros no segundo canalete da direita, igualmente eriçado de cachopos e penhascos.

Cem metros adiante, despenha-se num segundo salto de três metros; e a outra distância igual, em terceiro, que é o maior, com quase do dobro de altura, o qual lança-se com grande estrondo, mais aumentado com o que os outros fazem. Nas enchentes, esses saltos diminuem de altura mas forma-se um novo, e igualmente violento, nas fundas erosões que apresentam as rochas da margem direita. Cerca de trezentos metros abaixo dos saltos, uma outra restinga atravessa o Rio de lado a lado, formando duas Ilhotas estendidas na largura do Rio, e enfrentando a lajeados de ambas as margens.

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Figura 48 – Sirga dos Macacos (Google)

Os portos de embarque e desembarque (A e B) distam uns quinhentos metros, um do outro. O varadouro é de 550 metros, e sobe a galgar a encosta do morrote, cuja altura é de uns 15 metros. O Porto B é um saco de pouco mais ou menos trezentos metros de fundo e sessenta de largo, formado pelas duas lajes acima descritas, a do salto e a da restinga, e estendendo-se para a direita, onde forma uma linda Praia de areia branca, com um corregozinho de pura água que por ela se desliza, águas sempre apreciáveis nessas viagens de Rios lamacentos. O Canal da descida vai beirando essa segunda laje, onde há ainda um salto de palmo e meio de alto, e de muita velocidade na corrente.

É importante de ver-se essa catadupa do alto das rochas, onde se escavam as erosões, agora patentes bem como o vasto lençol de águas acima do salto, tremendo e como que em ligeira ebulição, tão alto fica em relação ao observador, aparência que justifica o nome de Irury, que os índios lhe davam.

Às 6 horas de sábado, 8 de dezembro, terminou-se a coração do bote e às 10 horas seguimos, vendo-nos um pouco atrapalhados naquele canalete, cuja correnteza e os rodamoinhos quase nos levam para o falso Canal a meio Rio, onde a perda é certa. Com trabalho conseguiu-se atracar à grande laje junto ao salto, e espiada voltou a embarcação novamente ao Porto, donde saiu, melhor assegurada, pelo canalete.

Teve essa Cachoeira o nome de Padre Eterno, como também já vimos que era conhecida dos antigos pelo de Salto Grande. Esse que a distingue hoje é uma justa comemoração e homenagem aos esforços que fez o primeiro Juiz de Fora de Vila Bela, Teotônio da Silva Gomes, para aí haver uma fonte de socorro aos navegantes, fundando em 1758 um aldeamento com índios Pamas, sob a invocação de Nossa Senhora da Boa Viagem.

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Figura 49 – S. Antônio (Fonseca - Google)

Mas pouco durou: as correrias dos Mundurucus e Muras afugentaram pouco a pouco os navegantes e os aldeões; e já em 1802, a crer-se Baena, o Comandante do porto do Grato, Capitão Marcelino, mandava, em 5 de novembro, uma guarda para nesse ponto vigiar a navegação. Em 1814, por Carta Régia de 6 de setembro — determinou-se a criação, aí, da Povoação de São Luiz — que não foi levada a efeito, apesar dos esforços do benemérito Ricardo Franco, que muito trabalhou para realizá-la.

A Sirga dos Macacos. Às 11 horas, notávamos que o Rio aumentava de velocidade e, em poucos minutos, chegávamos a esse ponto, terrível nas grandes águas pelos inúmeros Cachopos que alastram o Rio e o encachoeiram. Apenas houve necessidade da sirga por um quarto de hora, seguindo o bote sem maior novidade. Fica a pouco mais ou menos oito quilômetros do Salto do Teotônio.

Santo Antônio. À 1 hora da tarde chegamos à Cachoeira de Santo Antônio; e dobrando uma ponta, à margem direita, em que o Rio se ensaca como na do Caldeirão do Inferno, seguimos, por um quarto de hora, até o Porto do desembarque (A). Tem esse braço do Rio cerca de quilômetro e meio: o lado esquerdo é formado por duas grandes Ilhas e outras menores que, atualmente, quase se ligam, tão estreitos são os filetes d’água que as separam. Ao avizinhar-se da Cachoeira, o Rio multiplica de velocidade: em frente ao leito há ainda duas grandes Ilhas, entremeadas de cachopos, quase iguais e paralelas como as do Caldeirão. Entre elas é que passa o Canal seguido pelos navegantes, até uma terceira Ilha (D), cuja direita tomam, para buscar o meio do Rio.

Chamavam os índios Aroyá esta Cachoeira; e os portugueses por corrupção Aroeira e também S. João. Tínhamos vencido, em vinte e quatro dias, apenas, a região das Cachoeiras, passagem tão rica de perigos e horrores, como de peripécias extraordinárias e cenas admiráveis “qu’on est bien d’avoir une fois contemplées, mais dont on ne désire nullement courir une second fois les danger”. Do Porto do desembarque ao posto militar de Santo Antônio gastamos vinte e cinco minutos; estando o caminho quase de todo inviável.

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Está Santo Antônio aos 8°49’2,6”, Latitude Sul, e 21°29’8” Longitude Oeste do Rio de Janeiro, segundo Keller, que também lho dá, apenas, a altitude de 61,6 metros acima do Mar, e novecentos e um quilômetros de distância da foz do Madeira, quando Mathews dá-lhe 250 pés ou 76,8 metros. Eleva-se numa barranca alta de trinta e seis metros à margem direita do Rio. Foi o primeiro estabelecimento do Madeira, fundado em 1728 pelos Missionários dirigidos pelo Jesuíta Padre João de Sampaio, segundo narra Baena, dos quais alguns subiram as Cachoeiras e foram até as missões espanholas de Mamoré e Baures, e outros desceram a missionar nas margens do Jamari. A esse Padre Sampaio deve-se também a fundação da Aldeia Trocano, hoje Vila de Borba.

Pertence Santo Antônio de direito à Província de Mato Grosso, cujos limites ainda ficam muitas léguas ao Norte, e de fato, à do Amazonas, que é quem fiscaliza toda a região do Madeira, e a provê de guarnição, autoridades civis e eclesiásticas. Aí deve começar a via férrea, corretivo das dificuldades do comércio e navegação das Cachoeiras; estrada mal aventurada, já duas vezes iniciada, e duas vezes morta. Compõe-se de várias casas, umas cobertas de zinco, outras de palmas, havendo mesmo uma de sobrado, onde nos alojamos. Junto à ribanceira há um grande barracão, depósito do materiais, mantimentos e medicamentos da Companhia da Estrada de Ferro, grande parte dos quais estão deteriorados e em breve estarão completamente perdidos. Sobre o terreno vêem-se milhares de trilhos, alguns dormentes, restos de guinchos e guindaste a vapor, cujas peças aparecem aqui e ali esparsas, algumas quase enterradas, e outras sem dúvida completamente.

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Figura 50 – Cachoeiras do Rio Madeira (Autor)

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Velho tronco (Almino Affonso)

Aos últimos clarões de um sol que expira, Entre as escumas da corrente, à tona, Um tronco desce... e como que ressona,

E no seu sono, a sonhar, delira!

Sonha, quiçá, sua fronde esmeraldina, Onde as brisas cantavam serenatas, E as aves, em sutis bandolinatas,

Abriam a voz numa explosão divina...

Frutos pendentes a dourar seus galhos E as lianas vivendo de sua vida...

A fera, à sombra, a lhe pedir guarida, Vindo sentir–lhe os mágicos retalhos...

Sonha, de certo, as noites de luar, E o Madeira, tranquilo, como em cisma, Tendo nos versos do poeta – a crisma, E no vento – um seresteiro a cantar.

Depois... a luta, o vendaval rugindo... Folhas serpeando em doudos espirais... Galhos rangendo entre gemidos e ais, Ao chicotear dos ventos se partindo!

E os ninhos a rolarem pelo chão... Aves implumes a chorar, piando...

E mais e mais, em fúrias, vergastando, O temporal ribomba no trovão!

E por fim, a estrugir, fraqueja, cai Sobre as águas barrentas do Madeira

– Líquida estrada de escumante esteira, Onde sua vida, lenta, já se esvai!...

Velho Tronco! eu te entendo neste instante! No teu silêncio eu descobri tua vida... E em tua raiz, para o infinito erguida,

Uma bênção... um perdão edificante! (...)

Ah! tu que foste fruto e sombra e ninho... És sublime, ó Tronco, e eu te bendigo, Pois rolando pra morte ainda és abrigo Das garças e gaivotas do caminho!

Aprende, coração! E se na vida, Em troca do bem, do amor que semeares,

Vires a ingratidão lá nos altares A rir de ti, de tua ilusão sentida...

Relembra o Velho Tronco! E, já sumindo Os últimos lampejos da existência, Ampara o fraco e a tímida inocência,

E sentirás a vida reflorindo!

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Desbravadores dos “Ermos e dos Sem Fim”

Os Lusíadas Canto VII

(Luís Vaz de Camões)

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A vós, ó geração de Luso, digo, Que tão pequena parte sois no inundo; Não digo ainda no mundo, mas no amigo Curral de quem governa o céu rotundo; Vós, a quem não somente algum perigo

Estorva conquistar o povo imundo, Mas nem cobiça, ou pouca obediência

Da Madre, que nos céus está em essência;

3

Vós, Portugueses, poucos quanto fortes, Que o fraco poder vosso não pesais;

Vós, que à custa de vossas várias mortes A lei da vida eterna dilatais:

Assim do céu deitadas são as sortes, Que vós, por muito poucos que sejais, Muito façais na santa Cristandade:

Que tanto, ó Cristo, exaltas a humildade!

- Tratado de Tordesilhas

(...) subsistia ainda a tradição medieval da supremacia política da Santa Sé, que reconhecia a Roma o direito de dispor das terras e dos povos: Adriano IV, Papa inglês (1154-59), havia dado a Irlanda ao Rei da Inglaterra e Sisto IV as Canárias ao Rei de Castela (1471-84). Baseava-se

isso, em parte, sobre o fato de um Édito de Constantino ter conferido ao Papa Silvestre a soberania sobre todas as ilhas do globo; ora, isso porque as terras a descobrir eram todas,

então, supostas serem exclusivamente ilhas. (LIMA)

O Tratado de Tordesilhas, celebrado a 7 de julho de 1494, na cidade que lhe deu nome, representou um momento importante da diplomacia ultramarina das Coroas ibéricas. Portugal e Espanha acordavam sua área de influência sobre os espaços atlânticos, pondo fim a discussões que se arrastavam desde o retorno de Cristóvão Colombo de sua viagem, em 1493.

O Papa Júlio II, em janeiro de 1506, através da Bula “Ea Quæ Pro Bono Pacis” ratificou o Tratado. As demais potências europeias nunca reconheceram os termos acordados considerando que estes as excluíam das conquistas e riquezas dos Novos Mundos. O Rei da França Francisco I de Angoulême, teria afirmado: “O sol brilha para todos e desconheço a cláusula do testamento de Adão que dividiu o mundo entre portugueses e espanhóis”.

- Determinação Portuguesa

O Major-General Reformado Arnaldo Manuel de Medeiros Ferreira, do Exército de Portugal, no seu livro “Fortificações Portuguesas no Brasil”, faz algumas reflexões importantes para que possamos entender a determinação portuguesa de ampliar seus limites para muito além do que determinava o Tratado de Tordesilhas.

O Tratado de Tordesilhas, assinado em 1949, constitui o primeiro documento histórico que, em termos de direito internacional, procurou estabelecer os limites territoriais do Brasil, mas que não garantia de forma segura a definição dos limites, devido aos condicionamentos impostos pelos deficientes conhecimentos técnico-científicos da época que não permitiam cartografar com precisão, nem tampouco traçar com rigor a linha meridiana estabelecida naquele Tratado (...).

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Nestas condições, após a descoberta da “Terra de Vera Cuz” e subsequentes expedições exploratórias do litoral brasileiro, a Coroa Portuguesa procurou encontrar os “limites naturais”, para definir o espaço geográfico do Brasil, fixando-se nas desembocaduras dos Rios Amazonas e Prata respectivamente, a Norte e a Sul.

Tal propósito transparece quando D. João III instituiu o sistema das capitanias donatárias (hereditárias) no Brasil, resolvendo mandá-las demarcar até ao Rio da Prata, mas que, na prática, nos termos da doação a Pero Lopes de Souza, da Capitania de “Santo Amaro e Terras de Sant’Anna”, tenha fixado o seu limite Sul em “28 graus e um terço” (ou seja, pela Latitude da Ilha de Santa Catarina, o que pode ser interpretado como atitude de prudência ante uma eventual reação espanhola). Todavia, em negociações posteriores, D. João III invocou sempre os seus direitos sobre os territórios até ao Estuário do Prata, o que veio a ser motivo de disputas entre Portugal e Espanha durante mais de dois séculos.

No Extremo Norte, durante o período da “União Ibérica” sob os reinados filipinos, ficou entregue aos súbditos portugueses a árdua tarefa de explorar a bacia amazônica e de expulsar da Costa Setentrional (inclusive das margens do Amazonas) os franceses, ingleses e holandeses que ali se haviam estabelecido, com destaque para as ações empreendidas por Pedro Teixeira e Bento Maciel Parente, a que se fez referência a propósito das Fortificações portuguesas na ocupação e defesa do Pará e Amazonas.

Concorrentemente, o “Movimento Bandeirante”, que teve origem na busca de metais preciosos nos “Sertões de São Paulo” (regiões de Mato Grosso e Goiás) e que foi iniciado ainda na vigência da “União ibérica”, o qual, após a restauração da independência, foi incentivado pela Coroa Portuguesa, veio a estabelecer novas povoações no “Sertão Paulista”, entre 1640 e 1650, para além da linha de Tordesilhas.

Nesse “Movimento Bandeirante”, em que podemos incluir a “Bandeira Fluvial” de Pedro Teixeira no Amazonas até chegar ao Peru, merece também destaque a “Bandeira” de Raposo Tavares, que o levou de São Paulo ao Pará, entre 1648 e 1651, desvendando a possibilidade de ligação entre as Bacias do Prata e do Amazonas, “o que veio a ser materializado através da ligação dos Rios Paraná-Guaporé-Madeira”. (MEDEIROS FERREIRA)

- Século XVIII

Passemos, porém, para o período histórico que mais nos interessa dentro do contexto em que foi construído o Real Forte Príncipe da Beira. No século XVIII, a Europa é assolada por profundas alterações nas relações políticas, econômicas e sociais cujos reflexos repercutem profundamente no Sistema Colonial. Os portugueses conviviam, simultaneamente, com uma Europa convulsionada e uma América cobiçada pelas demais potencias europeias.

No início do século, enquanto os castelhanos estão envolvidos com a Guerra da Sucessão Espanhola (1702-1714), a diplomacia dos portugueses, neste período, está focada na América, mais precisamente na Bacia do Prata, palco de constantes conflitos de interesses entre Portugal e Espanha.

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Este período é marcado pela Corrida do Ouro rumo às riquezas das Minas Gerais. A febre do ouro provocou uma mobilização geral, engenhos e plantações são abandonados e o Rio de Janeiro transforma-se em um entreposto de fornecimento das Minas Gerais. O antigo Porto é modernizado visando atender a exportação do ouro e as linhas regulares de navegação. A prosperidade estimula a cobiça de corsários franceses.

Os franceses Duclerc (1710) e Duguay-Trouin (1711) invadem o Rio de Janeiro.

Jean-François Duclerc: em agosto de 1710, Duclerc entrou na Baía da Guanabara com a intenção de conquistar a cidade. O ataque redundou num enorme fracasso. Quatrocentos franceses foram mortos e setecentos capturados, inclusive o próprio Duclerc, mais tarde assassinado. (Nota do Autor)

René Duguay-Trouin: apoiado por Luís XIV, partiu de La Rochelle em 9 de junho, no comando de 17 navios e cinco mil homens. No dia 13, desembarcou suas tropas e conquistou facilmente a cidade graças à covardia e incompetência do então Governado do Rio de Janeiro. (Nota do Autor)

A diplomacia portuguesa obteve pleno sucesso com a assinatura do 1° Tratado de Utrecht (1713). O Tratado de Limites incorporou em definitivo ao território brasileiro a região compreendida entre o Rio Oiapoque e o Amazonas. As maquiavélicas manobras diplomáticas francesas, no entanto, não cessaram. Os franceses alegavam o direito de exercer soberania sobre as terras ao Sul do Oiapoque. Joaquim Caetano da Silva, em 1861, publicou em francês a obra “L’Oyapock et l’Amazone”, onde afirmava que, segundo os ladinos franceses, o Rio Japoc (Oiapoque) ou de Vicente Pinzón do Tratado de Utrecht era ao certo o Calsuene, a 50 milhas do Amazonas; era ao certo o Maiacaré, a 49 milhas do Amazonas; era ao certo o Amapá, a 33 milhas do Amazonas; era ao certo o Carapapuri, a 12 milhas do Amazonas e ao certo o Araguari, 25 milhas dentro do Amazonas; era, ao certo, o próprio Amazonas.

Quase dois séculos, desde o 1° Tratado de Utrecht, em 1° de dezembro de 1900, Walter Hauser, expede o Laudo Suíço dando ganho de causa ao Brasil na Questão do Contestado Franco-Brasileiro. O Barão de Rio Branco baseou sua defesa nos argumentos irrefutáveis de um gaúcho, de Jaguarão, Joaquim Caetano da Silva, para defender os interesses brasileiros.

1° Tratado de Utrecht, 11 de abril de 1713

Artigo VIII

(...) Sua Majestade Cristianíssima (francesa) desistirá para sempre, como presentemente desiste por este Tratado pelos termos mais fortes (...) qualquer direito e pretensão que pode, ou poderá ter sobre a propriedade das Terras chamada do Cabo do Norte, e situadas entre o Rio das Amazonas e o de Japoc ou de Vicente Pinsão (...)

Em 1715, Portugal e Espanha, considerando que os cristãos estavam aflitos com tão “larga, e sanguinolenta guerra”, resolvem assinar um Tratado de Paz, retornando a posse da Colônia de Sacramento às mãos lusas.

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2° Tratado de Utrecht, 6 de fevereiro de 1715

Artigo VI

Sua Majestade Católica não somente restituirá o Território, e Colônia do Sacramento, sita na margem Setentrional do Rio da Prata, à Sua Majestade Portuguesa; mas cederá assim em seu nome, como de todos os seus Descendentes, Sucessores, e Herdeiros, de toda a ação, e Direito, que pretendia ter ao dito Território e Colônia, fazendo a Desistência pelos termos mais fortes, como se elas aqui fossem declaradas, para que o dito Território, e Colônia fiquem compreendidos nos Domínios da Coroa de Portugal (...)

Recorde-se, a propósito, a importância do “Tratado de Paz de Utreque” (Utrecht) de 1715, que se traduziu no abandono do acordo de Tordesilhas e na sua substituição por uma negociação entre Portugal e Espanha, que correspondeu “grosso modo” à idéia de um “Brasil-Ilha” (segundo o conceito expresso por Jaime Cortesão e que teve a sua representação gráfica na cartografia da época), tendo por limites, ao Sul o Rio da Prata e, ao Norte, o Amazonas. Neste limite Setentrional, foi contemplada a oposição portuguesa à tentativa francesa de ocupar os territórios do Cabo Norte, ou seja, de controlar a margem Norte do Amazonas. Quanto ao limite Sul, aquele Tratado reconhecia o domínio de Portugal sobre a “Colônia de Sacramento” na margem Norte do Rio da Prata, o que, porém, não impediu que aquela Praça de guerra fosse acometida e ocupada militarmente pelo Governador de Buenos Aires, em 1735, dando origem a uma série de ações por parte da Coroa Portuguesa para manter aquela possessão como Fronteira Sul do Brasil. (MEDEIROS FERREIRA)

O avanço português no Prata, porém, exacerbava o antagonismo secular. O Conselho Ultramarino promoveu, a partir de 1717, o povoamento da área, propiciando um surto de prosperidade preocupante para os castelhanos.

Conselho Ultramarino: criado em 14 de julho de 1642, com a finalidade de tratar de matérias e negócios relativos à Índia, Brasil, Guiné, ilhas de São Tomé, Cabo Verde e as demais partes ultramarinas. (Nota do Autor)

Os espanhóis tentam desalojar os portugueses do Prata, dando início ao cerco da Colônia do Sacramento, que se estendeu de outubro de 1735 a setembro de 1737. A Convenção Preliminar de Paris suspende as hostilidades, determinando a volta às posições anteriores.

D. João V determina a implantação de estabelecimentos, Fortificações e Postos Militares a partir de São Paulo, expandido, ao máximo, os limites do território na América Portuguesa.

A paz de Aix-la-Chapelle, que pôs fim à Guerra da Sucessão Austríaca (1740-1748), inspirou o governo português a buscar um acordo com a Espanha para que se fixasse, de forma nítida e permanente, os domínios coloniais baseados nos documentos cartográficos disponíveis.

Tratado de Paz de Aix-la-Chapelle: nome da cidade sob o domínio francês também conhecido como Acordo de Paz de Aachen assinado em 1748, na cidade alemã de Aachen, que pôs fim à Guerra de Sucessão da Áustria. (Nota do Autor)

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- Antecedentes do Tratado de Madri

Em 1746, iniciam-se as negociações diplomáticas a respeito do Tratado de Madri onde se sobressai a figura de Alexandre de Gusmão.

Leandro Tocantins faz o seguinte comentário na “Formação Histórica do Acre”:

A velha aspiração espanhola de dominar o Prata, caminho mais natural para a suas possessões, era logo de início posta na agenda da Conferência pelo plenipotenciário luso, e foi um motivo determinante da vitória da tese de Alexandre de Gusmão, porquanto os espanhóis jamais recusariam a proposta, oferecendo ensanchas (dando liberdade) a Portugal de negociar aquilo que verdadeiramente pretendia. (TOCANTINS)

Cabe aqui fazer uma importante consideração a respeito do “Mapa das Cortes” em que se baseou o Tratado de Madri. O escritor Leandro Tocantins, no seu livro “Formação Histórica do Acre”, mostra a argúcia de Alexandre de Gusmão ao lançar mão do “Mapa das Cortes”. Embora possuísse documentos mais atualizados e confiáveis como a Carta Hidrográfica produzida por José Gonçalves da Fonseca, Alexandre de Gusmão, conquanto reconhecesse a validade dos elementos que figuravam no detalhado Mapa elaborado por José Gonçalves da Fonseca, na viagem da “Real Escolta”, nega-se a levá-los em conta, pois isto significaria colocar em cheque a legitimidade da posse portuguesa dos territórios das importantes Minas do Mato Grosso e de Cuiabá.

Jaime Cortesão faz o seguinte pronunciamento na 3ª Conferência do Instituto Rio Branco:

Assim esse desiderato de Alexandre de Gusmão ganhava o consentimento da Espanha: emprestar o valor da justa propriedade à ocupação real do solo – o princípio do “uti possidetis” – e correr os limites pelas divisas naturais. Uma arguta estratégia que provinha de sua clara percepção sobre o Tordesilhas, e exigindo uma nova base para as transações territoriais. Alexandre de Gusmão conhecia, como ninguém em sua época, a geografia brasileira e os problemas dela decorrentes. Seu discernimento provinha da experiência vivida pelos sertanistas, que traçavam roteiros, explicavam pormenores, revelavam, enfim, um conjunto precioso de elementos ao curioso e sagaz secretário do Conselho Ultramarino. Além do copioso material obtido nessas sabatinas, ele dispunha dos arquivos do reino, onde se empilhavam as memórias, Cartas e relatórios dos agentes da Coroa, e os trabalhos de cartografia conservados em segredo. O Mapa das Cortes, cujo autor é Alexandre de Gusmão, aceito por D. Joseph de Lancaster como cartografia básica nas negociações do pacto, é amostra evidente da percepção política e da malícia diplomática do mesmo desígnio: “apoucar o terreno que ficava reservado à soberania portuguesa e engrandecer as regiões partilhadas pelos espanhóis”. (CORTESÃO)

Continua Jaime Cortesão, mais adiante, no seu “Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madrid”:

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Em conclusão: o Mapa das Cortes foi propositadamente viciado nas suas longitudes para fins diplomáticos. Desviando o Brasil Meridional para Leste, aumentava a margem da soberania no hemisfério português, delimitado pelo Meridiano de Tordesilhas: e encurtando ainda com os desvios de traçado as Longitudes do Paraguai, do Madeira e do Guaporé, apoucava o Brasil Ocidental com aparente benefício das regiões centrais de soberania espanhola. A soma destes erros permitia ao cartógrafo situar, por exemplo, Cuiabá com erro enorme, sobre o Meridiano de Tordesilhas, tal como este fora situado pelos cosmógrafos espanhóis em 1681.

Coordenando com arte os erros da cartografia conhecida de toda a gente, o organizador do Mapa das Cortes conseguia realizar uma obra, como dizia Guerra Junqueira de certo político português, que ele mentia com o coração nas mãos, tão sinceras pareciam as suas promessas. Assim D. José de Carvajal procurava trair a boa fé dos portugueses (...) com o coração nas mãos. Esta duplicidade, lícita aos olhos de todos os castelhanos, e que, por esse motivo, podia abrigar-se num patriota impoluto, tinha sido enxergada pelos olhos de lince do negociador oculto de Lisboa. A prova de que em diplomacia o Ministro espanhol não era mais cândido que Alexandre de Gusmão, temo-la em que procurou ignorar acintosamente as escandalosas violações da soberania portuguesa, quer à luz do Tratado de Tordesilhas, quer da Escritura de Saragoça, praticadas pelos seus compatriotas no Extremo Oriente. Não sejamos também nós tão cândidos. (...) Alexandre de Gusmão representava então uma política de segredo, que o Estado português vinha praticando sobre seus descobrimentos geográficos, desde o século de quatrocentos. Pode transparecer à inteligência hodierna que essa política de sonegação da verdade e de astúcia (diga-se, ela teve amplas consequências na formação territorial do Brasil) resultou de uma odiosa má-fé, repelida pelos brios de qualquer estadista. Ela foi, porém, produto perfeitamente justificável de uma época, dentro da lógica das sociedades em que viveram os seus promotores. (CORTESÃO)

- Tratado de Madri

Tratado de Madri, 13 de janeiro de 1750

Artigo VII

Desde a boca do Jauru pela parte Ocidental prosseguirá a fronteira em linha reta até a margem Austral do Rio Guaporé defronte da boca do Rio Sararé, que entra no dito Guaporé pela sua margem Setentrional; com declaração que se os Comissários, que se hão de despachar para o regulamento dos confins nesta parte na face do país, acharem entre os Rios Jauru e Guaporé outros Rios, ou balizas naturais, por onde mais comodamente, e com maior certeza se possa assinalar a raia naquela paragem, salvando sempre a navegação do Jauru, que deve ser privativa dos portugueses, e o caminho, que eles costumam fazer do Cuiabá para o Mato Grosso; os dois altos contraentes consentem, e aprovam, que assim se estabeleça, sem atender a alguma porção mais ou menos no terreno, que possa ficar a uma ou a outra parte. Desde o lugar, que na margem Austral do Guaporé for assinalado para termo da raia, como fica explicado, baixará a fronteira por todo o curso do Rio Guaporé até mais abaixo da sua união com o Rio Mamoré, que nasce na Província de Santa Cruz de la Sierra, atravessa a Missão dos Moxos, e formam juntos o Rio chamado da Madeira, que entra no das Amazonas ou Marañon, pela sua margem Austral.

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Em 30 de abril de 1751, Sebastião José de Carvalho e Mello, o Marquês de Pombal, sucessor de Alexandre de Gusmão, antes que surgissem críticas às falhas na redação do Tratado, resolveu expedir “Instruções para a demarcação do Tratado de Madri”, determinando, também, a constituição de duas Comissões de Limites: uma destinada a explorar e demarcar as fronteiras Meridionais do país e outra para demarcar as fronteiras Setentrionais, a partir do Rio Jauru. As “Instruções” serviriam de guia para os trabalhos de seu irmão Francisco Xavier de Mendonça Furtado, “primeiro e principal Comissário para as Conferências que se devem ter sobre a execução do Tratado de Limites”.

Instruções para a demarcação do Tratado de Madri

15. Em razão de que na conformidade da Carta concordada, o Rio Guaporé é o mesmo Rio da Madeira, ou aquele donde o Rio da Madeira traz primeira origem, tendo as suas cabeceiras perto do nascimento do Rio Jauru. O mesmo se manifesta muito mais claramente pela outra Carta grande que se fez na viagem de José Gonçalves da Fonseca.

16. Em cuja certeza se depois de se subir o Rio Madeira se subisse também o Rio Guaporé, como diz o artigo 70, sem mais considerações e sem mais reflexões depois se podia seguir, segundo o que indicam as sobreditas Cartas.

Primo, que do Rio Madeira se não podia passar à boca do Jauru como o mesmo artigo estabelece e demonstra a pequena linha de Leste Oeste que se acha descrita por aquela parte na Carta concordada.

Secundo, que para ir subir pelo Guaporé ou Aporé não poderíamos depois encontrar o Jauru senão perto das suas cabeceiras.

Tertio, que assim perderíamos o triângulo do País que a dita Carta concordada mostra que faz desde a Foz do Rio Sararé até a do sobredito Rio Jauru e que a outra Carta descreve melhor desde a boca do Rio Verde até a do sobredito Jauru.

Quarto, que com a perda daquele País nos ficaria inteiramente cortado pelos castelhanos o caminho que vai do Cuiabá para o Mato Grosso.

Quinto, que assim no Mato Grosso como no Cuiabá ficariam vivendo os vassalos deste Reino, quase em comum com os referidos Castelhanos.

- Execução do Tratado de 1750

Virgílio Corrêa Filho, nas suas “As Raias de Matto Grosso”, editado em 1925, faz o seguinte comentário sobre a 3ª Partida das Comissões de Limites:

Nessa parte, como em outras, ajeitaram os Jesuítas meios de contrariar a política de Pombal, que lhes não concedia quartel (mercê).

Enquanto Gomes Freire aplica a sua prudente energia em superar-lhes a oposição no Extremo Sul, onde a luta se travou sem rebuços, encarrega a “3ª Partida” (da Comissão de Limites) de remontar o Rio até a Barra do Jauru.

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Gomes Freire, em Carta datada de maio de 1753, da Ilha de Martim Garcia, ao pedir a Rolim que forneça víveres aos expedicionários: “Hoje sai desta Ilha a Terceira Partida que vai fazer a Divisão das duas Monarquias levando um marco para se colocar na Barra do Jauru”. Em 14 de julho: “Enquanto os embaraços por esta parte têm recrescido, tratamos de expedir (como saiu no fim de maio) a Partida Portuguesa e Castelhana que vai demarcando pelo Rio Paraguai. (...) a 3ª Partida se compõe de 14 embarcações portuguesas e castelhanas, com 300 pessoas de ambas as Nações”.

Aí se cravou imponente marco de mármore, único trabalho concernente ao artigo VII, realizado pelos demarcadores, que o deixaram, insulado, a balizar, no ermo, a linha estremenha. De Jauru para o Norte, a demarcação da lindeira ficaria a cargo de Francisco Xavier de Mendonça Furtado, nomeado a 13 de abril de 1753, “Primeiro e Principal Comissário para os referidos efeitos”. Graves obstáculos lhe embaraçaram a ação, cuja dificuldade se evidenciava pela própria marcha oscilatória das Coroas peninsulares que, além do Tratado de 1750, assinaram mais quatro, destinados a facilitar-lhes a interpretação, mas que, ao revés, a toldariam.

O Tratado de Limites traz a data de 13 de janeiro de 1750, e foi seguido de outro de 17 de janeiro de 1751, que esclarece a respeito da “inteligência das Cartas Geográficas”, ao qual se acrescentou novo suplemento a 17 de abril; e do que contém as “Instruções dos Comissários que devem dirigir e executar as demarcações”, datado de 24 de junho de 1752, e completado pelo seguinte, de 31 de julho que o interpretou.

Não era somenos a incumbência que lhe tocara: levou três anos a estudar o assunto, escoados os quais apresentou a sua abalizada opinião.

Remeto a V. Ex.ª o sistema que tenho formado para as Demarcações por estas partes, o qual me custou não menos que 3 anos de fadigas concorrendo V. Ex.ª na maior parte para sossegar o meu cuidado com as claríssimas luzes que me participou pelo que respeitava a essa parte com as quais se tranquilizou inteiramente o meu ânimo. (Carta de Francisco Xavier de Mendonça Furtado a D. Antônio Rolim de Moura Tavares, de 23 de novembro de 1758)

- Euclides da Cunha e o Tratado de Madri

O Tratado não elimina ancestrais antagonismos deixando dúvidas quanto às reais demarcações dos limites em decorrência da imprecisão da linguagem empregada e maximizada pela ignorância da topografia daquelas paragens, gerando controvérsias e conflitos constantes.

O grande escritor Euclides da Cunha, em “Peru versus Bolívia”, comenta que o Tratado de Madri:

(...) no tocante às linhas limítrofes, esboçadas, foi vacilante e dúbio.

A sua exegese está nas Minutas, Cartas, Propostas, Contrapropostas e Proêmios, que se cruzaram entre Aranjuez e Lisboa, na esgrima magistral do espírito vibrátil de Alexandre de Gusmão e a diplomacia cautelosa de Carvajal y Lancaster. E deletreando-os (soletrando-os), o que sobretudo se destaca são as incertezas de ambas as metrópoles, na partilha do continente, subordinando-o às divisas naturais, mal definidas ou confusas, no imperfeito dos conhecimentos geográficos.

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Ora, entre todas elas, pelo correr da extensa orla fronteiriça, desde Castillos Grandes aos contrafortes de Parima, sobrelevava-se, sobremaneira indecisa, principalmente a que se devera rumar da margem esquerda do Madeira em direção à direita do Javari.

Nos demais segmentos da enorme divisa, os pareceres acentuavam-se em traços mais ou menos firmes. Ali dispartiam (partiam para diversas partes), duvidosos. Alexandre de Gusmão, desde o começo das negociações, em 1748, ao instruir o plenipotenciário Visconde de Vila Nova de Cerveira, definiu aquele trecho como “o mais difícil de toda a demarcação de limites”; e confessou que todo o material existente a elucidá-lo consistia numa pequena Carta das missões de Moxos, “que traz o tomo duodécimo des ‘Lettres Édifiantes’, e com dois roteiros de sertanistas nossos, que até lá se tinham avantajado; concluindo que era forçoso se contentassem com tão escassos elementos, porque se houvessem de aguardar os que se mandassem formar no mesmo país, ficaria a conclusão do Tratado para as calendas gregas”.

Lettres Édifiantes: Carta publicada sob o título “Lettres Édifiantes et Curieuses, Écrites des Missions Étrangères, par quelques Missionaires de la Compagnie de Jésus” em Paris, por Chez Nicolas Le Clerc, 1717.

Na Carta que Tomás da Silva Teles, embaixador extraordinário em Madri, endereça a Marco António de Azevedo Coutinho, em 02.04.1749, ele comenta que:

“Confirma-se, desta forma, uma superioridade portuguesa na preparação das negociações e no conhecimento cartográfico das regiões em disputa. Carvajal e Lancaster, como ele próprio se havia lamentado, não possuía suficientes Mapas e informações geográficas dessas regiões. Segundo Silva Teles, o negociador espanhol nem dispunha de uma obra Jesuíta com grande circulação na Europa desde o início do século XVIII como as Lettres Édifiantes et Curieuses, Écrites des Missions Étrangères, par quelques Missionaires de la Compagnie de Jésus, onde se encontravam reproduzidas algumas Cartas dos territórios em causa. Mas o negociador português duvidava, inclusivamente, que Carvajal e Lancaster possuíssem a relação de La Condamine publicada em 1745, em que este geógrafo, para além de descrever a viagem que efetuara pelo Amazonas, publicou a sua célebre Carta do curso deste Rio”.

Marco António de Azevedo Coutinho argumeta que “do terreno que corre desde o Mato Grosso até ao Rio das Amazonas, não tem saído a luz mais que uma pequena Carta das Missões dos Moxos no Tomo XXII da obra Lettres Édifiantes”.

Calendas Gregas: deixar para um tempo que nunca há de vir. (Nota do Autor)

Por seu turno, o plenipotenciário espanhol, em longo ofício àquele titular, depois de formular o seu parecer quanto ao melhor rumo da Linha na paragem perturbadora, acrescentou, nuamente, que o alvitre era o mais claro que se lhe afigurava, “conveniendo en que de la misión de Santa Rosa (Guaporé) abajo, hasta el Marañon, todos vamos a ciegas...”

E, feito um eco, o negociador português, tempos depois, ao versar o mesmo lance, assentia: “quanto ao espaço intermédio e deserto (entre o Madeira e o Javari) confessamos de ambas as partes que estamos todos às cegas”.

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Os Ministros, como se vê, titubeavam em pleno desconhecido até que, por evitar dilatórios pareceres, e sem repararem em algumas léguas de terras desertas, onde sobravam tantas às duas coroas, consoante confessaram imprudentemente - riscaram, à ventura, para o Ocidente, a começar da média distância entre as confluências do Madeira e do Mamoré, a controvertida raia, predestinada a tão funesta influência no futuro, para sempre ambígua, ou absurda, e malsinada (desvirtuada) pelos seus próprios inventores, que de algum modo acenaram à tolerância das nações vindouras, antecipando um recurso absolutório naquela recíproca confissão de a haverem planeado e discutido inteiramente às cegas.

É uma gênese expressiva. Pelo menos clamorosamente contraposta à durabilidade que se pretende emprestar a uma concepção tão frágil, e à tentativa dos que hoje procuram revivê-la com os mesmos traços que a malignaram (corromperam) ao nascer. (CUNHA)

- Outros Tratados

No decurso de 1753 a 1756, sobreveio no Sul a Guerra Guaranítica enquanto, na Europa, grassava a Guerra dos Sete Anos (1756-1763). Os espanhóis conquistaram Sacramento e invadiram o território Rio-grandense. A luta foi encerrada com o Tratado de Paris, que acordou que os beligerantes deveriam retornar à situação anterior.

Em 12 de fevereiro de 1761, assinou-se o “Tratado Anulatório – Pardo” de 1761 ou “Distrato do Pardo”, anulando o tratado de Madri, determinando a obediência às antigas convenções.

Tratado Anulatório - Pardo 12 de fevereiro de 1761

Os Sereníssimos Reis de Portugal e Espanha, (...) se tem sempre encontrado tais e tão grandes dificuldades, (...) em uns países tão distantes e pouco conhecidos das duas Cortes, (...) depois de haverem precedido sobre esta importante matéria muitas e muito sérias conferências, e de se haver examinado com a maior circunspecção tudo o que a ela é pertencente; (...) concordaram e concluíram de uniforme acordo os artigos seguintes:

Artigo I

O sobredito Tratado de Limites da Ásia e da América, celebrado em Madrid a 13 de janeiro de 1750, (...) se estipula agora que ficam e se dão, em virtude do presente Tratado, por cancelados, cassados e anulados, como se nunca houvessem existido, nem houvessem sido executados; de sorte que todas as cousas pertencentes aos limites da América e Ásia se restituem aos termos dos Tratados, Pactos e Convenções que haviam sido celebrados entre as duas Coroas contratantes, antes do referido ano de 1750, ficam daqui em diante em sua força e vigor. (...)

A partir de então, até o encerramento do século, os portugueses e espanhóis continuaram envolvendo-se em uma série de conflitos na América. Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal, tomou medidas para garantir as fronteiras construindo fortificações permanentes, incrementando as forças coloniais e retomando progressivamente o Sul. Com a morte de D. José I e a assunção ao trono luso de sua filha, D. Maria I (1777), cai Pombal, opera-se a chamada “viradeira”.

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Viradeira: é o nome que se dá ao período que se iniciou a 13 de março de 1777 com a nomeação por D. Maria I de novos Secretários de Estado, em substituição do Marquês de Pombal. (Nota do Autor)

A Guerra da Independência dos Estados Unidos da América (1775–1783) irrompeu doze anos após a Guerra dos Sete Anos (1756-1763). A vitoriosa Inglaterra, procurando restabelecer seu equilíbrio financeiro minado pela guerra, impôs às Colônias Americanas uma série de antipáticas e onerosas medidas que exacerbaram os ânimos dos colonos que solicitaram a suspensão das “Leis Intoleráveis” e firmaram a “Declaração dos Direitos dos Colonos”. A coroa britânica determinou-lhes que se submetessem e estes não se curvaram. Ouve um aumento progressivo das tensões que culminaram com a guerra.

As potências europeias, abaladas pelo exemplo americano iniciaram algumas mudanças, pouco substanciais, na sua política Colonial. Em 1° de outubro de 1777, negocia-se o Tratado de Santo Ildefonso, definindo limites para os domínios ultramarinos, prevalecendo os princípios fundamentais do Tratado de Madri. Desta feita, a preocupação maior dos negociadores assentou-se nos Limites Meridionais.

Chegava a termo a pretensão lusitana do domínio da Bacia do Prata, com a perda definitiva de Sacramento. Os Sete Povos reintegravam-se à área colonial castelhana.

Tratado de Santo Ildefonso

Artigo III

Como um dos principais motivos das discórdias ocorridas entre as duas Coroas tem sido o estabelecimento Português da Colônia do Sacramento, Ilha de S. Gabriel, e outros Postos, e Territórios, que se tem pretendido por aquela Nação na margem Setentrional do Rio da Prata, fazendo comum com os espanhóis a navegação deste, e ainda a do Uruguai: Convieram os dois Altos Contratantes, pelo bem recíproco de ambas as Nações, e para segurar uma paz perpétua entre as duas, que a dita navegação dos Rios da Prata, e Uruguai, e os terrenos das suas duas margens Setentrional, e Meridional pertençam privativamente à Coroa de Espanha, e a seus Súditos (...)

- Marcha para o Oeste (Relatos Pretéritos)

José Gonçalves da Fonseca (1750)

José Gonçalves da Fonseca, de quem tratamos no capítulo - Viagem da “Real Escolta”, relatou, com detalhes, a Corrida do Ouro que se verificou na região do Mato Grosso sob o título:

Notícia da Situação do Mato Grosso e Cuiabá. Estado de umas e Outras Minas e Novos Descobrimentos de Ouro e Diamantes.

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SITUAÇÃO DE MATO-GROSSO, SEU DESCOBRIMENTO DE MINAS, E ESTABELECIMENTOS DE SEUS ARRAIAIS

Entre as serras da cordilheira das Gerais, e Rio Aporé (principal tronco do Madeira) se levanta um agregado de montes de espessa construção de rochedos, que formam várias chapadas no mais alto da sua elevação, e algumas lombadas nos seus declives, cujo composto se dilata em figura quase triangular lançada de Leste a Oeste, ocupando de terreno em circuito sete léguas. Da parte superior destas montanhas, nascem vários regatos, que, em tempo de águas, precipitando-se à planície por todos os lados, se esgotam na maior parte para o Rio Sararê, que circunda a Chapada pelo Sul e Oeste, e para o Rio Galera, que a Leste da mesma o Aporé, aonde perde o nome abaixo do mencionado Aporé. É a positura (localização) desta chapada em 16 graus e quatorze minutos de elevação Austral no Meridiano de 316, quase Norte Sul com a entrada, que faz o Madeira no grande Rio das Amazonas. O clima desta região se averigua ser quente e seco, e nele é sumamente irregular o tempo nas suas mutações; porque reduzido o ano somente a inverno e verão, é este tão “intemperado”, que desde o mês de abril, em que principia, até o de setembro, em que acaba, padece aquele território uma interpelação de calor, como costuma haver de ordinário na zona tórrida, em que jaz; e frio tão desordenado, como em Portugal se experimenta no janeiro mais desabrido.

Acha-se o dia claro de sol intenso, e de repente se levanta do Sueste um vento “frigidíssimo” com uma cerração de neblina tão espessa, que apenas pelos campos e pelas ruas se divisam as pessoas, quando chegam a encontrar-se. É preciso, com acidente tão estranho, desampararem os trabalhadores o serviço das faisqueiras e lavouras, e fecharem-se nas casas, aonde só bem enroupados, e com o benefício do lume podem resistir ao frio, que já em ocasiões foi tão grande, que apanhando em partes ermas alguns escravos, os privou da vida; razão por que, logo que o horizonte Austral dá os primeiros sinais de tão espantosa friagem, logo põem toda a diligência de se recolher ao povoado, todos os que se acham dispersos pelas chapadas. A duração deste estranho ataque costuma ser de dez e mais dias, quase todos os meses em algumas das quatro conjunções da lua, com a circunstância de ser mais moderado o frio, quando a estação vai a finalizar, que é depois do equinócio de setembro. E enquanto o sol se dilata entre o Trópico de Capricórnio e o Equador até o outro equinócio de março, não padece aquela região a mencionada intemperança de frio, sendo então o tempo das águas, em que se experimenta o maior calor.

No ano de 1736, saindo uma tropa de gente da Vila do Cuiabá a explorar as campanhas dos gentios, chamados Paracizes (Parecis), cuja nação já a este tempo se achava extinta, e habitava nas dilatadas planícies ao Norte da grande Chapada e, achando a referida tropa todo aquele continente destituído de tudo, o que pode se fazer interesse às suas diligências, se determinaram atravessar a Cordilheira das Gerais de Oriente para Poente: e como estas montanhas são escalvadas (sem vegetação.), logo que baixaram à planície da parte oposta aos campos dos Paracizes (que só têm algumas ilhas de arbustos agrestes), toparam com matos virgens de arvoredo muito elevado e corpulento, que entrando a penetrá-lo, o foram apelidando Mato-Grosso: e este é o nome, que ainda hoje conserva todo aquele Distrito.

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Caminharam aqueles exploradores sempre ao Poente, e depois de vencerem sete léguas de espessura, toparam com o agregado de serras já mencionadas, e fazendo alto na falda (sopé) delas, no sítio em que hoje se acha o Arraial de Santana, fizeram nele acampamento; e vendo que naquele terreno havia boa disposição para nele se achar ouro, deram princípio a investigá-lo e, logo à primeira diligência, se seguiu a felicidade de o acharem com boa conta, com cujas mostras despacharam portadores a dar parte do sucedido a Luiz Rodrigues Vilar, morador no Cuiabá, autor desta expedição, para a qual havia concorrido com despesa sua, e direção, por ser pessoa de grande inteligência para semelhantes empresas; e nesse tempo se achava com possibilidade para executá-las.

Achava-se o referido Luiz Rodrigues lendo a Vida do grande Apóstolo da Índia, S. Francisco Xavier, ao tempo que lhe chegaram os portadores com a notícia do sucedido e, depois de bem instruído da situação em que se achavam, e das serranias que se seguiam, animou por Carta sua aos exploradores, que subissem à Chapada invocando o patrocínio de S. Francisco Xavier, debaixo de cujo auspício esperava grandes progressos no descobrimento que lhe anunciavam.

Com este aviso se deliberaram todos a subir a fragosidade (caminho escabroso) daquela serrania, e penetrando-a de nascente para Poente, nesta parte foi a maior força do descobrimento na última lombada, em que se fundou Arraial, e edificou a matriz, que dedicaram a S. Francisco Xavier em gratificação dos benefícios que experimentaram deste seu sagrado tutelar. Toda esta lombada ainda hoje é faisqueira de duas oitavas de jornal.

Nos últimos morros que se seguem à mesma lombada, quando a serrania já vai a despenhar-se para a planície da parte do Sul, foi o descobrimento chamado do Gengibre, por imitarem as raízes desta planta as folhetas de ouro, que em grande cópia se achavam à flor da terra, sem trabalho de socavões, nem de outro algum serviço: expirou logo a grandeza desta abundância preciosa.

Sem embargo de que toda a circunferência da Chapada se esgota em regatos, ou córregos no tempo das águas, são estas no período da seca tão raras, que apenas permanecem algumas fontes para serviço da Povoação; razão por que se não pode trabalhar a talho aberto o que no tempo das chuvas se podia fazer, havendo gente proporcionada para semelhante serviço, em cujos termos a maior parte das faisqueiras, em que atualmente se está minerando, são aquelas que, nos primeiros anos deste descobrimento, eram abandonadas por não fazerem conta, a respeito das que abundavam em grandiosa extração sem grande trabalho.

Além do Arraial de S. Francisco Xavier, em que houve (como fica dito) a maior abundância de ouro, há mais, para a parte do nascente, dois Arraiais fundados na falda da serrania de Santana, em que fez alto a tropa dos exploradores, e de Nossa Senhora do Pilar, em cujas campanhas, e nas do sítio chamado Membeca, têm havido descobertos, que todos se acham reduzidos a faisqueiras do mencionado rendimento de duas oitavas de jornal; o mesmo sucede no sítio chamado Monjolo, a Leste da chapada. (DA FONSECA)

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Felipe José Nogueira Coelho (1776)

Felipe José Nogueira Coelho, nas suas “Memórias Cronológicas da Capitania de Mato-Grosso, Principalmente da Provedoria da Fazenda Real e Intendência do Ouro ...”, diz que:

Consta, pois que, no ano de 1734, saiu da Vila do Cuiabá Fernando Paes de Barros e seu irmão Arthur Paes, naturais de Sorocaba, a continuar a fácil e bárbara conquista do gentio Parecis, que já se achava quase extinto nas vastas campanhas de seus sertões. Viajando eles mais para o Poente, se arrancharam junto do Rio Galera, que tendo as fontes nas faldas da Chapada de S. Francisco Xavier, deságua no Guaporé. Aqui acharam três quartos de ouro. De tão limitada porção se formou a trombeta áurea, que chamou e anunciou aos moradores do Cuiabá as futuras riquezas de Mato Grosso. O dito Fernando Paes deu parte ao Regente Guarda-mor, pedindo ferramenta e pólvora para penetrar ou examinar o sertão, esperando a resposta no Paraguai. Em fevereiro do mesmo ano de 1734, tomou posse e juramento da mão do Ouvidor e novo Provedor da Fazenda Real Thomé de Gouvêa Sá e Queiroga, que havia nomeado o Governador na ausência de Domingos Gomes Beliago para se atalharem os prejuízos que tinha recebido da Fazenda Real, como se diz na provisão à folha 58, do Livro II, mas não se puderam atalhar os conflitos de jurisdição que se seguiram. Chegou em maio do mesmo ano o Tenente de Mestre de Campo General Manoel Rodrigues Carvalho, para se dar execução à provisão de 6 de março de 1732, pela qual mandara Sua Majestade dar guerra ao gentio Payaguá e confederados, que lhes queimassem e destruíssem as Aldeias, ficando cativos os prisioneiros, que se repartiriam pelas pessoas que entrassem na dita guerra, pagando o quinto. A este fim se fizeram livros de arrecadação, que existem no arquivo da Provedoria. Com efeito, se executou com bom sucesso o que se ordenava pela dita provisão, e pelo regimento que mandou observar (e que se registrou no Livro II, da ouvidoria, folha 32, e Livro II, da Provedoria, Folhas 29 a 34) o Exmo. Antônio Luiz de Távora, Governador e Capitão-general da Capitania, e Conde de Sarzedas pelo seu casamento; o qual morreu nas novas minas de Tocantins, em 1737, tendo a patente de Mestre de Campo General. A milícia se compôs de três Regimentos, de que foram Coronéis Felipe de Campos Bicudo, Antônio Antunes Maciel e Antônio Pires de Campos, assistindo a Fazenda Real com os petrechos de guerra. Por mais vezes tem merecido o dito gentio semelhante recompensa aos estragos que nos tem feito, e que deram causa a esta justa guerra, como se deixa dito no ano de 1730.

Pelo Edital já referido, de 20 de janeiro de 1735, se mostra que as notícias de Mato-Grosso chegaram àquela Vila nos fins de 1734, e que o mais foi sucedendo no ano seguinte, e que nesta parte houve equivocação nos Anais da Câmara. Foi mandado pelo Regente, para Mato-Grosso o Sargento-mor Antônio Fernandes de Abreu, e com ele (ainda que sem o socorro pedido) buscou o dito Fernando Paes ao seu irmão, que já se tinha mudado para o Rio Macabaré, e descobrindo ai o Ribeirão que chamaram de Santa Ana, ao nascente da sobredita Chapada, acharam três oitavas de ouro. Descobriram mais nas suas vizinhanças o Ribeirão Brumado, aonde também acharam duas oitavas. Com estes felizes anúncios tornou para o Cuiabá o sobredito Sargento-mor, ainda no mesmo ano, e talvez que então se publicasse o dito confuso Edital.

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Foi tal o alvoroço dos povos com aquelas notícias, que deixando barcos e redes desatadamente (como diz o referido Edital), se quiseram introduzir naquele descoberto. O Regente, não só por ponto de polícia, mas por benefício da fazenda real (cujo Provedor lhe representou o muito que se estava devendo), ordenou no dito Edital que, até se fazerem maiores indagações, ninguém saísse para Mato-Grosso. Consta, porém que no mesmo ano chegaram o Padre José Manoel Leite (que, se arranchando no sítio, em que fundou Capela a Nossa Senhora do Pilar, no ano de 1749, deu o nome ao Arraial), Francisco Xavier Salles, João Pereira da Cruz e outros. Veio também o Padre André dos Santos, primeiro Capelão destas minas. Então se erigiu a Capela de Santa Anna no sítio a que deu o nome. Ainda existe esta primeira Capela com nenhum aumento depois da sua ereção, não obstante que em festejos anuais despendem os mineiros bem superfluamente avultadas quantias em sacrifício da vangloria. No ano de 1736, entrou na Vila o sobredito Francisco Xavier Salles com oito oitavas tiradas do Ribeirão Brumado, e cinco do outro Ribeirão da Conceição, que fica ao Sul da Chapada, dando notícias de que nela havia ouro. Em 3 de maio, saiu com o dito Salles o Regente e Guarda-mor Antônio de Almeida Lara e outros, com algumas mulheres. Descobriram então o caminho por terras do Cuiabá ao Paraguai. No mês de agosto, houve uma moléstia geral, que chamavam peste, como primeiro fruto dos novos descobertos. O de Brumado se deu por faisqueira, e o da Chapada se repartiu. Então lhe puseram o nome de S. Francisco Xavier. A sua Capela, que ainda existe, foi construída de boa pedra em o seguinte ano de 1737. (COELHO)

Joaquim da Costa Siqueira (1817)

Joaquim da Costa Siqueira nasceu, provavelmente, em 1740 ou 1741, em São Paulo e faleceu em 1821. Foi Capitão de cavalaria e vereador em Cuiabá. Foi juiz das medições e demarcações de sesmarias. Siqueira escreveu o “Compêndio Histórico Cronológico das Notícias de Cuiabá de 1778 a 1817” e nele faz uma preciosa análise da consolidação definitiva da Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá como ambiente urbano, superando a capital Vila Bela da Santíssima Trindade. Siqueira, nos idos de 1790, até pelo menos 1796, participou ativamente dos conflitos urbanos da Vila Real, particularmente com o Mestre de Campo Antônio José Pinto de Figueiredo, representante dos Albuquerque no Cuiabá. Siqueira relata o deslocamento em massa da população de Cuiabá para a região das “Minas do Mato Grosso”.

ANO DE 1731: Continuando-se neste ano a conquista do gentio Pareci, donde eram trazidos muitos indivíduos desta nação que como escravos se vendiam, chegaram a esta Vila, vindos do dito sertão, o licenciado Fernando Pais de Barros, seu irmão Artur Pais e seus sobrinhos João Martins Claro e José Pinheiro, todos naturais de Sorocaba. E apresentaram um cruzado de ouro de amostra das Minas do Mato Grosso, lavrado com um prato de estanho, no lugar onde se acha a Capela de Santana. Com esta notícia botou-se logo o Sargento-mor Antônio Fernandes de Abreu com os ditos descobridores a examinar o descoberto que, com efeito examinou, e voltou com quatro oitavas de ouro que no mesmo lugar tirou, e afirmou serem minas permanentes pelas disposições que viu e observou, com o que se alvoroçou o povo, querendo logo ir muitos a situar-se no lugar, que o não fizeram por não ser já tempo de se lançarem roças. (...)

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ANO DE 1737: Despovoou-se nesta ocasião esta Povoação do Cuiabá, ficando sítios, casas e lavras, tudo deserto; somente ficaram na Vila sete brancos, entre seculares e clérigos, e alguns (índios) carijós; gente preta só algum pajem que servia a seu senhor. (SIQUEIRA)

- Os Primeiros Tempos da Capitania do Grosso

Os Lusíadas Canto VIII

(Luís Vaz de Camões)

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Olha que dezessete Lusitanos, Neste outeiro subidos se defendem, Fortes, de quatrocentos Castelhanos,

Que em derredor, pelos tomar, se estendem; Porém logo sentiram, com seus danos, Que não só se defendem, mas ofendem: Digno feito de ser no mundo eterno,

Grande no tempo antigo e no moderno.

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Sabe-se antigamente que trezentos Já contra mil Romanos pelejaram, No tempo que os viris atrevimentos

De Viriato tanto se ilustraram, E deles alcançando vencimentos

Memoráveis, de herança nos deixaram Que os muitos, por ser poucos, não temamos:

O que depois mil vezes amestramos.

Quando o Capitão-general D. Antônio Rolim de Moura chegou às terras do Mato Grosso, já vigorava o Tratado de Madri.

Prevaleciam as preocupações de natureza político-militar. Todavia, o Capitão-general não se descurou dos negócios internos. Nos Distritos do Norte (Mato Grosso) e do Sul (Cuiabá), organizava-se a vida administrativa. O comércio com o Pará foi regularizado, obrigando-se as frotas mercantes a transitar exclusivamente pela rota do Madeira. Com parcos meios iniciais, devotou-se a elevar as condições de vida.

Estabeleceu a ligação terrestre com as lavras dos Parecis, onde despontavam os Arraiais de S. Francisco da Chapada, Nossa Senhora do Pilar, Santana e S. Vicente. Regulava-se a produção de ouro e o fluxo comercial entre os Distritos.

Rolim de Moura empenhou-se em melhorar o tráfico com São Paulo. Vivera os percalços do roteiro fluvial na vinda para a Capitania. As monções agora viajavam com escolta de canoas armadas, visando a proteção contra as amiudadas sortidas dos índios. Abreviou-lhes o percurso e aliviou-lhes os dispêndios. Suspendera a imposição de tocar primeiro em Cuiabá. Mediante baldeação no Jauru, alcançava-se Vila Bela em prazos mais expeditos.

Cuidados especiais consagrou a implantação da capital, desde os primeiros dias. Incentivos e isenções outorgadas pela Metrópole mobilizavam ansiosos povoadores até as margens do Guaporé. Urgia sobrepor-se a agrestia do meio físico e bem administrar a escassez de recursos, para ordenar a incipiente vida urbana e o funcionamento da administração. Abandonando o custoso projeto arquitetônico elaborado no Leste, dedicou-se energia e zelo inexcedíveis à edificação de Vila Bela.

Estava em curso e demarcação do Tratado de 1750. Ciente das cláusulas pertinentes a Capitania, apontou a impropriedade da linha divisória no lanço que demandava o Jauru em correspondência oficial, sem responsabilidade direta nos trabalhos prestou eficiente apoio logístico a Comissão que atuou em Mato Grosso.

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Em meados de 1756, explorou o Guaporé até a junção com o Mamoré. Reconhecera a topografia fronteiriça e inteirara-se do dispositivo espanhol na região. Quando dispôs de meios, lançou uma força para guarnecer o local denominado “Sítio das Pedras”, a montante do Rio São Simão.

Desde muito, florescia sólido povoamento espanhol, especialmente de raízes missioneiras, na área vizinha às barras do Itonamas e do Baures. Santa Rosa era próspero aldeamento fundado por Jesuítas castelhanos na Costa Oriental do Guaporé.

O sítio fora habilidosamente escolhido. Uma corredeira obrigava a navegação a tomar o acanhado estirão que corria pelo lado direito do Rio.

Na vigência do Tratado de Madri, seus moradores refluíram para a banda espanhola para uma redução recente, Santa Rosa “Nova” (1753-1754). Rolim de Moura desceu de Vila Bela com tropa e estabeleceu a “Guarda de Santa Rosa Velha” em local vizinho ao antigo Arraial. Encetava-se, assim, a ocupação efetiva da fronteira no baixo Guaporé. Era um Posto Militar sem fortificações, providência vedada pelo Tratado de 1750.

Notificado de sua próxima revogação pelas Cortes, voltou a sulcar o Rio. Visita o Destacamento do Sítio das Pedras e aporta em Santa Rosa. Reforça a guarnição com Dragões e tropa de Vila Bela. Transforma a “Guarda” em Forte Nossa Senhora da Conceição, iniciando o levantamento do Quartel e estacada provisória.

Às autoridades do Peru causava inquietação as medidas de Rolim de Moura. Fortificava-se um sítio contíguo à boca do Itonamas. A convenção do Pardo presumia-lhes direitos sobre a margem Oriental do Guaporé (1761). De Santa Cruz de la Sierra chegaram emissários para obter a evacuação do Forte. Não recuou o Capitão-general, exigindo ordens diretas de Lisboa para negociar.

Com a mesma vitalidade que lhe permitira erguer Vila Bela em pleno sertão e desenvolver a Capitania, decidiu manter o Forte, preparando-se para a defesa. Com armas procedentes de Cuiabá e reforços, apresta os efetivos adaptando a doutrina militar portuguesa às peculiaridades locais. Lança patrulhas fluviais em canoas armadas com peças leves de artilharia e vigia os movimentos do inimigo.

Na Europa, rebentara luta entre Portugal e Espanha, no contexto da Guerra dos Sete Anos. Com o ataque à Colônia de Sacramento, o Teatro de Operações alargara-se até a América. Informado dos preparativos que se envidam na região do Baures e do Itonamas, retorna ao Forte em agosto de 1763. Solicitando apoio do Pará, de Goiás e de S. Paulo, inicia um período de vigilância e treinamento da guarnição, à espera do combate.

Em abril do ano seguinte, força castelhana de vulto concentrava-se na orla do Guaporé. Eram destacamentos de Santa Cruz de la Sierra, do Paraguai e do Prata. À prolongada inação do adversário, respondeu com patrulhas no Rio, buscando induzi-lo a lutar. Logo percebeu o intento inimigo de sitiá-lo. Expede, então, selecionado grupo que, mediante audacioso golpe de mão noturno na retaguarda espanhola, destrói o Arraial de S. Miguel.

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Decorreram três meses sem qualquer revide. Com reforços da própria Capitania, Rolim decidiu entestar o inimigo, investindo contra a trincheira do Itonamas. O indeciso resultado, a retirada castelhana e as notícias de paz na Europa estabilizaram a frente. Quando aportou em Vila Bela o segundo Capitão-general, escoava-se o ano de 1764. João Pedro da Câmara largara de Belém pelo caminho do Madeira, com vultosa expedição e que incluía pesadas peças de artilharia de ferro e bronze. Ao longo dos sete meses da penosa jornada, procurou reconhecer o percurso com atenção maior para o vale do Guaporé.

Chegava a termo a proveitosa administração de D. Antônio Rolim de Moura. Cumprira as tarefas básicas de implantar a Capitania e assentar marcos de posse luso-brasileira nos confins do Guaporé. Seus méritos, derivados de qualidades como zelo, força moral, desassombro e energia carrearam o reconhecimento real. Agraciado com o titulo de Conde de Azambuja, recebeu a graduação de Marechal de Campo e as nomeações sucessivas para a Capitania da Bahia e Vice- Reino do Brasil.

Do programa de governo que lhe traçara a Metrópole, constavam importantes metas. Na gestão interna, cabia-lhe ampliar a produção do ouro e estimular o povoamento na região das lavras, desenvolver as comunicações e incrementar a criação de gado. A missão, no plano político-militar consistia, sobretudo, em consolidar a fronteira do Extremo Oeste. Todavia, o seu período singularizou-se pela permanente mobilização no Guaporé, eclipsando as questões administrativas.

De início, procedeu ao balanço da situação. Avaliando as forças disponíveis, diligencia esforços. Sai a explorar a área de operações. No Fortim de N. Sª. da Conceição, conduz obras para ampliar-lhe o valor defensivo. Modifica o traçado, impondo-lhe a forma abalaustrada do sistema Vauban, artilhando-o com o material transportado do Pará. Na volta, reconhece a região de Vila Bela, circundada por povoações de Chiquitos, provendo-lhe defesa.

À vista do clima político da Europa, recomendara-lhe a Corte providência na fronteira. A estrita vigilância a que submetia as atividades inimigas permitiu-lhe aperceber-se que fortes efetivos espanhóis concentravam-se na área do Itonamas e Baures. Comandava as operações a Real Audiência de Chuquisaca.

Em junho de 1766, Câmara retornou ao Guaporé. Na passagem, reforça o Destacamento do Sítio das Pedras com elementos das Ordenanças. Chegando ao Forte N. Sª. da Conceição, ativa os trabalhos de fortificação, adestra suas forças e prepara-se para a luta. Para impedir a transposição do Rio, executa bloqueio com canoas armadas com artilharia leve.

Ao fim de outubro, retiraram-se os espanhóis sem oferecer combate. Não obstante o período de trégua que se prenunciava, o Capitão-general jamais desmobilizou o aparato militar. Elevou o efetivo do contingente de N. Sª. da Conceição com tropa enviada do Pará. Em 1768, concluíram-se as obras do Forte. Orientação remetida por Lisboa avalizava a decisão de Câmara. Consoante à Diretriz realista do Marques de Pombal, as relações amistosas com os espanhóis, em curso naqueles dias, não implicavam distensão no sistema defensivo da faixa de fronteira.

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O terceiro Capitão-general, Luís Pinto de Souza Coutinho, desembarcou em Vila Bela no primeiro dia do ano de 1769, pelo roteiro amazônico. No decurso da viagem, fundou o Arraial de Balsemão, fronteiro ao Salto do Girau no Rio Madeira. Destinava-se a servir de escala no longo trajeto. (ARAÚJO)

- O Governo Albuquerque

Já em dezembro (1771), Luís de Albuquerque aportava ao Rio de Janeiro. Até maio de 1772, empenhou-se em preparar a prolongada viagem que, por terra, enfrentaria para alcançar Vila Bela. Em minuciosa resenha com desenhos ilustrativos, registrou cada etapa da extensa travessia por paragens mineiras e goianas. Mais de cem dias e dois mil quilômetros varando sertões através de caminhos precários e trilhas pioneiras, perpassam ao folhear de seus diários de viagem. Observa o meio físico por que transita, assinalando peculiaridades e admirando a fauna e a flora. Adentra à Capitania, demorando-se cerca de um mês em Cuiabá já no exercício de seu mister. Serve-se dos momentos de ação para caçadas descritas em seu registro, detalhando os espécimes que encontra. As instruções do Ministro Martinho de Melo e Castro (1772) indicavam previdência e realismo na política do estado português.

A segurança da fronteira merecia justificado destaque. Viviam-se momentos de incerteza, a falta de um diploma internacional que explicitasse limites definidos entre colônias. Como solução, o Distrato do Pardo induzia a novos descaminhos (1761). Levara os espanhóis a presunção de posse à margem direita do Guaporé. A tensão na zona litigiosa aproximara-se do estado da guerra aberta, como no Sul. A trégua observada, desde 1766, não excluía a efetiva atenção aos problemas de fronteira, principalmente em face dos precedentes ocorridos à época de Rolim e Câmara. Alertava-se o Capitão-general para que se acautelasse contra surpresas, reforçando a defesa da Capitania. Da imprecisão das lindes (limites) derivava outra diretriz. Imperioso se tornava, além de manter posições conquistadas como o Forte Nossa Senhora da Conceição, empreender a ocupação de toda a orla Oriental do Guaporé mesmo com recurso à forma, defendendo-a até seu extremo limite. Como providência concreta, ordenava-se a seleção de local adequado, “na duodécima Cachoeira, contando da parte do Pará ... no lado Oriental da referida Cachoeira...”, para o levantamento de uma Fortaleza, na via fluvial do Madeira.

Da precisa observância do preceito político decorria a execução de medidas de natureza econômica, que expressavam o interesse da Coroa em “promover e animar o comércio e a navegação” entre o Pará e a Capitania. A companhia concessionária organizaria estabelecimentos de apoio ao tráfico, em locais escolhidos e fiscalizados pelo Capitão-general. Determinava-se a criação de “feitorias” na barra do Rio Mequens e na região do Fortim N. Sª. da Conceição. O fluxo comercial e regularidade da navegação ligavam-se à segurança da fronteira. Meticulosa era a orientação do governo e estendia-se a todos os setores da administração. Era mister atrair os índios ao convívio civilizado, erradicando a hostilidade ao colonizador. Recomendava-se, também, a aproximação com aldeamentos e missões castelhanos e liberava-se o intercâmbio comercial através da fronteira, observando-se os apropriados cuidados contra a infiltração de espiões.

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Luís de Albuquerque interpretou as instruções com descortino e rara competência. Cônscio da missão histórica que lhe fora reservada, obstinou-se em assegurar a soberania lusa no Extremo Oeste. A lúcida compreensão que manifestou a respeito das questões de fronteira transcendia à perspectiva política de Lisboa. Na “Ideia Geral da Fronteira”, oferecida a Rainha em 1780, compilou argumentos de peso na defesa dos interesses luso-brasileiros prejudicados por cláusulas do Tratado de Santo Ildefonso, fundamentados em documentação cartográfica atual.

Desde a primeira hora, preocupou-se em coligir subsídios indispensáveis à ação de governo. Através da exploração metódica e científica da região, acumulou valiosos conhecimentos sobre os problemas vitais da Capitania, cujas raízes ligavam-se à própria política colonial. Cercado de notável grupo de especialistas, como Ricardo Franco de Almeida Serra, promoveu expedições de pesquisa e determinou a elaboração de Mapas e documentos de valia. Frequentes vezes participou dos trabalhos de campo, orientando os reconhecimentos necessários.

A criação do Registro de Ínsua (1773) resultava de sua percepção da realidade.

Registro de Ínsua: posto de fiscalização de minérios localizado entre Vila Real do Bom Jesus de Cuiabá e Goiás. (Nota do Autor)

A medida administrativa decorrente da necessidade de controlar o acesso terrestre à Capitania, sobrepunha-se à decisão política.

A instalação do posto anulava de fato o inconveniente Termo de Acessão de seu antecessor, que transferia para Goiás ampla região de capital importância para as comunicações fluviais com São Paulo, o desenvolvimento e a própria segurança da Capitania.

Constatou com acerto a vulnerabilidade da área Meridional. A aplicação do esforço político-militar no Guaporé desde os primeiros tempos, reiteradas nas atuais instruções, relegava a fronteira com o Paraguai a plano secundário. O governo de S. Paulo, preocupado com o fácil acesso que viabilizaria a penetração castelhana ao coração da Capitania paulista, decidiu instalar posição de defesa no Iguatemi. O recente avanço dos vizinhos até o Ipané poderia significar a intenção de retomar à margem esquerda do Paraguai.

Em 1772, Madri recomendava aos espanhóis de Assunção e Chiquitos a ocupação de um local na orla do Rio, para servir de ponto de ligação e apoio mútuo entre ambos os governos.

Ao discernimento de Luís de Albuquerque revelava-se desdobramento mais crítico para a Capitania. Remontando os tributários da importante via fluvial, forças castelhanas poderiam apossar-se da região a Oeste do Paraná, amputando as comunicações com São Paulo.

Zona de escasso trânsito e fraca ocupação, a área a jusante da Foz do Miranda apresentava um único ponto que oferecia condições de defesa. Era o sítio conhecido como “Fecho dos Morros”, onde o Capitão-general mandou instalar posição fortificada.

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O cochilo topográfico do chefe da expedição não invalidou a medida. Surgia o Forte Coimbra (1775). Portal de acesso Sul, balizaria no futuro, em associação com a monumental fortificação de Príncipe da Beira, a linha básica de defesa da Fronteira Ocidental, fixada pelo desassombro e pela larga visão dos luso-brasileiros do século XVIII.

Em 1778, Luís de Albuquerque definia o traçado essencial das posses lindeiras que se alongavam do Paraguai ao Guaporé, implantando em pontos estratégicos dois núcleos de ocupação importante. Albuquerque (atual Corumbá), em pleno pantanal, afastava a pretensão castelhana de 1772, obstando-se a comunicação entre terras de Assunção e Chiquitos. A montante da Barra do Jauru, fundou Vila Maria (depois Cáceres em memória da rainha D. Maria I), no local em que o caminho terrestre de Vila Bela e Cuiabá cruzava o Paraguai.

No Guaporé, considerava os problemas de fronteira à luz de perspectivas mais amplas do que as soluções políticas do governo português. Advogava a exclusividade lusa na navegação, de que resultaria segurança para a comunicação fluvial com a Amazônia. Com intuito de assegurar o tráfico com o Pará e, sobretudo, tolher a progressão castelhana para o Leste, empreendeu a conquista de posições favoráveis ao longo da margem esquerda do Guaporé. Selecionou locais convenientes, ocupando-se até 1777, os sítios de Porto de Guarajus junto ao Paragau; Torres a montante do Cabixi, Viseu, fronteiro à Foz do Corumbiara e Ilha Comprida. A partir do Forte Príncipe da Beira, formara-se uma linha de cobertura a Oeste dos limites visualizados pela política de Lisboa.

Nas cercanias de Vila Bela, o traçado da linha alcançara Casalvasco, às margens do Rio Barbados (1783). O povoado integrava-se à defesa territorial, fixando-se como ponto de convergência para os colonos dispersos naquelas terras, anteriormente castelhanas.

Em 1790, deixava Vila Bela o Capitão-general. A profícua gestão alcançou todos os setores da administração. Preocupou-se com a saúde e a justiça, quando criou a primeira junta. Fomentou a agricultura, desenvolveu o comércio e as finanças e modernizou a área urbana da capital. Implementou a ocupação e o povoamento do território, protegendo os habitantes contra os índios hostis e regulando o abastecimento dos povoados.

Homem de acurada formação científica, aplicou-se ao conhecimento da fauna e da flora do Oeste, cujas coleções ainda se conservam na Casa da Ínsua, em Portugal. No quadro do memorável governo de Luís de Albuquerque, entre as admiráveis realizações que se registram, sobreleva-se a obra maior da consolidação da Fronteira Ocidental, cujo marco mais expressivo é o Forte Príncipe da Beira. (ARAÚJO)

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Caminhos de Rio (Natacha Andrade)

Nos caminhos desse Rio, muita história p’ra contar. Navegar nessa canoa

é ter o mundo p’ra se entranhar.

Cada canto esconde um canto. Cada homem e mulher

tem a fé, a força e a história p’ra contar p’ra quem quiser.

Tem um bicho visagento1 que aparece no terreiro

tem um rezador tem um santo catingueiro

tem a cobra–grande que aparece no arrombado

tem cuia de caridade p’ra espantar o mau olhado.

Tem o boto sonso que aparece no terreiro p’ra fazer as moças

liberarem seus desejos.

Todos os mistérios dessa mata e dessa água

que esse povo usa p’ra espantar a mágoa,

p’ra sobreviver e enfrentar a dor, o azar, a sorte,

a desgraça e o amor.

(1) Personagem mítico que protege a natureza contra depredadores.

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Os Corsários Franceses no Brasil

Os Lusíadas Canto X

(Luís Vaz de Camões) 152

Fazei, Senhor, que nunca os admirados Alemães, Galos, Ítalos e Ingleses,

Possam dizer que são pera mandados, Mais que pera mandar, os Portugueses. Tomai conselho só d’exprimentados Que viram largos anos, largos meses, Que, posto que em cientes muito cabe. Mais em particular o experto sabe.

153

De Formião, filósofo elegante, Vereis como Anibal escarnecia, Quando das artes bélicas, diante Dele, com larga voz tratava e lia. A disciplina militar prestante

Não se aprende, Senhor, na fantasia, Sonhando, imaginando ou estudando, Senão vendo, tratando e pelejando.

A primeira expedição francesa à “Terra Brasilis” foi comandada por Nicolas Durand de Villegagnon, nos idos de 1555. Desde então até o século XVIII, piratas e corsários de diversas nacionalidades atacaram e pilharam povoados ao longo do litoral brasileiro.

A descoberta de ouro no sertão das Minas Gerais convergiu a atenção dos bucaneiros para o litoral da Região Sudeste, especialmente para o Rio de Janeiro que havia se transformado em um progressista entreposto de fornecimento das Minas Gerais. Entre os assaltos mais famosos, podemos registrar, em agosto de 1710, o do corsário Jean-François Duclerc e, em setembro de 1711, o de René Duguay-Trouin. Os eventos que se seguiram desde a primeira invasão de Duclerc até a expedição punitiva de Duguay-Trouin são dignos de compor um romance de “capa e espada” de Alexandre Dumas onde não faltaram sequer audaciosos lances amorosos atribuídos a Duclerc quando este era um privilegiado prisioneiro das forças locais.

Esta pequena digressão histórica tem o objetivo de mostrar a importância e a necessidade da revitalização e construção de Fortificações e da urgente reorganização das Forças Militares luso-brasileiras.

- Atividade Corsária Fonte: Paulo Knauss.

Para que possamos ter uma ideia da diferença entre pirataria e a atividade corsária vou reproduzir alguns tópicos de um artigo escrito pelo Professor Dr. Paulo Knauss que é Diretor do Arquivo Público do Rio de Janeiro e professor de Departamento de História da Universidade Federal Fluminense.

Disputa colonial

(...) Durante as guerras da Itália, no início do século XVI, no momento de acirramento das relações entre a dinastia dos Habsburgos austro-hispânicos e a dinastia dos Valois franceses, a ação marítima demonstrou, mesmo sem ser preponderante, seu impacto no âmbito das relações internacionais europeias, confundindo-se ainda com a questão da expansão otomana sobre a Europa.

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A partir da primeira metade do século XVII, com a Guerra dos Trinta Anos e da conquista de autonomia política das Províncias dos Países Baixos diante da dominação dos Habsburgos, o Poder Naval afirmou definitivamente o seu papel nas relações entre os Estados europeus como elemento decisivo. (...)

É com o Tratado de Tordesilhas de 1494, assinado entre Portugal e Espanha, que se inaugura propriamente a disputa colonial, definida então como disputa de mares. (...) o Tratado Tordesilhas proclamava a exclusividade ibérica dos mares em oposição à liberdade dos mares e sua abertura a todos os sujeitos sociais da atividade marítima. Contrapunha-se à posição do “Mare Clausum”, a defesa do “Mare Liberum”. (...)

Foi especialmente a França a grande rival da exclusividade ibérica dos mares, motivando a organização da grande embaixada de João Silveira, diplomata português, na conjuntura de Tordesilhas. Possivelmente não seria exagerado dizer que a reação foi proporcional à incapacidade da monarquia francesa de conter seus contingentes navais, movidos pelos interesses econômicos da atividade marítima privada e ação particular. É assim que, especialmente ao longo da primeira metade do século XVI, a França foi o principal ator da política do Mare Liberum (...)

Mare Liberum: é o Extrato, publicado em 1609, da obra de Hugo Grotius, jurista holandês, publicada em 1606. O documento contesta a política de “Mare clausum” da Espanha e Portugal, argumentando que, se tais países pudessem legitimamente governar e dominar os mares, os holandeses estariam impedidos de navegar às Índias Ocidentais. Hugo Grotius defendia a liberdade dos mares como um aspecto fundamental na comunicação entre os povos e nações e que nenhum país tinha direito de monopolizar o controle do Oceano dada sua grandeza e falta de limites estabelecidos. (Nota do Autor)

Ao longo do século XVII, as potências navais da Europa foram reforçando seus postos portuários a fim de garantir a atividade mercantil associada à navegação oceânica, mas sempre num quadro político instável. (...) A Companhia recebia do Estado uma concessão de direitos sobre vasta área territorial e não sobre um negócio ou produto específico. O fato é que estas companhias nunca foram empresas desvinculadas completamente do Estado e do apoio do erário, nem no caso da célebre Companhia das Índias dos Países Baixos. No controle do mundo colonial, os representantes da Companhia monopolista, tais como Comissários, não assumiam apenas funções econômicas, mas afirmavam-nas a partir de suas funções políticas de Estado.

(...) No século XVIII, portanto, desenrolou-se o processo de construção das garantias político-jurídicas da soberania de Estado sobre os territórios coloniais, que poderíamos caracterizar como “disputa de fronteiras”, sucedendo a conjuntura da disputa de mares e a da disputa de terras dos séculos anteriores. (...)

A política econômica definia assim a política exterior dos Estados europeus absolutistas e definia os métodos da política do poder, tendo sido a navegação seu maior triunfo. Nesse sentido, a própria realização mercantilista impunha um quadro de rivalidade entre os Estados europeus e o desenvolvimento da disputa colonial. (...)

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Sentidos da Atividade Corsária

A história das ações coloniais francesas na América portuguesa acompanha a história da empresa naval da época. De um modo geral, esta se caracterizava pela grande associação entre a iniciativa privada e o Estado. Também aí se constata não apenas a função econômica do Mar, mas, sobretudo, o papel político do Mar e que tem relação direta com a origem das armadas navais europeias da Época Moderna. (...)

Ora, desde antes da afirmação dos Estados nacionais sob a égide da monarquia absolutista, a atividade da marinharia europeia se constituiu conjugando conteúdos econômicos e militares, uma vez que a ação náutica implicava atuar num campo ameaçado pela concorrência guerreira de piratas e de rivais mediterrânicos da África, como os mouros ou berberes, caracterizados como infiéis pelos cristãos. É assim que se organizou a “Empresa Corsária” que se tornou a estrutura alargada da marinharia nacional na Época Moderna europeia como instrumento de guerra.

Nos seus primórdios medievais, é muito difícil distinguir os limites jurídicos da pirataria, definida como ação ilícita (ou forma de banditismo), e do corso, definido como empresa militar a serviço do interesse de Estado. Ao longo da Época Moderna foi que se definiram as bases jurídicas da empresa corsária legalizada como recurso de afirmação do poder de Estado no quadro das rivalidades nacionais.

Sua base legal sustentava-se na concessão da “Carta de Marca” à iniciativa náutica, emitida por diferentes instâncias estatais, de acordo com a época e o país, e que distinguia o corso com o “caráter de oficialidade” e lhe atribuía distinção simbólica a partir da honorabilidade resultante da proximidade com a monarquia. Desse modo, o corso se constituiu no antecessor das marinhas nacionais europeias.(...)

Carta de Marca: ou Carta de corso (latim “cursus” - corrida), era um documento emitido pelo Estado que autorizava seu dono a atacar navios (Piratas) e povoados (Bases), de nações inimigas. O documento transformava o proprietário da Carta em membro oficial da marinha do país, segundo a “Lei do Mar” (Tratado Internacional que criou esse instrumento jurídico internacional). A “Cartas de Marca” eram utilizadas por diversas nações e, principalmente, pela França e a Inglaterra. A “Carta de Marca” autorizava o portador a ultrapassar as fronteiras (Marcos) nacionais para abordar, assaltar, apoderar-se ou destruir embarcações inimigas que, em geral, eram as naus Piratas que infestavam os mares. (Nota do Autor)

A história da disputa colonial é responsável pela ressignificação das palavras. Enquanto na língua francesa a palavra “corsário” caracteriza um tipo social historicamente demarcado, associado aos feitos heroicos de construção da marinha nacional, em português a palavra ganhou um sentido pejorativo, tornando-se sinônimo de pirata, assumindo seu conteúdo ilícito. (...)

É preciso considerar que a política ibérica exclusivista dos mares demarcava como infratora ás suas leis a ação dos representantes da liberdade dos mares, especialmente os franceses, no caso da América portuguesa.

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De fato, diante do “Mare Clausum”, os corsários franceses ou de outros Estados europeus afirmavam-se como ação infratora às leis lusitanas e ato ilícito, tal como a pirataria se caracteriza. Isso justifica a confusão semântica. Mas mesmo nestes casos, Portugal reconheceu em muitos casos o direito dos corsários, como no caso do pagamento de compensação de perdas feito a Villegagnon no século XVI, respeitando os códigos internacionais da época, conferindo-lhes um tratamento distinto dos piratas. Além disso, é evidente também da parte portuguesa a utilização militar da marinharia como instrumento na rivalidade náutica. (...)

A perspectiva do lucro garantia a condição de reprodução do empreendimento corsário. Contudo, o corso fez do Estado um sócio inevitável da marinharia, caracterizando uma época da história naval. Sua relação com o Estado, entretanto, conferiu uma ambiguidade estrutural à atividade marítima privada com finalidade mercantil na Europa da Época Moderna, definindo-se como setor de acumulação e atividade militar substitutiva. Por sua vez, a ligação com o Estado colocou também o corsário entre o lucro e a glória, fazendo deste tipo social um fenômeno histórico. Nas Américas, ele assumiria características próprias.

Ainda que as palavras distanciassem os capitães franceses e portugueses, do ponto de vista da organização da empresa marítima, muito pouco os distinguiu. A grande diferença é que a participação da Coroa no caso lusitano foi muito mais acentuada que no caso francês, onde a iniciativa privada predominou. Contudo, a marinharia possuía os mesmos conteúdos marcados pelo interesse pelo lucro e pelas honrarias.

(...) podemos, portanto, considerar que a cronologia das ações francesas no território da América que se definiu como portuguesa acompanhou as conjunturas da disputa colonial que retratam uma das dimensões do quadro das relações internacionais europeias na Época Moderna: a França Antártica corresponde ao tempo da disputa dos mares; a França Equinocial ao tempo da disputa de terras; e os ataques de Du Clerc e Duguay-Trouin antecipam a conjuntura da disputa de fronteiras.

Além disso, se do ponto de vista de sua organização naval, elas se distinguem muito, do ponto de vista dos laços entre Estado e iniciativa privada para a exploração colonial elas se aproximam, o que permite atribuir-lhes a característica de empresa corsária. (KNAUSS)

- Comandante Francês Jean-François Duclerc

Jean-François Duclerc era filho de Jean Duclerc e cunhado de Antoine Debourg, Conselheiro do Conselho Soberano de Guadalupe. Duclerc iniciou sua carreira na Marinha Francesa, como Capitão de uma canhoneira.

Após o ataque de Duclerc, o Governador Francisco de Castro Moraes nomeou Antônio Barbosa Leitão no posto de Tenente da Ilha das Cobras e Chefe do Forte de Santo Antônio da Ilha das Cobras. Um ano depois, apesar dos insistentes e veementes relatórios dos engenheiros militares solicitando recursos para obras de manutenção e reparelhamento, a precariedade em que se encontravam as fortificações facilitou a ação de René Duguay-Trouin.

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- A Morte do Comandante Francês João Duclerc Fonte: Manuel Duarte Moreira de Azevedo, 1900.

A Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (RIHGB), de 1900, no seu Tomo LXII, Parte II, reproduziu, nas páginas 35 a 41, o artigo “Assassinato de Duclerc” escrito pelo Médico e Professor de História do Colégio Pedro II, Manuel Duarte Moreira de Azevedo (1832-1903).

João Francisco Duclerc, jovem amoroso, empreendedor e intrépido, natural do Guadalupe, e senhor de Leogane, saiu de La Rochelle por ordem do Luiz XIV, em 10 de maio de 1710, para apoderar-se da cidade do Rio do janeiro. Compunha-se a expedição de seis navios e de mil e cem homens de guarnição.

Nessa época, ocupava a cidade do Rio do janeiro o espaço que se abria do Morro da Sé ou do Castelo ao de São Bento, e do Mar até o fosso cheio de água, que corria na direção da Rua chamada hoje de Uruguaiana. Contava doze mil habitantes. Além da vala, estendia-se uma vasta planície denominada Campo do Rosário, onde se erguiam as igrejas do Rosário o São Domingos. Ornamentava o morro da Conceição o Palácio Episcopal.

Desembarcando em Guaratiba em 11 de setembro, entraram os franceses, na sexta-feira 19 do referido mês, na cidade pela azinhaga (trilha) de Mata Cavalos (Rua do Riachuelo), Caminho do Desterro (Rua Evaristo da Veiga), caminho da Conceição d’Ajuda (Rua Chile), Rua do Parto (S. José), Rua da Misericórdia, Largo do Carmo (Praça 15 de novembro), e chegaram à Rua da Cruz (Direita ou 1° de março). Elevavam-se nesta Rua o Palácio dos Governadores, a Alfândega e o Trapiche, onde se guardava o açúcar, chamado do Dr. João da Motta e depois da Cidade.

Junto do Palácio, como acontecera em outros pontos, encontrou Duclerc resistência. A Companhia dos estudantes com o seu Capitão José da Costa Fernandes que estava de guarda na casa dos Governadores, investiu fortemente contra o inimigo. O Governador Francisco de Castro Moraes, à frente de dois mil homens, achava-se fortificado no campo do Rosário.

O Coronel Gregório de Moraes, seu irmão, dispondo apenas de dezessete homens, e acompanhado de seu filho, o Capitão Francisco Xavier e sua Companhia, correu à Rua Direita para bater os Franceses que, vendo-se perseguidos, renderam-se ao Trapiche.

No combate, caiu mortalmente ferido Gregório de Castro que, no dia seguinte (sábado), foi sepultado na Igreja do Convento de Santo Antônio, junto ao altar da Conceição, havendo no sétimo dia ofício solene com a assistência do Governador, do Cabido (cônegos) e de muitas pessoas gradas (importantes, nobres). Recitaram-se poesias junto à campa (sepultura) do ilustre guerreiro.

Estando o inimigo sitiado no Trapiche, moveu-se o Governador e intimou-o a render-se. Perderam os Franceses no conflito quatrocentos homens, tiveram duzentos e cinquenta feridos, dos quais alguns mais tarde morreram e seiscentos e vinte e um prisioneiros. Contaram os Portugueses cinquenta mortos, e sessenta e quatro prisioneiros.

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Duclerc foi remetido preso com o seu Ajudante de Campo e outros oficiais para o Colégio da Companhia de Jesus no Morro do Castelo, havendo sentinelas para vigiá-lo.

Arderam no dia da peleja o Palácio dos Governadores, a Alfândega, o Trapiche e umas casas contíguas pertencentes ao mercador Gaspar Soares, perecendo nas chamas e sob as ruínas dos prédios incendiados o Almoxarife das armas Francisco Moreira da Costa, alguns estudantes e outras pessoas.

Por motivo da vitória, houve “Te Deum”, procissão, orou o bispo, e fizeram-se outros festejos, declarando-se Dia Santo e de Guarda perpetuamente para os moradores da cidade, com a obrigação de ouvirem Missa, o dia 19 de setembro, em que a Igreja celebra o martírio do S. Januário.

Te Deum: hino litúrgico católico atribuído a Santo Ambrósio e a Santo Agostinho, que inicia com as palavras “Te Deum Laudamus” – A Vós, ó Deus, louvamos. (Nota do Autor)

Alegando não ser monge para estar encerrado no Colégio dos Jesuítas, e procurando indispor-se com estes, solicitaram eles a remoção de João Duclerc, que foi enviado para o Forte de São Sebastião, no Morro do Castelo. Mais tarde, por instâncias suas, foi residir, em fevereiro de 1711, na casa do Tenente Thomaz Gomes da Silva.

Junto de sua residência foi postada uma guarda de dez soldados sob o mando do Furriel-mor do terço velho, tendo o preso a cidade por “ménage” (casa, domicílio.).

Em 18 de marco de 1711, das sete para as oito horas da noite, penetraram vários embuçados (encapuzados) no domicílio do prisioneiro, dois ficaram na porta e dois entraram. Acusando-o de desbocado e de requestador (galanteador) de mulheres honradas, assassinaram-no.

Foi sepultado, no dia seguinte, na Capela do S. Pedro, na Igreja da Candelária.

Têm escrito os nossos historiadores de modo diverso o nome de Duclerc, uns o chamam Carlos, como Macedo, Bellegarde, Abreu e Lima, Teixeira de Mello e mais alguns, e outros João Francisco, que é o nome exato, e vem mencionado no assentamento de óbito, que copiamos textualmente da seção de manuscritos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.

Eis o assentamento:

Em 18 do março, das sete para as oito horas da noite de 1711 anos, mataram o General dos Franceses, que entraram a tomar esta terra, o qual mataram dois rebuçados (envoltos na capa ou capote) que lhe entraram pela porta adentro, estando na cama, e dois ficaram guardando a porta na escada, e tinha sentinelas para que não galgasse, e não lhe valeram e chamou-se João Francisco, que era o nome da pia, e o nome de guerra “Moçú da Crê”, está enterrado na Capela de S. Pedro na Igreja da Nossa Senhora da Candelária, porque morava na Rua que se chama da Candelária, da Cruz para o campo, em umas casas que foram de João de Azevedo.

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Explicam também os nossos cronistas e historiadores de modo diferente a morte do Comandante francês João Francisco Duclerc.

Diz Macedo:

Resultou este Assassinato de uma vingança particular.

Southey escreve:

Não foi isto por certo ato da fúria popular, só podia ser obra de vingança privada, sendo causa, segundo todas as probabilidades, o ciúme. Mas não se tirou devassa, como em todo caso se cumpria, com especialidade, porém, num caso em que a Fé Nacional se achava comprometida.

Acrescenta o mesmo historiador:

Quanto à morte do Comandante, entenderam eles ter o Governo sancionado um assassínio, que deixara de punir.

Antônio Duarte Nunes repete:

Ao General puseram prisioneiro no Colégio dos Padres da Companhia, depois o passaram para o Castelo, e ultimamente lhe concederam faculdade para tomar uma casa, onde o assassinaram, na noite de 18 do março de 1711, sem se averiguar quem fora, nem o saberem os soldados, que o guardavam.

Em Carta de 23 de junho de 1711, participando o Governador Francisco de Castro Moraes ao Conselho Ultramarino de Lisboa o assassínio de João Duclerc, escreveu que passava este por desbocado o requestador (galanteador) de mulheres honradas.

O cônego Fernandes Pinheiro relata o fato do seguinte modo:

Não obstante a denegação (contestação) categórica de Francisco de Castro, cremos que não foi ele estranho a semelhante crime cometido com flagrante violação de todo o Direito Internacional. A presença de Duclerc o incomodava extraordinariamente, e não sabia como desfazer-se dele. Já em data de 9 de novembro do ano anterior reclamara da Corte providências a este respeito, e antes que lhe chegasse Provisão Régia, era o Comandante francês assassinado com circunstâncias tais, que se o não constitui autor desse atentado, pelo menos o acusam de cumplicidade.

Monsenhor Pizarro exprime-se assim:

Mr. Duclerc, pouco satisfeito do seu destino, muito contrário aos projetos que formara, intentou conspirar contra o povo, depois de passados alguns meses, e como se descobrisse a trama, foi assassinado na noite de 18 de março de 1711.

Vindo atacar o Rio de Janeiro em 1711, enviou Du-Guay-Trouin uma Carta a Francisco de Castro Moraes, na qual se lê:

Sei também, senhor, que foi assassinado o Sr. Duclerc, que os comandava; não quis usar de represália contra os portugueses, que caíram em meu poder, por não ser intenção de S. M. fazer guerra de modo indigno de um Rei cristianíssimo. Eu quero crer que sois honrado, e portanto não tereis tido parte nesse vergonhoso assassinato; mas isto não basta. S. M. quer que me nomeeis os autores do crime, para fazer-se exemplar justiça.

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Respondeu o Governador:

A respeito da morte do Sr. Duclerc, cumpre-me declarar que, por solicitação sua, o pus na melhor casa desta terra, onde ele foi morto. Quem o matou? Eis o que se não pode verificar, por mais diligências, que se fizessem, tanto por minha parte como por parte da justiça. Asseguro-vos que se descobrir o assassino, será punido como merece. Em tudo isto nada se passou que não seja pura verdade, tal como vo-lo exponho.

O Sr. Dr. José Vieira Fazenda, digno bibliotecário do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, dotado de espírito pesquisador, e assaz conhecido pelas suas investigações históricas nos indicou o manuscrito intitulado “Cópias Extrahidas do Conselho Ultramarino de Lisboa”, pertencente à biblioteca do referido Instituto, onde se lê a Carta, de 25 de junho de 1711, de Francisco de Castro Moraes referindo que logo que se deu o fato mandou o Ouvidor tirar devassa, mas nada se descobria; que esperava pelo Juiz de Fora para tirar segunda devassa; que ordenou prisão de quatro soldados, que formavam a guarda do prisioneiro, conseguindo os outros evadirem-se, assim como os assassinos.

Acusando o Conselho Ultramarino, em 11 de fevereiro de 1712, o recebimento da Carta de 25 do junho, representou a El-Rei que, apesar de não estar na alçada do Governador tirar segunda devassa pelo Juiz de Fora, a revalidasse logo e que a ela se procedesse, e também para maior justificação do negócio, tirasse outra devassa o desembargador Antônio da Cunha Souto Maior, que se achava por sindicante no Rio do janeiro. E terminando repetia o Conselho Ultramarino.

Recomendando-lhe V. Majestade ponha o maior cuidado nesta matéria, como de tanto peso, e que será muito do seu real agrado obre nela com aquele zelo, que dele se espera.

Fica pois provado pelos documentos exibidos que Duclerc chamava-se João e não Carlos, não só pela Certidão de Óbito, que somos o primeiro a transcrevê-la “ipsis verbis” (com as mesmas palavras), como também pela exposição do Conselho Ultramarino, em que vem escrito João Duclerc.

Quanto ao assassinato do Comandante francês, se não pudemos elucidá-lo completamente, conseguimos provar que se abriu devassa, e se as pesquisas da justiça e do poder civil não se completaram, talvez viesse interrompê-las a segunda invasão dos franceses seis meses depois.

Acresce que se foi o assassinato resultado de alguma vingança particular, provocada pelos galanteios de João Duclerc, só podemos acrescentar que, não empregando talvez Francisco de Castro Moraes, homem fraco e irresoluto, a solicitude necessária para desvendar o crime, a posteridade tem lançado sobre seu nome alguma culpa sobre esse fato de tanta responsabilidade nacional, que não soube punir. (AZEVEDO, 1900)

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- Carta de Luiz d’Almeida Correa Albuquerque, 12.04.1710

Senhor.

O Governador Francisco de Castro Moraes dá conta a Vossa Majestade com toda a individuação do glorioso Triunfo, que conseguiram as Armas de Vossa Majestade governadas por ele, contra as da França no assalto que deram a esta cidade em 19 de setembro próximo passado: em que ficaram mortos e prisioneiros perto de mil Franceses, que entraram nela entre Cabos e Soldados: com que me não fica que dizer sobre esta matéria senão que o dito Governador se fez nesta ocasião digno de louvores grandes, e merecedor de todo o prêmio pela constância, zelo e atividade com que se empregou todo e não esqueceu nada do que pareceu conveniente para a defensa desta Praça no Mar, e na terra, mostrando em todos os acidentes desta invasão o quanto era bom Servidor e fiel Vassalo de Vossa Majestade cuja pessoa Deus guarde muitos anos como todos havemos mister.

- Os Franceses no Rio de Janeiro Fonte: Manuel Duarte Moreira de Azevedo, 1870.

A versão do romance histórico “Os franceses no Rio de Janeiro”, de Manuel Duarte Moreira de Azevedo, narrando a execução de Duclerc na casa do Tenente Thomaz Gomes da Silva, baseia-se em relatos conhecidos e, em especial, um documento que trata das sesmarias na Capitania do Rio de Janeiro onde o personagem, na vida real Francisco Moniz de Albuquerque, foi agraciado com uma sesmaria, em 23 de janeiro de 1714.

XI

DUCLERC

Achando-se no Colégio dos Jesuítas, conseguiu Duclerc permissão de retirar de bordo diversos objetos de seu uso, assim como de vender uma balandra que viera na flotilha que o conduzira à America. Como havia poucos cirurgiões na cidade, permitiu-se também o desembarque de alguns cirurgiões franceses para ajudarem no curativo dos feridos.

Balandra: embarcação de um só mastro e de coberta, para transporte de mercadorias. (Nota do Autor)

Depois de residir algum tempo no Colégio dos Padres da Companhia, concedeu o Governador ao General francês a faculdade de alugar uma casa para moradia, e de passear pela cidade com sentinela à vista. Aproveitando-se desse indulto, alugou Duclerc casa em uma das principais ruas da cidade, e em breve travou relações com muitas famílias. A casa de Fortes de Bustamante foi uma das primeiras em que o General francês encontrou generoso acolhimento e, ao apresentarem-no à filha do Juiz de Fora, sentiu-se Francisco Duclerc impressionado, e pareceu expandir-se seu peito enlevado por um sentimento de admiração; repetiu suas visitas e, no fim de um ou dois meses, reconheceu que Cupido, com seus dedos, que são setas, abrira-lhe o coração ao amor. Duclerc amou a filha de Fortes de Bustamante.

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Conheceu o Juiz de Fora que a beleza de sua filha não passara despercebida ao General francês, e como mais de uma vez mencionara este a genealogia ilustre de sua família, e os cabedais (bens) que possuía em França, e também a inteira esperança que tinha de breve ver-se libertado e restituído à pátria, abafou em seu peito Fortes de Bustamante, sempre egoísta e vaidoso, o pundonor e brios nacionais, e começou senão a favorecer, ao menos a não embaraçar a afeição que Duclerc manifestara por Thereza.

Mas mostrava-se Thereza indiferente aos carinhos e afagos do General francês, e até lhe não deixava de causar estranheza o agrado com que seu pai recebia em sua casa a um inimigo da pátria, em quanto desprezava a Frederico por ser um pobre mercador, esquecido do serviço que este lhe prestara, defendendo com tanta galhardia sua vida e bens.

Soube Frederico das quotidianas visitas de Francisco Duclerc à casa do Juiz de Fora e também lhe murmuraram aos ouvidos que o General francês tencionava casar com a filha do Presidente da Câmara. Começou a correr pela cidade esse boato, e também a nova de que breve viria uma esquadra francesa vingar a derrota e libertar Duclerc e seus companheiros. Era um novo rival que se apresentava ao filho de Lúcia para contrariá-lo, e rival poderoso que o fez enraivecer e entornou-lhe no coração o veneno do ciúme. Indo visitar a Frei Fabiano, disse-lhe Frederico irritado.

— Corre, meu Padre, que o General francês é o noivo da filha de Fortes de Bustamante.

— O glorioso Padre Santo Antônio me ilumine, pois, não percebo como o Juiz de Fora acha tão facilmente noivos para a filha; se morre um ele levanta outro do pó das ruas. E D. Thereza de Bustamante ama e quer por esposo esse forasteiro?

— Tem-lhe ódio, mas o pai não cogita na felicidade da filha; Duclerc é rico, dizem, e de nobre estirpe, e isso satisfaz a vaidade e egoísmo de Bustamante.

— Ainda não creio, meu filho, acrescentou Frei Fabiano, nesse enlace; o Juiz de Fora há de respeitar o decoro nacional, não há de esposar sua filha com um inimigo, que veio insultar-nos em nossos próprios lares.

— É certamente uma infâmia digna de vingança.

— Não, redarguiu o leigo com calma, mas é um ato inconveniente e desonroso.

— Meu Padre, Duclerc não é só meu rival, é também meu inimigo, bradou Frederico.

— Mas inimigo que deve ser respeitado, porque está prisioneiro sob a proteção do estandarte, que tem por emblema as chagas de Cristo.

Frederico encarou no Frade leigo que com suaves conselhos continuou a tranquilizar-lhe o ânimo, e abafar-lhe o ciúme. Entretanto procedia Duclerc de um modo inconveniente, não cessava de repetir que fora atraiçoado, maltratado, que menosprezavam-no vigiando-o com sentinela à vista, que não tinha liberdade nem garantias apesar de haver deposto sua espada e rendido-se à discrição, e bradava que breve chegaria nova expedição para vingá-lo e restaurar o nome francês escarnecido e vilipendiado pelos nossos.

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Viera com ele (Duclerc) um Frade Carmelita, homem violento e exaltado que, insuflado pelo General francês, começou a clamar contra a corrupção dos costumes, a predizer castigos celestes contra o povo que, crédulo e receoso, foi-lhe dando ouvidos, e em breve era o Frade tido por profeta, o que quer dizer que adquiriu decidida preponderância sobre a plebe rude e fanática.

O modo violento em que se exprimia o General francês, o receio que a sua presença causava na cidade, a inquietação em que trazia os ânimos assustando-os com recentes invasões; a linguagem violenta de Frei Cosme, a sua pregação veemente e fanática levou Francisco de Castro de Moraes a representar a El-Rei pedindo-lhe que retirasse da Capitania não só a Duclerc, como aquele Frade Carmelita. Mas crescendo-lhe o temor que tinha do General inimigo, apesar de vencido e preso, por correr geralmente na cidade o boato da vinda mui próxima de nova esquadra inimiga, e demorando-se a resposta do soberano, lembrou-se Francisco de Castro Moraes de executar um plano atroz para mais depressa desembaraçar-se do inimigo vencido.

Propalara-se que o General francês, abusando da hospitalidade que recebera em casa de um pobre homem, chamado Muniz de Albuquerque, ultrajara a honra de uma donzela. Julgou Francisco de Castro Moraes que o irmão dessa infeliz podia servir de instrumento para executar suas sinistras intenções; de feito resolveu escrever-lhe pedindo-lhe que viesse ao Palácio para ensinar-lhe a vingar-se dos sedutores, como era o General Duclerc; mas depois de haver escrito deitou o papel na secretaria, julgando mais judicioso e prudente mandar vir ao Palácio o ofendido, e dizer-lhe qual o seu intento. Assim fez.

Compareceu Muniz de Albuquerque, e depois de longa conferência com o Governador Francisco de Castro Moraes, saiu do Palácio acompanhado de um soldado do Regimento Velho.

Na noite do dia seguinte, em 18 de marco de 1711, entraram dois rebuçados na casa em que residia Francisco Duclerc, e assassinaram-no sem que se opusessem as sentinelas que o vigiavam.

XII

A JUSTIÇA DE FRANCISCO DE CASTRO MORAES

No dia seguinte, Duclerc foi sepultado na Capela funda de S. Pedro na Igreja da Candelária.

Logo que se divulgou este assassínio tocou-se a rebate (desconfiança; suspeita) sobre o caso; fizeram-se milhares de conjecturas; diziam uns que o General francês fora morto por ordem dos Jesuítas, outros pelos seus compatriotas por não haver mostrado plano nem energia no ataque da cidade; estes lembravam o nome de Francisco de Castro Moraes, como o autor do crime, o qual desse modo se quis livrar de inimigo tão inquieto e turbulento; aqueles, cientes da infame ação praticada contra a irmã de Muniz de Albuquerque, mencionavam o nome desse homem como o do autor do assassínio; porém o boato mais geral era que Duclerc havia sido vítima do ciúme de Frederico.

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Fingiu-se Francisco de Castro surpreendido quando referiram-lhe a notícia da morte do General francês, e movendo a justiça da Capitania, prometeu castigar severamente o autor e cúmplices de tão nefando crime, perpetrado contra os direitos internacionais e decoro da nação. Clamavam as velhas que Duclerc fora vítima do demônio que, sem ser visto, penetrara em casa do herege e sufocara-o.

— Já sabe, comadre, dizia uma velha à sua vizinha, morreu o perro (homem vil, canalha) judeu, o desbragado (indecoroso) francês que veio conquistar-nos a terra.

— Sei, acutilaram-no (feriram-no com o gume da espada) bem.

— Qual; aquilo foi obra de Satanás, as sentinelas não virão entrar nem sair ninguém, e o herege apareceu morto.

— O Anjo Gabriel nos acompanhe, cruz, santíssimo seja o nome de Jesus; que cheiro de enxofre se não havia de sentir quando Satanás entrou naquela habitação.

— Ah! Ah, acrescentou a outra sorrindo, dizem que depois de alto berro exalara o demo cheiro de enxofre, e desaparecera, tendo antes espalhado por toda a casa um clarão sinistro; quando entraram na câmara do francês estava o herege morto e estirado no leito.

— Olhe, vizinha, Satanás que levou-lhe a alma, foi porque já a tinha endemoninhado; cruz, para longe, repetiu a mulher fazendo mais de uma vez o sinal da cruz.

— Também aquilo não era gente para viver entre cristãos, redarguiu (Replicou) a outra.

E despediram-se as vizinhas depois de exorcizarem com sobejidão (excesso) de palavras ao infernal assassino do General francês.

Desejando afastar de si toda a suspeita sobre o assassínio de Duclerc, ordenou Francisco de Castro de Moraes a Muniz de Albuquerque, que podia comprometê-lo, que naquela mesma noite se ausentasse da cidade, e simulou exercer excessiva vigilância para descobrir o autor do nefando crime.

Quanto ao soldado do Regimento Velho, cúmplice de Muniz, nunca mais foi visto na cidade, nem em terras da Capitania, porém, constou tempos depois, haver sido degredado para as Índias por ordem do Governador Francisco de Castro de Moraes.

Fortes de Bustamante vira desvanecerem-se mais uma vez as esperanças de uma feliz aliança para sua filha, e contrariado por isso, e por ver que Frederico persistia firme, resoluto e constante no seu amor por Thereza, ouvindo pronunciar o nome do moço como réu da morte de Duclerc, deu crédito a essa balela, e apressou-se em ir ao Palácio denunciá-lo como criminoso.

Encontrara Francisco de Castro Moraes uma vítima para ocultar-se ao crime que mandara praticar; exultou ao ouvir pronunciar o nome do culpado e, momentos depois de haver recebido a denúncia, ordenou a prisão de Frederico, que foi lançado em ferros no Forte de São Sebastião.

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Instantes depois referiam a Frei Fabiano a prisão de Frederico acusado de assassino.

— Não posso crer, bradou o Frade erguendo-se repentinamente do escabelo em que estava sentado.

Escabelo: banco comprido e largo, constituindo ao mesmo tempo uma caixa, e com uma tábua de encosto a todo o comprimento.

— São contra ele os indícios; foi visto embuçado na noite em que se perpetrou o crime em frente à casa do assassinado; dizem que o ciúme armara-lhe o braço...

Lembrou-se então Frei Fabiano do que lhe contara Frederico sobre os amores de Duclerc com a filha do Juiz de Fora, e sucumbido, sufocado de dor, murmurou.

— Meu Deus, será ele culpado!

As lágrimas assomaram-lhe aos olhos. (AZEVEDO, 1870)

- Assassinato de Duclerc Fonte: José Vieira Fazenda, 17 de março de 1903.

A Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (RIHGB) publicou, na íntegra, em vários volumes, “Antiqualhas e Memórias do Rio de Janeiro” de autoria do historiador, político e médico brasileiro José Vieira Fazenda, falecido em 1917. A RIHGB, de 1920, no seu Tomo 88, Volume 142, reproduziu o artigo “Assassinato de Duclerc” nas páginas 35 a 41.

Às 3 horas da tarde de sexta-feira, 19 de setembro de 1710, dia do S. Januário, começaram a repicar festivamente todos os sinos desta cidade. À noite, o povo dirigiu-se alegremente às igrejas, onde eram entoados solenes cânticos de ações de graças. Houve comédias e representações públicas em sinal de regozijo. Em 23, saiu da Sé pomposa procissão, feita pelo Cabido, e o Bispo D. Frei Francisco de S. Jerônimo ordenou fosse no futuro o dia 19 considerado de guarda dentro dos muros da cidade, e que sempre se fizesse, nesta data, uma procissão que saindo da Catedral, recolheria à antiga Capela de S. José. Significava tudo isso a comemoração da vitória que sobre os Franceses haviam ganho os habitantes da cidade de S. Sebastião.

Por ordem de Luiz XIV e com o fim de se apoderar do Rio de Janeiro havia, em 10 de maio, saído de La Rochelle uma expedição composta de cinco navios equipados por cerca de mil homens de tropas da Marinha. Fora ela confiada a João Francisco Duclerc, natural do Guadalupe e senhor de Leogane.

Procurando, com manha, entrar à Barra e sendo a esquadra repelida pelos tiros da Fortaleza de Santa Cruz, procuraram os invasores saltar em Copacabana, de onde foram repelidos pelas tropas milicianas bem como da Ilha Grande, na qual cometeram furtos e depredações. Pondo de parte minúcias, que são encontradas à farta nas memórias do tempo, sabido é que Duclerc e seus companheiros, em 11 de setembro, saltaram em Guaratiba, procurando pela parte do sertão apoderar-se da cidade.

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O Governador que então era Francisco de Castro Moraes, mandando tocar repetidos rebates (toques que anunciam o aparecimento do inimigo), formou tropas no chamado Campo do Rosário, onde fez construir, às pressas, uma grande trincheira, que ia do Morro de Santo Antônio ao da Conceição.

Ao Mestre de Campo João de Paiva ordenou fosse socorrer a Fortaleza da Praia Vermelha. Entretanto, a são e a salvo, tinham os inimigos chegado ao Engenho Velho, pertencente aos Jesuítas onde, em 18 de setembro, comodamente acamparam, sem até então serem repelidos, como teria sido fácil.

Lemos, algures: em virtude de escavações mandadas fazer pelo General Francês para acampar suas tropas, desenvolveu-se, por esse tempo, grave epidemia de varíola, pois os trabalhos haviam sido feitos em uma baixada que servira de cemitério aos escravos dos Jesuítas, no próprio sítio em que poucos anos antes reinara o flagelo das bexigas.

Como é sabido, Duclerc, abandonando a estrada pública, ao chegar ao Largo da Sentinela (hoje Rua Frei Caneca, canto da do Riachuelo), penetrou pelos fundos das chácaras da antiga azinhaga (trilha) de Mata Cavalos em procura do Morro do Desterro (hoje de Santa Teresa). Nessas paragens recebeu oposição, não só dos estudantes dos pátios do Colégio, comandados por Bento do Amaral Gurgel como também do célebre Frade Francisco de Menezes, que tanto se havia celebrizado na Guerra dos Emboabas.

Tomando pela atual Rua Evaristo da Veiga com intento de apoderar-se do Forte de São Sebastião, subindo a ladeira do Paço do Porteiro (hoje do Seminário), foram repelidos pelos tiros de artilharia do antigo Castelo. Dirigindo-se ao coração da cidade pelas ruas, hoje, Chile e S. José, fizeram alto em frente do Convento do Carmo, hoje Repartição de Estatística, com o intuito de tomá-lo.

Tendo-se recolhido, diz Duarte Nunes, a pólvora à casa da Alfândega para ser distribuída, pegou o fogo de um morrão (pedaço de corda que se acendia numa extremidade para comunicar fogo às antigas peças de artilharia) em um cartucho, e saltando a chama a muitos barris, passou o incêndio à Casa dos Governadores, causando enormes estragos. Ao estrondo resolveu-se Francisco de Castro enviar seu irmão, Gregório de Castro, o qual se portando com denodo (valor) ficou mortalmente ferido.

Perto da Igreja da Cruz travou-se sanguinolento combate entre os invasores e a Companhia dos estudantes, que aí deram provas de coragem e disciplina. Vendo Duclerc perdida a causa, resolveu fortificar-se no Trapiche da Cidade ou do Dr. Luiz da Motta, para melhor defender-se, pois contava com a entrada próxima da esquadra. Obrigado a render-se, assim o fez, entregando-se com todos os seus e considerando-se prisioneiro de guerra.

Eis em poucas palavras o histórico dessa invasão, onde correm parelhas a inépcia do Governador Francisco de Castro Moraes e a supina ignorância do Comandante francês aventurando-se, guiado por um preto e com fracos recursos penetrar pelo lado de terra em uma cidade de regular população.

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Talvez tivesse conseguido seu intento, se não fora o denodo e bravura dos milicianos e a intrepidez e coragem dos patriotas cidadãos que, animados do amor da pátria, conseguiram dar solene lição ao tresloucado aventureiro!

É digno de nota o papel representado nessa emergência pelos negros que com toda a coragem, se atiravam aos Franceses, fazendo-os morder a terra. Maltratados pela fuzilaria das janelas, de onde também eram atirados móveis, garrafas, panelas, tábuas, água fervendo, pedra etc., tiveram os inimigos grande número de soldados mortos ou postos fora de combate.

Do nosso lado, tivemos 70 mortos, e do assentamento feito pelo Cura da Sé, no competente livro de óbitos, seja-nos lícito aqui citar os nomes de alguns desses bravos, que morreram gloriosamente no dia 19 de setembro de 1710.

Além do Mestre de Campo Gregório de Moraes e do Capitão de cavalaria de ordenanças de S. Gonçalo, Antônio Dutra da Silva, o Ajudante Gaspar Queiroga, o Professor João de Faria, os estudantes Pedro da Costa, Francisco Telles, Antônio Moreira, Francisco Peleja, José Ferreira, o pintor Manuel Gomes Torres, o organista da Sé Antônio Maciel e vários operários.

Acrescenta o supracitado Cura Bartolomeu da França que, dos negros sepultados, alguns pelejaram e outros vieram julgando ser festa!

A Gregório de Moraes foram feitas solenes exéquias sendo o seu Corpo inumado (enterrado) em uma cova da Igreja de Santo Antônio, junto à Capela de Nossa Senhora da Conceição.

Seja dito de passagem: foi nesse tempo que Santo Antônio, até então simples soldado, teve o posto de Capitão, por alvitre de Francisco de Castro que, no resultado do vitória, vira a miraculosa intervenção do grande taumaturgo português.

Falta-nos espaço para devidamente salientar atos de desinteresse e de abnegação, praticados nesse dia pelos nossos antepassados. Eles, porém, se acham devidamente celebradas nas páginas dos nossos historiadores e cronistas.

Pouco duraram as alegrias da vitória porquanto, exatamente um ano depois, vinha Duguay-Trouin; com Poderosa esquadra, saqueia o Rio de Janeiro, alegando vingar o assassinato de Duclerc, ponto principal das presentes notas.

Distribuídos os prisioneiros, com sentinelas à vista, pelos Conventos, Cadeia e nova Casa da Moeda, foi Duclerc com seus ajudantes enclausurado no Colégio dos Jesuítas, no Morro do Castelo.

Aí se portou com tal inconveniência que os próprios discípulos de Loyola conseguiram verem-se livres de hóspede tão importuno. Declarava Duclerc ao Governador que não nascera para Frade, e como prisioneiro de guerra devia ficar preso em uma Fortaleza. Foi removido para o Forte de São Sebastião; dali, por meio de constantes missivas, pedia ao Governador o mandasse para alguma casa particular.

Francisco de Castro Moraes afinal acedeu a tantas lamúrias.

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É admirável, porém, o fizesse, quando em Carta, de 25 de julho de 1711, o próprio Francisco Castro de Moraes declarou ao Governo ser Duclerc um debochado e pretendia (cobiçava), com escritos, mulheres honradas. Saiu-lhe cara a brincadeira. Nesse tempo não eram fáceis tais conquistas: os maridos conservavam as esposas enclausuradas, e elas só apareciam a parentes muito próximos e de confiança. Às filhas não mandavam os pais ensinar a ler e a escrever para evitar as relações amorosas com os namorados. Em compensação existiam as beatas de mantilha e os mestres de reza, que se prestavam de boa mente a servir de constantino (fabricante de arranjos de flores, conhecido como Rei dos floristas), não faltando nos escravos e nos moleques, “demônios familiares”, na expressão de notável literato.

Afinal foi Duclerc residir na casa do Ajudante de Tenente Thomaz Gomes da Silva, prédio pertencente outrora a João de Azevedo, da cruz para o campo, como reza o assentamento de óbito do Comandante francês. Essa casa é quase, com toda a certeza, a situada na esquina da Rua da Quitanda e General Câmara, onde no pavimento térreo, existe antiga farmácia homeopática. A palavra cruz refere-se aqui, não à Igreja dessa invocação, porém a um cruzeiro de pedra que, por muitos anos, existiu perto da antiga Igreja da Candelária, no cruzamento da Rua deste nome e da de Gonçalo Gonçalves (hoje General Câmara).

Chegamos a este resultado pela leitura dos livros de tombo existente no arquivo da Misericórdia. Nessa casa foi assassinado Duclerc às 8 horas da noite de 18 do maio de 1711, por quatro embuçados, apesar da guarda de 10 homens comandados pelo Furriel-mor do Terço Velho (Regimento Velho), e da sentinela que estava postada à porta. O cadáver do malogrado chefe enviado pelo Rei Luiz XIV foi sepultado na Capela de São Pedro, existente do lado da Epístola (à direita do altar) da antiga Igreja da Candelária.

Em Carta narrou Francisco Castro de Moraes detidamente ao Governo esse inesperado sucesso e as medidas enérgicas que tomou para conhecer e punir os verdadeiros criminosos.

Dessa missiva resulta a certeza da fuga de alguns dos soldados, inclusive o Furriel-mor, temerosos de serem punidos pela negligência ou convictos de parceria no crime, por meio de peita (dádivas para subornar) ou suborno.

Alguns historiadores vão ao ponto de supor o próprio Governador mandante do crime, pelo receio que lhe inspirava Duclerc. Mas que temor podia tal prisioneiro causar, quando Francisco Castro de Moraes tinha ordem de enviá-lo, bem como a um Frade Carmelita francês, para a Bahia, como podemos ler em documentos do arquivo do Instituto Histórico? Outros escreveram que Duclerc tramava uma conspiração e fora vítima do ódio popular! Ora, quando no ano seguinte Duguay-Trouin intimava Francisco de Castro a entregar a cidade, alegando o assassinato do compatriota, ele respondia que estava pronto a punir severamente os delinquentes, caso fossem descobertos. A primeira devassa tirada pelo Ouvidor Geral não deu resultado. O Governador esperava a nomeação do Juiz de Fora para encetar (dar início) a segunda devassa. O Conselho Ultramarino foi de parecer ficasse todo esse negócio sujeito à jurisdição do Desembargador sindicante Antônio da Cunha Souto Maior.

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Por deliberação ainda do mesmo Conselho, de 11 de fevereiro de 1711 (códice 207, do arquivo do Instituto Histórico), aconselhava este ao Rei se devia proceder com todo o rigor, dando a todo o mundo pública satisfação de tão terrível atentado que, em vista da participação do Governador, parecia ser este caso o mais grave que se pode considerar e digno de todas as circunstâncias de que se execute um exemplar castigo nos que cometeram esse delito, por se faltar aquela fé que se deve guardar com os prisioneiros, em se lhes conservar a vida e evitar-se-lhes todo o dano, pois ao se renderam debaixo desse pacto, fazendo-se mais atroz esse insulto por ser feito na pessoa do Cabo Maior dos Franceses, Monsieur Duclerc.

Se Francisco Castro de Moraes fosse mandante do crime, quando no ano seguinte todos se voltaram contra ele como cão danado, dando-lhe até o apelido de Vaca, teriam lançado em rosto tal atentado. Entretanto, nos papéis existentes na Biblioteca Nacional e Arquivo Público nada consta a respeito.

É mais lícito supor que o crime de 18 de março, foi devido a alguma vingança ou desforço (vingança) particular. Sobre a cabeça de Francisco Castro de Moraes pesou por muito tempo injustamente a maldição da posteridade pelo que fez em 1711. Na pretendida conivência no assassinato de Duclerc, a crítica histórica o absolve por falta de provas. É um enigma que nunca, talvez, seja decifrado: quem o praticou?

- René Duguay-Trouin

René Duguay-Trouin, mais conhecido como René Trouin ou ainda Du Guay-Trouin (1673-1736), conhecido como Senhor de Gué (“Sieur du Gué”), alcançou o posto de Almirante e de Comandante na Ordem de São Luís. Nasceu em Saint-Malo, em 10 de junho de 1673, filho de Luc Trouin de La Barbinais, Capitão e armador. O nome “Duguay” tem origem em uma propriedade da família. Duguay, nas suas memórias, afirma vir “de família acostumada ao comércio marítimo, de um pai que comandava navios armados tanto para a guerra quanto para o comércio, segundo os tempos, tendo ganhado reputação de coragem e de muito entendido em assuntos de marinha”.

Embarcou, em 1689, como voluntário na fragata “La Trinité” e, em 1691, era Capitão de uma fragata de propriedade da família. Luís XIV, lhe confiou, quando tinha 21 anos, o “Profond”, de 32 canhões. Desde 1696, fora a Paris, onde foi apresentado ao Rei. Admitido na Marinha Real com a patente de Capitão de Fragata, envolveu-se em numerosas campanhas, combatendo ingleses e holandeses e participando da Guerra da Sucessão Espanhola (1702 a 1714).

- Invasão de Duguay Trouin

A Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (RIHGB), de 1884, publicou o artigo “Ataque e Tomada da Cidade do Rio de Janeiro pelos Franceses, em 1711, sob o Comando de Duguay-Trouin”, de autoria de Tristão de Alencar Araripe, no seu Tomo XLVII, Parte I, nas páginas 61 a 85.

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Tristão de Alencar Araripe (1821-1908) foi um escritor, historiador, magistrado, jurista e político brasileiro. Filho do Coronel Tristão Gonçalves de Alencar Araripe e de D. Ana Tristão de Araripe. Em 1845, graduou-se em Direito na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, em São Paulo. Exerceu diversos cargos públicos importantes e foi membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e da Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro. Nomeado Ministro do Supremo Tribunal Federal permaneceu no cargo até 1894.

Extraído das “Memoires de Monsieur Duguay Trouin, lieutenant général des armées navales de France et Commandeur de l’Ordre Royal Militaire de Saint-Louis” publicadas na França no ano de 1740, e traduzidas para o português por Tristão de Alencar Araripe, em 19 de outubro de 1883.

§ 1.

Foi durante esta viagem que comecei a projetar uma empresa contra a Colônia do Rio de Janeiro, uma das mais ricas e numerosas do Brasil.

Viagem aos mares da Irlanda no ano de 1710, para apresar navios ingleses vindos da Índia. (Nota do Autor)

O Sr. Duclerc, Capitão de navio, havia já tentado esta expedição com 5 navios do Rei e cerca de 1.000 soldados de tropas da marinha; mas não sendo suficientes estas forças para executar semelhante projeto, esse oficial ficara prisioneiro com 600 a 700 homens; o resto morrera no assalto, que dera à cidade e às Fortalezas do Rio de Janeiro.

Desde então o Rei de Portugal tratara de aumentar as fortificações da Colônia e para ali mandara logo 4 navios de guerra de 56 a 74 peças e 3 fragatas de 36 a 40 peças com carregamento de artilharia, munições de guerra e 5 Regimentos compostos de soldados escolhidos sob o Comando de D. Gaspar da Costa, a fim de abrigar este importante país contra qualquer insulto.

As notícias, pelas quais se soubera da derrota do Sr. Duclerc e das suas tropas, diziam que os Portugueses, insolentes vencedores, exerciam para com estes prisioneiros toda a sorte de cruezas; que os deixavam morrer de fome e de miséria em masmorras, e até mesmo que o Sr. Duclerc fora assassinado, não obstante ter-se rendido mediante Convenção.

Todas estas circunstâncias juntas à esperança de imensa presa e sobretudo pela honra que podíamos adquirir em tão difícil empreendimento, despertara em meu coração o desejo de levar a glória das armas do Rei a esses climas remotos e aí punir a desumanidade dos Portugueses com a destruição desta florescente Colônia.

Dirigi-me, portanto, a três dos meus melhores amigos que, em todos os tempos, me haviam ajudado com suas bolsas ou seu crédito nas diferentes expedições que eu formara. Eram o Sr. de Coulange, hoje mordomo (administrador) ordinário do Rei e Inspetor Geral da Casa de Sua Majestade, e os Srs. de Beauvais e de La Sandre Le Fer, de São-Maló, todos três estimadíssimos e mui conceituados personagens.

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Comuniquei-lhes o meu intento e os persuadi a serem diretores do armamento. Mas exigindo a importância grandeza da expedição fundos mui consideráveis, fomos obrigados a confiar-nos a outros três ricos negociantes de São-Maló, que eram os Srs. do Belle-Isle-Pepin, de l’Espine d’Anican de Chapdelaine, o que fazia, inclusive meu irmão, sete diretores.

§ 2.

Apresentei-lhes uma nota dos navios, oficiais, tropas, equipagens, víveres e todas as munições necessárias, segundo a qual o aparelho desse armamento, afora os salários pagáveis no regresso, devia montar a 1.200:000 libras. O Sr. de Coulange veio ter comigo em Versailles, a fim de assentar em um ajuste formal, e obter do Ministro as condições essencialmente necessárias para o bom êxito do meu projeto. Teve ele necessidade de extrema paciência e grande destreza para vencer todas as dificuldades que a isso se opunham.

Por fim o conseguia; e o Sr. Conde de Toloza, Almirante de França, não se desdenhou de tomar grande interesse na questão, de sorte que, pela informação que este Príncipe e o Sr. de Pontchartrain dirigiram ao Rei, Sua Majestade aprovou o plano, e lhe aprouve confiar-me seus navios e suas tropas para levar o nome francês ao Novo Mundo.

§ 3.

Apenas tomada esta resolução, fomos para Brest eu e meu irmão, e aí fizemos diligentemente equipar os navios, Lys e Magnanime, de 74 peças cada um, Brilhant, Achilles e Glorieux, todos três de 66 peças, a fragata Argonaute, de 46 peças, a Amazone e a Bellone, outras fragatas de 36 peças cada uma (a Bellone era equipada como galeota com dois grandes morteiros), a Astrée, de 22 peças, e a Concorde, de 20. Esta última era de 400 toneladas, devia servir de transporte em conserva da esquadra e estava principalmente carregada de pipas d’água.

Escolhi para embarcar nos navios o Sr. Cavalheiro de Goyon, o Sr. Cavalheiro de Courserac, o Sr. Cavalheiro de Beauve, o Sr. de La Jaille e o Sr. Cavalheiro de Bois de Lamotte.

O Sr. de Kerguelin embarcou na fragata Argonaute e as outras três foram confiadas aos Srs. de Chenais-Le-Fer, de Rogon e de Pradel-Daniel, todos três do São-Maló e parentes dos principais diretores do armamento. Ao mesmo tempo mandei armar em Rochefort o Fidèle, de 60 peças, sob o Comando do Sr. de La Moinerie-Miniac, sob protesto do subir a corso, como era seu costume.

A Aigle, fragata de 40 peças, também aí foi equipada, e nela embarcou o Sr. de La Mare-Decan, como para ir às ilhas da América, e fiz encobertamente preparar dois barcos da carreira da Roxéla, aparelhados como galeotas, cada um com dois morteiros. O navio Mars, de 56 peças, foi igualmente armado em Dunkerque, e nele embarcou o Sr. de La Cité-d’Anican, sob pretexto de ir a corso nos mares do Norte, como ordinariamente fazia; servindo-me para todos estes armamentos de pessoas, a quem eu movia indiretamente.

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Prestei suma atenção em preparar logo com todo o possível segredo os víveres, munições, tendas, utensílios, e finalmente todo o aparelho necessário para acampar e formar assédio. Cuidei também de assegurar-me de suficiente número de oficiais escolhidos para pôr à frente das tropas e guarnecer bem todos estes navios.

O Sr. de Saint-Germain, fiscal da marinha de Toulon, foi pela Corte nomeado para servir de fiscal na esquadra; e sua atividade, junto a notável inteligência, foi para mim de grandíssimo auxílio no decurso desta expedição. Independentemente destes preparativos e de todos os navios que fazíamos armar, eu e meu irmão contratamos mais dois navios de São-Maló, que se achavam ancorados no Porto da Roxéla, o Chancellier, de 40 peças, comandado pelo Sr. d’Anican du Rocher, e a Glorieuse, de 30, pelo Sr. de La Perche. Tão instante e bem dirigido foi o cuidado que tivemos em acelerar todos os arranjos que, apesar da míngua em que se achavam os armazéns do Rei, todos os navios de Brest e Dunkerque ficaram prontos para velejar dentro de dois meses, contados do dia de minha chegada a Brest.

§ 4.

Tivera eu aviso de que na Inglaterra trabalhavam por lançar ao Mar uma Forte esquadra, e não duvidando ser para vir bloquear-me no Porto de Brest, mudei o plano, em que estava, de esperar o resto da minha esquadra pelo de ir reuni-la no Porto da Roxéla, não dando aos meus navios tempo de prontificar-se inteiramente.

Com efeito, dei à vela aos 3 do mês de junho e, dois dias depois, apareceu na entrada do Porto do Brest uma esquadra de 20 navios de guerra ingleses, alguns dos quais avançaram até sob as Baterias, e tomaram 2 barcos de pescadores que os informaram da minha subida, por onde é fácil, julgar que, sem a extrema diligência empregada neste armamento e sem a resolução que tomei de dar à vela repentinamente, a empresa ter-se-ia frustrado. Cheguei a 6 no ancoradouro da Roxéla; aí achei o Fidèle, as duas bombardeiras e as duas fragatas de São-Maló, prontos para seguirem.

§ 5.

A 9 do mês, dei à vela com todos os navios reunidos, à exceção da fragata Aigle, que necessitava de obras de embono para poder resistir ao Mar; designei-lhe para ponto de reunião uma das ilhas do Cabo-verde, onde eu devia, segundo as informações por mim obtidas, fazer fácil aguada (abastecimento de água) e achar refrescos.

Embono: colocação de reforços (externamente) no costado do navio. (Nota do Autor)

A 21, fiz uma pequena presa inglesa, saída de Lisboa, que julguei idônea para seguir em conserva (nau reserva) da esquadra.

A 2 de julho, fundeei na Ilha de São-Vicente, uma das do Cabo-verde, onde se me reuniu a fragata Aigle. Aí tive muita dificuldade em fazer aguada e mui pouca probabilidade de achar refrescos; assim de novo dei à vela a 6, com a única vantagem de ter desembarcado as tropas e ter ensaiado a ordem e disposição que deveriam observar no desembarque.

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Passei a linha a 11 de agosto, depois de ter, por mais de um mês, sofrido ventos tão contrários e frescos que todos os navios da esquadra, uns após outros, desarvoraram os mastaréus de gávea.

Desarvoraram os mastaréus de gávea: arrearem os mastros imediatamente superiores aos mastros grandes. (Nota do Autor)

A 19, reconheci a Ilha da Ascensão, e a 27, achando-me na altura da Baía de Todos os Santos, reuni um Conselho, no qual propus ir, de passagem, tomar ou queimar os navios inimigos que ali se achassem; e para este efeito verifiquei a quantidade de água existente em todos os navios da esquadra; mas achou-se tão pouca provisão que apenas bastaria para levar-nos ao Rio de Janeiro; assim foi decidido que continuássemos a derrota para irmos em direitura (em linha reta) ao nosso destino.

A 11 de setembro, achamos fundo, sem todavia haver visto terra. Fiz minhas observações sobre isso, e sobre a altura que tínhamos observado, depois do que, aproveitando a brisa fresca, levantou-se ao cair da noite, mandei, não obstante o nevoeiro e o mau tempo, todos os navios da esquadra fazer força de velas, a fim de chegar, como cheguei, ao romper do dia precisamente à entrada da Baía do Rio do janeiro.

Era evidente que o êxito desta expedição dependia da presteza e que cumpria não dar ao inimigo tempo de preparar-se. Sob o influxo deste princípio, não quis demorar-me, mandando a bordo de todos os navios as ordens que cada um devia observar na entrada; eram mui preciosos os momentos: ordenei, pois ao Sr. Cavalheiro de Courserac, que conhecia a entrada deste Porto, que se pusesse à frente da esquadra, e aos Srs. de Goyon, e de Beauve, que o seguissem.

Coloquei-me após eles, achando-me assim em situação mui conveniente para observar o que se passava na frente e na retaguarda, e dar ordens. Ao mesmo tempo fiz sinal aos Srs. de La Jaille, e de La Moinerie-Miniac, e enfim a todos os Capitães da Esquadra, conforme a ordem e força dos seus navios, para avançar uns após outros.

Executaram esta ordem com tanta regularidade que não me é dado exalçar (exaltar) assaz (em grau elevado) o seu valor e bom procedimento; não excetuo nem mesmo os mestres das duas bombardeiras e da presa inglesa, os quais, sem mudar de rumo, receberam o fogo contínuo de todas as Baterias; tamanha é a força do bom exemplo!

O Sr. Cavalheiro de Courserac principalmente cobriu-se neste dia de brilhante glória por sua boa manobra, e pela galhardia com que nos abriu caminho, recebendo o primeiro fogo de todas as Baterias.

Forçamos, pois deste modo a entrada do Porto, que era defendida por quantidade prodigiosa de artilharia e pelos quatro navios e três fragatas de guerra, que acima indiquei terem sido mandadas pelo Rei de Portugal para defesa da Praça. Estavam todos atravessados na entrada do Porto; mas vendo que o fogo da sua artilharia, sustentado pelo de todas as suas Fortalezas, não poderia deter-nos, e que brevemente chegaríamos ao alcance de abordá-los e apoderarmo-nos deles, assentaram de cortar os cabos e encalhá-los debaixo das Baterias da cidade.

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Nesta ação tivemos quase 300 homens fora de combate; e para que possam todos acertadamente julgar do mérito desta entrada, aqui exporei qual é a situação deste Porto, e acrescentarei a da cidade e das suas Fortalezas.

§ 7.

A Baía do Rio de Janeiro é fechada por urna garganta um quarto mais estreito que a de Brest: no meio deste estreito está um volumoso rochedo, que obriga os navios a passar ao alcance do tiro de fuzil das Fortalezas que defendem a entrada por ambos os lados.

À direita está a Fortaleza de Santa-Cruz guarnecida por 48 grandes peças do calibre 18 a 48, e outra Bateria de 8 peças, que fica um pouco avante desta Fortaleza. À esquerda está a Fortaleza de São-João e mais duas Baterias de 48 peças de grosso calibre, que ficam fronteiras à Fortaleza de Santa-Cruz. Dentro, na entrada à direita, está a Fortaleza de Nossa Senhora da Boa-viagem, situada em uma península e armada com 16 peças de calibre 18 a 24. Defronte está a Fortaleza de Villegaignon, onde há 20 peças do mesmo calibre. Adiante desta Fortaleza está a de Santa-Theodora de 16 peças, que varrem a Praia. Nela fizeram os Portugueses um revelim.

Revelim: construção externa de duas faces, que formam ângulo saliente, para defesa de cortina, ponte etc., nas fortificações. (Nota do Autor)

Depois de todas estas Fortalezas, vê-se a Ilha das Cabras ao alcance de tiro de fuzil da cidade, sobre a qual está uma Fortaleza de 4 bastiões guarnecida de 10 peças, e num plano da parte inferior da Ilha está outra Bateria de 4 peças.

Ilha das Cabras: trata-se, na verdade, da Ilha das Cobras, e, certamente, os Franceses, confundiram-se com a pronúncia das duas palavras portuguesas — cabras e cobras. (Nota do Autor)

Defronte desta Ilha, em uma das extremidades da cidade, está a Fortaleza da Misericórdia, armada com 17 peças de artilharia, e saliente para o Mar; há ainda outras Baterias do outro lado do Porto, cujos nomes não recordo. Enfim os Portugueses, advertidos, tinham assestado artilharia e levantado trincheira em todos os lugares, onde julgaram possível a tentativa do algum desembarque.

A cidade do Rio do Janeiro está edificada à borda do Mar entre três montes, que a dominam, e estão coroados de Fortalezas e Baterias.O mais próximo, ao entrar, é ocupado pelos Jesuítas; o que lhe fica fronteiro, pelos Beneditinos; e o terceiro pelo Bispo do Lugar. Sobre o dos Jesuítas está a Fortaleza do São Sebastião, guarnecida por 14 peças de artilharia e vários morteiros, havendo outra Fortaleza chamada de Santiago, guarnecida por 12 peças de artilharia, e mais outra chamada de Santa Luzia, guarnecida por 8, além de uma Bateria com 12 canhões. O Monte ocupado pelos Beneditinos também está fortificado por bons entrincheiramentos e várias Baterias, que olham para todos os lados. O do bispo, chamado da Conceição, está defendido por uma cerca viva, na qual, de distância em distância, colocaram-se peças de artilharia, que lhe impedem o acesso.

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A cidade está fortificada por Baterias e redentes, cujos fogos se cruzam; pelo lado da planície é defendida por um campo cercado e por um bom fosso cheio d’água. Dentro deste entrincheiramento, há duas praças d’armas, que podem conter 1.500 homens.

Redentes: ângulos salientes e reentrantes do interior de um entrincheiramento. (Nota do Autor)

Neste lugar tinham os inimigos a principal força de suas tropas, que consistiam em 1.200 ou 1.300 homens, pelo menos, inclusive 5 Regimentos de tropas regulares, novamente (recentemente) trazidas da Europa por D. Gaspar da Costa, não incluindo prodigioso número de negros disciplinados.

§ 8.

Surpreendido por achar esta Praça em estado tão diferente daquele que esperava, procurei informar-me do que a isso dera lugar, e soube que a rainha Anna de Inglaterra enviara um paquete para dar aviso do meu armamento ao Rei de Portugal, o qual, não tendo navio pronto para levar a notícia ao Brasil, despachara para o Rio de Janeiro o mesmo paquete, a quem tanto favorecera o acaso, que ali chegara 15 dias antes de mim. Foi em consequência deste aviso que o Governador fizera tamanhos preparativos.

Passando-se todo o dia em forçar a entrada do Porto, fiz, durante a noite, avançar a galeota e as duas bombardeiras para começar o bombardeio e, ao romper do dia, destaquei o Sr. Cavalheiro de Goyon, com 500 homens escolhidos, para ir apoderar-se da Ilha das Cabras (Cobras).

Imediatamente o executou; e dali expeliu os portugueses tão precipitadamente que esses apenas tiveram tempo de encravar (inutilizar) algumas peças da sua artilharia. No ato da retirada, afundaram dois grandes navios mercantes entre o Monte dos Beneditinos e a Ilha na Cabras (Cobras), e fizeram soltar dois dos seus navios de guerra, que estavam encalhados sob o Forte da Misericórdia.

Quiseram fazer o mesmo com um terceiro navio encalhado na ponta da Ilha das Cabras (Cobras), mas o Sr. Cavalheiro do Goyon mandou duas chalupas comandadas pelos Srs. de Vaureal, e de Saint-Osman, os quais, apesar do fogo das Baterias da Praça e das Fortalezas, apoderaram-se dele e arvoraram (hastearam) o estandarte do Rei. Não puderam todavia por à nado o navio, porque este enchera-se d’água pelas aberturas, que lhe havia feito o canhoneio.

Informando-me o Sr. Cavalheiro do Goyon da vantajosa situação da Ilha das Cabras (Cobras), fui visitar este Posto e achando-o tal como mo descrevera, ordenei aos Srs. de La Rufinière, de Kerguelin, e Elian, oficiais de artilharia, que ali estabelecessem Baterias de peças e morteiros.

O Sr. Marquez de Saint-Simon, 1° Tenente, foi encarregado de proteger os trabalhadores com um Corpo de tropas que lhe deixei. Uns e outros serviram com todo o zelo e firmeza que eu poderia desejar, embora se vissem expostos a contínuo e vivíssimo fogo de artilharia e mosqueteria.

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Entretanto, faltos d’água os nossos navios, não devíamos perder um momento em desembarcar e assegurar-nos de alguma aguada. Para este fim ordenei ao Sr. Cavalheiro de Beauve, que fizesse embarcar a maior parte das tropas nas fragatas Amazone, Aigle, Astrée e Concorde, e o encarreguei de apoderar-se de 4 navios mercantes portugueses fundeados perto do lugar, onde ou planejava fazer o meu desembarque. Esta ordem foi executada durante a noite tão pontualmente que, pela manhã seguinte, o nosso desembarque operou-se sem confusão e sem perigo. É certo, que eu tinha procurado desviar os cuidados do inimigo por meio do outros movimentos e falsos ataques, que lhe atraíram toda a atenção.

§ 9.

A 14 de setembro, todas as nossas tropas, em número de 2.200 soldados e 700 a 800 marinheiros, armados e exercitados, estavam desembarcados; o que formou, inclusive Oficiais, Guardas-marinha e voluntários, um Corpo de quase 3.300 homens. Tínhamos, além disso, perto de 500 homens atacados de escorbuto, os quais desembarcaram ao mesmo tempo; e no fim de 4 ou 5 dias ficaram em estado de incorporar-se ao resto das tropas.

De tudo isto reunido, formei 3 Brigadas de 3 Batalhões cada uma; a que servia de vanguarda era comandada pelo Sr. Cavalheiro de Goyon; a da retaguarda pelo Sr. Cavalheiro de Courserac; e eu coloquei-me no centro com a terceira, cuja direção dei ao Sr. Cavalheiro de Beauve. Formei ao mesmo tempo uma Companhia de 60 Cabos de Esquadra, escolhidos em todas as tropas, com certo número de Ajudantes do Campo, Guardas-marinha, e voluntários para acompanhar-me na ação e dirigir-se comigo a qualquer lugar, onde minha presença fosse necessária.

Fiz também desembarcar 4 morteirotes portáteis e 20 grandes morteiros fundidos, a fim de formar uma espécie de artilharia de campanha. O Sr. Cavalheiro de Beauve inventou para isto estaleiros de madeira de 6 pernas ferradas, que se cravam no chão, e nos quais se colocavam os morteiros mui solidamente. Esta artilharia marchava no centro do Corpo do Batalhão e, quando parecia conveniente servir-nos dela, abria-se o Batalhão.

Desembarcadas as nossas tropas e munições, mandei o Sr. Cavalheiro de Goyon, e o Sr. Cavalheiro de Courserac ambos avançarem à frente das suas Brigadas, para apossarem-se de duas Colinas, de onde se descortinava toda a campina e parte dos movimentos executados na cidade. O Sr. de Auberville, Capitão dos Granadeiros da Brigada do Goyon, expeliu algumas partidas inimigas de um bosque, onde estavam escondidas para observar-nos; depois do que as nossas tropas acamparam na seguinte ordem: a Brigada de Goyon ocupou a Colina, que olhava para a cidade; a de Courserac estabeleceu-se no Monte oposto; e eu coloquei-me no meio com a Brigada do centro.

Nesta situação estávamos nós ao alcance de sustentar-nos uns aos outros, e ficaríamos senhores da Praia do Mar, onde as chalupas faziam aguada e traziam continuamente dos nossos navios as munições de guerra e boca, de que precisávamos. O Sr. de Ricouart, Intendente da esquadra, prevenia todas as faltas e fornecia-nos todos os materiais necessários ao estabelecimento das nossas Baterias.

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§ 10.

A 15 de setembro, querendo eu examinar se poderia cortar a retirada dos inimigos e mostrar-lhes que éramos senhores da campanha, ordenei que todas as tropas se pusessem em armas e as mandei avançar para a planície, destacando até o alcance de tiro de fuzil da cidade partido, que mataram animais e saquearam casas sem encontrar oposição, e até sem que os inimigos fizessem movimento algum. Era desígnio de eles atraírem-nos aos seus entrincheiramentos, que eram os mesmos, onde tinham metido e derrotado o Sr. Duclerc. Penetrei sem custo o desígnio, e vendo que continuavam imóveis, mandei retirar as tropas em boa ordem. Entretanto prestei toda a atenção em reconhecer bem o terreno; achei-o tão embaraçoso que, ainda que eu tivesse 15.000 homens, ter-me-ia sido impossível impedir que esta gente salvasse as suas riquezas nos bosques e nas montanhas. Ainda mais convencido disto fiquei quando, observando uma partida inimiga ao pé de um Monte, e expedindo tropas à direita e à esquerda para cortá-la, depararam estas com um pântano e tojos (planta de folhas espinhosas), que logo as detiveram e as obrigaram a retroceder.

A 16, avançando um dos nossos destacamentos, os inimigos atacaram um fornilho, com tanta precipitação que não nos fez mal algum. No mesmo dia, encarreguei aos Srs. de Beauve e de Blois de estabelecer uma Bateria de 10 peças em uma península que ligava obliquamente as Baterias e parte dos entrincheiramentos da Colina dos Beneditinos.

A 17, os inimigos queimaram alguns armazéns que tinham na Praia do Mar, e estavam cheios de caixas de açúcar, massame (cordame de navio) e munições. Também fizeram saltar (explodir) o terceiro navio de guerra, que estava encalhado debaixo das trincheiras dos Beneditinos. Também queimaram as duas fragatas do Rei de Portugal. Durante estes movimentos, algumas partidas inimigas, conhecedoras dos caminhos locais, prolongaram-se pelos desfiladeiros e bosques que margeavam o nosso acampamento, e depois de tentar diversos ataques de dia, surpreenderam de noite três sentinelas nossas, que levaram consigo sem rumor algum. Também alguns dos nossos merodistas caíram em suas mãos, e isto despertou-lhes a ideia de um estratagema singularíssimo.

Merodistas: patrulhas que agem para inquietar e saquear as tropas inimigas. (Nota do Autor)

§ 11.

Certo Normando chamado “du Bocage”, que nas precedentes guerras comandara um ou dois navios franceses armados em corso, havia depois passado ao serviço de Portugal. Aí se naturalizara e conseguira embarcar em seus navios de guerra; comandava no Rio de Janeiro o segundo daqueles que nós achamos, e depois de o ter feito saltar, encarregara-se da guarda das trincheiras dos Beneditinos; cabalmente desempenhou este encargo e com tanto acerto empregou os seus canhões, que as nossas bombardeiras foram muito incomodadas e várias chalupas nossas ficaram maltratadíssimas; entre outras uma, carregada com 4 grandes peças fundidas, foi traspassada por duas balas, e soçobraria se, por acaso, eu a não viesse no regresso da Ilha das Cabras (Cobras) e a não tomasse a reboque do meu escaler.

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Este “du Bucage”, querendo fazer-se notável e ganhar a confiança dos Portugueses, aos quais como Francês sempre era suspeitoso, imaginou disfarçar-se como marinheiro com um boné, gibão, e calças alcatroadas. Neste caso fez-se conduzir por quatro soldados portugueses para onde os nossos merodistas e as nossas sentinelas aprisionadas achavam-se encarceradas. Puseram-no a ferros com esses companheiros e ele deu-se como marinheiro da equipagem de uma das fragatas de São-Maló que, afastando-se do nosso acampamento, fora preso por uma partida portuguesa. Tão perfeitamente desempenhou o seu papel que arrancou dos nossos pobres Franceses iludidos por esse disfarce os esclarecimentos que o podiam certificar do forte e do fraco das nossas tropas, pelo que resolveram os inimigos atacar o nosso acampamento.

§ 12.

Para este fim, mandaram subir dos seus entrincheiramentos, antes de clarear o dia, 1.500 homens de tropas regulares, que avançaram sem ser descobertos até o sopé do Monte ocupado pela Brigada de Goyon. Estas tropas foram seguidas por um Corpo de milícias que se postou a meio caminho do nosso acampamento, abrigado por um bosque e em posição de proteger aqueles que nos deviam atacar. O Posto avançado, que intentavam tomar, estava situado na encosta de um Monte, onde havia uma casa seteirada, que nos servia de Corpo de Guarda, e 40 passos acima havia uma cerca viva fechada por uma cancela. Os inimigos, ao alvorecer do dia, fizeram passar vários animais em frente da cancela.

Um dos nossos sargentos e quatro soldados sôfregos, avistando os animais, no intuito do apossá-los, abriram a cancela sem prevenir ao oficial mas, apenas deram alguns passos, os Portugueses emboscados fizeram fogo sobre eles, e mataram o Sargento e dois soldados; depois entraram e subiram para o Corpo da guarda; o Sr. de Liesta, que defendia este posto com 50 homens, embora surpreendido e atacado vivamente, manteve-se, e deu tempo ao Sr. Cavalheiro de Goyon mandar o Sr. de Boutteville, Ajudante-mor, com as Companhias dos Srs. de Droualin e d’Auberville.

Ao mesmo tempo despachou um Ajudante de Campo para informar-me da ocorrência e, esperando as minhas ordens, pôs toda a Brigada em armas e pronta para atacar. Imediatamente expedi 200 granadeiros por um caminho fundo com ordem de agredir os inimigos pelo flanco, apenas vissem empenhada a ação, e pus as demais tropas em movimento. Corri depois ao lugar do combate com a minha Companhia de Cabos, e cheguei a tempo de testemunhar o valor e firmeza com que os Srs. de Liesta, de Droualin e d’Auberville sustentavam inabaláveis o embate inimigo.

Ao aproximarem-se as tropas que me acompanhavam, os inimigos retiraram-se precipitadamente, deixando no campo de batalha vários soldados mortos e muitos feridos. Interroguei a estes últimos, e informado por eles das circunstâncias que acabo de referir, não julguei conveniente penetrar no bosque e nos desfiladeiros. Assim mandei fazer alto aos granadeiros e a todas as tropas que se achavam em marcha. Se tomasse resolução diversa, cairia na emboscada, onde se achava postado o Corpo de milícias.

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O Sr. de Pontlo do Coetlogon, Ajudante de Campo do Sr. Cavalheiro de Goyon, foi ferido nesta ocasião e tivemos 30 soldados mortos ou feridos. Neste mesmo dia a Bateria, que eu entregara aos cuidados dos Srs. do Beauve e de Blois, começou a atirar contra as fortificações dos Beneditinos.

§ 13.

A 19, o Sr. de la Rufinière, Comandante da artilharia, avisou-me que tinha na Ilha das Cabras (Cobras) 5 morteiros e 18 canhões de calibre 24 prestes a bater na brecha, e que esperava as minhas ordens para desmascarar as Baterias; julguei ser tempo do intimar o Governador, e mandei um tambor levar-lhe a seguinte Carta:

O Rei, meu amo, querendo, Senhor, tirar satisfação da crueldade exercida para com os oficiais e tropas que aprisionastes o ano passado, e estando Sua Majestade bem informado que, depois de terdes feito assassinar cirurgiões, a quem tínheis permitido desembarcar dos seus navios para cuidar dos feridos, deixastes ainda morrer de fome e de miséria a parte restante destas tropas, retendo todos em cativeiro contra o teor da Convenção de trocas ajustada entre as Cortes de França e Portugal, mandou-me Sua Majestade empregar seus navios e suas tropas para obrigar-vos a entregar-vos à discrição e restituir todos os prisioneiros franceses, assim como também obrigar os habitantes desta Colônia a pagar contribuições bastantes para puni-los da sua crueldade, e que possam amplamente indenizar a Sua Majestade da despesa, que fez com armamento tão considerável.

Não quis intimar-vos para render-vos antes de ver-me em estado de obrigar-vos a isso e reduzir a cinzas o vosso país e a vossa cidade, se vos não renderdes à discrição do Rei, meu amo, que ordenou-me que não destruísse aqueles que de boa vontade se submetessem e se arrependessem de o ter ofendido na pessoa dos seus oficinas e das suas tropas. Sei também, Senhor, que foi assassinado o Sr. Duclerc, que as comandava; não quis usar de represália contra os Portugueses que caíram em meu poder, por não ser intenção de Sua Majestade fazer guerra do modo indigno de um Rei cristianíssimo; e eu quero crer que sois honrado, e portanto não tereis tido parte neste vergonhoso assassinato; mas isto não basta. Sua Majestade quer que me nomeeis os autores do crime para fazer-se exemplar justiça.

Se demorardes em obedecer a sua vontade, nem todos os vossos canhões, nem todas as vossas trincheiras, nem todas as vossas tropas me impedirão de executar as suas ordens e levar o ferro e o fogo por todo este país. Espero, Senhor, vossa resposta; dai-a pronta e decisiva; do contrário conhecereis que, se até agora vos poupei, foi tão somente para poupar a mim mesmo o horror de confundir inocentes com culpados.

Sou, Senhor, mui perfeitamente etc.

O Governador despediu o meu tambor com esta resposta:

Vi, Senhor, os motivos que vos obrigaram a vir de França a este país. Quanto ao tratamento dos prisioneiros franceses, foi ele segundo o uso da guerra, não lhes faltou pão de munição, nem outro qualquer socorro, embora o não merecessem pelo modo por que atacaram este país do Rei, meu amo, sem Comissão do Rei cristianíssimo, mas praticando apenas a piratagem. Entretanto concedi a vida a 600 homens como estes prisioneiros poderão certificar. Eu os defendi contra o furor dos negros, que pretendiam passar todos a fio de espada; enfim não lhes faltei com coisa alguma, tratando-os segundo as intenções do Rei, meu amo.

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A respeito da morte do Sr. Duclerc, cumpre-me de clarear que, por solicitação sua, o pus na melhor casa desta terra, onde ele foi morto. Quem o matou? Eis o que se não pode verificar por mais diligências que se fizessem, tanto por minha parte como por parte da justiça. Asseguro-vos que, se se descobrir o assassino, será punido como merece. Em tudo isto nada se passou que não seja pura verdade, tal como vo-lo exponho.

Quanto à entrega desta Praça, quaisquer que sejam as ameaças que me façais, tendo-ma confiado o Rei, meu amo, não tenho outra resposta para dar-vos senão que estou pronto a defendê-la até a última gota do meu sangue. Espero, que o Deus dos Exércitos me não abandonará em tão justa causa, como a da defesa desta Praça, da qual quereis apoderar-vos sob frívolos protestos e fora de tempo.

Deus guarde a V. Sª.

Sou, Senhor etc.

D. Francisco de Castro Moraes.

§ 14.

Em vista desta resposta, resolvi atacar vivamente a Praça; fui com o Sr. Cavalheiro de Beauve examinar a costa para reconhecer os lugares por onde mais facilmente poderíamos forçar os inimigos. Observamos 5 navios portugueses ancorados perto do Convento Beneditino, os quais pareceram-me idôneos para depósito das tropas, que eu destinasse para atacar este posto. Por precaução, mandei o navio Mars avançar por entre as nossas duas Baterias e estes cinco navios, a fim de que ficasse ele em posição conveniente de defendê-los, quando fosse oportuno.

A 20, dei ordem ao Brillant para vir fundear perto do Mars. Estes dois navios e as nossas Baterias abriram fogo contínuo, que arrasou parte dos entrincheiramentos, e dispus tudo para dar assalto na manhã seguinte ao romper da aurora.

Para este fim, apenas cerrou-se a noite, mandei embarcar em chalupas as tropas destinadas para o ataque das trincheiras dos Beneditinos com ordem de meterem-se, com menor ruído possível, nos 5 navios que tínhamos observado. Dispuseram-se elas a executar a ordem mas, sobrevindo tempestade, o clarão dos relâmpagos denunciou a manobra, e os inimigos fizeram sobre as chalupas ativíssimo fogo de mosquetaria.

As disposições que eu notava na atmosfera, levaram-me a prever este contratempo e, para o remediar, tinha, antes de anoitecer, mandado ordem ao Brillant e ao Mars e a todas as nossas Baterias para, ainda de dia, apontar todos os canhões contra as trincheiras, e conservarem-se prontos para disparar no momento em que vissem partir um tiro de peça da Bateria, onde eu me colocara. Assim apenas começaram os inimigos a atirar contra as nossas chalupas, eu mesmo pus fogo à peça, que devia servir de sinal, a qual foi instantaneamente seguida de fogo geral e contínuo das Baterias e dos navios que, junto ao repetido estrondo de horrendos trovões e aos relâmpagos que se sucediam uns aos outros quase sem interrupção, tornava esta noite medonha. A consternação entre os habitantes foi tanto maior quanto pensaram que eu ia dar assalto durante a noite.

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A 21, pela madrugada avancei à frente das tropas para começar o ataque pelo lado da Conceição, e ordenei ao Sr. Cavalheiro do Goyon que corresse a costa com a sua Brigada e atacasse os inimigos por outro ponto. Ao mesmo tempo mandei ordem às tropas metidas nos 5 navios para assaltar as trincheiras dos Beneditinos.

No momento em que tudo ia mover-se, o Sr. de La Salle, que servira de Ajudante de Campo ao Sr. Duclerc e ficara prisioneiro no Rio do janeiro, apareceu e veio dizer-me que a plebe e as milícias amedrontadas com o nosso grande fogo, apenas este começara e persuadidas de que se tratava de um assalto geral, achavam-se dominadas de tamanho terror que, desde logo, tinham abandonado a cidade com tal confusão, que a noite e a tempestade tornaram extrema, e que, comunicando-se este terror, as tropas regulares tinham sido arrastadas pela torrente; mas que, retirando-se, tinham incendiado os armazéns mais ricos, e deixado minas nas Fortalezas dos Beneditinos e Jesuítas, para que aí perecesse ao menos, parte das nossas tropas. Que vendo de quanta importância era advertir-me em tempo, nada desprezara para isso e aproveitara a desordem para evadir-se.

Todas estas circunstâncias, que a princípio pareceram-me incríveis, e que todavia eram verdadeiras, determinaram-me a apressar a marcha. Assenhoreei-me sem resistência, mas com precaução, das trincheiras da Conceição e das dos Beneditinos; depois, pondo-me à frente dos granadeiros, entrei na Praça e apoderei-me de todas as Fortalezas e outros postos dignos de atenção. Ao mesmo tempo dei ordem para averiguação das minas, depois do que estabeleci a Brigada do Courserac no Monte dos Jesuítas para guarnecer as Fortalezas ali existentes.

Entrando na cidade abandonada, fiquei surpreendido de achar logo em caminho os prisioneiros subsistentes da derrota do Sr. Duclerc. No meio da confusão, tinham eles arrombado as portas da prisão, e tinham-se espalhado por todos os pontos da cidade, a fim de saquear os lugares mais ricos. Isto excitou a avidez dos nossos soldados e induziu alguns a debandarem-se; imediatamente mandei aplicar severo castigo, que os deteve, e ordenei que todos estes prisioneiros fossem conduzidos para a Fortaleza dos Beneditinos e ali encerrados.

§ 15.

Fui, depois disto, reunir-me aos Srs. de Goyon e de Beauve, aos quais deixara o Comando do resto das tropas, sendo facílimo combinar com eles sobre as providências que devíamos tomar para impedir ou ao menos diminuir o saque em uma cidade aberta, por assim dizer, por todos os lados. Depois mandei postar sentinelas e estabelecer Corpos de Guarda em todos os lugares necessários, e ordenei que se rondasse de dia e de noite com proibição, sob pena de morte, aos soldados e aos marinheiros de entrar na cidade. Em uma palavra, não desprezei precaução alguma praticável, mas o furor da depredação sobrepujou ao temor do castigo. Os que compunham os Corpos de Guarda e patrulhas foram os primeiros a aumentar a desordem durante a noite, de sorte que, na manhã seguinte, três quartas partes dos armazéns e casas estavam arrombadas, vinhos derramados; os víveres, as mercadorias e as alfaias espalhadas pela Rua e na lama; tudo enfim em desordem e em inexprimível confusão.

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Fiz, sem remissão, saltar a cabeça de muitos que estavam no caso do bando publicado; mas não sendo todos os reiterados castigos capazes de deter este furor, deliberei, para salvar alguma coisa, empregar as tropas desde pela manhã até à noite e recolher em armazéns todos os efeitos (bens que tivessem valor negociável), que se pudesse reunir, e o Sr. de Ricouart aí pôs escrivães e pessoas de confiança.

A 23, mandei intimar a Fortaleza de Santa Cruz, que se rendeu, o Sr. de Beauville, Ajudante-General, tomou posse dela, assim como das Fortalezas de São-João, e de Villegaignon e das outras da entrada. Por ordem minha, cravou ele todos os canhões das Baterias que estavam desencravados.

§ 16.

Entrementes, soube por diferentes negros trânsfugas (desertores), que o Governador da cidade e D. Gaspar da Costa, Comandante da frota, tinham reunido suas tropas dispersas e estavam fortificados em distância de uma légua de nós, onde esperavam poderoso socorro das minas, sob a direção de D. Antônio do Albuquerque, General de grande fama entre os Portugueses. Assim julguei conveniente precaver-me contra eles. Para isto, estabeleci a Brigada do Goyon como guarda das trincheiras que fronteavam a planície e coloquei-me com a Brigada do centro nas Colinas da Conceição e dos Beneditinos, pondo-me assim ao alcance de prestar auxílio aos que dele precisassem. A Brigada de Courserac já estava postada, como disse, no Monte dos Jesuítas.

Estando tranquilo por esse lado, curei dos interesses do Rei e dos armadores.

Tinham os Portugueses salvado o dinheiro nos bosques, queimado ou submergido os seus melhores navios e incendiado os mais ricos armazéns; tudo o mais estava exposto à avidez dos soldados, aos quais nada podia deter; além disto era impossível conservar esta Praça por causa dos poucos víveres que eu achara, e pela dificuldade de penetrar nas terras adjacentes para os conseguir.

Bem considerado tudo isto, mandei dizer ao Governador que, se tardasse em resgatar a cidade por via de contribuição, eu a reduziria a cinzas e a arrasaria até os fundamentos. A fim de fazer-lhe mais sensível esta advertência, destaquei duas companhias de granadeiros para irem queimar todas as casas de campo na distância de meia légua em derredor.

Executaram esta ordem mas, caindo em um Corpo de soldados Portugueses mui superiores, teriam sido destruídas, se tivesse eu a precaução do fazê-las seguir por mais duas Companhias comandadas pelos Srs. do Brugnon e de Cheridan, as quais, sustentadas pela minha Companhia de Cabos, investiram contra os inimigos, mataram muitos e puseram os demais em fuga.

O seu Comandante, chamado Amara (Bento do Amaral Gurgel), homem entre eles afamado, ficou morto no campo; o Sr. de Brugnon apresentou-me as suas armas e o seu cavalo, um dos mais lindos que tenho visto. Este Oficial muito se distinguira nesta ação; tinham sido ele e o Sr. de Cheridan os primeiros que avançaram de baioneta calada.

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Entretanto, como observei, que o negócio podia tornar-se arriscado em relação ao acampamento inimigo, mandei avançar dois batalhões sob o Comando do Sr. Cavalheiro de Beauve. Penetrou mais avante, incendiou a casa de moradia deste Comandante e retirou-se. Depois deste revés, o Governador mandou-me o Presidente do Tribunal de Justiça com um dos seus Mestres de Campo para tratar do resgate da cidade.

Começaram por dizer-me que, tendo-os o povo abandonado, a fim de transportar suas riquezas ao centro dos bosques e montanhas, era-lhes impossível achar mais de 600.000 cruzados; e ainda pediam longo prazo para fazer voltar o dinheiro pertencente ao Rei do Portugal, que eles diziam ter também sido levado para o interior do país. Rejeitei a proposta e despedi estes Deputados depois de declarar que arruinaria tudo quanto o fogo não pudesse destruir inteiramente.

Partindo estes indivíduos, não ouvi mais falar do Governador; soube ao contrário por negros desertores, que Antônio de Albuquerque aproximava-se e devia brevemente reunir-se a ele com valioso socorro do que o tinha prevenido por um correio.

§ 17.

Inquieto com esta notícia, compreendi a necessidade em que estava de fazer um esforço antes da junção de ambos, se deles quisesse tirar proveito. Assim, ordenei que todas as minhas tropas, que se aumentaram com quase 500 homens sobreviventes à derrota do Sr. Duclerc, desacampassem e se pusessem em marcha, sem rufo do tambor e à surdina, quando estivesse a noite adiantada. Esta ordem foi executada, apesar da obscuridade e dificuldade dos caminhos, com tanto ardor e pontualidade que, ao romper do dia, achei-me em presença do inimigo. A vanguarda, comandada pelo Sr. Cavalheiro de Goyon, não fez alto senão ao alcance de meio tiro de fuzil da Colina que eles ocupavam, e na qual as suas tropas apareceram em Ordem de Batalha; elas tinham sido reforçadas com 1.200 homens chegados, há pouco, do Distrito da Ilha Grande.

Mandei colocar todos os nossos batalhões com bandeira desfraldada, tanto quanto o permitiu o terreno, prestes a dar combate; e tive o cuidado do mandar ocupar as Colinas e os desfiladeiros destacando, ao mesmo tempo, diversos pequenos Corpos para darem grande volta, com ordem de cair sobre o flanco dos inimigos, apenas tivessem notícia de estar empenhada a ação. Surpreendido o Governador, enviou um Jesuíta, homem inteligente, com dois dos seus principais oficiais, para representar-me que ele tinha oferecido para resgate da cidade todo o dinheiro de que podia dispor, e que, na impossibilidade de achar maior quantia, o que podia fazer era acrescentar 10.000 cruzados da sua bolsa, 500 caixas de açúcar e todo o gado de que eu precisasse para subsistência das tropas. Que, se eu recusasse aceitar este oferecimento, poderia combater, destruir a cidade e a Colônia, ou tomar qualquer outra deliberação que julgasse conveniente.

Para resolver sobre isto, reuni o conselho, o qual unanimemente assentou que, se destruíssemos toda essa gente, bem longe de tirarmos vantagem, perderíamos a única esperança que nos restava, de obrigá-los à contribuição, o que cumpria não hesitar em aceitar a proposta.

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Compreendi também a necessidade disto; em consequência, obtive imediatamente 12 dos principais oficiais como reféns, e aceitei a obrigação do pagamento dos 600.000 cruzados em 15 dias e de darem-me todo o gado do que eu necessitasse. Concordamos também que seria permitido aos negociantes portugueses vir a bordo dos nossos navios e à cidade para resgatar os objetos que lhes conviesse, pagando-os de pronto.

§ 18.

No seguinte dia, 11 de outubro, D. Antônio de Albuquerque chegou ao acampamento dos inimigos com 3.000 homens de tropas regulares, sendo metade de cavalaria e metade de infantaria. Para ali chegarem mais prontamente, pusera ele a infantaria à garupa dos cavaleiros, vindo acompanhado por mais de 6.000 negros bem armados, que chegaram no dia seguinte.

De localidades próximas – Parati e Ilha Grande, acorrem forças milicianas, constituídas conforme as ordenações sebásticas, em suas últimas modificações, no valor de cerca de 600 homens. Nas Minas Gerais, que então começavam a povoar-se tumultuariamente, havia forças que permitiram ao seu Governador vir em socorro do Rio de Janeiro, com cerca de 7.000 homens, dos quais 1.500 a cavalo, trazendo cada um, como informa Robert Southey, um infante na garupa para poderem chegar mais rapidamente. É notável terem sido tais forças reunidas em sete dias (...) (MAGALHÃES)

Ordenações Sebásticas: com a sua promulgação, em 9 de dezembro de 1569, reorganizava-se a nação para a defesa e, incluindo o que hoje chamaríamos uma Lei do Serviço Militar e lei de mobilização, estabeleciam-se “as obrigações militares da população do reino, conforme as categorias sociais, a propriedade territorial, os bens móveis, as profissões e as províncias”. Os grandes fidalgos e outros possuidores de muitas terras e “servos” eram obrigados a ter, operativa, para servir o rei, uma determinada força armada, homens, cavalos, lanças e arcabuzes.

“Os que percebiam 200000 réis ou mais de rendimento deviam ter cavalos e armas; aqueles cujas rendas não excedessem 100000 réis deviam pelo menos ter arcabuzes; finalmente os não proprietários, os mecânicos ou trabalhadores rurais eram obrigados a ter lança, meia lança ou dardo”

O cumprimento destas obrigações dava direito a privilégios, a fuga a elas implicava penalizações. A par da organização militar por classes sociais e profissionais, estabelecia-se a organização territorial. “Foi esse o objeto do regulamento de 10 de dezembro de 1570, também chamado Regimento dos Capitães-mores e mais oficiais das Companhias de gente de cavalo e de pé, e da ordem que devem ter em se exercitarem ou Regimento das Companhias de Ordenanças (Ordenanças Sebásticas)”. (NARCISO)

Este socorro, embora chegado tarde, era assaz considerável, e por isso obrigava-me a redobrar de cuidados; portanto, conservei-me constantemente alerta, tanto mais quanto os negros, que entre nós apareciam, asseguravam que, não obstante os reféns entregues, os Portugueses queriam surpreender-nos e atacar-nos durante a noite; isto porém não me impediu de trazer aos nossos navios todas as caixas de açúcar, e encher os nossos armazéns de outros efeitos que podemos reunir.

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Sendo a maior parte desses gêneros apenas vendáveis no Mar do Sul, seriam totalmente perdidos se os trouxéssemos para a França. A dificuldade era ter embarcações capazes de empreender semelhante viagem, e apenas achou-se uma de 600 toneladas em estado de ir ali, e ainda assim mal poderia conter parte das mercadorias, de modo que, para salvar o resto, eu e o Sr. do Ricouart julgamos conveniente adicionar-lhe a Concorde. Consequentemente, ordenei que se trabalhasse noite e dia para carregar estes dois navios; e como ainda sobrassem 500 caixas de açúcar, as embarquei na menos má das nossas presas, para cujo equipamento contribuiu cada navio, assumindo o Sr. de La Rufinière o Comando dela; as outras embarcações por nós tomadas foram vendidas aos Portugueses, assim como as mercadorias estragadas, das quais tiramos o possível proveito.

A 4 de novembro, tendo os inimigos feito o último pagamento, entreguei-lhes a cidade e embarquei as tropas, conservando somente a Fortaleza da Ilha das Cabras (Cobras), e a de Villegaignon, assim como as da entrada, a fim de assegurar a nossa partida.

Mandei depois incendiar o navio de guerra português, que não se pudera levar do fundo, e outro navio mercante, para o qual se não achara comprador. Desde o primeiro dia em que entrei na cidade, tive grandíssimo cuidado de mandar reunir os vasos sagrados, a prataria e os ornamentos das igrejas, e os mandei por nossos Capelães guardar em grandes cofres, depois do punir com pena de morte a todos os soldados ou marinheiros que tiveram a impiedade de profaná-los e apoderar-se deles.

Quando estive a ponto de partir, confiei este depósito aos Jesuítas, como únicos sacerdotes deste país que me pareceram dignos da minha confiança, e os encarreguei de entregá-los ao Bispo diocesano.

Devo fazer justiça a estes Padres, dizendo que eles muito contribuíram para salvar esta florescente Colônia, convencendo o Governo da conveniência de resgatar a cidade; sem o que eu a teria arrasado completamente, apesar da chegada de Antônio de Albuquerque e de todos os seus negros. Esta perda, que seria irreparável para o Rei de Portugal, de nenhuma utilidade seria para o meu amamento.

§ 20.

Antes de falar de nosso regresso à França, é justo testemunhar aqui que o bom êxito desta expedição é devido ao valor da maior parte dos oficiais em geral, e dos capitães em particular mas, sobretudo, à firmeza e bom comportamento dos Srs. de Goyon, de Courserac, de Beauve, e do Saint-Germain.

Estes 4 oficiais prestaram valiosíssimo auxílio no curso desta empresa; e com prazer confesso que foi com o adjutório da sua atividade, da sua coragem, e dos seus conselhos, que consegui vencer muitas dificuldades, que me pareciam superiores às minhas forças. A 13, toda a esquadra partiu e, no mesmo dia, as embarcações destinadas ao Mar do Sul também partiram bem providas de abastecimento.

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Embarquei em nossos navios 1 oficial, 4 guardas-marinhas, e perto do 500 soldados, resto da aventura do Sr. Duclerc, tendo sido os demais oficiais remetidos para a Baía de Todos os Santos. Tive a intenção de ir ali libertá-los e, com certeza, a teria executado, tirando desta Colônia maior contribuição, se não tivesse a infelicidade de ser cruelmente estorvado por ventos contrários por mais de 40 dias, de sorte que apenas nos restavam víveres suficientes para o regresso à França. Nesta situação seria temeridade, e até loucura, expor-se a transes calamitosos.

O Coronel João Batista Magalhães, em “A Evolução Militar do Brasil – Anotações para a História”, comenta:

Não é que faltassem Forças para lhe oferecer, ao menos, uma luta, séria, nem que o ataque fosse inesperado, pois sabemos que Portugal mandara para aqui, na prevenção desse insulto, até uma pequena esquadra. Faltou capacidade de Comando. Os efetivos que ascendiam ao total a mais de 5.000 homens permitiriam repelir os franceses, ou, na pior hipótese, sustentar a luta até chegarem reforços das zonas vizinhas. E estes não eram desprezíveis.

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Real Forte do Príncipe da Beira

Real Forte do Príncipe da Beira (Rui Rasquilho)

Tu não sabes Mas houve mais que Mar e sal Na construção de Portugal.

Por anos a fio Nos Arraiais do sertão

Nos varadouros dos Rios Os homens colocaram

As mãos, o amor e o sangue Na raiz da terra

Pela dimensão da Pátria.

Hoje no ventre da floresta E na memória incendiada das pedras

Que subiram do Mar na contracorrente dos Rios Por entre as sazões dos homens

E as canoas naufragadas O Forte resiste fulminado pelo silêncio

No espigão do Parecis.

Na fronteira do Rio Os dragões do Guaporé Esperam de outra Pátria A dimensão da aventura.

As maiorias dos turistas que visitam o Real Forte do Príncipe da Beira ficam perplexos diante da grandiosidade de uma edificação isolada, aparentemente perdida naqueles “ermos sem fim”. Por isso mesmo, fizemos questão de contextualizar sua construção, expondo nos capítulos anteriores o momento histórico em que a Fortaleza foi construída permitindo, então, ao leitor aquilatar não só sua importância estratégica mas, sobretudo, a ancestral obstinação de uma raça de titãs que se lançou a um empreendimento tão magnífico. Nossos irmãos lusitanos estenderam nossas fronteiras para Oeste com muita coragem, suor, sangue e determinação lançando, no longínquo pretérito, em terras brasileiras, nos mais desertos rincões, as pedras angulares que hoje sustentam os alicerces de nossa tão vilipendiada soberania.

- Missão de Santa Rosa

Em 1743, o Padre Atanásio Teodori, S.J., fundou, na margem direita do Rio Guaporé, a Missão de Santa Rosa, onde aldeou grande número de tribos indígenas. Era essa uma missão espanhola. Em 1750, com o Tratado de Madrid, pelo qual se estabelecia a fronteira entre a América Espanhola e o Estado do Brasil, aquela missão espanhola de Santa Rosa passou a ficar em território do Mato Grosso. (FERREIRA, 1961)

Logo após a assinatura do Tratado de Madri, as autoridades portuguesas procuraram legitimar a posse dos novos espaços territoriais acordados e, para isso, trataram de ampliar sua ocupação fundando Vila Bela da Santíssima Trindade na recém criada Capitania de Mato Grosso (09.05.1748) e abrindo oficialmente as comunicações das minas de ouro do Mato Grosso com o Grão Pará pelo Rio Madeira, em 1752.

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Os portugueses adotavam, progressivamente, medidas estratégicas preocupados com a existência, na margem direita do Rio Guaporé, de três Missões jesuíticas espanholas, as Missões de Santa Rosa, São Miguel e São Simão. A presença ostensiva dos espanhóis poderia fazer com que estes viessem a reclamar a posse das duas margens do Rio Guaporé, inviabilizando a rota comercial do Madeira até as ricas minas da Capitania Mato Grosso e impossibilitando que esta recebesse apoio militar vindo do Grão Pará.

- D. Antônio Rolim de Moura Tavares

O primeiro Governador e Capitão-general da Capitania do Mato Grosso, Antônio Rolim de Moura Tavares, foi nomeado por patente dada em Lisboa, a 25.09.1748, no mesmo ano da criação da Capitania, criada pelo Alvará de 08.05.1748, embora só tenha chegado à região em 07.01.1751 e tomado posse na Vila de Cuiabá em 17.01.1751. Rolim de Moura permaneceu em Cuiabá até novembro cuidando dos arranjos administrativos necessários para cumprir à risca as “Instruções dadas pela Rainha ao Governador da Capitania de Mato Grosso D. Antônio Rolim de Moura, em 19 de janeiro de 1749”. A Rainha Mariana Vitória Bourbon (Regente de D. João V, mulher de D. José I e filha de Filipe V de Espanha) determinou que o Governador mantivesse, a qualquer custo, a ocupação da margem direita do Rio Guaporé, ameaçada por incursões espanholas e indígenas, oriundas das Missões jesuíticas ali instaladas desde 1743.

- Instruções da Rainha Mariana Vitória Bourbon

Estas Instruções foram publicadas em 1892, no Tomo LV, da Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Virgílio Corrêa Filho comenta:

Quem as ler verificará a importância que a Metrópole atribuía à “Chave do Sertão do Brasil”, onde fatores de ordem política, mais poderosos do que os econômicos, apressaram a organização da nova entidade administrativa.

De feito, no coordenar as energias étnicas dos seus súditos, que se dispersavam pelos sertões afora, e as opor, regularmente enfeixadas e dirigidas, feito dique intransponível, à onda castelhana, que experimentava espraiar-se pelo Vale Guaporeano (Bacia do Guaporé), a Coroa portuguesa apenas obedecia à premência incoercível dos agentes locais: não havia como contrariá-los sem incorrer em grave cinca (erro).

Predestinada à luta, a Capitania remota nasceu da necessidade de eficiente escudo, ante o qual se chofrassem (chocassem) os golpes dos Missionários, que os Vice-Reis do Peru incitavam a arremetida.

São expressivas, neste particular, algumas passagens das “Instruções” a Rolim de Moura, afinadas todas por este pensamento:

deveis não só defender as terras que os meus vassalos tiverem descoberto e ocupado e impedir que os espanhóis se não adiantem para a nossa parte; mas promover os descobrimentos e apossar do que puderdes se não estiver já ocupado pelos espanhóis.

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INSTRUÇÕES DADAS PELA

Rainha ao Governador da Capitania de Mato-Grosso

D. Antônio Rolim de Moura

Em 19 de janeiro de 1749

D. Antônio Rolim de Moura, amigo, Governador e Capitão-general da Capitania de Mato-Grosso, considerando a demasiada extensão da Capitania Geral, que se chamava de São Paulo, e a dificuldade que se experimentava para que um Governador acudisse a tempo com as providências necessárias a países tão dilatados, tive por conveniente dividir a dita Capitania Geral em três partes; das quais a mais próxima ao Mar e daí até o Rio-Grande ou Paraná formasse um Governo subalterno ao do Rio de Janeiro, como são os mais daquela costa; e desde o dito Paraná até o Rio Guaporé, que deságua no do Amazonas, fui servida criar uma Capitania Geral com o nome de Mato-Grosso, e nas terras que medeiam entre este Governo e o das Minas Gerais outra Capitania Geral chamada de Goiás. E como o Governo de Mato-Grosso pela grande distância em que fica pela sua situação confinante com as Províncias do Peru, e por muitas outras circunstâncias requeria ser administrada por pessoa de grande zelo e prudência, houve por bem escolher-vos para a irdes estabelecer, esperando que em tudo sabereis completamente desempenhar a minha expectação (expectativa).

§ 1. Suposto entre os Distritos de que se compõe aquela Capitania Geral, seja a de Cuiabá a que presentemente se ache mais povoada, contudo entendendo que no Mato-Grosso se requer a maior vigilância por causa da vizinhança que tem, houve por bem determinar que a cabeça do Governo se pusesse no mesmo Distrito de Mato-Grosso, no qual fareis a vossa mais costumada residência. Mas será conveniente que também algumas vezes vades ao Cuiabá, e a outras minas do mesmo Governo, quando o pedir o bem de meu serviço e a utilidade dos moradores.

§ 2. Por se ter entendido que Mato Grosso é a chave e o propugnáculo (bastião) do sertão do Brasil pela parte do Peru, e quanto é importante por esta causa que naquele Distrito se faça população numerosa, e haja forças bastantes a conservar os confinantes em respeito, ordenei se fundasse naquela paragem uma Vila, e concedi diversos privilégios e isenções para convidar a gente que ali quisesse ir estabelecer-se, e que, para decência do Governo e pronta execução das Ordens, se levantasse uma Companhia de Dragões, e ultimamente determinei se erigisse Juiz de Fora no mesmo Distrito. Encomendo-vos que, depois que a ele chegardes, considereis, e me façais presente quais outras providências serão próprias para o fim proposto de segmentar e fortalecer a Povoação daquele território.

§ 3. Pelo que toca à fundação da Vila, é factível que, sem mais atenção que ao lugar frequentemente mais frequentado, a tenham posto no Arraial de São Francisco Xavier, o qual consta ser muito doentio. E como de nenhuma sorte convém que a residência principal do Governo tenha um defeito tão essencial, vos recomendo que, examinando os sítios daquele Distrito, onde bem possa colocar-se a Vila, escolhais o mais próprio para a sua estabilidade, e o mais cômodo pelas suas circunstâncias, atendendo a que o lugar seja defensável, e quanto for

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possível vizinho ao Rio Guaporé, ou a algum outro navegável que nele deságue para lograr as comodidades da navegação e da pesca. E ainda que a Vila se ache já fundada no dito Arraial, ou em outra parte menos cômoda, deixo à vossa eleição mudá-la para o sítio que for mais a propósito. Tereis também cuidado de mandar traçar as ruas direitas e largas, o mais que vos parecer conveniente, para que a mesma Vila desde o seu princípio se estabeleça com boa direção.

§ 4. Quanto aos privilégios e isenções que tenho concedido, considereis se poderão sem inconveniente acrescentar a alguns outros que contribuam, a convidar moradores e mineiros para irem povoar aquele território.

§ 5. No que pertence aos Soldados Dragões, como até o presente são raros, e mui custosos os cavalos no Distrito do vosso Governo, fareis por ora servir os ditos Dragões a pé. Mas encomendo-vos que promovais com atividade as criações de cavalos e gado, animando os criadores pelos meios que vos parecerem convenientes. E quando se puserem os cavalos em preços moderados, mo fareis presente pelo Conselho Ultramarino para determinar-se de se montar a tropa, e apontareis a providência que convirá dar-se para o sustento dos cavalos.

§ 6. Quanto ao Juiz de Fora, me informareis com o vosso parecer se é mais conveniente que se ponha no Cuiabá, e que a ouvidoria passe para Mato-Grosso, ou que em ambas as partes haja ouvidoria.

§ 7. Na sobredita Vila cabeça do Governo, é preciso se faça a casa para morada dos Governadores, e pelo muito que fio do vosso zelo e prudência, hei por bem que a mandeis levantar com aquela decência e comodidade que vos parecer necessária e bastante, atendendo ao remoto sertão em que fica situada a vossa residência. Para este efeito se vos entregará ordem minha direta ao Provedor da Fazenda para que assista com o dinheiro necessário a essa despesa.

§ 8. A proximidade em que está Mato-Grosso das Missões espanholas dos Xiquitos e dos Moxos, e do Governo de Santa-Cruz de La Sierra, que é dependência do Peru, se faz preciso que em vós e em vossos sucessores haja a maior circunspecção para evitar toda a queixa e castigar toda a desordem que os súditos do vosso Governo cometerem contra os Espanhóis, e juntamente a maior vigilância para não consentir que os mesmos Espanhóis se adiantem para a nossa parte, ou cometam violência alguma contra os meus vassalos.

§ 9. Os Missionários de Espanha, no ano de 1743, por emulação de que os mineiros de Mato-Grosso descessem com canoas pelo Rio Guaporé, passaram da missão de São Miguel, que é uma dos Moxos sita na margem Ocidental do dito Rio, a fundar outra Aldeia na margem oposta com a invocação de Santa Rosa, intentando por esta forma empossar-se da navegação daquele Rio e impedi-la aos meus vassalos, entre os quais e os Espanhóis tem havido por esta causa alguns dissabores e altercações.

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§10. A situação desta Aldeia de Santa Rosa é tão sujeita a produzir contendas, consequência gravíssima, que em quanto não se faz amigavelmente a respeito dela alguma transação que as evite para o futuro. Ficando os limites das duas monarquias pelo Rio Guaporé, deveis pôr todo o cuidado para que ao menos não cresça o mal que dali pode resultar. Por detrás daquela Aldeia se descobriram ultimamente as minas dos Arinos, e em um Ribeirão que está antes de chegar a ela, na mesma margem Oriental, se tinha já há alguns anos feito outro descobrimento, e é provável que naquelas vizinhanças se vão achando minas diversas.

§11. Se os Índios daquela Aldeia se alargarem a buscar ouro pelos contornos, é muito factível que se descubram, e que com isso se faça mais dificultosa a transação amigável, e se vão originando maiores discórdias entre os vassalos de uma e outra monarquia. Enquanto esta dependência se não ajusta com acerto de Madrid, o remédio que por ora deveis aplicar é persuadir moradores que vão situar-se no círculo daquela Aldeia, e não muitas léguas de distância, dando-lhes sesmarias para assim evitar que os Índios da mesma Aldeia se alarguem nos seus contornos; e deveis defender eficazmente os “sesmeiros” de qualquer insulto e moléstia dos mesmos Índios. Para este fim, e para o mais que poder ser necessário, fareis alistar em Ordenanças todos os moradores do vosso Governo, procurando que andem quanto for possível exercitados e disciplinados. Nomeareis pela primeira vez os Capitães e mais Oficiais das Companhias e os Capitães-mores dos Distritos, de que dareis conta pelo Conselho Ultramarino para serem confirmados por mim, fazendo nas patentes menção desta ordem, e do número de agentes de que se compuserem os Corpos, que deve ser ao menos de 60 soldados em cada Companhia, e os Capitães-mores hão de ter ao menos seis Companhias à sua ordem. Pelo que toca aos provimentos que ocorrem depois dos primeiros, vos regulareis conforme as ordens emanadas pelo Conselho Ultramarino.

§12. Fareis frequentar quanto for possível a navegação e pesca do Rio Guaporé, para que não tome vigor com a negligência da nossa parte a pretensão em que têm entrado os Espanhóis de senhorear-se delas. A respeito da comunicação do Mato-Grosso com o Pará, pelo Rio, que será o meio mais eficaz para destruir aquela preterição e para fortalecer as terras do vosso Governo, vereis pelas cópias que ordeno se vos entreguem, o que mandei avisar aos Governadores Gomes Freire de Andrade e Francisco Pedro de Mendonça Prejon.

§13. Pelo que se ordenou aos sobreditos, ficareis entendendo o que sou servida se observe nessa matéria e à vista das informações que enviareis para melhor conhecimento dela, resolverei o que tiver for mais conveniente ao meu serviço. Mas no caso que eu ao diante determine, que se franqueie a comunicação do Mato-Grosso com o Pará, deveis ter cuidado em que não se abandone por isso o trânsito de causas, que ao presente se pratica do Cuiabá para São Paulo; pois por muitas e importantes razões convém conservar-se frequentado pelos meus vassalos aquele sertão. O Governo da Espanha tem grande ciúme de que da nossa parte se vendam fazendas de contrabando aos seus súditos americanos, e assim a razão da boa vizinhança entre mim

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e El-Rei Católico pede que, neste particular, tenteis toda a vigilância para impedir aos moradores do vosso Governo todo o comércio de gêneros com os Espanhóis.

§14. O gentio Paiaguá, apesar de um ataque que já mandei fazer às suas ilhas, se tem depois tornado a restabelecer, de sorte que continua a infestar a navegação dos comboieiros pelo Rio Paraguai. Aos Governadores de São Paulo se tinha ordenado mandassem fazer alguns bergantins armados com gente de ordenanças para castigar os insultos daqueles bárbaros, e segurar a navegação dos ditos comboios. Confio do vosso zelo atendais a preservar os navegantes e vizinhos do dito Rio do susto daquele gentio, e quando exaustos todos os meios de persuasão e de brandura, não possais conseguir que desista das suas hostilidades, procurareis eficazmente reduzi-los com castigo a viverem racionalmente. E se para isto necessitardes de alguma coisa que faltem naquele sertão, o avisareis pelo dito Conselho, para se darem as providências convenientes. Em todo o vasto país que medeia entre o Paraguai e o Paraná ou Rio-Grande se acha vivendo o gentio Caiapó, que é o mais bárbaro e alheio de toda a cultura e civilidade, que até agora se descobriu no Brasil. As contínuas hostilidades com que infesta os caminhos de São Paulo para Goiás e para o Cuiabá e até as mesmas povoações dos Goiases me obrigaram a mandar ultimamente se deliberasse, em uma Junta de Missões no Rio de Janeiro, se devia fazer-se-lhe guerra, conforme os meios, com que se haveria de executar no caso que se julgasse indispensável. O Governador Gomes Freire de Andrade vos comunicará o último estado desta dependência, para que por vossa parte coopereis com ele, e com o Governador de Goiás no que se tiver assentado na dita Junta. E como um meio eficaz para afugentar e atemorizar estes bárbaros, é o de penetrarem os sertanejos pelas terras em que vive aquela nação, será conveniente que favoreçam todo o descobrimento de ouro que se intentar na serrania, que corre de Camapuan para o Norte. Nas terras que medeiam entre o Cuiabá e o Mato Grosso se encontrou há alguns anos a nação dos Índios Parecis, mui próprios para domesticar-se, com muitos princípios de civilidade, e outras nações de que se poderiam ter formado Aldeias numerosas e úteis, e com sumo desprazer soube que os sertanejos do Cuiabá não só lhes destruíram as povoações, mas que totalmente têm dissipado os meus Índios com tratamentos indignos de se praticarem por homens cristãos. Por serviço de Deus e meu e por obrigação da humanidade, deveis pôr o maior cuidado em que não se tornem a cometer semelhantes desordens, castigando severamente aos autores delas, e encarregando aos Ministros que pela sua parte emendem e reprimam rigorosamente tudo o que neste particular se houver feito ou ao diante se fizer contra as repetidas ordens que têm emanado nesta matéria.

§15. Pelo que toca aos Índios das nações mansas, que se acham dispersos servindo aos moradores a título de administração, escolhereis sítios nas mesmas terras donde foram tirados, nas quais se possam conservar aldeados e os fareis recolher todos às Aldeias, tirando-os aos chamados administradores, e pedireis ao Provincial da Companhia de Jesus do Brasil vos mande Missionários para lhes administrarem a Doutrina do Sacramento. Igualmente lhes pedireis para a administração de qualquer Aldeia ou nação que novamente se

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descubra, não consentindo que se dissipem os índios ou se tirem das suas naturalidades ou se lhes faça dano em violência alguma, antes se apliquem todos os meios de suavidade e indústria para os civilizar, doutrinar em tudo como pede a caridade cristã.

§16. Às Aldeias distribuireis de sesmarias as terras que vos parecerem necessárias para as suas culturas, conforme o povo que contiverem. Não consentireis que os Índios sejam administrados por pessoas particulares e muito menos que sejam reduzidos a sujeição alguma, que tenha a mínima aparência de cativeiro, nem que, na administração econômica das Aldeias, se insira pessoa alguma fora os Missionários, nem que vão seculares a demorar-se nelas mais de três dias. E assim, a estes respeitos, como aos mais que pertencem aos governos de minas, fareis exatissimamente observar o “regimen” e ordens que têm emanado tocante a elas. E deveis estar na inteligência que tenho ordenado se dêem de côngrua (taxa paga ao pároco para o seu sustento) da minha fazenda a cada Missionário das Aldeias quarenta mil réis por ano. E pelo que pertence à ereção e guisamento (utensílios e alfaias dos ofícios) das igrejas das mesmas Aldeias, dareis interinamente as providências mais necessárias e, quanto ao mais, informareis pelo Conselho Ultramarino da ajuda, com que será conveniente que eu mande assistir.

§17. Por falta de conhecimento bastante dos sertões, não tenho determinado até agora os limites do Governo de Mato Grosso, mais que pela banda do Rio Grande. A respeito das outras partes, portanto, confinantes com os governos de Goiás e do Pará, procurareis todas as informações que vos for possível alcançar e mas fareis presentes, enviando juntamente Mapas do terreno para que se resolva por onde devem ficar os confins, assim do Governo secular como das Prelazias e das Judicaturas. Pelo que toca aos confins do vosso Governo pela parte do Peru, atualmente estão entabuladas algumas negociações para as regular amigavelmente. Enquanto, porém, tratado definitivo sobre esta matéria não chega a concluir-se, é bom que vades prevenido a respeito das queixas que talvez vos fará o Governador de Santa-Cruz de La Sierra, ou o Presidente de Chuquisaca, e deveis estar na inteligência que na matéria destes confins, não há razão que deva fazer escrúpulo do excesso da nossa parte, antes ao contrário. Porque suposto entre esta Coroa e a de Castela se fizesse no ano de 1491 uma Convenção em Tordesilhas, em que se assentou que, imaginado uma linha meridiana a 370 léguas ao Poente das ilhas do Cabo Verde, todas as conquistas destas linhas para o Oriente pertencessem a Portugal e as que ficassem para o Ocidente da mesma linha tocassem à Espanha, não posso contudo considerar-me obrigada a conter o limite da minha conquista no da dita linha. Primeiramente porque devendo, em consequência, da dita convenção, pertencer a cada uma das Coroas 180 graus meridianos, se acha pelo contrário que do termo da dita linha contando para o Poente até a extremidade e domínio espanhol no Mar da Ásia e ilhas Filipinas, ocuparia aquela Coroa mais de 13 graus além de 180, que pela dita Convenção lhe toca. E como o espaço que importam os 13 graus é muito maior do que os meus vassalos têm talvez ocupado além da dita linha no sertão do Rio das Amazonas e no Mato Grosso, segue-se que ainda falta muito para ficar compensada a minha conquista do que os Espanhóis têm excedido no

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seu hemisfério. Em segundo lugar porque, tendo o Imperador Carlos V, pela convenção feita em Saragoça, em 1523, vendido a esta Coroa, tudo o que a Espanha pudesse pretender desde as Ilhas das Velas para o Poente, prometendo que seus vassalos não navegariam mais além daquelas ilhas, e se por acaso passassem ao Ocidente delas, e aí descobrissem algumas terras, as entregaria logo a Portugal, sem embargo deste contrato, foram os Espanhóis depois estabelecer-se nas Filipinas, donde resulta um novo título para eu pretender a compensação destas ilhas.

§17. Supostos estes fundamentos da justiça da minha Coroa, deveis não só defender as terras que os meus vassalos tiverem descoberto e ocupado e impedir que os Espanhóis se não adiantem para a nossa parte; mas promover os descobrimentos e apossar-vos do que puderdes e não estiver já ocupado pelos Espanhóis, evitando quanto for possível não só toda violência, mas ainda a ocasião de dissabor pelo que toca às novas ocupações. E no caso que algum dos Governadores espanhóis vos faça instâncias ou protestos a este respeito, respondereis que, sobre semelhantes questões, se não pode tomar acordo entre vós, mas entre as duas Cortes, por onde cada qual de vós deve mandar as suas representações.

§18. Perto da Vila do Cuiabá há uma campanha alta chamada do Jassé, em que se afirma haver uma extraordinária abundância de ouro, que não pode aproveitar-se por falta de água para as lavagens. O povo do Cuiabá se empreendeu à sua custa trazer este efeito de grande distância um Ribeirão, e gastando nesta empresa um grosso cabedal (recurso) teve a infelicidade de tomar tão mal as medidas a que no fim do trabalho se reconheceu que faltava muita altura para chegar a água onde era necessário. E como sou informada de que, da condução desta água podem resultar avultadas conveniências, assim à minha fazenda como à dos meus vassalos: Hei por bem que, averiguado com a certeza possível, se a água pode chegar à altura competente, e fazendo examinar os defeitos do canal precedente, quando vos pareça factível a obra por meio da contribuição do povo, animareis a isso, sem porém usar de constrangimento algum; e se entenderdes que não bastarão as faculdades dos moradores para o fim desejado, me avisareis logo, apontando a assistência com que será conveniente contribua a minha fazenda e o mais favor que vos parecer será eficaz para conseguir-se o intento.

§19. Tem procedido grandes inconvenientes e embaraços da frequentação que apesar de todas as proibições, se foi praticando furtivamente das minas de diamantes que existem no Goiás. E suposto ultimamente dei providência que pareceu mais própria para se atalhar, resta o receio de que o mesmo dano se renove no Cuiabá, por haver notícia e terem aparecido amostras de diamantes, que se acham no Rio Coxipó nos contornos daquela Vila. Pelo que vos recomendo a maior vigilância possível em proibição toda a busca de diamantes naquela e em qualquer outra paragem do vosso Governo, e castigareis severamente toda pessoa que vos constar se ocupa em buscá-los, ordenando debaixo das penas que vos parecer que, se alguma pessoa trabalhando em outro ministério descobrir por acaso algum diamante, o traga ou mande à vossa presença para o remeter a esta Corte, onde mandarei

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dar ao dono dele o que for justo, para que não faça comércio deste gênero fora da caixa do contrato.

§20. Muitas outras coisas se oferecerão à vista do país, que não é possível ocorrerem de longe para se lhes dar providência nestas instruções, mas fio da vossa providência e zelo que em todas sabereis tomar acordo tão conveniente ao meu serviço que tenha muito que louvar-vos. E pelo que respeita às faculdades e outras dependências do Governo, vos regulareis pelo regimento dos governos gerais do Estado do Brasil, em tudo o que não for aqui diversamente disposto.

Escrita em Lisboa a 19 de janeiro de 1769.

Rainha Mariana Vitória Bourbon

Marco Antônio de Azeredo Coutinho.

Instrução que V. M. é servida mandar a D. Antônio Rolim de Moura, nomeado Governador e Capitão-general de Mato Grosso, cujo Governo vai criar na forma que acima se declara.

Para Vossa Majestade ver.

Manoel Ignácio de Lemos a fez.

- Francisco Xavier Mendonça de Furtado

No dia de 20.01.1752, preocupado com as Aldeias espanholas na margem Oriental do Guaporé, Francisco Xavier Mendonça Furtado, Governador do Pará, indica, em Carta, ao Sr. Secretário de Estado da Marinha e Ultramar, Diogo de Mendonça Corte Real, os locais onde deveriam ser construídas as três Fortificações:

Pelo que respeita às povoações que se devem fazer naquele caminho, todos concordam em que se deve fazer uma junto à primeira Cachoeira do Rio da Madeira, aonde os passageiros achem mantimentos, e umas que chamam Ubás para passarem para cima, e finalmente para lhe facilitar todo o meio de fazerem esta larga jornada.

A segunda no Rio Aporé (Guaporé), meia légua acima da Aldeia de São Simão e esta me parece que devia ser logo, e se lhe devia fazer algum gênero de Fortificação.

A terceira no mesmo Rio, ou defronte ou no fim da Ilha Comprida, porque me consta que as terras são melhores, não só para cultura, mas por ora as mais próprias para segurarmos as nossas Conquistas e fazermos conter aos Castelhanos, para que não se adiantem, sem que eles, nem aparentemente, tenham razão justa de queixa. (REIS, 1948)

No dia 09.11.1752, Francisco Xavier Mendonça de Furtado enviou ao seu irmão Sebastião José de Carvalho e Mello, o Marquês de Pombal, uma Carta destacando a preocupação com as tropas da Comissão de Demarcação:

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A tropa que subir pelo Madeira e Guaporé deve ser poderosa, porque os Padres têm três Aldeias que devem ceder-nos, e a de Santa Rosa é considerável, pois me afirmam que tem muita gente de armas, e chegam até o ponto de me dizerem que passam de três mil arcos. Para todo o sucedido, me parecia que, para dar calor às tropas, deveriam ir também naquele Corpo de gente duas pecinhas (pequenas peças de artilharia) do novo intento, para rebater qualquer desobediência ou insulto que estes Padres queiram fazer; e se apresentar ocasião, creio que as duas peças farão um excelente efeito, e que farão horror a estes bárbaros, que nenhum parará diante delas. (MENDONÇA, 1762)

- A Guarda de Santa Rosa Velha

Mendonça Furtado determina a Rolim de Moura que tão logo os Missionários desocupem as Missões jesuíticas de Santa Rosa, São Miguel e São Simão na margem Oriental do Rio Guaporé, estas sejam ocupadas pelos portugueses, evitando que os espanhóis voltem a ocupá-las.

O Capitão-general Antônio Rolim de Moura Tavares desce, então, o Rio Guaporé e desaloja a missão espanhola de Santa Rosa ali instalando uma Fortificação a que deu o nome de Guarda de Santa Rosa, em 1753.

Com facilidade, D. Rolim faz com que a Missão espanhola deixe Santa Rosa. Os Jesuítas, a serviço da Coroa de Espanha, passam para a margem esquerda do Rio Guaporé, e aí fundam uma nova Missão, a cerca de 100 km acima da confluência desse curso d’água com o Rio Mamoré, e a cerca de uma hora, Rio abaixo, da antiga Missão de Santa Rosa.

Assim, pois, passaram a existir duas Santas Rosas:

1°) Santa Rosa Nova, missão na margem esquerda do Rio Guaporé;

2°) Santa Rosa Velha, na margem direita, simples local abandonado por aquela Missão espanhola.

Em Santa Rosa Velha, D. Antônio Rolim de Moura Tavares, para assegurar a sua posse, estabeleceu um aldeamento de índios, entrincheirando o local com uma paliçada. A essa Fortificação improvisada, D. Antônio Rolim deu o nome de “Guarda de Santa Rosa Velha”. (FERREIRA, 1961)

Em Carta endereçada a Mendonça Furtado, datada de 14 de fevereiro de 1755, Rolim de Moura informa que, na Missão de Santa Rosa, haviam arrancado as portas para serem aproveitadas na nova Missão homônima do lado Ocidental do Guaporé e que, em São Miguel, as casas dos índios tinham sido queimadas, contrariando o acordado no Tratado de Madri. Para Rolim de Moura, tal ação tinha o:

pretexto de lhe evitar tornarem para eles. Como eles ainda não tinham obrigação de largarem as terras, e o fizeram sem isso o que não é pequeno benefício, não quis questionar este ponto por lhe não embaraçar a saída, mas sempre faço a Vossa Excelência ciente disto para que use desta notícia, como lhe parecer útil.

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Figura 51 – Pedras Negras (Fonseca)

O historiador Robert Southey faz o seguinte comentário a respeito da retirada dos Padres espanhóis das Missões localizadas em território brasileiro:

A dia e meio de jornada abaixo deste ponto, erguia-se a redução espanhola de São Miguel, e a meio caminho entre esta missão e a junção do Guaporé com o Mamoré (a três dias de distância de cada lado), via-se também sobre a margem direita a redução de Santa Rosa.

Tendo o Tratado de Limites declarado que fosse este Rio a linha divisória, deviam os estabelecimentos sobre a margem direita ser entregues tais quais se achavam, podendo os moradores retirar-se e perder o que era seu, ou deixar-se ficar, à sua livre escolha, prestando preito à coroa de Portugal. Nesta estipulação nem dureza nem injustiça havia.

Eram tão recentes os aldeamentos que os abandonando não perdiam grande coisa os moradores, nem os índios votavam, como os Guaranis, ódio hereditário aos portugueses, sendo-lhes portanto indiferente que os amansasse e civilizasse um ou outro povo. Não entenderam, porém, os Jesuítas dever deixar a escolha aos seus discípulos, e com culpável infração do tratado, obrigou o Reitor de São Miguel, o P. Francisco Traiva, o seu rebanho a emigrar, queimando o lugar que abandonava, e outro tanto fez em Santa Rosa o Padre Nicolas de Medinila. Assim tendia o Tratado mais para agravar do que para sanar a má vontade que sobre esta fronteira se tinham as duas nações. (SOUTHEY)

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- Destacamento de Pedras Negras

D. Antônio Rolim, em resposta à incursão promovida pelo Padre Jesuíta espanhol Raimundo Laines, com objetivo de buscar nativos e colher cacau, resolve estabelecer um Posto Militar em Pedras Negras, 200 km a montante de Santa Rosa, e do Rio São Simão, militarizando o Rio Guaporé, a fim de neutralizar as ações dos espanhóis e impedir o estabelecimento deles em território português.

Azambuja mandou intimar o reitor de S. Simão, Frei Raimundo Laines, que mais não tornasse a violar assim a fronteira portuguesa e, para dar mais peso a esta proibição, postou uma força pequena no Sítio, desde então chamado Destacamento das Pedras, ficando este lugar a umas seis horas de viagem acima da boca do Rio, sobre que estava S. Simão. Reputando nova invasão esta medida, escreveram os Jesuítas ao Governador que retirasse a sua gente do que afirmavam ser território espanhol. Receando não fossem os Padres tentar à força o que ele por bem não estava disposto a conceder-lhes, embarcou Azambuja em Vila Bela com cerca de quarenta homens a reconhecer em pessoa o País e dar as providências que lhe parecessem necessárias para garantir os direitos de Portugal. (SOUTHEY)

Rolim de Moura destacou para comandar o Destacamento de Pedras Negras o Cabo de Esquadra de Dragões Marcelino Rodrigues Camponês, sete soldados dragões, quatro pedestres e cativos remeiros-carregadores, equipou duas canoas de guerra, armadas com duas pequenas peças de artilharia, bacamartes e farta munição.

As medidas defensivas adotadas contiveram, momentaneamente, as investidas dos castelhanos. Rolim de Moura, em Carta datada de 02.07.1758, endereçada ao Secretário de Estado da Marinha e Ultramar, Tomé Joaquim da Costa Corte Real, informava que os Padres espanhóis, ultimamente, estavam respeitando as fronteiras lusas:

Nas últimas (Cartas) que escrevi a Vossa Excelência, lhe dizia como os Padres espanhóis não haviam passado mais a nossa banda, mas haviam protestado não passar; o que tem observado à risca; (...)

Rolim de Moura, considerando que os espanhóis, aparentemente, estavam respeitando os limites acordados pelo Tratado de Madri, suprimiu o Destacamento das Pedras Negras.

O Dr. João Severiano da Fonseca relata na “Viagem ao Redor do Brasil, 1875 – 1878”, Volume 2, sua passagem pelo Destacamento de Pedras Negras, nos idos de 27.09.1877

CAPITULO II

No dia 27 de setembro, quinta-feira, indo às 4 da manhã, fundeamos às 7h30 no Porto do Destacamento das Pedras Negras, que deve o nome a um amontoado de enormes blocos e penedos que atravancam em parte o leito do Rio, mormente junto à margem direita; guardas avançadas de um espigão da Cordilheira dos Parecia, que aí vem morrer.

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Mudado para aí o Destacamento que existia na missão de São José, cuja denominação foi por Luiz Pinto mudada para Palmelas, ficou também conhecido por este nome, que hoje guarda somente uma tribo de índios, há poucos anos encontrada nas suas vizinhanças. O Destacamento foi para aqui removido para manter em respeito às Missões castelhanas de São Simão e São Martinho, isso por volta do ano de 1758: o Sítio das Pedras Negras era então habitação do licenciado João Baptista André, e passava por ter sido o terceiro Povoado do Rio, sendo os primeiros Vila Bela e Cubatão, o que, entretanto, é controverso, por nenhuma notícia aparecer sobre ele por ocasião da primeira descida de Rolim de Moura à Santa Rosa. Da segunda, já viu-se que, em 1760, dele conduziu gente para este Fortim.

Encontramos o Destacamento composto apenas de um Sargento e dois soldados; aquele com uma mulher e uma filha de quatorze anos, de agradável aparência, e vivendo, segundo declarou-nos, em contínuo sobressalto e na impossibilidade de arredar pé de casa sem a família, no receio em que está de um desacato dos seus comandados, que, moços e solteiros, e aí degredados há anos, já têm por vezes, levados pelas exigências da natureza, manifestado intentos concupiscentes.

Não se pode conceber qual a razão da existência desses Destacamentos de dois e três homens em lugares tão afastados dos, já por si mui fracos, centros de população. Como Postos Militares, não é com esse pessoal que se manterá o respeito e guardar-se-á o Rio, mormente quando alguns desses soldados marcham para tais destacamentos, como vemos em três dos degredados que conosco descem para o Forte do Príncipe, sem armas nem munições. Se for simplesmente como meio de castigo que os mandam para esses serviços, é inegável que há outros, mais prontos e eficazes, quais as solitárias e penitenciárias. Em todo o caso, tal punição é desarrazoada, senão monstruosa.

Se há conveniência na continuação dessas guardas, instituídas pelo primeiro Capitão-general e por seus sucessores cuidadosamente conservadas para pontos de abastecimento dos navegantes, tanto como de vigilância do Rio, e ainda como núcleos de população; se há conveniência nisso, o que acredito, que sejam elas compostas de suficiente número de praças, mas casadas todas; e sejam-lhes dados os meios de aí poderem viver e progredir. Para degredo já sobra o Forte do Príncipe; e estes Destacamentos do Cubatão e Pedras Negras, organizados assim, serão núcleos de futuras colônias e poderão, talvez, concorrer para o progresso da Província.

O local é agradável: alto de uns trinta e cinco metros, e mostra ainda vestígios de uma situação importante. Tem uns setenta pés de laranjeiras, nesta ocasião carregadíssimas de frutos maduros e deliciosos; um limoeiro azedo, dois cafezeiros, bananais perdidos nas matas, etc., restos, tudo, da plantação de um século. A indiferença e o desleixo dos governos andam aqui a par com o dos naturais: estes contentam-se, como de costume, com o que resta do que os antigos criaram; e nem ao menos por distração, já que nenhumas têm nesses enfadonhos desertos, plantam outros, curando do porvir. (FONSECA)

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Figura 52 – Fortaleza N. Sª. da Conceição (DGS/5ª DL, RJ)

- Forte de Nossa Senhora da Conceição

Assim, a fundação, em 1760, do Forte Nossa Senhora da Conceição na faixa de fronteira, representou o primeiro passo do processo político de

consolidação do governo luso no Extremo-Oeste da Colônia. É evidente que esse feito também provocou a forte reação dos Missionários e os intensos

“ralhos castelhanos” no sentido de recuperar a posse antiga de “El Rei católico” na margem do Guaporé. (BRAZIL)

Em 1760, os espanhóis tentam recuperar a margem direita do Guaporé atacando e estabelecendo-se em Guarda de Santa Rosa Velha. Antônio Rolim parte de Vila Bela, a 6 de fevereiro de 1760, expulsa os espanhóis e toma posse, novamente, da terra. Rolim resolve, então, transferir a Fortificação dois quilômetros a jusante (Rio abaixo) onde existe um estreito canal nas corredeiras. O novo Fortim, com planta no formato pentagonal no sistema Vauban, empregando faxina (feixes de ramos ou paus, taipa ou pau a pique) e barro, cercado por uma paliçada de madeira foi denominado Destacamento de Nossa Senhora da Conceição.

Transforma a Guarda de Santa Rosa em Forte de Nossa Senhora da Conceição, com estacada; improvisa ágil flotilha no Rio Guaporé com “pecinhas de artilharia”; requisita as armas existentes em Cuiabá, e em rasgo de originalidade, afeiçoa ao novo meio os conhecimentos militares que trouxera da Europa. (...) E em honra à forte raça, que se caldeara ao sol dos trópicos, cria o Corpo de Aventureiros. (FILHO)

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Nas vizinhas selvas se descobriu terreno roteado e plantado de fresco, não faltando outros indícios de tratarem os Jesuítas de reocupar o evacuado Posto (Santa Rosa). Resolveu, pois, preveni-los o Governador, e tomando posse da terra com as formalidades do estilo, principiou a reparar e alargar a arruinada habitação dos Missionários, como quartel para a tropa. Depressa souberam disto os Jesuítas, escrevendo o Superior das Missões, e vindo em pessoa alguns Padres a sustentar o direito da Coroa de Espanha a estas terras, e protestar contra semelhante intrusão e usurpação.

Em resposta, apelou Azambuja (Rolim de Moura) para o Tratado (Madri): os mesmos Jesuítas, disse, se tinham retirado da margem direita em cumprimento dele, sobre nunca haverem tido direito para ali se estabelecerem, tendo muito antes de criadas as Missões percorrido aquele País os Portugueses, aos quais, pois pertencia por jus de descoberta. Mas à vista da disposição que tinham manifestado os Jesuítas primeiramente para frustrar a intenção, e agora para questionar o claro e explícito sentido de um Tratado solene, pareceu-lhe acertado refazer uma estacada, talvez primitivamente plantada para defesa tanto contra os Portugueses como contra os selvagens.

Também de S. Rosa mudou para Nossa Senhora da Conceição o nome e invocação do lugar. Para uma simples Santa não era afronta ceder o passo à rainha dos anjos, e com a mudança ficaram encantados os soldados, sendo esta no Brasil a designação favorita para Nossa Senhora e tendo nela provavelmente fé o mesmo D. Antônio (Rolim de Moura Tavares). Demorou-se este dois meses, dirigindo e ativado as obras, e dormindo na sua canoa todo este tempo, depois voltou a Vila Bela deixando a comandar o Posto um oficial inferior com vinte homens de cavalo e dez infantes, um indivíduo designado como aventureiro, um Capelão, e número suficiente de negros para os trabalhos e serviço da guarnição. Passando pelas Pedras, mandou de reforço para a Conceição toda a gente que ali estava, e enviou uma canoa armada pelo Rio abaixo a aguardar além da embocadura do Mamoré, outra que se esperava do Pará com munições, que não era prudente deixar sem escolta na forma que estavam as coisas. (SOUTHEY)

Don Alonso Verdugo, Governador de Santa Cruz, foi pessoalmente até a Fortaleza Nossa Senhora da Conceição protestar contra a ocupação da região pelos portugueses, sem que os respectivos Comissários da “Comissão marcadora dos Limites” a tivessem sancionado. Como na oportunidade Rolim de Moura se encontrasse em Vila Bela, Don Alonso Verdugo enviou, para encontrá-lo, seu emissário, o Mestre de Campo, José Nunes Cornejo, que lá chegou em 01.11.1760, onde foi recebido com toda a pompa pelo Governador Rolim de Moura.

Rolim de Moura respondeu ao emissário de Don Alonso que o Tratado de Madri acordara que o lado Oriental do Rio Guaporé era território português, sendo, portanto, desnecessária a confirmação por parte dos Comissários da Demarcação. Don Alonso Verdugo insiste e envia, novamente, em novembro de 1761, novos emissários: D. José Franco e o Capitão José de Mansanilla, desta feita protestando mais veementemente e aventando a possibilidade de enfrentamento.

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Uns cinco meses depois da sua volta, soube Azambuja (Rolim de Moura) ser o Governador de S. Cruz de La Sierra D. Alonso de Verdugo, acompanhado de alguns oficiais e soldados chegado à Conceição para conferenciar com ele, mandando por não o haver encontrado ali o Mestre de Campo D. Joseph Nunes Cornejo a Vila Bela. Foi este oficial recebido com a cerimoniosa cortesia da diplomacia europeia, visitando-o Azambuja nos seus aposentos, acompanhando à Igreja a ouvir Missa, dando-lhe um jantar público no palácio, e oferecendo-lhe à noite um baile de máscaras e uma ceia.

Mas assim que o Espanhol apresentou um protesto contra a ocupação do território de S. Rosa, sobre fundamento de pertencer à Espanha até a chegada dos Comissários da Demarcação, entregou-lhe Azambuja um contramemorial, sustentando ter cessado o direito dos Espanhóis no momento de assinar-se o Tratado (Madri), havendo eles mesmos reconhecido isto com a sua retirada da margem direita, sobre pertencer o terreno aos Portugueses pelo primitivo jus de descoberta.

Doze meses se passarão, até que do Governador de S. Cruz chegou segundo protesto, que obteve igual resposta. Nenhuma idéia tinha Azambuja de que pudesse vir o Tratado a ser anulado, e ainda menos podia recear rompimento entre as duas coroas, mas os Jesuítas falavam em vindicar (reivindicar) os direitos da Espanha se continuassem as representações a ser desprezadas; constava que fundiam eles artilharia nas Reduções, e embora os Portugueses pouco temessem estas peças, dizendo que haviam de ser os índios bem tacanhos artilheiros, e pouco melhores os homens de S. Cruz, caso também saíssem a campo, julgou o Governador do seu dever precaver-se contra o perigo. (SOUTHEY)

Preocupado com a possibilidade de um conflito iminente, Rolim de Moura solicitou reforços ao Capitão General do Pará Manoel Bernardo de Melo e Castro. Em fevereiro de 1762, Rolim de Moura, depois de receber de Melo e Castro um reforço de 30 militares e munição do Pará, transformou o Destacamento de Conceição em Forte Nossa Senhora da Conceição. Rolim de Moura, depois de ter sido informado da fundição de peças de artilharia na missão espanhola de São Pedro e a intensa movimentação de embarcações no Rio Guaporé, resolveu organizar em agosto de 1762, uma expedição ao Forte Nossa Senhora da Conceição. A expedição partiu de Vila Bela, em 25.08.1762, chegando ao seu destino em 13.09.1762. Dois anos depois de sua criação, o Forte contava com um efetivo de 133 homens.

Mandou, pois, para Conceição quantos soldados pôde dispensar da escassa guarnição de Mato Grosso, requisitando do Governador do Pará trinta infantes e algumas munições de guerra. Não era sem motivo que assim se mostravam ansiosos os Jesuítas de desalojar da sua vizinhança os Portugueses. Por mais fácil que fosse a vida dos índios nas Reduções, onde abundantemente se lhes supriam todas as necessidades, sem que jamais tivessem de cuidar em si nem no dia de amanhã, o amor da mudança, o desejo da novidade, e talvez um enfado da disciplina moral, debaixo da qual viviam, e da perpétua inspeção a que estavam sujeitos, faziam-nos desertar aos bandos para a guarnição, onde o Capelão os tomava ao seu cuidado espiritual e o Governo ao seu serviço.

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Não se teria desta forma acoroçoado (animado, incitado) a deserção, se os Portugueses não houvessem tido por coisa mui justa usar destas represálias contra os Jesuítas, que tinham tirado os naturais da margem direita.

Em agosto do ano seguinte (1762), foi Azambuja visitar a guarnição. Compunha-se ela, depois de todos os seus esforços, de sete oficiais, trinta e quatro praças de cavalaria, vinte e um infantes, seis aventureiros e sessenta e cinco negros. Deu-se o Governador o maior trabalho em disciplinar esta gente. Traçou-se um forte pentagonal, mas não foi possível construir-se antes de concluídos os quartéis.

Para prevenir todo perigo de surpresa, montou-se uma guarda regular na estacada como em tempo de guerra, e canoas de vigia rondavam o Rio para baixo do Forte até à Foz do Mamoré, e para cima até à do Baures. Em fevereiro (1763), chegou do Pará um reforço de vinte e seis homens, mal providos de tudo, mas o todo compunha agora uma força não para desprezar-se, atento o lugar em que se reunira, e a espécie de hostilidades que se receavam. (SOUTHEY)

A Guerra dos Sete Anos ultrapassou as fronteiras europeias e exacerbou os conflitos na América. Os espanhóis concentraram suas tropas tentando recuperar as antigas Missões à margem direita do Guaporé. O efetivo das tropas portuguesas no Forte Nossa Senhora Conceição era, agora, de 260 homens, formados por uma Companhia de Dragões e Sertanistas. Rolim de Moura ampliou sua força com mais dois Corpos de Voluntários compostos de companhias de pedestres e aventureiros.

Companhias de Pedestres: eram formadas por bastardos (filhos de brancos com índios), mulatos (filhos de brancos com negros) e caborés ou caburés (filhos de negros com índios), preferidos por serem excelentes rastejadores. Geralmente andavam descalços e usavam como armamento uma espingarda sem baioneta, uma bolsa e uma faca de caça. (Nota do Autor)

Companhias de Aventureiros: eram sertanistas práticos em entradas na mata para capturar nativos. “Os soldados que eu chamo Aventureiros são vários sertanistas que havia por este Rio, e que antes da minha chegada ao Mato Grosso viviam de fazer entradas ao sertão e buscar gentio; e outros serviam aos Padres castelhanos na mesma diligência, ou de outros misteres nas Aldeias. A estes mandei assentar praça com o título de Aventureiros, dando-lhes o soldo de Dragões sem farda”. (Carta de Rolim, de 30 de setembro de 1762).

Em abril, os espanhóis começaram a agrupar suas forças na Barra do Rio Itonamas. O Sargento de Infantaria Pedro de Figueiredo de Vasconcelos, enviado por Rolim de Moura para avaliar o poder espanhol, informou que existiam aproximadamente 800 homens, grande quantidade de armas, munições e peças de artilharia. No dia 16 de abril de 1763, os castelhanos receberam reforço de 40 canoas, com mais homens e apetrechos de guerra. As tropas espanholas, agora em torno de 1.200 homens (alguns autores estimam em 5.000), iniciaram simulações de assalto ao Forte Nossa Senhora da Conceição. Rolim de Moura, novamente, pediu reforço ao Governador do Pará.

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Umas três semanas depois, trouxe a canoa de vigia aviso de se terem visto vestígios de grande e recente acampamento perto da embocadura do Mamoré; nada mais se descobriu, apesar de visitado por vezes o sítio, até princípios de abril, em que começaram as inundações, mas era claro ter tido lugar algum movimento considerável cumprindo continuar a vigiar.

Por este tempo, nada mais tinha a guarnição para rações senão legumes e presunto, nada oferecendo do seu lado as terras com que se pudesse contar, enquanto que o País das Missões abundava em gado. Comprá-lo era impossível, atento o humor de que estavam os Jesuítas, e entrar-lhes pelas terras adentro para apreender reses seria um ato de guerra direta; mas também havia ali gado bravo, e esse podia-se caçar sem cometer maior ofensa do que uma transgressão de fronteira que podia até passar despercebida. Saiu, pois, a esta diligência um Cabo com vinte e dois homens, sendo metade índios. Subiram todos o (Rio) Itonamas, fizeram grande caçada e por três vezes remeteram para o Forte o seu produto.

Tinha-se-lhes mandado Ordem de Recolher, por haver a canoa de vigia dado rebate (sinal de aparecimento do inimigo), quando um troço (tropa) grande de Espanhóis e índios, atravessando nas suas canoas o pantanal, a caminho de S. Pedro para Itonamas, avistou o acampamento à margem, aproximando-se dele com tanto segredo, que surpreenderam o Cabo e nove homens da sua gente. Caçavam os camaradas nas florestas, nem voltaram senão depois de terem sido levados os prisioneiros: ida era também a canoa e quanto lhes pertencia. Só lhes restava agora atravessar como pudessem as matas e as águas, passando a nado os Rios e dirigindo a marcha pelo tino, até que, após uma semana de rudes fadigas, chegaram à guarnição quase exaustos de trabalhos e fome.

Pouco antes da sua chegada, tendo o Capelão saído com a sua escopeta, avistou uma porção de canoas à embocadura do Itonamas, e multidão de gente em terra. Ao saber disto, mandou Azambuja sair uma canoa a reconhecer e os espanhóis a mandaram retirar imediatamente, dizendo que não deixariam passar ninguém Rio acima, mas o batel (embarcação) aproximara-se o preciso para ver que havia artilharia. Foi então Azambuja em pessoa com duas canoas armadas, acercando-se com rufo de tambores. Ao chegar perto, ouviu-se um tiro e uma bala lhe veio cair a breve distância da proa; tão rude saudação o obrigou a demandar terra.

Passou ele ali a noite, que já vinha fechando, e de manhã mandou um oficial a perguntar ao Comandante espanhol qual a razão deste procedimento. Informou-o o espanhol de que havia dezesseis meses já que estava declarada a guerra entre Portugal e Espanha, sendo para estranhar que o Governador de Mato Grosso ignorasse tão importante sucesso. Na verdade, só se pode isto explicar supondo que o portador da notícia tivesse pelo caminho sido vítima dos selvagens. Acrescentou o espanhol que vinham aquelas tropas às ordens do Governador de Santa Cruz de la Sierra, que se achava em pessoa à Foz do Mamoré, com maior força; que o fim da expedição era expulsar de Santa Rosa os portugueses, enquanto o Governador de Charcas marchava com cinco mil homens contra Mato Grosso; e que as Praças mais fortes de Portugal tinham caído em poder dos espanhóis, cuja metade já era do reino (espanhol).

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Más novas eram estas para Azambuja, porquanto por mais exageradas que fossem numas coisas e falsas em outras, não havia que duvidar ter-se feito daquelas bandas algum grande e extraordinário esforço. A hoste, que ele tinha diante de si, exclusivamente composta de índios, não podia ser menor de setecentos homens, armados de espadas e mosquetes, contando-se oito peças de artilharia. Mandou-se agora explorar também o acampamento sobre o Mamoré; e se, como afirmara o oficial, se dirigisse um ataque simultâneo contra Mato Grosso, tão impossível era ao Governador tomar medidas para proteger Vila Bela e Cuiabá, como obter dali socorros na sua própria situação perigosa. Mas bem sabia Azambuja quão difícil era trazer de Charcas um exército, e quão improvável obrarem os Espanhóis com uma energia tão pouco de acordo com os hábitos em que desde muitas gerações tinham caído. Fosse como fosse, outra alternativa não lhe restava senão deixar-se ficar e sustentar o novo estabelecimento, onde a sua presença era na verdade a melhor defesa.

Estacionou uma lancha armada e duas canoas ligeiras a observar o inimigo, e voltando ao Forte pôs o bastão de Comandante com grande solenidade nas mãos de Nossa Senhora da Conceição, suplicando-a que sobre si tomasse a defesa daquela Praça, que os fiéis Portugueses tinham dedicado ao seu nome, e colocado debaixo do seu especial padroado. Neste ato de idólatra devoção beberam os soldados quiçá mais confiança do que se lhes houvessem duplicado o número, sendo crível que apelando para esta superstição fosse tanto a própria fé como a política que guiou Azambuja. Mas nem por isso se descuidou ele de recorrer ao auxílio humano. Despachou para o Pará seis índios escolhidos que, apesar de acharem um acampamento espanhol na junção dos Rios, espreitaram tão bem a ocasião, que passaram por ele sem serem pressentidos.

Tinham os Espanhóis atiladamente (sagazmente) consertado suas medidas, tencionando com um armamento interceptar os socorros que pudessem vir do Pará, e com o outro cortar aos Portugueses as comunicações com Vila Bela. Podiam eles, abastecidos de víveres das Reduções, facilmente manter este bloqueio enquanto que, limitada à sua própria margem, ver-se-ia a guarnição em míngua de munições de boca e de guerra, podendo assim ser reduzida sem se ferir um golpe.

Daí a pouco, soube Azambuja ter o armamento de cima recebido um reforço de quarenta canoas, quase todas grandes, parecendo agora preparar-se para fazer uma demonstração contra a Praça. Inferior em número como era a sua força, sabia ele que até nos negros podia fiar-se quanto à firmeza, não sendo provável que os canoeiros índios do inimigo sustentassem o fogo: nesta confiança, pois, tripulou a sua flotilha, composta de três lanchas e quatro canoas, embarcou, meteu o Capelão a bordo, e valorosamente ofereceu batalha aos Espanhóis.

Jogavam eles jogo mais seguro, rejeitando, pois a arrojada oferta. Durante a ausência do Governo evadiu-se de noite com dois índios numa canoa um covarde traficante do Pará, por nome Joaquim de Matos, abandonando as suas mercadorias. Era certo que, se este homem lograva efetuar a sua fuga pelo Rio abaixo, havia de representar como desesperada a condição do Forte, a fim de desculpar-se para com os seus credores, cujas fazendas sacrificara.

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Mandou-lhes, pois, Azambuja uma canoa no encalço, não fossem as falsidades do fugitivo impedir o Governador do Pará de mandar socorro. Também para Vila Bela mandou aviso, fazendo constar em Mato Grosso e Goiás o seu perigo, não fossem os colonos do curso superior do Guaporé expor-se a cair nas mãos do inimigo, aventurando-se sem escolta como tinham de costume. O portador destes despachos tomou numa canoa pequena por sobre as terras inundadas, entrando ao nono dia no Rio acima da estação dos Espanhóis, e efetuando assim a sua viagem.

Elevava-se agora toda a força da Conceição a 244 homens, entre os quais havia 24 índios do Pará, e 114 negros. A estes nem valor, nem atividade, nem inteligência faltava, mas eram boçais (que tinham pouca educação) pela maior parte, e por isso pouco exercitados ainda para servirem como soldados, sobre achar-se então doente um sexto do número total. Fossem quais fossem os seus sentimentos debaixo destas circunstâncias desanimadoras, não mostrava Azambuja senão confiança, comunicando-a à sua gente. Vendo que requeriam os reparos da estacada mais tempo e trabalho do que era possível aplicar-lhes, disse aos soldados que a deixassem como estava, que não careciam de fortificações os Portugueses, enquanto tivessem armas nas mãos.

Tinham as águas atingido agora a sua maior altura, sufocava o calor, e intolerável era a praga dos insetos. Aqui e ali somente, de um e de outro lado do Rio aparecia alguma eminenciazinha, surgindo das águas qual Ilha. Destas havia uma da banda dos Portugueses defronte da Barra do Itonamas e do Porto, em que estava “surta” a flotilha espanhola. Cobriam-na árvores em parte e a Azambuja pareceu possível levantar ali trincheiras, de onde fizesse jogar contra o inimigo alguma artilharia. Com grande dificuldade e algum perigo se alcançou o sítio, vadeando através de matas inundadas, mas ao principiar-se a cavar logo brotava água debaixo da enxada, sendo forçoso desistir da empresa.

Neste tentame (tentativa) de necessidade haviam de ser descobertos os Portugueses, podendo ter sido seriamente molestados se da parte do inimigo houvesse ao menor a vulgar vigilância, e com isto lhes cresceu a confiança, vendo a negligência dos Espanhóis, e a sua inatividade, depois dos grandes esforços que se deviam ter feito para reunir tão grande força.

Veio ainda animá-los mais a chegada de nove camaradas, que tinham sido feitos prisioneiros, uns por ocasião da caçada, outros descendo o Rio, ignorantes do que se passava. Tinham-nos tratado mais como malfeitores do que como prisioneiros, e depois de retidos por algum tempo com cordas ao pescoço, e aos pés e mãos, enviados para S. Maria Madalena em duas canoas, sob a guarda de dois Espanhóis e trinta índios, conseguindo os Portugueses porém uma noite pelo caminho desamarrar as cordas, tomadas as armas da escolta, a haviam posto em fuga, e voltado ao Forte. (SOUTHEY)

Tendo em vista a enorme superioridade numérica dos castelhanos, Rolim de Moura optou por uma Guerra de Movimento realizando ataques-relâmpago com o claro objetivo de inquietar e deixar as tropas espanholas sem víveres necessários para a subsistência.

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No dia 5 de maio de 1763, determinou ao Tenente de Dragões Francisco Xavier Tejo, acompanhado de 10 soldados, um aventureiro, três pedestres, oito nativos e 17 remeiro-defensores escravizados que realizasse um golpe de mão na missão de São Miguel, a mais próxima das missões envolvidas no conflito e situada na retaguarda espanhola, às margens no Rio Baures, afluente da margem esquerda do Rio Guaporé.

A patrulha parte, no dia 6 de maio, em uma canoa de guerra, uma igarité (canoa de um mastro e de dez a 15 palmos de largura) e três canoinhas. Na madrugada do dia 8 de maio, atacaram a Missão de São Miguel, atearam fogo nas casas e armazéns, saquearam, apreenderam duas canoas de mantimentos que seriam enviadas ao Itonamas, aprisionaram os Padres Francisco Espino e João Roiz, e os conduziram ao Forte de Conceição.

No solo impidió cosechar esta mies, sino que también perturbó otras varias reducciones adyacentes, de la otra parte del río, es decir en territorio del rey de España, de manera que durante muchos días nos vimos forzados por temor a alguna incursión – a abandonar la reducción, huir a los bosques con nuestros indios y vivir allí en la intemperie.

En la reducción mas cercana a ellos demostraron sus propósitos sobre las restantes: estaba dedicada a San Miguel y el mismo día de su festividad, en el momento de ir a comenzar a misa, la redujeron a cenizas, sin excluir el templo, llevándose como cautivos a sus misioneros y a todos los indios; no dejaron libre a uno de los Padre (pues el otro falleció en La cárcel, como efecto de los infortunios y del hambre) hasta al cabo de un año. (EDER)

No dia 15 de maio, Rolim de Moura, seguindo a estratégia adotada, realizou uma emboscada que resultou na morte de 11 castelhanos e 3 nativos. Os luso-brasileiros mantiveram a iniciativa dos combates atacando pequenas frações castelhanas. A 22 de junho de 1763, os reforços solicitados a Vila Bela, em 19 de abril de 1763, chegaram ao Forte Nossa Senhora da Conceição. Entre o pedido de reforços e sua chegada ao Forte decorreram pouco mais de dois meses.

O reforço de Villa Bela, de cerca de 230 homens, chegou a 22 de junho de 1763, e foi organizado, em grande parte, pelos moradores de Cuiabá. De Villa Bela seguiram Bento Dias Botelho, João Raposo da Fonseca, Sebastião Pinheiro Raposo, filho do brigadeiro Antônio de Almeida Lara e o Padre José Manoel Leite; e de Cuiabá, Antônio de Pinho Azevedo, Vicente Rebello Leite, Ignácio Maciel Tourinho, Joaquim Lopes Poupino, Miguel José Rodrigues e Antônio Pereira, com uma companhia de índios mansos e outra de agregados de José Paes Falcão. (FILHO)

Cem homens, comandados por Manoel da Ponte Pedreira, Ajudante de Ordens do Capitão General, no dia 26 de junho, marcham para a Barra do Itonamas. A Companhia de Negros portava machadinhas que foram usadas para abrir caminho na mata e seriam empregadas a derrubar as paliçadas espanholas. Como manobra de cobertura, foram empregadas duas frotas de canoas, a de jusante comandada por Rolim de Moura, e a de montante, mais numerosa, comandada pelo Tenente Francisco Xavier que aportou à frente do acampamento espanhol simulando um ataque frontal.

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O ataque teve o sucesso almejado graças ao fator surpresa, movimentação de tropas, simulação de ataque fluvial e retirada rápida. Os espanhóis confiavam por demais na sua superioridade bélica e numérica e, por isso, não guarneceram adequadamente suas posições defensivas nem providenciaram patrulhas noturnas.

Com o seu exemplo, parece Azambuja ter infundido em todos os ramos do seu Governo, vigor raras vezes manifestado no Brasil. Apenas o Capitão-mor de Vila Bela, João da Cruz, soube do perigo que o Governador corria, logo envidou todos os esforços para aprestar reforços. Acima do Itonamas, se estabeleceu um Posto, onde podiam ser recebidos os suprimentos, e de onde podiam os Portugueses operar ofensivamente contra os seus desleixados contrários. Daqui fizeram uma correria contra a Redução de S. Miguel, que tinha sido removida da margem direita, e continha oitocentos vizinhos. Foi tomada, saqueada e queimada a Aldeia. Alcançaram as chamas a Igreja, que os conquistadores queriam preservar do incêndio, não podendo, porém conseguir, salvaram as coisas sagradas, transportando-as com a imagem do Arcanjo para o seu posto avançado, que daí se ficou chamando Pouso de S. Miguel.

Apoderaram-se de fornecimentos destinados ao exército de Itonamas, fazendo também boa presa em açúcar, e outros objetos fabricados pelos neófitos. Os Jesuítas foram levados para a Conceição, a fim de serem trocados pelos prisioneiros que ainda estavam em poder, mas tendo eles sido remetidos para Chuquisaca, foram os Padres enviados para o Rio de Janeiro por via de Vila Bela e Cuiabá.

Mantiveram-se os Portugueses na posse do território retirado dos de S. Miguel, que abundava em bois, cavalos e porcos, de modo que se viam agora bem abastecidos de víveres, sendo tão grande o terror incutido por esta incursão, que a redução de S. Martinho voluntariamente se lhes submeteu. Em fins de junho, uns três meses depois do aparecimento do inimigo, chegou de Vila Bela um grande reforço de vinte e oito canoas, vindo nelas também alguns sertanejos, práticos do País das Missões, excelentes atiradores e ótimos guias. Assim reforçado, aventurou-se Azambuja a acometer os Espanhóis no seu campo, passando por detrás de um espesso matagal e a volta de um Lago, para cair-lhes em cima pela retaguarda, enquanto a sua flotilha procurava atrair-lhes a atenção para outro lado.

Era por demais forte a estacada, mas a ousadia do ataque, posto que infrutífera, desanimou o inimigo, cujos planos de operações tinham sido inteiramente frustrados pela atividade dos Portugueses, estabelecendo-se no Pouso de S. Miguel. Retiraram-se, pois os Espanhóis da sua estação para a nova Redução de S. Rosa, não tardando também a ser levantado o acampamento do Mamoré, até que voltando todos a S. Cruz, terminaram as hostilidades. Retiraram-se então também os Portugueses da margem esquerda. Entretanto se celebrara a Paz de Paris, estipulando-se que se alguma coisa mudada houvesse nestas colônias, se reporia tudo no antigo pé em que estava antes da guerra, conforme os tratados então existentes e agora renovados. Ratificaram esta estipulação as cortes de Madrid e Lisboa. (SOUTHEY)

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Virgílio Corrêa Filho, baseado nas Cartas de Rolim de Moura, relata:

Pombeiros insignes, os seus “aventureiros” comunicavam-lhe, de contínuo, os menores movimentos dos inimigos que, a 17 de abril, sulcaram o Guaporé nas suas 40 canoas. Rolim esperou o ataque baldadamente, e no outro dia saiu, em 7 canoas de guerra, a oferecer-lhes batalha, que evitaram. Compreendeu que pretendiam fazê-lo render-se pela fome, cortando-lhe a comunicação com Villa Bela. Resolveu evidenciar-lhes, de modo enérgico, a inanidade completa do plano. A 5 de maio, despacha escolhido pelotão que, à noite, rompe habilmente o cerco e sobe o Baures até a missão de São Miguel, onde chega na madrugada de 8, “tanto a tempo que aprisionou os Padres João Roiz e Francisco Espino, que a governavam, e rende os índios todos sem resistência, que são 600 para 700 almas”.

Para tal gente, o bloqueio planejado não passava de brincadeira. Pôde-se levar a sua ofensiva até o interior do território inimigo, onde arrasou a Aldeia de S. Miguel, mais facilmente Rolim conseguiria corresponder-se com os seus jurisdicionados de Vila Bela, que lhe mandaram reforço de gente e víveres. Contando já cerca de 500 homens, resolveu a 22 de junho acometer o inimigo na própria paliçada em que se embicara, em três colunas, a primeira fluvial, sob o seu direto comando, à jusante; outra, confiada ao Tenente Tego, com maior número de canoas, à montante; enquanto a última, de cem homens escolhidos, comandados pelo ajudante de ordens realizaria o assalto.

Afoitos em demasia, os assaltantes transgrediram as prudentes recomendações do militar, que também era o Governador e foram, de peito aberto, expor-se desvantajosamente à arma contrária. Ainda assim escalaram a primeira paliçada, mas foram vigorosamente contidos no arremesso à outra, interna. Depois de hora e meia de fogo, quando o inimigo já se dispunha à rendição, retiraram-se com perda de 21 mortos e alguns feridos, sem pressentir que já lhes sorria a fortuna, prometendo-lhes vitória. Para contrabalançar semelhante dano, Rolim enumerou vantagens não pequenas.

O arrasamento da Aldeia de São Miguel e o assalto à trincheira de Itonamas, onde pereceu o Padre Francisco Xavier Irraes — o instigador dos seus comandados à luta —, infundiram ao inimigo tamanho pavor que, após a refrega, chistosamente refere o Capitão-general “na missão de S. Pedro se não atrevia o Superior a ir se lavar no Rio, sem levar consigo uma grande quantidade de índios armados”. Aliás, a malquerença de Rolim aos Missionários põe-se de manifesto a cada passo da sua correspondência. (FILHO)

D. Rolim de Moura envia, em 30 de abril de 1764, Carta a D. João Manuel de Mello, nos seguintes termos:

Um castelhano de Buenos Aires, que se achava dentro da paliçada de Itonamas, no dia do ataque, disse que nele havia logo ficado no terreno 160 homens, e muitos feridos dos quais, na Missão de Madalena morreram 17, fora os que foram morrer nas Missões; donde se vê que os castelhanos não podiam ter dentro da paliçada menos de 500 para 600 homens; (...).

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Aqui é necessário lembrar que os nossos eram por todos muito poucos mais de 100; e destes, soldados unicamente 24 Dragões e seis infantes, e tudo mais pedestres, mulatos, negros, escravos e carijós, com alguns paisanos brancos; sem embargo do que, a nossa perda foi de 21 na ação. (FILHO)

As incursões anteriores e a corajosa investida contra a trincheira do Itonamas forçaram a retirada definitiva das tropas espanholas no dia 03.11.1763. O grosso das tropas luso-brasileiras retirou-se do Forte Nossa Senhora da Conceição e retornaram para Vila Bela no dia 03.01.1764. Rolim de Moura vencera uma tropa de efetivo numericamente superior e melhor equipada e municiada, graças às estratégias de combate utilizadas bastante originais para a época.

Ao termo de sua proveitosa administração, Rolim de Moura foi agraciado com o título de Conde de Azambuja, a graduação de Marechal de Campo, nomeado para a Capitania da Bahia e, mais tarde, Vice-Rei do Brasil.

- Capitão-general João Pedro Câmara

Assumiu a Capitania do Mato Grosso, seu sobrinho, Capitão-general João Pedro Câmara. Câmara, nomeado em junho de 1762, chegou a Vila Bela em dezembro de 1764. A Metrópole traçara para o novo Capitão-general um Programa de governo: previa a ampliação da produção de ouro, povoamentos das áreas de lavra, desenvolvimento das comunicações, incremento da criação de gado e, no campo militar, a consolidação das fronteiras do extremo Oeste. O período conturbado enfrentado por Câmara não permitiu, no entanto, que o Governador se dedicasse às questões administrativas.

Câmara, em fevereiro de 1766, fez uma viagem até o sítio do antigo Destacamento das Pedras Negras onde resolveu guarnecer o local com 40 soldados de ordenança.

Em 15.06.1766, visita o Forte Nossa Senhora da Conceição, onde resolve ativar os trabalhos de reconstrução e adestramento das tropas preparando-se para uma possível investida por parte dos espanhóis.

Antônio Leôncio Pereira Ferraz, na sua “Memória sobre as fortificações em Mato Grosso”, relata:

(...) a elevou Antônio Rolim no mesmo local onde ele destruíra cinco anos antes a missão espanhola de Santa Rosa, situada à margem direita do Guaporé, em frente à boca do Itonamas, onde teria havido um entrincheiramento e paliçada, procurando, já em 1756, assegurar a posse daquele ponto conquistado com a criação de um Distrito Militar. Foi construída e armada com material de guerra vindo do Pará pela via fluvial do Madeira, nada se sabendo quanto a seu primitivo traçado, pois que a primeira notícia que a seu respeito se tem data da época em que nela introduziu modificações um outro Capitão General, João Pedro da Câmara, que lhe deu a forma abaluartada, de sistema Vauban, medindo o Corpo principal do forte 40 braças de frente por oitenta de profundidade.

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O escritor Virgílio Corrêa Filho, no Volume IV de sua obra “As Raias de Matto Grosso – Fronteira Occidental”, faz um relato detalhado das ações promovidas pelo Capitão-general João Pedro Câmara para defender a Fortaleza de Nossa Senhora da Conceição frente às tropas castelhanas de D. Juan de Pestana.

Constou então que cinco meses antes, de Chiquisaca vieram 500 homens, com um engenheiro que planejou habilmente a ofensiva.

Ao seu parecer, o Posto de Nossa Senhora da Conceição não resistiria a sério ataque por tropas regulares, ao mesmo tempo que outras fizessem incursões pelos Distritos de Vila Bela e Cuiabá. O plano era, em verdade, inteligente e, executado, teria comprometido a segurança da Capitania. Bem o percebeu Câmara, que acha exagerado o menosprezo com que Rolim considerava a capacidade militar do inimigo.

Ao contrário, afigurava-se-lhe seriamente ameaçada a integridade do território que governava. Balanceia os recursos de que dispõe. Além da artilharia que trouxe, aprecia a gente que lhe constitui a “tropa”, composta das Companhias de Dragões e de Pedestres, para as quais solicita oficiais, observando que “para exercer semelhantes postos são os filhos da América os mais aptos, e entre eles os Paulistas, porque todos têm a mesma habilidade dos soldados” (Carta de 10 de outubro de 1765), afeitos como são aos múltiplos serviços da vida sertaneja.

Explora as cercanias de Vila Bela, que verifica estar circulada pelas Missões de Chiquitos; acompanha a atividade militar do vizinho que, de São Pedro, onde o Presidente da Real Audiência dirige em pessoa o funcionamento do arsenal, se irradia para as outras Missões ao levante.

Em Carta de 19 de junho de 1766, Câmara informa que as quatro missões de Baures estão guarnecidas por cem soldados cada uma; as duas de Itonamas por 200 e um Coronel de Engenheiros as de São Pedro e Exaltação, muito maior número.

Em oposição a tamanho aparato bélico, mobiliza Câmara da melhor maneira os seus recursos. Além do que via, nada mais era necessário para lhe esporear o zelo; entretanto, por essa época, recebe a Carta em que Mendonça Furtado (Carta de 17 de dezembro de 1765) lhe recomenda toda a vigilância e cautela na fronteira, pois que pela Europa as coisas não marcham a contento, e dão que pensar aos governos ...

A sua gestão se desenvolvia afinal no “regimen” da paz armada, imposto pelo vizinho arreliento (impertinente). Destarte (deste modo), em fevereiro de 1766, roda pelo Guaporé, até o “Sítio das Pedras”, que guarnece com 40 soldados de ordenança; de regresso a Vila Bela, vai examinar o Vale de Barbados, prevenindo surpresas desagradáveis; recomenda ao Capitão-mor de Cuiabá que se mantenha alerta; e segue em junho para o Forte de Nossa Senhora da Conceição, onde chega a 15.

Arrola os elementos que possui para a defesa: “6 canoas armadas em guerra com duas pecinhas em cada e quatro bacamartes, e um bote com 30 soldados com uma peça de libra na proa e outra de 3/4 na popa”, para impedir a entrada dos castelhanos no Guaporé.

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Chega, mais tarde, a 3 de novembro, apreciável reforço do Pará, de 100 soldados, que lhe dobram o efetivo da guarnição. Ativa o aumento das obras da Fortificação, que os castelhanos cobiçavam, quando os vê aproximarem-se em marcha agressiva (os castelhanos chegaram em setembro de 1767).

Cerca de 4.000 homens, “fardados de azul com canhões encarnados, e com muito bom armamento”, acampam em frente a Nossa Senhora da Conceição, de onde o General Chefe destaca uma companhia de granadeiros e de fuzileiros para ocuparem Santa Rosa Nova, duas léguas à jusante da Fortaleza, mantendo junto a si o grosso da força, em terreno pantanoso, que entrincheirou, aí acantonando 8 peças de bronze.

Câmara enganou-se na estimativa, ou foi enganado pelos informantes. O efetivo dos castelhanos não atingia, no começo da marcha, a dois mil, em cujo número entrava um Batalhão organizado em Potosi, às ordens de Aymenrich, um de Chuquisaca, sob o Comando de Espinosa, uma Companhia de Granadeiros dirigidos por Pascoal, que Ceballos lhe enviara juntamente com outros oficiais e marinheiros peritos no manejo da Artilharia (Defesa de Pestana). As moléstias e deserções e serviços esparsos dos destacamentos reduziram o grosso da força atacante a mil homens.

Esta informação de J. Câmara comprovou-se pelo depoimento de Pestana, quando justificou em Carta ao Vice-Rei de Lima, de 23 de abril de 1767, o fracasso da sua expedição. No arquivo do Estado encontra-se uma cópia desse depoimento, vertido para o vernáculo; bem que não autenticada, contém tantos pormenores a respeito da marcha militar, que não se pôde pôr em duvida a sua autenticidade.

Aí diz Pestana que chegando a São Pedro, a 21 de agosto, partiu a 15 de setembro, e acampou no Curral Alto, distante uma légua da Estacada de Santa Rosa, enquanto o Engenheiro D. A. Aymerich ocupava Santa Rosa a Nova, de onde explorou o terreno do ataque. Gastou o resto do mês e a primeira quinzena de outubro em preparativos, que lhe permitissem assestar a Bateria e dispor de balsas para a travessia do Rio.

Suspeitou Câmara que a encenação do General visava à concentração no Forte, dos destacamentos esparsos, aos quais, ao revés (contrário), determinou que não se afastassem dos seus postos, nem consentissem na travessia dos castelhanos, enquanto houvesse um soldado vivo.

Enfrentaram-se, por vários dias, os dois Governadores: o “General Presidente da Real Audiência da Chiquisaca”, cercado de luzido exército, e o Capitão General de Mato Grosso, com força dez vezes inferior, mas que se julgava mais perito na arte militar que o outro.

“Eu tinha grande esperança de ficar senhor da sua artilharia”, lembrou em Carta descritiva de tais sucessos, ao criticar a má escolha do lugar em que foi erguida a trincheira.

Em defesa do seu proceder, Pestana diz que Santa Rosa estava em muito melhores condições militares do que imaginava, podendo resistir a 15 dias de assédio, e por isso, dispondo apenas de 18 artilheiros e 484 balas, previu “sua derrota e último extermínio com a perda da artilharia, que era conseguinte, tudo com desonra das invictas Armas de S. Majestade”.

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Ademais, sabia que “o clima com as muitas doenças que produz é o melhor auxiliar que temos a nosso favor”.

Na Carta de Pestana, há passagens expressivas a este propósito... “reconhecendo que, com as penosas marchas desta cidade a Mojos, e especialmente com a maligna intempérie daquele clima, iam picando espantosamente as enfermidades na tropa...” refere-se ele ao que sucedeu em São Pedro, em cujo hospital “mal convalescentes ficaram mais de 250 homens tão mortalmente prostrados, os mais têm falecido” por fim, ao retirar-se, deixou nos hospitais “mais de 650 homens ou indivíduos de todas as classes...” e “nos sepulcros mais de 500 cadáveres, que na nossa tropa têm sido miseráveis vítimas da sua intempérie no breve espaço de 5 a 6 meses que durou a nossa jornada”.

Não se atemorizou, pois, quando, por um desertor, soube que o assalto estava marcado para o dia 22. Dispôs a sua gente à defesa e esperou debalde pela acometida. Constou-lhe depois que, nesse dia, veio um “postilhão (mensageiro) ao General”, com ordem de sustar as hostilidades.

O bombardeio deveria ter começado no dia 20, diz Pestana. Mas o recebimento da Carta de D. Pedro Ceballos, de 13 de julho de 1766, evitou a derrota castelhana. O Vice-Rei do Rio da Prata avisava que ao Rio de Janeiro tinha chegado o navio mercante “Príncipe S. Lourenço”, que saíra do Porto de Buenos Aires, com “um milhão de pesos e carga de couros”, que correriam grande risco se houvesse em Mojos rompimento com os portugueses, convinha, pois, evitar a luta.

Pestana resolveu, antes de iniciar as hostilidades, examinar com mais cuidado a sua força, de que existam apenas “748 homens acidentados, ou mal convalescidos faltando ao cumprimento de um mil, ou pouco mais que partiram de São Pedro, mais de 250 que morreram neste entremeio”; então reuniu o Conselho de Guerra, “que em 19 de outubro de 1766 se celebrou com a minha assistência, e com a dos Coronéis D. Antônio Aymenrich, Engenheiro dos Reais Exércitos, e D. João Espinosa Devalos Inspetor e Major General, e dos Tenentes Coronéis D. Antônio Pascoal, e D. Leão Glz. de Velasco, Comandante da Artilharia e D. Manoel Garcia Sargento Major destes Batalhões, e se deliberou somente por comum e unânime consentimento que não se rompesse o fogo e se suspendesse o ataque da estacada de Santa Rosa Velha”.

Mais tarde soube oficialmente o que se passara. D. Juan Victoriano Martines de Tineo, Presidente da Real Audiência de la Plata, refere-lhe (Carta de 15 de dezembro de 1767) que o seu antecessor, D. Juan de Pestana, diante da obstinada teimosia de Rolim de Moura em não desocupar o Forte da Conceição, como lhe solicitara seguidamente D. Alonso Verdugo, viera forçar pelas armas o que não conseguira pelos meios suasórios.

A expedição de Mojos foi organizada em virtude da Real Ordem de 10 de setembro de 1761, mandada executar pelo Vice-Rei a 11 de maio de 1765, quando já não havia causa de rompimento. Aliás, o governo espanhol, tão logo soube dos preparativos, condenou o plano, e mandou sustar qualquer investida, por ordem de 10 de junho de 1766, conforme diz Pestana.

Por coincidência, porém, recebeu, no próprio acampamento, onde já se aprestava para o assalto, ordem formal, em que o Rei, sabedor dos projetos belicosos dos seus súditos, desaprovou terminantemente; as lutas europeias não deveriam estender-se à America.

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Martines informa que é de 4 de julho de 1766 a Carta Régia, que paralisou a ofensiva dos castelhanos. Esta versão contraria a de Pestana, que deve ser entretanto a verdadeira. O Rei condenou, era verdade, a expedição, mas em Ordem que só foi recebida muito tempo depois destes sucessos.

A contramarcha dos expedicionários teve como pretexto a Carta de Ceballos, e como causa eficiente a inferioridade em que só julgavam estar, relativamente à força portuguesa. Pôs-se de manifesto em tal conjuntura o desânimo de Pestana que, por isso, foi substituído, no Comando, por D. Antônio Aymenrich, e na “Presidência de Charcas” por Pineo e ao mesmo tempo intimado a apresentar-se perante o Vice Rei, para o que deveria “seguir de S. Cruz de la Sierra pela via de Cochabamba sem tocar em a cidade de Prata nem em Potosi”. (Defesa de Pestana)

Câmara, espada embainhada, tomou da pena de diplomata para responder. Somente agora lhe era manifesto o desígnio com que viera à fronteira o “predecessor de V. Exª, D. Juan Pestana”, cuja marcha até então lhe parecera inexplicável, porquanto nenhum aviso recebera de hostilidades; muito se empenhara, em tais condições, para evitar nocivo rompimento, não consentindo que os seus soldados fizessem a mais ligeira provocação.

Jamais teve ordem do seu governo que fosse contrária às disposições do último “Tratado de Paz” (Carta de 10 de abril de 1768), por isso estranhou a aproximação do exército castelhano. Entretanto, não põe dúvida em desembaraçar a Barra do Itonamas, “todas as vezes que V.S.ª fizer retirar as suas tropas, e me mandar remeter os prisioneiros Portugueses”.

Quanto, porém, à Fortaleza, desconhece qualquer Ato de Armistício que obrigue a sua demolição. Aliás, nada mais tem feito que simples obras de conservação, embora se julgue autorizado a aumentá-la, se lhe parecer necessário. (Carta de 25 de junho de 1768)

Para lhe robustecer a convicção, viera a propósito a Carta em que Mendonça Furtado (Carta de 2 de maio de 1767) lhe recomendava a encetadura (iniciativa) de trato afável com os vizinhos, sem descuidar todavia das Fortificações defensivas, pois que “quanto mais respeitável e temida for a Fortaleza, tanto mais firme e segura será a Paz e tranquilidade por essas partes”. (FILHO)

Ante a ruína do Forte de Nossa Senhora da Conceição, devido ao rigor do clima equatorial e às investidas espanholas, a estrutura foi reconstruída a partir de 26.09.1767 e concluída em 1768.

O Sargento-mor do Real Corpo de Engenheiros José Matias de Oliveira, em 1768, afiançou, no seu Relatório, que o Forte fora edificado em local impróprio, onde faltava material adequado próximo à construção. O Governador Sousa Coutinho, entretanto, determinou o prosseguimento dos trabalhos que se prolongaram de 1769 a 1771, ano em que uma grande enchente do Rio Guaporé, causou-lhe estragos consideráveis.

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- Forte de Bragança

O terceiro Capitão-general do Mato Grosso, Luís Pinto de Souza Coutinho desembarcou em Vila Bela em 1° de janeiro de 1769 e tomou posse dois dias depois. Neste mesmo ano, o Governador Luiz Pinto mudou o nome de Forte Nossa Senhora da Conceição para Forte de Bragança. Com a grande enchente de 1771, o Forte teve suas dependências quase totalmente destruídas.

O Dr. João Severiano da Fonseca, autor da “Viagem ao Redor do Brasil”, que por ali passou em 1876, como membro da Comissão Demarcadora dos Limites do Brasil com a Bolívia, relatou:

diz que a cortina do lado de terra media 88 metros (de comprimento) e a muralha tinha de espessura 22 decímetros; as dos flancos conquanto menores, eram mais grossas dois decímetros.

O curto período em que governou, quase quatro anos, foi caracterizado pela calmaria reinante na fronteira, permitindo que ele implementasse as tão necessárias medidas administrativas que o Governador João Pedro Câmara não conseguira levar avante. Souza Coutinho estimulou a mineração, a lavoura, a criação de gado, instituiu o registro civil, resgatou parcela importante da dívida pública e alterou a denominação de diversas localidades à feição de suas homônimas portuguesas.

- Críticas ao Real Forte do Príncipe da Beira

A soberania e o respeito de Portugal impõem que neste lugar se erga um Forte, e isso é obra e serviço dos homens de El-Rei nosso senhor e, como tal,

por mais duro, por mais difícil e por mais trabalhoso que isso dê, (...) é serviço de Portugal. E tem que se cumprir.

(D. Luís de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres, junho de 1776).

Como as demais fortificações edificadas no Guaporé, a construção do Real Forte do Príncipe da Beira tinha como objetivo fortalecer a soberania lusitana naquelas longínquas fronteiras e garantir a segurança do deslocamento dos portugueses entre Vila Bela e Belém através dos Rios Madeira e Guaporé.

O julgamento a respeito da importância estratégica das Fortificações de outrora deve ser avaliado dentro do contexto em que foram projetadas e construídas. O Dr. João Severiano da Fonseca foi o primeiro a criticar severamente a construção do Forte em relação à sua localização e grandiosidade, depois dele, muitos outros se seguiram.

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Figura 53 – Forte Príncipe da Beira (Mapoteca Itamaraty)

CAPÍTULO III

O Forte do Príncipe da Beira

I

Em que pese a memória de Ricardo Franco, e sem receio do “ne sutor ultra crepidam” (não vá o sapateiro além do sapato), sou avesso ao juízo por ele emitido sobre o Forte do Príncipe da Beira, juízo que mais parece uma bandeira de misericórdia lançada como salvaguarda ao seu construtor. É na verdade imponente e grandiosa obra d’arte essa Fortaleza, construída conforme os preceitos da arte de guerra, todos, menos um; mas esse de ordem tal, que sua falta torna desnecessária a existência dos outros, e, por conseguinte, desnecessária, por absurda, essa formidável máquina de guerra. É, apenas, que está situado na mais imprestável posição. Apesar de erguido numa Colina, espigão ainda da Parecis que nela vêm morrer, aí, no Guaporé, é completamente invisível de quem desce o Rio e mal entrevista pelos que o sobem, que à custo só podem descortinar por sobre o cimo das matas o frontal da entrada e a linha superior do parapeito das Baterias da frente; o que não deixaria de ser uma vantagem, se por sua vez não fosse completamente invisível ao Forte o curso superior do Rio; e de pequena extensão, quando muito na primeira milha, o que descortina do seu curso inferior.

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Ao navegante que se lhe aproxima e o desconhece não é dado avaliar que soberba e alterosa mole (construção colossal) é; e, chegado ao Porto, é somente depois de galgar-se quase toda a ladeira, que ele se revela aos olhos, agora maravilhados do viajor, formidável, majestoso e imponente.

Qual a necessidade dessa obra monumental em tais regiões não se compreende, quando o Guaporé corre-lhe pela frente lateralmente atravancado de pedras, desde acima do Itonamas até cerca de trinta quilômetros abaixo do seu Porto; quando os terrenos fronteiriços são almargeais (sem préstimo) e brejões, impossíveis de serem habitados e transitados, e quando o leito do Rio com sumula dificuldade deixa uma cauda, como a que montamos, vencer-lhe as pedras e corredeiras; e quando enfim não poderia esperar agressão alguma pela direita, terrenos brasileiros encravados na mesma rede de vastos pantanais.

Que Rolim de Moura fundasse o Fortim da Conceição, compreende-se bem: era para defender a posição tomada aos castelhanos e firmar os direitos de posse à coroa portuguesa: e também se compreende que mais tarde buscasse-se essa Colina para o Posto Militar, visto aquele Fortim ficar sob as águas nas grandes enchentes do Rio. Mas para tais fins, e para servir de guarda ao Rio e defesa à sua navegação, um simples reduto bastava, naquele tempo que a artilharia ainda estava nas faixas da infância. O que não se pode compreender os motivos que induziram Luiz de Albuquerque a erguer essa formidável Fortificação num local onde, quando mesmo sua existência não fosse completamente nula pela posição nada convinhável (conveniente), seria desnecessária pela natureza do seu campo de ação.

Para servir de quartel, e tão somente, às tropas de vigilância, é máquina despropositada; se foi intentada para impedir a navegação aos espanhóis, nas melhores condições de êxito só o poderia fazer do Itonamas para baixo, ficando àqueles livre toda a mais navegação do Itonamas e do Baures para cima, e pelo Mamoré todo o resto do Guaporé e a própria navegação do Madeira.

Se ao menos tivesse sido erguida em Sítio donde fosse avistada, bastaria sua simples catadura (aparência) para infundir respeitoso temor; mas, a um século passado, como agora, invasores ou inimigos que se aventurassem nessas regiões de Rios encachoeirados, nem podiam vir tão numerosos, nem tão armados de máquinas de guerra, que fosse mister tal espantalho para conter-lhes os ímpetos.

Se no verão de 1766, Juan de Pestana pôde trazer um exército a acampar em frente ao Fortim da Conceição, a falta de águas, que deu-lhes trânsito por terra, trancava-lhes o Rio; e o adiantado da estação foi o principal inimigo que os fez desalojar e fugir precipitadamente.

II

É deveras imponente e majestoso; e confesso, a puridade (em segredo), que, ao contemplá-lo, tive pena, pesar verdadeiro, de existir tal monumento em lugar onde apenas um ou outro degredado, um ou outro selvagem — e o raríssimo viajante que, de necessidade, lhe chega ao Porto — terá ocasião de contemplá-lo.

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Ainda hoje, apesar de meio século de abandono, apesar de inservível por irem-se ruindo em escombros as suas dependências, apresenta-se tão grandioso que produz a mais inesperada surpresa a quem, galgada a Colina, vê, de repente, e quase de um jato, surgir, no meio do profundo fosso que o cerca, semelhando as arestas de seus baluartes às proas de gigantes couraçados, pelo bem traçado das linhas, a inclinação sobre o terreno e a cor férrea de suas muralhas, feitas de paralelepípedos dessa arcose quase ferruginosa, conhecida na Província com o nome de pedra canga.

Os paralelepípedos de “arcose quase ferruginosa”, a que se refere João Severiano, é um minério de ferro argiloso encontrado comumente no Estado de Rondônia, conhecido regionalmente com o nome de pedra canga, ou tapanhoacanga. (Nota do Autor)

É construído sobre um quadrado de cento e dezenove e meio metros de face, com quatro baluartes, no sistema Vauban, de cinquenta e nove metros sobre quarenta e oito na maior largura. As cortinas que os ligam dois a dois têm cada uma noventa e dois metros e quatro decímetros de extensão, à borda do fosso. Os baluartes eram conhecidos pela denominação de Nossa Senhora da Conceição, Santo Antônio, Santa Barbara e Santo André Avelino. O fosso varia na largura, guardando, porém, efetiva a profundidade de dois metros: na frente e flanco esquerdo é de trinta metros e dois decímetros de largo; junto aos baluartes tem de metro e meio a dois metros, exceção feita do da esquerda, Conceição, que é de nove metros. Em frente ao portão, atravessava-o uma ponte de trinta e um metros, parte da qual na extensão de quase quatro era levadiça e recolhia-se ao Forte. Fronteiro lhe ficava um revelim, e entre este e o fosso um caminho coberto.

O portão fica a meio da cortina de N.: na face Ocidental e paralela ao Rio há uma poterna (porta falsa) que se abre no fosso. Cada baluarte tem catorze canhoneiras; três em cada flanco e quatro em cada face. A gola é de vinte e dois metros; e de oito e dois decímetros a altura das muralhas da esplanada ao fosso. Esses dados, acima, foram coligidos pelo digno 1° Tenente Frederico de Oliveira, ao confeccionar o plano topográfico que graciosamente cedeu-me. Sobre o portão, na altura de dez metros e três decímetros, lê-se esta inscrição, a que já faltam algumas letras de cobre, antigamente dourado, e pregadas num retângulo de granito:

Iosepho I

Luzitaniæ Et Brasiliæ Rege Fidelissimo

Ludovicus Albuquerquius A Mello Pererius Cáceres

Amplissimæ Hujus Matto-Grosso Provinciæ

Gubernator Ac Dux Supremus

Ipsius Fidelissimi Regis Nutu

Sub Augustissimo Beirensi Principis Nomine

Solidum Hujus Arcis Fundamentum Jaciendum Curavit

Et Primum Lapidem Posuit

Anno Christi MDCCLXXVI

Die XX Mensis Junii

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O portão, que nunca foi colocado, devia ter a largura de dois metros e sessenta e seis centímetros; uma parede provisória o fecha em parte, em mais de metade do vão a ele destinado, deixando para entrada uma porta de metro e três centímetros de largura, também provisória, mas tal que nunca foi nem será substituída. Abre-se num saguão de pouco mais ou menos dez metros de comprido, composto de duas partes distintas, das quais a anterior é um quadrado perfeito de quatro e meio metros de lado, e a outra de cinco e meio metros de fundo sobre quatro e trinta e oito centímetros de largo. Nesta ficam, à esquerda, a casa da guarda e xadrez, e à direita os calabouços, tudo abobadado, e estes muito escuros, úmidos e faltos de ar.

A casa da guarda é dividida em dois compartimentos, ambos de quatro metros e quatro decímetros de largura, mas o primeiro comprido de oito metros e dois decímetros, e o outro de três e trinta o oito centímetros. O calabouço que se abre em frente a esta sala tem quatro metros de fundo e de largura mais quatro decímetros; o outro a este contíguo, com respiradouros para a Praça d’armas, guarda a mesma largura, tendo oito metros e trinta e cinco centímetros de comprimento.

Na parede do primeiro desses calabouços, escreveu um moderno Tasso (o autor se refere ao amor impossível do poeta Torquato Tasso pela Princesa Eleonora na Corte de Ferrara) sentidas endeixas (poesias fúnebres), onde a nova Eleonora pouco é lembrada, mas em compensação o triste poeta buscava enganar sua desdita, escrevendo, nesses segredos da masmorra, louvores aos que o tinham encarcerado; trabalho que é de supor baldado, pois sem dúvida o ficaram ignorando, sendo mais provável que, se soubessem do escrito, teria sido raspado e apagado, e o poeta punido por estar danificando as obras do Estado.

Conquanto supinamente toscos, mal medidos e mal rimados, gostei de, na tristeza desse ergástulo (cárcere), copiar as linhas que o tempo deixou legíveis: e pouco se me dá que se considere perdido o tempo que nisso gastei, e o que emprego em transcrevê-los aqui. As quatro paredes do cárcere tinham sido completamente cobertas deles, divididos em estâncias separadas por traços em quadrados; letras, traços e tudo, aberto na alvenaria à ponta de um estilete qualquer.

Ei-los:

Desta horrorosa prisão De ti me despeço brioso Tendo suportado gostoso Por ti mui dura aflição Firmina.

Embora me persiga o fado Querendo a vida tirar A Virgem me há de ajudar, Por ela serei amparado, Pois aqui encarcerado Estou bem crente na sina Que hei de sempre te amar Firmina.

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Agradecido e obrigado Às graças que me tens feito, Capitão Cunha, em meu peito Teu nome tenho gravado. Nele será conservado

Enquanto vida eu tiver E só depois que morrer, Calarei os teus louvores Que nem mesmo... (...)

Se Mato Grosso prendeu-me O forte me cativou. Aqui cativo estou De quem tanto favoreceu-me. Quando eu for em liberdade Agradecerei a bondade Com que alguns bons senhores Nesta minha adversidade E destino desgraçado (...)

Em que a sorte me lançou Muito agradecido estou À tropa e povo honrado Pelo respeito e bom grado Com que todos servido (...)

De seus favores compelido De novo vem ... Para melhor agradecer ... tem sofrido Adeus, filha querida. (...)

E mais um cento de quadrados com versos do mesmo jaez.

Ninguém pode orientar-me sobre quem seria o pobre versejador, nem mesmo quem fosse o Capitão Cunha, a quem tão agradecido se mostra, talvez por conta de favores, ainda em desejos. Suponho que sua prisão coincidirá com outra inscrição que aí também se lê, e a qual não é de somenos interesse:

No dia 18 de setembro pelas 2 horas da tarde, tremeu a terra, 1832.

Mais tarde verifiquei que o Capitão Cunha devia ser José Francisco da Cunha, Comandante do Forte até 1831, em que morreu, segundo se depreende destas palavras do ofício do Presidente Antônio Correia da Costa ao Ministro do Império José Lino Coutinho, dando conta de varias sedições e amofinações do povo e tropa:

Não tardou muito tempo quando foi participado pelo Comandante-militar do Forte do Príncipe a este governo, a sublevação da guarnição e povo do mesmo Forte, contra o alferes adido ao Estado Maior do Exército Antônio José da Silva Negrão, que para ali fora nomeado Comandante, a substituir aquele que interinamente servia no lugar do finado Sargento-mor José Francisco da Cunha, conforme participei a V. Exª em ofício de 6 de junho de 1831.

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III

Ao sair do saguão, na Praça, uma escada, à esquerda, conduz à meia cortina da frente, donde pode-se circular toda a Fortaleza pelas cortinas e baluartes. Na Praça, paralelas às cortinas, há duas ruas de casas, compostas, a mais próxima de seis edifícios que eram destinados a armazéns, oficinas e quartéis da tropa, e a interna de outras tantas casas para oficiais, comandância, Capela e enfermaria, estas três na face fronteira à da entrada do Forte.

No centro, há uma grande cisterna, com os escoadouros necessários para o excesso de águas, cuja abertura de saída vê-se na barranca do Rio, como um corredor quadrado, de dois palmos de face, fechado por uma grade de ferro.

Caídos por terra, junto às canhoneiras, existem ainda treze canhões de ferro, calibre 6, e um de 12. Nos depósitos e arrecadações, hoje completamente derruídos, e que são os edifícios da segunda rua ao fundo da Praça, há alguns falconetes (pequenas peças de artilharia), pedreiros (morteiro antigo que arremessava pedras) e pequeninos canhões de bronze, de dois palmos de tamanho; e entre os destroços de muita peça de palamenta (aparelhos e petrechos de uma boca de fogo), inúmeras alcanzias, panelas de barro semelhando às granadas, cujo fim talvez fosse arrojar aos assaltantes azeite fervendo, como era de uso nas antigas guerras.

Fora da Fortaleza houve, nos seus bons tempos de mocidade, um povoado, e também chácaras e sítios. Em frente ao baluarte de N.E. (Santo Antônio) tinha o comando uma grande chácara, toda cercada de grossa e alta muralha, e dividida em grandes canteiros orlados de cantaria, e dispostos simetricamente afetando a forma de uma estrela. Está apenas a uns duzentos, ou pouco mais, metros do fosso, e todavia, apesar de irmos com o Comandante do Forte, que já é prático desses sítios, custamos a encontrá-la, tão alta, densa e cerrada é a mata que aí cresce e encobre seus muros, ainda hoje em pé. O que ainda mais revela a desídia, preguiça, descomunal indolência e imprevisão do futuro de todos quantos têm, há longos anos, vivido nesse Forte, que melhor local não poderiam encontrar para suas plantações, a não ser os próprios baluartes e cortinas que converteram em roça, o que entretanto ninguém poderia esperar.

Dos vegetais que acompanham o homem, ainda aí vimos todos os comuns nessas paragens, beldroegas, caruru de sapo, tanchagem, labaça, etc., apesar de decorrerem já talvez mais de cinco lustros do seu completo abandono. Das árvores de fruto pelos antigos plantadas, apenas vimos bananeiras; não sendo crível que de tantas outras que os antigos cultivaram, e que naturalmente deviam ornar a chácara dos Governadores, não existam hoje árvores de laranjas, limas, limões, atas, café, canas, etc.: talvez que a mata oculte ainda os destroços do pomar; no mais, o elemento selvagem, como de costume, matou e destruiu as plantas da civilização.

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IV

Concluiu-se o Forte em agosto de 1783. Seu primeiro Comandante foi o Capitão de dragões da Companhia de Goiás, José de Mello de Souza Castro e Vilhena, que se achava desterrado em Mato Grosso. A 31 daquele mês – foi ocupá-lo com a guarnição do Forte da Conceição, cujas minas, só com algum custo, podem ser descobertas hoje.

O novo há de custar a derrocar-se, nas suas obras principais, tão solidamente foi construído. Todas as suas dependências internas e externas, casas, quartéis, depósitos, ponte, portas, estradas, chácaras e mesmo o fosso, uns destruíram-se e os outros vão pouco a pouco, já estando a maioria em ruína completa.

Mas essas muralhas são tão fortes, tão bem alinhadas, tão bem acabadas — tão — quase, perfeitas, que hão de passar os séculos antes que se derruam; e ainda hoje, mantendo, pelo menos exteriormente, toda a ideia da grandeza e poder que lhes imprimiu o seu autor, testificam a consciência do trabalho e o esforço assinalado dos seus obreiros.

À perfeição da mão de obra junta-se a boa qualidade do material e, cousa notável, o ferro, que tão facilmente se decompõe nos países quentes e úmidos, que no Egito estraga-se em uma dezena de anos, que aqui na Corte, nas grades expostas, vemo-lo em poucos anos completamente carcomido nas suas barras, corroídas pela oxidação, aí, no Forte, conservam-se inalteráveis e tão puros como si foram novos, apesar de um século de exposição, os gatos de ferro que prendem as pedras das muralhas, e que ostentam nitidamente a cor azulada do ferro de fresco forjado.

Os edifícios internos, hoje em ruínas, foram também construídos com a mesma consciência do trabalho, mas eram relativamente mais débeis e necessitavam do zelo para conservarem-se: suas paredes são de pedra e cal, e o arcabouço de tal ordem que poucas são as vigas que estejam prejudicadas. Estragadas as ripas e os caibros, abatidas as telhas, apareceram as goteiras, e o tempo começou sem óbices o seu processo de destruição.

São as muralhas da frente as que guardam a mais esplêndida integridade: o mesmo já não se dá com as outras, que vão cedendo à força da vegetação que aí se desenvolve por entre as fendas do muro, ou sobre os parapeitos. Enormes embaíbas e gameleiras já assoberbavam seus troncos, empurrando com as raízes os blocos da pedra quando visitamos o Forte. Os terraplenas dos baluartes, as cortinas e a praça seriam mata virgem se a guarnição, temerosa das onças e dos selvagens, não preferisse fazer neles os seus roçados de mandioca e milho, feijões, canas e melancia.

Em todos os quartéis e casas, vive grande, imenso número de morcegos, a praga dos povoados velhos da Província; mas, assim mesmo, não em tanta quantidade como noutros lugares, e como aí mesmo em outros tempos, em que, segundo diz Pisarro:

Principiando a sair uma hora antes da entrada do sol, o encobriam formando uma densa nuvem pelo esmo dilatado da sua carreira, até os campos de Espanha, donde voltavam de madrugada.

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Nossa presença no Forte trouxe pela primeira vez em, talvez, dezenas de anos, a vantagem de limpar-se suas muralhas, cortando-se e buscando-se extirpar as árvores que aí cresciam, e também derrubando a mataria externa que cobria o fosso e o seu perímetro. Infelizmente pequeno foi o tempo da nossa demora para vê-lo completamente limpo: todavia as muralhas ficaram escorreitas (sem dano), e o Forte livre, em muitas braças, da floresta que o afogava. À instâncias nossas, começou o Comandante o plantio de laranjeiras, então apenas três, na ladeira, e agora aumentadas de umas vinte, dispostas em dois renques desde o Porto até o fosso; todos arbustos já de metro e mais, e que, ao retirarmo-nos do Forte, deixamos vivos e pegados.

No forte mora somente a guarnição composta atualmente de quatorze soldados e um Sargento. O Comandante reside numa casinha, na barranca, a uns dez metros acima do Porto, aí tem também uma pequena horta. Em frente à casa há um pequeno destorcedor de cana, e um aparelho tosco para o preparo da farinha.

Ao contemplar-se essa Fortificação que tem tanto de grandiosa como de estólida (absurda), não se sabe o que mais admirar, se o mérito da obra, o dinheiro e tempo gastos, as fadigas e misérias dos trabalhadores, isto é, a soma de esforços nessa construção empregados; se a fantasia do Capitão-general em querer ligar o seu nome a uma obra de guerra no gênero das de Macapá e Cabedelo, talvez cioso das glórias e recompensas que obtiveram os construtores destas.

Não havendo pedra calcárias no sítio, foi a necessária para as obras conduzida das margens do Paraguai ao registro do Jauru, daí por terra à Vila Bela e Guaporé abaixo até o Forte; e essa obra monumental ficou concluída dentro de sete anos, tempo diminutíssimo, se atendermos às dificuldades que deveriam acompanhar uma construção tão longínqua e tão balda de recursos próximos: o que é um padrão do esforço e da tenacidade de Luiz de Albuquerque. Para bem se o avaliar, basta consignar-se que, anos depois, em 1825, quatro canhões de bronze, de calibre 24’, remetidos do Pará, pelo Tapajós, com destino a ele, só conseguiram chegar a Mato Grosso em 1830. Mas já o Forte tinha perdido sua importância; e o Presidente deliberou fazê-los de novo remontar o Alto Guaporé até a estrada de Cuiabá, com direção a essa Capital; e ali houveram por uns vinte anos, até que, em 1851, o Barão de Melgaço as fez descer para o Forte de Coimbra. (FONSECA)

É muito fácil condenar uma obra e escarnecer de seus construtores sem ter vivenciado ou conhecido o momento histórico e político que determinou sua edificação.

Afinal, os homens do tempo, para o seu tempo, não deveriam estar tão errados como os julgava João Severiano da Fonseca e outros. Não há que duvidar da necessidade que existiu de serem construídos sucessivamente três fortes no mesmo lugar. Quanto à situação estratégica, é correta. O Forte foi construído acima da confluência dos Rios Mamoré e Guaporé. Isto é, qualquer invasão por parte da América espanhola só poderia efetuar-se descendo o Mamoré, o Beni ou Madre de Dios, e subindo o Guaporé. Portanto, o Guaporé seria percurso obrigatório. Ora, mas este Rio é largo, medindo geralmente mais de um quilômetro de margem a margem.

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Figura 54 – Forte Príncipe da Beira (IHGB, RJ)

Uma expedição fluvial espalhar-se-ia nessa largura do Rio, e os canhões do Forte dificilmente poderiam atingir todas as embarcações. Justamente por isso, foi escolhido este ponto do Rio onde há uma pequena Cachoeira, sendo todas as embarcações obrigadas a passar através de um estreito canal. O alvo dos canhões do Forte seria aquele canal, onde as embarcações teriam que passar uma após outra. Este detalhe é notável, pois este é o único ponto de todo o Rio Guaporé onde há um canal obrigatório para a passagem das embarcações. No entanto, nem João Severiano da Fonseca nem os detratores da obra realizada pelos homens do século XVIII perceberam este detalhe.

Por outro lado, em frente ao Forte, na margem boliviana, estendem-se, por milhares de quilômetros quadrados, Lagos, Lagoas e terrenos alagadiços, formado pelos Rios Baures, Itonamas e Mamoré. Por terra, nunca a América Espanhola conseguiria levar a efeito uma invasão até chegar à margem em frente ao Forte. E suponho que pudesse pelo Norte haver uma operação militar que apanhasse o Forte pela retaguarda, ele é tão grande, que à maneira dos castelos medievais, resistiria a um cerco prolongado, e suficiente para receber reforços. Mas o que explica e justifica a escolha do local onde foi construído o Forte Príncipe da Beira é a própria história das lutas entre espanhóis e portugueses ao longo do Rio Guaporé, conforme já vimos. Se desde 1753, o centro dos conflitos entre vassalos das Coroas de Portugal e Castela era aquele, só ali, evidentemente, poderia ser construído o Real Forte do Príncipe da Beira. A sua construção foi o ponto culminante de uma luta entre espanhóis e portugueses, pela posse do território. A luta desenvolveu-se ali, em torno daquele local. Só ali, pois teria sentido a construção do Real Forte do Príncipe da Beira. Enfim, o Real Forte do Príncipe da Beira é uma obra militar que garantiu a grandeza e a integridade da futura Pátria Brasileira. Somente aqueles que vêem nas ações dos antepassados objeto de críticas e desprezo poderão verberar hoje a construção do Forte, que teve lugar há dois séculos. (FERREIRA, 1961)

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- Por que Príncipe da Beira?

Até 1822, o Estado do Brasil era uma Província de Portugal, ou mais propriamente, uma Província do Rei de Portugal. Todos os nascidos no Brasil eram vassalos do Rei, tanto quanto os nascidos em Portugal. Portanto, o Rei de Portugal era também Rei do Brasil. Ora, o herdeiro da Coroa, e somente ele, recebia o título de Príncipe. Somente era herdeiro o primogênito, fosse homem ou mulher. Portanto, aquele a quem coubesse suceder o Rei, e unicamente ele, recebia o título de Príncipe ou Princesa.

Em 1645, foi acrescentado um título ao herdeiro: Príncipe do Brasil ou Princesa do Brasil. Assim, todo herdeiro da Coroa de Portugal e Brasil recebia automaticamente o título de Príncipe do Brasil ou Princesa do Brasil. Este título não era outorgado, mas sim, todo herdeiro recebia-o automaticamente. E assim foi até 1734, quando estava no trono D. João V. O seu sucessor era seu filho D. José, Príncipe do Brasil. Np ano de 1734, nascia D. Maria, primeira filha de D. José. Estava, pois formada a linha de sucessão de D. João V:

1° seu filho D. José, Príncipe do Brasil;

2° D. Maria, sua neta. Nessa linha de sucessão, o segundo herdeiro não tinha título.

Por isso, quando em 1734 nasceu D. Maria, o Rei D. João V (seu avô) concedeu-lhe o título de Princesa da Beira. A partir de 1734 passavam, dessa maneira, a existir dois títulos:

1° Príncipe (ou princesa) do Brasil, título que recebia automàticamente o primeiro herdeiro da Coroa;

2° Príncipe (ou princesa) da Beira, título que recebia automàticamente o segundo herdeiro da Coroa.

Em 1750, faleceu D. João V. Sucedeu-lhe o filho, D. José. Mas, tornando-se Rei, D. José passou a ser D. José I, e perdia por isso o título de Príncipe do Brasil. Sua filha, D. Maria, passou a ser a primeira herdeira, e como ainda não tinha filhos recebeu o título de Princesa do Brasil e da Beira. D. Maria acumulava os dois títulos. Em 1761, nascia o primeiro filho de D. Maria, que recebeu o nome de D. José. Era ele o segundo herdeiro, e por isso recebeu o título de Príncipe da Beira, que estava com sua mãe. Estava formada a sucessão do Rei D. José I:

1° D. Maria, sua filha, Princesa do Brasil;

2° D. José, seu neto, Príncipe da Beira.

Agora, um parêntese: o Marquês de Pombal, Primeiro Ministro do Rei D. José I, dedicava grande estima ao Príncipe da Beira. Por isso, tentou introduzir em Portugal a Lei Sálica (Lex Salica), que impedia às mulheres subirem ao trono.

Lei Sálica: dentre outras disposições, negava o direito às mulheres, à sucessão da Terra Sálica - a terra vinda dos antepassados. (Nota do Autor)

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Nesse caso, D. Maria ficaria impedida e, com a morte do Rei D. José I, subiria ao trono o Príncipe da Beira, seu neto. Entretanto, Pombal não teve êxito nessa tentativa. Deixemos a situação nesse pé, e volvamos agora à Capitania de Mato Grosso. Estamos no ano de 1776. Em Vila Bela, capital da Capitania, acha-se o seu Governador, o Capitão-general Cáceres, providenciando a construção de um grande Forte na margem direita do Rio Guaporé, e que substituiria o Forte de Bragança. Cáceres dá-lhe o nome de Forte do Príncipe da Beira. Por que não lhe deu o nome da primeira herdeira, D. Maria, Princesa do Brasil? Ou não se davam os nomes de princesas a obras militares? Ou fora Pombal quem determinara que se desse aquele nome ao Forte, desde que o Príncipe da Beira era por ele muito estimado, e queria torná-lo o primeiro herdeiro?

Ou fora o próprio Capitão-general Cáceres quem escolhera o nome do Forte, desde que ele, Cáceres, era nascido na Província da Beira? Provavelmente esta última hipótese seja a mais fundamentada. Mas, voltemos à nossa história.

Em 1777, faleceu o Rei D. José I. Imediatamente passa a ocupar o trono a sua filha e primeira herdeira, com o título de D. Maria I. E passa a ser seu primeiro herdeiro, o seu filho D. José, Príncipe da Beira. A rainha perdera o título de Princesa do Brasil, e o seu filho automaticamente o recebera. Assim, D. José passou a ser Príncipe do Brasil, herdeiro direto do trono. E o seu título Príncipe da Beira deveria passar ao segundo herdeiro, que deveria ser o seu primeiro filho. Entretanto, como D. José não tinha filhos, passou a acumular os dois títulos: Príncipe do Brasil e da Beira.

Em 1788, faleceu D. José, Príncipe do Brasil e da Beira, o herdeiro do trono. Sua morte foi muito pranteada pelo povo, pois era estimado. Bocage consagrou-lhe um epicédio (poema fúnebre). Falecera sem deixar filhos. Tornou-se herdeiro do trono D. João, segundo filho de D. Maria I, e irmão do Príncipe falecido. D. João recebeu o título de Príncipe do Brasil, e a sua filha mais velha, D. Maria Teresa, segunda herdeira, recebeu o título de Princesa da Beira.

D. João, Príncipe do Brasil, seria mais tarde D. João VI, Rei de Portugal e do Brasil. Assim, pois, D. José, Príncipe da Beira, depois Príncipe do Brasil e da Beira, deveria ser o Rei de Portugal e Brasil, com o título de D. José II. Tendo falecido, sucedeu-lhe o irmão, que se tornou D. João VI. Quando foi dada a denominação Forte do Príncipe da Beira, D. José era segundo herdeiro. Só mais tarde, veio a acumular os dois títulos: Príncipe do Brasil e da Beira.

Em suma: o nome todo do Príncipe da Beira era José Francisco Xavier de Paula Domingos Antônio Agostinho Anastácio. Era filho de D. Maria I e irmão mais velho de D. João VI. Nasceu em Lisboa em 1761, com o título de Príncipe da Beira, e faleceu em Lisboa, em 1788 com o título de Príncipe do Brasil e da Beira. (FERREIRA, 1961)

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- Relatos Pretéritos do Forte Príncipe da Beira

Luiz de Albuquerque de Mello Pereira e Cáceres (1779)

Construção do Forte do Príncipe da Beira, e Conservação de Outros Estabelecimentos.

Il.mo e Ex.mo Sr. Martinho de Mello e Castro — Na construção do Forte do Príncipe da Beira, que principiei no dia 20 de junho de 1776, conforme as precedentes e repetidas contas que tenho feito subir à presença de Sua Majestade em direitura a V. Exª, continuo em fazer prosseguir com todo aquele maior vigor e diligência de que se fazem susceptíveis os escassos meios deste país aonde, além do dinheiro, que é o mais indispensável instrumento com que se aplainam as dificuldades e adiantam semelhantes trabalhos, faltam ainda verdadeiramente vários outros recursos necessários, como são os competentes artífices e operários que se deveriam empregar, de maneira que, sobre alguns remetidos do Pará depois das mais excessivas delongas e despesas, fui obrigado, por último, a mandar vir um mais considerável número deles, que hão de ser escravos do Rio de Janeiro, aonde a referida encomenda, sobre conta da Real Fazenda, se fez há perto de um ano; mas, antes dos fins do corrente de 1779, não poderá chegar a esta capital, sendo fácil de calcular por esta tão extraordinária demora aliás inevitável, suposto que dentro do mesmo continente, que a V.Ex.ª representa, apesar das mais vivas recomendações; os obstáculos que quase insuperavelmente se oferecem a fim de qualquer empresa nestas tão desprovidas como remotas regiões, apesar do grosso cabedal quase incrível na Europa que tudo custa, por maiores que sejam os esforços do zelo e da economia.

Enquanto aos outros novos estabelecimentos e postos guarnecidos desta dita Capitania, sobre que igualmente tenho posto na real presença, mediante o conhecimento de V. Ex.ª, as humildes contas e representações que correspondiam, vão subsistindo no indicado estado, enquanto a Rainha nossa senhora não for servida decidir ou mandar o contrário; ao mesmo tempo que o entretimento de todos eles se faz quase impossível de suprir, como por muitas vezes tenho relatado a V. Ex.ª, pela expressada falta de meios. Presentemente se me não oferece que acrescentar às sobreditas contas, que a última nova fundação de que ainda não tinha dado parte, a qual da mesma sorte fiz executar, constante do termo que incluo a V. Ex.ª; situada na Margem Ocidental do Rio Paraguai, a três ou quatro dias de viagem para cima do presídio que chamei Nova Coimbra; na imaginação de se tratar de demarcações, segundo respectivamente anunciam os dois tratados públicos.

Nesta mesma ocasião, executo as ordens de Sua Majestade concernentes à clandestina extração dos diamantes, absolutamente proibida nesta Capitania, dirigindo as respectivas devassas que vou fazendo tirar, ao Ex.mo Visconde de Villa Nova da Cerveira como Secretário de Estado dos negócios do Reino, pois que assim o determina a Carta Régia de 16 de novembro de 1770.

Deus guarde a V. Ex.ª muitos anos.

Villa Bella, 5 de junho de 1779.

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Ignácio Accioli de Cerqueira e Silva (1833)

Deste salto vão trinta léguas ao do Girau (Jirau), latitude de 9°21’; também é mui perigoso o seu trajeto, sendo preciso varar as canoas por terra sobre rolos de madeira por espaço de trezentas e sessenta e cinco braças. Passando em 1768 por esta paragem, o Governador de Mato Grosso Luiz Pinto de Souza, a tomar posse daquele Governo, erigiu aqui uma Povoação que denominou de Balsamão, com os Índios Pamas, que já existiam nesse lugar; a Cachoeira consta de cinco saltos continuados.

Seguem-se as Cachoeiras dos Morrinhos, Bananeira, Pederneiras, Caldeirão do Inferno e Paredão, desta última vão cinco léguas à barra do Mamoré, e à do Guaporé onde está o Forte do Príncipe da Beira, além destas ainda se encontra a da Misericórdia, cujo perigo depende do estado das águas, e a do Ribeirão de cinco saltos, na latitude de 10°, o varadouro é de trezentas e quarenta braças, hoje se denomina a esse lugar S. José do Ribeirão.

Nele há um destacamento com escravos do Estado destinados à cultura, a benefício dos que navegam para o Pará, e Mato Grosso: esse estabelecimento, criado de ordem do Ministério pelo Governador Caetano Pinto de Miranda Montenegro, prosperou no tempo daquele Governador, e do seu imediato sucessor Manoel Carlos, hoje porém tem decaído, chegando até a não fornecer o sustento diário para a guarnição, que o vai buscar ao Forte Príncipe da Beira. (SILVA)

James Cooley Fletcher e Daniel P. Kidder (1845)

O Tenente Gibbon, U.S.N. deu-nos um relato muito interessante de sua descida (em 1852) do Rio Mamoré, desde o Forte Príncipe de Beira até o Madeira, e daí até o Pará; mas a melhor descrição detalhada dessa longa rota e das numerosas dificuldades que ela opõe ao viajante e ao negociante, se encontra numa memória publicada pelo Instituto Histórico e Geográfico do Rio de Janeiro. (FLETCHER e KIDDER)

Felipe José Nogueira Coelho (1850)

Em 20 de junho, lançou S. Exª a primeira pedra, com as solenidades costumadas e assistência de vários oficiais, do novo Forte que mandou erigir na margem Oriental do Rio Guaporé, pouco acima da arruinada Fortaleza da Conceição, em sítio alto e bem proporcionado. Denominou-o — Forte do Príncipe da Beira — em obséquio do Sereníssimo Príncipe que era da Beira, e hoje do Brasil. Mandou gravar no pórtico ou porta principal uma inscrição latina, que se acha nos Anais da Câmara, e nomeou para seu primeiro Comandante o Capitão de Dragões da Capitania de Goiás José de Mello da Silva Castro e Vilhena, que aqui se achava destacado.

Festejou-se em Vila Bela o regresso de S. Exª e a construção do dito Forte (como muro desta Capitania) com um numeroso outeiro, em que lembrou o verso de Virgílio:

O’ fortunati, quorum Jam mænia surgunt.

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Foram criados Capitão e Oficiais da ordenança para a Povoação do mesmo Forte e vizinhanças. Fez também S.Ex.ª Capitão-mor das conquistas do Paraguai a João Leme do Prado, sertanista inteligente, o qual tinha ido descobrir o Rio Embotety, hoje Mondego, que deságua no Paraguai acima do Presídio da Nova Coimbra, dando notícias das campanhas e margens do mesmo Rio, e de que lho apareceram alguns Índios que, por alguns trajes, rosários, miçangas e ornatos de prata que traziam, bem deixavam ver se comunicavam com os espanhóis. Pouco abaixo da Foz do mesmo Mondego, descobriu lambém um lugar mais próprio para Povoação, e mesmo para Forte. Em 16 de setembro, recolhendo-se S. Exª do Forte do Príncipe da Beira, mandou dar princípio a uma Povoação, que denominou Viseu, na margem Ocidental do Guaporé, em quase meia viagem do sobredito Forte. E concedeu alguns privilégios aos que quisessem ir ser colonos, pelo bando do dito ano, no Registro 5ª da Ouvidoria, à folha 123. Foi aberta neste ano a rua que corta o quintal do Palácio, como tinha sido no ano antecedente a travessa grande que vai da Praça à Rua do Fogo, por ordem de S. Exª e despesas da Câmara, para melhor prospecto e cômodo da Vila. Em 2 de outubro criou S.Ex.ª o primeiro Cadete que teve a guarnição militar desta capital. (COELHO)

Revista Trimensal do IHGE do Brasil (1864)

Tradução de Alguns Artigos da Gazeta de Buenos-Aires

Título - Navegação Dos Rios

Já manifestamos de que modo entorpeceram a demarcação da linha divisória estipulada no dito Tratado. Logo depois, em 1870, povoaram fazendas, e puseram guardas nas privativas possessões da Espanha, na linha que devia tirar-se desde o Arroio S. Luiz, pela margem Ocidental da Lagoa-mirim até o Arroio mais Meridional, que entra em seu desaguadouro; e assim contravieram ao Tratado de 1770. Construíram do modo o menos injustificável os Fortes Albuquerque e Coimbra, em território pertencente à Espanha, e várias povoações na margem Meridional do Itenes, e entre elas o Forte Príncipe da Beira, construído poucos meses depois de concluído o Tratado de 1777, sobre a Vila do mesmo Rio Itenes com o objetivo de usurpar toda a navegação do Madeira.

Cândido de Melo Leitão (1941)

As constantes lutas do Sul, “principais motivos das discórdias ocorridas entre as duas Coroas”, fizeram com que as lindes platinas fossem desde logo demarcadas e por pessoal numeroso, que levasse com brevidade a cabo tal empreendimento. Para o restante da linha divisória, desde esse remoto Rio Branco, ao Norte, “região onde até então nenhum homem branco havia penetrado”, até esse extremo Sudoeste onde, para evitar as constantes incursões dos castelhanos, fazia o Governo de Lisboa levantar o Forte Príncipe da Beira, era nomeada uma só Comissão. Diz explicitamente a provisão do Capitão General João Pereira Caldas:

Para proceder com conhecimento mais exato e maior certeza à importante operação de demarcação dos domínios reais, ordenou o Governo de Lisboa que se empregassem no reconhecimento das fronteiras os mesmos geômetra e engenheiros tanto na Capitania do Grão Pará como na de Mato Grosso. (...)

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As viagens de Natterer (...) de julho de 1829 a agosto de 1830, descendo o Guaporé (com demora de alguns dias no Forte Príncipe da Beira) e o Mamoré, residindo em Borba quase um ano (24.11.1829 a 25.08.1830); de setembro de 1830 a setembro de 1831, subindo o Rio Negro até à Cachoeira de Tumui e visitando alguns dos seus afluentes; de setembro de 1831 a fins de 1832, quando explorou o Rio Branco até ao Tacutu; de 1833 a julho de 1834 em pequenas expedições pelas proximidades de Manaus, chegando ao Pará em setembro de 1834. (...)

Alcides D’Orbigny veio à América do Sul, contratado pelo Governo argentino. (...) De volta a Buenos Aires, logo partiu para o Norte, subindo o Rio da Prata e Paraguai. Atravessou o Chaco argentino e boliviano, subiu os Andes e regressou para a Europa por Valparaíso, onde embarcou a 3 de setembro de 1833. Tendo estudado mais particularmente os Guaranis e índios meio civilizados das missões bolivianas, esteve também em contato com alguns índios do extremo Oeste de Mato Grosso. Tendo penetrado em nosso território na altura do Forte Príncipe da Beira, à margem do Guaporé, subiu por esse Rio até Vila Bela, regressando pelo mesmo caminho fluvial para a Bolívia. (LEITÃO)

Antônio Leôncio Pereira Ferraz (1978)

O Forte fica em 12°36’ de Latitude e 21°26’28” de Longitude W do Rio de Janeiro, e a ele voltaria, em 1778, o mesmo Capitão General (Pereira e Cáceres), em inspeção às obras em andamento e ao material de guerra ali chegado. A cal empregada na construção fora enviada de Corumbá pela via fluvial do (Rio) Jauru e dali à do (Rio) Guaporé; só em 1782 foram conduzidas pedras que deram para o fabrico de 2.000 alqueires (de cal). As obras de cantaria eram executadas no (Rio) Jauru e o restante do material vinha do Pará, pelo Rio Madeira, na época tão movimentado, a ponto de dar melhores resultados que as monções de povoados. (...) A fundação do Forte do Príncipe da Beira (1776), com a de Viseu (1776), obrigaram os espanhóis à assinatura do Tratado de Santo Ildefonso, cujo ajuste foi terminado em 1777, valendo aquele Capitão General (Pereira e Cáceres) a frase com que o pintaria o dirigente espanhol de Santa Cruz de la Sierra: “O mais ambicioso dos Governadores portugueses”. (...) O Forte do Príncipe da Beira é abaluartado, (pelo) sistema Vauban, e construído sobre um quadrado, medindo cada face 118 metros e 50 centímetros e tendo em cada ângulo um baluarte de 59 metros sobre 48 na máxima altura.

Em cada baluarte há 14 canhoneiras, sendo três por flanco e quatro por face. As cortinas, que ligam os baluartes entre si medem cada uma 92 metros e 40 centímetros, e as golas 22 metros. O fosso, de largura variável, entre um metro e 50 centímetros e três metros, atinge a de nove metros em frente ao baluarte da Conceição, tendo em todo o seu desenvolvimento dois metros de profundidade. O portão do Forte fica no centro da cortina que se acha voltada para o Norte e dá acesso a um saguão, dividido em dois compartimentos; liga-o ao outro lado do fosso uma ponte de 31 metros de comprimento. Na Praça principal da Fortificação, há duas ruas de casas, paralelas às cortinas e formando um conjunto de 12 edifícios, todos em ruínas.

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As muralhas do Forte são de alvenaria de pedra, com revestimento de cantaria, e medem da esplanada ao fosso 8 metros e 22 centímetros. Na cortina voltada para Oeste, há também um portão que dá saída para o Rio. O Forte se acha assentado numa Colina, que dista 180 léguas aproximadamente da atual cidade de Mato Grosso e 14, em linha reta, da Foz do (Rio) Mamoré.

A Comissão de Limites de 1874 diz que a sua posição astronômica é a de 12°17’19” de Longitude W do Meridiano do Rio de Janeiro (Latitude 12°25’40,49”S). O principal técnico de que dispôs (o Governador) Luiz de Albuquerque, no seu projeto de edificação do Forte, foi o Ajudante de Infantaria Domenico Sambocetti, conquanto tenha sido ouvido a respeito Ricardo Franco (Serra). O Diretor de Obras, porém, foi o Capitão José Pinheiro de Lacerda, que despendeu na construção 480:000$000 soma essa, sem dúvida alguma, vultosa para aqueles tempos. As obras ficaram terminadas em 1783 e era o Forte destinado a receber 56 canhões, segundo se infere do seu próprio traçado; mas só em 1830 ali aportava a primeira artilharia que lhe era destinada, constante de quatro bocas de fogo de calibre 24, enviadas do Pará desde 1825. Mais tarde, ali foram ter mais 14 canhões de ferro, de calibre 12. Foi seu primeiro Comandante o Capitão de Dragões (da Capitania de Mato Grosso) José de Melo Castro de Vilhena e Silva. Em 1864, ainda havia ali uma guarnição de 10 soldados, dos quais só três ficavam no Forte, sendo os demais deslocados para Pedras e Itonamas, segundo o Coronel (Augusto) Fausto de Souza.

A 9 de junho de 1789, foi aquela Fortificação visitada pelo naturalista Dr. Alexandre Rodrigues Ferreira, vindo do Pará em missão régia de caráter científico. Em 1831, devido ao abandono em que se achava e o consequente relaxamento da disciplina, houve um levante da guarnição, concomitante com o de outras forças da Província. Cinco anos mais tarde (1836), para ali eram mandados os sentenciados cumprir penas e, dois anos mais tarde (1838), o Dr. Francisco Sabino da Rocha Vieira, chefe da Sabinada, haveria tido igual sorte, se potentados de Mato Grosso não lhe tivessem ostensivamente dado guarida, salvando-o certamente de perecer em região tão inóspita. (FERRAZ)

Franco Cenni (2003)

No extremo oposto do País, a duzentos metros do Rio Guaporé, do Brasil com a Bolívia, e a uma distância de setecentos quilômetros, Rio acima, da localidade mais próxima (Vila Bela, capital de Mato Grosso), em 20 de junho de 1776, o Capitão-general Cáceres, Governador daquela Capitania, presidia as festividades de fundação da Fortaleza do Príncipe da Beira (...) O citado engenheiro italiano Domenico Sambocetti chegara à capital de Mato Grosso em 1772, ou talvez dois anos mais tarde, e, tendo que trabalhar numa obra militar, passou a pertencer aos quadros do exército português com a patente de ajudante de infantaria. Não se sabe ao certo se foi ele ou o engenheiro italiano Antônio Enrico Galluzzi (ou, segundo alguns, Giovanni Antônio Gallucci) quem fez o projeto do Forte do Príncipe da Beira, cuja planta é idêntica à da Fortaleza de São José de Macapá, no atual território do Amapá, mandada construir pela rainha dona Maria I, mãe de Dom João VI, para defender o extremo Norte do Brasil contra as tendências expansionistas da Guiana Francesa e festivamente inaugurada em 19 de março de 1792.

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O Real Forte do Príncipe da Beira se compunha de quatro baluartes, sendo dedicado a Nossa Senhora da Conceição o que olhava para o Poente; a Santa Bárbara o que se erguia em direção ao Sul; a Santo António de Pádua e a Santo André Andino os outros dois. Os trabalhos de construção nunca foram interrompidos, ocupando sempre mais de duzentos homens, entre engenheiros, artífices, carpinteiros e pedreiros, que executaram urna verdadeira obra de arte, pois o forte foi construído com a mesma perfeição com que se costumava erigir, naquele tempo, palácios e catedrais.

Domingos Sambocetti faleceu em 1780, antes que fosse acabada a construção, e a ele pertence, com certeza, o túmulo ainda agora existente na Capela do próprio Forte, por outros atribuído ao Príncipe da Beira, que, ao contrário, falecera em Lisboa. Antônio Enrico Galluzzi fora membro da Comissão de demarcação de limites com a Espanha e dirigiu a construção da Fortaleza de São José do Macapá, às margens do Rio Amazonas, cujas muralhas tinham seis metros de espessura e dez de altura. Ao centro do quadrilátero, defendido por 56 poderosos canhões, havia a praça de armas, o paiol, o hospital, o depósito de víveres e o alojamento da guarnição. (CENNI)

- Pequena História do Forte

O escritor Manoel Rodrigues Ferreira, “Nas Selvas Amazônicas, 1961”, faz um interessante histórico do Real Forte Príncipe da Beira.

Há cerca de cem anos, o Barão de Melgaço, que teve em mãos o arquivo do governo de Mato Grosso, escreveu uma história do Real Forte do Príncipe da Beira, que passaremos a reproduzir em seguida, na íntegra, sem o interromper uma vez sequer. Eis, pois, a história do Real Forte do Príncipe da Beira, tal qual a escreveu o Barão de Melgaço:

Foi erigido para substituir a arruinada Fortaleza da Conceição ou Bragança, situada dois quilômetros abaixo. A primeira pedra foi lançada aos 20 de junho de 1776. É um quadrado fortificado pelo sistema de Vauban, revestido de cantaria, e destinado a montar 56 peças de artilharia. É fundado em terreno sólido, e o único que aí não se alaga nas grandes cheias do Guaporé, que neste lugar se elevam a 45 palmos. Esta construção era uma empresa colossal, em relação aos pouquíssimos recursos da Capitania (de Mato Grosso), em pessoal, material e dinheiro. Foi preciso mandar vir de fora operários, ferro, ferramentas e outros materiais, sem excetuar a cal. Deste gênero (cal) vieram do Pará perto de mil alqueires; veio depois de Cuiabá, da Povoação de Albuquerque, e afinal do Registro do Jauru, por ter-se achado, não longe, pedra calcária.

O Governador Luís de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres, que concebera o projeto desta gigantesca obra e fez os maiores esforços para realizá-la, não dissimulava as dificuldades que tinha a superar.

Em ofício de 30 de novembro de 1778, dirigido ao Ministro, dizia Cáceres:

Na construção do Forte do Príncipe da Beira (...) continuo em fazer prosseguir com todo aquele maior vigor e diligência de que se fazem suscetíveis os escassos meios deste País; aonde, além do dinheiro que é o indispensável instrumento com que se aplainam as dificuldades e adiantam-se semelhantes trabalhos, faltam ainda verdadeiramente vários outros recursos necessários, como sejam os competentes artífices e operários, que se deveriam empregar,

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de maneira que, sobre alguns remetidos do Pará, depois das mais excessivas delongas e despesas, fui obrigado, por último, a mandar vir um mais considerável número deles, que hão de ser escravos do Rio de Janeiro, onde a referida encomenda, sobre conta da Real Fazenda, se fez há perto de um ano; mas, antes dos fins do corrente de 1779, não poderá chegar a esta Capital (Vila Bela), sendo fácil de calcular por esta demora os obstáculos que quase insuperavelmente se oferecem nestas tão desprovidas como remotas regiões, apesar do grosso cabedal que tudo custa, e por maiores que sejam os esforços de zelo e economia.

Em ofício, de 4 de janeiro de 1785, dizia Cáceres:

O novo Forte do Príncipe da Beira, em cuja regular Fortificação se tem sempre trabalhado desde 1776, ao menos com 200 pessoas, daí para cima, exatamente mantidas e pagas de seus vencimentos até hoje, e combinando-se os mesmos esforços com os diminutos meios e faculdades de que só posso prevalecer-me, de alguma forma se poderia comparar aos de um pigmeu que, com os seus pequenos braços, se propusesse a abarcar algum vasto e mal seguro edifício, no meio dos desertos, sustentando-o e preservando-o das muitas ruínas e desamparos a que precisamente se achasse exposto em semelhantes termos...

O andamento dessas obras afrouxou com a retirada de Luís de Albuquerque, em 1790, para Portugal. Os Generais seus sucessores tiveram de repartir a sua atenção e os poucos recursos de que dispunham, para outros pontos da fronteira de Mato Grosso, e ainda, pela do Baixo Paraguai. O Sargento-mor José Manoel Cardoso da Cunha, mandado ao Forte em 1797, com um reforço de cento e tantos homens, escrevia ao Governador da Capitania de Mato Grosso:

Para se concluir tudo isto se carece de muita cal e muitos obreiros, de mil para cima que, com os que aqui se acham, me parece que nem em 10 anos se acabam as referidas obras.

A artilharia que então (1797) aí existia eram 12 canhões de calibre 6, três de 3, e um de 1, todos de ferro, e só seis reforçados. Desde então a correspondência oficial mostra a progressiva decadência do Forte, a qual tornou-se mais rápida sob o governo provisório, na época da Independência do Império. O comando que fora, outrora, confiado aos mais distintos oficiais e de mais elevada patente, passou a ser exercido por subalternos.

Em 1824 recaiu em um velho miliciano, José Francisco da Cunha, que, desde havia muito, morava com sua família junto ao Forte. Era um homem de cor e quase analfabeto: não lhe faltavam porém zelo pelo serviço e conhecimento do estado das cousas, como se vê dos seguintes trechos da sua tosca correspondência, que patenteia o mísero estado do Forte. Em 28 de fevereiro de 1824, ele dizia:

Eu vou participar a V. Exª o miserável estado, em que encontrei o armamento desta repartição, que indo mandá-lo limpar, fui achar uns cheios de terra até a boca (...) há 11 para 12 anos que se não limpa o armamento de mão (...) os aquartelamentos todos descobertos e com falta de ferragens e fechaduras (...) Estes (os soldados) todos vivem desgostosos, sem perceberem cousa alguma.

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Em 12 de março de 1830, tornava a escrever:

Será possível, Ex.mo Sr., que estes miseráveis um ano e dois se hão de vestir com quatro oitavas? (...) também vou por meio destas, com a maior submissão e respeito, pedir-lhe que me clareie se há alguma ordem para se destruir este Presídio (praça de guerra), pois me vejo cercado de licenças sem que me mandem gente alguma (...) mas eu lembro que, há 55 anos, que giro nesta fronteira e me não é oculto o modo por que eram tratados meus antigos predecessores, e que era o brinco dos antigos predecessores de V. Exª este importante Forte, onde se gastaram uns poucos de milhões (...) Eu, Exmo. Sr., sem guarnição alguma, como já propus na presença do Ex.mo Sr. Governador das armas, por uma relação, a guarnição que tenho; e esta guarnição grita, os soldados de 2ª linha choram, o hospital geme, sem eu ter com que os possa curar. As doenças de circunstâncias, eu sou que administro o modo de as curar por não haver cirurgião. A quem se há de dizer, Ex.mo Sr., que há quatro anos que não vem uma libra de açúcar, nem um frasco de cachaça, e não falemos na farinha, ao menos para atender a esses miseráveis (...) já não vem uma onça de remédio, já não vem um meio de sola, já não vem uma libra de sebo (...). Eu não sei, Ex.mo Sr. o que pretendem sobre isto (...). Com respeito e submissão, vou prostrar-me aos benignos pés de V. Ex.ª, pedir-lhe o meu rendimento, pois há 8 anos, Ex.mo Sr., a trabalhar com o meu filho para poder subjugar este presídio, sem termos recebido um só vintém!

Falecendo este Comandante em 1830, sucedeu-lhe interinamente seu filho, Capitão de milícias. Este foi submetido por um alferes do Exército, contra quem se levantou a guarnição, e bem assim contra outro alferes, que foi nomeado Comandante em 1831. Alguns Presidentes deram providências que foram ineficazes por faltarem os meios indispensáveis para acudir às mais necessárias precisões daquele estabelecimento. Em 1864, o Presidente, General Albino de Carvalho, incumbiu o exame do estado do Forte a um oficial, de cujo relatório consta que:

estão-se desmoronando as muralhas, sobre as quais desde há muito cresce mato e até arvoredo corpulento. O madeiramento dos edifícios, dos reparos de artilharia, da parlamenta e armamento, destruído pelos cupins. Os artigos de metal, carcomidos de ferrugem, tendo sido grande porção de ferragem dos reparos das portas, da palamenta (necessários ao serviço de uma boca-de-fogo), etc., arrancada e vendida aos Bolivianos, a troco de víveres, sem excetuar os gatos de ferro que prendiam a obra de cantaria. O equipamento de artilharia e infantaria inservível: não há um cartucho de artilharia, nem com que fazê-lo; só existem oito libras de pólvora; não há bandeira; só existe uma pequena canoa de montaria pertencente a uma mulher. A guarnição compõe-se de um alferes, um Cadete servindo de Sargento e 10 soldados, dos quais 4 estão destacados nas Pedras e 3 no Itonamas, ficando 3 para o serviço do Forte. A Povoação, outrora considerável (mil pelo menos) de mestiços e índios, que moravam nas imediações, está reduzida a poucos indivíduos, que entre todos mal chegam a plantar um alqueire de milho, raros pés de mandioca e nenhum feijão; a semente do algodão até perdeu-se, e alguns tecidos, de que necessitam, são comprados dos índios Mojos, donde tiram também o necessário para o sustento.

Terminava dessa maneira, em 1864, a história escrita à altura desse mesmo ano, pelo Barão de Melgaço. Nessa história, vê-se que o Forte nunca chegou a ficar completamente terminado. Devemos subentender, entretanto, que nunca chegou a ficar completamente equipado e talvez faltando alguma obra complementar, sem maior importância.

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Tanto isto é verdade que o historiador Pizarro, escrevendo cerca de 1820 sua “Memória Histórica”, disse do Real Forte do Príncipe da Beira:

Foi construído todo este edifício com pedras de cantaria; e a muralha, escarpada até a cortina, tem de altura 25 palmos, com um portão majestoso na frente do Norte, sobre o qual, fabricado de abóbada, e com pedra lavrada por canteiro, se colocou a referida inscrição. Defronte deste portão está um rebelim (construção externa de duas faces, que formam ângulo saliente, para defesa) com ponte levadiça, e um famoso fosso, cisterna, casa de pólvora subterrânea, hospitais, armazéns, quartéis para o Governador, e para a guarnição, prisões, e uma Capela decente, sem que algum desses edifícios se veja de fora das muralhas. Logo que se concluiu a obra, passou a habitá-la, no dia 31 de agosto de 1783, o Comandante, que era do Forte antigo da Conceição, com todo Trem Militar, e Fazenda de El Rei. É, porém para lamentar que, construído esse edifício, assaz útil, a tanto custo, e não havendo além disso outro semelhante, à exceção do de São José do Macapá, na Capitania do Pará, de momento a momento se vá arruinando, por se apoderarem os morcegos de todas as casas, e tão abundantemente que, principiando a sair delas uma hora antes da entrada do sol, o encobrem, como formando uma nuvem densa, pelo espaço dilatado da sua carreira, até as campanhas de Espanha, donde voltam de madrugada. Dista de Vila Bela 110 léguas em linha reta e pelo Rio 190, por muitas voltas que faz em toda essa extensão. Ocupam este lugar 477 habitantes; e aqui termina o Distrito da cidade do Mato Grosso, dividido pelo Rio Paraguai.

Em 1820, Pizarro afirmava que o Real Forte do Príncipe da Beira ficara concluído em 1783, sendo que, no dia 31 de agosto desse mesmo ano, o Comandante do antigo Forte da Conceição passava a residir nele. (FERREIRA, 1961)

- No Interior do Forte

Subindo a escada provisória, abrimos o pesado portão de madeira e penetramos no Forte. Achamo-nos na entrada de abóbada cilíndrica, alta. A esquerda há outra porta que leva a diversos cômodos, o último dos quais com grossas grades de ferro nas janelas. Devia ser uma prisão. À direita, outra porta dá para outro cômodo.

Continuando, abrimos um grande portão de madeira, com grandes gonzos de ferro. Passando-o, encontramo-nos no pátio interno do Forte. E surgindo da vegetação alta que ali cresceu, elevam-se paredes mostrando-nos as molduras, em pedra trabalhada, das suas janelas e portas. Nada mais existe das estruturas de madeira dos telhados. São as paredes dos dezesseis alojamentos construídas de pedras e argamassa de calcário. Retiradas as telhas e as estruturas de madeira, a vegetação cresceu nas juntas de argamassa das paredes, trincou-as, e a água das chuvas, penetrando lentamente, continuou o trabalho de desagregação dos materiais. E assim foram caindo as partes superiores das paredes. Muitos dos alojamentos hoje nada mais são do que escombros. (FERREIRA, 1961)

- A Construção do Forte

Em meio ao silêncio ambiente, observando as paredes que surgem da vegetação, vêm-nos à memória os dias da construção do Forte do Príncipe da Beira, há quase dois séculos.

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As obras, iniciadas em 1776, com a presença do Governador de Mato Grosso, o Capitão-general Cáceres, nunca foram interrompidas. Dois engenheiros sobressaíram ali: Domenico Sambocetti e Ricardo Franco de Almeida Serra. Este último foi o braço direito de Cáceres durante todo o tempo da construção, que durou seis anos. Nunca menos de duzentos homens ali trabalharam. Eram engenheiros, arquitetos, artífices, pedreiros, carpinteiros, trabalhadores de todas as categorias, de Portugal e do Brasil, e que ali executaram uma obra perfeitíssima. Os trabalhos de arte executados em pedra são admiráveis. Não há uma aresta de um bloco que seja, destoando da harmonia geral. Não estamos diante de uma construção notável pelas suas extraordinárias proporções. Estamos diante de uma obra de arte. Notamos neste Forte o mesmo cuidado, a mesma perfeição que os artesãos dedicavam à construção de palácios e catedrais. Esta obra foi feita para durar uma eternidade.

Parece-nos um conto de fadas esta Fortaleza construída com tanto carinho e perfeição, por engenheiros, arquitetos e artesãos, numa clareira aberta em plena floresta equatorial amazônica.

Estamos agora adivinhando, naqueles anos de construção, aqueles homens entalhando na pedra bruta, medindo exatamente, dispondo peças com perfeição geométrica, enquanto junto deles rondavam índios ferozes e esturravam onças.

A localidade mais próxima era Vila Bela, a uma distância de cerca de setecentos quilômetros, Rio Guaporé acima. E, então, concluímos que esta gigantesca obra foi um milagre da vontade humana e a afirmação das qualidades inexcedíveis de uma raça que, navegando mares desconhecidos, descobrira novos mundos preparando o advento do Renascimento.

E, assim, nos orgulhamos de ser seus descendentes. A energia de um povo que deixou este testemunho em plena selva virgem da Amazônia não perece, nem se dilui no tempo. Essas excelsas qualidades do meu povo, que sempre apregoei, sinto-as aqui, neste passado vivo e vibrante. (FERREIRA, 1961)

- Percorrendo o Forte

O escritor Manoel Rodrigues Ferreira, quase cem anos depois da visita do Dr. João Severiano da Fonseca, narra sua incursão ao Real Forte Príncipe da Beira nos idos de 1960:

Anda-se com certa dificuldade através da alta vegetação que nasceu no interior do Forte. Os espinhos seguram-nos a roupa e, às vezes, pisamos em falso nas lajes sob o capim alto. Sim, capim, e também grama. Há cerca de dois anos, um Tenente da guarnição do Exército ganhou um veado vivo e deixou-o a pastar, preso no interior do Forte. Alguns meses depois, regressando ao Rio de Janeiro, foi com os seus comandados, buscá-lo. Correram-lhe atrás, e o veado acabou subindo ao alto da muralha. Desesperado com o cerco, o veado saltou espetacularmente da alta muralha, morrendo instantaneamente ao chocar-se no fundo do fosso que circunda a parte do Forte adjacente ao Rio. Caminha-se, pois, com certa dificuldade através da vegetação alta.

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No centro do Forte, o chão é de rocha viva, por isso vê-se imediatamente uma abertura quadrada, com talvez quarenta centímetros de lado. Dificilmente um homem poderá passar através dela. A respeito desta abertura correm as versões mais fantasiosas e fantásticas. Dizem que é a entrada de um subterrâneo que vai sair quase quinhentos metros além, no interior da mata, e, também, que um ramo ia dar na margem do Guaporé. Aliás, em 1877, João Severiano da Fonseca, que ali esteve, escreveu sobre o subterrâneo existente no centro da Praça do Forte:

No centro há uma grande cisterna, com os escoadouros necessários para o excesso de águas, cuja abertura de saída vê-se na barranca do Rio, como um corredor quadrado, de dois palmos de face, fechado por uma grade de ferro.

Há oitenta e três anos, João Severiano viu um pequeno túnel que ligava a grande câmara subterrânea à margem do Rio Guaporé. Hoje, não existe mais essa saída junto à margem. Pelo menos não é mais visível. João Severiano nada diz sobre alguma saída subterrânea para o morro próximo, que, com toda a certeza, nunca existiu.

Deitando-se na terra e introduzindo-se a cabeça na abertura, pode-se verificar que há uma grande câmara subterrânea, de talvez dez metros de altura e outros tantos de largura. Esta câmara é bem construída e em forma geométrica. Devido à escuridão, não se pode verificar se existe ou não alguma galeria que se destaca desta câmara.

Entretanto, podemos vislumbrar bem lá embaixo, a talvez uns dez metros de profundidade, o piso completamente forrado de excremento de morcegos, que no interior existem aos milhares, o que também confirma a informação dada por Pizarro em 1820.

Continuando a caminhar, chegamos aonde era a antiga Capela. Somente três paredes continuam de pé, e a parte superior da abertura onde estava a porta da sacristia está prestes a cair fragorosamente. O Sargento que me acompanha mostra, no interior da Capela, o buraco que um Sargento, em 1934, cavou, a fim de desenterrar os objetos de valor do “Príncipe”. Achou uma espada e objetas de metal do fardamento e que deveriam ser do engenheiro italiano Domenico Sambocetti, que tinha a patente de oficial do Exército Português.

E caminhando através dos escombros e das paredes, repentinamente afundo num buraco escondido pela vegetação. O Sargento não consegue reprimir um sorriso que a situação inesperada lhe provocara. E como eu insistisse em descobrir a razão do buraco, ele não viu outro jeito senão relatá-la. Em janeiro de 1959, uma praça da guarnição do Exército sonhou que havia um tesouro enterrado no interior do Forte (na região, denominam “enterro” estes tesouros enterrados). A praça sonhou, pois, que havia um “enterro” em certo lugar do Forte, e do qual ele se lembrou perfeitamente quando acordou. E apanhando um enxadão, correu para o Forte, cavou no local certo (isto é, visto no sonho), mas não achou tesouro algum. Ficou, entretanto, o buraco, para registrar o sonho da praça, e no qual acabei caindo. Parece que paira uma certa lenda em torno da existência de ouro escondido no Forte. Pois, vejamos o que escreveu João Severiano da Fonseca, em 1877:

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Contaram-me aí (no Forte) e já o tinha sabido em Mato Grosso (ex-Vila Bela), que há uns vinte anos um soldado, de nome Delfino, separando as pedras de umas minas, encontrara uma garrafa de ouro em pó; o que sabido pelo Comandante do Forte, também alferes, este chamara-a a si, primeiramente como sócio forçado e depois com os direitos de leão.

Três notícias temos, então, sobre a lenda de ouro no Forte: Em 1857, mais ou menos (segundo João Severiano), um soldado achou uma garrafa de ouro em pó entre pedras de umas ruínas no interior do Forte. Em 1934, o Sargento Comandante do Forte profanou uma sepultura existente na Capela do Forte, procurando achar a espada de ouro do “Príncipe” ali enterrado. E finalmente, em começo do ano de 1959, um soldado sonhou que havia ouro enterrado em determinado lugar da Praça do Forte, tendo ali cavado um buraco. Não há dúvida de que a lenda da existência de tesouros no interior do Forte parece ser antiga.

Já descrevemos a entrada principal do Forte, no início deste capítulo. Esta entrada era exclusivamente para pessoas. Há, entretanto, outra entrada lateral, na parte do Forte adjacente ao Rio Guaporé. Essa entrada é simples, tanto na parte exterior como na interior. Exteriormente, está ao nível do chão, e onde havia um pesado portão que deslizava sobre rodas. Hoje, deste portão só existem os grandes gonzos presos à parede, e no chão, dois círculos de ferro sobre os quais corriam as rodas. Essa entrada, a partir do portão, exterior, é em rampa, até alcançar o nível do pátio no interior do Forte. Nesta entrada, percebe-se, pela primeira vez, a largura do muro do Forte: cerca de seis metros! Esta entrada era utilizada para canhões, víveres, materiais, etc.

A cadeia ficava junto à entrada da porta principal. Ainda vê-se na parede vestígio das inserções das argolas, onde ficavam presos os condenados. Disse-me o Sargento que me acompanhava, que ali morrera um Padre, que se achava prisioneiro. Esta é, sem dúvida nenhuma, mais uma de tantas lendas que permanecem entre os poucos habitantes ao redor do Forte. Nas paredes das celas lêem-se frases escritas no século passado. Na cela oposta a esta, no Natal de 1958, estiveram presos, durante um mês, dois irmãos descendentes de sírio-libaneses da fronteira boliviana. Um deles, em fins de 1958, criou um sério incidente entre as guarnições dos exércitos brasileiro e boliviano, o qual entretanto não foi divulgado. No ano de 1959, esse jovem descendente de sírio-libaneses foi preso na cidade de São Paulo, como traficante de cocaína contrabandeada da Bolívia. Ali na parede da prisão do Forte, ele também deixou algo escrito, e inclusive a sua assinatura, e data. No presente século, foi essa talvez a única prisão que teve lugar no Forte.

Ao lado da entrada principal, junto à prisão, há uma escada de pedra que leva ao alto da muralha. Existem também, nos quatro cantos do Forte, rampas que levam igualmente ao alto da muralha. Estas rampas eram para as carretas que transportavam principalmente munições. Subindo no alto da muralha, panoramas deslumbrantes lá se avistam. A aproximadamente cem metros, vê-se o Rio Guaporé, que desaparece distante.

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Figura 55 – Forte Príncipe da Beira (Google)

Olhando-se para o interior do Forte, tem-se a impressão de uma cidade fantástica, abandonada, perdida no meio da vegetação. Paredes e escombros, revestidos de folhagem, surgem do capim e dos arbustos, como por encanto. É emocionante esta visão das ruínas dos grandes alojamentos. E ali a gente permanece perplexo, incapaz de coordenar qualquer pensamento sobre o que vê. No silêncio ambiente, fica-se irresistivelmente preso ao majestoso espetáculo destas ruínas que, na sua mudez de pedra e argamassa, evocam de maneira tão eloquente um passado glorioso e do qual tanto nos orgulhamos.

E começamos agora a percorrer a muralha. Sim, o termo correto é muralha. Pois a impressão que se tinha do exterior, de constituírem as altas paredes do Forte, um muro de pedra, desfaz-se observando-o aqui do alto. Realmente, são dois muros de pedra, um interno e outro externo, que correm paralelos e distantes um do outro cerca de seis metros. O espaço entre esses dois muros encheu-se com terra, até a parte superior. Por isso. aqui em cima, nasceu também uma alta vegetação, através da qual vamos caminhando com certa dificuldade. No chão, vemos uma casca (pele) de serpente, que ali devem abundar. Chegamos agora à parte do Forte que dá para a mata. O espetáculo é empolgante. A muralha em sua parte externa é aqui bastante alta, talvez vinte metros, e ao seu pé inicia-se a majestosa floresta equatorial amazônica, com suas portentosas espécies vegetais. E assim vamos caminhando no topo da muralha. Não há hoje um único canhão no Forte. Canhões que vieram de Portugal, e para aqui foram trazidos através dos Rios Madeira e Guaporé. Por qualquer dos dois caminhos, o homem demonstrou a sua energia. Pelo Madeira, teve de vencer os 420 quilômetros de Rio encachoeirado. Pelo Guaporé, teve de atravessar o áspero planalto dos Parecis. Por qualquer dos dois caminhos, o transporte dos canhões para o Forte do Príncipe da Beira constituiu por si só, uma epopeia que ficará gravada na nossa história como uma demonstração do valor e da energia da nossa raça. (FERREIRA, 1961)

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- A República

Em 1776, a monumental Fortificação fora construída para defender o Estado do Brasil, dos espanhóis. Agora, cento e treze anos depois — em 1889 — era abandonada à pilhagem dos bolivianos. Dezesseis anos após a proclamação da República, a obra de saque estava concluída. Por isso, pouco antes de 1906, ao visitar o Real Forte do Príncipe da Beira, escreveu um ilustre político mato-grossense, o engenheiro Manoel Esperidião da Costa Marques:

Nas povoações bolivianas de Madalena, de Baures, de São Joaquim, há telhas, há portadas, há tijolos das casas da Fortaleza, como há também imagens de sua Capela na Igreja desta última Povoação! No Porto de Antofogasta, no Pacífico, já uma vez um cruzador inglês comprou um dos pequenos canhões de bronze, que tem as armas de Portugal, do tempo de D. Maria I e o levou para o Museu Histórico de Londres!

E continua Costa Marques:

E assim as sólidas casarias de dentro da Fortaleza, que formavam duas ruas e que eram nobres moradas dos Comandantes do Forte e dos oficiais; Capela, armazéns, depósitos, têm apenas hoje as suas paredes, que, sendo de pedra e cal, hão de ficar de pé e hão de atestar por muitos séculos a nossa incúria (...)

Essas palavras foram escritas pouco antes de 1906, por um ilustre mato-grossense, que chegou a Presidente do seu Estado. São atualíssimas. (FERREIRA, 1961)

- Conclusão

A crônica secular das Fortificações luso-brasileiras compõem memorável capítulo da história colonial. Primorosa linha de defesa, que delineou as remotas lindes do território, não representava mero produto do engenho diplomático e do descortino estratégico, expressivos componentes de uma perene política de Estado. Avultava, sobretudo, como resultante da vitalidade da raça, do rijo caráter nacional, da épica obstinação e do ancestral desassombro que, desde o limiar dos tempos, impeliram os portugueses a portentosos empreendimentos na realização de seu destino histórico. A nacionalidade é a herança secular das ingentes lutas, dos penosos sacrifícios e das soberbas conquistas de nossos maiores, de que os antigos redutos coloniais prestam indelével testemunho no litoral, nas selvas, nas fronteiras longínquas, na vastidão enfim do continente brasileiro. Ali, na agrestia indomada dos sertões do Guaporé, sobranceiras na barranca do Rio, as venerandas muralhas do Forte Príncipe da Beira entestam os séculos, indiferentes às intempéries tropicais, insensíveis à agressiva mataria que busca ocultar-lhes o simétrico perfil. O Forte Príncipe da Beira, no silêncio de seus dias, revela a grandiosa lição de fé, de coragem moral, de inequívoca determinação e de admirável amor à terra natal que legaram às presentes gerações seus intrépidos construtores. Reminiscência de pedra, marco do passado, o Forte Príncipe da Beira expressa a mensagem histórica de nossa formação nacional. (NUNES)

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Madeira-Mamoré - Ferrovia do Diabo

Enfim, a tal estaca de Guajará-mirim tem estado encantada: ainda não apareceu quem queira tomar inteira responsabilidade de a ter fincado; parece que o espírito maligno se meteu nessa

estaca. (José Nebrer, Jornal do Commercio, 25.09.1885)

Alguns “interpretadores” da história teimam em julgar acontecimentos pretéritos com os pés e pensamentos fundeados no momento presente. É necessário conhecer todos os fatos e julgá-los dentro do contexto histórico em que se desenvolveram e não de maneira estanque como teimam em fazê-lo atualmente. Ao longo do tempo, a humanidade sofre influências políticas, sociais e econômicas de toda ordem alterando conceitos e preceitos que eram totalmente desconhecidos por aqueles que esses pretensos pesquisadores pretendem julgar. A história da Ferrovia do Diabo não foge à regra e vamos tentar reportar os fatos com o máximo de imparcialidade possível.

A melhor solução para a transposição das Cachoeiras, sem dúvida, virá em um futuro próximo depois da construção das Hidrelétricas do Rio Madeira cujos reservatórios vão submergir estes obstáculos e, mais adiante, serão construídas eclusas para transpor essas colossais obras de arte da engenharia brasileira.

Há mais de cento e sessenta anos a questão da navegação do Madeira-Mamoré mobiliza estadistas e desafia a argúcia de engenheiros. Com a construção das Hidrelétricas do Rio Madeira, diversas Cachoeiras, Corredeiras e mesmo Saltos ficarão submersos, bastando se levar avante a construção das eclusas, já planejadas, para que este sonho, acalentado há décadas, seja alcançado da maneira mais inteligente. Não se pode construir Hidrelétricas, na Amazônia, sem se procurar viabilizar o transporte fluvial, através da construção de eclusas, fundamental nesta terra das águas.

- Rio Madeira e Mamoré

Passar através das Cachoeiras com êxito exigia um perfeito conhecimento dos seus canais. Os índios bolivianos, que eram moradores principalmente na Foz do Rio Beni,

sempre foram considerados os melhores práticos da região, isto é, grandes conhecedores dos canais das Cachoeiras, guiando através deles, as embarcações dos viajantes e negociantes. Entretanto, os três saltos (Ribeirão, Jirau e Teotônio) – e algumas

Cachoeiras, principalmente em certas épocas do ano- tinham que ser contornados por terra. Eram os chamados varadouros. Nesses locais, as embarcações encostavam à

margem e procediam ao transporte por terra. (FERREIRA, 1959)

O Madeira é o maior afluente da margem direita do Amazonas. A partir de sua Foz, navega-se Rio acima por mais de mil quilômetros. São águas mansas que fluem sem empecilhos pela extensa depressão amazônica. Pouco acima de Porto Velho, porém, surge a primeira de suas Cachoeiras: a de Santo Antônio. O Mamoré, que na sua confluência com o Beni recebe o nome de Madeira, por sua vez apresenta outras até a cidade de Guajará-mirim.

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- Solução Boliviana (1846)

Bolivia se desenvuelve en condiciones difíciles. El ambiente geográfico, si bien de una grandiosidad excepcional, es rebelde a las exigencias de la vida. La conservación de esta es ardua entre las gigantescas breñas y las desoladas llanuras de los Andes. Además, el aislamiento geográfico de Bolivia obstaculiza sus comunicaciones con los otros países del

mundo. (Guillermo Francovich, 1951)

Logo após sua independência, em 1825, o território boliviano se estendia até o Pacífico. Em 1829, Santa Cruz assume o Governo boliviano e cria, em Cobija, o Porto Franco da Bolívia. Nessa época, existiam duas rotas, cujo transporte era feito por muares, que permitiam que se acessasse o Mar. Um deles saindo de La Paz até Puno, no Peru, de onde se descia os Andes até os Portos peruanos de Arica e Molendo; e o outro, totalmente em território boliviano, atravessava o deserto de Atacama até o Porto de Cobija. Como o Canal do Panamá ainda não existia, os navios eram obrigados a contornar o Estreito de Magalhães para alcançar os portos europeus e Norte-americanos. Uma das alternativas mais lógicas seria descer os Rios Mamoré e Beni, afluentes do Rio Madeira, e alcançar o Atlântico através do Rio Amazonas.

Este inconveniente pode ser facilmente vencido. Os nossos estadistas deviam concentrar todas as suas energias e atenções na navegação do Madeira, ao invés de cogitar de Arica

ou Cobija. (José Augusto Palácios)

Em 1846, o engenheiro boliviano José Augusto Palácios, depois de navegar os Rios Mamoré e Madeira, apresentou um relatório defendendo a tese da construção de uma estrada que contornasse as Cachoeiras.

- Solução Norte-Americana (1851)

Uma estrada cortando diretamente através do território brasileiro, da Cachoeira de Santo Antônio na direção Sudoeste, até o ponto navegável no Rio Mamoré, não excederia cento e oitenta milhas. Esta estrada passaria entre morros, vistos de tempos em tempos, para

Leste, onde os terrenos, com toda a probabilidade, não são inundados. Sobre uma estrada de animais, tal como vimos na Bolívia, a carga pode ser transportada em cerca de

sete dias de um ponto a outro. (Lardner Gibbon)

Em 1851, os Tenentes William Lewis Herndon e Lardner Gibbon, comissionados pelo Governo Norte-americano, partiram de Vichuta, na Bolívia, e desceram os Rios Guaporé, Mamoré, Madeira e Amazonas. No relatório apresentado, Gibbon considera que:

As cargas dos EUA podem alcançar a primeira Cachoeira, no Madeira, em trinta dias. Por uma estrada comum para mulas, através do território do Brasil, as cargas podem ser transportadas da Cachoeira inferior à superior no Mamoré, em menos de sete dias, numa distância de cento e oitenta milhas; daí, por vapor, pelo Mamoré e Guaporé, até Vinchuta, numa distância de quinhentas milhas, em quatro dias. Dez dias mais da base dos Andes, pela estrada que caminhamos, perfazem cinquenta e um dias de Baltimore a Cochabamba, ou cinquenta e nove dias a La Paz, o empório comercial da Bolívia, onde as cargas geralmente chegam de Baltimore em cento e oitenta dias, pelo Cabo Horn, às vezes ainda retardadas no caminho através do território do Peru, a partir de Arica.

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- Solução Brasileira (1861)

O Madeira é o caminho natural da Província de Mato Grosso, e devia ser preferido ao Paraguai, pela razão altamente política de pertencer-nos exclusivamente. O Paraguai traz o Brasil em posição falsa, e tem-lhe absorvido grandes somas. (...) A Bolívia não pode

desenvolver-se com a navegação do Madeira. O Brasil, concedendo-lhe este grande favor em troca de outros, ainda lucrava muito, porque o comércio dessa região vinha a ser

nosso. (João Martins da Silva Coutinho)

Em 1861, o Presidente da Província do Amazonas determinou ao engenheiro João Martins da Silva Coutinho que fizesse um estudo da colonização e navegação do Rio Madeira. Silva Coutinho iniciou a viagem no dia 1° de julho e apresentou seu relatório no dia 3 de outubro onde afirma:

No caso de construir-se uma estrada de ferro para vencer as Cachoeiras, a viagem da Corte (Rio de Janeiro) a Vila Bela (hoje Mato Grosso) podia ser feita em um mês. Em 15 dias, vem um vapor do Rio de Janeiro ao Pará, do Pará à Foz do Madeira em cinco, e daí vai à primeira Cachoeira em quatro. A locomotiva, demorando-se muito, transpunha 50 léguas em 24 horas, e da última Cachoeira a Vila Bela um vapor chega em cinco dias.

- Guerra do Paraguai

Se a navegação através do Madeira e do Amazonas parecia ser de necessidade vital para o desenvolvimento da Bolívia, com a Guerra do Paraguai surgia também para o Brasil,

como de importância política e estratégica capital. (FERREIRA, 1959)

A Guerra do Paraguai tornou evidente a necessidade de se viabilizar a navegação do Rio Madeira ligando o Mato Grosso ao litoral. José Tavares Bastos, em 1866, comenta:

A importação e a exportação da Bolívia fazem-se atualmente pelos Portos do Pacífico, e principalmente pelo de Arica, na República do Peru. (...) A despeito das Cachoeiras do Madeira, o comércio da Bolívia pelo Amazonas, que há quatro anos antes não existia ou era representado por um algarismo quase nulo, sobe constantemente.

Em relação aos Portos do Pacífico e a saída pelo Rio Paraguai afirma:

Os bolivianos, porém, não encontrarão nessas direções vantagens iguais às que oferece o Amazonas. Introduzido o vapor no Madeira, o que depende somente da livre navegação do Amazonas, porque não faltará empresário estrangeiro que o tente logo; e rasgada a estrada marginal das Cachoeiras que deve ligar a navegação do Madeira à do Mamoré, não resta dúvida de que os melhoramentos introduzidos nas vias de comunicação para o Pacífico ou Paraguai não arrebatarão da linha do Amazonas aquilo que há de ser o seu tributário forçado, isto é, o comércio do Norte e do Centro da Bolívia.

Tavares Bastos, antevendo o futuro, diz:

Mas não é lícito supor que a livre navegação permitiria a algum ousado ianque ou a um corajoso bretão lançar um pequeno vapor no Mamoré, outro no Madeira, e construir a estrada que deve evitar as Cachoeiras?

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- Tratado de Ayacucho – 27.03.1867

O Tratado de Amizade, Limites, Navegação, Comércio e Extradição celebrado na cidade de Ayacucho, acordado entre o Brasil e a Bolívia, assim se referia às questões de comércio e navegação:

Artigo 7° - Sua Majestade o Imperador do Brasil permite, como concessão especial, que sejam livres para o comércio e navegação mercante da República da Bolívia as águas dos Rios navegáveis, que, correndo pelo território brasileiro, vão desembocar no Oceano. (...)

Artigo 8° - A navegação do Madeira, da Cachoeira de Santo Antônio para cima, só será permitida às duas altas partes contratantes (Brasil e Bolívia), ainda quando o Brasil abra o dito Rio até esse ponto a terceiras nações. Todavia os súditos destas terceiras nações gozarão da faculdade de carregar as mercadorias nas embarcações brasileiras e bolivianas.

Artigo 9° - O Brasil compromete-se desde já a conceder à Bolívia, nas mesmas condições de polícia e de portagem, impostos aos nacionais e, salvos os direitos do fisco, o uso de qualquer estrada que venha a abrir, desde a primeira Cachoeira, na margem direita do Rio Mamoré, até a de Santo Antônio, no Rio Madeira, a fim de que possam os cidadãos da República aproveitar para o transporte de pessoas e mercadorias, os meios que oferecer a navegação brasileira, abaixo da referida Cachoeira de Santo Antônio.

- Engenheiros Brasileiros

Quantas estão sendo construídas com o capital estrangeiro, e quantas com capital nacional, mostrando que estas últimas, construídas por engenheiros brasileiros, custaram

menos do que as inglesas, por metade. (James W. Wells, Conferência na Praça do Comércio, Londres, 16.03.1887)

Infelizmente a mentalidade tacanha de nossos estadistas não reconhecia a capacidade empreendedora dos engenheiros brasileiros capazes de construir ferrovias melhores e a menor custo do que os “famosos” engenheiros europeus. Foi necessário um estrangeiro mostrar isso para que quase oito meses depois o tema repercutisse no país. A indignação dos engenheiros brasileiros foi reportada na “Revista de Estradas de Ferro”, editada no Rio de Janeiro pelo Engenheiro Francisco Picanço, no dia 31.10.1887, sob o título “Custo das estradas de Ferro no Brasil”. O artigo comprovava que as ferrovias construídas por engenheiros brasileiros custavam menos da metade do que as construídas pelos ingleses.

- “Engenheiros Keller” – 10.10.1867

Vamos voltar ao ano de 1867, sete meses depois da assinatura do Tratado de Ayacucho. O Ministro da Agricultura, mostrando o quanto o complexo de inferioridade estava arraigado no alto escalão do Governo, determinou aos engenheiros alemães José e Franz Keller que estudassem as melhores formas de se estabelecer uma ligação do Rio Madeira ao Rio Mamoré, contornando as Cachoeiras, considerando dentre elas a construção de uma ferrovia.

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Os Keller, depois de percorreram a região durante apenas quatro meses e três dias, propuseram três soluções. As alternativas apresentadas, sem reconhecimento detalhado do terreno, poderiam ter sido retiradas de qualquer “Vade Mecum” de engenharia, da época, sem a necessidade de reconhecimento “in loco”. Os alemães não tiveram, absolutamente, tempo de esboçar qualquer tipo de projeto e suas estimativas de custo não tinham qualquer fundamento técnico. Em relação à ferrovia eles simplesmente confessaram que não haviam visto o terreno em que ela iria percorrer. A missão dos Keller foi simplesmente uma piada de mau gosto. As “sugestões”, reportadas no livro “The Amazon and Madeira Rivers”, foram:

1°) Construção de planos inclinados, pelos quais os navios pudessem vencer os fortes declives.

Nos planos inclinados ou mortonas, as embarcações com a carga se colocam num carro de ferro, correndo sobre trilhos, que continuam mesmo por baixo d’água, até a profundidade necessária.

2°) Abertura de um canal à direita das Cachoeiras.

A abertura de um canal de navegação na margem direita, de um comprimento de 50 léguas mais ou menos praticável para pequenos rebocadores a hélice, encontra no forte declive geral dessa parte do Rio uma dificuldade considerável. Tornar-se-ia indispensável a construção de comportas, porque a velocidade das enchentes seria tamanha que poderia impedir a navegação, tornando-se ao mesmo tempo a conservação do canal dificílima.

3°) Construção de uma Estrada de Ferro de aproximadamente 50 léguas de extensão.

Este traço não seguiria a linha reta entre Santo Antônio e Guajará-mirim por ser o nivelamento de um traço nesta direção forçosamente muito defeituoso e inteiramente impróprio pra uma Estrada, por causa das ramificações da Serra Geral (Serra dos Parecis), que se estendem até a margem direita do Rio, porém, nem assim seria preciso seguir em todos os pontos as curvas do Rio, podendo-se atalhar diferentes de entre elas.

- Governo Boliviano

Não é já somente uma aspiração patriótica a Estrada de Ferro do Madeira. De mera concepção, esta grande idéia passou já para o terreno da prática.

(Ministro da Agricultura do Império)

Logo após a assinatura do Tratado de Ayacucho, o Governo boliviano enviou ao México o General Quentin Quevedo, chefe da delegação boliviana naquele país. Quevedo tinha também a missão de encontrar, nos Estados Unidos, empresários interessados em construir uma estrada que contornasse as Cachoeiras do Rio Madeira. O Presidente mexicano Juárez entregou a Quevedo diversas Cartas de recomendação que deveriam ser entregues aos Norte-americanos. Uma dessas Cartas estava endereçada ao Coronel Earl Church que imediatamente se interessou pela proposta boliviana.

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- Coronel Earl Church

O Coronel Church nasceu em New Bedford, Estado de Massachusetts, a 7 de dezembro de 1835. Os que acreditam na hereditariedade moral não terão que procurar muito longe a origem de seu caráter ilibado, do pendor que o impelia à aventura, de suas tendências militaristas, de sua disposição para viajar, da capacidade administrativa de que era dotado e de sua predileção pelas construções ferroviárias, qualidades essas que constituíram os traços marcantes de sua personalidade durante os anos de madureza. Pela linhagem paterna, descende diretamente de Richard Church que, em 1632, veio de Oxford, na Inglaterra, para Plymouth, no Estado de Massachusetts, onde se casou com Elizabeth Warren, cujo pai viera para a América no “Mayflower” e era ascendente do General Warren, tombado em Bunker Hill.

Um dos filhos de Richard Church foi o capitão Benjamin Church, famoso líder colonial que combateu os índios durante a guerra do Rei Filipe, e cujas heroicas explorações ingressaram na história e que, entre 1689 e 1704, comandou cinco incursões contra franceses e índios do Maine e de New Hampshire.

Pelo lado materno, o Coronel Church é descendente direto de Mary Clap, que em solteira assinava Mary Winslow, filha de Eduardo Winslow, chegado a Plymouth pelo “Mayflower” e três vezes eleito governador daquela colônia. Ainda pelos laços maternos, o Coronel Church está ligado à familia Pease, de Yorkshire, na Inglaterra, conhecida por ter promovido a construção da primeira estrada de ferro na Grã-Bretanha, tendo George Stephenson como engenheiro-chefe.

Os antepassados imediatos do Coronel Church mudaram-se para Rochester em 1725 e aí, por compra e doação, tornaram-se proprietários de cerca de quinhentos acres de terra a 25 quilômetros de Plymouth Rock.

A maior parte da propriedade primitiva, desbravada e expurgada de silvícolas, acha-se ainda em mãos de parentes seus. O pai do Coronel Church faleceu quando este era ainda bem menino e, ao atingir ele oito anos, sua mãe mudou-se de Rochester para Providence, onde o rapaz frequentou as escolas públicas e já aos quatorze anos, se destacava entre os melhores de seus colegas. Aos dezessete anos, optou pela profissão de engenheiro civil topógrafo, tendo conseguido colocar-se em uma estrada de ferro de New Jersey. Logo depois foi transferido para uma das ferrovias que correm ao poente do Mississipi, no cargo de engenheiro-assistente. Posteriormente passou a ser engenheiro-assistente na construção do túnel Hoosac e depois serviu, ainda, em uma estrada de ferro de Iowa.

A crise financeira de 1857 deixou-o descolocado e, por isso, aceitou o cargo que lhe ofereceram de engenheiro-chefe de uma estrada argentina, partindo ele rumo a Buenos Aires. Lá chegando, encontrou o país agitado e paralisados os trabalhos ferroviários, mas foi quase imediatamente designado para integrar uma comissão de engenheiros militares e topográficos cuja missão era explorar a fronteira sudoeste da Argentina e sugerir o melhor sistema de defesa contra as incursões hostis dos patagônios e outros selvagens que talavam os Pampas e as faldas dos Andes.

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Durante a execução de seu trabalho, passou a comissão pelas mais vivas emoções. Em nove meses, percorreu mais de 11 mil quilômetros e com o auxílio de uma força de 400 cavalarianos, empenhou-se em duas rudes refregas com os selvagens. Uma delas, travada a 19 de maio de 1859, teve origem em um súbito ataque desfechado por 1.500 guerreiros pertencentes a seis tribos diversas. Completamente despidos e cavalgando em pelo soberbas montarias, os selvagens atiraram-se, lança em riste, sobre a expedição, numa esplêndida carga à luz da lua. Durante três horas, desenrolou-se uma luta corpo a corpo em que ninguém pedia tréguas. Os selvagens foram, finalmente, obrigados a se retirar, mas o fizeram em boa ordem, levando em seu poder três mil cabeças de gado vacum e cavalar como presa de sua ousada sortida e deixando a expedição inteiramente à míngua de recursos. Cada membro da missão devia apresentar o seu plano pessoal para a defesa da fronteira e, conquanto o Coronel Church fosse o mais moço e menos experiente da turma, seu plano foi o escolhido.

Em 1860, o Sr. Church localizou a estrada de ferro entre Buenos Aires e San Fernando, na Argentina, e continuou em proveitoso exercício de sua profissão até o estalar da Guerra de Secessão em sua pátria. Às primeiras notícias do conflito, apressou-se em regressar aos Estados Unidos, onde ofereceu seus serviços em defesa da União. Durante a Guerra, serviu sucessivamente como Capitão, Tenente-coronel, Coronel e Comandante de uma brigada de voluntários no Exército do Potomac. Finda a rebelião, o Coronel Church foi para o México como correspondente do “New York Herald” e serviu nas duas últimas campanhas contra Maximiliano, em 1866 e 1867. Em ensaio biográfico estampado num jornal de Boston, anos atrás, consta que, conquanto o Coronel Church tivesse ido para o México como particular e ostensivamente como representante de um jornal, na verdade levava uma missão secreta do General Grant e, como tal, uniu-se às forças do Presidente Juarez em Chihuahua, tendo delineado a Campanha final que resultou na captura de Maximiliano. Entretanto, prevendo o destino que aguardava o mal orientado Imperador, partiu para os Estados Unidos percorrendo mais de 900 quilômetros por terra em seis dias e atravessando o golfo do México em um vaporzinho que quase sossobrou durante a tormentosa travessia. Em Washington, pleiteou a intervenção do governo americano com a qual esperava poder salvar Maximiliano da fatalidade que o aguardava.

Ao voltar do México, o Coronel Church, por algum tempo, fez parte do corpo de redatores do “New York Herald”. A seguir foi para a América do Sul, onde tomou parte nos emocionantes acontecimentos que precederam a queda de Lopez, o ditador paraguaio.

Torna-se desnecessário tratar aqui da atuação do Coronel Church na execução do projeto brasileiro-boliviano, visto como é justamente esse o objetivo das páginas que se seguem.

Em 1880, foi comissionado pelo governo norte-americano para visitar o Equador e elaborar um relatório sobre a situação do país; em 1891, representou a American Society of Civil Engineers no Congresso de Higiene e Demografia, em Londres; em 1895, fez uma viagem a Costa Rica com o fim de regularizar a dívida externa e examinar a situação da estrada de ferro local.

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Em 1898, foi eleito presidente do Departamento Geográfico da British Association e, em anos recentes, esteve interessado na projetada estrada de ferro transcanadense, visando ligar Quebec a Port Simpson, na costa do Pacífico, por um traçado 400 quilômetros mais curto que o que ia a Vancouver pela Canadian Pacific. É atualmente membro do Conselho da Hakluyt Society, da Royal Historical Society, Vice-presidente da Royal Geographic Society, da American Society of Civil Engineers, Companheiro de primeira classe da Ordem Militar da Royal Legion of the United States, Membro do Clube Naval e Militar da cidade de Nova York e dos Clubes Geográfico, Savage, e Ranelagh, de Londres.

O Coronel Church escreveu ainda, fartamente, sobre explorações e empreendimentos comerciais na América do Sul, bem como sobre a história da revolução mexicana. Da alta estima em que é tido na Royal Geographical Society, pode-se aquilatar pelos debates travados em torno de uma comunicação por ele apresentada à sociedade, em 1901, quando um de seus pares teve as seguintes palavras a seu respeito:

Ouvimos a comunicação maravilhados ante a soma prodigiosa de conhecimentos que possui o Coronel Church com relação ao continente sul-americano. Não existe, naquele continente, uma só montanha, um só rio, uma única planura, um trecho litorâneo ou um estuário sobre o qual o Coronel Church não esteja habilitado a nos fornecer dados precisos. (CRAIG)

- National Bolivian Navigation Company

Church foi até a Bolívia onde, no dia 27.08.1868, obteve a concessão de canalizar o trecho das Cachoeiras, organizando a National Bolivian Navigation Company. Não encontrou, porém, parceiros que financiassem o empreendimento nem nos EUA nem na Europa. Retornou à Bolívia, um ano depois, informando que só conseguiria levantar fundos em Londres se o Governo boliviano os garantisse. No final de 1869, o contrato inicial foi modificado para a construção de uma ferrovia ao longo das corredeiras ao mesmo tempo em que a Bolívia autorizava e garantia, no mercado europeu, um empréstimo de 2.000.000 de libras a juros de no máximo 8%.

- Madeira and Mamoré Railway

Como a ferrovia seria construída em território brasileiro, Church veio ao Brasil e, no dia 20.04.1870, o Governo brasileiro autorizou a concessão, por 50 anos, exigindo que a companhia se chamasse “Madeira and Mamoré Railway”, que ela ligasse Santo Antônio a Guajará-mirim, que a construção deveria se iniciar dentro de dois anos e concluída no final de sete, prazos que poderiam ser prorrogados excepcionalmente.

Church retornou a Londres onde contatou os banqueiros Erlanger & Co. que condicionaram o empréstimo à contratação da empreiteira Public Works Construction Company, para construção da Ferrovia, além da confirmação da garantia do empréstimo, tendo em vista mudanças na política interna boliviana.

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Equacionadas as imposições dos banqueiros londrinos, no final de outubro de 1871, Church e os senhores C. F. de Kierzkowski e L. E. Ross, engenheiros da Public Works, desceram o Rio Mamoré e o Rio Madeira até a Cachoeira de Santo Antônio. Os engenheiros da Public Works tinham a missão de avaliar e informar à sua empresa se a estrada era viável e o seu custo. Kierzkowski e Ross foram favoráveis ao empreendimento, apesar dos poucos dias que tiveram para fazer a avaliação e, no dia 01.11.1871, encenaram uma cerimônia simbólica, removendo a primeira pá de terra da construção da ferrovia.

- Início da Construção

No dia 06.07.1872, vinte e cinco engenheiros da Public Works chegaram a Santo Antônio, na época, sede de um Destacamento Militar brasileiro. Church, por sua vez, destacou o engenheiro Edward D. Mathews para fiscalizar os trabalhos da construtora, e o Governo brasileiro uma comissão chefiada pelo engenheiro Antônio Álvares dos Santos Sousa.

- Relatório do Eng° Antônio Álvares dos Santos Sousa (07.05.1873)

Segundo o relatório de Santos Sousa, dez meses depois de iniciados os trabalhos, os ingleses foram vencidos pelas dificuldades apresentadas pelo clima, pela floresta e endemias amazônicas e estavam prontos para bater em retirada.

Todos sofrem mais ou menos de febres intermitentes e, na ocasião da minha visita, estavam sendo atacados de varíola. Em geral parecem-me todos contrariados por não lhes ser permitido antecipar a retirada.

- Relatório do Eng° Genesto (07.1873)

A Public Works, alarmada com a situação que se desenrolava, enviou para Santo Antônio um engenheiro de sua confiança, o Sr. Genesto, que entregou seu relatório em julho de 1873. Após dez meses de “iniciados” os trabalhos, não havia sido assentado um único metro de trilho pela Public Works. O Jornal do Commercio, do Rio de Janeiro transcreveu alguns tópicos do relatório:

Essa via Férrea a ser construída terá uma extensão algo tanto maior do que a princípio se computava. Mas este inconveniente não é o maior no momento. São as obras, que demandam ingentes sacrifícios. Os trabalhos de terras atingem o quádruplo da primeira estimativa.

A persistir-se na ideia da realização da linha, segundo meus cálculos, a mesma levará 20 anos a construir, e não custará menos de 2.000.000 libras, sem incluir o sacrifício de grande número de vidas.

Em virtude do Relatório Genesto, a Public Works resolveu, no dia 09.07.1873, entrar com uma ação nos tribunais londrinos, solicitando rescisão do contrato, considerando que teria sido iludida quanto à extensão da estrada, as condições adversas do terreno e da salubridade da região afirmando textualmente:

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Que a zona era um antro de podridão onde seus homens morriam qual moscas, que o traçado cortava uma região agreste em que se alternavam pântanos e terrenos de formação rochosa, e que, mesmo dispondo-se de todo o dinheiro do mundo e de metade de sua população, seria impossível construir a estrada.

- Dorsay & Caldwell

A questão judicial com a Public Works congelara o empréstimo de 700.000 libras. Church não desistiu, procurou outra empresa para levar adiante o empreendimento cujo sucesso provaria a falta de competência da Public Works e lhe asseguraria uma vitória nos tribunais ingleses.

No dia 17.09.1873, Church assinou o contrato com a empresa Norte-americana Dorsay & Caldwell que assumiu o compromisso de construir os primeiros quinze quilômetros sem qualquer ônus, utilizando o material abandonado na selva pela Public Works. No dia 24.01.1874, chegaram a Manaus os primeiros Norte-americanos da Dorsay & Caldwell que seguiram imediatamente para Santo Antônio. Poucos dias depois, em Santo Antônio, faleceu, de malária, um membro da comitiva que, como os ingleses anteriormente, resolveram bater em retirada.

- Intervenção de D. Pedro II

D. Pedro II resolve auxiliar Church, consequentemente promovendo a construção da estrada, enviando ao Senado uma proposta adicional de 400.000 libras às 700.000 do empréstimo boliviano. O projeto de D. Pedro II dá novo alento a Church, mas ainda havia o problema com a Public Works que apresentara uma planta da ferrovia dando novo rumo à ação judicial e que poderia prejudicá-lo. Church propôs um acordo no qual a empreiteira receberia 45.000 libras, que seriam pagas pelo novo empreiteiro, mais as custas judiciais.

- A Golpista Reed Bros. & Co.

A Dorsay & Caldwell detinha o contrato até então, mas não tinha interesse em levá-lo adiante, por isso, transferiu-o para uma empreiteira de Londres, a Reed Bros. & Co. A Reed, demonstrando sua total má fé, aceitou o encargo contratual sem conhecer o projeto e muito menos a região. A Companhia protelava sua ida para a região até que, em 18.01.1877, Church declarou nulo o contrato com a empresa. Demonstrando qual era sua intenção desde o início, a Reed, que não gastara um único pence no empreendimento, entrou com uma ação judicial exigindo indenização por perdas e danos. Church, desesperado com mais esta demanda judicial e querendo iniciar logo a construção da estrada, aceita fazer um acordo e paga 25.000 libras aos pilantras ingleses.

O Coronel Church resolve, a essa altura, abandonar a Inglaterra, e passar a sua ação para os Estados Unidos. Naquele país, somente tivera aborrecimentos. Talvez na sua pátria, fosse mais feliz. (FERREIRA, 1959)

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- P. & T. Collins

É para remediar essa situação (o isolamento econômico da Bolívia) e para revelar ao mundo região tão bela quanto o Paraíso Terrestre que dois engenheiros de Filadélfia (P. & T. Collins) vão contornar as Cachoeiras do Madeira. Não sou nenhum visionário; ao contrário, sei bem o

que digo. Terminada essa obra monumental, a riqueza da Austrália e da Califórnia empalidecerão ante a produção aurífera das montanhas e dos Riachos bolivianos, bem assim

ante as safras abundantíssimas das planícies e dos vales que lhes ficam de permeio. (Coronel George Earl Church)

O Coronel George Earl Church encontra-se nos Estados Unidos com o Sr. Franklin B. Gowen, industrial do aço, Presidente da Philadelphia and Reading Coal and Iron Company que tinha interesse em intermediar o contrato de Church. No dia 25.10.1877, foi lavrado o contrato entre a empreiteira P. & T. Collins e a Madeira – Mamoré Railway Co.

P. & T. Collins comprometeram-se a pagar as 45.000 libras que o Coronel Church prometera à Public Works e assinaram um contrato com a Philadelphia and Reading Coal and Iron Company que forneceria todo material ferroviário a ser usado na Estrada de Ferro Madeira-Mamoré. O contrato marcava como data limite dos trabalhos o dia 25.02.1878 e sua conclusão após três anos.

- Apoteótica Partida do “Mercedita”

No dia 04.01.1878, partiu com destino a Santo Antônio, primeira Cachoeira do Rio Madeira, o vapor “Mercedita”. O efetivo embarcado de 227 profissionais era formado por engenheiros, médicos, técnicos, operários especializados, trabalhadores e a tripulação. No vapor, também, foram carregadas 500 toneladas de materiais para construção, 200 toneladas de máquinas e ferramentas, além de 350 toneladas de carvão mineral. O New York Herald, de 02.01.1878, fez o seguinte comentário a respeito do evento:

A viagem deste vapor é de interesse nacional, pois, pela primeira vez na história norte-americana, daqui parte uma expedição equipada com material norte-americano, financiada com dinheiro nosso e dirigida por patrícios, para executar, no estrangeiro, obra pública de grande vulto. Ao que consta, os 54 engenheiros que integram o corpo técnico constituem o mais fino grupo de profissionais que jamais se conseguiu reunir em expedição semelhante.

Neville B. Craig, no seu livro “Estrada de Ferro Madeira-Mamoré: história trágica de uma expedição (1947)”, conta a saga da “Mercedita”:

O “Mercedita” era um vapor para 856 toneladas de carga. Fora construído em 1852, e, devidamente artilhado, auxiliara o bloqueio dos portos confederados, durante a Guerra de Secessão. Subsequentemente fora convertido em navio mercante e empregado na rota de Nova York a São João.

Seu comandante, William Jackaway, era um verdadeiro lobo do mar que passara a vida na pesca da baleia e, como o demonstrara mais tarde, não desconhecia inteiramente a rota que seu barco estava a ponto de encetar.

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O Coronel John Jameson detinha a orientação suprema da expedição, na ausência do Sr. Thomas Collins, que pretendia seguir semanas depois. Os passageiros eram em número de 220, aí incluídas três turmas de engenheiros sob as ordens do Sr. Charles M. Bird, que levava, como auxiliares principais, seus colegas Charles W. Buchholz, John Runk e Amos Stiles.

Todos eles haviam tomado parte na Guerra de Secessão, quer servindo na Marinha, quer nas fileiras do Exército, e tinham desempenhado cargos de grande responsabilidade em construções ferroviárias nos Estados Unidos. Muitos dos que ocupavam posições secundárias, como C. S. d’Invilliers, Joseph Byers, R. H. Bruce, W. C. Wetherill, C. A. Preston, John B. Dougherty e outros, já tinham conquistado reputação invejável nas principais estradas de ferro norte-americanas e dispunham de todas as qualidades necessárias para qualquer promoção que as circunstâncias do serviço exigissem.

O corpo médico estava a cargo do Dr. E. P. Townsend. Era grande o número de almoxarifes, apontadores e escriturários. Velhos capatazes irlandeses que de há muito trabalhavam para os irmãos Collins, compartilhavam, ainda, da sorte da firma, a bordo do “Mercedita”. Carpinteiros, mecânicos e grande número de lenhadores das matas da Pensilvânia compunham o resto da leva humana.

A carga consistia de 500 toneladas de ferro de diversas espécies, para construções ferroviárias, 200 toneladas de instrumentos, ferramentas, mercadorias variadas e todas as qualidades de provisões, bem como 350 toneladas de carvão e a bagagem dos passageiros.

Igual quantidade de carvão fora de antemão enviada ao Pará, em veleiro, para a viagem de retorno.

O interesse popular por todos os pormenores da partida desse navio pioneiro da expedição ficou fielmente registrado no Times de Filadélfia, de 3 de janeiro de 1878:

Sob o comando do Capitão Jackaway, o vapor “Mercedita” largou ontem à 1 hora, do trapiche de Willow Street, rumo ao âmago longínquo do continente sul-americano. Desde os idos tempos da febre aurífera da Califórnia, em que a partida de cada vapor pejado de passageiros ávidos de ouro, sacudia até à medula a sonolenta Filadélfia de antanho, poucas cenas se verificaram na orla marítima do Delaware, como a que se presenciou ontem no trapiche de Willow Street. Não era a reunião dos amigos e parentes dos 227 homens a bordo do “Mercedita” que atraía a atenção de vasta multidão de curiosos, mas o profundo interesse que despertou a partida do navio pioneiro e conseguiu reunir o povo ansioso por testemunhar o momento em que, com sua preciosa carga, havia de largar rumo ao seu remoto destino. Apesar dos cordões de isolamento que a polícia distendera ao longo do trapiche, no momento da partida o povo já estava tão rente do barco que só com grande dificuldade se conseguia chegar ao costado. No portaló, dois funcionários da Companhia anotavam os nomes dos operários que embarcavam. Grande confusão lavrava pelos tombadilhos, pois o navio fora carregado com tal afobação que não tinha sido possível arrumar com cuidado a carga e, até o último instante, o guincho do mastro dianteiro ainda içava bagagens e suprimentos.

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Quando a proa do navio começou a romper o caudal, a massa popular se pôs a gritar e todos os rebocadores e locomotivas das proximidades apitaram alegremente até que, finalmente, conseguiram abafar o alarido da multidão.

O barco da polícia “William S. Stokley”, carregado de senhoras e cavalheiros, acompanhou o vapor até o velho Arsenal de Marinha. Enquanto o “Mercedita” descia o rio, antes de ganhar mar alto, ia sendo saudado pelo povo que se aglomerava nos diversos trapiches bem como pelo apito estrídulo de outros vapores e o badalar contínuo dos sinos de bordo. Os passageiros, que se mostravam igualmente entusiasmados, enrouqueceram de tanto responder às saudações. Diante de Chester, o “Stokley”, que havia deixado o “Mercedita” uma milha para trás, reduziu a marcha para o esperar, atracando, finalmente, ao costado para receber os Srs. P. & T. Collins, bem como o Coronel Church, que até então se achavam a bordo do “Mercedita”. Na mesma ocasião, vários passageiros que se achavam na lancha da polícia, passaram para o vapor. Depois, as embarcações se separaram; ouviram-se despedidas, acenar de lenços, adeuses e o “Stokley” aproou rumo à cidade deixando o “Mercedita” já em sua rota, para o oceano.

Terminadas as despedidas, começamos a pôr ordem à confusão generalizada que ia a bordo. Muita coisa destinada ao consumo imediato fora acomodada nos porões, sob toneladas de material pesado, em lugares de difícil acesso. Procederam-se a duas chamadas durante a tarde; as cabinas foram distribuídas a uns poucos felizardos, cerca de quarenta ao todo. O vento forte que soprava de sudeste nos obrigou a lançar âncora a 45 milhas ao largo dos cabos de Delaware. Logo que as máquinas pararam, o vapor começou a jogar de maneira impressionante, como, aliás, o fez frequentemente daí por diante. Já nessa fase inicial da travessia, muitos passageiros foram forçados a procurar a amurada do navio ou algum recanto discreto, no tombadilho inferior. Os que se podiam alimentar só a muito custo conseguiam uma xícara de café com alguns biscoitos. Nem as instalações da cozinha nem o pessoal que nela trabalhava estavam em condições de fornecer alimento ao elevado número de passageiros.

Nos tombadilhos, instalaram-se camas rústicas para os trabalhadores e os que não tiveram a fortuna de conseguir beliches, tinham que se contentar com colchões, travesseiros e cobertores no chão, ou sobre as mesas da cabina. Quem ficasse no tombadilho até tarde da noite, dificilmente conseguiria chegar ao seu beliche sem tropeçar nos que dormiam comprimidos, qual uma camada de sardinhas que forrasse o fundo de enorme caixa, ocupando as mínimas nesgas do piso da cabina. Uma ou duas pessoas tinham levado redes para bordo e assim, balouçando sobre seus companheiros menos previdentes, conseguiam escapar, em grande parte, ao enjoo provocado pelo constante jogar do vapor.

Posto que o Capitão Jackaway detivesse o comando nominal do barco, quem de fato o comandava, a não ser em assuntos que se relacionassem diretamente à navegação, era a garçonete de bordo de nome Gertie — moça de aparência pouco agradável que dominava soberanamente da popa à proa, dando ordens absolutas, tanto aos passageiros como à tripulação. A prolongada convivência que sempre tivera com marinheiros, destruíra-lhe até os mais leves vestígios de encantos feminis. A qualquer hora do dia ou da noite podia-se ouvir sua voz estridente, ralhando com quem quer que tivesse tido a infelicidade de transgredir suas ordens ditatoriais. Quando excitada aos paroxismos da cólera, seu calão de irlandesa rústica nivelava-

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se ao dos mais rudes homens do mar. Em momento de raiva, um dos engenheiros deu-lhe um apelido que, apesar de rimar com o nome pelo qual ela desejava que lhe chamassem, ofendeu-lhe profundamente, daí resultando, para o autor, perfeito regime de fome até o fim da viagem.

Quando a chamavam durante a noite, — o que, aliás, era frequente — Gertie não se preocupava com a toilette e surgia de seu beliche em trajos que nos faziam lembrar o poeta Fitz-Greene Halleck: “Qual Eva, angelical e interessantíssima”, provocando pesadelos ao tropeçar pelos que dormiam no chão, descalça, de lanterna em punho, sem o menor constrangimento e sem pedir desculpas.

Apesar de tudo, porém, Gertie tinha bom coração e muitas vezes durante a viagem, quando a comida se apresentava intragável, trazia-nos às escondidas um pedaço de torta ou de bolo, uma lata de pêssegos ou um copo de água gelada, provavelmente surripiados às reservas pessoais do Capitão Jackaway.

Na manhã seguinte (3 de janeiro), ao levantar ferro, partiu-se o guincho e só lá pelo meio dia foi que conseguimos prosseguir a descida do Delaware. A falta de ordem era, infelizmente, o que mais se evidenciava. Fomos divididos em grupos, provavelmente por sorteio. De cada núcleo, destacavam-se algumas pessoas para lavar pratos e servir a comida, do castelo de proa, onde se instalaram alguns fogões sobressalentes, distribuindo-a pelos lados do navio e lá embaixo, na mesa da cabina. Os cozinheiros improvisados não provaram bem. O estoque de sabão próprio para água salgada ou fora esquecido ou estava escondido em algum lugar inacessível. O sabão comum era inútil e os lavadores de louça ainda não conheciam o recurso de se aplicar um jato de vapor aos pratos para dissolver a gordura. Os garçons de emergência, sem prática de se equilibrar, em marcha, ao balanço do navio, não se revelaram eficientes, pois, ao transportarem os pratos para a mesa de jantar, no porão, os alimentos líquidos ou semilíquidos quase sempre chegavam ao fim da escada antes deles e, não raro, escorriam pela cabeça da turba faminta que se comprimia em torno da mesa. As turmas de passageiros que se revezavam na mesa de jantar eram tantas que as refeições se prolongaram durante o dia todo até alta hora da noite. A princípio a alimentação consistia de café sem leite nem açúcar, biscoitos do mar e uma sopa mais ou menos passável.

Mais tarde, apresentaram-nos quitutes ainda mais apetitosos: o bolo e a torta de farinha. A primeira dessas especialidades da culinária marítima era cozida dentro de sacos feitos do mesmo pano dos de farinha, ou de qualquer peça de roupa apanhada ao acaso, do varal.

A comida era servida em grandes bacias de ferro ou em panelas e o café vinha em baldes de madeira, comuns. Canecas e pratos de ferro, além de escasso número de talheres, constituíam todo o serviço de jantar. Os grupos que se sucediam à mesa nem procuravam sentar-se; ficavam em pé ao redor, ansiosos por conseguir algo que comer e lutando para engolir o pouco de alimento que as circunstâncias e o balanço do barco o permitiam.

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O suprimento de água potável era tão escasso que seu uso só era permitido para cozinhar e beber, e, mesmo assim, com parcimônia. Nem se pense que era ela da melhor qualidade. Apresentava-se alterada, tanto no paladar como na cor, quer fosse por estar sujo o reservatório em que estava guardada, quer por ter sido captada no rio Delaware, logo abaixo dos esgotos de certa localidade.

Às 4 horas, franqueamos o quebra-mar Delaware e aproamos para o sul, rumo ao alto-mar. Até então a vida de bordo não tinha sido de molde a entusiasmar ninguém; contudo os moçoilos que, pela primeira vez deixavam o lar onde se haviam habituado a toda espécie de conforto, não menos que seus pais, acostumados às agruras da vida campestre, revelavam disposição para se mostrar alegres em circunstâncias que todos consideravam temporárias por terem sido o resultado inevitável da agitação e confusão provenientes de nossa atabalhoada partida.

O céu azul e o mar tranquilo pareciam augurar viagem feliz. Cheios de esperança e entusiasmo, víamos, da amurada do navio, desaparecer no horizonte a linha debruada de neve do litoral patrício e, ao recolhermo-nos essa noite, levávamos no coração a certeza de que dentro de poucos dias, poderíamos sentir no rosto a deliciosa carícia das brisas embalsamadas do mar do sul e os cálidos raios solares de um verão perene.

Seria cerca de meia-noite quando súbita revolta dos elementos nos despertou. Por todo o navio ouviam-se ordens incisivas, enérgicas, a correria dos marinheiros colhendo velas, entrecortado, tudo, pelo sibilar constante do vento entre a cordoalha. Parecia que tudo caía dentro da cabina e nos tombadilhos. Os ruídos se sucediam ininterruptamente, pois todo o vasilhame de cozinha e mesa, mal seguro, ia parar no soalho. O vapor jogava de maneira impressionante e o vendaval ululante que soprava do sul paralisava quase inteiramente a marcha do navio. Mesmo com vento fraco a instabilidade do “Mercedita” já tinha sido motivo de pilhérias: “este navio jogaria até dentro de um canal”, “deve ter algum peixe grande sob a quilha”. Esse defeito da embarcação agravou-se, de modo alarmante, com a brusca mudança do tempo, e, no dia seguinte, 4 de janeiro, notava-se a fisionomia preocupada dos passageiros. Poucos eram os que não estavam enjoados, e, por conseguinte, a cabina se achava em condições intoleráveis. Apesar da chuva que desabava em bátegas, os que estavam melhor preferiam ficar no tombadilho, munidos de chapéus de borracha, a ter que suportar a situação, lá embaixo. Quem não estivesse na cabina, tinha que se segurar firmemente em qualquer peça do barco, não só para evitar que fosse varrido pelas ondas, como ainda porque a inclinação do navio era, às vezes, tão grande que, quem não estivesse bem seguro, se via forçado a uma carreira involuntária pela ladeira abaixo, sem saber se ao fim da descida conseguiria agarrar-se à grade inferior ou se a carreira terminaria num voo por sobre a amurada e um mergulho fatal nas águas revoltas.

Não foi possível servir refeição alguma nesse dia. Os cozinheiros e garçons improvisados estavam todos mais ou menos indispostos e tinham outras e mais urgentes obrigações a atender que matar a fome a seus companheiros. Os raros que tentaram levar pratos de sopa ou xícaras de café ao longo do tombadilho ou até a cabina, só conseguiram parte de seu intento.

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O pouco desses líquidos que conseguiam levar até o topo da escada que descia para a cabine, só servia para se derramar sobre os coitados que se comprimiam lá embaixo. Pode-se perfeitamente imaginar que os protestos provocados por tais banhos indesejáveis não eram de natureza a estimular sua repetição. Se alguém sentia, às vezes, vontade de rir de seus companheiros menos afortunados, a distribuição de salva-vidas, o aprestamento dos botes e o boato então corrente de que três companhias de seguro de Nova York não quiseram segurar a carga do vapor, faziam-nos ponderar sobre o enorme risco a que todos estavam expostos.

Todavia, com incrível perversidade, a hilaridade se insinuava mesmo nos mais sérios instantes e assim é que, sempre que nos lembramos daquelas horas angustiosas, vem-nos à memória a cena do velho John O’Hara, capataz chefe de P. & T. Collins é católico devoto (homem cuja coragem pairava acima de qualquer dúvida), recostado na cabina, cercado de numerosos passageiros que, como ele, não podiam mais de enjoo, gemendo constantemente. A expressão de seu rosto lembrava as palavras da oração: “Meu Deus, sede bom para comigo nesta hora terrível. Dos homens nenhuma esperança de auxílio me resta”, à medida que ia simultaneamente aliviando o estômago e a consciência, vomitando e espargindo água-benta que trouxera consigo para os casos de emergência.

Os raros que estavam em condições de se alimentar, só conseguiram, nesse dia, um pouco de café e alguns biscoitos. Não se tinha até então providenciado a distribuição de água para beber, de maneira que muitos sofriam sua falta. Todos nós sabíamos que o navio não estava caminhando e que o céu nublado, impedindo a observação dos astros, impossibilitava que se determinasse a posição do barco. E teria sido esse o único recurso para nos afastarmos da perigosa costa de Hatteras. Era com expressão de profundo aborrecimento que o Capitão Jackaway se voltava para quem tivesse a impertinência de o interpelar sobre a distância coberta aquele dia ou sobre a situação do navio.

Quase ninguém pôde dormir a bordo, naquela noite, e os que ocupavam os leitos superiores, na cabina, tiveram que se precaver como puderam para evitar que fossem atirados ao chão.

Durante todo o dia seguinte, 5 de janeiro, o vento continuou violento, mas passou a soprar de popa. A alimentação era ainda miserável e escassa. Cada vez que o barco galgava uma nova montanha de água e de lá se precipitava no abismo, pensávamos nas toneladas de ferro que se achavam no porão e assaltava-nos o receio de que a nave submergisse, ou que algum objeto mais pesado fosse projetado contra o casco e praticasse um furo, abaixo da linha d’água. Na mesa que rodeávamos para ver se comíamos, um solavanco mais forte fazia o café ou a sopa que se tentava ingerir, atravessá-la escorrendo, para atingir o companheiro da frente. Grande parte da alimentação, de uma forma ou de outra, ia parar no soalho e é bem de se imaginar em que condições estaria ele.

6 de janeiro foi o primeiro domingo que passamos no mar. O temporal já tinha amainado de todo, o céu se apresentava de um azul puríssimo e a temperatura agradável permitiu que quase todos os passageiros passassem parte do dia no tombadilho.

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Depois da tormenta por que passamos, pouquíssimos os que não quiseram tomar parte no serviço religioso celebrado a bordo, cuja marcante expressividade advinha de não estar ele adstrito ao ritual de nenhum credo, em particular. A parte principal da cerimônia consistiu de música e cantos sacros, e, até hoje, quando nos recordamos daquela cena memorável, vêm-nos nitidamente à memória estes dois simples versículos:

Existe um país mais lindo que o dia / Do qual as belezas a Fé nos revela.

A alimentação e a maneira de servi-la continuaram do mesmo modo detestável. Mais ou menos por essa altura, muitos dos passageiros tinham seus acordos particulares com a garçonete ou o servente da cabina para deles conseguir o de que precisavam. Durante o dia, já que quase todos se haviam refeito dos sofrimentos impostos pelo temporal e começavam a se locomover com mais desembaraço pelo navio, o ambiente foi-se tornando de novo alegre. De popa à proa ouviam-se músicas e canções de toda espécie. Eram pistões, acordeões, flautas, hinos e canções lascivas.

No dia 7 de janeiro, navegamos bem com vapor e vela. As refeições estavam um pouco melhores, e, se comparadas aos dias anteriores, podia-se dizer que eram passáveis. Carne de porco, café servido em baldes de madeira, maçã assada, tomates e biscoitos constituíam o menu, mas, a muitas pessoas repugnava servir-se de pratos mal lavados e, mesmo assim, não era fácil conseguir-se um pouco de cada iguaria, tão rapidamente eram elas consumidas. Distribuíram-se cântaros e cada passageiro recebeu uma ração de água, de mais ou menos um litro por dia. Grande parte do precioso líquido era empregada no asseio corporal, pois não nos era possível usar sabonete em água salgada. (...)

BARBADOS

Já estava alto o sol, na manhã de 17 de janeiro, quando fomos despertados por terrível confusão de vozes estranhas, mesmo por baixo de nosso beliche, e pelo entrechocar de remos e de botes batendo uns contra os outros e o costado do navio. Não nos foi difícil perceber, pela vigia, que o navio se movimentava lentamente para dentro do porto de Bridgetown, seguido de vasta frota de pequenas embarcações, pilotadas por barqueiros escuros, que gritavam, brigavam e vomitavam impropérios pior que os carroceiros de Nova York, convencidos de que no “Mercedita”, com seus 220 passageiros, tinham descoberto uma mina.

Quando o navio atracou e deitamos o olhar para terra, a vista com que deparamos era verdadeiramente encantadora e custava crer que apenas 15 dias antes tremíamos de frio dentro de pesados sobretudos. Ainda de bordo, avistávamos coqueiros esguios e numerosos outros espécimes, para nós desconhecidos, da flora tropical. No costado do vapor, fomos cercados por barqueiros que nos ofereciam frutas de todas as espécies e se propunham a nos conduzir para terra. Moleques tisnados (bronzeados) nos divertiam mergulhando a profundidades incríveis, à cata de pequenas moedas que lhes atirávamos. É fácil de se avaliar que tenha sido enorme a quantidade de fruta consumida por todos nós, após duas longas semanas de jejum.

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Não sabíamos se teríamos permissão para desembarcar, mas alguns passageiros resolveram a questão facilmente deslizando por cordas até os botes que os esperavam lá embaixo. Vendo a inutilidade da proibição, os oficiais mandaram baixar a escada do portaló e todos nós nos dirigimos para a praia tão depressa quanto os barqueiros nos puderam conduzir. Tão fortemente nos havíamos habituado a nos locomover a bordo, que causava hilaridade verem-se passageiros desembarcar gingando, no trapiche, qual marinheiros. A primeira coisa que saltava à vista do recém-chegado a Bridgetown daquela época era que a grande maioria da população se constituía de indivíduos de cor. As ruas eram quase todas tortas ou em linhas quebradas, muito estreitas e só as mais importantes tinham passeios laterais cuja largura variava de 40 a 60 cm. A fachada das casas ficava tão rente do meio-fio que os beirais cobriam o passeio.

Uma das peculiaridades desta ilha está que sua formação é coralínea e não vulcânica. O coral fornece pavimentação resistente e durável como o asfalto para as ruas, que se apresentam rigorosamente niveladas. Constitui ele, também, excelente material para construções finas. As casas dos naturais são quase todas de madeira. Não vimos um único tijolo em toda a ilha. A temperatura é aí deliciosa e pequenas as variações durante o decurso do ano. Ao que nos disseram, no verão a coluna de mercúrio raramente excede 26°C à sombra. Viam-se, frequentemente, pelas ruas, carroças tiradas por jumentos do tamanho de um potrinho de dois meses. Às vezes, um desses animaizinhos passava trotando ligeiro com quatro pessoas no carrinho. A ilha tem cerca de 32 quilômetros de comprimento por 22 de largura e o formato aproximado de um presunto. Sua população era então de 165 mil almas, das quais apenas 13 mil brancos. A língua aí falada é o inglês, mas o isolamento em que vive o povo propiciou um dialeto que ingleses e norte-americanos às vezes encontram dificuldade em compreender. Os naturais se apresentavam muito bem vestidos em alvíssimos ternos brancos e chapéus de palha, mas eram piores que judeus para negociar. Pediam um shilling por passageiro para transportá-los à terra, mas, ao chegar ao trapiche, exigiam dois. E era, às vezes, necessário que se perdesse a calma ameaçando de espancá-los ou atirá-los para que deixassem de nos seguir por toda a cidade na esperança de nos extorquir seis shillings por um servicinho qualquer, sem valor.

Dois de nossos engenheiros, indagando do melhor hotel, tiveram indicação da Casa de Albion. Depois de procurá-la em vão pela cidade, informados de que ela ficava a oito quilômetros de distância, tomaram um carro que os levasse até lá. Durante duas horas, viajaram pelos arredores — que por sinal eram tão interessantes que o tempo se passou rapidamente — e finalmente chegaram ao hotel que, com grande surpresa, souberam distar apenas 2 min a pé, do ponto de onde partiram. Posto que o estabelecimento não tivesse pretensões a grande hotel, nem mesmo fosse o melhor de Bridgetown, a Casa de Albion representava então, para nós, uma miniatura do Waldorf-Astoria. Podermos sentar a uma mesa limpa, repleta de deliciosos pratos — costeletas de carneiro, café, pepino em fatias, bananas, laranjas, tudo isso regado com deliciosa cerveja inglesa e rematado por finíssimos charutos Havana — e, acima de tudo, podermos repousar à noite em camas limpas e firmes, parecia-nos o auge da felicidade. Gastamos grande parte do tempo passeando e apreciando os panoramas.

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Despertaram-nos vivo interesse os extensos canaviais que cobrem quase toda a ilha e a grande variedade de árvores frutíferas e de sombra, muitas das quais inteiramente desconhecidas para nós. De fato, parece-nos mesmo que encontramos em Barbados maior variedade de frutas que durante toda nossa viagem pelo Amazonas e Madeira. Coqueiros esguios, com seus frutos tentadores, forneciam água clara e fresca mesmo no mais cálido dia; fruta-pão, favos de mel, mangas, limas, limões, laranjas, abacaxis e inúmeras outras frutas, sob o toldo de luxuriante folhagem agitada por deliciosa brisa marítima, faziam com que o novo cenário, onde nos achávamos apenas duas semanas após nossa partida dos Estados Unidos, parecesse a obra-prima de algum extraordinário prestidigitador.

Na Casa do Gelo, estabelecimento misto onde havia hotel, restaurante, comércio por atacado e a varejo, e armazéns de suprimentos, encontramos várias pessoas do “Mercedita”, inclusive muitos engenheiros, todos tomados do evidente desejo de reparar, o mais rapidamente possível, os pecados de omissão involuntariamente cometidos a bordo e se fortificarem, a fim de enfrentar semelhantes situações, de futuro. Não poucos indivíduos da expedição poderiam ser classificados como “calejados”, relíquias de uma geração quase extinta que viveu nos tormentosos dias da Guerra de Secessão e adquiriram a longa prática de que dispunham, na construção das estradas de ferro da costa do Pacífico, quando o protótipo do engenheiro era um misto de construtor de estradas, vaqueiro e guerreiro. Não é, portanto, de admirar que o historiador consciencioso se veja forçado a registrar que muitos dos que encontrou na Casa do Gelo estavam visivelmente “tocados” e ainda pediam ao taberneiro mais outra rodada.

Vários de nós fomos convidados para o “Baile da Dignidade”, festa típica em Barbados. Infelizmente não pudemos a ele comparecer, mas, pelo que nos disseram os que foram, não perdemos muito.

Em certa praia denominada Hastings, situada a cerca de cinco quilômetros da cidade, onde atualmente se encontra um grande hotel moderno, muitos dos nossos se entregaram ao que se poderia chamar um banho de mar de luxo, entre a praia principal da ilha e o recife coralíneo que a contorna, pois tiveram de pagar oito pence por pessoa para toalha e sabão.

Na manhã de 18, os hóspedes do Albion foram despertados pelo hoteleiro, que fez colocar ao lado de cada cama uma mesinha com café, torradas, frutas e charutos finos. Quando entrou em nosso quarto, percebendo que estávamos acordados, anunciou “a primeira refeição é às 9 horas” e desapareceu. Naquele dia, nosso tempo foi inteiramente tomado em passeios pela ilha, magníficas refeições e banhos de mar. Em resultado da festa da noite anterior, alguns dos nossos companheiros estavam de ressaca, mas só três tiveram necessidade de alguém que olhasse por eles. Dois que se dirigiram para o “Mercedita”, em uma catraia, estavam em tal estado que, quando um caiu no mar, o outro não teve força.para puxá-lo e o barqueiro, com medo de fazer virar a embarcação, se fosse auxiliá-lo, preferiu prosseguir, enquanto o passageiro, agarrando o náufrago pelo colarinho, o rebocava para bordo. Quando a vítima chegou ao vapor, já estava quase restabelecida do pileque, mas seu “rebocador”, logo que se pilhou a bordo, pôs-se a comemorar seu feito notável disparando o revólver a esmo pela vigia da cabina, a ponto de espalhar pânico entre os nativos que, em numerosas embarcações, se comprimiam no costado do navio.

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Felizmente esse divertimento de mau gosto foi interrompido antes que ocasionasse consequências graves.

Na Casa do Gelo, nossos companheiros saboreavam iguarias raras: sopa de tartaruga e peixe-voador. Havia então na ilha numeroso corpo do exército inglês que servira na campanha dos Achantis. À noite fomos até o quartel onde se achava a tropa, para ouvir um concerto ao ar livre pela banda militar, composta de 40 figuras. Os passeios que fizéramos foram tão agradáveis que dificilmente poderíamos fazer outros melhores. Entretanto a luz clara da lua cheia, a vegetação luxuriante, os uniformes vistosos da soldadesca, a aura perfumosa que então soprava, e, sobre tudo isso, a marcialidade da música inglesa, produziram tão esplêndido efeito que mal podemos descrever.

Tínhamos sido avisados para que embarcássemos às primeiras horas da noite; contudo os que se deixaram ficar na praia até 10 h não correram nenhum risco, porque um passageiro precavido, tendo encontrado o capitão Jackaway bêbedo como uma raposa, não teve dúvida em trancá-lo em lugar conveniente, perto do trapiche. Depois disso, tomamos um bote a seis remos e com o capitão cuidadosamente acomodado, rumamos para o navio. Os escuros remadores possuíam belas vozes e pareciam ter organizado um repertório de canções patrióticas com a finalidade patente de despertar a generosidade do passageiro, qualquer que fosse a nacionalidade, que tivesse a má sorte de cair no barco.

Durante o percurso, entoaram a “Marcha através da Geórgia”, e, quando já nos aproximávamos do “Mercedita”, cantaram outra canção que parecia ter sido composta por eles mesmos, e cujo estribilho dizia:

Salve, salve a bandeira azul listada, / A bandeira que nos deu a liberdade.

Às onze horas daquela noite, o barco levantou âncora e, embora pesarosos, despedimo-nos de Barbados. Nossa permanência na ilha fora a mais agradável possível. Depois que a deixamos, temo-nos perguntado se o lugar é de fato tão agradável quanto nos pareceu, ou se a impressão que nos causou foi, em grande parte, devida ao contraste que apresentou com as privações por que anteriormente passamos. Sem dúvida o efeito que sua natureza exuberante causou sobre nós, só pode ser comparado à visão que embeveceu o olhar maravilhado de [Jacopo] Peri às portas do Paraíso; e Bridgetown, com seus mergulhadores bronzeados, suas carrocinhas tiradas por jumentos, suas flores e suas frutas deliciosas, permanecerá sempre na memória de todos nós. (...)

CONTINUANDO A VIAGEM NO “MERCEDITA”

De Barbados ao Pará, poucos incidentes dignos de nota nos apresentou a viagem. Teria mesmo sido deliciosa se as refeições não continuassem a ser motivo de constantes irritações e queixas. O calor era tão agradável que quase todos os passageiros transportavam para o tombadilho seus colchões e aí passavam a noite. As únicas novidades que nos chamaram a atenção foram os cardumes de peixes-voadores e, à noite, a fosforescência das águas. (CRAIG)

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- Chegada em Santo Antônio (19.02.1878)

Quando os ingleses para cá vieram, as únicas coisas que fizeram durante os dois primeiros dias, foi beber e fumar, mas os americanos trabalham como o diabo.

(Militar do destacamento de Santo Antônio)

Em Belém, a carga do “Mercedita” passou para diversas embarcações menores. A primeira delas aportou em Santo Antônio no dia 19.02.1878. No dia seguinte, às seis horas da manhã, já saía uma turma de engenharia para o campo. No mês de março, começaram a aparecer os primeiros doentes. As chuvas, mosquitos, formigas e alimentação precária começaram a minar o entusiasmo dos trabalhadores. No dia 29.03.1878, chegaram novas provisões e iniciou-se a construção de diversos pavilhões, inclusive de uma padaria trazendo novo ânimo ao grupo.

- Tragédia dos Italianos

P. & T. Collins trouxeram, para a região, trabalhadores de diversas naturalidades, sendo 218 deles italianos. Desde o início, o grupo sentiu-se menosprezado já que recebiam salários menores que os pagos aos Norte-americanos e irlandeses. Amotinaram-se os italianos se apropriando de munições e víveres. Os revoltosos foram subjugados e oito deles, considerados os cabeças da rebelião, algemados e presos. Certo dia, setenta e cinco italianos resolveram fugir de Santo Antônio e penetraram na selva rumo à Bolívia. Nunca mais se ouviu falar deles.

- Ataque das Doenças

Ainda me acho doente e incapaz de fazer o que quer que seja, Vi um enterro ontem. Notei que diversas pessoas iam também carregadas, mas não consegui perceber se

estavam mortas ou não. (Engenheiro Norte-americano)

No mês de maio, eram raros os casos de trabalhadores que ainda não tinham sido acometidos pela disenteria ou malária. As dependências da Companhia mais pareciam um hospital, as esposas de Thomas Collins, e dos engenheiros Nichols e King trabalhavam como enfermeiras. Os víveres rareavam, os trabalhos prosseguiam cada vez mais morosos, metade das turmas estava sempre doente e os sãos tratavam dos enfermos.

- P. & T. Collins “Seringalistas” Ferroviários

Pelo contrato que assinaram antes de sair na Filadélfia, os operários eram debitados pelo custo do transporte até Santo Antônio até que tivessem seis meses de serviço e só teriam

direito à passagem de volta ao fim de dois anos. Assim é que muitos, principalmente aqueles que, devido à doença, perderam muito tempo, nada tinham a receber. Não poucos estavam com débito para com a firma. Os que tinham vencimentos a receber, podiam comprar artigos de vestuário, fumo e outras miudezas, no armazém de P. & T. Collins, mas não conseguiam obter nem por compra, nem por qualquer outro meio alimento adequado ao clima, ou capaz de estimular o apetite de um organismo

combalido. (Engenheiro Norte-americano)

Church não conseguia liberar o dinheiro do empréstimo boliviano para iniciar os primeiros pagamentos aos Norte-americanos, tornando a situação dos Collins e de seu pessoal desesperadora.

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- Inauguração no 4 de julho

Em clima de festa, no dia 4 de julho, aniversário da independência dos Estados Unidos, Collins inaugurou os três primeiros quilômetros da ferrovia percorrendo com a locomotiva “Church” o pequeno trajeto. Numa curva mal-projetada, porém, a locomotiva saltou dos trilhos, a euforia durou pouco. Nesta data deveriam estar prontos 40 quilômetros de ferrovia e não apenas três. O contrato estimava a construção de dez quilômetros por mês e os Norte-americanos estavam assentando uma média de 700 metros.

- Início do Desastre

O engenheiro Nichols, representante de Church, era o encarregado de medir e calcular os trabalhos da P. & T. Collins e enviar ao Coronel Church os devidos atestados para possibilitar o levantamento do empréstimo depositado no Banco da Inglaterra. Nichols é informado por Church, no dia 16 de julho de 1878, de que não haveria possibilidade de pagar os empreiteiros e mesmo que o pagamento pelos serviços prestados fosse feito isto não compensaria os enormes gastos já feitos pelos Collins. Em decorrência disso, os créditos que a empresa tinha em Belém e nos Estados Unidos foram imediatamente cortados. Não havia medicamentos nem mantimentos e o estado sanitário era catastrófico.

No dia 19 de agosto de 1878, seis meses depois de terem chegado a Santo Antônio, os funcionários que quisessem retornar aos Estados Unidos estavam liberados desde que fosse com recursos próprios. Segundo o contrato, a empresa só seria obrigada a providenciar-lhes condução de retorno dois anos depois da chegada. Alguns venderam o que possuíam e conseguiram chegar a Belém, outros desceram o Madeira em pequenas e improvisadas canoas e deles não se tem notícia.

Cerca de 300 alcançaram Belém sem um níquel sequer. O cônsul Norte-americano alojou-os em dois quartos improvisados e conseguiu dinheiro suficiente para apenas uma refeição diária durante duas semanas. O Governo americano, finalmente, enviou um vapor para resgatar os seus patrícios que foram transportados, em janeiro, para Nova York onde chegaram depois de dez dias de viagem trajando roupas de verão em pleno inverno.

- A Retirada

Em Londres, a demanda em torno do empréstimo do Governo boliviano assumia proporções de desastre. Os portadores de títulos, que os haviam adquirido na baixa, queriam liquidar a ação o mais rápido possível. Church tentava de todas as maneiras contrapor-se à argumentação de que era impossível construir a Ferrovia. Em fevereiro de 1879, foram enviados dois peritos judiciais a fim de verificar a situação das obras que apresentaram relatório desfavorável. Imediatamente alguns engenheiros e funcionários começaram a abandonar a construção.

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No dia 03.05.1879, Thomas Collins e o Sr. Gray foram atacados por índios que os feriram gravemente. Collins foi atingido por duas flechas sendo que uma delas atravessou-lhe o pulmão quase o matando. No dia 19.08.1879, foi definitivamente, suspensa a construção da Estrada de Ferro e todo material permaneceu exatamente onde estava.

- Saldo do Empreendimento

Durante os dezoito meses de permanência na região, morreram 141 das 719 pessoas que vieram dos Estados Unidos. Não existe relato do número de mortes entre os 200 índios bolivianos e 500 cearenses que, segundo Neville Craig, foi extraordinariamente elevado, calcula-se em torno dos 300. A firma P. & T. Collins faliu sem receber qualquer parcela do empréstimo boliviano e a esposa de Thomas Collins, ao retornar para os Estados Unidos, teve de ser internada em um sanatório para doenças mentais. Todos os trabalhadores regressaram a sua terra natal na mais completa miséria.

Brasil, no dia 10.09.1881, declarou caduca a concessão dada a Church. No trágico desenrolar desta funesta página da história, mais uma vez, apenas os abutres especuladores faturaram muito dinheiro.

- Guerra do Pacífico (1879)

Se perigos vencermos, se padecimentos nos aniquilarem, se decepções sofrermos e atos de bravura tivermos que praticar, serão com certeza relatados em frase singela, mas modelada em fatos verdadeiros, acontecimentos que se deram e não nas fantasias romanescas dos que sacrificam a realidade ao prazer das descrições de efeito.

(Ernesto Matoso - Secretário da Comissão Morsing)

O desfecho não poderia ter sido mais desfavorável à Bolívia. O Chile apossou-se da faixa litorânea boliviana, privando-a dos portos marítimos do Pacífico. O Governo boliviano voltou a considerar, seriamente, a rota do Rio Amazonas descendo pelo Rio Madeira.

- Tratado de 15.05.1882

O Brasil não julgou aceitáveis os termos do projeto formulado por Dom Eugenio Caballero, Ministro Boliviano e apresentou um contra-projeto, aceito pelo Governo boliviano, que foi convertido em Tratado relativo à navegação dos Rios bolivianos e brasileiros e à construção da Estrada de Ferro. O Tratado deixava patente que o Governo brasileiro desejava efetivamente construir a Estrada de Ferro.

Artigo 1° - Sua Majestade o Imperador do Brasil, confirmando a promessa feita pelo artigo 9° do Tratado de 27.03.1867, obriga-se a conceder à República da Bolívia o uso de qualquer Estrada de Ferro que venha a construir por si, ou por empresa particular, desde a primeira Cachoeira na margem direita do Rio Mamoré até Santo Antônio no Rio Madeira, a fim de que a República (da Bolívia) possa aproveitar o transporte de pessoas e mercadorias os meios que oferecer a navegação abaixo da dita Cachoeira de Santo Antônio.

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Artigo 2° - O uso da referida estrada será concedido, tanto para a importação como para a exportação, livre de todo e qualquer imposto geral, provincial ou municipal, e ficará sujeito unicamente à tarifa que se estabelecer para o transporte de mercadorias sem distinção de nacionalidade ou origem.

Cinco meses após a assinatura do Tratado, a Lei n° 3141, de 30.10.1882, que fixava o orçamento do Império, no seu artigo 12° especificava:

O Governo fica autorizado a despender até a quantia de 150:000$000 com os estudos da Estrada de Ferro Madeira e Mamoré, e na deficiência de renda, fará para este fim as operações de crédito que forem necessárias.

- Comissão Morsing

Foi criada, no dia 25.11.1882, uma Comissão formada por dez engenheiros, um secretário, um médico, um farmacêutico, um desenhista e dois auxiliares para executar os estudos da futura Estrada de Ferro. O engenheiro chefe era o sueco naturalizado brasileiro Carlos Alberto Morsing, formado em engenharia nos Estados Unidos e que estava trabalhando em uma Ferrovia na Província de Pernambuco, o austríaco Júlio Pinkas, 1° Engenheiro, por sua vez, gozava de muito prestígio nos meios políticos.

A Comissão resolveu utilizar-se do levantamento realizado, numa extensão de 106 quilômetros, pela firma Collins. Os engenheiros proporiam, se fosse o caso, alterações nesta planta e realizariam seu próprio projeto até o fim da linha. No dia 19.03.1883, a comissão chegou a Santo Antônio debaixo de fortes chuvas. Os membros da Comissão fizeram, de imediato, um levantamento do que existia. Fazia três anos e meio que Collins havia se retirado de Santo Antônio. O Secretário da Comissão Ernesto Matoso assim descreveu:

Pelo mato, a cada passo, se encontram vestígios: pás, enxadas, picaretas, carrinhos, tudo estragado! Confrange-nos ver tantos e tantos contos de réis em perfeita perda, tanta soma de sacrifício sem resultados. É preciso que Collins seja dotado de uma Fortaleza de espírito invejável para que não tivesse enlouquecido (Matoso não tinha conhecimento de que a esposa de Collins falecera em um sanatório de doenças mentais nos EUA) quando foi forçado a abandonar este belo princípio da importante Ferrovia Madeira Mamoré. Lutando contra a falta de recursos próprios do lugar, com o clima, com as terríveis enfermidades, aquele distinto homem fez prodígios. Construiu seis quilômetros de linha e estudou mais de cem, contou e aterrou vinte, isso em pouco mais de ano. São incríveis os trabalhos feitos por aquele heroico Norte-americano, a despeito de todas as contrariedades.

- Início dos Trabalhos e do Ataque das Doenças

No dia 02.04.1883, o engenheiro Abel Ferreira de Matos iniciou os trabalhos na selva, comparando a planta de Collins com o terreno. A Comissão contava agora com 60 elementos formada por engenheiros, funcionários e trabalhadores indígenas.

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No dia 09, vinte dias após a chegada, 22 membros da Comissão estavam doentes, no dia 11, este número chegava a 32, 53% do efetivo total.

No dia 24.04.1883, chegou, a Santo Antônio, um vapor trazendo reforços para a Comissão: eram 28 cearenses e maranhenses além de 30 Soldados do 15° Batalhão de Infantaria, substituindo os indisciplinados e indolentes militares do 11° Batalhão de Infantaria que acompanhavam a Comissão desde o início.

No dia 07.05.1883, faleceu o engenheiro Alfredo Índio do Brasil que foi sepultado em Manicoré. No dia 21.05.1883, o médico da Comissão resolveu evacuar, no vapor Mauá, para o Rio de Janeiro o Chefe da Comissão Carlos Alberto Morsing, os engenheiros Domingos Guilherme Braga Torres, Dâmaso Pereira e Tomás Joaquim de Cerqueira (que faleceu a 25.06.1883) e o auxiliar Coelho Ferreira. Júlio Pinkas assumiu, então, a chefia da Comissão. No dia 07.08.1883, morre Pedro Leitão da Cunha, o terceiro engenheiro em três meses. A situação da Comissão era insustentável, todos estavam doentes. Júlio Pinkas decidiu pela retirada imediata de todos para Manaus.

- Plantas da Public Works

O Sr. Júlio Batista Álvares, verificando que a Comissão estava se retirando, entregou a Pinkas um rolo com plantas antigas. Eram os originais das plantas que a Public Works entregara dez anos antes nos tribunais londrinos para provar que a extensão da estrada era consideravelmente superior à que constava do contrato com Church. Faltavam apenas as plantas do trecho entre Santo Antônio e Jirau que tinham sido elaboradas por Collins.

No dia 04.09.1883, a Comissão, chefiada interinamente por Pinkas, chegou a Manaus e, no mesmo dia, vindo do Rio de Janeiro, Morsing que, depois de conferenciar com as autoridades governamentais, conseguiu mais recursos e cinco novos engenheiros, um auxiliar e um farmacêutico. Morsing instalou em Manaus um escritório de engenharia para elaborar as plantas da Ferrovia.

- Medidas Tomadas por Morsing

Morsing analisou as plantas Public Works, que as elaborara há dez anos, assim como as plantas deixadas pela empresa P. & T. Collins:

1°) A Comissão considerou que as plantas deixadas pela empresa P. & T. Collins, numa extensão de 106 quilômetros, até Jirau, comparadas com o terreno eram plenamente aceitáveis.

2°) A Comissão ia continuar os estudos do quilômetro 106 até Guajará-mirim, mas como tinham sido achadas as plantas originais da Public Works, que se iniciavam a partir do quilômetro 128 até Guajara-Mirim, resolveu:

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a) Fazer o levantamento do que faltava, entre o final da planta de Collins e o começo da Public Works numa extensão aproximada de 17 quilômetros;

b) Verificar no terreno se os primeiros quilômetros da planta da Public Works estavam corretos, caso positivo, considerar toda a planta como boa.

Não me parece suficiente a análise apenas dos primeiros quilômetros da planta da Public Works. Dever-se-ia, por amostragem, fazer mais de uma tomada a meio percurso e uma outra no final para só aí sim considerá-la como válida.

- 1° Turma - Eng° Bacelar (15.11.1883)

Huet de Bacellar retornou, depois de um mês e meio de trabalho, no dia 15 de novembro, de Santo Antônio onde foi realizar sondagens e estudar as condições de ancoradouro de grandes vapores em Ponto Velho, sete quilômetros abaixo de Santo Antônio.

Com os resultados dos trabalhos do Eng° Bacellar, Morsing concluiu que a Estrada de Ferro deveria partir de Ponto Velho, pois ali o Rio Madeira tinha calado suficiente para os grandes vapores que subiam o Rio Madeira. Consequentemente foi levantada, também, a planta entre Ponto Velho e Santo Antônio. (FERREIRA)

- 2° Turma - Eng° Camarão (28.01.1884)

(...) tive grande prazer de encontrar no campo, vestígios não só da picada da Public Works como também esteios, já algo carcomidos pela ação destruidora do tempo, (...) e que esta habitação é a que se achava muito bem figurada na planta: assim, pois, tive um

ponto firme e me foi bastante fácil determinar a estação 13. (João José da Cruz Camarão)

A turma do engenheiro João José da Cruz Camarão retornou, no dia 28.01.1884, depois de dois meses e meio de trabalho no Caldeirão do Inferno, onde fizeram a checagem no terreno dos primeiros quilômetros da planta da Public Works.

Camarão conseguiu localizar no terreno a última estação (estaca) da planta de Collins de onde iniciou uma linha de 17 quilômetros e 700 metros de extensão, até a primeira estação da planta da Public Works. (FERREIRA)

- Relatório da Comissão Morsing (02.1884)

Julgo que não há necessidade de maiores sacrifícios em estudos sem que a construção da estrada seja definitivamente resolvida, devendo nesse caso os estudos serem finais e para a construção imediata. Para estudos preliminares, sou de opinião que o que

possuímos são suficientes, e é usando da faculdade que me é conferida pelas instruções que regem a Comissão, que adoto os estudos feitos.

(Carlos Alberto Morsing)

Morsig entregou ao Ministro da Agricultura, em fevereiro de 1884, no Rio de Janeiro, o relatório da Comissão, cujos tópicos principais são os seguintes:

1°) Extensão da Ferrovia, de Ponto Velho a Guajará-mirim: 361,7 km;

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2°) Custo por quilômetro da futura Ferrovia: 47:000$000;

3°) Importância despendida nesses estudos: 196:904$238;

4°) Perdas humanas: dezenove mortos, sendo 3 engenheiros, um oficial, e quinze Soldados e trabalhadores.

De posse do relatório, o Ministro resolve ouvir o 1° engenheiro da Comissão Júlio Pinkas que afirmou categoricamente que as plantas da Public Works, adotadas por Morsing, não mereciam fé. O Ministro determina, então, que Morsing retorne às Cachoeiras para levantar a planta do trecho correspondente à Public Works. Morsing não aceita essa imposição e pede demissão do cargo de engenheiro-chefe da Comissão. O Ministro nomeia, então, Pinkas como chefe da Comissão.

- Nomeação de Pinkas

Não tenho confiança nas vantagens presentes ou futuras da Estrada de Ferro Madeira e Mamoré, tais como as consideram os seus apologistas. Acredito, ao contrário, que apenas servirá a uma região limitada, pobre e sem recursos para compensar os sacrifícios das

vidas e dos capitais avultados que a sua construção e conservação exigem. (Alexandre Haag)

O Ministro da Agricultura, ao nomear Pinkas que discordara do seu antigo chefe de Comissão, comete um procedimento antiético e antiprofissional arraigado aos nossos dirigentes brasileiros desde os tempos não republicanos. Seu ato prestigia Pinkas ao mesmo tempo em que coloca em cheque a capacidade profissional e o discernimento de Morsing. A Comissão Pinkas tinha a finalidade de corroborar a ideia préconcebida do Ministro de que as plantas elaboradas pela Public Works teriam sido forjadas. O Ministro cuidou de que a nova Comissão tivesse mais facilidades que a anterior, solicitando um crédito de 300:000$000 além do apoio que seria prestado pelo navio de guerra “Afonso Celso” que permaneceria em Santo Antônio à disposição da Comissão.

- Comissão Pinkas

Júlio Pinkas parte do Rio de Janeiro para Manaus, no dia 10.03.1884, aonde chegou, em 01.04.1884, assumindo a Comissão dois dias depois. No dia 12, parte para Santo Antônio levando, além dos engenheiros, trabalhadores e empreiteiros, um destacamento da armada imperial. Em Santo Antônio, organiza cinco turmas de engenharia, cada uma com 21 homens, estas turmas receberiam um batelão e víveres para três meses. No Caldeirão do Inferno, parte do pessoal se recusou a continuar e Pinkas reorganizou as equipes agora formadas por quatro turmas. A primeira Turma foi instalada no dia 20.06.1884, junto à Cachoeira do Jirau; a segunda, junto à Cachoeira dos Três Irmãos; a terceira no Ribeirão, e a quarta mais adiante. O estudo seria feito por seções que seriam depois agrupadas em um só projeto, com as respectivas plantas.

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- Controverso Relatório do Ministro da Agricultura

O Ministro da Agricultura apresenta, no dia 07.05.1884, à Câmara dos Deputados, um relatório sobre a Comissão Morsing, no qual critica a planta da Public Works refutando, portanto, abertamente a conclusão de Carlos Alberto Morsing, afirmando:

Trabalho tão deficiente não poderia servir para determinar já o desenvolvimento da Ferrovia do Madeira e Mamoré, já o seu orçamento; o pensamento manifestado pelo Poder Legislativo, ao fixar o crédito destinado a tais estudos, ficaria em grande parte burlado se qualquer deliberação definitiva acerca da construção da estrada houvesse de ser tomada sobre dados meramente conjeturais, quais são os existentes quanto ao desenvolvimento da linha além da localidade denominada Jirau.

Morsing, no dia 19.05.1884, solicita que o Clube de Engenharia do Rio de Janeiro se manifeste sobre sua decisão de adotar como verdadeira a planta da Public Works. A entidade máxima dos engenheiros do Brasil resolve nomear uma Comissão de Notáveis, composta por nove engenheiros, no dia 16.07.1884, apresenta seu relatório favorável a Morsing nos seguintes termos:

A vista do exame que instituíram os documentos referidos, e das informações fornecidas pelo Chefe da Comissão de Estudos, incontestavelmente um dos mais hábeis e experimentados sobre questões de Estradas de Ferro, são os abaixo assinados de parecer que os trabalhos, apresentados ao Clube de Engenharia pelo referido ex-Chefe, oferecem, como estudos preliminares, subido valor técnico e satisfazem o fim para que foram organizados.

O próprio Governo Imperial resolvera nomear a sua Comissão de Notáveis formada pelos engenheiros Francisco Bicalho, Monteiro de Barros e o Conselheiro Sobragy, os quais julgaram, também, suficientes os estudos de Morsing para os fins que se tinha em vista.

- Comissão Pinkas e a Ordem da Rosa

Aguardava as informações para então travar com o nobre Ministro o combate que se julga com o direito de ferir em defesa dos seus velhos companheiros da Escola Politécnica.

(Deputado Sinimbu Jr.)

Júlio Pinkas retorna a Manaus no dia 10.09.1884; surpreendentemente, em apenas 77 dias, as turmas haviam levantado 200 quilômetros da futura Estrada de Ferro em plena selva. O Ministro da Agricultura, numa clara afronta aos engenheiros brasileiros, mesmo sem conhecer o resultado da Comissão Pinkas, pois as plantas ainda estavam sendo elaboradas, resolve, no dia 25.04.1885, agraciar toda a Comissão Pinkas com a Ordem da Rosa. No dia 29.04.1885, o Ministro da Agricultura compareceu a uma tumultuada sessão na Câmara dos Deputados. O Deputado Sinimbu Jr. atacou a conduta abjeta do Ministro que desprezara deliberadamente os membros da Comissão Morsing que não mereceram por parte dele uma palavra elogiosa sequer.

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O Deputado apresentou, ainda, um requerimento dirigido ao Ministro solicitando que informasse se já estavam concluídos os estudos da Estrada, quanto se gastara, etc.

- Moção do Clube de Engenharia

No dia 01.05.1884, no Clube de Engenharia do Rio de Janeiro, o Engenheiro Amarílio Olinda de Vasconcelos, funcionário do Ministério da Agricultura, propõe, corajosamente, ao plenário, a seguinte moção, que foi aprovada por unanimidade:

O Clube de Engenharia, conhecendo o ato recente do Governo Imperial, que galardoou os serviços prestados pela 2ª Comissão de estudos da Estrada de Ferro Madeira e Mamoré em complemento aos trabalhos não menos árduos e relevantes que a precederam e foram realizados com a maior dedicação, lastima que não fossem igualmente considerados os esforços excepcionais, os resultados obtidos e os sacrifícios pessoais da 1ª Comissão, dirigido pelo engenheiro Carlos Alberto Morsing.

No dia 02.05.1884, o Ministro da Agricultura exonera dos quadros do Ministério o Engenheiro Amarílio Olinda de Vasconcelos, “a bem do serviço público” procurando, ainda, sem sucesso manchar-lhe a reputação. Em 30.05.1885, a “Revista de Estradas de Ferro”, dirigida pelo Engenheiro Francisco Picanço estampa no seu editorial:

Felizmente no Brasil, a vontade absoluta de um homem, seja ele Governo ou outra sumidade, não consegue abalar reputações firmadas em honrosos precedentes.

- Discurso do Senador Henrique D’Ávila

Henrique D’Ávila, no dia 06.06.1885, no Senado do Império, faz um pronunciamento criticando a rebelião de Engenheiros Brasileiros contra seu Chefe francês o Engenheiro Révy, enviados pelo Ministério da Agricultura para a construção de açudes no Ceará.

Deve-se acrescentar certo ciúme muito mal entendido contra os engenheiros estrangeiros. A engenharia nacional está certamente muito habilitada, ninguém duvida, em matéria de viação férrea; mas não assim em trabalhos hidráulicos, nos quais se tem cometido verdadeiros horrores: que o diga quem tem acompanhado a construção do célebre reservatório do Pedregulho e a não menos famosa Barra do Rio Grande do Sul. E por infundados ciúmes move-se guerra contra profissionais distintos que vêm prestar real serviço ao nosso país.

Em 30.06.1885, a “Revista de Estradas de Ferro” afirma, peremptoriamente, no editorial que o Senador Henrique D’Ávila se enganara e que o Engenheiro francês Révy era um incompetente. A Revista faz ainda questão de listar os engenheiros estrangeiros que qualifica como notáveis e que eram muito respeitados pelos colegas brasileiros. Nesta relação, aparece o nome de Morsing, seguido do seguinte comentário:

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Carlos Alberto Morsing não nasceu no Brasil; e nem por isso deixa de gozar a estima e o conceito a que tem jus pelos seus méritos incontestáveis.

A Revista não menciona o nome do “Comendador” Júlio Pinkas, demonstrando a tensão que existia entre o Governo Imperial e a Classe dos Engenheiros.

- José Nebrer acusa Júlio Pinkas

Enfim, a tal estaca de Guajará-mirim tem estado encantada: ainda não apareceu quem queira tomar a inteira responsabilidade de a ter fincado; parece que o espírito maligno

meteu-se nesta estaca (...). (José Nebrer)

Em setembro de 1885, quase um ano depois de encerrados os trabalhos da Comissão Pinkas, é apresentado o projeto e as plantas da ferrovia. O Sr. José Nebrer, que trabalhou como desenhista e auxiliar técnico da Comissão, afirma que grande parte do projeto fora forjado no escritório de engenharia. Na edição do “Jornal do Commercio”, de 25.09.1885, o Sr. José Nebrer publica um “a pedido” endereçado “à Sua Majestade o Imperador, à Sua Excelência o Sr. Ministro da Agricultura, e ao público, com especialidade à classe dos engenheiros” dizendo:

sou oficial, 1° Tenente do exército austríaco no qual servi por muitos anos, sendo distinguido com a nomeação de Cavaleiro, Ritter, da Coroa de Ferro da Lombardia Austríaca, e com duas medalhas de campanha ganhas por ter combatido na batalha de Solferino, em 1859, e na de Custosa, em 1866.

Servi nesta Comissão como desenhista e auxiliar técnico e nessa qualidade fui designado para servir na 4ª Turma que tinha de correr a linha de exploração desde o Ribeirão até Guajará-mirim. Prestei nesta turma serviços sérios e aproveitáveis à Comissão, posso mesmo asseverar que do pessoal técnico ninguém prestara melhores; pois fiz o nivelamento durante seis dias, tendo sido depois dispensado desse serviço com a ordem de jogar ao Rio as cadernetas, as quais acham-se ainda em meu poder e as entregarei ao Governo quando me forem exigidas. No escritório da turma fui encarregado de forjar as cadernetas de nivelamento, etc. Enfim, o que se passou nessa turma acha-se descrito na Carta que dirigi ao Sr. Pinkas e da qual abaixo publico os trechos que são de interesse para o Governo Imperial e para o público.

- Comissão Morsing x Comissão Júlio Pinkas

Comissões Ponto Inicial

Ponto Final

Extensão Total

Custo Total

Custo por km

Morsing Ponto Velho S. Antônio 361,7 km 17.048:780$000 47:000$000

Pinkas S. Antônio Guajará-mirim 329,6 km 8.736:716$312 26:507$020

Em 1912, quando a construção da Estrada de Ferro foi concluída ela

tinha 364 km de extensão, ou seja, cerca de 2 quilômetros a mais do que o Projeto Morsing, provando que a planta da Public Works estava correta e reabilitando, definitivamente, a memória do engenheiro Morsing. O ponto inicial também foi o especificado por Morsing.

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- Companhia Estrada de Ferro do Madeira e Guaporé

A seringueira é árvore de vida e de morte plantada pelas mãos da natureza no paraíso amazônico. (Frederico José de Santana Nery)

Com o advento da República, a iniciativa privada tenta recuperar o tempo perdido e resolve participar ativamente do desenvolvimento nacional através de novos projetos e solicitações de concessões.

Dentre esses projetos, surgiu, novamente, um que contemplava a construção de uma Ferrovia que contornava as Cachoeiras do Rio Madeira. José Eulálio da Silva Oliveira e Francisco Mendes da Rocha requerem concessão para construir esta Via Férrea, o que lhes foi concedido pelo Decreto n° 365, de 30.05.1891. Desta vez, o início da Ferrovia seria na margem direita do Madeira em frente a Humaitá, e finalizaria na confluência dos Rios Mamoré e Guaporé, com aproximadamente 800 quilômetros de extensão. O decreto governamental previa que a construção deveria ter início em dois anos, caso contrário, a concessão perderia sua validade, o que na verdade aconteceu.

- Ligação da Bolívia com o Atlântico

No final do século XIX, já existiam duas ferrovias ligando o altiplano da Bolívia ao litoral do Pacífico. Uma delas partia do Porto chileno de Antofogasta, atravessava o Deserto de Atacama, cortava as íngremes encostas dos Andes, chegava ao Altiplano, na altura de Hyuni, onde se dividia em dois ramais: um para Huanchaca e o outro para Oruro. A ferrovia possuía 924 quilômetros de extensão e o trajeto era percorrido em três dias de viagem. A segunda ferrovia ligava o Porto peruano de Molendo até a Estação Terminal de Puno, às margens do Lago Titicaca. O acesso do Altiplano até o Terminal era feito atravessando o Lago ou contornando-o por uma estrada de rodagem que o contornava. A Bolívia Ocidental e o Altiplano, portanto, possuíam ligação com o Pacífico por estas Ferrovias; o problema persistia em relação à Bolívia Central e Oriental que dependiam dos afluentes da Bacia Amazônica e do Prata.

O escoamento através do Amazonas ainda dependia da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré enquanto, pela Bacia do Prata, a solução estava mais próxima, pois os trilhos argentinos chegavam à fronteira boliviana pelas cidades de Oran e Jujuy. A importância da Ferrovia favoreceria, portanto, uma parte limitada da Bolívia, compreendida entre as Bacias dos Rios Madre de Dios, Beni e Mamoré; e no Brasil, restrita ao Estado do Mato Grosso.

- Borracha “Boliviana”

A produção de borracha na Bacia Amazônica aumentava a cada ano para atender à demanda crescente dos mercados internacionais proporcionando enormes lucros aos seringalistas. A maior parte deste produto descia pelo Rio Amazonas até chegar ao Atlântico, sendo que parte da borracha “boliviana” descia pelas Cachoeiras do Rio Madeira, conforme podemos observar na tabela abaixo.

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Período 1890/1891 Procedência Quilos Brasil 17.790.000 Peru 1.163.909 Bolívia 432.548 Venezuela 7.976

Apesar de ser considerada oficialmente boliviana, grande parte desta

borracha era na verdade, brasileira. Como existia um Tratado entre o Brasil e Bolívia que permitia livre trânsito da mercadoria procedente da Bolívia, muitos comerciantes faziam passar por “boliviana” a borracha brasileira. No entreposto de Santo Antônio, no Rio Madeira, funcionários corruptos da aduana brasileira concediam o necessário visto à borracha brasileira como sendo boliviana, de modo que esta não pagava o devido imposto ao transitar em território brasileiro. Em 1891, o inspetor Cavalcanti, do Governo Brasileiro escreveu:

Eu já visitei (o Posto de Santo Antônio), pessoalmente, e apreciei com assombro e vergonha, o valor dessa fiscalização de anspeçadas e cabos do destacamento, alguns até analfabetos. Por este modo, nada mais fácil do que dar por boliviana quanta borracha se fabricar na região do Madeira, nas cercanias dos Lagos e Paranás interiores, essa zona de milhares de léguas, que fica aquém da linha divisória entre o Brasil e Bolívia, no Mamoré, e é armazenada ali, em Santo Antônio, à espera do vapor que a tem de conduzir para Belém.

Os seringalistas e comerciantes brasileiros nunca tinham ouvido falar do cidadão inglês Henry Alexander Wickham (1846–1928). Em 1875, aos 29 anos de idade, Wickham embarcou em Santarém, Pará, com destino à Inglaterra, carregando semiclandestinamente 70.000 sementes de seringueira, colhidas no baixo Rio Tapajós. Achava-se que a produção crescente da borracha no Brasil e Bolívia, por si só justificaria a construção da Ferrovia contornando as terríveis Cachoeiras do Madeira. A cultura da Hevea no Oriente continuava desconhecida.

- Tratado de Petrópolis e a Ferrovia

A Revolução Acreana, conflagração em que os brasileiros liderados por Plácido de Castro venceram os bolivianos pelas armas, obrigou aos diplomatas dos dois países a tentar encontrar um acordo honroso. Foi assinado, no dia 17.11.1903, em Petrópolis, o Tratado que punha termo à disputa em torno daquela região fronteiriça. No seu artigo VII, o Tratado determinava:

Os Estados Unidos do Brasil obrigam-se a construir, em território brasileiro, por si ou por empresa particular, uma ferrovia desde o Porto de Santo Antônio, no Rio Madeira, até Guajará-mirim, no Mamoré, com um ramal que, passando por Vila Murtinho ou outro ponto próximo (Estado do Mato Grosso), chegue a Vila Bela (Bolívia), na confluência do Beni e do Mamoré. Dessa Ferrovia, que o Brasil se esforçará por concluir no prazo de quatro anos, usarão ambos os países com direito às mesmas franquias e tarifas.

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- Joaquim Catramby Vence a Concorrência

O Decreto n° 1.180, do dia 25.02.1904, autoriza o executivo a abrir créditos necessários à construção da Ferrovia. Imediatamente o Ministério da Viação elabora o Edital de Concorrência, pois o Governo decidira entregar a empreitada a uma construtora particular. O artigo 3° do Edital determinava que a Diretriz Geral da Estrada de Ferro deveria ser norteada nos trabalhos das Comissões Morsing e Pinkas, mas que os seus custos deveriam se basear apenas no Relatório Pinkas, o mais baixo dos dois, como já vimos anteriormente. Os chilenos, atentos, oferecem uma compensação à Bolívia, decorrente da perda de seus territórios, na Guerra do Pacífico, e oferecem a construção de uma Ferrovia ligando o Porto de Arica, agora chileno, a La Paz. Esta ferrovia não somente substituiria a peruana, mas, sobretudo, visava fazer concorrência à Madeira-Mamoré.

Apresentaram-se à concorrência dois empreiteiros ferroviários, os engenheiros cariocas Joaquim Catramby e Raymundo Pereira da Silva. O vencedor da concorrência foi Catramby.

- Joaquim Catramby Vende a Concessão

Desembarca em Santo Antônio, em maio de 1907, a construtora Norte-americana May, Jekyll & Randolph, com sede em Nova York, que supostamente Catramby subempreitara. Em agosto, a May, Jekyll & Randolph funda em Portland, EUA, a companhia Madeira-Mamoré Railway, cujo único objetivo seria de adquirir de Catramby a concessão outorgada pelo Governo Brasileiro. A Madeira-Mamoré Railway fazia parte de um grande grupo de Ferrovias brasileiras, sob o nome de Brazil Railway Company, dirigido pelo Norte-americano Percival Farquhar. Provavelmente, Farquhar já adquirira a Concessão de Catramby antes mesmo de enviá-la a Santo Antônio.

Em 30.01.1908, o Governo Brasileiro, através do Decreto n° 6.838, autorizou a transferência da Concessão de Catramby à Madeira-Mamoré Railway que contratara para a construção da Ferrovia a May, Jekyll & Randolph. A Madeira-Mamoré Railway estava interessada em conseguir, futuramente, a Concessão de Exploração da Ferrovia.

- Ano de 1907

Fiz uma requisição anual de drogas para um hospital de 300 camas. (...) A febre volta depois do 6°, 7° ou 8° dia. (...) Excessivamente má a condição física, primária, de 95%

dos trabalhadores chegados hoje. As mulheres, fisicamente, de fraqueza extrema. Recomendei ao Mr. Randolph que a todo trabalhador deveriam ser dadas, diariamente, 10

centigramas de quinino, do Pará até Porto Velho. (Dr. H. P. Belt)

A May, Jekyll & Randolph realizou um inventário dos materiais deixados pela empresa Collins com o objetivo de verificar os que podiam ser aproveitados. Os trabalhos na linha férrea iniciaram no dia 21.06.1907. A empresa manteve, neste ano, uma média mensal de 140 trabalhadores brasileiros. Estabeleceu-se que o ponto inicial da Ferrovia seria em Porto Velho, o antigo Ponto Velho de Morsing.

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O Relatório do Ministério de Viação e Obras Públicas, relativo ao ano de 1907, sobre as Estradas de Ferro do Brasil, afirma que o pedido de mudança do local foi encaminhado àquele Ministério no final de novembro de 1907 e que a autorização foi concedida através do Aviso n° 2, de 16 de janeiro de 1908.

- Ano de 1908

Em Porto Velho, a sete quilômetros de Santo Antônio, a May iniciou a construção do Cais, Estação, Oficinas, residências e, a meio caminho entre Porto Velho e Santo Antônio, o Hospital de Candelária, uma cidade brotava em plena selva. A empresa, porém, não proporcionava condições sanitárias, médicas e hospitalares adequadas aos seus trabalhadores, forçando o médico H. P. Belt a utilizar seus próprios instrumentos cirúrgicos bem como suas drogas já que não eram adquiridos pela construtora. O engenheiro-chefe Sr. H. F. Dose faz as seguintes considerações sobre os primeiros trabalhadores estrangeiros trazidos para a região:

Justamente em 1907, acabavam os contratantes (May, Jekyll & Randolph) a construção de uma Estrada de Ferro em Cuba, na qual tinham empregado 4.000 trabalhadores galegos (espanhóis) habituados a trabalhar em região apresentando condições climatéricas semelhantes às do Madeira. Confiaram, pois, os empreiteiros nesses trabalhadores, a fim de levar a efeito a difícil tarefa que se lhes antepunha. Em janeiro de 1908, logo que ficaram terminados os primeiros trabalhos de locação e roçada, foram embarcados no vapor Amanda, em Santiago de Cuba, com destino a Porto Velho, 350 homens entre contramestres, ferreiros, cozinheiros e capatazes. Era intenção dos empreiteiros mandar um navio periodicamente a Cuba, para trazer mais trabalhadores com prática, à proporção que os trabalhos de locação o permitissem. Ao chegar, porém, o Amanda ao Pará, foram contadas tais coisas aos trabalhadores, pelos habitantes da região a que se dirigiam, que eles abandonaram o navio aterrorizados, recusando-se absolutamente a seguir viagem.

De um total de 350 homens, apenas 65 chegaram ao destino. Os jornais do Pará juntaram-se ao povo com publicações exageradas relativamente ao clima fatal e ao número de óbitos que já tinham dado na estrada. O cônsul espanhol telegrafou ao Ministro de seu país em Havana, pedindo que fosse impedida a emigração dessa Ilha para a Madeira-Mamoré. Isso foi feito e os contratantes ficaram assim inteiramente privados desse contingente de trabalhadores práticos com que contavam. Os artigos publicados na Folha do Norte, Província do Pará, e outras folhas paraenses foram transcritos em Portugal, Espanha, Itália e em quase todo o mundo, tornando-se, por isso, muitíssimo difícil obter trabalhadores, mesmo por qualquer preço. Portugal, Espanha e Itália decretam a proibição da emigração de seus súditos para uma região considerada fatal à existência humana.

Os empreiteiros chegaram à conclusão de que a construção estaria fadada ao fracasso se mantivessem um número fixo de trabalhadores. Os homens trabalhavam eficientemente nos primeiros dois ou três meses; depois de atacados pelas doenças, a maioria se tornava incapacitada de produzir como antes.

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Era, pois, necessário renovar o efetivo mensalmente para substituir os mortos e inutilizados. A companhia destacou agentes especiais para contratar trabalhadores, conhecidos como “importados” em diversos países, mas, principalmente, nas Antilhas, Barbados, Espanha, Portugal, Grécia, Itália, frança, Índia, Hungria, Polônia e Dinamarca. Os agentes aliciavam os trabalhadores fazendo uma descrição sedutora da região e informando que esses poderiam se tornar agricultores logo após a conclusão da Estrada.

Ano N° Trabalhadores 1907 446 1908 2.450 1909 4.500 1910 6.090 1911 5.664 1912 2.733 Total 21.883

- Ano de 1909

Em janeiro de 1910, o Ministro da Viação e Obras Públicas, apresentou ao Sr. Presidente da República um Relatório sobre a construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, em que faz uma contundente defesa dos empreiteiros afirmando que os mesmos estavam tendo prejuízos na empreitada. Elaborado por um engenheiro, funcionário do Governo Brasileiro, encarregado de fiscalizar a construção e cuja função deveria ser de defender os interesses do Estado e não dos concessionários. Erram o funcionário e o Ministro ao mencionar no relatório custos que ultrapassavam os de contrato, propondo que o Governo tome a iniciativa de socorrer os empreiteiros:

Os serviços de construção não tiveram, como era de se esperar, um andamento regular durante o ano de 1909. O mau estado sanitário de toda a zona fazendo baixar ao hospital um número considerável de operários; a grande vazante do Rio Madeira dificultando sobremaneira o transporte dos materiais vindos do estrangeiro e descarregados em Itacoatiara; a má qualidade das terras em geral, demorando extraordinariamente a solidez dos aterros, principalmente na estação chuvosa, e, consequentemente, a pouca segurança da linha assentada, motivando continuadas interrupções nas viagens dos trens de mercadorias, de materiais e lastro, foram as causas principais da irregularidade do serviço de construção.

Embora a companhia tivesse conseguido por em trabalho, no meado do ano, cerca de quatro mil operários, o serviço por eles executado foi relativamente insignificante, não correspondendo às grandes despesas efetuadas para transportá-los até Porto Velho, porque, para tanto, houve necessidade de ser mantida uma corrente ininterrupta de gente que subia contratada, a fim de ser compensada a deserção cada vez mais acentuada do mesmo pessoal que, acossado pela moléstia e contristado pelo ermo da mata, descia incessantemente em busca de outras paragens, onde a saúde tivesse garantia e melhor aplicação os lucros auferidos em poucos meses de trabalho.

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Permanecendo assim por tão pouco tempo em Porto Velho ou nas turmas acampadas ao longo da linha, esse pessoal, alheio, na maioria, aos serviços de construção de estradas, não pode absolutamente habilitar-se nos trabalhos que lhes foram confiados. Daí obras morosas e imperfeitas e, por conseguinte, maiores prejuízos para a companhia.

Raras vezes terá sido construída uma estrada nas condições desta; felizmente, apesar de tantos reveses, os seus construtores não desanimaram ainda, sentindo-se bem fortes nessa luta contínua contra todos os elementos naturais.

O terreno em geral não é, como já disse, favorável à construção de estradas, por muito pouco consistente. As grandes chuvas, por sua vez, atrasam extraordinariamente o prosseguimento dos trabalhos, abatendo ou arrastando grandes aterros.

O escavador mecânico empregado pelos empreiteiros tem prestado reais serviços, principalmente nos últimos meses do ano, quando a falta de braços se tornou bem sensível.

A linha, que devia chegar em setembro ao Jaci-Paraná, a 86 quilômetros do ponto inicial (Ponto Velho), só o atingirá talvez em fins de fevereiro do corrente ano (1910), pelos motivos já expostos e também pela falta de dormentes, que obrigou a companhia a contratá-los no Rio de Janeiro e na Austrália, de onde espera um fornecimento de cem mil.

Todas as pontes têm sido construídas de madeira, de caráter provisório, devendo este ano serem substituídas por metálicas.

A ponta dos trilhos já se achava, em 31 de dezembro do ano passado (1909), no quilômetro 74, estando nessa mesma época o leito concluído na extensão de muitos quilômetros além. Do outro lado do Jaci-Paraná a linha está pronta em mais de 15 quilômetros, devendo elevar-se a extensão concluída até o fim do corrente ano (1909) a 174 quilômetros, atingindo-se o Rio Mutum-paraná.

Foram construídas durante o ano, em Porto Velho, muitas casas para o pessoal superior que é numeroso.

Os trabalhos realizados até 31 de dezembro do ano próximo findo (1909) montam a quantia de 11.212:250$156, sendo 7.516:086$172 de serviços executados e 3.696:163$984 de materiais recebidos do estrangeiro.

Pensa o engenheiro fiscal que os primeiros 100 quilômetros desta estrada, contando como despesa deste trecho todo o material rodante já recebido, o custo das instalações em Porto Velho, em Candelária e no Jaci-Paraná, trilhos e outros materiais empregados no serviço médico hospitalar desde o começo dos trabalhos, ficarão talvez em 15.000:000$000, à razão de 150:000$000 o preço quilométrico, devendo o preço médio geral reduzir-se no final da construção a cento e poucos contos, não se elevando o total da estrada a mais de 35.000:000$000, de acordo com o cálculo aproximado apresentado pelo mesmo engenheiro.

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Ora o vencedor da concorrência levara em conta, como determinara o Edital, o cálculo dos custos especificados pela Comissão Pinkas cujo custo total atingira cifra de 8.736:716$312, (um quarto do preço da empreiteira) e de 26:507$020 por quilômetro (menos de um quinto do preço da construtora) e concordara com esses termos. Ontem como hoje, técnicos e/ou políticos corruptos, aliciados (comprados) por empresas, conseguem, através de artifícios de todos os tipos, aditivos ao contrato que oneram os cofres públicos e o bolso do contribuinte.

Sendo assim, proporcionalmente ao salário do operário que, em outra parte do país, não vai além de 3$500, e ali nunca é inferior a 10$000, levando-se em conta as despesas de transporte e prejuízos, esta será relativamente, a estrada de custo menos elevado construída no Brasil.

O custo do operário era assunto interno da construtora e que não cabia, absolutamente, ao Governo considerar em seu relatório. Não era da alçada do Ministro e muito menos ao engenheiro que fiscalizava as obras da construtora sair em defesa destes.

O custo do quilômetro tem sido de 3:100$000 para a exploração e projeto e 8:800$000 para locação, tais são as dificuldades de transporte e manutenção de pessoal.

O contrato previa que o quilômetro de exploração e projeto seria pago à razão de 1:500$000, metade do declarado pelo Ministro, e o de locação 2:020$000, um quarto do declarado pelo representante do Governo brasileiro.

- Ano de 1910

Quando tratarmos da profilaxia quinínica, veremos que aqui também a praxes habituais não cabem na região do Madeira. É a formação da raça de hematozoário resistente à quinina. Daí a necessidade do emprego de altas doses no tratamento e profilaxia.

(Osvaldo Cruz)

A construtora trouxe para região uma média de 508 operários por mês de todas as partes do mundo. No dia 23.04.1910, um funcionário do alto escalão do Ministério da Viação, enviou à Madeira-Mamoré Railway uma autorização para o lastramento da linha.

Lastramento: colocação de uma camada de brita sob os dormentes.

O lastramento não estava previsto no contrato e, portanto, não havia um preço prévio contratado. A ordem não especificava o preço, caracterizando uma grave irregularidade que resultaria, mais tarde, como não poderia deixar de ser, em um grave escândalo patrocinado por agentes públicos. No dia 31.05.1910, foi inaugurado o primeiro trecho da Ferrovia, entre Santo Antônio e Jaci-Paraná, numa extensão de 90 quilômetros.

No dia 09.07.1910, chegam a Porto Velho os doutores Osvaldo Cruz e Belizário Pena. Os sanitaristas permaneceram na região por 28 dias onde tiveram a oportunidade de percorrer a linha férrea até o quilômetro 113.

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Partiram para a Capital Federal no dia 07.08.1910, onde redigiram um extenso relatório propondo diversas medidas que deveriam ser adotadas para melhorar o estado sanitário da região onde estava sendo construída a Ferrovia. No relatório entregue à Madeira-Mamoré Railway, no dia 06.09.1910, constava:

Naturalmente o regime das águas do Rio inundam as margens baixas do alto Madeira, formando os pântanos donde se originam as aluviões de mosquitos que se vão encarregar de alastrar a endemia malárica que é em função dessas precipitações aquosas. O Madeira atinge o máximo da cheia em meados de março, alcançando as águas a altura de 96 metros, isto é, 14 metros acima do nível mínimo de 82 metros que é atingido na última quinzena de setembro.

Como regra, se verifica que a insalubridade da região começa pouco depois da vazante, quando as águas, abandonando a terra, ficam em parte depositadas nas depressões dos terrenos, onde se formam, então, pântanos que se estendem por quilômetros de extensão e permitem a criação em massa dos anofelinos que se vão infectar nos impaludados crônicos que habitam a região e vão disseminar extensa e intensamente a malária. (...)

Dominam na nosologia da região as seguintes moléstias: o impaludismo, a febre hemoglobinúrica, o beribéri, a disenteria, a ancilostomíase, a pneumonia, além de outras entidades mórbidas de menor frequência e a que adiante aludiremos; acompanhando tudo o alcoolismo. (...)

Dos anofelinos transmissores do impaludismo só nos foi dado, na época que estudamos (julho e agosto), colher duas espécies de Cellia, a alcimana e a argyrotarsis, sendo esta predominante. Não encontramos outras espécies em Candelária, Santo Antônio, Jaci-Paraná, e em outros pontos da linha em construção. Mas se não avultam pela variedade de espécies, assoberbam pelo número: no Jaci-Paraná, em um rancho de palha onde havia quatro doentes, logramos fazer colher numa só noite para mais de 100 exemplares de Cellia argyrotarsis. (...)

Naturalmente, à vista do que vimos relativamente à topografia da região, não se pode em cogitar fazer já, para facilitar a construção da estrada, os trabalhos de profilaxia regional que quase custaria tanto, senão mais que a própria construção. Só podem ser tomados em consideração os processos do método da profilaxia individual. (...) Assim, se tivéssemos de fazer profilaxia quinínica, teríamos de avaliar qual a dose mínima de quinina suficiente para preservar o indivíduo dos parasitos inoculados pelos mosquitos. Observações que fizemos, na região, mostram que esta dose, para ser profícua, não deve ser inferior a 75 centigramas ou 1 (um) grama diário. Pessoas que tomaram doses inferiores foram infectadas. Resta saber se essa prática de profilaxia química exclusiva caberia à região. “A priori” podemos dizer que não, e não porque em breve a raça de parasitas já em via de imunização contra a quinina estaria resistente a 1 (um) grama diário de quinina profilática, o que levaria à necessidade de se elevar a dose profilática aos poucos até atingir os limites da dose manejável. Ora, atingido esse limite, a dose terapêutica estaria dentro da dose tóxica e ficariam os doentes no dilema de: morte por moléstia ou intoxicação pelo medicamento.

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Essas medidas precisam ser postas em prática, já quanto antes porque, em breve, ter-se-á formado uma raça de hematozoário resistente às doses manejáveis de quinina e então a solução do problema quase que atingirá os limites do insolúvel. A procrastinação das medidas será um crime de lesa-humanidade, permitindo maiores sacrifícios que os de hoje: uma vida, e talvez dez inutilizadas por dia, e de lesa-pátria porque transformará em zona inabitável um dos mais ricos sítios do planeta.

No dia 30.10.1910, foi inaugurado o segundo trecho, com extensão de 62 quilômetros. A Ferrovia chegava ao quilômetro 152, na altura da Cachoeira dos três Irmãos. No dia 08.11.1910, o Presidente da República, Nilo Peçanha, e o Ministro da Viação, Francisco Sá, assinam o Decreto n° 8.347, que constava de apenas três artigos:

1°) modificando o traçado de um futuro ramal de Estrada de Ferro Madeira-Mamoré (alterando o acordado no Tratado de Petrópolis);

2°) autorizava o lastramento da Ferrovia (lastramento que já havia sido autorizado em 23.04.1910, agora especificando o absurdo preço a ser pago de 2.750 libras esterlinas por quilômetro);

3°) Autorizava a construção de diversas obras que não constavam do antigo contrato (sem, absolutamente, especificar os custos).

No dia 12.11.1910, foi assinado o contrato para a execução dos serviços constantes do Decreto sem detalhar a execução e os custos dos serviços, um procedimento extremamente favorável aos empreiteiros Norte-americanos e altamente lesivo aos cofres nacionais.

- Ano de 1911

A empreiteira trouxe, neste ano, 5.664 operários de todas as partes do mundo. No dia 16.06.1911, o Tribunal de Contas da União (TCU), considera ilegais os favores concedidos à Madeira-Mamoré Railway pelo Decreto n° 8.347, de 08.11.1910, e nega seu registro. Pressionado pelo TCU e pela opinião pública, o Ministro da Viação, no dia 24.08.1911, cria uma Comissão Extraordinária para fiscalizar os trabalhos de construção da Ferrovia, composta por um engenheiro fiscal, dois engenheiros e um funcionário do Ministério. A Comissão deveria apresentar um relatório sobre a apuração das contas dos diversos serviços complementares da construção.

No dia 07.09.1911, foi inaugurado novo trecho da Ferrovia, até o quilômetro 220, na Foz do Rio Abunã. No final do ano de 1911, existiam 220 quilômetros em tráfego efetivo de Porto Velho a Abunã, os 72 de quilômetros Abunã a Ribeirão estavam prontos com tráfego provisório enquanto a ponta dos trilhos alcançara o quilômetro 306, até onde chegavam os trens de lastro. O restante, do quilômetro 306 até o final da linha, numa extensão de 58 quilômetros, se encontrava em construção. A Madeira-Mamoré Railway Co., já possuía 11 locomotivas, 2 carros de passageiros, 76 vagões fechados e 163 gôndolas.

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No final de 1911, os produtos bolivianos e brasileiros, depois de atravessar as primeiras Cachoeiras e serem desembarcados na Estação de Abunã, eram embarcados nos comboios da Ferrovia que os transportavam até Porto Velho, onde novamente eram colocados nos vapores que desciam o Madeira.

- Ano de 1912

A companhia “importou” somente 2.733 operários. No dia 04.03.1912, a Inspetoria Federal das Estradas de Ferro, subordinada ao Ministério da Viação, informa que estava em vigor o polêmico Decreto n° 8.347, de 08.11.1910, considerado, no ano anterior, ilegal pelo TCU. No dia 14.05.1912, a Comissão Extraordinária nomeada no ano anterior concluiu:

Se adquire a convicção de que grandes irregularidades se têm dado com a Madeira-Mamoré Railway Company, no tocante às contas e execução dos serviços, que importam em grandes prejuízos para o Tesouro Nacional. Dotado de posição geográfica privilegiada, julgamos Porto Velho destinado a ser um dos maiores centros comerciais do Vale do Amazonas. O comércio de toda a região cisandina manterá suas comunicações com o Velho Mundo, por esta via, mais próxima e menos arriscada que a do Pacífico, mesmo depois de aberto o Canal do Panamá. As repúblicas do Chile e Argentina, compreendendo as inúmeras vantagens a auferir do comércio da hinterlândia Sul-americana, que lhes pode ser disputado com vantagens pelo Brasil, por intermédio da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, tratam de construir, a marchas forçadas, Estradas de Ferro que venham disputar-nos o comércio desta região.

A estrada chilena de Arica a Cochabamba está quase a terminar, e agora mesmo encetaram os trabalhos de construção da Estrada de Ferro de Cochabamba a Chimoré, que fica situado, conforme sabemos, já em águas do Mamoré, em um ponto navegável. Eis um adversário sério, que surge para disputar-nos o campo.

A Estrada de Ferro Central Argentina, cujo tráfego está em Tupiza, dirigi-se, também, aceleradamente para Cochabamba, vindo constituir-se mais um adversário, que procurará, com denodo, encaminhar todo o tráfego para Buenos Aires.

Finalmente o Governo reconhecia que graves irregularidades tinham ocorrido na construção. Ora se existia um engenheiro do Ministério da Viação destacado para acompanhar as obras e se o próprio Governo se propôs a alterar a concessão em vigor através de um polêmico decreto, de quem seria a culpa? Além disso, o relatório pintava um quadro sombrio sobre as perspectivas futuras da Madeira-Mamoré 46 dias antes de ser assentado seu último dormente.

No dia 30.04.1912, foi assentado o último dormente da Ferrovia em Guajará-mirim e, no dia 01.08.1912, deu-se a inauguração dos 364 quilômetros. A construção reabilitava a memória do Engenheiro Carlos Alberto Morsing e provava que a Planta da Public Works era autêntica.

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- Ano de 1913

O Governo Brasileiro pagara à construtora um total de 40.474:872$622 conforme acordado no contrato de concessão lavrado com Joaquim Catramby, em 1906, e que este vendera à Madeira-Mamoré Railway Company. Vinha agora a empreiteira, concluída a construção, reclamar do Governo um pagamento adicional já que o custo real da Estrada fora o dobro dos preços estipulados na concorrência e no contrato.

- Ano de 1916

Finalmente, no final de 1916, o Brasil pagou à Madeira-Mamoré Railway Company a seguinte quantia: 62.194:374$366 dando um basta a pretensões da empresa Norte-americana que continuou reclamando uma quantia excedente.

- Trilhos de “Ouro”

Seus trilhos são de ouro e cada dormente representa uma vida humana. (Anônimo)

Alguém querendo criar uma frase de efeito teria dito a célebre frase “seus trilhos são de ouro e cada dormente representa uma vida humana” e, a partir de então, este falso chavão vem sendo repetido por populares e intelectuais descuidados. Na verdade, uma breve análise dos fatos mostraria que a famosa expressão não tem nenhum fundamento. Infelizmente são diversas as citações de autores nacionais e estrangeiros que buscaram amparo na falaciosa frase ao longo da história brasileira e a revigoraram.

- Seus Trilhos são de Ouro

Considerando o câmbio da época, com 62.000 contos de réis podiam-se adquirir 28 toneladas de ouro. Desde que os trilhos pesavam 25 quilos por metro, chegamos à conclusão de que se os trilhos fossem de ouro, com as 28 toneladas deste metal, ter-se-iam 1.120 metros. Dividindo-se por dois (logicamente os trilhos são colocados aos pares), teríamos uma extensão de 560 metros de ferrovia, com trilhos de ouro. Entretanto, a extensão da Estrada é de 366.000 metros. (Manoel Rodrigues Ferreira)

- Cada Dormente Representa uma Vida Humana

Em 1942, João da Costa Palmeira, no seu livro “Amazônia”, disse:

Cada dormente representa uma vida que ali se extinguiu, tal foi o tributo pago pelos trabalhadores, em geral nordestinos, que ali ultimaram seus dias.

Em 1959, Benigno Cortizo Bouzas, no seu livro “Del Amazonas al Infinito”, afirmou:

Se dice que hubo tantos muertos como traviesas tiene la via.

Em 1984, Edmar Morel, no seu livro “Amazônia Saqueada”, relata que:

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No início da construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, diz a lenda que, para cada dormente assentado, morreram vinte trabalhadores de malária, motivo pelo qual ela recebeu o apelido de “Estrada dos Trilhos de Ouro”.

Em 1998, Zuleika Alvim, no livro “História da Vida Privada no Brasil - República: da Belle Époque à Era do Rádio”, narra que:

(...) chegando até a Amazônia, acompanhando a Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, cujo preço, dizia-se, era o de uma vida por dormente.

Em 2004, João Carlos Meirelles Filho, no seu “Livro de Ouro da Amazônia”, conta que:

A construção da Ferrovia sofreu diversos reveses e resultou na perda de milhares de vidas, em função dos surtos frequentes de malária. Muitos lembram a Estrada com o lema “cada dormente representa um operário morto na construção”.

A Estrada de Ferro Madeira-Mamoré tinha uma extensão de 366 km, considerando que em cada quilômetro foram assentados 1.500 dormentes chegaremos, sem grandes dificuldades, a um total de 549.000 dormentes. Teriam, realmente morrido 549.000 trabalhadores na sua construção? O relatório da Companhia especifica o número total de operários “importados” e o número de óbitos desde o início das obras até a sua conclusão conforme o quadro abaixo:

Ano Operários Óbitos 1907 446 6 1908 2.450 65 1909 4.500 425 1910 6.024 428 1911 5.664 419 1912 2.733 209 Total 21.817 1.552

Evidentemente a estatística da companhia só contempla aqueles que

morreram no Hospital de Candelária. Não aparecem nestas cifras os que faleceram depois de abandonarem Santo Antônio e Porto Velho em trânsito para Manaus, em Belém, ou nos seus países de origem. Consideramos razoável estabelecer que este número seja três vezes maior do que o admitido pela construtora. Multiplicando por quatro o total do relatório vamos chegar a 6.208 óbitos muito longe do número de dormentes assentados na ferrovia cuja estimativa é de 549.000. Os óbitos, evidentemente, continuam a ocorrer depois da conclusão das obras, mas em número bem mais reduzido tendo em vista a melhoria das condições sanitárias da região, das melhores condições de trabalho e dos melhores recursos de profilaxia das doenças.

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- Administração da Madeira-Mamoré Railway

Em suma, podemos afirmar que, para o ruinoso fracasso da citada empresa, influíram os fatores seguintes: crise, má administração, excessivos gastos, inconcebíveis e imperdoáveis caprichos comerciais, além de um profundo desconhecimento das características psicológicas do meio em que se exerciam as suas atividades.

(J. de Mendonça Lima – Cônsul do Brasil em Guaiara Mirim, Bolívia)

Os dois primeiros anos de operação (1912 e 1913) foram os de maior receita e maior saldo da Madeira-Mamoré Railway; a partir destes anos, porém, as receitas acompanharam a queda do preço da borracha. Os anos de 1914 e 1918, o período de 1921 a 1924 foram igualmente deficitários para a empresa. Acompanhando o “crack” da Bolsa de Nova York, de 1929, a empresa entrou em sérias dificuldades que a levaram a solicitar à União a interrupção do tráfego.

Receita Saldo Déficit

Ano (Contos de Réis) 1912 4.656 3.188 1913 4.995 5.562 1914 2.724 209 1915 2.767 732 ... ... ... ...

1922 1.443 821 ... ... ... ...

1925 4.373 1.557 ... ... ... ...

1929 1.990 156 1930 1.556 541

O advogado e representante da empresa, Dr. Ricardo Xavier da Silveira, no dia 25.06.1931, entrou com uma petição declarando que a empresa estava disposta a interromper o tráfego e solicitava que a Justiça citasse a União para receber o acervo da ferrovia. À meia-noite do dia 30.06.1931, a Madeira Mamoré Railway suspendeu o tráfego da Ferrovia.

No dia 03.07.1931, o Procurador Geral da República, Dr. Carlos Olyntho Braga, comparece em juízo, e apresenta a contestação do Governo Federal afirmando que este se opunha à entrega da Estrada.

- Administração do Governo Federal

No dia 10.07.1931, o Chefe do Governo Provisório, através do Decreto n° 20.200, determinou o restabelecimento do tráfego da Ferrovia. O Decreto afirmava que o tráfego seria restabelecido por conta da empresa arrendatária, com recursos provenientes da própria receita e, caso estes não fossem suficientes, seriam computados como débito da Railway. É interessante ressaltar que o decreto não menciona que, conforme o estabelecido no contrato de arrendamento de 1909, o Governo teria “o direito de impor uma multa por dia de interrupção igual à renda líquida do mesmo dia no ano anterior ao da interrupção”.

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Esta omissão era proposital já que, no ano anterior, 1930, a receita tinha sido de 1.556 com um déficit de 541 contos de réis, não havendo, portanto, nenhuma multa a cobrar da companhia.

Receita Saldo Déficit

Ano (Contos de Réis) 1932 1.008 257 ... ... ... ...

1936 2.138 155 1937 2.615 245 ... ... ... ...

1939 2.496 803 ... ... ... ...

1944 5.755 1.188 ... ... ... ...

1951 5.358 15.147 1952 7.261 21.780 1953 6.849 29.779 1954 7.087 40.845 1955 6.772 52.887 1956 8.778 83.341

No dia 06.07.1934, o Governo Federal assinou o Decreto n° 24.596

autorizando a rescisão amigável do contrato com a Railway. No dia 05.04.1937, o Decreto n° 1.547 declarou rescindido o contrato de 1909.

- Decreto n° 1.547, de 05.04.1937

I - Como indenização pela rescisão do contrato aprovado pelo Decreto n° 7.344, de 25 de fevereiro de 1909, o Governo Federal pagará à Madeira-Mamoré Railway Co. Ltd. a quantia de 17.514:198$000.

II - O Governo Federal restituirá à Madeira-Mamoré Railway Co. Ltd. a caução, no valor nominal de 500:000$000 depositada no Tesouro Nacional.

III - Para efeitos do recebimento do acervo da Estrada, que estava arrendada à Madeira-Mamoré Railway Co. Ltd., a rescisão do contrato será tida por verificada em 10 de julho de 1931, considerando-se iniciada na mesma data a administração da Estrada por conta do Governo Federal.

IV - (...) A Madeira-Mamoré Railway Co. Ltd. desiste de toda e qualquer reclamação, por fatos ou atos praticados pelo Governo Federal em relação aos contratos de construção, arrendamento e outros, bem como da reclamação para se cobrar de prejuízos sofridos com o afundamento do pontão Guaporé. Por sua vez, o Governo Federal desiste de qualquer penalidade imposta à Madeira-Mamoré Railway Co. Ltd. pelo Ministério da Viação e Obras Públicas, com fundamento no contrato.

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O Governo Federal tomava posse, definitivamente, de uma Ferrovia que na verdade era de sua propriedade.

- Relatório do Superintendente da Ferrovia (1946)

No final do ano de 1946, o engenheiro Joaquim de Araújo Lima, superintendente da Ferrovia, envia ao Governo Federal um relatório no qual ele aponta uma série de problemas enfrentados pela sua administração e apresenta um Programa, orçado em Cr$ 42.000.000,00, que visava modernizar e melhorar a eficiência da Estrada, as condições de trabalho e assistência aos trabalhadores:

A Madeira-Mamoré não obteve recursos especiais em 1946, para melhorar os seus serviços, em virtude da compressão geral de despesas adotadas pelo Governo da União. (...) É angustiosa a falta de braços ao longo da linha férrea; e a instabilidade dos trabalhadores que são admitidos ao serviço da ferrovia deve-se, em grande parte, ao estado sanitário da região, agravado pela deficiência alimentar, e pelo desconforto absoluto existente nas precárias e anti-higiênicas barracas de palha onde moram os ferroviários.

Tendo reunido, com enorme sacrifício, cerca de 50 homens para a extração de dormentes, intensificando assim a produção dos mesmos na expectativa de receber numerário suficiente para atender ao pagamento correspondente, teve a Superintendência da Estrada que suspender, constrangida, a produção de dormentes sem os quais não poderá atender à sua linha que se encontra em deplorável estado. Sem uma linha firme e correta, não há material rodante que resista.

A omissão e a péssima administração do Governo Federal, os déficits sucessivos, a insalubridade, as intempéries e o processo inflacionário culminaram, por fim, com a inviabilização econômica da Ferrovia. A função da ferrovia deve ser, hoje, reavaliada, se, por um lado, ela não foi viável economicamente, sob o ponto de vista da nacionalidade ela teve influência capital. O desenvolvimento e o progresso acompanharam o lançamento de cada dormente, o Estado começou a se fazer presente em regiões antes esquecidas, e os brasileiros de todas as querências volveram os olhos para esta terra da promissão, prenhe de desafios e seara de tantos heróis.

A Amazônia ainda requer atenção especial das autoridades, não devem elas, em nome de preceitos ambientalistas radicais, estancar o progresso, inviabilizando ou dificultando a permanência humana na região. O Governo Federal, finalmente, reconhece a necessidade da construção das hidrelétricas, mas, infelizmente, adia a construção das eclusas que viabilizariam o transporte fluvial nessa imensa terra das águas. O último capítulo da história da Ferrovia do Diabo só será escrito no momento em que as eclusas das hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio estiverem funcionando. Um sonho de mais de século e meio que um dia se concretizará.

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Águas puras... águas barrentas... (Sebastião Norões)

Velho Madeira a deslizar profundo por entre margens de vermelho e verde. Meu velho Rio – amálgama de águas

verdes e brancas e vermelhas e pretas.

Que escureza e que espessura fluem dessa caudal eternamente enorme

na estação da grande cheia.

Em meio as canaranas e árvores, as barrancas descendo e as garças jangadeando ilhotas ambulantes.

E as madeiras trazidas pelo líquido amarasmado, – símbolo andejo a relembrar seu nome –

Velho Madeira a digerir molente

bastas terras caídas. Semelhando, no andar moroso e langue,

a jibóia depois que a presa tem.

Que leveza e que beleza fluem, nas suas águas de esmeralda e opala,

na época da seca.

Não mais troncos descendo, nem barrancos boiando, águas pequenas, num correr suave,

gaivotas mostrando a flor branca das praias e a pureza hospedando na liquidez de sonho.

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Rumo a Porto Velho, RO

Céus de Rondônia (Letra de Joaquim de Araújo Lima e música de José de Mello e Silva)

Quando nosso céu se faz moldura Para engalanar a natureza

Nós, os bandeirantes de Rondônia, Nos orgulharmos de tanta beleza.

Como sentinelas avançadas, Somos destemidos pioneiros

Que nestas paragens do Poente Gritam com força: somos Brasileiros!

Nestas fronteiras, de nossa pátria, Rondônia trabalha febrilmente Nas oficinas e nas escolas

A orquestração empolga toda gente;

Braços e mentes forjam cantando A apoteose deste rincão

Que com orgulho exaltaremos, Enquanto nos palpita o coração

Azul, nosso céu é sempre azul - Que Deus o mantenha sem rival,

Cristalino muito puro E o conserve sempre assim.

Aqui toda vida se engalana

De belezas tropicais, Nossos Lagos, nossos Rios Nossas matas, tudo enfim...

- Partida de Porto Alegre (17.12.2011)

Chegamos ao Aeroporto Salgado Filho antes das sete horas, nosso vôo tinha a partida marcada para as 07h53. A enorme fila frente aos portões de embarque confirmava que o “caos aéreo” das festas de fim de ano já se instalara. Apesar do atendimento da Gol ter sido perfeito, as instalações aeroportuárias se mostravam extremamente acanhadas mesmo com o reduzido número de vôos previsto para aquele horário. A confusão era geral, partimos com 30 minutos de atraso. No deslocamento até Porto Velho, constatamos uma total falta de educação dos passageiros em relação ao uso de aparelhos eletrônicos a bordo, apesar dos insistentes apelos da tripulação.

- Chegada em Porto Velho (17.12.2011)

A viagem transcorreu sem maiores alterações e a aeronave pousou pontualmente às treze horas, hora local, no Aeroporto Internacional de Porto Velho – Aeroporto Governador Jorge Teixeira. Em virtude do fuso horário e horário de verão, teríamos um extenso dia de 26 horas. O Tenente-Coronel da Arma de Engenharia Moacir Rangel Junior, Comandante do 5° Batalhão de Engenharia de Construção (5° BEC) - Batalhão Carlos Aloysio Weber, havia escalado o Tenente Thiago Teixeira Baptista e o Soldado Keiles para nos recepcionar no Aeroporto e nos alojar no Palacete do Rio Madeira. O Palacete é uma Casa de Apoio para Oficiais do 5° BEC, e tem a finalidade de apoiar oficiais e comitivas do 2° Grupamento de Engenharia que se deslocam para a guarnição de Porto Velho, a serviço.

Depois de devidamente recepcionados e instalados, pelo Soldado Guilherme Fialho, o Tenente Teixeira fez um “tour” pela cidade mostrando suas instalações mais relevantes e discorrendo sobre sua história. De todos os locais visitados, o que mais nos impressionou foi o “Parque Memorial Madeira Mamoré”.

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- Questão do Acre e o Pusilânime “Tratado de Petrópolis”

Se a insistência da Bolívia fosse irredutível, seria melhor abrirmos mão das negociações, deixando-a entregue à sua fraqueza contra os insurgentes do Acre, mais capazes de resolver a questão do que o Governo brasileiro, na situação a que o condena, por um lado, a debilidade lastimável dos nossos meios e ação militar, por outro a repugnância invencível da nossa gente em ceder ao estrangeiro um palmo de terra, ainda recebendo

em retorno a vastidão territorial de um novo Estado. (Ruy Barbosa de Oliveira)

O tratado determinava que o Brasil indenizasse a Bolívia com 2 milhões de libras esterlinas em troca de um território que incorporaria. O Brasil comprometeu-se, ainda, a entregar áreas da fronteira do Mato Grosso que totalizavam 3.164 km², bem como iniciaria a construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, a “Ferrovia do Diabo”.

- Parque Memorial Madeira Mamoré

As obras de restauração do conjunto rotunda/girador/oficina marcarão uma mudança no modo de ver a relação do Rio Madeira com Porto Velho. A cidade está virada ‘de costas’ para o Rio e a recuperação de uma área como o pátio da EFMM, complementada pela obra que se iniciou, fará que a população, através do contato, se aproprie do Rio como parte da paisagem. Esta obra será mais um passo para que a cidade una dois dos seus maiores patrimônios: o histórico (EFMM) e o natural (Rio Madeira). (Giovani Barcelos -

arquiteto e urbanista do IPHAN)

No dia 10 de novembro de 2005, a ferrovia foi tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), e em 28 de dezembro de 2006, a Portaria 108, considerou a EFMM como Patrimônio Cultural Brasileiro. IPHAN, em novembro de 2011, iniciou as obras de restauração da grande oficina da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, que possui 5.700 m2 e 13 metros de altura. A previsão é de que as obras estejam concluídas até 2014 quando as locomotivas percorrerão um trecho de 8 quilômetros entre a Estação de Porto Velho e Santo Antônio.

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Porto Velho, RO

Hino do Município de Porto Velho (Letra e Música: Claudio Feitosa)

No Eldorado uma estrela brilha Em meio à natureza, imortal:

Porto Velho, cidade e Município, Orgulho da Amazônia ocidental, (...)

Nascente ao calor das oficinas Do parque da Madeira-Mamoré Pela forja dos bravos pioneiros, Imbuídos de coragem e de fé. És a cabeça do estado vibrante:

És o instrumento que energia gera Para a faina dos novos operários,

Os arquitetos de uma nova era. (...)

- A Origem do Nome (18.12.2011) Fonte: www.portovelho.ro.gov.br

Oficializada em 2 de outubro de 1914, Porto Velho foi criada por desbravadores por volta de 1907, durante a construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré. Em plena Floresta Amazônica, e inserida na maior bacia hidrográfica do globo, onde os Rios ainda governam a vida dos homens, é a Capital do Estado de Rondônia. Fica nas barrancas da margem direita do Rio Madeira, o maior afluente da margem meridional do Rio Amazonas.

Desde meados do século XIX, nos primeiros movimentos para construir uma ferrovia que possibilitasse superar o trecho encachoeirado do Rio Madeira (cerca de 380 km) e dar vazão à borracha produzida na Bolívia e na região de Guajará-mirim, a localidade escolhida para construção do Porto onde o caucho seria transportado para os navios seguindo então para a Europa e os EUA, foi Santo Antônio do Madeira, Província de Mato Grosso.

As dificuldades de construção e operação de um Porto fluvial, em frente aos rochedos da Cachoeira de Santo Antônio, fizeram com que construtores e armadores utilizassem o pequeno Porto amazônico localizado 7 km abaixo, em local muito mais favorável.

Em 15 de janeiro de 1873, o Imperador Pedro II assinou o Decreto-Lei n° 5.024, autorizando navios mercantes de todas as nações subirem o Rio Madeira. Em decorrência, foram construídas modernas facilidades de atracação em Santo Antônio, que passou a ser denominado Porto Novo.

O Porto Velho dos militares continuou a ser usado por sua maior segurança, apesar das dificuldades operacionais e da distância até Santo Antônio, ponto inicial da EFMM. Percival Farquhar, proprietário da empresa que afinal conseguiu concluir a ferrovia em 1912, desde 1907 usava o velho Porto para descarregar materiais para a obra e, quando decidiu que o ponto inicial da ferrovia seria aquele (já na Província do Amazonas), tornou-se o verdadeiro fundador da cidade que, quando foi afinal oficializada pela Assembleia do Amazonas, recebeu o nome Porto Velho. Hoje, a capital de Rondônia.

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- Porto Velho Antigo Fonte: www.portovelho.ro.gov.br

Após a conclusão da obra da E.F.M.M., em 1912, e a retirada dos operários, a população local era de cerca de 1.000 almas. Então, o maior de todos os bairros era onde moravam os barbadianos - Barbadoes Town - construído em área de concessão da ferrovia. As moradias abrigavam principalmente trabalhadores negros oriundos das Ilhas Britânicas do Caribe, genericamente denominados barbadianos. Ali residiam, pois vieram com suas famílias, e nas residências construídas pela ferrovia para os trabalhadores só podiam morar solteiros.

Era privilégio dos dirigentes morarem com as famílias. Com o tempo, passou a abrigar moradores das mais de duas dezenas de nacionalidades de trabalhadores que para cá acorreram. Essas frágeis e quase insalubres aglomerações, associadas às construções da Madeira-Mamoré, foram a origem da cidade de Porto Velho, criada em 02 de outubro de 1914. Muitos operários, migrantes e imigrantes moravam em bairros de casas de madeira e palha, construídas fora da área de concessão da ferrovia.

Assim, Porto Velho nasceu das instalações portuárias, ferroviárias e residenciais da Madeira-Mamoré Railway. A área não industrial das obras tinha uma concepção urbana bem estruturada, onde moravam os funcionários mais qualificados da empresa, onde estavam os armazéns de produtos diversos, etc. De modo que, nos primórdios, havia como duas cidades: a área de concessão da ferrovia e a área pública. Duas pequenas povoações, com aspectos muito distintos. Eram separadas por uma linha fronteiriça denominada Avenida Divisória, a atual Avenida Presidente Dutra. (...)

Cada uma dessas povoações tinham comércio, segurança e, quase, leis próprias, e com vantagens para os ferroviários, face à realidade econômica das duas comunidades. Até mesmo uma espécie de força de segurança operava na área de concessão da empresa, independente da força policial do estado do Amazonas. Essa situação gerou conflitos frequentes entre as autoridades constituídas e os representantes da Railway. Portanto, embora as mortes a lamentar durante sua construção tenham sido muitas, a ferrovia da morte, como chegou a ser denominada a Estrada de Ferro Madeira Mamoré é, na verdade a ferrovia da vida, para Porto Velho e seu povo. A importância da EFMM para a formação da cidade pode ser medida pelo texto da lei de sua criação, aprovada pela Assembleia Legislativa do Amazonas, que diz: Artigo 2° - O Poder Executivo fica autorizado a entrar em acordo com o Governo Federal, a Madeira-Mamoré Railway Company e os proprietários de terras para a fundação imediata da Povoação, aproveitando, na medida do possível, as obras do saneamento feitas ali por aquela companhia, e abrir os créditos necessários à execução da presente lei.

Nos seus primeiros 60 anos, o desenvolvimento da cidade esteve umbilicalmente ligado às operações da ferrovia. Enquanto a borracha apresentou valor comercial significativo, houve crescimento e progresso. Nos períodos de desvalorização da borracha, devido às condições do comércio internacional e a inoperância empresarial e governamental, estagnação e pobreza.

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- Universidade Federal de Rondônia - UNIR (18.12.2011)

A ética é o fundamento que orienta as pessoas para que possam ter uma vida digna e justa. A corrupção é um mal que se estabelece nas sociedades através de pequenos

vícios, portanto não deve ser encarada como algo natural, mas sim um desvio de conduta adquirido através de maus exemplos. Tem como fruto a miséria, a falta de saúde, falta de educação, falta de moradia digna etc. Rondônia tem sido alvo de pessoas inescrupulosas

que utilizam o serviço público em defesa de seus interesses pessoais. O movimento unificado pela ética e contra a corrupção espera que essa lamentável situação seja a base de uma reflexão mais profunda sobre os efeitos maléficos da corrupção visando a banir de

nosso meio a longa e dolorosa tradição de apropriação indevida do aparato público”. (Manifesto do Movimento Unificado pela Ética e Contra a Corrupção)

O Tenente Thiago Teixeira Baptista nos acompanhou até as instalações da Universidade Federal de Rondônia (UNIR). O número de obras paralisadas em virtude dos últimos acontecimentos é impressionante, mas o que mais chamou atenção de nossa pequena comitiva foi a falta de ação dos encarregados da segurança que permitiam uma grande quantidade de pessoas perambularem, no domingo, pelas instalações sem qualquer tipo de controle, a falta de manutenção das instalações, além do descaso com os gastos com energia elétrica já que a maioria das salas de aula, embora vazias, estavam com as luzes acesas e os aparelhos de ar condicionado ligados. Curiosamente em todas elas estava fixado um aviso para que isso não ocorresse.

No dia 14 de setembro deste ano, professores e alunos da UNIR se uniram em movimento grevista reivindicando melhores condições de trabalho. O Laudo de Vistoria Técnica, de 21 de outubro de 2011, realizado pela Diretoria de Serviços Técnicos do Corpo de Bombeiros Militar do Estado de Rondônia confirmaram as denúncias dos grevistas: o Campus Universitário, inaugurado em 1984, não vinha sofrendo qualquer tipo de manutenção e a deterioração ameaçava a segurança dos profissionais e alunos da UNIR além de prejudicar as atividades de ensino. O Comando de Greve, mais tarde, incorporou-se ao Movimento Unificado pela Ética e Contra a Corrupção, reivindicando o afastamento da administração anterior envolvida em inúmeras irregularidades administrativas. Representantes do Movimento levaram pessoalmente um dossiê de 1.500 páginas à Casa Civil da Presidência da República onde foram informados que a administração da UNIR contava com o apoio da base aliada do Governo Federal no Congresso e nada poderia ser feito.

As pressões continuaram e, finalmente, no dia 23 de novembro de 2011, o Reitor da UNIR, José Januário de Oliveira Amaral, apresentou sua renúncia ao Ministro da Educação. Januário argumentou que não tinha mais condições de permanecer no cargo em virtude da série de denúncias de desvio de recursos envolvendo a Fundação Rio Madeira - RIOMAR, que serve de apoio à UNIR. No dia 24 de outubro, a Secretaria de Educação Superior (SESU) nomeou uma comissão de auditores, integrada por representantes do MEC e da Controladoria-Geral da União (CGU), para auditar as contas da RIOMAR e da UNIR.

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Um movimento legítimo bem diferente do que se verificou recentemente na USP, onde riquinhos e alienados baderneiros, travestidos de estudantes, reivindicavam a liberdade de fumar maconha no Campus Universitário.

- Usina Hidrelétrica de Samuel (18.12.2011)

Nas proximidades de Porto Velho, ao Norte a BR 364, observamos um dos extensos diques da Hidrelétrica de Samuel. Dele avistamos o grande reservatório da barragem que nessa oportunidade estava bastante seco.

No local onde existia a Cachoeira de Samuel no Rio Jamari, afluente do Rio Madeira, foi construída a barragem da Hidrelétrica de Samuel, com potência instalada de 216 MW. Em virtude do relevo pouco acentuado da bacia do Jamari, foram construídos 70 km de diques para conter extravasamento da água represada no seu reservatório de 540 km² para os Igarapés vizinhos. Em 1982, a construção da usina teve início e, em consequência da falta de verbas, só foi concluída catorze anos depois.

A construção da Usina Hidrelétrica de Samuel fez surgir no lugar de uma antiga colônia de pescadores a sede do Município de Candeias do Jamari. Os royalties proporcionados pela Usina Hidrelétrica de Samuel favoreceram, além de Candeias do Jamari, mais três municípios: Alto Paraíso, Cujubim e Itapuã do Oeste. Atualmente, 90% dos 52 Municípios do Estado são beneficiados com energia desse sistema isolado da Eletronorte. Rio Branco, a capital do Acre, a partir de novembro de 2002, passou a ser abastecida com a energia de Samuel e, em maio de 2006, esse sistema foi ampliado, permitindo que a geração térmica do Acre fosse substituída pela hidráulica, proporcionando a substituição da geração a derivados de petróleo. Além de Samuel, a ELETROBRAS ELETRONORTE opera a Usina Termelétrica Rio Madeira, que produz 90 MW. Somada à geração dos produtores independentes de energia, a potência instalada em Rondônia é de 403 MW.

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Sargento Áureo

CANÇÃO DO 5° BEC (Letra: Cap Pastor, música: Panzerlied)

Ecoam no céu

Mil estrondos sem par Na terra, no ar

Vê-se o progresso abrir seus véus E a estrada avançando vai

A selva desbravando até o fim

É o Quinto que vai Sem Temor, sem parar...

E rugem motores No solo a rasgar, Enormes tratores

Removem a terra sem parar E a estrada cresce num olhar Trazendo a Amazônia ao Brasil.

É o Quinto que vai

Sem temor, sem parar...

E juntos iremos Na nossa missão Civis e Soldados

Mostrando a força da união E a pátria agradecida vai

A todo esse trabalho enaltecer, É o Quinto que vai

Se Sem temor, sem parar... Hurra!

- 5° BEC - Batalhão Cel Carlos Aloysio Weber Fonte:www.5becnst.eb.mil.br.

Foi criado pelo Decreto Nr. 56.629, de 30 de julho de 1965, com sede em Porto Velho-RO, pela extinção do Batalhão de Serviços de Engenharia, de Campina Grande-PB, e da Comissão de Estradas de Rodagem N° 5 (CER/5), de Cuiabá-MT. Instalou-se em dezembro de 1965 no Parque-depósito Central de Material de Engenharia, Triagem, GB. Deslocou-se para Porto Velho, onde se instalou definitivamente em 20 de fevereiro de 1966, recebendo os acervos do Batalhão de Serviços e da CER/5, com sede em Cuiabá-MT, ambos extintos. Em Porto Velho, ficou com a Cia Cmdo e a Cia Eqp Eng, instalando suas Cia E Cnst, respectivamente: 1ª Cia em Rondônia, 2ª Cia em Abunã e 3ª Cia em Rio Branco-AC. Instalou, também, residências Especiais em Cuiabá-MT e Parecis-MT. Em 26 de setembro de 1966, recebeu os encargos administrativos da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, que a RFFSA passou para a Diretoria de Vias de Transportes. Instalado em Rondônia desde 1966, o 5° B E Cnst, pioneiro da Engenharia do Exército na Amazônia, já implantou mais de 1.600 km de rodovias federais em revestimento primário. Dentre o acervo de suas realizações, figura a consolidação da ligação Porto Velho-Cuiabá, através da construção da BR 364. Atualmente desenvolve, através de convênios com órgãos federais, estaduais e municipais, diversas Obras de capital importância para o desenvolvimento e manutenção do progresso na Amazônia.

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- O Pioneiro Sargento Áureo

Fomos até a residência do Sgt Áureo, um dos pioneiros do 5° BEC, para uma rápida entrevista. O portão de sua casa ostenta a bandeira nacional e no jardim um mastro onde são hasteados diariamente, com a participação dos familiares, os pavilhões do Brasil e de Rondônia. O Áureo nos recebeu, impecavelmente fardado, e contou sua história de vida e alguns casos hilários de sua passagem pela Força Terrestre, que reproduziremos em parte.

Meu Coronel, com sua permissão, meu Coronel!

Nasci em Cruzeiro, onde, nos 7 de setembro, o 5° Batalhão de Infantaria - Regimento Itororó, da cidade de Lorena, SP, desfilava. Assistindo aos desfiles, fui sendo contagiado pelo entusiasmo e vibração dos Soldados do nosso Exército Brasileiro.

Mais tarde, minha família mudou-se de Cruzeiro para Lorena. Nesta cidade, tive a oportunidade de me aproximar do Batalhão. Todos os dias, por volta das onze horas, eu ia até o Quartel onde companheiros mais velhos já estavam servindo. Passei então a ser um “boca de rancho”, almoçava com os militares e depois da refeição ajudava lavando as panelas.

Quando chegou minha idade de servir, eu já conhecia todos os oficiais do Batalhão. Foram eles que, gostando do meu trabalho, me incentivaram a servir no então 5° Regimento. Fiz meu alistamento, inspeção de saúde e me saí muito bem; naquela época eu já praticava artes marciais. Alistado, fui destacado para a Companhia de Petrecho Pesado e destacado para o rancho da OM (Organização Militar), meu velho conhecido, e volta e meia executava algum trabalho na residência dos oficiais até ficar, definitivamnete, à disposição do General Ernani Moreira de Castro e responsável pelo Salão Nobre do Regimento.

Um dia, o General Túlio me chamou e disse que, infelizmente, meu tempo de serviço estava terminando, na época nove anos, e que, para eu permanecer na Força precisava ser transferido para o 5° BEC, comandado pelo Coronel Carlos Aloysio Weber, onde eu teria o privilégio de participar efetivamente do desenvolvimento da Amazônia. O General Túlio redigiu uma Carta de apresentação para ser entregue ao Coronel Weber e, na minha despedida, determinou que eu me dirigisse à tropa formada pelos meus pares e subordinados:

- Meus Cabos e Soldados!

- O exército é um só “um por todos e todos por um”. Cheguei à minha graduação de Cabo graças ao empenho dos senhores que permitiram que eu levasse a bom termo todas as minhas missões e à sábia orientação de meus superiores. (...)

Logo em seguida, o Comandante me entregou uma placa de bronze do 5° RI e determinou que eu desse meu último comando e me despedisse.

- Atenção a Companhia, Companhia Sentido!(...)

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- Atenção a Companhia, em continência à sua Excelência, General Ernani, Apresentar Armas!

- Com licença, Excelência, sinto-me honrado e satisfeito de apresentar-me a Vossa Excelência, meu Comandante do 5° RI, Lorena, com muito entusiasmo e vibração.

- Cabo 149 Áureo, Cabo de Ordens a Vossa Excelência, peço permissão para retirar-me e dar-lhe um último abraço, já que estou indo para Porto Velho, RO, trabalhar no desenvolvimento da Amazônia. (...)

Preparei meu material e embarquei em um Búfalo da Força Aérea Brasileira, com escala no Rio de Janeiro e depois direto para Cuiabá. Lá apresentei a tropa ao Cel Weber, e conheci o Cel Aquino, Major Tibério e o Capitão Pastor.

Áureo acompanhou o Cel Weber na camionete veraneio, sempre à frente do comboio. O primeiro grande obstáculo que encontraram, depois de três dias, foi nos areais de Vilhena onde foi necessário construir pinguelas para poder continuar a jornada. Em Barracão Queimado, os bueiros construídos precariamente com tambores de combustível tinham sido levados pelas águas das chuvas. Em alguns lugares, foi necessário improvisar balsas para a transposição de cursos d’água, a chamada estrada era apenas um precário e improvisado caminho de serviço. Depois de uma odisséia de 21 dias, o 5° BEC, finalmente chegou a Porto Velho. Logo após a chegada em Porto Velho, o Cel Weber e o Major Tibério, Chefe da Seção Técnica, partiram para uma missão de reconhecimento mais acurada da BR 364, acompanhados pelo Cabo Áureo.

- Sargento Áureo e a Onça do Comandante

O Coronel Weber conseguiu uma onça e determinou que eu tomasse conta dela. Eu ia até o rancho e conseguia um pedaço de fígado ou de rim e alimentava o animal. Depois de dois meses, a onça já me conhecia e permitia que eu entrasse na sua jaula sem problemas. Seis meses depois de capturada, no mês de agosto, entrei na gaiola e a onça estava meio alvorotada; quando coloquei a comida, ela levantou a pata rosnando e eu resolvi sair devagarzinho, olhando nos olhos dela e conversando com a bichana, sem virar as costas, rumo ao portão. Se eu virasse, ela certamente me atacaria. Quando cheguei ao portão, para sair, ela deu o bote. Como faço karatê, meu Coronel, dei um golpe no pescoço dela e a onça caiu dura e ficou estremecendo no chão.

Chamei o Tenente veterinário e contei a ele o que havia acontecido, dizendo que tinha dado uma batidinha no pescoço dela.

- Uma batidinha?

- Sim, senhor.

O veterinário examinou cuidadosamente o animal e disse que ela estava com uma vértebra quebrada, além de hemorragia interna. Fiquei alarmado, seria expulso do Quartel, era para tomar conta da onça e acabei matando o bicho. Procurei o Coronel Weber para explicar o acontecido.

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- Cabo Áureo, quer dizer que não teve jeito.

- Meu Comandante, infelizmente eu peço o seu perdão. A onça veio para cima de mim e eu, ao me defender, bati com a mão no pescoço dela.

- Não tem importância, vamos partir para outra.

- Sargento Áureo e o 5° que vai

No Batalhão, tinha um Soldado grande, forte, negro que nem carvão, no escuro só apareciam os dentes. Um dia, ele passou na frente da “Casa da Anita”, onde as mulheres eram todas de fora, gringas de pele clara e olhos azuis, e entrou. O estabelecimento tinha umas mesas compridas colocadas uma ao lado da outra e o Negro avistou uma gringa solitária que deveria estar esperando um parceiro e sentou-se do lado dela. A mulher olhou para aquele negro enorme e perguntou o que ele queria ao que ele respondeu que queria ficar com ela, e a mulher, enraivecida, disse:

- O que, seu chiclete de onça?

Ele deu-lhe um tapa no rosto e os outros frequentadores botaram-no para fora. Depois de o identificarem como praça do 5° BEC, chamaram a patrulha que era comandada por mim. Cheguei logo em seguida, atirei o Soldado na caçamba, e perguntei:

- O que é que houve?

- É que eu dei uma paradinha na Anita para fazer um amor e se deu a confusão.

Duas semanas depois ele voltou à Casa e disse ao entrar:

- Eu estou aqui novamente, mas hoje eu não quero ficar não.

- Hoje é o 5° que vai.

Entrou chutando as mesas e as cadeiras e dando porrada em todo mundo que encontrava no caminho enquanto as mulheres, em pânico, o xingavam. Chegando ao fundo da sala, ele voltou dizendo:

- Agora é o 5° que vem.

E voltou chutando e batendo como o fizera na entrada.

- Sargento Áureo e as Três Marias

Eu estava plantando grama nos canteiros do Pavilhão de Comando do Quartel do 5° BEC. Uma equipe de vinte homens retirava grama e outra, com mesmo efetivo, plantava. Carregava a grama e despejava, de caçamba, no Batalhão para a equipe encarregada de plantar, quando comecei a notar que o serviço de plantio não estava rendendo. Um dos guerreiros encarregados do plantio se aproximou e explicou:

- Cabo, quando o senhor volta para pegar mais grama, os Soldados pulam a cerca da Vila Tupi, onde tem um mato maior, para se encontrarem com a

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Maria Batalhão, Maria Regimento e Maria Mela Cocha e ficam na maior festa, beija daqui, encosta dali.

Sabendo o que estava acontecendo, joguei a grama para os plantadores e fingi que ia trazer mais uma carrada, que, em média, demorava quase meia hora. Voltei antes e peguei a soldadesca no flagrante.

- Opa! Alto lá! Sentido! Então, eu trabalhando duro, e vocês Soldados e as senhoras aí na maior sacanagem! Não é possível! As senhoras têm de entender que o meu pessoal está trabalhando. Eu tenho uma missão a cumprir, não compliquem minha vida. O sentido da coisa é o seguinte: as senhoras querem “fuder”, não querem? Então, vamos fazer o seguinte: Todas as três para a boleia (cabine) da caçamba.

- Ai Cabo, o senhor “tá” nervoso.

- Mas eu tenho que estar, eu saio para trabalhar e vocês ficam atrapalhando meu serviço. Atenção equipe de plantio: equipe, embarcar!

Embarcaram os vinte Soldados na carroceria e dirigi até a granja do Batalhão onde tem um mato grande.

- Ai Cabo, para onde o senhor vai nos levar.

- Não se preocupem, vocês vão para o Hotel das Estrelas!

Ao chegar, determinei que as senhoras desembarcassem, ocupassem posições estratégicas e se posicionassem adequadamente para o ato. Dirigi-me aos Soldados embarcados e comandei:

- Ordem ao grupamento: desembarcar! Coluna por três, cobrir!

- Atenção: as senhoras permaneçam na posição correta, por favor. Os Soldados vão dar uma “trepadinha” com as senhoras. Atenção: quem vai com a loura, aqui; quem vai com a morena, coluna ali; e quem vai com a morena mais escura, acolá.

- Ordem ao grupamento: retirar o calção! Atenção: preparar a “bicuda”! Ordem ao grupamento: começar!

Depois da primeira investida os soldados perguntaram:

- Cabo: quem foi com a morena pode ir com a loura; quem foi com a loura pode ir com a morena mais escura, e quem foi com a morena...

- Atenção outra coluna: revezamento!

O pior Coronel é que a noite as três estavam a postos para mais uma jornada de trabalho.

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O Mar (Gonçalves Dias)

Oceano terrível, mar imenso De vagas procelosas que se enrolam

Floridas rebentando em branca espuma Num polo e noutro polo,

Enfim... enfim te vejo; enfim meus olhos Na indômita cerviz trêmulos cravo, E esse rugido teu sanhudo e forte

Enfim medroso escuto!

Donde houveste, ó pélago revolto, Esse rugido teu? Em vão dos ventos

Corre o insano pegão1 lascando os troncos,

E do profundo abismo Chamando à superfície infindas vagas, Que avaro encerras no teu seio undoso;

Ao insano rugir dos ventos bravos Sobressai teu rugido.

Em vão troveja horríssona tormenta; Essa voz do trovão, que os céus abala,

Não cobre a tua voz. — Ah! donde a houveste, Majestoso oceano?

Ó mar, o teu rugido é um eco incerto Da criadora voz, de que surgiste:

Seja, disse; e tu foste, e contra as rochas As vagas compeliste.

E à noite, quando o céu é puro e limpo, Teu chão tinges de azul, — tuas ondas correm Por sobre estrelas mil; turvam-se os olhos

Entre dois céus brilhantes.

Da voz de Jeová um eco incerto Julgo ser teu rugir; mas só, perene,

Imagem do infinito, retratando As feituras de Deus.

Por isto, a sós contigo, a mente livre Se eleva, aos céus remonta ardente, altiva,

E deste lodo terreal se apura, Bem como o bronze ao fogo.

Férvida a Musa, co’os teus sons casada, Glorifica o Senhor de sobre os astros

Co’a fronte além dos céus, além das nuvens, E co’os pés sobre ti. (...)

(1) Grande pé de vento

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Hidrelétricas do Rio Madeira

Nessa descida pelo maior afluente da margem direita da Bacia do Amazonas, três matérias chamaram, em especial, nossa atenção: a verdadeira epopeia da construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, os garimpos de ouro ao longo do Rio e, logicamente, as hidrelétricas.

- Hidrelétricas do Rio Madeira Fonte: www.furnas.com.br

As usinas hidrelétricas do Rio Madeira, Santo Antônio e Jirau, não são apenas grandes projetos de engenharia e arquitetura moderna. A construção das Usinas do Madeira faz parte de um grande projeto para o desenvolvimento sustentável da região, integração nacional e para a melhoria de vida das populações de Rondônia, Acre, Amazonas e Mato Grosso. Hoje, o parque gerador do Estado de Rondônia conta com uma oferta de aproximadamente 800 MW. Com a construção das usinas de Santo Antônio e Jirau, serão mais 6.450 MW colocados no mercado, e com a construção de linhas de transmissão para o Acre, Amazonas e Norte do Mato Grosso será possível a conexão com o Sistema Interligado Brasileiro.

- Santo Antônio Fonte: www.furnas.com.br

Santo Antônio terá capacidade de gerar 3,150 mil megawatts (MW) e o investimento previsto é de R$ 9,5 bilhões, em valores de 2006. O início das obras está previsto para dezembro de 2008. Estima-se que a primeira e segunda unidades geradoras, das 44 previstas, devam entrar em funcionamento em dezembro de 2012. A obra empregará até 20 mil trabalhadores diretos no seu momento auge. As turbinas utilizadas em Santo Antônio serão as maiores em potência nominal no mundo: cada uma terá capacidade de gerar 72 megawatts.

- Um Projeto com Consciência Ambiental Fonte: www.furnas.com.br

A história da Eletrobras Furnas se funde com a história do desenvolvimento sustentável do Brasil. Por entender que suas atividades interferem no meio ambiente, a Empresa tem o cuidado de integrar sua política ambiental às demais políticas, seguindo a legislação vigente e assumindo compromissos de conservação e preservação da biodiversidade das regiões onde atua, procurando garantir o uso sustentável dos recursos naturais.

Em Rondônia, foram conduzidos estudos que diagnosticaram os meios físico (solo, água), biótico (flora, fauna) e socioeconômico (caracterização e apoio às comunidades locais). Para esse trabalho tornou-se fundamental a parceria entre a Eletrobras Furnas e as instituições de ensino e pesquisa localizadas na região amazônica, como a Universidade Federal de Rondônia, o Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia e a Companhia de Pesquisas de Recursos Minerais.

Ao final dos trabalhos, a comunidade científica e a sociedade brasileira podem contar com um importante acervo para tomar como base na implantação de um sólido projeto de desenvolvimento regional sustentável.

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Um instrumento de gestão que possibilitará a instalação, construção e operação de empreendimentos atendendo as exigências legais e, acima de tudo, preservando a integridade ambiental com respeito às comunidades locais.

- Soluções de Menores Impactos Fonte: www.furnas.com.br

Os estudos de engenharia adotaram cuidados para que os impactos na construção das usinas hidrelétricas sejam os menores possíveis. Assim, as duas barragens terão baixa queda, sendo Santo Antônio com 13,90 m e Jirau com 15,20 m. O tipo de turbina previsto nos estudos de viabilidade foi bulbo, pois esse tipo de turbina é o que melhor se adapta às condições locais não exigindo grandes reservatórios, mas sim grandes volumes e velocidade de água. Outro cuidado é em relação às áreas que serão inundadas. Elas serão praticamente as mesmas já inundadas durante as cheias anuais do Rio Madeira.

- Usina de Jirau Fonte: www.furnas.com.br

A Usina Hidrelétrica de Jirau é uma usina hidrelétrica em construção no Rio Madeira, na cidade de Porto Velho, em Rondônia, que terá capacidade instalada de 3.450MW, e que faz parte do Complexo do Rio Madeira. A construção está sendo feita pelo consórcio “ESBR - Energia Sustentável do Brasil”, formado pelas empresas Suez Energy (50.1%), Eletrosul (20%), Chesf (20%) e Camargo Corrêa (9,9%). Em 28 de janeiro de 2010, o consórcio construtor informou o novo cronograma de operação, prevendo o início de funcionamento da primeira das 46 turbinas do tipo bulbo para março de 2012 e o pleno funcionamento da usina para novembro do mesmo ano. Seu reservatório vai alagar uma área de 258 quilômetros quadrados. Um problema a ser resolvido é como tratar os resíduos sólidos maiores que descem pelo Rio (estima-se que cerca de 1.600 troncos descem diariamente pelo Rio). O contrato prevê que os troncos não podem ser devolvidos ao Rio, nem serem usados com fins lucrativos.

- Turbina Hidráulica Tipo Bulbo Fonte: Enciclopédia Wikipédia.

Basicamente trata-se de uma unidade geradora composta de uma turbina Kaplan e um gerador envolto por uma cápsula. A cápsula, por sua vez, fica imersa no fluxo d’água (imerso na água), isto acarreta em um equipamento que exige uma vedação mais precisa, o que impacta em um espaço menor para acesso de manutenção. Operam em quedas abaixo de 20 m. Foram inventadas na década de 30. As primeiras foram construídas pela empresa Escher Wyss, em 1936. Possui a turbina similar a uma turbina Kaplan horizontal, porém, devido à baixa queda, o gerador hidráulico encontra-se em um bulbo por onde a água flui ao seu redor antes de chegar às pás da Turbina.

A maior unidade tipo Bulbo construída encontra-se no Japão, na usina de Tadami, que possui 65,8 MW de potência, queda de 19,8m e rotor com diâmetro de 6,70 metros. No Brasil, existe o planejamento da construção das Usinas de Santo Antônio e Jirau, constando no projeto de cada usina a

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instalação de 44 e 46 turbinas do tipo Bulbo com potência unitária igual a 73 MW e 75 MW, respectivamente. As turbinas a serem instaladas nestas usinas passarão a ser as maiores turbinas bulbo do mundo.

- Usina Hidrelétrica de Santo Antônio

Dando sequência a nossas pesquisas referentes a esta 4ª Fase do Projeto Desafiando o Rio-Mar, no dia 19 de dezembro, fomos apresentados ao Jornalista José Carlos de Sá Júnior - Coordenador de Relações Institucionais da Santo Antônio Energia. O primeiro contato, na parte da manhã, na sede da empresa em Porto Velho, não poderia ser mais agradável do que foi, a lucidez, simpatia e inteligência de Sá Júnior cativaram a todos que lá estavam. Sá é, sem dúvida, “The Right Man in The Right Place” (O Homem Certo, no Lugar Certo), à tarde tivemos o privilégio de acompanhá-lo em uma visita às instalações da Hidrelétrica.

Aqueles que condenam a construção de Usinas Hidrelétricas na Amazônia Legal se esquecem que é nesta região que se encontra 70% do potencial hidrelétrico ainda não explorado e que as hidrelétricas são a forma mais adequada de se obter energia necessária para garantir o desenvolvimento sustentável do país. Graças a essa nova demanda de energia limpa e barata, os Estados de Rondônia e Acre viverão, a partir do ano que vem, um novo ciclo econômico sem as limitações impostas pela falta de oferta de energia.

- Construção da Usina Hidrelétrica de Santo Antônio (19.12.2011) Fonte: Santo Antônio Energia e José Carlos de Sá Júnior

O Projeto de construção da Usina Hidrelétrica de Santo Antônio começou a ser desenvolvido em 2001, com a realização de estudos geológicos e de engenharia pelo consórcio Furnas-Odebrecht, para identificar o lugar mais apropriado para sua instalação, bem como a tecnologia de geração de energia mais indicada para o Rio Madeira e de menor impacto para as comunidades ribeirinhas e a biodiversidade amazônica. Santo Antônio será uma hidrelétrica com baixo impacto ambiental, considerando a relação entre a capacidade instalada e as dimensões do reservatório, passando a ser um marco na história de produção de energia por meios hídricos no país. A área do reservatório, de 271 km², incluiu a calha natural do Rio que é de 164 km², e devemos considerar, ainda, que dos 107 km² restantes, grande parte se constituía em regiões de várzea inundadas no período das cheias.

Neste ano ainda deve entrar em operação a primeira das oito turbinas do primeiro grupo de casas de força. (José Carlos)

A construção teve início no trecho do Rio que vai da margem direita à Ilha do Presídio no Rio Madeira, em Porto Velho - RO, em setembro de 2008, que foi isolado com a construção de ensecadeiras (aterros temporários para manter seco o leito do Rio a ser trabalhado). Nesta área, teve início o trabalho de escavação em rocha que hoje abriga o primeiro dos quatro grupos de casas de força da Usina. Neste segmento da UHE, a primeira

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unidade geradora com oito de suas 44 turbinas do tipo bulbo, antecipando o cronograma em cinco meses, vai começar a operar em dezembro de 2011.

Curiosamente, ao se construir uma das ensecadeiras, verificou-se que sob as ciclópicas rochas que se apresentavam aos olhos admirados daqueles que tiveram a oportunidade de conhecer a Cachoeira no passado, se escondiam cotas negativas de seis metros abaixo do nível do Mar só descobertas graças ao trabalho desenvolvido pelos engenheiros da Santo Antônio.

Santo Antônio será uma das quatro maiores usinas hidrelétricas do país, com capacidade instalada de 3.150,4 MW (2.218 MW de geração assegurada), energia suficiente pra abastecer cerca de 40 milhões de pessoas. Infelizmente, os “Talibãs Verdes” teimam em criticar esta diferença de valores, mostrando sua ignorância em relação ao regime de águas da bacia amazônica e ao projeto de uma hidrelétrica que prima pela produção de energia limpa, com a diminuição do uso das poluidoras termelétricas.

As turbinas usadas em Santo Antônio trabalham com o processo denominado “fio de água” que aproveitam a alta vazão do Rio Madeira, evitando a construção de grandes quedas d’água e consequentemente minorando os impactos ambientais decorrentes. É muito fácil criticar empreendimentos tão necessários ao desenvolvimento e melhoria das condições de vida dos amazônidas e demais brasileiros saboreando uma bebida gelada em ambiente climatizado como fazem os idiotizados “inocentes úteis” cooptados por ONGs que defendem inconfessos interesses estrangeiros.

- Turbinas Bulbo Fonte: Santo Antônio Energia e José Carlos de Sá Júnior

Grande parte das Hidrelétricas do Brasil usa turbinas que ficam na vertical. Em Santo Antônio, serão utilizadas turbinas bulbo que são instaladas na horizontal.

As turbinas bulbo trabalham com a força da correnteza, ou seja, com o fluxo d’água, e não com a altura de sua queda. Justamente por isso não há necessidade de barragens muito altas nem de grandes reservatórios. Isso quer dizer menor área alagada, menor impacto ambiental e uma maior quantidade de energia gerada. O índice de 0,09, que representa a relação entre a área do reservatório e a potência produzida de Santo Antônio é um dos menores do país.

- Sistema de Transposição de Peixes Fonte: Santo Antônio Energia e José Carlos de Sá Júnior

O Fantástico comentou recentemente, em tom de crítica, que o sistema de transposição de peixes adotado em Santo Antônio vai selecionar o tipo de peixe que vai subir o Rio. O sistema foi criado atendendo orientação do Ibama justamente para que não seja alterado

o ecossistema a montante da usina. (José Carlos de Sá Júnior)

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Anualmente, os peixes nadam contra a corrente, procurando locais mais adequados e seguros para reprodução. Estas construções, localizadas na margem esquerda do Rio e na Ilha do Presídio, garantirão que os peixes não tenham seu ciclo de vida alterado. A velocidade das águas e a inclinação do sistema foram cuidadosamente planejados de maneira a impedir que as espécies que, antes da construção, não tinham acesso às águas a montante da Cachoeira, não consigam fazê-lo agora.

- Interceptor de troncos Fonte: Santo Antônio Energia e José Carlos de Sá Júnior

A idéia inicial era deslocar toda a madeira para uma curva do Rio de onde seria retirada. Em virtude da quantidade do material coletado, não seria possível estocá-lo e se pensou

em dar-lhe um aproveitamento industrial. (José Carlos de Sá Júnior)

Na UHE Santo Antônio será colocado um sistema de bóias em forma de funil que conduzirão os troncos para três vertedouros de 20 metros de largura que serão abertos de tempo em tempo para sua passagem. A empresa chegou a arquitetar um projeto que aproveitasse o material coletado, impedindo que o mesmo continuasse a prejudicar a navegação no Rio Madeira, a jusante da usina. O IBAMA, mais preocupado com microorganismos do que com a vida dos ribeirinhos ceifada constantemente por estes obstáculos flutuantes, embargou o projeto. Somente aqueles que já navegaram pelo Madeira conhecem o perigo que representam estas enormes armadilhas flutuantes. Recentemente, a ponte da BR 319, em construção, próxima a Porto Velho, teve seu pilar levado pela torrente em virtude do acúmulo de troncos. Se ela já estivesse em operação inúmeras vidas teriam se extinguido mas, para o IBAMA isto não é importante. Será que o IBAMA é capaz de explicar sua absurda lógica aos familiares daqueles que perderam seus entes queridos, vítimas dos maravilhosos troncos cuja superfície é pródiga em microorganismos que precisam a qualquer custo serem preservados?

- Curiosidades Fonte: Santo Antônio Energia e José Carlos de Sá Júnior

Será a sexta maior do Brasil em potência instalada (atrás de Itaipu, Tucuruí, Ilha Solteira, Jirau e Xingó), e a terceira em energia assegurada;

Sua geração será suficiente para suprir a necessidade de 44 milhões de brasileiros, o que equivale a quatro vezes a população da cidade de São Paulo;

As 44 turbinas bulbo da usina hidrelétrica são consideradas as maiores do mundo com essa tecnologia;

A quantidade de ferro usado na construção da usina (138 mil toneladas) daria para construir 18 torres Eiffel;

A construção de Santo Antônio irá consumir cimento suficiente para erguer 37 estádios do Maracanã.

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O Gigante de Pedra (Gonçalves Dias)

Gigante orgulhoso, de fero semblante, Num leito de pedra lá jaz a dormir! Em duro granito repousa o gigante,

Que os raios somente puderam fundir.

Dormido atalaia no serro empinado Devera cuidoso, sanhudo velar;

O raio passando o deixou fulminado, E à aurora, que surge, não há de acordar!

Co’os braços no peito cruzados nervosos, Mais alto que as nuvens, os céus a encarar, Seu corpo se estende por montes fragosos, Seus pés sobranceiros se elevam do mar!

De lavas ardentes seus membros fundidos

Avultam imensos: só Deus poderá Rebelde lançá-lo dos montes erguidos, Curvados ao peso, que sobre lhe ‘stá.

E o céu, e as estrelas e os astros fulgentes São velas, são tochas, são vivos brandões, E o branco sudário são névoas algentes,

E o crepe, que o cobre, são negros bulcões.

Da noite, que surge, no manto fagueiro Quis Deus que se erguesse, de junto a seus pés,

A cruz sempre viva do sol no cruzeiro, Deitada nos braços do eterno Moisés.

Perfumam-no odores que as flores exalam, Bafejam-no carmes de um hino de amor

Dos homens, dos brutos, das nuvens que estalam, Dos ventos que rugem, do mar em furor.

E lá na montanha, deitado dormido

Campeia o gigante, — nem pode acordar! Cruzados os braços de ferro fundido,

A fronte nas nuvens, os pés sobre o mar! (...)

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Figura 56 – Parque Memorial Madeira Mamoré – Porto Velho – RO

Figura 57 – Parque Memorial Madeira Mamoré – Porto Velho – RO

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Figura 58 – Praça Caixas D’água – Porto Velho – RO

Figura 59 – Ponte BR 319 – Porto Velho – RO

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Figura 60 – Tribunal de Justiça – Porto Velho – RO

Figura 61 – Visita Sede Eletronorte – Porto Velho – RO

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Figura 62 – Hidrelétrica de Santo Antônio – Porto Velho – RO

Figura 63 – Hidrelétrica de Santo Antônio – Porto Velho – RO

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Figura 64 – Hidrelétrica de Santo Antônio – Porto Velho – RO

Figura 65 – Entrevista à Rede TV – Porto Velho – RO

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Mapa 3: Porto Velho – Humaitá

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Partida para Humaitá, AM

Há mais pessoas que desistem do que pessoas que fracassam. (Henry Ford)

No dia 20 de dezembro, acompanhado do Comandante 5° Batalhão de Engenharia de Construção (5° BEC) - Batalhão Carlos Aloysio Weber, Tenente-Coronel da Arma de Engenharia Moacir Rangel Junior, fizemos uma visita ao General-de-Brigada Ubiratan Poty, Comandante da 17ª Brigada de Infantaria de Selva (17ª Bda Inf Sl), sediada em Porto Velho, RO, que entusiasmado com o Projeto Desafiando o Rio-Mar, determinou ao seu chefe de Comunicação Social que entrasse em contato com a mídia televisiva de Rondônia para agendar entrevistas conosco.

- Porto Velho, RO (21.12.2011)

As ordens do Gen Poty foram cumpridas à risca e, às sete horas, no jornal da manhã, fomos entrevistados nos estúdios da TV Globo. Após a entrevista, nos deslocamos imediatamente para o Porto Graneleiro da Hermasa onde estava ancorado nosso Barco de Apoio (Piquiatuba) com os caiaques a bordo.

Porto Graneleiro da Hermasa: a soja que sai do Mato Grosso e Rondônia é transportada via terrestre para o Porto da Hermasa em Porto Velho e descarregada em grandes balsas que descem o Rio Madeira e são armazenadas no Porto Graneleiro da Hermasa de Itacoatiara que exporta mais de dois milhões e quinhentas mil toneladas de soja, por ano. Isso diminui o custo do frete em US$ 30,00 por tonelada e evita o congestionamento da malha viária do Sudeste. (Nota do Autor)

Por volta das nove horas, chegaram as equipes da TV Record e SBT que entrevistaram a mim e a meu filho João Paulo e solicitaram tomadas do deslocamento dos caiaques no Rio Madeira. Às 11h30 nos apresentamos nos estúdios da Rede TV e, após a entrevista, agendamos tomadas no Rio Madeira para as dezessete horas.

O Barco a Motor Piquiatuba, do 8° Batalhão de Engenharia de Construção (8° BEC), deslocara-se de Santarém, PA, a Porto Velho, RO, cumprindo sua tradicional missão de transporte de tropa e abastecimento para os destacamentos da Engenharia Militar.

Voluntariamente, apesar de ser um período de festas, a tripulação, formada pela equipe do Grupo Fluvial do 8° BEC, Soldados Mário Elder Guimarães Marinho (Comandante do B/M), Walter Vieira Lopes (Sub-Comandante do B/M), Edielson Rebelo Figueiredo (Chefe da Casa de Máquinas) e Marçal Washington Barbosa Santos (cozinheiro), nosso bom Gourmet, se prontificaram a nos acompanhar neste período em que a embarcação não tinha nenhuma outra missão agendada.

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- Partida do Porto da Hermasa - Porto Velho, RO (22.12.2011)

A TV Globo tinha marcado conosco uma entrevista, antes da largada, para as 06h30 no Porto da Hermasa e arredores. Só conseguimos partir para nossa primeira jornada às 08h30, três horas além de minha programação original. Teríamos, fatalmente, de enfrentar, no primeiro dia, a canícula amazônica no período da tarde. Parti, preocupado, já que era a primeira vez que meu filho surfista me acompanhava em uma jornada desta natureza e este não era seu esporte favorito. A postura no caiaque, a necessidade de se remar em torno de seis a sete horas por dia eram desafios que ele teria de vencer no primeiro dia, acrescido do calor vespertino.

Depois da primeira curva à direita, no Rio Madeira, a presença das dragas de garimpeiros, em busca de ouro, se tornou uma constante, alguns conjuntos formavam horrendas Vilas onde a promiscuidade e a falta de cuidado com o meio-ambiente era a tônica. Lembrei-me da preocupação do IBAMA em proteger os microorganismos que, segundo eles, infestam os perigosos troncos que descem o Rio Madeira e ameaçam a vida dos ribeirinhos enquanto o uso indiscriminado do mercúrio nas dragas não sofre qualquer tipo de controle. Paramos em um banco de areia, para descansar depois de remar quinze quilômetros, onde encontramos duas mulheres contratadas pelos garimpeiros, uma delas se encantou com as tatuagens do João Paulo. Durante esta breve parada passou, no talvegue do Rio Madeira, uma garça branca graciosamente surfando um pequeno tronco de madeira.

Talvegue: canal do Rio onde a velocidade da correnteza é maior. (Nota do Autor)

Na segunda parada, próximo à Ilha dos Mutuns, já por volta das treze horas, percebi que meu filho começava a sofrer com o calor amazônico. Contatei o pessoal de apoio e disse que deveríamos achar um local de parada antes das quinze horas, o que foi feito. Paramos próximo à Comunidade Aliança, seis quilômetros a montante do local planejado que teria sido alcançado com folga se tivéssemos saído às 5h30. À tarde, já devidamente embarcados, o João Paulo teve seu primeiro contato com os famosos banzeiros amazônicos.

À noite, fomos assaltados por um enxame de pequenos percevejos, tivemos que apagar todas as luzes, deixando aceso apenas o farolete de popa onde se amontoou uma pululante e disforme massa marrom de centenas desses pequenos insetos que eram varridos periodicamente pelo João Paulo.

- Partida da Comunidade Aliança, RO (23.12.2011)

Pontualmente às 5h30 partimos para nossa nova jornada. Fizemos a primeira parada, estrategicamente, na Foz do Jamari para abastecer o Piquiatuba de água limpa para poder lavar nossas roupas e tomar um banho decente. Fizemos a segunda parada próxima à Ilha das Curicacas e informamos ao pessoal de apoio que o local de parada, próximo à Comunidade Boa Hora, seria por volta das 11h30.

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Foram sessenta quilômetros percorridos e o meu parceiro surfista se portou com muita tranqüilidade, embora a canoagem não seja a “sua Praia”. O João Paulo e a tripulação foram convidados, por jovens da Comunidade, para um jogo de futebol na lama enquanto eu permanecia a bordo digitando o material que seria postado em Humaitá, AM. Ao entardecer, enxames de carapanãs nos atacaram, esgotando nosso estoque de repelente. Recolhemo-nos cedo para fugir do ataque impiedoso dos mosquitos.

- Partida da Comunidade Boa Hora, RO (24.12.2011)

Partimos à 5h30 para nossa nova jornada e fizemos nossa primeira parada em um enorme banco de areia, a jusante da Ilha Botafogo onde os piuns faziam a festa. Como nos dias anteriores, nenhum sinal de chuva e um sol causticante. O Mário e o Marçal vieram até nós com um refrigerante gelado que foi degustado com imensa satisfação. Perguntei ao meu filho se ele estava em condições de alongar o trajeto em mais ou menos dezessete quilômetros para atingirmos a Foz do Rio Ji-Paraná (também conhecido como Machado), ele aquiesceu. A fotografia aérea, do Google Earth, dava a entender que suas águas eram melhores que as do Madeira, ledo engano. Fizemos uma última parada próximo à Ilha Assunção e partimos num ritmo forte para o novo objetivo. Aportamos pouco depois do meio-dia, depois de percorrer setenta quilômetros em sete horas, incluindo as paradas. À tarde, o João Paulo e a tripulação foram até a Comunidade de Calama adquirir alguns itens para complementar nossa despensa e, à noite participaram dos festejos pagãos na última cidade de Rondônia, só retornando às três horas da manhã.

Colonizadora Calama S.A.: a ocupação sistemática do território de Rondônia iniciou-se no final da década de 60, com a colonização particular da Colonizadora Calama S.A. (Nota do Autor)

- Partida para Humaitá, AM (25.12.2011)

Acordei às 4h30 e parti, exatamente às cinco horas, sem meu parceiro tresnoitado. Havia decidido partir cedo para evitar a canícula da tarde, já que a jornada seria de mais de sessenta quilômetros. Parece que São Pedro quis fazer uma brincadeirinha e a chuva amazônica se estendeu desde minha saída até a chegada, em Humaitá, às 11h45. Como ainda era noite, coloquei minha lanterna de cabeça e percorri a Foz do Ji-Paraná com certa cautela. A quantidade de peixes, atraídos pela luz, que saltava sobre o caiaque, batiam no casco, no convés ou em meu corpo me impressionou; se o caiaque fosse aberto, a refeição para uns dois dias estaria garantida. Ainda era noite quando adentrei no Estado do Amazonas. Como a chuva fria não dava trégua, decidi não parar e tocar direto até Humaitá, afinal eu já adotara tal procedimento no Rio Solimões navegando, sem parar, 108 quilômetros de Anamã a Manacapuru. Em Humaitá, acostei no Piquiatuba que já estava ancorado no Porto Hidroviário de Humaitá. Os fiscais portuários autorizaram nossa permanência temporária naquele local até as 22 horas. A jornada terminara e a chuva amainou e o sol finalmente apareceu.

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- Humaitá, AM (25.12.2011)

Disquei o 190 e mais uma vez a valorosa Polícia Militar do Estado do Amazonas se prontificou em nos apoiar. O Tenente PM Daniel Melo nos levou até o Quartel do 54° Batalhão de Infantaria de Selva (54° BIS), Batalhão Cacique Ajuricaba, numa infrutífera tentativa de nos acomodar no Hotel de Trânsito da Guarnição gratuitamente.

Ao retornarmos ao Piquiatuba, o mesmo já fora transferido para o Porto do Caçote onde encontramos, também, a lancha do amigo José Holanda, de Itacoatiara. Decidi passar a noite embarcado. O Tenente PM Daniel Melo prometeu realizar uma diligência para tentar achar a pesquisadora Elisabeth Tavares Pimentel cuja tese revolucionária defende a existência do Rio Hamza.

Os Lusíadas (Luís Vaz de Camões)

Canto V

16 Contar-te longamente as perigosas

Cousas do mar que os homens não entendem, Súbitas trovoadas temerosas,

Relâmpagos que o ar em fogo acendem, Negros chuveiros, noites tenebrosas,

Bramidos de trovões, que o mundo fendem, Não menos é trabalho que grande erro,

Ainda que tivesse a voz de ferro.

17 Os casos vi que os rudos marinheiros,

Que têm por mestra a longa experiência, Contam por certos sempre e verdadeiros, Julgando as cousas só pola aparência, E que os que têm juízos mais inteiros, Que só por puro engenho e por ciência Vêem do Mundo os segredos escondidos, Julgam por falsos ou mal entendidos.

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Figura 66 – João Paulo e os Garimpos do Rio Madeira – RO

Figura 67 – João Paulo na Foz do Rio Jamari – RO

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Figura 68 – Comunidade Boa Hora – RO

Figura 69 – Lago de Santo Antônio – AM

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Figura 70 – Flutuante na Boca do Cará – AM

Figura 71 – João Paulo e o B/M Piquiatuba – AM

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Mapa 4: Humaitá – Boca do Cará

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Humaitá - Manicoré

Não é um aquífero, que é uma reserva de água sem movimentação. Nós percebemos movimentação de água, ainda que lenta, pelos sedimentos. (Valiya Mannathal Hamza)

Não conseguimos nenhum tipo de apoio em Humaitá além do prestado pela valorosa Polícia Militar do Estado do Amazonas. Tentamos, em vão, conseguir com os camaradas de infantaria, pernoite gratuito no Hotel de Trânsito da Guarnição, contatamos os irmãos da maçonaria local que da mesma forma não nos estenderam a mão. Não achamos a Professora Doutoranda Elisabeth Tavares Pimentel. Elizabeth é geofísica, coordenadora do curso de Ciências: Matemática e Física do Instituto de Educação, Agricultura e Meio Ambiente da UFAM de Humaitá, AM. Sua tese, sobre o Rio Hamza, apresentada no 12° Congresso Internacional da Sociedade Brasileira de Geofísica, no Rio de Janeiro, orientada pelo Doutor Valiya Mannathal Hamza, aponta para a existência de um Rio subterrâneo correndo sob o Rio Amazonas, desde os Andes até o Oceano Atlântico, a uma profundidade que pode chegar aos 4 mil metros.

Teria sido um encontro bastante interessante, mas infelizmente, após as diligências realizadas, gentilmente, pelo Tenente Daniel S. Melo da Polícia Militar descobriu-se que ela se encontrava na cidade do Rio de Janeiro e que sua residência, em Humaitá, fora assaltada. A diligência que tinha como objetivo agendar uma entrevista com a pesquisadora evoluiu para uma ocorrência policial. Não desistimos, porém, e deixamos com o Tenente Daniel S. Melo nosso contato caso ela venha a nos conceder uma entrevista virtual.

Novamente minha rota se entrelaça com a do amigo José Holanda, de Itacoatiara, AM. No Porto do Caçote, ancorado no Flutuante Vovó Abigail, se encontrava sua lancha “Rosa Holanda” e sua simpática tripulação, Comandante Elizeu dos Santos Gonçalves, Marinheiro Fluvial de Convés (MFC) e o maquinista Khryslley Márcio Fonseca de Souza, Marinheiro Fluvial de Máquinas (MFM). Márcio mostrou a mangueira que deixara vazar aproximadamente 600 litros de combustível na viagem de Santarém (20.12) para Humaitá (22.12) em que conduziam Soldados do 8° Batalhão de Engenharia de Construção (8° BEC). Aproveitei a segunda e terça-feira para curar meu resfriado, colocar em dia o material coletado em Porto Velho, conhecer a cidade e adquirir fontes de consulta de escritores locais.

- E-Mail∴

O Grande Arquiteto do Universo resolveu, através de verdadeiros maçons, me animar um pouco. A falta de apoio, a frustração dos objetivos propostos para esta etapa da viagem e a saúde abalada por um forte resfriado, resultado de navegação contínua de quase seis horas debaixo de chuva, foram amenizados pelas gentis palavras de um Irmão encaminhadas pelo mano Carlos Afonso Urnau Athanasio.

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Tenho recebido as contadas caminhadas do Coronel Hiram Reis e Silva. É um braço heroico deste desprezado Brasil de todos nós e que poucos, muito poucos, com artifícios ou por distração ou mesmo por incompetência nossa e esperteza deles, se adonaram desta bendita terra de Santa Cruz. Precisamos de homens valorosos como este Coronel Hiram, para defender cada palmo desta Terra Santa, que nos foi legada, porque este país, no dizer psicográfico de Chico Xavier, será, sem dúvida, o Coração do Mundo, o Berço da Paz e a Pátria do Universo. Que assim seja.

- Partida para Manicoré, AM

É muito melhor arriscar coisas grandiosas, alcançar triunfos e glórias, mesmo expondo-se à derrota, do que formar fila com os pobres de espírito, que nem gozam muito, nem sofrem muito, porque vivem nessa penumbra cinzenta que não conhece vitória nem

derrota. (Theodore Roosevelt)

Nossa estada em Humaitá não podia ter sido mais decepcionante. Foi compensada, porém, pelo empenho da tripulação do Piquiatuba e de nossos novos amigos Khryslley Márcio Fonseca de Souza e Elizeu dos Santos Gonçalves, funcionários do grande Mestre José Holanda, que procuraram torná-la o mais agradável e produtiva possível. O irreverente Márcio apelidou meu filho de “Alto Relevo”, em virtude das tatuagens “Maori” que ele orgulhosamente ostenta no braço esquerdo.

- Partida de Humaitá, RO (28.12.2011)

A jornada programada até Manicoré previa sete dias de viagem numa média de cinquenta e cinco quilômetros por dia. Conversei com meu filho e acordamos tentar remar sessenta e quatro quilômetros diariamente, o que permitiria alcançar nosso objetivo em apenas seis dias; para isso teríamos de iniciar os deslocamentos antes de o sol nascer, de maneira a fugir da canícula vespertina. Acordamos às 4h30, preparamos a tralha, coloquei minha lanterna de cabeça e partimos às 4h40.

Cometi um erro fatal ao tentar passar entre o segundo e o terceiro flutuante do Porto Hidroviário de Humaitá: percebi, muito tarde, um grande tronco barrando nossa rota, apoiado no segundo flutuador. A proa bateu no obstáculo e girou o caiaque, deixando-me preso entre correnteza e o tronco. Não consegui avisar, a tempo, meu filho, que vinha logo atrás, e o caiaque dele, sem a mesma estabilidade do “Cabo Horn” da Opium Fiberglass, girou, da mesma forma, e virou.

Felizmente o reflexo do “surfista” falou mais alto e ele rapidamente saiu do caiaque e se apoiou nos troncos, tentando segurar o “indomável”, o caiaque cedido pelo mestre Holanda. Perguntei se ele estava bem e mandei que ele largasse o caiaque que eu o levaria até a margem. Felizmente apenas pequenas contusões resultaram do choque dele com os troncos submersos. Começara mal nossa marcha para Manicoré. Ainda deu tempo de salvar o quite que flutuava à mercê da corrente, este quite consta de um protetor solar (FPS 50), Salonpas para dores musculares, Andolba para pequenos cortes, repelente de insetos e cápsulas de guaraná.

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Estava conduzindo, com certa dificuldade, o caiaque do João Paulo para a margem quando apareceram nossos anjos da guarda: o Soldado Mário Elder Guimarães Marinho, do Piquiatuba, e o Márcio, da lancha Rosa Holanda, com uma “voadeira” para nos auxiliar. O Márcio ficara observando, do Porto do Caçote, nossa progressão e alertou a tripulação do Piquiatuba que desencadeou imediatamente uma operação de salvamento do “Alto Relevo” que caíra n’água. Encontraram o João Paulo se equilibrando nos troncos e ele lhes informou que estava bem e que eles me auxiliassem no resgate do caiaque.

O João Paulo escalou, por um dos cabos de aço da ponte e veio até nós visivelmente aborrecido, não era para menos. O mais triste, porém, é que todos estes acontecimentos foram presenciados por dezenas de pessoas que aguardavam embarque no Porto Hidroviário de Humaitá e apenas uma delas, o vigia, se apresentou tentando nos ajudar. Já naveguei quase 4.000 km em águas amazônicas e sempre fui recebido com solidariedade e carinho em todas as comunidades pelas quais passei e pude sentir o coração generoso do nortista sempre pronto a estender a mão ao próximo. Humaitá foi, sem dúvida, uma triste e melancólica exceção à regra.

O João Paulo não se abalou e remou como nunca, demonstrando a determinação e a têmpera e a determinação de um Guerreiro Maori. Fizemos a primeira parada na Fazenda Santa Rosa que ostenta uma polêmica placa de exploração sustentável de madeira. A devastação da mata, sem qualquer tipo de critério científico, e o gado que perambula pelo local, mostra que o Projeto não tem nada de sustentável.

O Piquiatuba se aproximou para que pudéssemos drenar, adequadamente, o caiaque do João Paulo e providenciar um encosto para suas costas, que se perdera, também, no acidente. Estávamos envolvidos nesta operação quando se aproximaram dois esqueléticos e famélicos guaipecas (vira-latas). Eu e o meu filho dividimos o nosso estoque de bananas com eles e os animais devoraram nosso suprimento com casca e tudo. O Soldado Walter Vieira Lopes se compadeceu da drástica situação em que se encontravam os animais e resolveu, ali mesmo, adotar um deles enquanto o Soldado Marçal Washington Barbosa Santos foi até a cozinha trazer um considerável reforço de rancho para o outro animal.

O novo membro da tripulação foi batizado com o nome de “Coxinha” e, no final do dia, já estava de banho tomado e totalmente integrado ao Grupo Fluvial do 8° BEC. Mais uma demonstração do grau de solidariedade e humanidade desta fantástica tripulação que tive a honra e o privilégio de conhecer no ano passado e que servem de exemplo a todos não só no que se refere ao incontestável aspecto profissional, mas, sobretudo, em relação ao espírito cristão.

Depois de mais de duas horas remando, sem avistar uma Praia para aportar, alterei a rota e resolvi fazer a segunda parada, na margem esquerda, na altura da Lagoa Três Casas.

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A mudança de rota trouxe-nos uma agradável surpresa: estávamos partindo quando avistamos um canoísta que subia o Rio. Era o sueco Christian Bodegren que, em setembro de 2001, subira o Rio Orenoco, penetrara o Canal Cassiquiare, descera o Rio Negro, o Rio Amazonas até a Foz do Rio Madeira e pretendia navegar até o Guaporé, conduzir o caiaque até o Paraguai e chegar a Buenos Aires. O João Paulo conversou em inglês com o simpático canoísta estrangeiro, informando que ele poderia deixar seu caiaque no Porto Graneleiro da Hermasa em Porto Velho e que, nessa cidade ele deveria procurar o Comandante do 5° Batalhão de Engenharia de Construção (5° BEC), Tenente-Coronel da Arma de Engenharia Moacir Rangel Junior que, certamente, iria apoiá-lo no que fosse possível. Antes de nos despedir do Christian, dei a ele meu repelente de insetos e um tubo de cápsulas de guaraná.

- Sueco usa Caiaque em Aventura por Rios da América do Sul Por: Lívia Gaertner, Diário on Line, 23.03.2012

Bastante difundido como embarcação para esportes radicais, o caiaque tem assumido papel fundamental, nos últimos seis meses, na vida do sueco Christian Bodegren, 38 anos, que resolveu conhecer o continente Sul-americano de um jeito bem diferente. O estrangeiro chegou a Corumbá no domingo, 18 de março, depois de percorrer os 679 quilômetros que separam a cidade Sul-mato-grossense do Município de Poconé, no estado vizinho de Mato Grosso, usando o caiaque como meio de locomoção pelo Rio Paraguai.

Entretanto, a aventura de Christian começou bem antes, em setembro, quando desembarcou na Venezuela, mais precisamente na cidade de Tucupita, onde iniciou sua jornada no Delta do Rio Orinoco. Ele contou ao Diário que, após cruzar a Venezuela, entrou no Brasil percorrendo os estados do Amazonas e de Rondônia ao longo de Rios da região tais como Negro, Amazonas, Madeira, Mamoré, até parar no Guaporé, este último que adentra no estado de Mato Grosso.

O estrangeiro chegou a Corumbá no domingo, 18 de março, depois de percorrer os 679 km que separam a cidade Sul-mato-grossense do Município de Poconé, em Mato Grosso Ele contou que um trecho da viagem teve que ser feito por estrada já que não havia conexão fluvial e, nessa etapa, segundo Christian, ele conheceu uma das características do povo brasileiro: a tendência a ser prestativo.

“Para mim, não foi problema”, afirma ao contar que as pessoas o ajudaram no transporte não somente dele, mas também do seu “companheiro” caiaque. Com a ajuda das pessoas, ele chegou até a cidade de Cáceres, onde retornou com a embarcação para o Rio, desta vez, o Paraguai.

Bodegren, que é carpinteiro e vive de construir andaimes na Noruega, explica que conhecer lugares diferentes do pequeno povoado onde vive na Suécia o ajuda a crescer como ser humano. Ele diz que desde muito jovem o desejo de viajar em longas jornadas por continentes diferentes o atrai. (...)

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Christian, que fala o idioma Inglês e um pouco do Espanhol, conta que, muitas vezes, precisa recorrer à linguagem corporal para ser entendido pelos povoados que percorre. Entretanto, a língua diferente não é um dos maiores problemas enfrentados pelo sueco que aprendeu rapidamente uma palavra em português: mosquitos.

Contudo, ele avalia que o nosso Pantanal tem abundância não somente dos insetos que acabam causando incômodo, mas também um grande número de animais silvestres. “Pelos locais que passei nessa expedição não tinha visto tantos animais, principalmente jacarés e capivaras, como pude ver aqui”, afirmou.

Rotina guiada pela natureza

Christian Bodegren detalhou que sua rotina pelos Rios segue o ritmo da natureza, começando logo quando o Sol se levanta e só termina por volta das 17 horas, quando a claridade natural vai diminuindo.

“Procuro um lugar para montar minha rede e uma capa impermeável que a cobre. Descanso, mas fico atento a tudo ao meu redor. Às vezes, é impossível achar lugar para parar e tenho que remar a noite inteira”, disse ao contar um episódio desesperador que passou numa dessas ocasiões.

“Numa noite, apareceu um pequeno buraco no caiaque, eu ia remando e a água subindo. Só depois de 4 horas é que vi uma luz. Eram pessoas que estavam coletando cupins para servir de isca (para tuvira) e elas me ajudaram tampando o buraco com durepox”, lembrou o sueco que deixou Corumbá nesta sexta-feira, 23 de março, com destino à cidade de Buenos Aires, na Argentina, onde pretende encerrar a aventura pela América do Sul, ao atingir o Oceano Atlântico.

O sueco tem um site (www.christianbodegren.com) onde relata suas aventuras pelo mundo. Uma delas foi ter cruzado o deserto do Saara em dromedários durante 8 meses.

Se tudo o que planejou der certo, Chistian pretende retornar para a Suécia no mês de junho com novas histórias e fotos que faz questão de expor para a comunidade onde vive. Para o aventureiro estrangeiro, todo seu esforço será compensado se seu estilo de vida puder mover outras pessoas.

“O que me conduz é a curiosidade, vontade de saber mais, ver com os próprios olhos. Se eu inspirar uma pessoa, para sair de casa e fazer algo saudável, já me sinto feliz”, finalizou.

- Igarapé Três Casas

Avançamos 17 quilômetros além do programado e aportamos na primeira das três fozes do Igarapé Três Casas depois de navegar 75 quilômetros. As águas do Igarapé eram mais limpas que as do Madeira e paramos no encontro das águas onde grupos de botos tucuxis e vermelhos perseguiam suas presas. Contando com a colaboração dos botos, pescamos o suficiente para nos abastecer até Manicoré.

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O Igarapé Três Casas nasce no Lago de mesmo nome e, depois de avançar sinuosamente em direção ao Rio Madeira, muda de ideia e corre paralelamente a este. O Rio Madeira, inconformado com a pretensão do birrento filete d’água que teima em retardar o pagamento de seu tributo (tributário) ao volumoso caudal, rompeu o barranco que os separava e invadiu-lhe o canal com suas águas fortes e barrentas, golpeando-o covardemente contra a margem direita até que não restasse o menor vestígio das águas negras do Três Casas, transformando o Igarapé num mero furo do grande manancial; mais adiante, essas mesmas águas voltam-se sobre si mesmas tornando o Madeira um afluente de si mesmo. À noite, o higiênico “coxinha”, membro canino da tripulação, se lançou às águas e foi fazer suas necessidades fisiológicas equilibrando-se num tronco à flor d’água.

- Partida do Igarapé Três Casas (29.12.2011)

Partimos por volta das 5h30. Na altura de Bela Brisa, por volta das dez horas, três jovens garimpeiros vieram ao nosso encontro convidando-nos para almoçar. Agradecemos a gentileza e informamos que só fazíamos a refeição no final da jornada e ainda faltava muito para isso. Eles nos contaram que tinham apoiado o suíço Christian Bodegren na sua passagem por ali. Aportamos no Lago do Antônio ao meio-dia, depois de remar 63 quilômetros. A maioria dos documentos consultados se refere erroneamente ao local como Lago Santo Antônio. Vamos reportar um pequeno histórico, por nós adaptado, relatado pelo Senhor Constantino Veiga, o Seu Tantra, colhido pelo João Paulo junto à Associação de Desenvolvimento Comunitário dos Produtores Rurais do Lago do Antônio (ADCPLA).

- História do Lago do Antônio Fonte: Senhor Constantino Veiga, Seu Tantra.

O Lago era habitado pelos índios, seus primeiros moradores quando chegaram os brancos portugueses, mandando explorar a seringa, castanha e madeira de lei. Os índios não queriam “os invasores”, porque a região era muito farta de peixe, de caça e muito bicho de casco, tartaruga, tracajá e jabuti. O patrão contratou, então, um homem chamado Antônio que foi o primeiro civilizado a vir morar no Lago. Antônio transformou sua casa numa Fortaleza para resistir aos ataques dos índios. Antônio falava a língua nativa e distribuía presentes, que o patrão mandava, aos índios. Antônio construiu um batelão para transportar os índios, já pacificados, do Lago do Antônio e do Igarapé Grande para pescarem, trabalharem na colheita da castanha, extração da seringa e da madeira de lei.

- Partida do Lago do Antônio (30.12.2011)

Partimos às 5h30 rumo à Boca do Cará, piscoso afluente do Madeira. A viagem transcorreu sem maiores novidades, apenas pudemos notar que a quantidade de balsas de garimpeiros diminuíra consideravelmente. Aportamos na Boca Cará às 11h45 depois de percorrer 65 km. Nos últimos quilômetros, fomos acompanhados de perto por bandos de botos vermelhos e tucuxis.

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Embarcamos os caiaques no Piquiatuba e estávamos empenhados na nossa rotina diária quando, mais uma vez, o “coxinha” se lançou às águas e nadou até a margem. Parece que o cãozinho entendeu que não devia poluir a embarcação com seus dejetos e resolveu demarcar o território, várias vezes. Estava na quinta etapa de sua fétida demarcação quando apareceu um enorme cão que o nosso tripulante canino enfrentou e pôs para correr.

O João Paulo e a tripulação foram fazer um reconhecimento do Rio Cará e no trajeto quase foram atropelados por um enorme jacaré-açu. Permaneci no Piquiatuba colocando minha documentação em dia e admirando as evoluções dos botos tucuxis e vermelhos cercando os cardumes que infestavam a Boca do Cará.

- Partida da Boca do Cará (31.12.2011)

Meu filho ficara até tarde ouvindo as estórias do dono de um mercado flutuante ancorado na Boca do Cará e, consequentemente, não conseguiu acordar de manhã cedo. Eu e a tripulação do Piquiatuba nos esquecemos de colocar os celulares para despertar e, quando acordei às 5h22, já estava começando a clarear. Acionei o Mário e às 5h35 eu estava partindo, sozinho, rumo à Comunidade Bom Suspiro, na Foz do Rio Marmelo.

Mapas do DNIT: as referências que eu colhera dos Mapas do DNIT estavam completamente equivocadas. A verdadeira Laranjal estava a mais de dez quilômetros ao Sul da Laranjal do DNIT, a Comunidade Marmelos do DNIT é, na verdade, Bom Suspiro na foz do Marmelos, um belo Rio de águas negras, o local mais aprazível que encontrei no Madeira até agora. São inúmeros outros erros que poderiam ser corrigidos com uma pequena equipe dotada de GPS e computador embarcada em um barco regional, como o nosso, e uma voadeira. Garanto que, em três meses, seria possível levantar com precisão os dados de todo o Rio Madeira. O mesmo poderia ser feito nos demais Rios, seria uma pesquisa importante e necessária já que os Mapas atuais não retratam a realidade. O 8° BEC possui as embarcações e a melhor tripulação para desempenhar esta tarefa que qualquer oficial de engenharia do exército estaria em condições de assumir. (Nota do Autor)

A velocidade do Rio era grande e consegui imprimir um ritmo forte (12,2 km/h) e sem paradas, me alimentando e hidratando embarcado, para ganhar tempo, chegando a meu destino exatamente às 11 horas depois de percorrer 66 quilômetros em 5h25. Para quem desce o Rio Madeira, Bom suspiro é a primeira Comunidade do Município de Manicoré, fronteira com Humaitá. Depois do almoço, eu e meu filho acompanhamos o Mário numa visita ao Rio Marmelos. A beleza do local e a simpatia dos membros da Comunidade Bom Suspiro convenceram-nos a permanecer mais um dia na Comunidade. O Piquiatuba ficou estacionado na margem esquerda do Marmelos, em Humaitá, já que o mesmo faz a divisa entre este Município e Manicoré.

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- Partida da Foz do Marmelo (01.01.2012)

Decidi percorrer a distância de 90 quilômetros que separa Bom Suspiro e Manicoré em apenas um dia para recuperar a parada no Marmelos. Acordamos antes de o sol nascer e ficamos esperando clarear um pouco para sair. O João Paulo resolveu não participar desta navegação.

Quando fui embarcar no caiaque, levei um tombo, o primeiro em quatro anos, e em mais de 30.000 km de navegação no caiaque oceânico “Cabo Horn”. Desvirei rapidamente o caiaque, como o material estava todo amarrado, só tive de catar algumas bananas que caíram do caiaque.

O percurso foi agradável, a chuva fina caía, minorando os efeitos da canícula amazônica e cheguei à 12h55 a Manicoré; navegara 90 km em apenas 7h15, a uma velocidade média de 12,4 km/h.

Em Manicoré procurei os amigos da PM que me apresentaram o Jornalista Walter de Azevedo Filho. Walter marcou uma entrevista para o dia seguinte e ficou de agendar os contatos que solicitamos.

Últimos Momentos de D. Quixote (Paulino de Almeida Brito)

À cabeceira o bacharel e o cura; Sancho, todo choroso, aos pés da cama; o barbeiro, a sobrinha e a velha ama além um pouco, em lúgubre postura.

Despojado de lança e de armadura, eis como aquele herói de eterna fama,

já vendo a Morte, que a terreiro o chama, vai dar fim à sua última aventura.

Lembra-se então do tempo em que ansioso de acometer gigantes, pavoroso

procurava-os montado em Rocinante.

Lembra e sorri: por fim reconhecera que no mundo de anões, em que vivera,

ele só, D. Quixote, era o gigante!

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Estada em Manicoré, AM

Só se ama as coisas que se conhece e entende... Só lutamos e defendemos o que amamos. (Thiago de Mello – Poeta Amazonense)

- Manicoré (02.01.2012)

Nossa recepção em Manicoré foi bastante diferente de Humaitá. Imediatamente procurei entrar em contato com nossos amigos Policiais Militares (PM). A população ainda confunde as duas polícias, nos deram a orientação errada, e fomos parar na Polícia Civil. Finalmente, encontramos o Quartel da PM cujas instalações contrastavam muito com as de seus coirmãos da Civil. A situação de abandono das viaturas e do imóvel era chocante. É pena que os Policiais Militares que realmente enfrentam os meliantes colocando suas vidas em jogo não sejam valorizados como deveriam ser. A tônica tem sido instalações deterioradas, viaturas sucateadas, equipamentos ultrapassados e falta de equipamentos de comunicação. Os PM entraram em contato com o repórter investigativo Walter de Azevedo Filho, da Rede Amazônica – TV Amazonas/Manicoré, filiada à Rede Globo que imediatamente nos procurou, ficou de contatar as autoridades locais e marcou uma entrevista para as 07h30 na Praça da Matriz. Eu e o João Paulo compramos uma coleira e uma corrente para nosso canino amigo, o “coxinha”, e nos instalamos no hotel dos irmãos “Macaxeira”.

- Manicoré (03.01.2012)

Às 07h30, o Walter Filho iniciou as tomadas na Praça Matriz de Manicoré e depois no Rio Madeira para dar continuidade à matéria. Às dez horas, fomos conhecer a simpática Secretária de Cultura do Município, Professora Maria Madalena, que agendou uma entrevista para as 15 horas do dia seguinte. Às onze horas, fomos visitar o Tiro de Guerra 12-002, comandado pelo Capitão De Souza. Uma parceria que, realmente, deu certo entre o Exército Brasileiro e a Prefeitura Municipal, vamos fazer uma matéria exclusiva do TG em um próximo artigo.

À noite, fomos até a casa do Prefeito interino de Manicoré, Lúcio Flávio, um jovem e entusiasta engenheiro civil que há mais de duas décadas vem se dedicando às causas públicas. O Prefeito se interessou pelo nosso projeto e determinou que fosse colocada uma viatura à nossa disposição.

- Manicoré (04.01.2012)

Novamente o Walter Filho fez mais algumas tomadas para a matéria que irá ao ar na Rede Amazônica e, às quinze horas, realizamos uma entrevista com a Professora Maria Madalena. Fiquei impressionado com a exposição feita pela querida professora em relação à pesquisa que está fazendo a respeito da história de sua cidade. Como verdadeira historiadora, ela estendeu suas pesquisas documentais aos mais importantes acervos existentes na “terra brasilis”, confrontando estes dados com os relatos orais colhidos em diversas comunidades locais.

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A sua postura corajosa de enfrentar colocações tradicionais que não possuem o devido embasamento mostram que Maria Madalena é uma historiadora com a alma de uma repórter investigativa à caça da verdadeira história de sua gente e da sua terra. Estaremos, ansiosamente, aguardando a edição de seu livro.

A postura da Professora me leva a querer fazer aqui uma pequena dilação histórica. Viajantes de outrora, oriundos da Europa e Norte América, fossem naturalistas, pesquisadores, negociantes ou simplesmente turistas olhavam com desdém nossos amazônidas. Consideravam-se no topo da pirâmide da intelectualidade, achavam-se superiores aos nossos indígenas e caboclos e os olhavam com total desdém. Volta e meia ouço pronunciamentos de autoridades, intelectuais e estudantes que, em breves visitas à região, assumem a mesma postura crítica de antanho. Por isso, acho cada vez mais importante nosso trabalho de divulgar as coisas e as gentes da Amazônia.

Estes “intelectualoides” de araque não são capazes de absorver a sabedoria de um pescador entregue ao seu labor diário. Descrevi, encantado, no meu livro “Descendo o Rio Negro” uma dessas passagens:

Seu Joaquim, leve e silenciosamente, afundava o remo na água e manobrava a canoa por entre vegetações aquáticas do cano do Mamirauá. Viu, ou sentiu, o leve movimento das águas e, sem pressa, pressentiu a direção seguida pelo cardume de aruanãs, ergueu o braço empunhando a haste e, num impulso rápido e preciso, lançou o arpão a alguns palmos à frente da leve ondulação na superfície (siriringa). Seu Joaquim sabia que a “siriringa” era provocada pelo cardume que nadava próximo a superfície. A haste fincou o bico de ferro em forma de flecha no Corpo da aruanã, mantendo preso o formoso peixe às farpas do bico de ferro do arpão que se soltou da haste. O animal foi recolhido com a mesma destreza com que fora arpoado.

Novamente atento aos mais leves movimentos na água, ele se aproximou de um grande aglomerado de capim-memeca com a intenção de pescar um tambaqui. Usando um “enganador”, um tosco caniço com um peso amarrado na ponta da linha, batia na água simulando a queda da “arati”, frutinha que é o objeto de desejo do saboroso peixe. Na outra mão usava, num igualmente tosco caniço, a frágil “arati” como isca. Se usasse a delicada “arati” para atrair o peixe, ela se desprenderia do anzol. Não demorou muito para que um grande tambaqui fosse puxado para a canoa pelo seu Joaquim. (Desafiando o Rio-mar - Descendo o Solimões)

As poesias sempre me arrebataram desde a mais tenra idade. Lia encantado Augusto dos Anjos, Carlos Drummond de Andrade, Castro Alves, Cecília Meireles, Clarice Lispector, Fernando Pessoa, Gonçalves Dias, Manoel Bandeira, Mario Quintana, Vinícius de Morais e tantos outros artesãos das palavras conhecidos pela maioria dos brasileiros. Nas minhas pesquisas e andanças pela misteriosa e encantadora Amazônia, fui garimpando, com humildade, o fruto da inspiração dos poetas da selva e maravilhado descobri um Thiago de Mello a quem tive o privilégio e a honra de conhecer pessoalmente.

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Palmilhei, extasiado, estrofes encantadas de poetas amazônidas como Aldisio Gomes Filgueiras, Almino Álvares Affonso, Antônio Mavignier de Castro, Arnaldo Garcez Teixeira, Barreto Sobrinho, Bento de Figueiredo Tenreiro Aranha, Ernesto da Silva Penafort, Hemetério Cabrinha, Joaquim de Alencar e Silva, Jonas Fontenelle da Silva, Jorge de Lima, José Joaquim da Luz, Luiz Augusto de Lima Ruas, Sérgio Luiz Pereira, cujas produções fiz questão de reproduzir em meus livros.

Sempre busquei romances que tenham como pano de fundo a história, aprecio uma boa leitura, mas gosto de aprender ao mesmo tempo. Descobri, em Óbidos, “Os Dias Recurvos” de Ildefonso Guimarães onde ele relata magistralmente a Revolta que culminou com a Batalha de Itacoatiara.

Deixo estas pequenas divagações para chamar a atenção daqueles “intelectualoides” que, vindo de outras plagas para esta bendita terra das águas, se acham mais capazes que a boa gente daqui.

Meu escritor preferido foi e sempre será Euclides da Cunha. Não só pela sua invulgar sagacidade e magia no trato com as letras, mas também, pelo exemplo de vida e dedicação à pátria. Subindo o Purus para realizar uma missão, essencialmente técnica, de demarcação de fronteiras, o grande Euclides, sem perder o foco de seu principal objetivo, consegue, graças à sua visão holística invulgar, fazer comentários de cunho antropológico, aspectos do relevo, solo, fauna, flora, clima da região e sobre o caráter divagante do Rio Purus, baseado na concepção do “ciclo vital”.

Durante a viagem teve, ainda, o cuidado de recolher amostras de fósseis e rochas, posteriormente encaminhadas ao Museu do Pará (atualmente Emílio Goeldi). Depois de chefiar a “Comissão Brasileira de Reconhecimento do Alto Purus”, seu inquebrantável apego pela justiça determinou que voltasse os olhos para a questão da demarcação das fronteiras entre a Bolívia e o Peru. Assumindo, apaixonadamente, partido da Bolívia, tornando-se o “Cavaleiro andante da Bolívia contra o Peru”, conforme ele mesmo se definia.

Muitos talvez não compreendam que, numa época de cerrado utilitarismo, alguém se demasie em tanto esforço numa advocacia romântica e cavalheiresca, sem visar um lucro, ou interesse indiretos. Tanto pior para os que não o compreendam. Falham à primeira condição prática, positiva e utilitária da vida, que é aformoseá-la... (Euclides da Cunha)

Nas minhas eternas perambulações intelectuais amazônicas, descobri o primor literário de Raymundo Moraes que nos reporta ao grande Euclides da Cunha de quem era grande admirador e discípulo sem, contudo, se deixar influenciar ou perder seu modo próprio de dizer as coisas, de interpretar as matizes telúricas carregadas de amazônico nativismo. Seus líricos relatos, carregados de emoção, são flagrantes que vivenciou e paisagens que impregnaram sua alma durante quase trinta anos. São crônicas de quem apreendeu com as águas e as gentes, com os seres da floresta, os ventos e as chuvas.

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O escritor Raymundo Moraes, filho de Miguel Quintiliano de Moraes e de Lucentina Martins Moraes, nasceu em Belém no dia 15 de setembro de 1872. Interrompeu cedo os estudos, havia concluído apenas o curso primário, para acompanhar Miguel Quintiliano, prático de navios no Rio Madeira. O fascínio e a magia de navegar pelas artérias vivas da hiléia fizeram-no seguir a carreira do pai, chegando a Comandante dos “gaiolas”. As infindas jornadas despertaram seu amor pela leitura. Autodidata de invulgar inteligência e sensibilidade, aliou o conhecimento científico e literário adquirido com as experiências que recolhia e anotava nas suas viagens.

Raymundo Moraes é um dos melhores exemplos que existe para se caracterizar a diferença entre a cultura e a sabedoria. A falta de estudo não o impediu, absolutamente, de visualizar as belezas que o cercavam e de ser capaz de reportá-las com a sagacidade de um sábio.

Raymundo teve, como mestres, a natureza, as águas e o Grande Arquiteto. Infelizmente, nossos “intelectualoides” de hoje mais parecem experimentos de laboratório que, de suas gaiolas, apartados das vivências mundanas, são capazes apenas de reproduzir aquilo que já leram, ouviram ou que alguém já constatou. Serão eles, um dia, capazes de entender e respeitar a sabedoria dessa maravilhosa gente da terra das águas independentemente de sua posição geográfica ou grau de escolaridade?

- Manicoré (05.01.2012)

Neste dia, tivemos a oportunidade de conhecer o amigo gaúcho Valter que nos levou até a sua propriedade onde tem uma bela horta e cultiva diversas espécies de frutíferas e fizemos uma visita à COPEMA que comercializa produtos extrativistas como a castanha, banana e o óleo de copaíba.

- Manicoré (06.01.2012)

Fomos almoçar no Tiro de Guerra onde o pessoal aproveitou para comemorar o meu aniversário. À tarde, fomos visitar o banho do Ademir para descontrair um pouco e, à noite, comemoramos, novamente, o meu aniversário com o João Paulo e a tripulação do Piquiatuba.

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Município de Manicoré, AM

Município brasileiro do Estado do Amazonas, fundado na margem esquerda e atualmente localizado à margem direita do Rio Madeira, possui posição estratégica entre Manaus e Porto Velho. A denominação de “Manicoré” provém do Rio Manicoré, afluente do Madeira. O nome do Rio procede de “Anicoré”, tribo indígena que habitava a região.

- Cronologia Histórica

1637 - vem à região a expedição de Pedro Teixeira.

1716 - o Capitão João de Barros e Guerra é enviado ao Rio Madeira, pelas autoridades do Grão-Pará, comandando uma expedição, com a finalidade de punir os selvagens.

1797 - é fundada a Povoação do Crato, por determinação do Governador do Grão-Pará, com o objetivo de facilitar as transações comerciais do Pará com Mato Grosso e Goiás.

1802 - a Povoação é transferida para um sítio entre os Rios Baetas e Arraias.

1858 - a Lei n° 96, de 04 de julho, cria a freguesia de São João Batista do Crato.

1868 - a Lei n° 177, de 06 de julho, transfere a sede da freguesia para o povoado de Manicoré, que recebe a nova denominação de Nossa Senhora das Dores de Manicoré.

1877 - a Lei n° 362, de 04 de junho, eleva Manicoré à categoria de Vila e cria o Termo Judiciário.

1878 - pela Lei n° 386, Manicoré passa a ser sede da Comarca do Rio Madeira.

1881 - no dia 12 de dezembro instala-se a Comarca.

1896 - pela Lei n° 137, de 15 de maio, Manicoré recebe foros de Cidade.

1955 - pela Lei Estadual n° 96, de 19 de dezembro, parte do seu território é desmembrado para formar o Município de Novo Aripuanã.

1981 - pela Emenda Constitucional n° 12, de 10 de dezembro, mais uma parte de seu território é desmembrado, em favor do novo Município de Auxiliadora.

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- Aspectos Físicos e Geográficos

Localização: está a 333 km em linha reta e 419 km via fluvial da capital do Estado, e limita-se com os municípios de Beruri, Borba, Humaitá, Tapauá, Apuí, Novo Aripuanã e com os Estados de Rondônia e Mato Grosso. As coordenadas cartesianas de Manicoré são 5°50’S e 61°18’30”O.

Área Territorial: 48.491,20 km².

Clima: Tropical chuvoso e úmido.

Temperatura: Embora as temperaturas, normalmente, oscilem entre 36,8°C e mínima de 14°C, o Instituto Nacional de Meteorologia (INMET), registrou a temperatura mínima, de 11,5°C, no dia 18 de julho de 1975, e a máxima, de 38,5°C, no dia 21 de setembro de 2005. A maior precipitação pluviométrica diária foi de 130,6 mm, no dia em 2 de abril de 1973.

Altitude: 50m acima do nível do Mar.

- Economia

Setor Primário

Sua produção agropecuária é baseada no cultivo da banana, juta, açaí, melancia, arroz, milho, mel e da produção de farinha, além da extração da castanha, madeira, borracha e óleo de copaíba. A pecuária é representada principalmente por bovinos e suínos, e, com menor representatividade, a criação de equinos e bufalinos. A pesca, embora abundante, é praticada artesanalmente e capaz de, além de atender ao consumo local, comercializar o excedente em Manaus e Porto Velho, sendo que o peixe liso (de couro) é exportado para todo o Brasil.

Extrativismo Mineral: o Município, que conta como sua principal atividade a exploração de ouro, possui, ainda, várias jazidas de cassiterita, no Igarapé Preto, São Francisco, etc.

Setor Secundário

Indústrias: padarias, olarias, serrarias, carpintarias, marcenarias, fábrica de gelo, serralharia, britador e companhia de asfalto.

Setor Terciário

Comércio: varejista.

Serviços: farmácias, restaurantes, lan house, lanchonetes, sorveterias, salões de beleza, livrarias, barbearias, oficinas mecânicas, oficinas de automóveis e de bicicletas, agências bancárias, hotéis e pensões.

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- Turismo

A cidade possui vários atrativos turísticos, entre eles o balneário do Atininga e as Cachoeiras do Rio Manicoré. É conhecida internacionalmente pela pesca esportiva do Tucunaré.

- Cultura

Como atividades culturais, destacamos a Festa da Melancia, os forrós de rua, que transformam as vias de cidade em verdadeiros celeiros dançantes e o Festival das quadrilhas, onde cada bairro envia seu grupo, dando assim um colorido especial ao evento. Festa do açaí realizada na Comunidade do Estirão.

- Saúde

A Secretaria de Estado da Saúde – SUSAM, mantém na sede do Município, uma Unidade Mista, destinada a prestar atendimento de pronto-socorro, maternidade, cirúrgico, odontológico e hospitalar.

- Educação

A Secretaria de Estado da Educação e Qualidade do Ensino – SEDUC mantém no Município oito estabelecimentos, ministrando ensino fundamental e médio.

- Infra-Estrutura Básica

Energia

A Companhia Energética do Amazonas - CEAM, que mantém no Município 4 grupos geradores, somando uma potência instalada de 3.540 KVA.

Abastecimento d’água

A cargo da Companhia de Saneamento do Amazonas - COSAMA. Há dois reservatórios com capacidade para 260m3.

Comunicações

A cargo da TELEMAR, que mantém uma agência no Município, operando os serviços de DDD. A Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos – ECT possui uma agência que presta os serviços postais necessários à população.

- Aeroporto

O Aeroporto Gnamy em Manicoré. Em 2009 foi efetuada uma manutenção geral no Aeroporto e no prédio da Infraero.

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- Eventos Culturais

- Festa da Padroeira, Nossa Senhora das Dores, em 15 de setembro;

- Festa da Melancia, em setembro;

- Festa do Açaí, no mês de abril;

- Festa do Mel, em agosto.

- Festival de Música, no mês dezembro.

Marinha (Cecília Meireles)

O barco é negro sobre o azul.

Sobre o azul os peixes são negros.

Desenham malhas negras as redes, sobre o azul.

Sobre o azul, os peixes são negros. Negras são as vozes dos pescadores,

atirando-se palavras no azul.

É o último azul do mar e do céu.

A noite já vem, dos lados de Burma, toda negra, molhada de azul:

— a noite que chega também do mar.

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TG 12-002 de Manicoré, AM, um Paradigma

Si vis pacem, para bellum.

Conheci o Tiro de Guerra de Manicoré graças ao grande amigo e excelente jornalista Walter de Azevedo Filho, da Rede Amazônica. As instalações primorosas e bem cuidadas refletem o êxito da bela parceria que se formou entre a Prefeitura Municipal de Manicoré (PMM) e o Exército Brasileiro (EB).

A instalação de uma modelar e bem equipada Unidade Básica de Saúde (UBS), no interior do aquartelamento, com recursos Municipais, permite, hoje, que a população manicorense conte com atendimento de qualidade proporcionado pelos profissionais de saúde do Exército Brasileiro.

O equipamento odontológico, de última geração, por sua vez, foi doado pelo judiciário local o que demonstra de forma definitiva que os poderes unidos são capazes de fazer a diferença.

A Escola Municipal, mais conhecida como a “Escola do Tiro de Guerra”, conta, igualmente, com instalações confortáveis, salas de aula climatizadas, quadro branco, e, o que é fundamental, professores qualificados e dedicados. O Capitão De Souza, Instrutor Chefe do TG, que na oportunidade estava se preparando para passar o comando, mostrou-nos as instalações visivelmente emocionado com o resultado dessa “parceria que deu certo” entre o EB e a PMM.

No dia 24 de janeiro, realizamos uma entrevista com o Comandante do Comando Militar da Amazônia (CMA), General de Exército Eduardo Dias da Costa Villas Bôas, dileto amigo com o qual tivemos a honra e o privilégio de conviver, como instrutores, na Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN), no início da década de 80. Um dos assuntos tratados foi o dos Tiros de Guerra e aproveitei a oportunidade para citar o TG de Manicoré como exemplo que deveria ser seguido pelas demais Prefeituras que, ao melhorar as instalações dos aquartelamentos, estariam fazendo um investimento que resultaria em benefício direto para a população local.

- Histórico Fonte: Tiro de Guerra 12-002 - Manicoré-AM

A Portaria Ministerial n° 394/Reservada, de 15 de julho de 1996, criou o Tiro-de-Guerra de Manicoré com a designação de TG 12/002. Seu primeiro Diretor foi o Prefeito Municipal Sr. Waldomiro Gomes e seu Chefe de Instrução o 2° Ten R/1 Francisco Edmar Aguiar Medeiros.

O TG iniciou suas atividades em Manicoré, no dia 1° de março de 1997, utilizando provisoriamente as instalações do antigo prédio da Embratel, enquanto se construía sua sede atual, em terreno cedido pela Prefeitura Municipal, com recursos da Fundação Nacional da Saúde.

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No dia 17 de julho de 1998, as instalações foram entregues pela Fundação Nacional de Saúde. Em 28 de julho de 1998, após solenidade na Praça da Bandeira, a nova sede foi inaugurada oficialmente pelo Comandante Militar da Amazônia, General de Exército Germano Arnoldi Pedrozo, contando com as ilustres presenças do Comandante da 12ª Região Militar, General de Brigada Eron Carlos Marques e do Prefeito de Manicoré, Sr. Waldomiro Gomes, Vereadores, autoridades, lideranças locais acompanhados de grande número de populares.

O TG recebeu a denominação de “Tiro de Guerra Dr. Edmundo Juarez”, em homenagem ao médico sanitarista de renome internacional, à época Presidente da Fundação Nacional de Saúde, que patrocinou a construção das instalações que a área do TG possui, e que falecera em março de 1998, antes da inauguração do Tiro.

O Tiro de Guerra já formou um contingente de 108 Cabos, sendo 04 mulheres, e 527 Atiradores dos quais 16 do segmento feminino.

Em 19 de novembro de 2011, foi inaugurada, pela Prefeitura Municipal de Manicoré, a ampliação da Escola Municipal Dr. Edmundo Juarez; a Unidade Básica de Saúde Lucy Marques Cavalcante e a reforma do Pavilhão de Administração, com a presença do Prefeito em Exercício Lúcio Flávio do Rosário – Diretor do TG, autoridades locais e população em geral.

Seu atual Diretor é o Sr. Manoel Galdino de Oliveira, Prefeito Municipal e seu efetivo é composto por um Instrutor Chefe, um Tenente dentista, um Tenente médico e um Sub-Tenente Instrutor.

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COVEMA

Em Manicoré, tivemos a oportunidade de conhecer a Cooperativa Verde de Manicoré (COVEMA), fruto de uma história de luta das Comunidades Extrativistas dos Municípios de Manicoré e Nova Aripuanã, onde existem Unidades de Conservações de Uso Sustentáveis federais e estaduais, além de Projetos de Assentamentos Sustentáveis e Áreas Indígenas.

- Finalidades da COVEMA

A COVEMA, aliada ao Conselho Nacional dos Seringueiros (CNS) e o Conselho das Associações de Manicoré (CAM), buscam organizar as comunidades com as seguintes finalidades:

1. Apoiar a regularização fundiária, com o propósito de garantir a propriedade das áreas de coleta para os trabalhadores extrativistas;

2. Organizar a produção para garantir melhores preços;

3. Melhorar a qualidade de vida do extrativista e de suas famílias buscando, junto aos órgãos públicos, investimentos nas áreas de educação e saúde;

4. Proporcionar alternativas de renda aos produtores.

- Produção

Graças a parcerias firmadas com instituições públicas e privadas, a cooperativa implementou práticas adequadas em relação à coleta, transporte, armazenagem e beneficiamento da Castanha-do-Brasil, buscando a melhoria de qualidade do produto. Hoje são 800 castanheiros cadastrados e, em 2011, a cooperativa comercializou 300 toneladas de castanha que, depois de processada, gerou 100 toneladas de amêndoas selecionadas. A COVEMA estima que isto represente apenas 26% da produção estimada da região. Recebi da Cooperativa uma “Cartilha do Coletor” produzida pela ASBRAER, em 2008.

- Castanha-do-Brasil Fonte: ASBRAER

A Castanha-do-Brasil é um produto encontrado na Floresta Amazônica muito importante para a região. Sua produção, em torno de 30 mil toneladas por ano, é quase toda exportada e o consumo interno é de apenas 5% desse total.

A castanha é uma fonte de trabalho e renda para as pessoas que vivem e trabalham na floresta; e também é uma importante fonte de proteína para a alimentação. O Brasil já foi o principal produtor da Castanha-do-Brasil, mas perdeu o lugar de maior exportador para a Bolívia. Isso porque nossa castanha descascada estava apresentando altos níveis de contaminação por aflatoxina (uma substância que causa câncer no fígado.

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Esse problema ocorre principalmente porque não há cuidados com a qualidade da castanha, nem nas etapas de coleta na floresta e nem no armazenamento dentro das usinas. Mas a qualidade da nossa castanha pode melhorar. A castanha bem cuidada fica saudável para a alimentação e melhor para se vender.

- Técnicas de Amontoa Fonte: ASBRAER

1. Apanhe os ouriços semanalmente.

2. Não misture os ouriços da safra passada aos da safra nova.

3. Depois de feita a “amontoa”, não demore mais de três dias para quebrar os ouriços e levar as castanhas para o armazém ou paiol.

4. Se não for possível quebrar os ouriços após a “amontoa”, faça jiraus com 3 a 4 palmos de altura do chão pra amontoar os ouriços.

5. No jirau, ponha os ouriços de umbigo para baixo, para não entrar água da chuva. A umidade ajuda o mofo a crescer e estraga a castanha.

- Armazenamento da Castanha Fonte: ASBRAER

1. As castanhas nunca devem ser ensacadas logo após a quebra, elas precisam estar secas.

2. Espalhe as castanhas dentro do armazém em camadas de até meio palmo de altura.

3. A cada dia revire as castanhas, para secarem por igual.

4. Não misture, na mesma pilha de secagem, castanhas que já estão quase secas com castanhas úmidas.

5. Não deixe animais terem contato com as castanhas que estão em processo de secagem.

6. Não deixe as castanhas terem contato direto com o sol ou a chuva. O sol deixa a castanha com gosto ruim e a chuva favorece o mofo.

7. Após sete dias, a castanha estará seca, podendo ser ensacada em sacos de aniagem ou armazenada solta, a granel, em um canto do paiol.

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Figura 72 – O Autor e João Paulo no Rio Madeira – AM

Figura 73 – Igreja de Santo Antônio – Borba – AM

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Figura 74 – Iguana – Borba – AM

Figura 75 – Balsa Boiadeira subindo o Rio Amazonas – AM

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Figura 76 – Igarapé N. Sª. das Graças (cheia) – Itacoatiara – AM

Figura 77 – Itacoatiara – AM

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Mapa 5: Boca do Cará – Nova Aripuanã

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Mapa 6: Nova Aripuanã – Nova Olinda do Norte

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Mapa 7: Nova Olinda do Norte – Manaus – Foz do Ramos

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Rumo a Nova Aripuanã, AM

Só se pode amar as coisas que se conhece e entende... Só lutamos e defendemos o que amamos. (Thiago de Mello – Poeta Amazonense)

- Passagem por Marmelos (31.12.2011/01.01.2012)

Nossa passagem pelo Rio Marmelos, teve muitos significados importantes. Além de transpormos as fronteiras físicas de dois municípios, Humaitá e Manicoré, rompemos a barreira cronológica de 2011 para 2012, encerramos as homenagens aos 40 anos do 2° Grupamento de Engenharia, Grupamento Rodrigo Octávio e iniciamos nosso preito aos 100 anos do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA). Meu filho João Paulo, que me acompanha neste périplo, é, por enquanto, o último de três gerações de “Reis e Silva” que vibraram e se emocionaram percorrendo as históricas arcadas do Velho Casarão da Várzea. Meu pai, Cassiano Reis e Silva, da turma de 1939, foi aluno da então Escola Militar de Porto Alegre, local em que eu e meus dois irmãos estudamos, nas décadas de 60/70, e em que, mais tarde, passaram meus três filhos, na década de 90 e na primeira década da virada do século. Praticamente, de vinte em vinte anos um “Reis e Silva” se fazia presente no CMPA, por isso recorri ao número 20, seguido de dois zeros (centenário do CMPA) para determinar a extensão de minha jornada. Esta descida de 2.000 quilômetros, a mais longa de todas até agora, reflete o meu reconhecimento aos queridos mestres e ao Velho Casarão que orientaram meus passos desde a adolescência e me encaminharam, adulto, vitorioso e virtuoso, para a Academia Militar das Agulhas Negras. Lá, dizia o Capitão Camargo, Comandante da 2ª Companhia do Curso Básico, que a missão dos instrutores não era “corrigir defeitos, mas sim para aprimorar virtudes”.

Meu querido CMPA: tenhas a certeza de que cada gota de suor derramado no Rio Madeira ou no Rio Amazonas, cada contração muscular, cada regozijo ou dor fazem-me vibrar de emoção porque cada um deles representa uma humilde oferenda por tudo que tu representas para mim, para meus familiares e para o Brasil. Zum zaravalho!!!

- Última Noite em Manicoré (06.01.2012)

A distância que nos separava do próximo alvo, Nova Aripuanã, era de 150 quilômetros. No planejamento inicial, eu previra três dias; o que se alcançaria com muita folga, decidi fazer em dois - o primeiro lance em torno dos 85 km, e o segundo, dos 65 km. Na véspera da partida, dia seis de janeiro, mostrei ao Comandante Mário nosso objetivo intermediário, a Foz do Rio Mataurá. Pela imagem do Google Earth, era um belo Rio de águas limpas que se chocava com as barrentas do Madeira, proporcionando um breve e curioso encontro das águas. Combinei com nosso caro amigo e repórter Walter Filho, da Globo, que estaríamos em condições de sair a partir das cinco horas da manhã, condicionando a largada aos primeiros raios de luz, já que a jornada era muito longa.

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- Partida de Manicoré (07.01.2012)

Resolvi dormir embarcado para não atrasar a saída. A sinfonia noturna foi muito ruidosa e meu sono por demais entrecortado; arrependi-me de não ter permanecido no Hotel dos irmãos Macaxeiras, por mais uma noite. Uma das pequenas pererecas mais parecia uma velha e barulhenta furadeira, cheguei a sonhar com alguém furando um piso de granito. Acordei às 04h40 e resolvi me equipar silenciosamente. Às cinco horas, toquei alvorada e no mesmo instante visualizei a silhueta do Walter descendo a enorme escadaria de madeira que dava acesso à embarcação. Pela primeira vez, pude constatar um repórter britanicamente pontual. Os poucos dias de convivência com o Waltinho, como carinhosamente o chamam, mostraram o quanto ele ama o que faz e o seu alto grau de profissionalismo e perfeccionismo.

Colocamos o caiaque n’água e remei um pouco para montante e depois ao sabor da corrente, sob o holofote do Piquiatuba, para que o Walter fizesse sua última tomada da matéria. Retornei para despedir-me do caro amigo de Manicoré e remei forte rumo ao Mataurá. Tinha remado alguns quilômetros quando o João Paulo resolveu me acompanhar, acordar cedo nunca foi seu forte. Nas primeiras duas horas, a neblina reduzia a visibilidade a uns 800 metros, o tempo foi melhorando e mantivemos um ritmo forte e sem paradas, a hidratação e alimentação no percurso foi feita embarcada. Pouco antes de abordarmos a Foz do nosso alvo, observamos um bando de urubus sobre algumas árvores à flor d’água, resolvi me aproximar, para averiguar, e avistei um jacaré-açu de uns quatro metros e meio sendo devorado pelos funestos carniceiros. Chegamos à Foz do Mataurá, por volta das 11h30, depois de remar 85 km sem parar, a uma média de 13,5 km/h. As águas eram muito limpas e o local bastante agradável, ouvimos ao longe um foguetório que anunciava que a Comunidade Maravilha estava em festa, afinal era sábado. O leiloeiro do evento, conhecido como “Jabá” veio, gentilmente com seus familiares, até o Piquiatuba convidar a tripulação para participar dos festejos que incluíam jogos, leilões e naturalmente um animado forró.

- Partida de Mataurá (08.01.2012)

O lance era mais curto, aproximadamente de 65 km, mas resolvi sair cedo aproveitando a lua. Logo na saída da Foz do Mataurá, o Rio inflete para a esquerda num ângulo de 90° ao mesmo tempo em que se comprime entre as margens aumentando sensivelmente a correnteza e provocando redemoinhos e banzeiros já que as ondas, acompanhando a corrente, se chocam contra o enorme barranco e retornam provocando um perigoso turbilhonamento. Felizmente ninguém resolvera me acompanhar, de caiaque, logo cedo; eu precisava, nesta hora, de toda a atenção concentrada no meu deslocamento apenas. O fétido jacaré-açu morto que encontráramos, na véspera, estava descendo o Rio, felizmente minha velocidade era bem maior e logo me vi livre do ar nauseabundo que o cercava.

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A meio caminho, uma voadeira veio na minha direção, seus tripulantes tinham participado dos folguedos da Comunidade Maravilha e estavam curiosos a respeito de minha viagem, respondi às suas perguntas e continuei, célere, minha jornada. O Comandante Mário resolveu me acompanhar em dois trechos, a velocidade agora oscilava entre 15 e 16 km/h, ele precisou voltar ao Piquiatuba por duas vezes tendo em vista que alguns locais exigiam cautela redobrada na condução do barco a motor. Chegamos a Nova Aripuanã exatamente às dez horas, depois de 4h30 de navegação. Havíamos quebrado nosso recorde de velocidade média, atingimos 14,44 km/h. Brinquei com meu filho e a tripulação, que esta etapa, não dera tempo nem mesmo de aquecer o Corpo, tão rápido fora o deslocamento.

- Nova Aripuanã (08.01.2012)

Depois do almoço, procuramos a Polícia Militar que me indicou o Hotel do Tio Zé para me hospedar. Mais tarde, seguindo a orientação do Walter Filho, procuramos o Ir:. Newtinho (Newton Aroucha Filho), no seu Posto de Combustível. O Newtinho contatou o Prefeito que, imediatamente, nos procurou e nos levou até um encontro das 32 Comunidades da Reserva Juma, coordenado pela Amarjuma que estava acontecendo na cidade. O Prefeito Aminadab Meira de Santana foi interpelado sobre diversas questões como educação, merenda escolar, saúde e transporte e a todas respondeu com muita serenidade. A administração esta conseguindo recursos através de créditos de carbono que deverão dobrar o orçamento da Prefeitura para o ano que vem. Aminadab Santana prometeu aplicar 90% destes recursos na área rural.

- Nova Aripuanã (09/10.01. 2012)

Logo de manhã, acompanhamos o Prefeito Aminadab nas suas andanças pela cidade, tomamos café na sua residência, visitamos a Prefeitura e as Secretarias, onde pudemos observar a falta de comprometimento com o trabalho por parte da maioria de seus Secretários, forçando o Prefeito a intervir em questões inerentes a cada uma das pastas.

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Depois do sol... (Cecília Meireles)

Fez-se noite com tal mistério, Tão sem rumor, tão devagar,

Que o crepúsculo é como um luar Iluminando um cemitério...

Tudo imóvel... Serenidades... Que tristeza, nos sonhos meus! E quanto choro e quanto adeus Neste mar de infelicidades!

Oh! Paisagens minhas de antanho... Velhas, velhas... Nem vivem mais... — As nuvens passam desiguais, Com sonolência de rebanho...

Seres e coisas vão-se embora... E, na auréola triste do luar, Anda a lua, tão devagar, Que parece Nossa Senhora

Pelos silêncios a sonhar ...

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Município de Nova Aripuanã, AM

Só se ama as coisas que se conhece e entende... Só lutamos e defendemos o que amamos. (Thiago de Mello – Poeta Amazonense)

O Município de Novo Aripuanã foi formado a partir de territórios de Borba e Manicoré. Os registros das primeiras incursões no Rio Madeira datam de 1637, quando aconteceu a Expedição de Pedro Teixeira, que partiu de Belém do Pará e alcançou o Vice Reino de Quito. Os habitantes primitivos da região eram os índios Torás, Barés, Muras, Urupás e Araras, entre outros.

- Cronologia Histórica

1637 - vem à região a expedição de Pedro Teixeira.

1840 - o paraense Torquato Pereira de Magalhães, por volta dos anos 1840/1850 criou, na boca do Rio Aripuanã, afluente da margem direita do Rio Madeira, um pequeno povoado constituído por sua residência, uma Capela e um armazém. Torquato comercializava mercadorias procedentes de Manaus e produtos oriundos de seus seringais localizados nos Lagos Araçazinho e Paraíso e no Rio Arauá. Devoto de São Vicente, resolveu denominar o lugar de São Vicente da Casa Grande, atualmente Cidade de Novo Aripuanã.

1955 - a Lei Estadual n° 96, de 19 de dezembro, cria o Município de Novo Aripuanã, desmembrado dos municípios de Borba e Manicoré, e constituído pelo território dos Distritos de Foz do Aripuanã e Sumaúma, do primeiro; e dos Sub-Distritos de Alvorada, Manicorezinho e Itapinima, do segundo, tendo como sede a Vila de Foz do Aripuanã, elevada à categoria de cidade.

1956 - no dia 10 de fevereiro, ocorreu a instalação do Município, sendo seu primeiro prefeito o Sr. Wilson Paula de Sá.

1981 - com a Emenda Constitucional n° 12, de 10 de dezembro, Novo Aripuanã perde parte de seu território em favor do novo Município de Apuí.

- Aspectos Físicos e Geográficos

Localização: está a 225 km em linha reta e 300 km via fluvial da capital do Estado, e limita-se com os municípios de Borba, Manicoré e o Estado do Mato Grosso. As coordenadas cartesianas de Novo Aripuanã são 5°07’26”S e 60°23’15”O. O Município possui uma área territorial de 26.956 km² e uma população, segundo o censo de 2010, de 21.389 habitantes, dos quais 65% residem na zona urbana 35% na zona rural. A temperatura média é de 28,5°C e sua altitude são de 40 m acima do nível do Mar.

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- Economia

Setor Primário

Sua produção agropecuária é baseada no cultivo da mandioca, abacaxi, arroz, feijão, cana-de-açúcar, juta, melancia, melão e milho, abacate, banana, cacau, laranja, limão, manga e tangerina. A pecuária, representada pela criação de bovinos e suínos, não é muito representativa para a formação econômica do setor, mas encontra-se em franco desenvolvimento. A pesca, embora abundante, é praticada artesanalmente e capaz de atender apenas à subsistência familiar. A avicultura é desenvolvida, em moldes domésticos.

Extrativismo Vegetal: desponta como o suporte da economia local, voltado à exploração de castanha, seguindo-se borracha, gomas não elásticas, madeira, óleo de copaíba e essência de pau-rosa.

Setor Secundário

Indústrias: usina de essência de pau-rosa, estaleiro, olarias, marcenarias e padarias.

Setor Terciário

Comércio: varejista e atacadista.

Serviço: hotéis, restaurantes, agências bancárias e oficina mecânica.

- Cultura

Acontece, em agosto, o Fest Lendas, o evento cultural mais importante de Novo Aripuanã, um verdadeiro show de cultura e arte que já ganhou projeção estadual através da divulgação em rádios e TVs. O Festival conta com a apresentação de quadrilhas e cirandas, atingindo a apoteose com a apresentação das lendas mais importantes do Município, Lenda do Apurinã, Lenda do Jurupari e Lenda do Tucumã. As Lendas são apresentadas na arena do Centro Cultural numa radiante mescla de ritmos e cores e, após a apresentação delas, o Centro Cultural é invadido pelas cirandas e quadrilhas que complementam o espetáculo motivando as torcidas rivais.

Eventos

- Festival de Música de Novo Aripuanã – FEMUNA (25 a 27 de setembro)

- Festejos de Nossa Senhora da Conceição (29.11 a 09.12)

- Aniversário do Município (19 de dezembro)

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- Reserva do Juma e os Créditos de Carbono

A Reserva de Desenvolvimento Sustentável do Juma (RDS Juma), Nova Aripuanã, AM, recebeu a certificação de que a sua manutenção evita a emissão de gases do efeito estufa, e contribui para impedir o aquecimento global. Estudos afirmam: até 2050, a preservação da RDS Juma evitará uma poluição equivalente a 189 milhões de toneladas de CO2, o que representa, aproximadamente, um quarto da poluição emitida pela Inglaterra em um ano.

Créditos de carbono (REDD)

A preservação das florestas como meio de evitar o desmatamento determina um valor equivalente em gás carbônico conhecido como REDD (em inglês, Reduce Emissions for Deforestation and Degradation, ou Redução de Emissões para o Desmatamento e Degradação).

Bolsa Floresta

A RDS Juma possui uma área de 5.896 km² onde vivem, legalmente, cerca de 300 famílias praticando agricultura, pesca e extração de produtos da floresta. Esta população recebe o auxílio da Bolsa Floresta, Programa do Governo do Estado do Amazonas, que estimula as populações, que vivem dentro de áreas protegidas, a conservá-las. km²

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Indômitus (Cassiano Ricardo)

O mar é uma esmeralda suja. Recifes de coral repontam como flores de sangue salpicado de espuma.

(Coisa que explica naturalmente sangue róseo dos náufragos.)

As espadas dos peixes aguerridos (os espadartes) trançam cintilações de prata

em campo blau, como num escudo. O escudo de Netuno contra o casco do Indômitus.

A arte de navegar entre espadas não é tão fácil, senão a mais oscilante das artes.

Não consta da rosa-dos-ventos...

Se bem que uma rosa-dos-ventos é rosa mas apenas no nome. Antes, a chamaremos de mal-me-quer

até Dumquerque.

Indômitus está dançando agora entre duas espécies de estrelas.

A hora não é pra considerações em torno do que possa acontecer.

É a hora do sangue-frio. Porque os peixes,

como os capitães, são animais de sangue-frio.

A hora é do vento pela proa, ou a maubordo (não bombordo). Nasce uma flor no mastro, um flama (não flâmula).

Indômitus então navega em plena rosa cega.

Uma fulguração súbita escreve no ar uma frase. Thamuz, Thamuz, panmegas tethneka. Fulmotondro. O comandante está dizendo à sua maruja que não há

no dicionário uma palavra mas bonita do que arquipélago.

Trinta pombos azuis em formação geométrica voltarão ao navio.

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Golfinhos Mágicos da Amazônia

O Madeira, como os demais amazônicos caudais, possui um encantamento próprio: suas águas fluem céleres buscando o Rio-Mar, nas suas margens ribeirinhos hospitaleiros nos saúdam alegremente e os menos tímidos nos alcançam de voadeira e convidam-nos para um lanche ou almoço; os enormes gigantes da floresta, tombados, são arrastados pela fria correnteza, transformando-se em verdadeiros aríetes contra os cascos das embarcações, os pequenos afluentes pululam de vida, mas nada disso se compara ao prazer que experimentamos, eu e meu filho João Paulo, de sermos acompanhados pelos amigos golfinhos.

Desde minha primeira descida pelo Solimões, em 2008, estes simpáticos cetáceos aparecem nos momentos certos, seja para afastar o cansaço quando este começa a tomar conta do Corpo, seja para nos orientar quando existe alguma dúvida quanto à melhor rota a ser seguida ou, ainda, simplesmente para nos alegrar. Este artigo é uma ode de agradecimento a estes gentis companheiros das águas.

- Golfinhos do Lago Pebas

A maioria dos especialistas defende a tese de que os seus ancestrais penetraram na Bacia Amazônica pelo Pacífico nos tempos da Pangea. Naqueles tempos, o Rio Amazonas corria para Noroeste e desaguava no Pacífico; mais tarde, quando os continentes se separaram, suas águas foram barradas pela Cordilheira dos Andes que formaram, na grande depressão Amazônica, um formidável manancial chamado Lago Pebas. Estes formidáveis seres foram sofrendo adaptações através dos tempos até se transformarem em espécies endêmicas. Hoje sua distribuição se verifica na maioria dos Rios do Norte da América do Sul, em uma área de 5 milhões de km².

Pangea ou Pangeia - nome dado ao continente que, segundo a teoria da deriva continental, existiu até 200 milhões de anos, durante a era Mesozoica e que, nessa altura, começou a se fragmentar. (Nota do Autor)

Lago Pebas - há aproximadamente 11 milhões de anos, a bacia amazônica estava submersa num grande Lago (Pebas) que tinha saída para o Oceano Pacífico. Com a deriva dos continentes e a consequente elevação da Cordilheira dos Andes, as águas ficaram temporariamente represadas até que passaram a correr para leste, formando a bacia amazônica e o Rio Amazonas desaguando no Oceano Atlântico. A drenagem possibilitou que algumas das terras submersas aflorassem. (Nota do Autor)

- Boto Vermelho (Inia geoffrensis)

Os machos chegam a atingir 2,55 metros e pesar 185 quilos, enquanto as fêmeas 2,15 metros e 150 quilos. Diferente de seus parceiros marinhos, possui um Corpo robusto; em contrapartida, por não possuir as vértebras cervicais fusionadas, é capaz de movimentar a cabeça em todas as direções, possuindo também uma flexibilidade muito grande que lhe permite manobrar, com facilidade, entre as raízes e galhos dos igapós.

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O nascimento, na Amazônia Brasileira, após um período de gestação de aproximadamente 11 meses, ocorre no período da vazante, agosto e setembro, quando há abundância de peixes. Os filhotes nascem sem dentes, com uma média de 90 cm e 13 quilos, e são amamentados durante mais de dois anos. O boto é um exímio nadador e sua velocidade de deslocamento normal é de 1,5 a 3,2 km/h chegando, em alguns casos, a atingir de 14 a 22km/h. Por mais de uma vez fomos acompanhados por estes animais magníficos e medimos velocidades que variaram de 12 a 15 km/h. O boto é um animal predominantemente solitário, anda aos pares e mais raramente em grupos de mais de dois indivíduos.

- Boto Tucuxi (Sotalia fluviatilis)

Com o nome vulgar herdado dos índios Mayanas (tucuchi-una), o tucuxi é uma miniatura do golfinho-nariz-de-garrafa (tursiops truncatus) com um comprimento médio de 1,46 m e peso médio de 50 quilos. O tucuxi é endêmico da bacia Amazônica e sua distribuição é limitada, ao contrário dos botos, pelas corredeiras de alguns dos principais afluentes do Amazonas, como o Negro (Cachoeira de São Gabriel), o Madeira (Cachoeira Teotônio) e o Xingu (Cachoeira de Belo Monte). O nascimento ocorre após um período de gestação de aproximadamente 10 meses, no período da vazante na Amazônia Central, entre outubro e novembro, e os filhotes nascem com uma média de 77 cm e 11 quilos.

- Rio Madeira

O Rio Madeira, afluente da margem direita do Rio Amazonas, banha os estados de Rondônia e do Amazonas e tem um comprimento total aproximado de 1.450 km. Possui uma extensão navegável de 1.056 km entre a sua Foz no Rio Amazonas (AM) e a cidade de Porto Velho (RO). Tem uma profundidade mínima de 2 metros, principalmente no trecho entre a cidade de Humaitá (AM) e Porto Velho (RO), e máxima de 20 a 30 metros.

É navegável em toda sua extensão durante todo o ano, com atenção especial na estiagem (agosto a outubro) aos bancos de areias e pedrais, principalmente no trecho entre a cidade de Humaitá (AM) e Porto Velho (RO). Seu período de enchente vai de março a maio. Nos afluentes do Madeira vive uma subespécie de “boto endêmica” (Inia boliviensis) da bacia do Madeira a montante das Cachoeiras.

Por isso, há preocupação dos biólogos com o projeto dos Sistemas de Transposição de Peixes construídos nas Hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio. Estes sistemas deveriam continuar impedindo, como antes, que os botos, que vivem a jusante destes obstáculos naturais, pudessem utilizar, agora, estes sistemas para acessar águas de montante, comprometendo todo o ecossistema a montante das Hidrelétricas.

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- Golfinho Boliviano Fonte Eco: Giovanny Vera

O golfinho boliviano Inia boliviensis compartilha muitas semelhanças anatômicas com a espécie Inia geoffrensis. À diferença do gênero Sotalia, que são os golfinhos que vivem em ambientes marinhos e de águas continentais, as espécies do gênero Inia vivem estritamente em água doce, por isso apresentam algumas adaptações ao ambiente em que vivem. Manuel Ruiz Garcia, biólogo espanhol pesquisador de golfinhos na América do Sul, explica que algumas das características notáveis do Inia boliviensis são o tamanho médio da população, que é ligeiramente menor que o tamanho médio dos botos-vermelhos que existem no Peru e no Brasil.

Outra diferença é a cor, já que o golfinho boliviano é mais claro, o que para alguns pesquisadores é provavelmente devido à temperatura, transparência da água, atividade física e da localização dos indivíduos. “É um cinza mais escuro que caracteriza as populações de outras localidades. Estes animais são de menor comprimento, mas certas partes do Corpo, como o pescoço ou o peito, são mais grossas”, diz Ruiz García, e continua: “Esses golfinhos bolivianos têm um maior número de dentes e parece que a capacidade craniana é menor do que o encontrado em outras formas de golfinhos de Rio”. Na Bolívia, este golfinho endêmico do país tem sua distribuição nos Rios da bacia amazônica, nos departamentos de Cochabamba, Santa Cruz, Beni e Pando.

- Associações

Embora não interajam de forma direta, os grupos se aproximam, em consequência da busca por alimento. Foram observados grupos de tucuxis repelindo botos e, também, um tucuxi adulto brincando com um filhote de boto. Muitas vezes, tucuxis e gaivotas se alimentam na mesma região, embora não haja competição entre eles, já que as gaivotas comem peixes bem menores.

- Lenda do Boto Fonte: Altino Berthier Brasil

Conta a lenda que o boto encontrado nos Rios da Amazônia se transforma em um belo e elegante rapaz durante a noite, quando sai das águas à conquista das moças. Elas não resistem à sua beleza e simpatia e caem de amores por ele. O Boto também é considerado protetor das mulheres pois, quando ocorre algum naufrágio em uma embarcação em que o boto esteja por perto, ele salva a vida delas, empurrando-as para as margens dos Rios.

As mulheres são conquistadas pelo boto quando vão tomar banho ou mesmo nas festas realizadas nas Cidades ribeirinhas. Os Botos vão aos bailes e dançam alegremente com elas, que logo se envolvem com seus galanteios e não desconfiam de nada. Apaixonam-se e engravidam deste rapaz. É por esta razão que ao Boto é atribuída a paternidade de todos os filhos de mães solteiras.

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Reza a lenda que o boto costuma perseguir as mulheres que viajam pelos Rios e inúmeros Igarapés; às vezes, tenta virar a canoa em que elas se encontram e suas investidas contra a embarcação se acentuam quando percebem que há mulheres menstruadas ou mesmo grávidas. Esse particular é curioso, e devemos observar que, em relação à mulher menstruada, há uma série de alusões e tabus, que realmente servem de vetor para certas atitudes e crenças populares. Algumas pessoas confessaram temer viajar nos pequenos “cascos” ou “montarias”, quando nelas está uma mulher “incomodada”.

O boto é o grande encantado dos Rios que, se transformando num guapo rapaz, todo vestido de branco e portando um chapéu - para esconder o furo no alto da cabeça, por onde respira - percorre as vilas e povoados ribeirinhos, frequenta as festas e seduz as moças, quase sempre engravidando-as. Há, inclusive, estórias em que a moça é fecundada durante o sono...

Para se livrarem da “influência” do bicho, os caboclos vão buscar ajuda na magia, apelando para os curandeiros e pajés. O primeiro, com suas rezas e benzeduras, exorciza a vítima, e o segundo “chupa” o feto do ventre da infeliz. É esse Don Juan caboclo, o sedutor das matas, o pai de todos os filhos cuja paternidade é “desconhecida”, que deu origem à deliciosa expressão regionalista - Foi o boto, sinhá!

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Rumo a Borba

O grande amigo e repórter Walter Filho, de Manicoré, me telefonou querendo saber quando chegaria a Borba e lhe informei que às 11h45 do dia 12.01.2012, e que partiríamos, como de costume, às 05h15, de 11.01.2012. Não era possível vencer a distância de 150 km, entre Nova Aripuanã e Borba, em apenas um dia.

- Partida de Nova Aripuanã (11.01.2012)

A navegação foi relativamente lenta nas proximidades da cidade onde o Rio Madeira se divide em dois braços que contornam uma pequena Ilha frontal à cidade. O dia amanhecera com uma leve cerração e uma garoa fina e bastante agradável. O João Paulo começou a me acompanhar quando eu já remara em torno de 20 km; o “surfista” está melhorando a olhos vistos, já não briga tanto com o remo e está aprendendo, aos poucos, a linguagem das águas. Elas, e não o canoísta, que determinam a melhor rota, as águas devem ser acariciadas pelos remos e não violentadas por eles, o navegante deve integrar-se totalmente à sua fluidez captando sua energia e usando-a a seu favor. Remamos energicamente e sem paradas e fizemos nossa parada definitiva, por volta do meio-dia em uma das primeiras comunidades do Município de Borba. O pequeno sítio era um capricho só, construções limpas e pintadas, terreno capinado e plantações bem cuidadas, chamou-nos a atenção, em especial, o enorme curral que abrigava dezenas de jabutis. Fizemos uma troca de frutíferas por alguns gêneros alimentícios.

- Partida para Borba (12.01.2012)

Parti no horário costumeiro, prevendo uma única parada a meio caminho em um afluente de águas negras que aparecia na fotografia aérea do Google Earth. Lá chegando, verificamos que a foto havia sido feita na estiagem do Madeira, o pequeno afluente fora invadido pelas barrentas águas do Madeira, sendo possível reabastecer de água limpa a caixa d’água do Piquiatuba.

Os ventos fortes que surgiram, a partir desta rápida parada, retardaram, sensivelmente, nossa progressão. Quanto mais nos aproximávamos de Borba mais intensa a ventania e, consequentemente, os banzeiros. As ondas ainda não tinham ultrapassado os 60 centímetros de altura, não exigindo, portanto, a colocação da saia de “neoprene” para impedir que as águas invadissem o cockpit.

Aportamos exatamente às 11h45 e, depois do almoço, fui com o João Paulo até o Banco do Brasil. Infelizmente os caixas eletrônicos não permitiam o saque, e uma estagiária nos informou que somente no dia seguinte, às oito horas, o saque poderia ser feito. O Banco do Brasil, ao contrário do que se pensa, não é a organização bancária mais presente na Amazônia Brasileira, deixando de cumprir uma importante função social que deveria nortear sua administração.

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Logo depois, fomos procurar um hotel onde eu pudesse me concentrar para escrever os artigos. As informações contraditórias e a péssima apresentação dos mesmos eram impressionantes, resolvi voltar para o barco. Mais tarde, o João Paulo descobriu uma instalação decente onde passei minha primeira noite em Borba.

- Borba (13.01.2012)

Acordei cedo e, depois do café, fui até o Banco do Brasil fazer o saque e retirar um extrato para informar ao meu pessoal de apoio sobre as novas contribuições. Felizmente mais alguns companheiros investiram no Projeto embora as contribuições até agora só tenham alcançado os 33% do montante total necessário para esta descida de 2.000 km de Porto Velho, RO, a Santarém, PA.

As obras de contenção, jardins e a bela Igreja conferem à cidade uma visão bastante agradável para quem a acessa pelo Rio. Infelizmente, como a maioria das concentrações urbanas amazônicas, certas pessoas consideram as calçadas como seu bem particular. Negociantes colocam seus produtos impedindo a passagem de pedestres, moradores chegam a colocar cercas para demarcá-las como “sua” propriedade, e condutores irresponsáveis estacionam seus veículos nestes passeios “públicos”.

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Município de Borba, AM

Hino de Borba

Originou-se da Aldeia de Trocano Para o povo brasileiro uma conquista Pelo Frei João Sampaio foi fundada

Do Rio Madeira o mais célebre Catequista.

Borba a nova pioneira Amazonense Por Mendonça Furtado instalada És mãe de Monsenhor Coutinho

Borba és forte resistindo a Cabanagem.

Borba! Borba! Borba! Salve! Os teus séculos de glória! Salve! Os teus valentes Muras! Reluzentes na história! (...)

- A Borba Portuguesa Fonte: Dicionário Enciclopédico das Freguesias

Borba é Povoação antiquíssima cuja fundação alguns autores atribuem aos Galo-Celtas. Esteve sob o domínio romano, godo e árabe, sendo conquistada por D. Afonso II em 1217 e povoada pelo mesmo Rei. Em 15 de junho de 1302, D. Dinis concedeu-lhe o primeiro Foral, constituindo-se Borba como Conselho e libertando-se do de Estremoz. Teve novo Foral dado por D. Manuel I em 1° de junho de 1512.

Carta Foral: diploma, também designado por Foral, concedido pelo Rei ou por um senhor laico ou eclesiástico, a um determinado local, dotando-o de autoridade legítima na regulação da vida coletiva da população.

Foi também D. Dinis quem promoveu o amuramento acastelado da Povoação. O castelo dispunha-se em planta quadrilateral e a sua construção obedeceu ao sistema corrente das fortificações similares da região. De grossa alvenaria, tinha amuramento espesso em altura normal, coroado por merlões (intervalos dentados dos parapeitos que guarnecem as muralhas) góticos e de largo adarve (muro de Fortaleza) que corria a muralha. O fosso, pouco profundo, desapareceu com a construção do casario que se foi desenvolvendo na face exterior. Pelos inícios do Séc. XVIII, o Governo militar da Província determinou envolver a Vila por um campo entrincheirado, com fossos, estacaria e estradas cobertas, obra que foi apenas esboçada e de que ainda existiam vestígios em 1766. Do castelo, edificado ou remodelado do Séc. XIII, conserva-se a torre de menagem e duas portas, a de Estremoz e a do Celeiro.

Torre de Menagem: nos castelos portugueses, a torre de menagem é mais alta do que as demais, permitindo uma visão ampla dos arredores e do perímetro da muralha. Desta forma, os defensores do castelo podiam utilizar o coroamento de ameias no topo da torre de menagem como base de tiro direto com alcance em todo o perímetro do castelo. (Nota do Autor)

Borba foi lugar de muitos acontecimentos notáveis da nossa história. Um dos principais foi o enforcamento do Governador do castelo, Rodrigo da Cunha Ferreira, e de mais dois Capitães portugueses da guarnição, no verão de 1662, após a invasão vitoriosa do exército de D. João da Áustria. Este

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teria mandado cometer o atroz ato como vingança pela morte de três Capitães, um Sargento e 20 Soldados das suas forças, além de 50 feridos. A memória dos povos guardou a efeméride na tradição toponímica, com a “Rua dos Enforcados”, que passou depois a chamar-se Rua Direita. Não contente com a sua represália, D. João da Áustria mandou ainda incendiar os Paços do Conselho e o Cartório Municipal, perdendo-se todos os manuscritos antigos da história de Borba.

Em 1383-1385, também Borba se viu envolvida nas campanhas da Independência, com destaque para os acontecimentos transcorridos durante a ocupação dos aliados ingleses do Duque de Lencastre e a cilada de Vila Viçosa, onde perdeu a vida Fernão Pereira, irmão de D. Nuno Álvares Pereira, que fizera Quartel General em Borba e foi seu primeiro donatário, por mercê de D. João I. Em 1483, D. Afonso Henriques, filho de D. Fernando da Trastâmara, senhor de Barbacena, foi amerceado (favorecido) por D. João II com a Alcaidaria de Borba, então confiscada aos duques de Bragança.

Em 1665, Borba esteve ocupada por três regimentos de infantaria e um terço de cavalaria, e a população sofreu novamente o pânico da terrível invasão, que desmoronou no campo de Montes Claros, com a derrota dos exércitos de Filipe IV. Em 1708, o General de artilharia João Furtado de Mendonça, Governador da cidade de Elvas, era Comendador de Borba. Em junho de 1711, a Vila sofreu os incômodos da ocupação militar do General espanhol D. Domingos de Ceo, que impôs à população um elevado imposto de guerra. Durante a Guerra Peninsular, levantou-se em Borba um grupo de milicianos que figurou na defesa de Évora, em 29 de junho de 1808. Pouco depois, entre 1809 e 1811, na Vila se alojou uma Brigada escocesa do exército anglo-luso de Beresford.

- Missão de Trocano Fonte: Site da Prefeitura de Borba

A Missão de Trocano foi o Berço da cidade de Borba, AM, fundada pelo Jesuíta Português o Padre João Sampaio, membro da Companhia de Jesus, quando inicia sua vida missionária na Amazônia com objetivo de reanimar a fé católica e difundir o catolicismo. João Sampaio começou em Canumã e Abacaxis por volta de 1712, mais tarde subiu o Rio Madeira catequizando índios, erigindo casas, igrejas e formando núcleos de povoações.

Fundou a Aldeia de Santo Antônio das Cachoeiras entre o Rio Jamari e a primeira Cachoeira do Madeira. Os superiores do Pará achavam esta Aldeia demasiado longe e exposta aos ataques dos índios selvagens, ordenou que se retirassem dela para mais perto da sede da Capitania, e se estabeleceram no lugar denominado Trocano. Com a mudança, não se viram, porém, livres dos selvagens, que tiveram algumas vezes o atrevimento de investir contra a Aldeia e, para cautela de semelhantes insultos, viviam os Missionários em casas entrincheiradas, para nelas se defenderem de alguma invasão.

A Aldeia de Trocano, que era então a mais alta Povoação do Rio Madeira, teve apenas 14 ou 15 anos de vida Jesuítica. O Padre Aleixo Antônio trouxe para a Aldeia muitos índios do Rio Negro, pois já tinham boas casas de residência e angariavam-se fundos para a construção de uma Igreja.

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Pela Carta Régia de 3 de março de 1755, cria-se a Capitania de São José do Rio Negro, que originou o Estado do Amazonas. O Governador e Capitão General do Grão Pará e Maranhão, Francisco Xavier de Mendonça Furtado veio pessoalmente a Trocano e foi recebido por Anselmo Eckart, o último Missionário da Aldeia.

Em 1° de janeiro de 1756, convocando os índios ao som das trombetas, fez-lhes um oficial da escolta, perito na linguagem tupi, uma prática insinuando-lhes que, para o futuro, viveriam em outros costumes, outra disciplina e outra lei. Em seguida, entraram os selvagens, ajudados por Soldados, para fazer uma grande derrubada e, no meio da clareira, em pouco tempo aberta, elevaram à feição de coluna, um tosco madeiro; o pelourinho, símbolo das franquias municipais. O Governador Mendonça Furtado inaugurou a Vila de Trocano que nomeou por Borba a Nova. Essa foi, portanto, a primeira Vila da recém-criada Capitania do Rio Negro, hoje o Estado do Amazonas. Alguns vivas ao soberano, e os tiros de duas peças de artilharia existente na missão, saudaram o levantamento desta a dignidade de Vila.

- Cronologia Histórica da Borba Brasileira

1785 - Borba cultivava e exportava para Belém, café e tabaco.

1833 - os Muras, insuflados pelos Cabanos, invadem a Vila à procura dos portugueses ali residentes. A população, sobressaltada, fugiu ao combate, refugiando-se nos arredores da Vila.

No dia 25 de junho, Borba perde a categoria de Vila, passando a Freguesia com o nome de Santo Antônio de Araretama.

1835 - no período de 1835 a 1839, Borba reage e vence os rebeldes Cabanos.

1856 - a Lei Provincial n° 71, de 04 de setembro, transfere a subordinação da Freguesia de Borba do Termo Judiciário de Maués para o de Manaus.

1857 - com a Lei Provincial n° 73, de 10 de dezembro, Borba volta à condição de Vila e, consequentemente, sede do Município.

1858 - com a Lei Provincial n° 92, de 06 de novembro, Borba perde a condição de Vila.

1877 - com a Lei Provincial n° 362, de 04 de julho, Borba volta à condição de Vila e volta a ser sede do Município.

1878 - a Lei n° 386, de 14 de outubro, cria a Comarca do Rio Madeira formada por Borba e Manicoré.

1886 - com a Lei Provincial n° 715, de 28 de abril, Borba perde, novamente, a condição de Vila e, é extinto o Município.

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1888 - a Lei Provincial n° 781, de 26 de setembro, é criado, definitivamente, o Município de Borba, desmembrado do de Manaus.

1891 - a Lei Provincial n° 14, de 10 de setembro, cria o Termo Judiciário.

1894 - a Lei Estadual n° 65, de 13 de agosto, cria a Comarca de Borba.

1895 - é instalada a Comarca, no dia 13 de março.

1911 - na divisão administrativa, o Município se compõe de seis Distritos, que são: Borba, Araras, Alto Aripuanã, Canumã, Abacaxis e Rosarinha.

1913 - é extinta a Comarca, no dia 30 de outubro, subordinando o Termo Judiciário a Manaus.

1916 - a Lei Estadual n° 844, de 14 de fevereiro, restaura a Comarca de Borba.

1921 - a Lei Estadual n° 1.126, de 05 de novembro, extingue a Comarca e a subordina a Manicoré.

1928 - a Lei Estadual n° 1.327, de 02 de outubro, é restaurada definitivamente a Comarca de Borba.

1928 - o Decreto Estadual n° 68, de 31 de março, eleva a sede do Município à categoria de Cidade.

1929 - é reinstalada a Comarca no dia 04 de janeiro.

1933 - o Município é formado por apenas um Distrito.

1938 - o Decreto-Lei Estadual n° 176, de 1° de dezembro, cria os Distritos de Axinim, Canumã, Foz do Aripuanã e Sumaúma; e perde parte de seu território para o Município de Maués.

1955 - com a Lei Estadual n° 96, de 19 de dezembro, Borba perde os Distritos de Foz do Aripuanã e Sumaúma para o Município de Novo Aripuanã e parte do Distrito Sede para o também novo Município de Autazes, adquirindo a configuração atual.

1990 - é aprovada e promulgada a Lei Orgânica de Borba, no dia 31 de março.

1993 - a Lei Municipal n° 255, de 09 de setembro, cria a Bandeira e o Brasão de Borba.

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- Aspectos Físicos e Geográficos

A sede do Município está situada na margem direita do Rio Madeira, a 150 km em linha reta e 215 km via fluvial da capital do Estado. Limita-se com os municípios de Autazes, Careiro, Beruri, Manaquiri, Nova Olinda do Norte, Apuí, Maués, Manicoré e Novo Aripuanã. As coordenadas cartesianas de Borba são 4°39’21”S e 59°55’01”O.

Área Territorial: 44.259 km².

Clima: Tropical chuvoso e úmido.

Temperatura: as temperaturas oscilam, normalmente, entre a máxima de 38°C e mínima de 20°C e a umidade relativa do ar entre 80% e 85%.

Altitude: 30 m acima do nível do Mar.

- Economia

Setor Primário

Agricultura: mandioca, arroz, feijão, juta, milho, abacate, banana, laranja e tangerina. A produção é para o abastecimento local e o excedente para municípios vizinhos.

Pecuária: bovinos, suínos, ovinos e caprinos. Atividade relativamente expressiva para o corte e exportação para municípios do estado e intercâmbio com Mato Grosso.

Pesca: com alguma produtividade pra exportação regional.

Extrativismo Vegetal: borracha, gomas, madeira, castanha-do-pará, óleo de copaíba, seringueira (látex), pau-rosa (essências), além de madeira para a indústria da construção e mobiliária. É uma atividade bastante desenvolvida, constituí-se na principal fonte de renda do Município.

Setor Secundário

Indústrias: de alimentos, de mobiliário, de borracha (látex), de química, madeireira, de materiais de transporte e de produtos minerais não metálicos.

Setor Terciário

Comércio: varejista, atacadista, prestação de serviço e revenda de criação doméstica.

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- Turismo

O Rio Madeira é o mais importante afluente do Amazonas, em cuja margem direita está situada a cidade de Borba. Era chamado antigamente pelos naturais – Caiary – Rio branco, em homenagem as suas águas de cor leitosa. É mais largo e o mais baixo afluente do Amazonas, sendo, portanto, considerado uma atração turística.

- Riquezas Naturais

A flora constitui importante riqueza do Município, destacando-se a castanha-do-Brasil e a seringueira, além do pau-rosa e a copaíba. O Município é rico em minérios como: ferro, manganês, mica, ouro e mercúrio.

- Eventos Culturais

O mês de junho no Município de Borba é dedicado às comemorações tradicionais do padroeiro da paróquia, Santo Antônio.

- Aniversário do Município (01 de janeiro)

- Carnaval na Avenida (24 a 26 de fevereiro)

- Encontro Cultura com Participação Indígena (19 de abril)

- Festa do Jaraqui (18 a 20 de maio)

- Festejos de Santo Antônio de Borba (01 a 13 de maio)

- Festas Juninas (29 de junho)

- Festejos de Nossa Senhora das Dores (07 a 16 de setembro)

- Festival de Música de Borba – FEMUB (03 a 05 de outubro).

- Festejos de Nossa Senhora Imaculada Conceição (30.11 a 08.12)

- Festejo de Santa Luzia (09 a 13 de dezembro).

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Partida para Nova Olinda do Norte, AM

É muito melhor arriscar coisas grandiosas, alcançar triunfos e glórias, mesmo expondo-se à derrota, do que formar fila com os pobres de espírito,

que nem gozam muito, nem sofrem muito, porque vivem nessa penumbra cinzenta que não conhece vitória nem derrota.

(Theodore Roosevelt)

A distância de Nova Olinda do Norte era, pelo Google Earth, de pouco mais de 90 quilômetros. No planejamento inicial, eu previra dois dias de deslocamento, mas decidi fazer em um dia, contando com o tempo bom e a velocidade da correnteza.

- Partida de Borba, AM (14.01.2012)

O João Paulo apareceu, de madrugada, dizendo que tinha sido convidado por alguns novos amigos para um churrasco e que pretendia ficar mais um dia em Borba. Parti um tanto preocupado, deixando meu filho para trás. Lancei-me às águas, como o programado, por volta das 5h15, pronto para enfrentar o mais longo desafio do Rio Madeira, eu estava otimista, a primeira hora foi alvissareira, águas de Almirante, suave brisa e águas rápidas.

Depois de remar 15 km, minha proa apontou para enormes e carregadas nuvens negras no horizonte. A chuva começou pela margem esquerda e logo me atingiu por rajadas de vento de até 40 km por hora, uma chuva forte acompanhada dos inevitáveis “banzeiros”. As ondas não ultrapassaram os 60 cm, mas resolvi navegar próximo da margem direita, já que a visibilidade fora reduzida a uns 300 metros. O esforço agora era considerável, em virtude dos ventos de proa, torci para que o tempo melhorasse para não comprometer minha programação. O objetivo seria alcançado de qualquer maneira, fui doutrinado, na Academia Militar das Agulhas Negras, para não entregar os pontos e forçar coração, nervos, músculos, tudo, para atingir o alvo. Os óbices acontecem, mas devem ser encarados com naturalidade e ultrapassados com coragem e determinação, sempre mantendo o “foco” no objetivo a ser atingido.

Depois de navegar, aproximadamente 20 km, o Soldado Walter Vieira Lopes (Sub-Comandante do B/M Piquiatuba) resolveu acompanhar-me no caiaque do Mestre José Holanda. Durante a primeira hora, o Vieira Lopes dominou a arte da canoagem como bom marujo que é, enfrentando fortes ondas de proa e de través. As ondas acalmaram, o vento diminuiu consideravelmente e, como ele estivesse à minha frente, gritei para que ele aproasse a jusante de uma Ilha à nossa frente; o Vieira Lopes girou o Corpo para me ouvir melhor e virou o caiaque. Depois de tentar diversas vezes subir sem sucesso no caiaque, resolvi rebocá-lo até a margem. Foi uma progressão lenta, difícil e cansativa até uma margem repleta de canaranas. Viera Lopes retirou a água do caiaque e partiu célere para a margem direita do Rio. Somente depois de ultrapassarmos as pequenas Ilhas, avistamos o Piquiatuba comandado pelo Soldado Mário Elder Guimarães Marinho (Comandante do B/M Piquiatuba). Fui até a embarcação colocar uma camisa

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seca e renovar meu estoque de água de coco. O Vieira Lopes continuou mais um pouco e foi substituído, no caiaque, pelo Soldado Marçal Washington Barbosa Santos (Cozinheiro do B/M Piquiatuba).

Novamente a maestria dos nossos marujos na condução de uma embarcação a que não estavam absolutamente acostumados ficou patente. Faltavam apenas 26 km e resolvi imprimir um ritmo forte até Nova Olinda, acompanhado a par e passo pelo Marçal. A uns dez quilômetros de distância da cidade, o Marçal comentou sobre a ausência dos golfinhos (botos e tucuxis) no Baixo Madeira e, logo em seguida, como para atender a seu apelo, apareceram cinco enormes botos vermelhos. Os belos mamíferos aquáticos evoluíam muito próximos dos caiaques, por vezes nos assustando e nos acompanharam até as cercanias da cidade.

- Chegada em Nova Olinda do Norte, AM (14.01.2012)

Chegamos às das 12h55 depois de navegar 93 km em 7h40 a uma média próxima dos 12 km/h. O Mário ancorou no Porto do DNIT e conseguiu autorização do funcionário Charles Christian Sales para que ali permanecêssemos até segunda de manhã.

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Município de Nova Olinda do Norte, AM

Hino de Nova Olinda do Norte (Letra e Música: Elcileia Fonseca de Souza)

Às margens do Rio Madeira Ao longe se pode avistar Uma cidade hospitaleira

Ilhas e matas a deslumbrar Encanta os visitantes Vindos de todo lugar

Os filhos dispersos da terra Não esquecem de voltar.

Cheia de história e lenda Que no passado surgiu Nova Olinda do Norte Nossa terra varonil

Rios, Lagos e Igarapés. Ricos em pesca e paisagens

Caboclos que plantam e colhem As riquezas desta cidade

Nova Olinda tu és pujante

De belezas naturais Petróleo, potássio e salgema Suas riquezas minerais (...)

- Cronologia Histórica da Borba Brasileira

O nome Nova Olinda do Norte originou-se de Olinda, denominação da propriedade de Fulgêncio Rodrigues Magno, comerciante no Paraná do Urariá, e da expressão do Norte, acrescentada pelo Governador do Amazonas, Plínio Ramos Coelho, ao criar o Município. Habitavam primitivamente a região os índios: Turás, Muras, Mundurucus e outros.

1955 - pela Lei Estadual n° 96, de 19 de dezembro, o Município de Nova Olinda do Norte foi criado, com território desmembrado dos Municípios de Maués e Itacoatiara, com sede na localidade de Nova Olinda do Norte, elevada à categoria de cidade.

A história de Nova Olinda do Norte está estreitamente ligada à exploração do petróleo do Amazonas. No dia 13 de maio, jorrou petróleo em Nova Olinda. O Governador Plínio Coelho apareceu nas primeiras páginas dos jornais brasileiros com o seu terno de linho branco tingido com o petróleo que jorrou do poço pioneiro 1-NO-1-AM, da PETROBRAS. Nova Olinda ficou conhecida como a cidade do petróleo e chegou a ser visitada por dois Presidentes da República – Café Filho e Juscelino Kubitschek. Outras cinco perfurações foram feitas nas proximidades do poço pioneiro, nos dois anos que se seguiram a essa data histórica.

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O período de euforia e esperança teve, no entanto, curta duração. O petróleo voltou a jorrar no poço 2-NO-AM, mas a PETROBRAS, acatando argumento do famoso Relatório Link, alegou que o hidrocarboneto da região não tinha valor comercial e determinou o fechamento dos poços.

1956 - foi instalado, no dia 31 de janeiro, o Município de Nova Olinda do Norte.

- Aspectos Físicos e Geográficos

A sede do Município está situada na margem direita do Rio Madeira, a 138 km em linha reta e 144 km via fluvial da capital do Estado. Limita-se com os municípios de Maués, Borba, Autazes e Itacoatiara. As coordenadas cartesianas de Borba são 3°53’12,6”S e 59°05’11,8”O.

Área Territorial: 5.887 km².

Clima: Tropical chuvoso e úmido.

Temperatura: a temperatura média é de 27,3°C, e a umidade relativa do ar entre 80% e 85%.

Altitude: 30 m acima do nível do Mar.

- Economia

Setor Primário

Agricultura: tem sua maior expressão nas culturas temporárias e, dentre estas, a liderança cabe ao cultivo da mandioca, vindo a seguir: abacaxi, arroz, cana-de-açúcar, feijão, fumo, juta, malva, melancia, melão e milho. Entre as permanentes merecem registros: abacate, banana, cacau, laranja, limão, manga e tangerina.

Pecuária: os principais rebanhos são representados por bovinos e suínos, cuja produção, além de atender ao consumo local, é exportada para outros municípios, notadamente Manaus.

Pesca: praticada em moldes artesanais e dirigida principalmente para o consumo local.

Avicultura: desenvolvida em moldes domésticos.

Extrativismo Vegetal: a exploração dos recursos florestais no Município é baseada no extrativismo da borracha, do pau-rosa, coleta da castanha, essências oleaginosas (andiroba e copaíba), gomas não elásticas e frutas, que outrora absorvia um considerável contingente de trabalhadores rurais. Tem apresentado um processo de desaceleramento nessa atividade, mormente a borracha, face à política governamental para com a heveicultura nacional.

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Extrativismo Mineral: a par da comprovada existência de petróleo no Município, há em Nova Olinda ocorrências mineralógicas, detectadas e catalogadas pelos órgãos oficiais do Governo.

Foram descobertas, na década de 80, pela PETROMISA/PETROBRAS no Município de Nova Olinda do Norte, nas localidades de Fazendinha e Arari, reserva de silvinita de 1.002,3 milhões de toneladas, com teor médio de 18,5% de K2O equivalente, a maior jazida do mundo de silvinita.

A Presidente Dilma Rousseff afirmou, em março de 2011, que o Brasil vai explorar as jazidas de silvinita no Amazonas, de propriedade da PETROBRAS. A Presidente disse que o Brasil precisa buscar a autossuficiência na produção de fertilizantes, insumos essenciais na produção agrícola e que influenciam diretamente no preço dos alimentos.

Setor Secundário

Indústrias: olarias, serrarias, usina de beneficiamento de pau-rosa (essência), padarias e fábrica de móveis.

Setor Terciário

Comércio: estabelecimentos.

Serviço: hotel, supermercado, agências bancárias, restaurante, dentistas e consultório médico.

- Eventos Culturais

Festejos de São Sebastião (20 de janeiro)

Carnavolinda (04 de março)

Festejos de São José (15 a 19 de março)

Festival Folclórico – “Festa da Mandioca” (21 a 23 de agosto)

Festival das Frutas (04 de setembro)

FESTNON – Festival de Teatro de Nova Olinda do Norte (12 e 13 de setembro)

FECANON – Evento Musical, Artístico e Cultural (19 a 21 de setembro)

Festival da Cultura (24 e 25 de outubro)

Aniversário do Município de Nova Olinda do Norte (19 de dezembro)

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Canção do exílio (Casimiro de Abreu)

Se eu tenho de morrer na flor dos anos Meu Deus! não seja já;

Eu quero ouvir na laranjeira, à tarde, Cantar o sabiá!

Meu Deus, eu sinto e tu bem vês que eu morro

Respirando este ar; Faz que eu viva, Senhor! dá-me de novo

Os gozos do meu lar!

O país estrangeiro mais belezas Do que a pátria não tem;

E este mundo não vale um só dos beijos Tão doces duma mãe! (...)

Quero ver esse céu da minha terra

Tão lindo e tão azul! E a nuvem cor-de-rosa que passava

Correndo lá do sul!

Quero dormir à sombra dos coqueiros, As folhas por dossel;

E ver se apanho a borboleta branca, Que voa no vergel!

Quero sentar-me à beira do riacho

Das tardes ao cair, E sozinho cismando no crepúsculo

Os sonhos do porvir! (...)

Quero morrer cercado dos perfumes Dum clima tropical,

E sentir, expirando, as harmonias Do meu berço natal!

Minha campa será entre as mangueiras,

Banhada do luar, E eu contente dormirei tranqüilo

À sombra do meu lar!

As cachoeiras chorarão sentidas Porque cedo morri,

E eu sonho no sepulcro os meus amores Na terra onde nasci! (...)

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Rumo a Foz do Rio Madeira

- Rumo à Fazenda do Sr. José Holanda (16.01.2012)

Resolvi passar a última noite em Nova Olinda do Norte, nas confortáveis instalações do Palace Hotel. Precisava descansar para enfrentar o último lance que faltava do Rio Madeira e o Porto Hidroviário, onde aportara o Piquiatuba; com sua movimentação constante, não permitiria um sono reparador. Havia prometido ao grande Amigo e Mestre José Holanda que chegaria à sua Fazenda, a 78 km de distância, exatamente às onze horas e, para isso, precisava manter uma média de 13,8 km/h, um ritmo bastante forte para o final dessa 1ª Etapa da 4ª Fase do Projeto Desafiando o Rio-Mar.

Acordei às 4h45 e fui direto para o Porto. Às 05h30 partimos, eu e o Soldado Marçal Washington Barbosa Santos (Cozinheiro do B/M Piquiatuba), embarcado no caiaque “indomável” de propriedade do José Holanda. A correnteza forte, a ausência de troncos, as nuvens encobrindo o sol causticante, tudo conspirava para que atingíssemos nosso objetivo no tempo estipulado. O Marçal resolveu deixar o João Paulo remar comigo os últimos quinze quilômetros. Uma esperada garoa começou a cair refrescando nossos Corpos, o Grande Arquiteto, por intermédio de São Pedro, resolvera dar uma “forcinha” para que atingíssemos nosso objetivo com mais tranquilidade ainda. Chegamos às 11h01, um minuto além do programado para o tão esperado churrasco. O Mestre Holanda fora abastecer sua lancha e chegou logo em seguida. Degustamos uns saborosos jaraquis e carne de porco assados enquanto ouvíamos atentamente as histórias de sua vida.

Jaraqui (Prochilodus brama): peixe muito comum no Amazonas, o Corpo apresenta listras negras horizontais na parte superior da linha lateral, mais acentuadas na parte posterior. Semelhante ao curimatá. (Nota do Autor)

Sua biografia é um exemplo de luta e determinação de um homem que jamais se conformou, nunca se acomodou e que, se hoje tem condições de levar uma vida confortável, é porque o fez por merecer. É um privilégio poder dizer que sou seu Amigo e mais que isso que ele é, sem dúvida, um de meus Mestres. O Mestre perguntou a meu filho se ele estava satisfeito com o caiaque que ele emprestara e, como ele respondesse afirmativamente ganhou o caiaque de presente, ele já tinha deixado, também, em Itacoatiara, um carro para ficar à nossa disposição.

Por volta das 14 horas, partimos para Manaus, eu precisava conhecer a Ponte sobre o Rio Negro depois de pronta, checar alguns projetos rodoviários, visitar alguns diletos amigos em Manacapuru e Iranduba, comprar alguns livros e buscar bibliografia especializada na Biblioteca Pública. A ida também tinha um aspecto logístico importante: precisávamos reabastecer o Piquiatuba para continuar nossa jornada pelo Rio Amazonas, de Mauari, Costa do Amatari, AM, até Santarém, PA, renovar o estoque do rancho e trocar nossas roupas de cama por outras limpas já que as águas amareladas do Madeira tinham deixado nelas sua marca.

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- Irmão Rio

A sensação de navegar de madrugada é mágica, as luzes e as lembranças de Nova Olinda aos poucos foram ficando para trás e desvanecendo-se. As pás do remo mergulhavam carinhosamente nas águas tranquilas que mais pareciam um colossal espelho a refletir infindáveis emoções.

Redescobri o Madeira ao meu estilo, vasculhei impressões colhidas pelos “civilizados” desde o século XVII, extasiado aprendi com o engenheiro e escritor Manoel Rodrigues Ferreira a verdadeira história da “Ferrovia do Diabo”, tive a oportunidade, graças ao Jornalista José Carlos de Sá Júnior, de conhecer as obras e as características técnicas da Hidrelétrica de Santo Antônio, vivenciei com citadinos, ribeirinhos e garimpeiros suas experiências, suas histórias, seus sonhos.

Naveguei mais de 1.100 km do Rio Madeira durante 24 dias, dos quais 14 dias de navegação e 10 dias de estada em 5 cidades e 1 comunidade, e, em todo este período, ele foi meu Mestre e eu seu atento discípulo. Fizemos uma média de 45,8 km/dia se considerarmos os deslocamentos e as paradas e 78,5 km/dia se considerarmos apenas os dias de deslocamento.

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A Amazônia para os Negros Americanos

Temos um destino a cumprir, um “Destino Manifesto” sobre todo o México, sobre a América do Sul, sobre as Índias Ocidentais e Canadá.

(J.D.B. De Bow - De Bow’s Review)

Ao ler, recentemente, “A Amazônia para os Negros Americanos”, da historiadora paulista Nicia Vilela Luz, observamos que as articulações, os conchavos, os artifícios e pressões diplomáticas de toda ordem e o processo de “convencimento” de políticos e empresários brasileiros através de propinas ou oferta de cargos, regiamente remunerados em empresas multinacionais, em troca do controle das companhias estatais e privadas nacionais por estrangeiros não se alterou através dos tempos. Como não se alterou a determinação das grandes potências de dominar os demais países seja, a curto prazo, através da força, ou de seu poderio econômico a médio e longo prazo. O Brasil, pressionado pelos países hegemônicos interessados em manter seu “status quo”, aceitou sediar uma Copa que irá aumentar ainda mais sua Dívida Interna, hoje, em torno dos dois trilhões de reais.

- Fuga de Divisas

O Governo Federal faz alarde sobre o volume crescente de nossas exportações, mas a própria UNESCO reconhece que elas são em grande parte realizadas por empresas estrangeiras, que adquirem os produtos nacionais a um preço aviltante para desfrutar de consideráveis margens de lucro lá fora.

Nossas exportações de soja crescem vertiginosamente, mas a maior parte deste lucro é rateado entre transnacionais como a Bunge e a Cargyll, respectivamente quarta e sexta maiores exportadoras “brasileiras” do setor.

O Ministério do Desenvolvimento, em 2003, mostrou que as vendas de minério do Brasil totalizaram US$ 7 bilhões e 800 milhões, mas em decorrência da absurda isenção de impostos para exportações o país arrecadou apenas 136,8 milhões de reais.

A PETROBRAS não é mais do povo brasileiro e quem vem se beneficiando com a sua “autossuficiência” e exportações são os estrangeiros. Hoje, quase 70% do capital social da PETROBRAS é privado e na divisão dos lucros de todo petróleo extraído e beneficiado pela PETROBRAS, a maior parte vai parar nas mãos do capital privado, sendo que mais da metade de sua composição é de capital estrangeiro.

- Matthew F. Maury

Maury nasceu em 14 de janeiro de 1806, em Fredericksburg, Virginia, USA. Descendente de Huguenotes franceses, por parte de pai, e de Ingleses e Holandeses por parte de mãe, Maury trazia no DNA uma mistura de visionário, cientista e homem de negócios.

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Incapacitado para o serviço ativo, em virtude de um acidente, foi designado para o “Depósito de Cartas e Instrumentos do Departamento da Marinha em Washington” que, depois de algum tempo, transformou no “Naval Observatory and Hydrographic Office”. Seus estudos a respeito das Cartas dos Ventos das Correntes Marítimas alteraram as rotas dos navios a vela, encurtando os percursos e diminuindo o tempo de viagem, contribuindo, significativamente, para a evolução da marinha mercante americana.

- Matthew e a Amazônia

O mundo amazônico é o paraíso das matérias primas, aguardando a chegada de raças fortes e decididas para ser conquistado científica e economicamente.

(Matthew F. Maury - The Amazon and the Atlantic Slopes of South America, 1853)

Matthew procurou despertar a atenção de seus compatriotas, principalmente os sulistas, para a colonização da Amazônia. Comparava os vales da Bacia do Mississipi com a do Amazonas afirmando que esta última, além de ser duas vezes maior, o trabalho de um único dia por semana era o suficiente para abastecer a mesa do agricultor com abundância. Matthew afirmava que:

Se o comércio estendesse uma única vez suas asas sobre este vale, sua sombra seria como o toque de mãos de um mágico: estes imensos recursos logo se transformariam em vida e atividade.

E continuava dizendo que, sob a ação milagrosa do progresso e do comércio, a região:

seria levada a “desabrochar como uma rosa” – Temos, portanto, apenas de dar livre curso às máquinas do comércio – o vapor, o emigrante, a imprensa, o machado e o arado – e ela regurgitará de vida. (...) Agora começamos a ver que poderosa máquina é a atmosfera e mesmo que, aparentemente, seja tão caprichosa (...) em seus movimentos, há aí evidência de ordem e arranjo que devemos reconhecer e prova que não podemos negar, pois ela provê com regularidade e certeza esta poderosa precipitação e, é, portanto, tão obediente à lei como é máquina a vapor à vontade do seu construtor. (...)

Está inteiramente dentro do trópico. Seu clima quente e úmido dá origem a um desenvolvimento de forças vegetais, energias produtivas e possibilidades agrícolas as mais ilimitadas e maravilhosas. As variações de clima negadas a essa região pela Latitude, são possíveis graças às cadeias de montanhas e às altitudes, de tal forma que, dentro da extensão das encostas drenadas pelo Amazonas, pode-se encontrar toda variedade de clima com seus produtos peculiares, desde as regiões de neve eterna às de verão perene.

Matthews e seus compatriotas, advogando o princípio do determinismo geográfico, consideravam a Amazônia como um tributário do Mediterrâneo Americano, formado pelo Golfo do México e Caribe. Segundo eles, a Bacia Amazônia fazia parte do Sistema Americano de bacias hidrográficas formado pelo Mississipi e Orenoco.

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Baseavam esta tese levando em conta a proximidade, relativa, entre a Foz do Amazonas e do Estreito da Flórida, além de considerar que os sedimentos, carreados pelo Amazonas, graças às correntes marítimas, passavam pela Foz do Mississipi e chegavam até o “Gulf-Stream”.

Além do aspecto comercial, Matthews se preocupava com a problemática que seria criada após a abolição da escravidão nos USA, cuja raça poderia vir a se multiplicar de tal maneira que, no futuro, comprometeria a hegemonia da raça branca. Os sulistas precisavam, de qualquer maneira, livrarem-se do excesso de negros, e uma maneira seria enviá-los para a Amazônia Brasileira, a exemplo do que já havia sido feito pela “Sociedade Americana de Colonização”.

Sociedade Americana de Colonização: fundada em 1816, com a finalidade de enviar escravos alforriados de volta à África. A primeira leva chegou à Libéria, em 1822. (Nota do Autor)

Matthews, como todos os naturalistas e pesquisadores estrangeiros que aqui estiveram, desdenhava da capacidade dos nossos nativos, aos quais chamava de “povo imbecil e indolente” e concordava, erroneamente, com eles ao considerar como extremamente férteis as terras do Grande Vale do Amazonas. Convencido da superioridade da raça branca, ele pretendia que a região fosse povoada pelos negros americanos, logicamente sob o jugo dos brancos, o que mais tarde poderia servir de justificativa para legitimar a posse americana da Região.

Este vale (amazônico) é uma região para o escravo. O europeu e o índio estiveram lutando com suas florestas por 300 anos, e não lhe imprimiram a menor marca. Se algum dia a sua vegetação tiver de ser subjugada e aproveitada, se algum dia o solo tiver de ser retomado à floresta, aos répteis e aos animais selvagens e submetido ao arado e à enxada, deverá ser feito pelo africano. É a terra dos papagaios e macacos e só o africano está à altura da tarefa que o homem aí tem de realizar.

- Missão Herndom-Gibbon

Era preciso revolucionar e anglo-saxonizar o vale constituindo ali uma República Amazônica. (Carta de Maury ao cunhado Herndon)

Maury acreditava, piamente, que Deus mantivera a Amazônia deserta para que os problemas do Sul dos USA pudessem ser resolvidos. O visionário não se contentou em formular teorias e incitar seus compatriotas e colocou em marcha um plano, que tinha como objetivo final, de salvar o instituto da escravidão, transportando para a Amazônia os sulistas com seus escravos.

Maury indicou para realizar uma missão exploratória, à Bacia Amazônica, o seu cunhado Tenente da Marinha, William Lewis Herndon, acompanhado de Lardner Gibbon, que partiram de Valparaiso para Lima em fevereiro de 1851. A partir de Lima, a expedição se dividiu em dois grupos, Herndon deveria descer o Amazonas depois de alcançar o Marañon, e Gibbon desceria o Rio Madeira, a partir da Bolívia.

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O relatório de Herndon, como não poderia deixar de ser, era uma reafirmação do ideário de Maury, que, aproveitando as informações colhidas pelo cunhado, elaborou uma série de artigos em que qualificava de “japonesa” a política brasileira a respeito da navegação na Bacia do Amazonas, apelando para as ambições expansionistas de seus compatriotas. A águia iniciava uma campanha sistemática para estender suas garras e submeter, aos poucos, a região aos interesses mercantis ianques. A primeira fase do Plano de Maury entrava em ação.

- Reflexos da Campanha Sistemática de Maury

Em 1850, as Guerras de fronteiras entre Brasil, Uruguai e Argentina, e pelo direito de navegar nas águas da Bacia do Prata, iniciaram quando o Governador Juan Rosas bloqueou os Rios da bacia platina ao comércio e à navegação de outros países. As tropas brasileiras venceram Rosas forçando a Argentina a reabrir a bacia para a navegação internacional. Maury, atento aos acontecimentos, aproveita o momento para excitar as ambições dos empresários americanos, exaltando as riquezas da Amazônia.

1853 - é decretada, no dia 27 de janeiro, a abertura à navegação dos Rios bolivianos a todas as nações.

1853 - é decretada, no dia 15 de abril, a abertura à navegação dos Rios peruanos.

1862 - o General James Watson Webb, Ministro plenipotenciário de Washington junto à corte de D. Pedro II, encaminhou solicitação ao Imperador, propondo a vinda e fixação de negros americanos na Amazônia.

1866 - aproveitando-se das dificuldades do Brasil com a Guerra do Paraguai (que os EUA apoiaram dissimuladamente), o Governo Norte-americano volta a insistir na proposta de assentamento de populações negras no vale amazônico.

1866 - em dezembro, o Governo brasileiro liberou a navegação internacional do Amazonas. O decreto estabeleceu que a abertura vigoraria a partir de 7 de setembro de 1867, e definiu quais Rios estariam abertos à livre navegação, evitando o acesso irrestrito de estrangeiros à região.

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A Corrida do Ouro no Rio Madeira

Elas não podem impedir a navegação. Isso é proibido. Se forem vistas fazendo isso, é apreensão na certa.

A lavra deve ser feita apenas onde não houver risco ambiental. (Fred Cruz - Assessor do DNPM)

O Rio Madeira esconde sob suas águas barrentas e apressadas a ilusão de enriquecimento “rápido” de milhares de seres humanos que abandonaram o conforto de suas casas e a convivência de seus familiares para morar em precários e barulhentos flutuantes, cercados por estranhos, ancorados no leito do Rio, em busca do ouro. Na “Corrida do Ouro”, da década de oitenta, o Rio Madeira foi palco de um drama onde raras pessoas fizeram fortuna e onde muitas perderam tudo que tinham e, não raras vezes, a própria vida.

Em nossa descida pelo maior afluente da margem direita do Rio Amazonas, avistamos milhares de dragas trabalhando diuturnamente removendo areia, lama e cascalho com tal intensidade que são capazes de alterar a geografia do Rio. São verdadeiras Vilas flutuantes, algumas margeando, quase bloqueando, perigosamente os canais de navegação, prejudicando o tráfego naval e colocando em risco as vidas de seus residentes e dos tripulantes das embarcações. A partir de Borba, à medida que nos aproximamos da Foz do Madeira, seu número vai diminuindo lentamente até se tornarem raras. Avistamos à noite algumas trafegando temerariamente, praticamente, às escuras, sem qualquer tipo de sinalização, com a finalidade de mudar de local de garimpo ou, em virtude da cheia, voltar à sua Comunidade de origem onde permanecem estacionadas até a vazante.

- A Amalgamação Fonte: Jurandir Rodrigues de Souza e Antônio Carneiro Barbosa

A utilização do mercúrio no processo de amalgamação do ouro já era conhecida pelos fenícios e cartagineses em 2.700 a.C. Caius Plinius, em sua “História Natural” (50 d.C.), descrevia a técnica de mineração do ouro e prata com um processo de almagamação similar ao utilizado hoje nas minas de ouro. O Brasil não produz mercúrio. A sua importação e comercialização são controladas pelo IBAMA por meio da Portaria n° 32 de 12.05.1995 e Decreto n° 97.634/89, que estabelece a obrigatoriedade do cadastramento no IBAMA das pessoas físicas e jurídicas que “importem, produzam ou comercializem a substância mercúrio metálico”. O uso do mercúrio metálico na extração do ouro é também regulamentado. O Decreto 97.507/89 proíbe o uso de mercúrio na atividade de extração de ouro, “exceto em atividades licenciadas pelo órgão ambiental competente”. Por outro lado, a obrigatoriedade de recuperação das áreas degradadas pela atividade garimpeira é igualmente regulamentada pelo Decreto 97.632/89.

As dragas, instaladas em flutuantes, estendem suas lanças de sucção, acionadas por bombas de 5 a 12 polegadas, que reviram o leito arenoso e despejam o cascalho, lodo e areia juntamente com milhares de litros de água em uma calha.

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Lança de Sucção: tubulação com sistema de cabeças cortantes que penetram as rochas duras no fundo dos Rios. Algumas destas lanças são manuseadas por mergulhadores que permanecem por mais de quatro horas submersos. A baixa visibilidade das águas contribui para a incidência de acidentes fatais casuais ou mesmo intencionais provocados por garimpeiros rivais. (Nota do Autor)

O material passa, então, por uma calha concentradora que elimina a lama e a água, o restante é misturado ao mercúrio (Hg) que tem a propriedade de unir-se a outros metais produzindo uma amálgama.

Calha Concentradora: nessas calhas acarpetadas, a recuperação do ouro, normalmente, é inferior a 50%. A amalgamação dos concentrados é feita através de misturadores de alta velocidade, bastante ineficientes, que permitem que as partículas finas de mercúrio sejam despejadas nos Rios juntamente com os rejeitos de amálgama. O mercúrio vai, então, formando os chamados “hot spots” (pontos quentes), isto é, pontos com alta concentração do poluente. O mercúrio metálico inicia, lentamente, seu processo de oxidação, aumentando sua solubilidade e tornando-se um poluente da biota aquática. (Nota do Autor)

Posteriormente, para separar o ouro do mercúrio, usa-se o processo conhecido como “queima do amálgama”, onde a liga metálica é submetida a altas temperaturas, fazendo o mercúrio voltar ao estado líquido, separando-o do ouro. O preço do mercúrio nos garimpos, embora atinja cinco vezes o preço internacional, é um reagente considerado relativamente barato tendo em vista que um quilo de Hg pode ser adquirido com apenas um grama de ouro.

- Garimpo nos Reservatórios das Hidrelétricas

Em 2008, foi liberada atividade garimpeira no Rio Madeira em duas áreas determinadas pelo Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) e Secretaria de Estado de Meio Ambiente, RO. A primeira ficava a uns 20 quilômetros a montante da Cachoeira do Teotônio e se estendia até as proximidades do Rio Jaci, e a outra desde uns 15 quilômetros a montante da Cachoeira do Jirau até a Cachoeira do Paredão. Na época, mais de 1.700 requerimentos foram protocolados no DNPM, mas apenas um garimpeiro e duas cooperativas apresentaram licenças ambientais e receberam as 28 permissões para extrair ouro na região. Cerca de duas mil pessoas, 250 pequenas balsas e 70 dragas trabalharam nas duas áreas liberadas antes da inundação dos reservatórios de Santo Antônio e Jirau.

- Licenciamento do IPAAM

A garimpagem do ouro ao longo do Rio Madeira foi autorizada pelo DNPM após licenciamento do IPAAM. A decisão foi tomada apesar de o Rio ser uma Hidrovia Federal e esta atividade ocorrer, também, na Floresta Nacional de Humaitá e nas suas cercanias. A legalização teve participação da Secretaria Estadual de Desenvolvimento Sustentável e Meio Ambiental do Amazonas (SDS), que elaborou o “Projeto de Extrativismo Mineral e Familiar do Rio Madeira”, incentivando a criação de uma Cooperativa e facilitando a compra de equipamentos (cadinhos ou retortas) que deveriam ser usados para reduzir a poluição com mercúrio.

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Cadinhos ou Retortas: o cadinho, ou retorta, é constituído por um compartimento onde o amálgama é aquecido por uma tocha ou um leito de carvão incandescente e um tubo condensador resfriado a água. O uso deste recurso permite que 95% do mercúrio das amálgamas de ouro possa ser condensado e novamente usado. (Nota do Autor)

Segundo relatório do IBAMA, o projeto do Governo Estadual não considerou a proibição de o garimpo ser executado nas margens ou barrancos de Rios nem limitou o número de bombas de sucção ou de balsas por área. O documento afirma, ainda, que o mercúrio continua a ser usado indiscriminadamente, apesar dos equipamentos disponibilizados pelo Governo Estadual e que o destino dos rejeitos deste metal não foi estabelecido no projeto. Os garimpeiros, segundo o documento, não foram orientados, devidamente, para adquirir os cadinhos (retortas), somente de comerciantes cadastrados pelo IBAMA, como, também, não foram devidamente instruídos sobre a atividade na FLONA Humaitá e no seu entorno.

Podemos afirmar, contrariando a preocupação do IBAMA que, a jusante de Porto Velho, não existe nenhum tipo de garimpagem sendo executado nas margens ou barrancos do Rio Madeira. Outro ponto importante, que devemos ressaltar, é o que se refere à violência que, normalmente, impera, nas regiões de garimpo. Como a maioria das dragas é operada por membros das Comunidades, que se conhecem e não raras vezes unidos por laços de família, o aspecto da violência foi praticamente anulado.

No Eldorado do Juma (Nova Aripuanã), o Governo do Estado do Amazonas, atropelando a Constituição Federal, pretende executar um processo semelhante ao do Rio Madeira. O ouro do Juma, além de se encontrar no subsolo, propriedade do Governo Federal, está situado em um Assentamento do INCRA, cabendo, portanto, a um Órgão Federal, no caso o IBAMA, o processo de licenciamento ambiental.

- Contaminação por Mercúrio

São agressões ao sistema nervoso, comprometimento da visão, locomoção, surgimento de anomalias. (Biólogo Vanderley Bastos)

O garimpo, além do impacto social relevante, provoca um prejuízo ambiental importante. As margens do Rio são destruídas, o material dragado resulta no assoreamento do leito e o mercúrio, altamente tóxico, afeta a cadeia alimentar da região contaminando os peixes, principal base alimentar da população ribeirinha. Mesmo na comercialização, longe dos garimpos, o mercúrio continua fazendo vitimas. A decomposição térmica da amálgama gera uma “esponja” de ouro contendo 20 g de Hg residual por quilo de ouro. Os compradores de ouro, nas povoações, fundem o ouro a ser comprado à vista dos garimpeiros para eliminar as impurezas minerais associadas. O processo desprende o mercúrio residual que contamina a atmosfera do ambiente de trabalho e as imediações do estabelecimento comercial, contaminando as pessoas que vivem no entorno.

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Pesquisadores da Universidade Federal de Rondônia (UNIR), analisaram amostras de peixes, detritos e fios de cabelos dos ribeirinhos. Os exames mostraram que o nível de contaminação por mercúrio é três vezes maior que o permitido pela Organização Mundial de Saúde (OMS). O Hospital de Base de Porto Velho já registrou dezenas de casos de crianças anencéfalas (sem cérebro). A maioria dessas crianças recém-nascidas, com deformidades, é de áreas próximas aos garimpos. O mercúrio pode contaminar o ser humano de duas maneiras: ocupacional e ambiental. A ocupacional está ligada ao ambiente de trabalho, como mineração e indústrias. A contaminação acontece pelas vias respiratórias, atingindo o pulmão e o trato-respiratório. A inalação dos vapores de mercúrio acarreta fraqueza, fadiga, anorexia, perda de peso e perturbações gastrointestinais. A contaminação ambiental é provocada pela dieta alimentar, usualmente através da ingestão de peixes, entrando diretamente na corrente sanguínea, afetando o sistema nervoso central. A ingestão de compostos mercuriais provoca úlcera gastrointestinal e necrose tubular aguda. O mercúrio vai progressivamente se depositando nos tecidos, causando lesões graves nos rins, fígado, aparelho digestivo e sistema nervoso central.

Um processo de conscientização e fiscalização rígida é extremamente necessário. No processo de recuperação do ouro, não devem ser lançados resíduos de mercúrio no solo e no leito dos Rios e a queima do amálgama deve ser executada em retortas, evitando que o vapor de mercúrio contamine a atmosfera.

- Doença de Minamata Fonte: Marcello M. da Veiga e Jennifer J. Hinton - Universidade de British Columbia,

Canadá e Alberto Rogério B. Silva - ARBS Consultoria Belém-Pará.

A “Doença de Minamata” foi pela primeira vez detectada em 1953, mas somente em 1959, cientistas da Universidade de Kumamoto atribuíram os sintomas ao metilmercúrio consumido através de peixes e de moluscos. De 1932 a 1968, a companhia Chisso produziu acetaldeído, utilizando óxido de mercúrio como catalisador. O metilmercúrio era formado na reação e descarregado (cerca de 400 toneladas) com os efluentes na baía de Minamata. Moradores de Minamata e vizinhanças, que consumiam extensivamente peixes e frutos do Mar, sofreram as piores consequências desta irresponsabilidade industrial. Até 1997, 10.353 pessoas, das quais 1.246 faleceram, foram certificadas pelo Governo japonês como vítimas da “doença de Minamata”.

Sintomas da doença de Minamata nunca foram comprovados na Amazônia, mas constatação de efeitos neurológicos em pessoas que se alimentam frequentemente de peixe com médios a altos níveis de metilmercúrio têm sido reportadas. O metilmercúrio é excretado lentamente pelas fezes (de 1 a 4% por dia) e uma pequena parte pelo cabelo. Normalmente, o nível de metilmercúrio no cabelo é 300 vezes mais alto do que a concentração no sangue. (...) Teores de Hg em cabelo inferiores a 5 e 10 ppm são aceitáveis para não impor nenhum risco ao feto (em caso de grávidas) e ao adulto respectivamente. Infelizmente teores de até 84 ppm Hg foram analisados em cabelos de mães da região garimpeira do Rio Madeira.

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- Produção

As Balsas de Grande Porte trabalham durante todo o ano a uma profundidade de até 45 metros produzindo, mensalmente, uma média de 2 kg de ouro enquanto as Balsas de Pequeno Porte (chamadas na região de Chupadeiras) trabalham, normalmente, no período de estiagem, em torno de seis meses por ano, a uma profundidade de, no máximo, 10 metros e produzem mensalmente uma média de 350 gr de ouro.

- Muitos Sonhos Desfeitos, Poucos Sonhos Realizados

Milhares de pessoas, inclusive de outros Estados, vieram em busca do Eldorado no Rio Madeira. A maioria sucumbiu ao trabalho difícil, o ambiente hostil ou não conseguiu se adaptar às leis selvagens do garimpo, abandonando a atividade logo no início. Poucos, mas muito poucos, dos que resistiram, conseguiram juntar ouro suficiente para mudar de vida.

- Futuro do Garimpo do Rio Madeira Fonte: Marcello M. da Veiga e Jennifer J. Hinton - Universidade de British Columbia,

Canadá e Alberto Rogério B. Silva - ARBS Consultoria Belém-Pará.

A atividade garimpeira no Rio Madeira e afluentes está com os dias contados; ano a ano, a produção diminuiu e é inevitável que a lavra artesanal, com o passar dos anos, venha a ser substituída pela industrial como afirmam, no seu excelente artigo, os autores de “O Garimpo de Ouro na Amazônia: Aspectos Tecnológicos, Ambientais e Sociais”.

A tendência de todos os garimpos de ouro é semelhante no mundo inteiro, ou seja, a transformação da atividade artesanal em industrial. À medida que o ouro superficial e de fácil extração for se exaurindo, o garimpeiro tenta a sorte extraindo ouro primário. Sem o domínio técnico, o garimpeiro vê seus investimentos sendo dragados pelos altos custos operacionais. Quando os garimpeiros possuem titulação mineraria, através de concessão (Alvará de Pesquisa), ou permissão (Permissão de Lavra Garimpeira), o passo natural é vender ou se associar com empresas de mineração que possuam competência técnica.

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As duas Ilhas (Castro Alves)

Quando à noite — às horas mortas — O silêncio e a solidão

— Sob o dossel do infinito — Dormem do mar n’amplidão, Vê-se, por cima dos mares, Rasgando o teto dos ares Dois gigantescos perfis...

Olhando por sobre as vagas, Atentos, longínquas plagas

Ao clarear dos fuzis.

Quem os vê, olha espantado E a sós murmura: “O que é? Ai! que atalaias gigantes, São essas além de pé?!...”

Adamastor de granito Co’a testa roça o infinito E a barba molha no mar; É de pedra a cabeleira Sacudind’a onda ligeira Faz de medo recuar...

São — dous marcos miliários, Que Deus nas ondas plantou. Dous rochedos, onde o mundo Dous Prometeus amarrou!...

— Acolá... (Não tenhas medo!) É Santa Helena — o rochedo Desse Titã, que foi rei!...

— Ali... (Não feches os olhos!...) Ali... aqueles abrolhos

São a ilha de Jersey!... (...)

E olhando o presente infame Clamam: “Da turba vulgar Nós — infinitos de pedra — Nós havemo-los vingar!...” E do mar sobre as escumas, E do céu por sobre as brumas, Um ao outro dando a mão...

Encaram a imensidade Bradando: “A Posteridade!...” Deus ri-se e diz: “Inda não!...”

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Manaus/Itacoatiara

Oh! Quão bom e quão suave é que os irmãos vivam em união. É como o óleo precioso sobre a cabeça, que desce sobre a barba, a barba de Arão, e que desce à orla das suas vestes. Como o orvalho de Hermom, e como o que desce sobre os montes de Sião, porque ali o Senhor ordena

a bênção e a vida para sempre. (Salmo 133, Bíblia Sagrada)

Consegui, no meu último dia de permanência em Manaus (27.01.2012), cumprimentar e agradecer ao meu caro amigo e ex-Cadete, General José Luiz de Paiva, Comandante do 2° Grupamento de Engenharia (2° Gpt E), que estava envolvido nas passagens de comando dos 5°, 6° e 7° Batalhões de Engenharia de Construção. O apoio do 2° Gpt E, nesta 4ª Fase do Projeto Desafiando o Rio-Mar, assim como na 3ª, permitiu que levássemos a bom termo as visitas, pesquisas e entrevistas planejadas.

Dentre tantas surpresas agradáveis, que aconteceram durante minha permanência em Manaus, uma das mais gratas foi, sem dúvida, a de ter sido convidado pelos irmãos (Ir:.) Raimundo e Vilela, Coronéis do 2° Gpt E, para realizar duas palestras sobre o Projeto Desafiando o Rio-Mar, uma no 2° Grupamento de Engenharia e outra na abertura dos trabalhos da Loja Maçônica Vitória Régia, filiada ao Grande Oriente do Brasil (GOB), loja a que pertence o Coronel Flávio Teixeira, entusiasta participante da equipe de apoio das 2ª e 3ª Fases do Projeto.

Depois da abertura, seguindo os procedimentos do “Rito Brasileiro”, os trabalhos foram interrompidos e fiz uma pequena apresentação do Projeto, desde a sua concepção, planejamento, treinamento e execução de cada uma das quatro fases. Após a sessão, fomos brindados com uma ágape nas instalações da Loja e mais tarde o Coronel Vilela me conduziu até o Piquiatuba para iniciarmos o deslocamento até a Comunidade de Mauari, 23 quilômetros a montante da Foz do Madeira.

- Partida de Manaus (28.01.2012)

Partimos de Manaus por volta da uma hora da manhã, eu estava muito cansado e a jornada que se avizinhava exigiria um esforço muito grande, mas eu não podia perder a oportunidade de contemplar a cidade de Manaus e a bela Ponte do Rio Negro à noite. O Piquiatuba passou sob o monumental vão central, as luzes douradas iluminavam os cabos de sustentação da ponte pênsil enquanto fachos coloridos alternavam-se matizando o enorme pilar com as cores do arco-íris.

Os dois vãos livres de 200 metros são suportados por cabos ancorados no marque central de 172 metros de altura, a partir do nível d’água, e vãos livres de 55 metros, no mínimo (período da cheia), de altura para a passagem de transatlânticos ou navios de grande porte. Meu filho, João Paulo, registrou a passagem com inúmeras fotografias.

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A ponte foi uma iniciativa do Governo Estadual, cansado de esperar pelas promessas de verbas federais. A ponte faz parte do complexo rodoviário que unirá Porto Velho a Manaus através da BR 319 e que irá permitir, futuramente, depois de construída a ponte, em Manaquiri, ou sobre outro sítio no Solimões, a ligação do Brasil através da BR 174, até o Estado de Roraima e Venezuela. Infelizmente a Presidenta anunciou, recentemente, que o Governo Federal não irá construir a ponte sobre o Rio Solimões frustrando não apenas as expectativas das populações dos Estados do Amazonas e Roraima, mas do Brasil inteiro.

Para completar o amargo pacote de decisões federais, o Todo-poderoso IBAMA não liberou a construção do chamado trecho do meio da BR 319, que tem cerca de 400 quilômetros de extensão, apesar de todos os requisitos ambientais terem sido adequadamente cumpridos. As populações ao longo da BR 319 vivem marginalizadas, enfrentando uma série de dificuldades, mas o IBAMA, alheio a tudo e a todos, está mais preocupado com cacos de cerâmica e pequenos detalhes na confecção de documentos do que com os brasileiros carentes e desassistidos.

Usei os binóculos ofertados por um grande mestre e amigo de Campinas para admirar a cidade que se afastava lentamente deixando em nossos corações e mentes belas lembranças de amizade e companheirismo.

- Partida de Mauari (28.01.2012)

Chegamos a Mauari por volta das seis horas da manhã. A cheia do Amazonas tinha afogado a amiga Maria Mococa que tínhamos conhecido na véspera de natal do ano retrasado (2010). Ano passado, quando aportamos na Foz do Igarapé Mauari, avistamos formações rochosas de ambas as margens que se debruçavam sobre as águas do Rei dos Rios e no centro uma bela Praia de areias brancas. Na ponta da laje de jusante, existe uma formação que lembra um rosto feminino, conhecido como Maria Mococa. As águas, hoje, estavam a mais de quatro metros acima do nível, do dia 24 de dezembro de 2010, submergindo todo o belo conjunto da Foz do Mauari. Estacionamos alguns metros abaixo, embarquei no caiaque e parti, célere, rumo a Itacoatiara. Depois de remar uns doze quilômetros, meu filho se juntou a mim e remamos vigorosamente até o 18° km quando parei para lhe mostrar a interessante ponte de ferro em arco sobre o Igarapé Nossa Senhora das Graças. Em 2010, não corria uma única gota d’água sob a ponte e tive de escalar o barranco para poder fotografá-la, hoje se podia acessar o Igarapé diretamente do Rio e havia muita água correndo sob a ponte.

A viagem transcorreu sem maiores transtornos, só avistamos os primeiros troncos de madeira depois de ultrapassarmos a Foz do Madeira. Estes troncos, tão temidos pelos ribeirinhos, já causaram e continuarão causando prejuízos pessoais e materiais porque contam com o incompreensível beneplácito das idiotizadas autoridades ambientais. Pelo menos dois projetos que pretendiam retirar estes perigosos obstáculos dos Rios foram obstaculizados pelo IBAMA.

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Um deles, na Hidrelétrica de Santo Antônio, foi vetado; e o da HERMASA, de Itacoatiara, multado por estar aproveitando estes rejeitos arbóreos em suas caldeiras. Coisas de um Brasil cujas autoridades, coniventes, subservientes ou a soldo de parceiros estrangeiros se submetem aos seus interesses visando manter o seu monopólio, prejudicando aqueles que produzem e geram emprego no nosso rico e pobre país. Rico quando se trata dos potenciais a serem explorados sejam minerais ou agrícolas, e pobre tendo em vista que pouco a pouco o controle destes recursos, antes administrados por empresas estatais ou privadas, estão passando para as mãos de oligopólios internacionais, gerando enormes divisas para seus países e uns poucos “trocados” para os “brasileiros bonzinhos”. É uma nova versão do colonialismo que conta com a participação ativa de empresários nacionais omissos, abençoados por uma política entreguista e desnacionalizadora.

Chegamos a Itacoatiara, às 11h12, depois de navegar 75 km em 5h15 a uma média de 14,3 km/h e, depois do almoço, eu e a Rosângela nos instalamos em um pequeno hotel, próximo à praça, com o intuito de buscar repouso reparador. Apesar de termos solicitado o último quarto, bem longe do movimentado “Passeio Público Jornalista Agnelo Oliveira”, conhecido como Orla Municipal, às margens do Rio Amazonas, em busca do almejado silêncio, hóspedes mal educados, porém, chegavam de madrugada falando alto e batendo as portas, além disso, o hotel não disponibilizou tolhas de banho sob a alegação de que não estavam secas, um serviço bastante medíocre para uma cidade como Itacoatiara. Em contrapartida, o Mestre José Holanda, com sua fidalguia peculiar, deixou-nos seu carro à disposição e tive que reaprender a dirigir utilizando os recursos da direção hidramática do sofisticado veículo. Confesso que é muito mais fácil nos adaptarmos ao conforto e às coisas boas do que à carência e às dificuldades. Graças a isso, conseguimos visitar os prédios históricos da cidade e fotografá-los.

- Itacoatiara (29.01.2012)

No domingo, Holanda nos proporcionou um belo almoço no Restaurante Panorama, de sua sobrinha, e à tarde concedeu, no Piquiatuba, uma entrevista, acompanhado de seu neto, contando sua origem e sua história de vida que, oportunamente, reproduziremos.

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Quando eu Morrer (Castro Alves)

Quando eu morrer... não lancem meu cadáver No fosso de um sombrio cemitério... Odeio o mausoléu que espera o morto Como o viajante desse hotel funéreo.

Corre nas veias negras desse mármore Não sei que sangue vil de messalina,

A cova, num bocejo indiferente, Abre ao primeiro o boca libertina.

Ei-la a nau do sepulcro — o cemitério... Que povo estranho no porão profundo! Emigrantes sombrios que se embarcam Para as pragas sem fim do outro mundo.

Tem os fogos — errantes — por santelmo. Tem por velame — os panos do sudário... Por mastro — o vulto esguio do cipreste, Por gaivotas — o mocho funerário ... (...)

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Itacoatiara/Parintins

Vermelho (Chico da Silva - 1996)

A cor do meu batuque Tem o toque e tem O som da minha voz Vermelho, vermelhaço

Vermelhusco, vermelhante Vermelhão

- Partida de Itacoatiara (30.01.2012)

Partimos, João Paulo e eu, por volta das cinco horas, antes do amanhecer. Esta jornada seria a mais curta e mais fácil de todas as quatro até Parintins, um trajeto de apenas 55 km relativamente abrigado dos fortes banzeiros, mas o destino final era o mais adequado para aportar o Piquiatuba, nosso Barco de Apoio. As luzes da cidade e das embarcações ao longo da margem esquerda do Amazonas balizavam nosso trajeto, progredíamos, sem pressa, aproveitando a escuridão para aquecer, lentamente, a musculatura, preparando-a para um esforço maior quando o dia clareasse. O alvorecer trouxe consigo o prenúncio de tempestade vindo de Uricurituba que se confirmou tão logo penetramos no Paraná do Serpa, ao Norte da Ilha do Risco. Mais que o banzeiro, que formava ondas de até 60 cm, foram os ventos de través que prejudicavam a progressão.

Aproamos em direção à Ilha do Risco buscando refúgio das fortes rajadas, que deveriam beirar os 45 km/h, protegidos pelo barranco e pelas árvores. Como não tínhamos colocado as saias nos caiaques, precisei pedir à tripulação do Piquiatuba que improvisassem uma vasilha feita de garrafa de refrigerante para que o João Paulo retirasse a água que entrara no seu caiaque. Mais uma vez a superioridade do meu caiaque “Cabo Horn”, da Opium, ficou patente, as águas que atingiam a proa eram desviadas do “cockpit” graças ao “alto volume” do convés. Ultrapassando a Ilha do Risco, aproamos para a margem direita; ano passado, em virtude da vazante, eu rumara para jusante da Ilha Panumã e dali rumara, Rio acima, para a Foz do Ramos; agora, em virtude da cheia, podíamos, juntamente com a embarcação de apoio, acessar o Paraná do Ramos diretamente de montante.

Chegamos cedo, apenas cinco horas de navegação. O Marçal foi passear, em terra, com a equipe canina formada pelo “cochinha”, reforçada agora pela cadelinha “chocolate”, adotada em Manaus. Fui ao encontro do Marçal e trouxemos uma enorme cabaça que o Mário preparou, retirando toda a polpa, para que a Rosângela a transformasse em peça de artesanato. Colocamos nossa pequena malhadeira para pescar o “peixe nosso de cada dia” e, mais tarde, incrementamos nossa refeição com pescado fresco. À tarde, iniciei a leitura da obra de Theodor Koch-Grünberg, “Dois anos entre os Indígenas”, que adquirira em Itacoatiara.

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Milhares de minúsculas moscas importunavam a todos e resolvi passar o óleo de andiroba no Corpo e nas proximidades dos pontos de luz para onde eram atraídas. Depois de algum tempo, centenas delas estavam coladas no óleo e não importunavam mais ninguém.

- Partida da Foz do Paraná do Ramos (31.01.2012)

Partimos cedo e, novamente, o trajeto abrigado do Paraná do Ramos e a tênue brisa da madrugada permitiram que gradualmente fôssemos aumentando nosso ritmo. Ao longe, enormes armazéns flutuantes, carregados de peças automotivas eram impulsionados preguiçosamente pelos poderosos empurradores em direção a Manaus. Fizemos uma pequena parada na margem esquerda onde, por coincidência, parara, em janeiro do ano passado, nosso amigo Ângelo Corso na sua trajetória de Santarém a Manaus. Desta parada, decidi buscar a margem esquerda, enfrentando os banzeiros, de ondas de até 70 cm, característicos dessa região. Fizemos uma segunda e última parada em um enorme banco de areia nas proximidades de Uricurituba. Tivemos de margear o areal, durante um bom tempo, até achar um lugar seguro para aportar. O grande número de troncos, em diversas linhas paralelas, formava um verdadeiro bastião que impedia o acesso à Praia. Devidamente hidratados e alimentados (bananas e cápsulas de guaraná), atravessamos para a margem direita na altura de Uricurituba, enfrentando os fortes banzeiros incentivados por um verdadeiro séquito de botos tucuxis e vermelhos que evoluíam graciosamente num nado extremamente sincronizado. Eu já observara, por diversas vezes, sincronismos deste tipo com dois botos, mas raramente, como agora, de três. Chegamos, por volta do meio-dia, depois de remar 75 km, na Ponta Grossa (Ponta dos Mundurucus), e estacionamos em frente à residência do Sr. Sebastião, onde dei prosseguimento à leitura da obra de Koch-Grünberg. O Sr. Sebastião divide seu dia a dia entre o entreposto de combustível e as plantações, onde cultiva milho, macaxeira, coco, banana, graviola e vende o cacau e cupuaçu “in natura”. Ao anoitecer, fomos assaltados por enormes hordas de Carapanãs que só deram certa trégua depois do anoitecer e do Mário ter improvisado um defumador com ervas verdes.

- Partida da Comunidade da Ponta Grossa (01.02.2012)

Partimos antes da alvorada, e na altura da Costa do Giba, em frente à Ilha das Garças, juntamente com os primeiros raios de sol, teve início uma apresentação de um formidável e soturno coral de guaribas acompanhado, ao fundo, por um desafinado bando de aves preguiçosas que pareciam ter sido acordadas pelos rugidos dos grandes monos. Fizemos uma primeira parada para o João Paulo colocar a saia no caiaque e, logo em seguida, antes de adentrar no Furo do Albano, avistamos as enormes e belas Barreiras do Carauaçu (erosões), moldadas pacientemente pelas águas do Grande Rio que contra elas inflete diretamente ao fazer uma pronunciada curva à direita. As Barreiras multicoloridas, situadas na margem esquerda do Rio Amazonas, variam dos 70 a 120 metros de altura e emprestam um novo e extraordinário visual ao itinerário.

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No furo do Albano, fizemos mais uma parada num grande areal e mostrei ao João Paulo qual seria nossa futura rota. Fizemos a terceira e derradeira parada no mesmo local do ano passado. Nele existe uma frondosa árvore coberta de bromélias, a diferença é que a pequena Praia onde havia aportado já não existe mais, levada que foi pela força das águas. Chegamos ao nosso destino na Ilha do Bispo pouco antes das treze horas depois de percorrer 77 km.

À tarde, eu e a Rosângela, acompanhados do Mário, Marçal e a tripulação canina fomos fazer um passeio de voadeira e conhecemos o Sr. Álvaro, um pequeno agricultor que sobrevive do beneficiamento da Malva e da Juta assim como outras trinta famílias que tiram seu sustento da Ilha do Bispo, de propriedade da Diocese de Parintins. Alegre, educado e muito conformado com seu destino, o Sr. Álvaro vive sozinho no seu casebre na Ilha, sustentando, a duras penas, os familiares que residem em Parintins. A produção, curiosamente, é vendida para uma empresa de Belém, gerando divisas para o Estado vizinho.

Juta (Corchorus capsularis) - planta herbácea cultivada para a obtenção de fibras têxteis com as quais se fabrica o tecido do mesmo nome. Ela deve ser cortada logo que a flor murcha. As partes cortadas são amolecidas em água estagnada e, ao fim de um período de 12 a 25 dias, facilitando a retirada da casca das hastes sem que se rompam as fibras. São, então, novamente submetidas à imersão para lavagem e, em seguida, postas a secar. Em 1929, os colonos japoneses tentaram introduzir a juta na Amazônia, mas, apenas cinco anos mais tarde, o senhor Ryoto Oyama conseguiu produzir uma variedade de juta adaptada às condições amazônicas. (Nota do Autor)

Malva (Urena lobata) - pertence à família das Malváceas, nativa da Amazônia, adaptando-se muito bem às terras firmes e várzeas altas dos estados do Pará e Amazonas. Seu cultivo desenvolveu-se naturalmente em solo paraense a partir dos anos 30, sendo introduzida nas várzeas altas do baixo Amazonas a partir de 1971. Hoje representa quase 90% da produção de fibras vegetais da região. (Nota do Autor)

Algumas medidas governamentais esporádicas apontam para uma tentativa de tornar este comércio novamente lucrativo, mas seu sucesso esbarra em um competidor desleal, as fibras sintéticas e a juta mais barata ofertada pela Índia. O Polo Industrial de Manaus inaugurou, no dia 9 de novembro de 2011, a Bras Juta, fábrica de beneficiamento de juta e malva. A iniciativa tem como objetivo retomar a indústria de fibras no Estado do Amazonas, reduzindo as importações da juta indiana. A nova fábrica vai gerar cerca de 600 empregos diretos e fomentar a cadeia produtiva do segmento, incentivando o setor primário e beneficiando, principalmente, os agricultores dos municípios de Manacapuru, Codajás , Anori, Anamã. O Governo Federal deveria fazer a sua parte propondo e sancionando uma lei determinando o emprego obrigatório de sacos de fibra vegetal na embalagem de determinadas produtos e sementes, como era feito no passado com o café exportado. Esta atitude estaria plenamente de acordo com o desenvolvimento sustentável, diferentemente dos produtos que se encontram no mercado atual.

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Chegaram alguns amigos de Álvaro trazendo carne comprada em Parintins. Deixamos em paz mais este herói anônimo esquecido pela sorte e pelos governos na imensidão da nossa Amazônia. Da Ilha do Bispo, partimos para uma visita ao Paraná do Mocambo (Arari), Distrito de Parintins. O Paraná está inserido em uma enorme área de várzea e é cortado por pequenos canais. Fizemos uma parada para contemplar algumas Vitórias Amazônicas em flor enquanto uma pequena Jaçanã (macho) esbravejava nas proximidades. Descobrimos a razão de sua fúria, quatro pequenos ovos chocavam no meio de um mal feito ninho de capim-memeca. O “Cochinha” olhava extasiado a estranha vegetação aquática enquanto a impulsiva “Chocolate” tentava pular sobre as superfícies arredondadas das Vitórias Amazônicas.

A Jaçanã macho, cuidando dos quatro pequenos ovinhos deitados sobre a superfície da Vitória Amazônica, fizeram-me recordar a lenda da Jaçanã e da Ipuna-Caá reportada pelo meu querido Mestre e amigo Coronel Berthier no seu livro “Amazônia legendária”.

- Lenda da Ipuna-Caá e da Jaçanã Fonte: Altino Berthier Brasil.

Vitória Amazônica, Vitória Régia ou Ipuna-Caá: é uma planta aquática da família das Nymphaeaceae, típica da região amazônica. Ela possui uma grande folha em forma de círculo, que fica sobre a superfície da água, e pode chegar a ter até 2,5 metros de diâmetro e suportar até 40 quilos se forem bem distribuídos em sua superfície. Sua flor (a floração ocorre desde o início de março até julho) é branca e abre-se apenas à noite, a partir das seis horas da tarde, e expelem uma divina fragrância noturna adocicado do abricó, chamada pelos europeus de “rosa lacustre”, mantêm-se aberta até aproximadamente as nove horas da manhã do dia seguinte. No segundo dia, o da polinização, a flor é cor de rosa. Assim que as flores se abrem, seu forte odor atrai os besouros polinizadores (cyclocefalo casteneaea), que a adentram e nelas ficam prisioneiros. Outros nomes: irupé (guarani), uapé, aguapé (tupi), aguapé-assú, jaçanã, nampé, forno-de-jaçanã, rainha-dos-Lagos, milho-d’água e cará-d’água. Os ingleses que deram o nome Vitória em homenagem à rainha, quando o explorador alemão a serviço da Coroa Britânica Robert Hermann Schomburgk levou suas sementes para os jardins do palácio inglês. O suco extraído de suas raízes é utilizado pelos índios como tintura negra para os cabelos. Também utilizada como folha sagrada nos rituais da cultura afro brasileira e denominado como Oxibata. (Fonte: José Flávio Pessoa de Barros)

Jaçanã: pássaro da família: jacanidae e da espécie: jacana jacana. Comprimento: 25 cm; peso: macho 70 g; fêmea 160 g. Presente em todo o Brasil, e também do Panamá à Argentina e Uruguai. Comum em pântanos, Lagos com vegetação aquática e em poças d’água com bordas vegetadas. Raramente nada. Alimenta-se de insetos, caramujos, peixinhos e sementes. Faz ninho em capinzais ou em vegetação aquática flutuante ou emergente. Põe em média 4 ovos marrom-oliváceos estriados de preto. Uma mesma fêmea costuma pôr ovos para dois ou mais machos, os quais a expulsam e se encarregam de chocá-los durante 21 a 28 dias. Quando ameaçado, o pai foge correndo, às vezes agarrando os filhotes e levando-os sob as asas. Fora do período reprodutivo é migratório, associando-se em bandos. Conhecido também como cafezinho, menininho-do-banhado (Rio Grande do Sul), enxofre, casaca-de-couro (Minas Gerais), marrequinha (Bahia) e jaçanã-preta. O nome piaçoca é utilizado na Amazônia. (Nota do Autor)

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Os aimarás constituíam uma tribo de índios que se espalhava pela região do Lago Titicaca, compreendendo territórios hoje pertencentes à Bolívia e ao Peru.

Aimarás: indivíduo dos aimaras, povo indígena dos Andes peruanos e bolivianos, de língua do filo andino-equatorial, atualmente restrita à Bolívia e ao Peru, outrora falada em toda a área dos Andes centrais. (Nota do Autor)

Havia terminado a festa das águas. Sisa (flor), uma formosa virgem daquela raça, tomou-se de paixão por Kittzi (veloz), um dos vencedores das provas esportivas, e com ele combinou casamento para o próximo plenilúnio. As famílias dos futuros cônjuges de há muito acompanhavam satisfeitas o evoluir daquele afeto que vinha se pronunciando na ayllu ( Aldeia), pela ternura demonstrada e pelos frequentes mimos de flores e frutos trocados pelos jovens. Entre os ameríndios as flores representavam a maior demonstração de amor, e era corrente a versão de que “depois das flores vinham os frutos”.

Plenilúnio: lua cheia.

Sisa, na exuberância juvenil de seus quinze anos, jurou amor eterno ao seu pretendente, em ato que o curaca oficializou para todo o modesto “pueblito”.

Curaca: chefe temporal das tribos indígenas.

A esse tempo, Francisco Pizarro já havia se apoderado de Cuzco. Seus embaixadores, amparados na respeitosa imunidade que a superstição indígena lhes oferecia, espalharam-se em pequenos contingentes pelas Províncias que constituíam o legendário império do Tahuantinsuyo, na cata de toda riqueza que encontrassem. Don Garcia de Peralta, um desses emissários, surgiu inopinadamente no “pueblo” aonde vivia o jovem casal de noivos. Com ares de conquistador, o guerreiro espanhol desfilou garboso, montado em seu corcel branco, pelas ruas da ayllu, num exibicionismo de quem se julga dono de tudo e de todos. Ao cruzar por Sisa, manhoso como um leopardo, lançou seu olhar de fera sobre a bela jovem, marcando bem aquela que designou para sua presa. Cabeça baixa, a índia notou o olhar penetrante e o sorriso petulante daquele cínico cavaleiro barbudo. À noite, contou tudo ao pai e ao noivo, os quais, tristemente alarmados, ficaram pensando como se defender do atrevido impostor. Na mesma noite, D. Peralta envia a Sisa um ramo de flores de ishpingo (cinamomo) e uma bandeja com mishki (favos de mel). Ao tempo em que entrega os presentes, o mensageiro intima Kittzi e Sisa a irem ter, incontinente, com o Chefe, sob pena de serem condenados por crime de desobediência. Sisa, pelo mesmo portador, devolve os presentes, e Kittzi segue sozinho, escoltado por dois irmãos, até a casa onde estava hospedado D. Peralta. Por mais que fosse esperado de volta, o jovem não retornou. Ao amanhecer do dia seguinte, soube-se que ele estava preso incomunicável porque se negara a renunciar ao amor de Sisa. A seguir, correu a notícia de que à tarde, o temível cão Bezerril, tratado exclusivamente com carne humana, iria devorar na “plaza de armas” o “herege subversivo”. Kittzi, indignado com a injustiça e com a cruel discriminação feita em nome da Igreja cristã, permaneceu firme, como guerreiro que era. Foi untado com banha de vicunha para melhor despertar o apetite do Cérbero esfaimado, em jejum há 24 horas.

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Vicunha: mamífero ruminante (Lama vicugna) distribuído nos Andes, do Equador à Bolívia, de pelame marrom-claro, esbranquiçada no ventre. São sociais, vivendo em pequenos bandos, e produzem lã finíssima; taruca, taruga. (Nota do Autor)

Cérbero: cão monstruoso de três cabeças e cauda em forma de serpente que guardava a entrada do inferno e permitia a entrada de todos, mas não permitia que ninguém saísse. (Nota do Autor)

Sisa concerta então com seu pai um plano desesperado. Veste-se com suas melhores roupas, cobre-se de ouro, perfuma-se, e depois unta os lábios com uma tintura gelatinosa, que também passa na ponta das unhas. Pressurosa e exuberante, parte ao encontro de D. Peralta. Vitorioso e radiante, o espanhol corre receber sua musa indígena. Sisa pede-lhe por Inti (o Sol) e pela “mama” Huira-Cocha (a mãe Natureza) a liberdade de Kittzi, que, metido a ferros, espera resignado e altivo, a um canto da sala, a hora do suplício. D. Peralta tem pendurada ao cinto a chave dos grilhões. Abre os braços vigorosos e recebe palpitante a jovem aimará, a qual, alucinada de ódio coloca os lábios virginais na boca impudica do fidalgo, simulando estar vencida pelo amor. Com fúria selvagem enlaça o aventureiro pelo pescoço, beijando freneticamente e mordendo-o nos lábios e no rosto. D. Peralta, emocionado com aquela súbita e inesperada demonstração de carinho, sente ter dominado o orgulho da jovem. De repente, porém, desfalece e cai agonizando para o lado. Sem perda de tempo, Sisa pega as chaves e põe Kittzi em liberdade, dizendo-lhe:

- Foge, meu querido; és livre... D. Peralta está morto, mas também eu não vou escapar. Ele me retribuiu as pequenas dentadas que lhe dei para injetar em seu sangue o curare que portei nos lábio e nas unhas...

Kittzi, que conhecia bem o efeito daquele terrível jambi (veneno), toma sua amada nos braços e diz:

- Sisa, morreremos juntos, já que não poderei viver sem ti... E colocando a boca sobre os lábios da moça, beija-a apaixonadamente. Sisa, apesar de já quase expirando, enlaça-se ao noivo, beija-o ardentemente e morde os lábios daquele que será seu companheiro no Reino de Pachacámac, o Criador do mundo.

Essa desgraça produziu um grande alarme na ayllu e entre os Soldados ibéricos. D. Bobadilia, subcomandante do grupamento, chorando, recolhe o Corpo inerte de seu chefe para as cerimônias fúnebres. O Padre não teve tempo sequer de ministrar-lhe o sacramento da extrema-unção. Indignados, os Soldados arrastam bruscamente os Corpos de Kittzi e Sisa até a borda de um abismo daquela gélida Cordilheira dos Andes. Balançam os Corpos daqueles pagãos, e, com asco, os atiram, um a um, ao leito de um Rio que corre no fundo do vale. É o Apurímac (o sussurrante), que se lança no Ene e no Tambo para tomar o nome de Ucayáli, o mais legítimo formador do Amazonas. Os castelhanos observam, ao longe, os Corpos sumirem nas águas barrentas, para boiarem logo depois, vivos, fortes e belos. Por toda a imensidão do vale ecoou, então, uma frase que foi logo traduzida pelos índios:

“Nosso amor é maior que a morte!”

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Em seguida, os noivos mergulharam e desapareceram. Desde então se tem notícia do aparecimento de uma bela planta de folha arredondada, com a forma de tabuleiro. À noite, ao lado da folha, aparece uma flor bela e perfumada, inexistente em qualquer outro lugar do mundo. Essa planta espalhou-se pelo Rio Solimões abaixo, adotando o nome de “IPUNA-CAÁ”, dado pelos índios do Pindorama (Brasil). Séculos mais tarde, os ingleses a denominaram Vitória-Régia. Dizem os velhos que é a alma de Sisa transformada em planta. A mais bela de todas. Aquela que se tornou a rainha dos Lagos encantados. O curioso é que sempre, junto à planta, é vista uma ave chamada jaçanã. Os curacas mais antigos afirmam ser Kittzi, transformado em pássaro, que jamais deixou de acompanhar sua amada. Sem dúvida, era grande a paixão dos jovens aimarás. Era “um amor maior que a morte”.

- Partida da Ilha do Bispo (02.02.2012)

O sono foi interrompido, à noite, pelo calor e pelo movimento incessante de embarcações que passavam ao largo e miravam seus possantes holofotes para nossa embarcação. Partimos cedo, como de costume, o tempo estava razoavelmente calmo até a uns trinta quilômetros de Parintins. Os ventos fortes provocavam banzeiros com ondas superiores a 60 cm nas proximidades da margem. Eu tinha duas opções: continuar margeando a uma velocidade de 9 km/h enfrentando pequenas ondas em um percurso maior ou procurar o talvegue e enfrentar ondas maiores e encurtar o percurso.

Como o João Paulo já me reclamara que as ondas amazônicas eram muito fracas, decidi adotar a segunda linha de ação, com muito mais emoção, e partimos em linha reta para o Porto de Parintins. As ondas ultrapassavam 1,5 metro, volta e meia eu observava como estava se saindo meu parceiro e achei que ele daria conta do recado. O Mário, Comandante do Piquiatuba, por medida de segurança, diminuiu sua distância para uns 50 metros. A Rosângela conseguiu tirar diversas fotos deste percurso em que os caiaques mais pareciam potros xucros corcoveando sobre as ondas. Quando chegamos ao Porto, depois de percorrer 68 km, por volta das 12h30, lá estava nosso caro amigo Major PM Túlio nos aguardando.

Como no ano passado, ele conseguiu um maravilhoso Hotel para pernoitarmos, o Hotel do Boi Ariaú Tower, cujas instalações primorosas, as melhores que encontramos nestas quatro descidas, muito nos agradaram. Durante o almoço, contando com o testemunho da Rosângela, Comandante Túlio e a tripulação do Piquiatuba, apresentei a moção de nomear, a partir de agora, o João Paulo como canoísta, tendo em vista o seu desempenho frente às turbulentas águas das cercanias de Parintins.

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Aves de arribação (Castro Alves)

I

Era o tempo em que ágeis andorinhas Consultam-se na beira dos telhados, E inquietas conversam, perscrutando Os pardos horizontes carregados ...

Em que as rolas e os verdes periquitos Do fundo do sertão descem cantando ... Em que a tribo das aves peregrinas

Os Zíngaros do céu formam-se em bando!

Viajar! viajar! A brisa morna Traz de outro clima os cheiros provocantes.

A primavera desafia as asas, Voam os passarinhos e os amantes! ... (...)

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Questões de Fronteira Amazonas/Pará

Pela parte Austral do mesmo Rio Amazonas, devem partir as duas Capitanias pelo Outeiro chamado Maracáassu, pertencendo à dita parte de S. José do Rio Negro tudo o que vai delle para o Occidente, e à do Grão Pará, todo o território que fica para o Oriente. (Cópia de uma Carta do Ex.mo Sr. General do Estado ao Governador da Capitania de S. José do Rio Negro,

acerca dos limites da mesma Capitania – Bibliotheca Nacional)

Em pleno século XXI, ainda existem questões de fronteiras mal resolvidas em nosso país. Os limites entre os estados do Amazonas e do Pará, na altura do Rio Nhamundá, por exemplo, ainda carecem de uma definição jurídica superior.

Contestação e Razões Finais do Estado do Pará na Ação que lhe move o do Amazonas. Prudente de Moraes e Alfredo da Matta

Contestação

Contestando, diz o Estado do Pará contra o Estado do Amazonas, por esta ou melhor forma de direito, o seguinte:

E.S.N. I

P. que, por esta ação originária, pretende o Autor – Estado do Amazonas – seja o Réu – Estado do Pará condenado, com as custas legais, a reconhecer como limite entre ambos o do Nhamundá desde a sua origem até a boca do Bom Jardim no Amazonas; e do outro lado deste o Rio, o meridiano que passa pelo cimo do outeiro do Maracá-assu até ao seu ponto de intersecção com o paralelo 8°48’, já reconhecido como extrema do Estado de Mato Grosso, e a restituir e todo o território de que, além destes limites, esteja de posse. (Fonte: Jornal do Commercio, 1919)

Os litígios de fronteiras entre Pará e Amazonas se arrastam desde o século XIX. As questões sobre o verdadeiro local da divisa entre Pará e Amazonas tiveram origem em 1895, com uma zona de litígio, no Município de Faro. O historiador Roberto Rodrigues, no seu livro “Amazônia Paraense”, relata que, naquele ano, Gaspar Vicente da Costa, juiz de direito de Faro e o intendente Antônio Leandro da Costa, impediram que tropas da polícia se apossassem da Ilha da Cotia, onde hoje fica a Cidade de Nhamundá (AM), pleiteada pelos amazonenses. Mandaram instalar um Posto Fiscal, guarnecido por policiais e garantiram a posse. A atitude das autoridades paraenses foi classificada pelos amazonenses como “indigna agressão”.

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José Veríssimo Dias de Mattos

José Veríssimo Dias de Mattos nasceu na Vila de Óbidos, Província do Pará, em 1857, realizou seus primeiros estudos em Manaus e Belém e, aos 12 anos, foi para o Rio de Janeiro, onde ficou sob os cuidados de seu tio, o Conselheiro Dr. Antônio Veríssimo de Mattos. No Rio, foi aluno do Colégio Pedro II e, mais tarde, da atual “Escola Polytechnica”. Regressou, aos 19 anos, para Belém, onde trabalhou no jornal “O Liberal”, vinculado ao Partido Liberal, publicando contos, críticas literárias e relatos de viagens realizadas pelo hinterland paraense. Colaborou com o “Diário do Grão-Pará”, a “Província do Pará”, o “Comércio do Pará” e a “A República”. Fundou, em 1879, “A Gazeta do Norte”, que teve vida efêmera e, em 1883, publicou onze números da Revista Amazônica. Em 1899, escreveu um ensaio encomendado pelo Governo de Paes de Carvalho sobre a questão de limites entre o Pará, no qual defendia os interesses territoriais paraenses, objeto de litígios com o estado vizinho.

A direção do Jamundá não é também, como acreditavam os antigos, de Norte a Sul. Descendo daquela região mediana entre o Trombetas e o Uatuman, acreditava o mesmo Ferreira Penna que ele corria provavelmente para ESE, dirigindo-se depois para SE. O Sr. Barbosa Rodrigues, que o subiu até a sexta Cachoeira, a 0°3’N. pouco mais ou menos, dá-lhe na planta que acompanha a sua monografia a direção geral de NOSE, desde aquele ponto. No Mapa do Sr. Henrique Santa Rosa, é esta também a direção geral do curso inteiro do Rio. Qualquer que ele seja, porém, a questão não tem para o tema dos limites grande importância, e alguma que tenha, essa começa no curso inferior do Rio.

A quinze ou dezesseis léguas da boca inferior do Jamundá, o Paraná-mirim de Bom Jardim – deságua nele, pela margem direita, vindo de OSO, segundo o Sr. Barbosa Rodrigues, por uma única boca de 150 metros, o Rio Pratucu. É da confluência do Pratucu no Jamundá que a geografia deste tem interesse para a questão. Daí começam os estabelecimentos fixos paraenses e a jurisdição paraense na margem direita do Jamundá. O mesmo Pratucu, se bem em menor escala e sem estabelecimentos fixos, não escapa de todo a sua influência. As águas reunidas dos dois Rios dilatam-se formando aí uma espécie de baía. Retomando a sua largura normal após esse alargamento, segue para Este por um estirão de 18 a 20 milhas, recurvando-se ao cabo dele em um vasto “S” invertido, findo o qual entra para o Sul no chamado Lago de Faro, que não é senão um considerável alargamento do Rio. Na margem Oriental deste Lago – um dos sítios mais formosos do Baixo Amazonas – está assente, em terreno alto e arenoso, em pitoresca posição, a Vila de Faro, cabeça da comarca do mesmo nome, que jurisdiciona toda aquela região.

Ao findar a dupla e pronunciada curva, recebe o Jamundá pela direita o furo do Aduacá que lhe traz, mediante o Cabory, que vêm desde o Amazonas, águas deste Rio ou, conforme a estação, leva-lhes as suas. O Paraná – antes furo – do Cabory sai do Amazonas abaixo do Paraná-mirim do Mocambo e corre para o Jamundá numa linha de fraca curvatura de Sudoeste a Nordeste, tomando em pouco mais de metade do caminho, ao recolher, pela margem Ocidental, águas do Lago Aduacá, o nome de Paraná do Aduacá, com que se lança no Jamundá.

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Ao lado Ocidental – direito, se considerarmos, como deveras é, esse canal levando águas do Amazonas ao Jamundá – desses dois Paranás, abre-se aí um grande número de Lagos, cujos principais são, subindo do Amazonas, o Cabory, o Boiossu, o Sanauaru, o Aduacá, o Mamoriacá, o Quarati. Em todos estes Lagos há moradores, sítios, e estabelecimentos paraenses; todos eles têm estado sempre, e estão, sob a jurisdição paraense, especialmente das autoridades de Faro. Continuemos, porém, a acompanhar o curso do Jamundá. Da Foz do Aduacá que, ao menos durante a cheia, de maio ou junho a novembro ou dezembro, o engrossa com águas do Amazonas, ele deixa a terra firme e entra na região tão caracteristicamente amazônica dos Lagos, que lhe fazem cortejo até o grande Rio. Corre primeiro em breve trecho para o Sul, volta-se na Foz do Lago Xixiá para o Norte, e com o rumo de SO/NE, vai até a boca do Jamary, seu afluente da margem esquerda. Daí, com inflexões mais ou menos consideráveis, vai até a boca do impropriamente naquelas paragens chamado Rio ou Igarapé do Caldeirão – que iam, veremos, senão a boca superior do mesmo Jamundá,– por onde despeja águas no Amazonas. Antes porém, de chegar ao Caldeirão, toma ele, em trechos continuados, duas designações locais, sem nenhum valor geográfico. A primeira de Repartimento, a segunda de Caquinho; aquela no ponto em que, do Jamundá, parte para o Norte um Paraná-mirim ou Furo que ligando-se a outros, o põe em comunicação com o Trombetas; a de Caquinho, ao estirão que se lhe segue, a duas milhas da boca do Caldeirão. Estes apelidos, de um interesse estritamente local, não correspondem a acidentes geográficos diversos, são o mesmo Jamundá, conforme já deixamos indicado. Pelo Caldeirão, desce o Jamundá ao Amazonas, formando o que se chama a sua boca superior como tributário deste, continuando, porém, a correr para SE, com o nome de Paraná-mirim de Bom-Jardim, com que se lança no Amazonas.

Ninguém desconhece que, nos Rios da Amazônia, podemos dizer nos Rios do Brasil, senão do mundo, a geografia local não corresponde, por via de regra, à geografia geral e sistemática. No próprio Amazonas, o habitante dele, acima do Rio Negro até Tabatinga, não o conhece senão por Solimões: para ele, Amazonas é só daquele ponto para baixo. E o mesmo fato, podemos asseverar, se dá mais ou menos em todos os outros Rios, em que trechos ou estirões diversos tomam nomes locais diversos. O ribeirinho do baixo Jamundá quase o não conhece por este nome. A sua boca inferior chama de Paraná-mirim de Bom-Jardim e a superior de Rio – também de Igarapé – do Caldeirão. Ao trecho que precede a saída pelo Caldeirão, Caquinho; e ao anterior, Repartimento e, do cabo deste em diante até a Vila, Rio de Faro. São designações cômodas para a sua orientação e comércio, tiradas algumas, como a de Caquinho, do nome de habitadores da paragem denominada.

Podemos pois, dizer resumidamente que, após haver formado o Lago de Faro, o Jamundá corre em direção ao Amazonas, por onde entra por duas bocas, a do Caldeirão e a do Bom Jardim. Esta é o que se pode chamar a geografia clássica do Rio, indicada em todos os Mapas antigos, mesmo os mais primitivos, que podem ser examinados na Biblioteca Nacional, nas do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e da Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro, e na Repartição de Obras Militares (antigo Arquivo Militar), alguns dos quais já citamos, e teremos ainda ocasião de citar, e que todos indicam o Jamundá com aquelas duas bocas.

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Igual noção se verifica dos escritores de toda a ordem que nos deixaram notícia do Jamundá. No seu Roteiro escrito em 1768, diz o Padre Monteiro de Noronha:

Da boca inferior do Rio Nhamundá se deve procurar outra vez a margem Austral do Amazonas, para fugir do Caldeirão que fica junto à boca superior.

E, mais adiante:

Uma légua mais acima do Rio Ramos ou Tupinambaranas, fica fronteira a boca superior do Nhamundá na margem setentrional do Rio Amazonas.

No Roteiro Corográphico de Manoel Braun, dos últimos vinte anos do século passado, lê-se:

Deixando por estibordo na distância de légua e meia a boca do Rio das Trombetas e prosseguindo a costa acima mais cinco léguas e meia, se encontrará a boca inferior do Rio Nhamundá. Da dita boca, se procurará logo a margem Austral do Amazonas que lhe fica oposta, para haver de dar resguardo a uns caldeirões que se acham próximos à boca superior do referido Rio Nhamundá.

Na sua Viagem e visita do Sertão, escreveu, em 1763, o Bispo do Pará, D. Fr. João de S. José: “Costeando seis léguas à mão direita (da boca do Trombetas), chegamos à primeira boca do Lago de Jamundá”. E depois: “e nos desviamos da boca de cima da vizinhança do Amazonas (de que tudo são braços) para evitar o perigo de encontrar os caldeirões”. Baena, no seu Ensaio coreográfico, diz que o Jamundá tem duas bocas “das quais a inferior dista seis léguas do Rio Trombetas e a superior quatorze da inferior”. Ferreira Penna foi o primeiro que recusou esta noção e fez o Jamundá afluente não do Amazonas, mas do Trombetas, considerando o Igarapé ou Paraná-mirim que do Repartimento toma o rumo de NE em direção do Trombetas, como o desaguadouro do Rio. Este desaguadouro, que, na planta citada do Sr. Barbosa Rodrigues, vem indicado com o nome de Igarapé de Sapucuá, não nos parece aliás constituído por um só curso d’água, senão por vários canais, dos quais um dos mais importantes será o Furo da Paciência, os quais estabelecem uma comunicação entre o Jamundá e o Trombetas.

Nada obstante, porém, a autoridade de Ferreira Penna, não é possível aceitar a sua versão do desaguamento do Jamundá. E o Sr. Barbosa Rodrigues a combateu com muita procedência e vantagem. Os afluentes do Amazonas, em todo o rigor do termo seus tributários, pois que o grande Rio lhes determina mesmo o regime hidrográfico, na sua parte inferior, na região da Foz, são por via de regra afeiçoados por ele e segundo os caprichos das suas enchentes. Regiões de aluvião moderna estão em constante formação e devem ter variado consideravelmente nos períodos geológicos. As regras comuns da geografia elementar não lhes são aplicáveis, e só a geologia explicará as anomalias com que as contradizem. Anualmente mesmo as cheias do Amazonas determinam feições especiais e várias nas embocaduras de muito dos seus afluentes. O Jamundá é um dos que mais tem sofrido e sofrem ainda essa influência no que o acompanham nomeadamente o Trombetas, o Uatuman, o Urubu e quase todos os tributários de segunda ordem.

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Desde o Paraná ou Furo de Cabory até o Trombetas, aquela extensa região ao Sul de Faro e do Jamary alaga durante a enchente do Amazonas, cujas águas a invadem, avolumando consideravelmente os seus cursos e depósitos d’água permanentes e formando novos, submergindo extensas porções de terreno. Nesse tempo, ao menos durante a maior “força da cheia”, como lá dizem, todos os canais que direta ou indiretamente ligam o Jamundá ao Amazonas, correm deste para aquele, sob o empurrão violento e forte das suas águas. E estas, já aumentadas das próprias, acrescidas pelas chuvas das cabeceiras e do curso superior, e “engrossadas” com as do Amazonas, só acham saída ou pelos canais de Nordeste, para o Trombetas, ou pelo Bom-Jardim, mas por aqueles principalmente. Nesse, porém, a enchente – e às vezes basta um “repiquete”, uma rápida parada da cheia – volta o Amazonas ao seu nível normal, tomando as coisas o seu curso ordinário e o Jamundá torna a correr pelas suas bocas principais: o Caldeirão e o Bom Jardim.

A Foz principal do Jamundá é no Amazonas; somente pode-se dizer que é periódica, como também o é a do Trombetas. Cortado o Jamundá no Repartimento pelo Amazonas e repelidas as suas águas às vezes até o Lago Acarequiçaua, não contribui então com as suas águas para o Trombetas. (Barbosa Rodrigues)

A questão, porém, só teria para a de limites um interesse secundário. Não são propriamente estes que se discutem. O Pará não contesta a demarcação de Mendonça Furtado. E o Amazonas, cremos, não lhe disputaria o Caldeirão como a boca superior do Jamundá. Firmado na posse legítima do território à margem direita deste Rio, o Caldeirão compreendido, reclama apenas o Pará, por assim dizermos, a legalização dessa posse segundo as prescrições jurídicas e constitucionais. Em todo o caso, não é demais repetir, o Caldeirão seria para os seus limites segundo aquela demarcação a boca superior do Jamundá, pois que como tal era considerada ao tempo da divisão das duas capitanias, e como tal foi sempre até hoje com a só exceção de um geógrafo.

Toda a dupla boca do Jamundá e região adjacente é de aluvião amazônica, de formação recente, baixa, em grande parte além daquela data, 1788, a Silves se seguia, pode-se dizer, para o Oriente o deserto. Mais que esta ingênua declaração do Bispo, que andando em visita à sua diocese devia indagar dela, – e que mostra, aliás, bem quão obliterada estava a noção dos limites, valem os documentos que vamos citar. Testemunham eles como a ocupação paraense desde tempos imemoriais como que revogou a demarcação de Mendonça Furtado, excedendo a margem direita do Jamundá e obrigando os cartógrafos a marcarem os limites das duas capitanias para além dessa margem. Com efeito, na Carta geográfica do Arquivo Militar, classe, n° 17, citada a página 8, os limites entre o Pará e Amazonas então Capitania são claramente traçados por uma linha a Oeste do Jamundá, arredada alguns minutos da sua margem direita, linha que termina acompanhando um curso d’água que não pode ser outro que o atual Cabory. Na Carta geográfica, da Nova Lusitânia ou América Portuguesa e Estado do Brasil de Antônio Pires da Silva Pontes Leme, do ano de 1798, que vem reproduzida na primeira série dos Estudos sobre o Amazonas, do laborioso Dr. Torquato Tapajoz, de saudosa memória, são também os limites traçados fora, para Oeste, da margem direita do Jamundá, que só em diminuta extensão acompanham.

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Na Carta topográfica de 1818, citada à página 9, e existente no mesmo arquivo, também a linha de limites vem indicada fora da margem direita do Jamundá, para Oeste. Na Carta geográfica da Província do Amazonas, de 1863, citado à página 9, e pertencente à secção de manuscritos da Biblioteca Nacional, a linha de limites desde a Serra Anicua da Cordilheira da Guiana, apanha as nascentes do Jamundá a Oeste, 21’ Latitude Sul, desce por sua margem direita e a do Lago de Faro e dali acompanha um curso d’água que deste sai para o Amazonas e que evidentemente não pode ser senão o Cabory-Aduacá, pois que as duas bocas do Jamundá, o Caldeirão e o Bom Jardim, se acham nele visivelmente indicados. Ora, a Leste daqueles dois Furos, em território pela demarcação de 1758, amazonense, no Lago Aimi existia, desde 1794, uma posse legalizada paraense, a sesmaria concedida a João Caetano de Souza e Silva, de campos de criação de gado nas margens daquele Lago, por D. Francisco de Souza Coutinho, Governador do Pará “para fundar uma fazenda de gado em uns campos do Distrito de Faro com três léguas de terra de frente nos campos de Aimi, correndo da boca do Igarapé de Abaucu correndo para boca o Igarapé de Faro (hoje chamado Rio de Faro, que não é senão, como mostramos, um trecho do Jamundá) água abaixo, uma légua de fundos para o Igarapé Aimi”. Esses campos ficavam todos na margem direita do Jamundá, território da Capitania do Rio Negro, cujo Governador era quem devia concedê-los. (VERÍSSIMO)

A Luta Continua

Os amazonenses não desistiram e continuaram suas investidas para reconquistar o território. Em 1909, a Justiça Federal negou um pedido de posse da área, feito pelo Amazonas. Duas outras vezes, 1915 e 1916, os amazonenses voltaram a insistir, agora através da força e foram repelidos, agora pelo juiz, Ricardo Borges. O conflito armado entre as milícias dos dois estados deixou vários mortos. Após a Revolução de 1930, as forças militares do Estado do Amazonas ocuparam a área em litígio. Os Governadores José Carneiro da Gama Malcher, do Pará e Álvaro Maia, do Amazonas, assinaram um acordo que punha fim às escaramuças e determinava o fim dos conflitos. No acordo ficou definido que o limite territorial entre os dois Estados inicia na Serra de Parintins (ou Santa Júlia), pelo lado Oeste, seguindo a linha divisória das águas entre as bacias dos Rios Madeira e Tapajós, no começo da Cachoeira do Cachorrão, subindo o Rio até o seu afluente Teles Pires, na barra de São Miguel, 1.128 quilômetros acima da Foz do Rio Tapajós. Depois de quase sete décadas, em 1997, técnicos do INCRA invadiram o território paraense, a pretexto de demarcação de uma área para o Projeto de Assentamento Vila Amazônia, e incluíram erroneamente no Projeto, uma área de 4.880 hectares, do Município paraense de Juruti, chegando a posicionar um marco de cimento quase 15 quilômetros além da divisa dos dois estados. O Ministério Público Federal solicitou a impugnação do decreto de desapropriação, com fins de reforma agrária, do imóvel “Vila Amazônia”, que incluía áreas no Pará. Lúcia Melo, executora do INCRA de Santarém, afirmou, na época, que a área desapropriada ficava dentro do estado do Amazonas e não poderia ultrapassar os limites com o Pará e sugeriu que a Superintendência Estadual do órgão criasse uma Comissão Técnica Interestadual para elucidar a situação, mas nada foi feito até hoje.

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Figura 78 – Dupla nas águas de Parintins – AM

Figura 79 – Ilha do Padre – Parintins – AM

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Figura 80 – Ninho de Jaçanã – Parintins – AM

Figura 81 – Sd Mário abastecendo-nos com suco – AM/PA

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Figura 82 – Passeio no Rio Cuminá – PA

Figura 83 – Óbidos – PA

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Figura 84 – Óbidos – PA

Figura 85 – Argonautas e Equipe de Apoio – Santarém – PA

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Mapa 8: Ponta Grossa – Óbidos

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Mapa 9: Óbidos – Santarém

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Parintins/Oriximiná

O Rio Trombetas, que Acuña denomina Cunuris, e na língua geral é Oriximiná, não foi ainda navegado até as suas cabeceiras, porque numerosas e altas cataratas se contrapõem aos

viajantes, que lhes vão procurar nos arredores a salsaparrilha e o cravo-do-maranhão. Acima das Cachoeiras, dizem que o Rio corre através de campos.

(Johann Baptist Von Spix e Carl Friedrich Philipp Von Martius – 1819)

Nossa estada em Parintins, novamente, foi bastante agradável graças aos nossos bons amigos Major PM Túlio Sávio Pinto Freitas, Comandante em Parintins e o Sr. Manuel Joaquim Coelho Lima. Passamos a manhã de sábado e domingo na companhia do Joaquim, visitando a cidade e arredores, jantamos, no domingo, com o Comandante Túlio e sua querida família na excelente pizzaria “Mr. Pizza”. Tivemos, porém, uma desagradável experiência, eu e meu filho na manhã de sábado (04.02.2012). Estávamos passeando pela região do Porto Hidroviário de Parintins quando observamos uma movimentação no Centro de Convenções. Como as portas estavam abertas, entramos e ficamos admirando as evoluções do boi. Já estávamos nos preparando para sair quando apareceu um casal de brasileiros mal-educados, que deveriam ser guias do navio de turistas que atracara na cidade, dizendo que não podíamos permanecer no recinto porque aquele show era exclusivo para os passageiros do referido navio. Disse aos dois que deveriam ter providenciado um cartaz ou alguém na porta impedindo a entrada para evitar tais constrangimentos e deixei os arrogantes babás de turistas falando sozinhos.

A cidade de Parintins, que se propõe a ser um pólo turístico, incorre nas mesmas omissões e mazelas das demais comunidades que temos tido a oportunidade de visitar durante nossas jornadas. As calçadas são usadas, indevidamente por proprietários de veículos automotores como estacionamento, e comerciantes para expor seus produtos, forçando os pedestres a arriscarem suas vidas ao transitar pelas ruas. O tratamento de esgoto simplesmente não existe, e das valetas exala um mau cheiro extremamente desagradável.

Os flutuadores do Porto Hidroviário de Parintins não possuem cunhas a montante para desviar os troncos que descem o Rio e, além disso, as treliças de um dos vãos, suportados por eles, ficam submersas retendo os imensos troncos que, se não forem retirados, arrastarão o vão inteiro como já aconteceu em Manacapuru. É impressionante verificar a total incompetência técnica e desleixo na construção dos Portos Hidroviários da Amazônia brasileira. Fomos informados que outros portos estão prontos em Manaus e só não seguiram para seus destinos porque aguardam o “momento político” ideal para serem liberados. É importante que o Chefe do DNIT, General Fraxe, meu dileto amigo, nomeie uma comissão de engenheiros para verificar estas obras antes que ocorram acidentes graves provocando vítimas fatais.

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- Partida de Parintins, AM (06.02.2012)

Dormimos no hotel e acordamos por volta das quatro horas. Arrumamos nossos poucos apetrechos, a maioria já tinha sido levada para o barco de apoio pela tripulação na noite anterior, e nos dirigimos ao Piquiatuba, ancorado no Porto Hidroviário. Trocamos as roupas, equipamos os caiaques e partimos antes das cinco horas. Coloquei a lanterna de cabeça por segurança e remamos, sem forçar o ritmo, pela margem direita até as proximidades da Foz do Ramos quando aproamos para a margem esquerda onde fizemos uma pequena parada para colocar as saias nos caiaques e partimos com a intenção de passar ao largo da Serra de Parintins.

Serra de Parintins: elevação de altitude máxima de 152 m na divisa do Estado do Amazonas com o Estado do Pará. Conhecida também como Serra Valeria em homenagem à moradora mais antiga do local. (Nota do Autor)

Abordamos a Ilha que fica em frente da comunidade Santa Júlia pela margem Setentrional, evitando a grande curva da margem esquerda do Rio Amazonas, e atravessamos o canal que a divide. Nossa intenção era encontrar o Sargento Aroldo Sérgio Barroso, prático do Piquiatuba antes de ir para a reserva.

De excelente piloto acostumado a conduzir com segurança embarcações pelos temíveis banzeiros e correntezas amazônicos, nosso caro amigo, hoje Pastor, se dedica a conduzir as almas de seus seguidores pela rota segura da fé. Fizemos uma segunda e derradeira parada antes de rumar para a margem esquerda do Amazonas, depois da grande curva. Aproei para uma pequena Comunidade que se avistava ao longe (11 km) e parti célere, acompanhado de meu filho João Paulo, para nosso objetivo final, que alcançamos às 12h30, depois de navegar 80 km em 07h30.

A Comunidade de São Sebastião do Corocoró, Distrito de Nhamundá, possui uma bela Escola Estadual, mas com o mesmo defeito de todas que tenho visitado nas minhas jornadas. Não possui alojamento para os professores, que vêm de Parintins e ficam, precariamente, abrigados nas residências de pessoas da Comunidade. A Escola foi erroneamente construída em terreno baixo e, na última grande cheia, de 2009, como relatou sua diretora, sofreu com a ação dos fortes banzeiros quando as águas atingiram a meia altura das portas e a danificaram seriamente.

Reforço, mais uma vez, que é necessária a criação e a instalação de Centros Integrados de Educação e Saúde, ou o nome que queiram dar (CITIs, CIEPs), nas Comunidades maiores geograficamente e estrategicamente bem distribuídos para os quais seriam transportadas diariamente as crianças do entorno em um barco escolar a motor. Reputamos que, ao se planejar estes Centros Integrados de Educação e Saúde, se projetem, também, refeitórios para distribuição da merenda escolar, áreas desportivas e alojamento para professores e profissionais de saúde que, inevitavelmente, terão de ser recrutados nas sedes dos municípios mais próximos.

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Os alunos retornariam, ao final do dia, às suas Comunidades devidamente alimentados e monitorados pelos elementos de saúde, além de terem à sua disposição uma educação que lhes permitiria alcançar o ensino superior.

Ficamos observando enormes iguanas (chamados aqui na Amazônia de camaleões) dependurados nos galhos, comendo sementes e flores das árvores próximas ao barco, vez por outra um deles despencava dos galhos para a água com a maior naturalidade e sumia no meio da vegetação aquática.

Camaleão da Amazônia (Iguana iguana): a iguana-verde ou iguana-comum é uma espécie de lagarto arborícola e herbívoro nativo da América Central e do Sul. Este réptil adulto pode atingir até 1,8 m de comprimento e pesar 9 kg. Os seus ovos eclodem depois de 10 a 15 semanas. O iguana adulto é herbívoro, mas seu filhote se alimenta de pequenos invertebrados. (Nota do Autor)

A tripulação canina fora autorizada a desembarcar e proporcionaram uma cena inusitada. Três enormes cachorros, da Comunidade, correram atrás do Coxinha que disparou, procurando a proteção do barco mas, antes que o alcançassem, foi ultrapassado pelo Comandante Mário, que achou que os cães estavam atrás dele também. O Mário deixou o Coxinha muito para trás e pulou agilmente para a embarcação antes do parceiro canino.

- Partida de São Sebastião do Corocoró, AM (07.02.2012)

Acordamos às 04h50, hora do Amazonas, e partimos eu e o João Paulo antes do amanhecer. A viagem transcorreu sem alteração e entramos no Paraná do Cachoeiri, às 09h30min. Apesar da cheia, a velocidade da correnteza era inferior à do ano passado e atingimos, somente às 12h15min o Rio Trombetas. Chegamos às 12h45, hora do Amazonas, 13h45, hora do Pará, no Porto de Oriximiná. Liguei para os Irmãos da PM, Capitão PM Marcelo Ribeiro Costa, Comandante de Oriximiná e seu Sub-Comandante Capitão PM Flávio Antônio Pires Maciel, que nos colocaram em contato com os Irmãos da Maçonaria da Loja Vitória Régia n° 33. Os Irmãos maçons imediatamente foram até o Barco e nos levaram para conhecer as instalações da sua Loja, a Igrejinha do Padre Nicolino e agendaram uma entrevista, para o dia seguinte, com um líder Wai-wai, além de nos instalarem, gratuitamente, no excelente Hotel Oriximiná, administrado pela encantadora senhora Kátia Maria Feijão Ribeiro.

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Soldado (Castro Alves)

I

O sol poente desatava, longa,

a sua sombra pelo chão e

protegido por ela -

braços longamente abertos,

face volvida para os céus -

- um soldado descansava.

Descansava

havia três meses. II

- braços longamente abertos,

rosto voltado para os céus,

para os sóis ardentes,

para os luares claros,

para as estrelas fulgurantes

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Energia Amazônica

Durante nossa estada em Oriximiná, fizemos uma incursão ao Rio Trombetas e Cuminá aproveitando, nesta oportunidade, para verificar o andamento de parte das obras do “Linhão” que levará energia da hidrelétrica de Tucuruí, no Pará, para Manaus. Esta obra permitirá que o consumo do combustível fóssil, para geração de energia, caro e poluente, seja totalmente eliminado nas capitais de Manaus e Macapá e as sedes dos municípios contemplados pelo “Linhão”, evitando a emissão de 3 milhões de toneladas de gás carbônico por ano, e reduzindo o consumo anual de 1,2 bilhões de litros de óleos combustível e diesel. Além disso, após a conclusão do “Linhão”, o País economizará cerca de R$ 2 bilhões por ano, o que significa que a Linha de Transmissão, cujos investimentos previstos são da ordem de R$ 3 bilhões, estará paga em 18 meses, fornecendo energia limpa e renovável. A construção da linha de Transmissão Tucuruí-Macapá-Manaus, de aproximadamente 1.800 quilômetros de extensão, vai integrar os estados do Amazonas, Amapá e Oeste do Pará ao Sistema Interligado Nacional (SIN). Numa primeira fase, o “Linhão” reduzirá a dependência local das plantas de energia térmicas em 27 municípios ao longo da margem esquerda do Rio Amazonas.

- Responsabilidade Ambiental

A complexidade da obra, cruzando Rios e terrenos de várzeas em plena floresta amazônica, exigiu que sua execução estivesse de acordo com as orientações do IBAMA e FUNAI. Foram analisadas diversas alternativas para o traçado da linha até se encontrar as que ofereceriam menor impacto ambiental e interferência em áreas legalmente protegidas, como terras indígenas e unidades de conservação, chegando-se, finalmente, a seis propostas. Cada uma delas foi, então, analisada detalhadamente quanto ao tipo de vegetação, tipo de solo e viabilidade técnica, principalmente no que se refere à travessia de cursos d’água que, no caso do Rio Amazonas, tinha, em algumas das alternativas propostas, até dez quilômetros de largura a serem transpostos. O sistema levou em conta também que, futuramente, haja a necessidade de se acrescentar um terceiro circuito à linha, usando o mesmo corredor, além de contemplar um plano de resgate de fauna e flora em perigo de extinção.

- 1° Lote – Tucuruí/Jurupari (500KV)

Este lote inclui as linhas de transmissão Tucuruí II-Xingu, de Tucuruí a Altamira, no Pará, com 264 quilômetros de extensão e tensão de 500 kV, e inclui também a linha Xingu-Jurupari, na margem esquerda do Rio Amazonas, 257 quilômetros, mais as subestações Xingu e Jurupari.

O primeiro trecho, de 264 km, do Linhão parte de Tucuruí diretamente para a Hidrelétrica de Belo Monte, no Rio Xingu, o que permitirá a interligação deste Complexo Energético, quando entrar em operação, ao SIN.

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Este trecho, logicamente, foi o único ponto em comum de todas as seis propostas iniciais tendo em vista a necessidade da interligação de Belo Monte ao SIN. Aqueles que eram contrários à construção da hidrelétrica do Xingu apontavam o alto custo do sistema de transmissão de energia que, segundo eles, ultrapassaria o orçamento da construção do próprio Complexo Energético.

O segundo trecho, de 257 km, sai de Belo Monte em direção a Almeirim, cruzando o Rio Amazonas pela Ilha de Jurupari, localizada nas proximidades de Almeirim, PA. O “Linhão” vai atravessar o Rio Amazonas em duas etapas na Ilha de Jurupari, próxima à Foz do Rio Xingu, a primeira em um vão de 1,6 km da margem direita do Amazonas até a torre 238 na Ilha; e o outro, dela até a torre 241, construída no leito do Rio Amazonas, com 2,2 km de largura. As duas torres de transmissão terão trezentos e vinte metros, cada uma pesando aproximadamente 2.400 toneladas. As torres 238 e 241 terão a altura da Torre Eiffel, em Paris, atualmente com 325 metros (considerando a altura das antenas de rádio), onde, na época de sua construção, foram usadas 7.300 toneladas de ferro e, hoje em dia, tem aproximadamente 10.000 toneladas.

Sobre o platô que sustenta a torre 238, está sendo construído um muro de contenção de concreto com dezessete metros de altura. A plataforma de sustentação da torre 241 está sendo construída no leito do Rio Amazonas a trinta metros de profundidade e suas fundações possuem trezentos e noventa estacas e pilares construídos com tubulação em metal, concreto e ferro.

- 2° Lote – Jurupari/Oriximiná

O segundo lote é formado pela linha Jurupari-Oriximiná, no Estado do Amazonas, com 370 quilômetros de extensão em 500 kV. Este lote também contempla os trechos Jurupari-Laranjal, no Amapá, com 95 quilômetros em 230 kv, e Laranjal-Macapá, com 244 quilômetros, além das subestações Oriximiná, Laranjal e Macapá. Esses trechos têm conclusão prevista para junho de 2013 e dezembro de 2012, respectivamente.

- 3° Lote – Oriximiná/Manaus

O terceiro lote contempla as linhas Oriximiná-Itacoatiara, com 370 quilômetros em tensão de 500 kV, e Itacoatiara-Cariri, em Manaus, com 211 quilômetros, mais as subestações associadas Itacoatiara e Cariri.

Em abril de 2011, foi concluída a montagem da primeira torre do “Linhão” em Manaus, com 62 metros de altura, pesando 24 toneladas. Verificamos, durante nossa visita, que no primeiro trecho, no Rio Trombetas, a travessia está sendo feita por meio de uma Ilha com dois vãos de 950 metros e 1,2 mil metros, as torres em terra, que partem de Oriximiná, estão concluídas, assim como a da margem direita do Rio Trombetas.

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Este lote não pode deixar de se considerar, no futuro, o fornecimento de energia para o Município de Parintins, localizado na margem direita do Amazonas e uma Linha de Transmissão de 500 kV para Porto Trombetas, o que permitiria que ali se instalasse uma refinaria de alumínio para atender a produção local e das minas de Juruti.

- UTE Mauá 3

A Megausina Termoelétrica de gás natural de ciclo combinado (que utiliza gás e vapor para acionar as turbinas) será construída ao lado da usina Mauá, no bairro Mauazinho, zona Leste de Manaus. O empreendimento, que vai utilizar 2 mil metros cúbicos por dia de gás natural proveniente da Bacia de Urucu, vai produzir entre 400 e 650 megawatts (MW), quase a metade do atual Parque Energético de Manaus. A usina deverá estar concluída até 2014, antes da realização da Copa do Mundo.

A pergunta é por que usinas similares ou maiores que essa não foram construídas em Urucu ou Coari e sua energia levada até Manaus por linhas de transmissão, principalmente porque, além do gás de Urucu, já se tinha conhecimento de jazidas importantes de gás natural no Juruá? Além disso, o gasoduto de 660 km de extensão, praticamente um terço do “Linhão”, custou quase o dobro do mesmo e provocou um impacto ambiental muitíssimo maior.

- Roraima no SIN

No dia 25 de janeiro deste ano, foi assinado o contrato de concessão para a construção da Linha de Transmissão Manaus/Boa Vista, que terá 715 km de extensão, nos Estados do Amazonas e Roraima, mais as Subestações Equador 500 kV e Boa Vista 500/230 kV. A linha conectará Boa Vista ao SIN, contribuindo ainda mais para a redução do consumo de Combustíveis Fósseis, além de possibilitar a exportação de energia do SIN para a Venezuela.

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Marinha (Vinicius de Moraes)

Na praia de coisas brancas Abrem-se às ondas cativas

Conchas brancas, coxas brancas Águas-vivas.

Aos mergulhares do bando

Afloram perspectivas Redondas, se aglutinando

Volitivas.

E as ondas de pontas roxas Vão e vêm, verdes e esquivas Vagabundas, como frouxas

Entre vivas!

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Oriximiná/Óbidos/Santarém

Quando me encontrava em serviço ativo do Exército e dirigia os trabalhos da Inspeção de Fronteiras, executei pessoalmente a exploração e o levantamento do Rio Cuminá (1928/29),

(...). Nestes trabalhos, serviram-me de guia os “Diários de Viagens”, manuscritos, do Reverendo Padre Nicolino José Rodrigues de Sousa, judiciosamente organizados, sob

escrupulosa exatidão, e onde se encontram, como o leitor verá, considerações de ordem filosófica e interessantes pensamentos, que definem a arraigada fé católica do autor e

denunciam os seus sentimentos elevados e filantrópicos. (Cândido Mariano da Silva Rondon)

Eu havia confessado, durante minhas conversas ao jantar, à tripulação do Piquiatuba que a única carne que considero mais saborosa que a dos peixes amazônicos, como bom gaúcho da fronteira, é a de ovelha. Nunca imaginei que o Comandante Mário, sabendo disso, buscasse, por todos os meios, achar nas cercanias de Oriximiná, um carneiro para me oferecer uma churrascada na sua terra natal. O animal foi carneado e assado às margens do belo Cuminá adornadas pelas vistosas taquaris em plena floração e degustado por toda a equipe, além da companhia muito agradável de seus pais. Na véspera da partida para Santarém, o Mário nos levou até a bela Cachoeira do Jatuarana, com uma queda de 15 metros, que fica aproximadamente a 60 km da cidade.

http://www.youtube.com/watch?v=Mhz2o2iUnFM&feature=youtube_gdata_player

- Partida de Oriximiná, PA (12.02.2011)

Deixávamos Oriximiná felizes por termos, mais uma vez, contado com o apoio irrestrito dos nossos Irmãos Maçons da Loja Vitória Régia n° 33, encabeçados pelo Irmão maçom Hamilton Souza (o Ariuca), o Capitão PM Marcelo Ribeiro Costa, Comandante de Oriximiná e seu Sub-Comandante Capitão PM Flávio Antônio Pires Maciel da gloriosa Polícia Militar do Estado do Pará. Acordamos cedo, antes de o sol nascer, e às 06h15 (Horário de Brasília), chegamos ao trapiche onde estava a tripulação e o João Paulo. Parti às 06h30, ainda às escuras, num ritmo forte para vencer rapidamente os 50 km que me separavam de Óbidos. As águas fortes do Paraná do Cachoeiri emprestaram uma energia adicional ao Rio Trombetas e, a pouco mais de 12 km do meu destino, ao alcançar a Foz do Trombetas, foi a vez de as águas do Rio Amazonas reivindicarem sua autoridade e mostrarem toda sua pujança. A partir da Foz, o Rebelo resolveu me acompanhar e picamos a voga até as proximidades do Porto Hidroviário de Óbidos, na frente do Frigorífico Pasquarelli, onde aportamos às 11 horas depois de eu ter remado 04h30.

- Óbidos, PA (13.02.2012)

O belo complexo arquitetônico, do século XVII, onde se destaca o Forte dos Pauxís e centenas de edificações de arquitetura colonial portuguesa justificam o fato de a cidade ser considerada “a mais portuguesa das cidades do Estado do Pará”. Chegamos à cidade justamente durante a realização do seu maior evento turístico, o carnaval (Carnapauxis), que dura mais de uma semana.

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- Carnapauxis Fonte: Secretaria de Cultura de Óbidos

Visitamos a Secretaria de Cultura, sediada nas antigas instalações do 4° Grupo de Artilharia de Costa, construído em 1909, onde havia uma exposição do material utilizado pelos sete blocos carnavalescos.

Bloco Pai da Pinga

O Bloco caracteriza-se pela sua irreverência e pela sua contagiante alegria que leva ao Carnaval obidense toda segunda feira. A concentração acontece sempre no Bar do Cachorão, Bairro de Santa Terezinha, em frente à Praça do Bairro, onde seus personagens, como: “A Princesinha do Boi”, “José Ivan”, o matemático, “Márcio Fruta”, que só canta em “Inglês”, “Nilda Furacão”, a rainha do brega, “O Boi”, “Fon fon” e seus novos personagens, “Dica Distribuidora de Corações”, “O Esculhambado do Curumu”, “Dilma Russeff” entre outros, fazem as suas apresentações.

Bloco Unidos do Morro

O Bloco participou pela primeira vez do Carnaval de 1994, fazendo o arrastão de seus foliões, na segunda-feira, fantasiados de dominós, máscaras, bexigas e capacetes, onde o objetivo é não ser reconhecido pelos outros foliões pois, caso isso aconteça, o brincante será “manjado” (desmascarado), e obrigado a retirar a máscara. O “manjado” continuará brincando o carnaval, tomando banho de maizena, trigo, talco, entre outros. O nome “Unidos do Morro” tem origem do antigo nome do Bairro, hoje atual Bairro de Fátima.

Bloco das Virgens

O Bloco originou-se de uma brincadeira de rapazes reunidos no Bar do Mochila no bairro de Santa Terezinha, numa terça-feira Gorda, dia 23 de fevereiro de 1993, onde as mulheres não podiam participar do Bloco, para que as “Virgens” (Homens vestidos de Mulheres), não tivessem concorrência. Nos anos que se seguiram, o “Bloco das Virgens” foi ganhando mais adeptos, incorporando membros de toda a cidade, transformando-se no maior de todos os blocos. A melhor virgem caracterizada é premiada.

Bloco Mirim Unidos do Umarizal

Fundado em 20 de fevereiro de 1998, o Bloco Mirim como é conhecido, é composto exclusivamente por crianças de todos os bairros, principalmente os bairros de Lourdes e Cidade Nova, por ficarem próximos à Concentração. Nesse dia, as crianças saem pelas ruas fantasiadas e mascaradas, esbanjando muita alegria e beleza. O Bloco geralmente se apresenta nas quintas-feiras de Carnaval, com muita animação e arrasta, em seu cortejo, um número grande de foliões, chegando aproximadamente a 5.000 pessoas, tendo um destaque maior o número de crianças vestidas de “Mascarado”.

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Bloco Unidos da Serra da Escama

No ano de 1998, um grupo de amigos teve a idéia de criar o seu bloco carnavalesco que foi denominado “Bloco Serra da Escama”, tendo em vista que a maioria de seus integrantes residia nas proximidades da “Serra da Escama”, que outrora serviu de base para a instalação da Defesa Gurjão. O bloco carnavalesco “Unidos da Serra da Escama” tem também como seu objetivo fazer um apelo à sociedade obidense na tentativa de preservação de seu passado. O Bloco geralmente se apresenta nas sextas-feiras de Carnaval.

Bloco Águia Negra

Bloco organizado em homenagem ao Clube Vila Nova, Clube dos Corações dos moradores do Bairro da Cidade Nova. O bloco tem, na sua comissão de frente, moças vestidas a caráter, trazendo em sua escolta uma imensa Águia Negra, símbolo do clube, que deu origem ao nome do bloco. Fundado em 31 de janeiro de 1998, e desfila no sábado de carnaval, arrastando em seu cortejo um número muito grande de foliões e simpatizantes que ostentam as cores vermelho e preto, símbolo do bairro Cidade Nova.

Bloco Xupa Osso

É uma continuação do antigo “Bloco Barreirão” que saía todos os domingos do mês de janeiro e fevereiro da Praça Barão do Rio Branco, conhecida com Praça de Sant’Ana, especificamente da residência do Sr. Emanuel Kelly Santos de Aquino (Pauca). O nome Chupa Osso tem origem no apelido dado aos filhos de Óbidos. O apelido surgiu no final da década de 60 quando o empresário Sr. Isaac Hamoy exportava osso para os Estados Unidos e a maioria dos obidenses vendiam osso ao referido empresário. Esse apelido foi dado pelo Município vizinho à cidade de Oriximiná que eram nossos rivais e conhecidos como “Espoca-Bode”.

- Arraias

A bordo do Piquiatuba, eu observava o movimento dos pescadores que chegavam com suas embarcações para descarregar o pescado no Frigorífico Pasquarelli. Fiquei impressionado com o número e o tamanho das arraias tigradas de um barco de pescadores que aportou a bombordo do nosso barco, alguns destes animais tinham mais de um metro de diâmetro.

As arraias marinhas do Caribe, há milhões de anos, adentraram aos poucos nos Rios da Amazônia, se adaptando perfeitamente às águas doces. Pouco a pouco, estes animais foram estendendo seus limites aos Estados do Centro Oeste atingindo, por fim, a Bacia Paraná-Paraguai.

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Acesso pelas Eclusas

As barragens das grandes hidrelétricas poderiam servir de obstáculo para a invasão destes colossais animais, mas, em algumas delas, como a de Porto Primavera (Rosana, SP) e Jupiá (Três Lagoas, MS), as arraias conseguem o livre trânsito graças às eclusas. Quando os navios transpõem os desníveis dos Rios, as arraias e outros peixes aproveitam para pegar uma carona junto com as embarcações. As eclusas neutralizam, portanto, os sistemas de “transposição seletiva de peixes” a montante das barragens.

À tarde, o Vieira Lopes, tutor do “Coxinha”, nosso tripulante canino de 1ª Classe, veio pedir autorização para que o cãozinho permanecesse em Óbidos. Mesmo considerando os óbices da ausência de tão valoroso tripulante, autorizei.

Confortavelmente instalado no Piquiatuba, eu acompanhava o movimento incessante de embarcações que entravam e saíam do Lago dos Pauxis.

Lago dos Pauxis: conhecido também como “Laguinho”, na época das cheias suas águas margeiam a Este a Serra da Escama e a Oeste a cidade de Óbidos. (Nota do Autor)

O senhor Valdir, um pescador solitário, ostentando orgulhosamente uma camiseta do Flamengo, na sua pequena montaria, pescava de linha, a pouco mais de uma centena de metros da nossa embarcação. De repente, o imobilismo do fleumático pescador foi substituído pela agitação e, em movimentos rápidos, trouxe para bordo uma bela “Dourada”. Mais tarde, na companhia da Rosângela, passeando na voadeira, pilotada pelo Comandante Mário, nas cercanias da Serra da Escama, cruzamos com o seu Valdir que regressava para casa com diversos peixes lisos (de couro), pescados ali mesmo junto à cidade. Infelizmente, nesse passeio, minha câmera fotográfica deu pane, as fotos saíam claras demais independentemente de se usar o modo “automático”, “manual” ou “personalizado”. Mais uma onerosa baixa no meu material de expedicionário.

- Partida de Óbidos, PA (14.02.2011)

Na noite anterior, dormi muito pouco. Por volta da meia-noite, uma balsa do Posto Marreiro aportou junto à nossa embarcação com os motores ligados e iniciou o lento abastecimento de uma frota de caminhões de combustível, da mesma empresa, em terra. Além do incômodo causado pelos gritos, assovios, buzinaços provocados pela tripulação da balsa e dos motoristas e o ronco do motor da balsa, acho que a segurança de todos aqueles que estavam estacionados nas proximidades ficou perigosamente comprometida. O Porto Hidroviário, a poucos metros, tem um movimento de passageiros considerável e um incidente com a transferência do combustível poderia ter causado uma tragédia de graves proporções. Parece-me que operações deste tipo devam ser levadas a efeito em locais apropriados onde não coloquem em risco as vidas alheias e onde haja equipamentos de segurança adequados em caso de sinistro.

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Tentei telefonar dezenas de vezes para o “190” para saber se o procedimento era regular, mas não obtive nenhuma resposta.

Enganei-me com o fuso horário e saímos quase uma hora atrasados. Desde Parintins que a operadora da “Claro” não dava sinais de vida e portanto o relógio continuava com o horário do Amazonas, uma hora a menos, embora estivéssemos praticamente na mesma Longitude. Foi o dia mais cansativo de todos, remamos das 06h17 da manhã até as três horas da tarde para percorrer aproximadamente 80 km, enfrentando ventos de proa superiores aos 35 km/h durante todo o tempo. Senti fortes dores nas costas, o colchão do hotel de Oriximiná era muito macio, e, só agora, minha velha coluna, que já sofrera três cirurgias, sentia suas consequências. A pequena distância de Oriximiná a Óbidos não dera tempo nem mesmo da dor se instalar. Tentamos fazer uma parada na margem direita, mas a quantidade de troncos alinhados à margem ultrapassava uma dezena de metros tornando isso impossível. Conseguimos parar precariamente, depois de remar quase 70 km, em uma Ilha sobre a vegetação aquática. Chegamos cansados e satisfeitos, depois de remar mais de 85 km, pois a jornada do dia seguinte seria menos extensa.

- Chegada em Santarém, PA (15.02.2011)

Dormimos bem, nenhum ruído a não ser o da chuva e dos ventos fortes do Quadrante Este durante toda a noite. Saímos, eu e meu filho João Paulo, antes do amanhecer, por volta das seis horas, com a determinação de atingir uma Ponta, à margem direita, que longe se vislumbrava ao clarear do dia. Os ventos de proa forçaram-nos, novamente, a buscar a segurança da proximidade da margem diminuindo, com isso, a velocidade de deslocamento. Durante mais de duas horas sofremos com as fortes ondas até que, por volta das 08h30, o tempo melhorou e buscamos ganhar velocidade nos afastando da margem. Por volta das 10h40, chegamos à Foz do Tapajós, embarcamos no Piquiatuba para colocar roupas adequadas para a chegada e determinei que o Soldado Marçal fosse até o Porto convidar os operadores de câmera de vídeo para subir a bordo da voadeira para realizar tomadas da chegada.

Graças ao apoio do Tenente-Coronel Sérgio Henrique Codelo, Comandante do 8° BEC, a Seção de Comunicação Social do Batalhão conseguiu que estivessem presentes ao Porto de Santarém as principais redes de TV locais e jornais. O ponto alto da entrevista foi, sem dúvida, a “Chocolate”, nossa tripulante canina de 1ª Classe, adotada pelo grande amigo Soldado Marçal Washington Barbosa Santos. A recepção no 8° BEC também foi marcada, mais uma vez, pela inigualável fidalguia “azul turquesa”.

Ano que vem, se o Grande Arquiteto do Universo permitir e se os nossos amigos investidores colaborarem, iremos subir o Rio Tapajós pela margem esquerda até São Luís do Tapajós e descer pela margem direita. Este ano, embora o percurso fosse de 2000 km, as colaborações ficaram abaixo dos 40%, comprometendo substancialmente o planejamento inicial.

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O Mar (Augusto dos Anjos)

O mar é triste como um cemitério, Cada rocha é uma eterna sepultura Banhada pela imácula brancura

De ondas chorando num albor etéreo.

Ah! dessas no bramir funéreo Jamais vibrou a sinfonia pura

Do amor; só descanta, dentre a escura Treva do oceano, a voz do meu saltério!

Quando a cândida espuma dessas vagas,

Banhando a fria solidão das fragas, Onde a quebrar-se tão fugaz se esfuma.

Reflete a luz do sol que já não arde, Treme na treva a púrpura da tarde,

Chora a saudade envolta nesta espuma!

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Santarém e a Volta à Realidade

O Tenente-Coronel Sérgio Henrique Codelo, Comandante do 8° BEC, nos alojou nas confortáveis instalações da Casa de Hóspedes de Oficiais do Batalhão. Fomos convidados a participar de dois eventos no Clube de Oficiais, um deles, de congraçamento, com os novos militares e familiares transferidos; e o outro, um baile de carnaval para as crianças. Conversando com o novo Comandante e amigo, pudemos verificar como ele se preocupa com o bem-estar de seus comandados e familiares. Nos poucos dias de comando, já corrigiu alguns vícios de origem, principalmente no setor de saúde.

- Visita ao Centro Cultural João Fona

A Rosângela estava envolvida com as compras no comércio e eu resolvi fazer uma visita ao amigo mestre Laurimar dos Santos Leal no Centro Cultural João Fona. O acervo do Centro é composto de cerâmicas tapajônicas, objetos históricos da Câmara de Santarém do início do século passado e o esqueleto de uma baleia Minke que, perdida, encalhou, no dia 14 de novembro de 2007, num banco de areia do Rio Tapajós. Laurimar lembrou-se de minha última visita e ficamos conversando durante algum tempo até que dois turistas se aproximaram e pediram, a ele, autorização para fotografar as peças do Centro. Afirmei que eles deveriam começar o “tour” fotográfico com aquele que é, sem dúvida, o maior dos Mestres das artes santarenas. Despedi-me do Mestre e fiz uma breve visita ao museu.

Passei pela Praça Frei Ambrósio que permite uma bela e privilegiada visão da Foz do Tapajós. A Praça foi construída no local da antiga Fortaleza do Tapajós que sucumbiu sem jamais ter cumprido sua missão. Hoje não existe qualquer traço remanescente da Fortaleza, apenas as peças de artilharia distribuídas, aos pares, na Praça do Centenário, no Aeroporto e na Sede da Sudam.

- Visita a Belterra

No ano passado, tivemos a oportunidade de conhecer o senhor Valdemar Sanches da Silva, Chefe de Gabinete do Prefeito de Belterra, Geraldo Irineu Pastana de Oliveira, que discorreu, com entusiasmo, sobre a história e os projetos que estavam em andamento na sua Cidade, visando a recuperação de seu patrimônio e sua história. O Projeto pretende mudar, parcialmente, a face da Cidade, fazendo-a retornar ao seu antigo visual. Voltamos este ano para verificar o que tinha sido feito.

Fomos direto ao Centro de Memória de Belterra onde encontramos, novamente, o professor Osenildo Maranhão. O Centro estava totalmente tomado por estudantes onde o entusiasmado Osenildo discorria sobre a história de Belterra e os projetos em curso, mas, infelizmente, ele nos informou que até agora só o tombamento do patrimônio foi realizado e nenhum recurso foi alocado. Colhemos algumas sementes de seringueira para levar para a Vanessa e partimos para Alter do Chão.

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- Visita a Alter do Chão

Fomos três vezes a Alter do Chão durante nossa breve estada em Santarém e, em uma delas, surpreendidos, negativamente, com a impossibilidade de usar o cartão de crédito para pagar o almoço no restaurante Tribal. A reticente funcionária informou que a orientação da casa era que o garçom deveria ter nos alertado antes, o que, definitivamente, não fora feito. É um triste artifício que já havíamos observado em Parintins, considerada uma das mais importantes cidades turísticas do Estado do Amazonas. Ainda em Parintins, sofremos este tipo de constrangimento em farmácias, livrarias, hotéis e até na moderna pizzaria “Mr. Pizza”.

Alter do Chão está situada na margem direita do Rio Tapajós, a aproximadamente 32 km de Santarém, pela PA 457. As praias de areias brancas, as águas esverdeadas do Tapajós, o lendário Lago Verde, que muda da coloração verde para azul durante o dia, ou Lago dos Muiraquitãs e a Serra da Piroca são apenas alguns dos magníficos atrativos naturais que atraem turistas e navios de cruzeiros marítimos. No aprazível balneário, além das diversas alternativas de lazer, existe uma produção artesanal bastante diversificada. O jornal inglês The Guardian, em 2009, classificou a Praia Alter do Chão como uma das 10 melhores do Brasil. No inverno amazônico (época das chuvas), a Praia e a Floresta Encantada (mata de várzea) ficam submersas.

Escalei, com meu filho João Paulo, o Morro de Alter do Chão, conhecido como Serra da Piroca. O acesso até o sopé do Morro é suave e, a partir daí, a subida se torna bastante íngreme aumentando o grau de dificuldade à medida que se sobe. No alto do morro, existe um cruzeiro de ferro em treliça que aí foi colocado em homenagem à chegada dos colonizadores a Santarém. A partir das barracas, o percurso pode ser vencido em pouco mais de 30 minutos. Esforço é recompensado pela vista magnífica de Alter e do Tapajós.

- Relatos Pretéritos de Alter do Chão

José Monteiro de Noronha (1768)

56. Na barra do Rio Tapajós, à parte Oriental dele, está a Vila de Santarém defendida por uma Fortaleza. Pelo Rio acima, há mais quatro povoações, a saber: A Vila de Alter do Chão (antiga Borary ou Iburari), na margem Oriental e superior a Santarém 8 léguas (NORONHA)

Manuel Aires de Casal (1817)

Alter do Chão: Vila ainda pequena, mas vantajosamente situada sobre um Lago em pouca distância do Tapajós, com o qual comunica, quase na falda (encosta) dum morro, que se eleva piramidalmente a uma altura assaz considerável, fica obra de três léguas ao Sul de Santarém.

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O povo que a habita, composto pela maior parte de índios, cultiva variedade de mantimentos, e excelente cacau, sua principal riqueza; frequenta a caça e a pescaria. A sua Igreja paroquial é da invocação de Nossa Senhora da Saúde. A princípio chamava-se Hibiraribe. (CASAL)

Antônio Ladislau Monteiro Baena (1839)

Alter do Chão: Vila criada em 1758 e situada seis léguas acima da Vila de Santarém, na proximidade de uma empinada Colina de agudo cume, que jaz sobre um Lago pouco afastado da margem direita do Rio Tapajós. Em outro tempo, havia sido Aldeia de Borari. A população consta de brancos e índios em número de oitocentos e dezoito, e de dez escravos. Nossa Senhora da Saúde é o Orago de uma pequena Matriz, cujo teto é coberto com telha. As casas, a cadeia e a casa da câmara, tudo tem telhado de folhagem. Os moradores não vivem naquele feliz estado, que a situação local da sua Vila e a natureza do seu terreno lhe indicam permitir; eles não tiram vantagem da grande fertilidade das terras; a plantação mais ordinária é a da mandioca. (BAENA, 2004)

Henry Walter Bates (1852)

Alter do Chão: o pequeno povoado de Alter do Chão deve o seu nome singular à existência, à entrada da baía, de um desses curiosos morros de cume achatado, tão comuns nessa parte da região amazônica, cuja forma lembra a do altar-mor das igrejas católicas. O morro em questão era isolado e muito mais baixo do que outros do mesmo tipo existentes nas proximidades de Almeirim, não devendo elevar-se mais do que cem metros acima do nível do Rio. Era desprovido de árvores, mas coberto em alguns trechos com uma determinada espécie de samambaia. À entrada da baía, havia uma enseada interna, que se comunicava, através de um canal, com uma série de Lagoas situadas nos vales entre morros, que se estendiam pelo interior adentro. A Vila era habitada quase que exclusivamente por índios semicivilizados, num total de sessenta ou setenta família; suas casas se espalhavam irregularmente ao longo de ruas largas, sobre um chão coberto de relva e no sopé de uma elevada Serra coberta de exuberante mata. (BATES)

Domingos Soares Ferreira Penna (1869)

VI - De Santarém a Villa Franca por Alter do Chão.

Alter do Chão – Partindo-se de Santarém para Villa Franca, a direção do caminho é pela maior parte o mesmo para Alter do Chão: acompanha-se a costa Meridional, arenosa e ás vezes um pouco empedrada, no rumo, ao princípio 0N0 até a grande ponta denominada Maria Josepha, ficando de permeio a do Salé, 2.500 metros, mais ou menos, distantes da cidade; depois a 0S0, deixando-se à esquerda o outeiro esboroado do Tapuciá, junto à margem, e o cerro Piroca no centro, entre a costa e a baía d’Alter do Chão, mas que, por sua altura, parece mui próximo da margem, e enfim o monte do Cururu, com sua ponta, da qual parte um baixio de areia alvíssima que se interna um pouco pelo Rio no rumo SS0, que é também o do Rio dali para cima.

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A ponta Cururu determina, como uma balisa, a mudança de direção do Rio, assinala também a entrada da longa baia de Alter do Chão que se prolonga ao SE cerca de 5 milhas.

No extremo dessa baía e na sua margem Meridional, está a freguesia de Alter do Chão que apresenta uma vista agradável, de longe, com imediações mui pitorescas e aprazíveis.

A Povoação compõe-se da Igreja Matriz, situada numa praça com casas somente de um lado, e de duas ruas alinhadas a cordel, partindo ambas da mesma praça para Oeste. Há mais duas casas, uma das quais em construção.

A Igreja, da invocação do N.S.ª da Saúde, é coberta de telha. Bem que nada tenha de notável, é o edifício único que avulta, e de longe mostra um certo realce. Por falta do auxílio dos cofres provinciais ou, antes, de espírito religioso dos habitantes, as obras do altar acham-se mui danificadas e carcomidas; o resto da Igreja e de seus pertences estão em estado decente.

As casas são todas mais ou menos iguais em forma, altura e material; são mui pequenas, exceto a do vigário, térreas e cobertas de palha.

O número total delas é 47, das quais 36 estão em bom estado, 10 caídas ou estragadas e 1 em construção. A população é de 138 pessoas, inclusive as que habitam nas imediações.

Na freguesia há 4 eleitores de paróquia que votam no Colégio de Santarém.

O estado de decadência a que chegou a Povoação aconselhou o governo a cassar-lhe a categoria de Vila, em 1841, sendo-lhe conservada somente a de freguesia.

O districto policial está anexo ao de Santarém.

A baía, defronte ao N da Povoação, é separada de um Lago, que lhe fica a NE, por uma península de área de 8 a 12 metros de largura, ficando encostado a praça da Povoação um estreito canal de comunicação.

O Lago é rodeado de terras altas, formando vários seios a E e ao S, terminando todos em cabeceiras de pequenas fontes que descem dos montes visinhos.

O terreno ao N da Povoação, do outro lado da baía e do Lago, oferece uma paisagem e aspecto tão risonhos como pitorescos; ao NO ergue-se o serro Piroca que, deste lado, se apresenta do mesmo modo que da margem do Tapajós, donde o acompanhamos tendo-o sempre a vista; é inteiramente despido de árvores, mas todo coberto de uma tenra gramínea, desde a base até o ponto mais alto.

Ao N, está o serro da Avenca, em cuja face Ocidental se distinguem as camadas do sua estratificação em degraus semicirculares.

Ao NE, enfim, vê-se a linha irregular da Serra Panema que, de Santarém, vem correndo a SO.

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Quando visitei Alter do Chão, o seu reverendo pároco achava-se suspenso do exercício de suas funções pela respectiva autoridade eclesiástica. Não obstante, cuidava com zelo na conservação e asseio da Igreja, mostrando com satisfação o que ela tinha de melhor e com pesar as ruínas que apareciam, mas que ele não tinha meios de evitar.

Não se havendo para ali mandado outro sacerdote, o povo, privado dos socorros da Igreja, mostrava-se aflito e desgostoso, “por que, diziam-me umas pobres mulheres, nem para a hora da morte há um Padre para confessar!” Este mal, segundo sou informado, vai ser sanado pela autoridade competente.

As terras de Alter do Chão, à exceção dos vales ou quebradas das serras, não são férteis; participam da natureza das da margem direita do Tapajós, desde Santarém até perto de Aveiro.

Recordações históricas - As margens da pitoresca baía de Alter do Chão parece que foram, como indiquei na parte relativa a Santarém, a principal residência da extinta família indígena, os Tapajó, tendo sido ali que Pedro Teixeira os foi encontrar pela primeira vez, em 1626.

A Aldeia ou, talvez, a baía tinha o nome de Borary e foi com este apelido que, mais de 40 anos depois da viagem de Pedro Teixeira, os Padres da Companhia de Jesus ali estabeleceram uma Missão e governaram a Aldeia.

Ignoro se ela teve jamais algum progresso sob a administração destes Missionários ou como todas as outras Aldeias, sujeitas a sua jurisdição, floresceu somente até o ponto de ter o necessário para o alimento dos moradores, não se conservando senão à custa de constantes descimentos de índios do Sertão para preencherem as vagas dos mortos e dos desertores. Foi n’esta Aldeia que, pela primeira vez, se via chegar de Mato Grosso uma frota de canoas cujo chefe era o intrépido João de Souza Azevedo.

Havia ele, pelos fins de 1716, tentado explorações do território de Mato Grosso, à procura de ouro, descendo o Rio Sipotuba e passando deste ao Sumidouro até a Barra do Arinos, onde encontrou outro explorador, seu compatriota paulista, Pascoal Arruda, que andava em igual diligência.

Despedindo-se deste, desceu pelo Arinos e Tapajós até a Barra do Rio S. Manoel onde, segundo ele disse, experimentando a terra, acima da Barra, encontrou uma boa porção de ouro com que chegou a Borary, acompanhado de 60 escravos seus e dois camaradas. O Padre Manoel dos Santos, Missionário Jesuíta que governava a Aldeia, o deteve, não consentindo que prosseguisse viagem nem que regressasse a Mato Grosso, arrecadando em seu cubículo as canastras em que vinha o ouro.

Em vista da participação feita pelo Comandante do Forte do Pauxis ao Capitão General João d’Abreu Castello Branco, este General expediu imediatamente ordens ao Capitão da Fortaleza do Tapajós (Santarém) para que fosse Azevedo conduzido à cidade do Pará, deixando ficar os escravos que estavam empregados em preparar roças de mantimentos destinados ao regresso do mesmo explorador.

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Apresentou-se Azevedo no Pará, manifestou ao General o ouro que tinha extraído do Rio das Três Barras que é o mesmo S. Manoel e, após longas indagações e averiguações, conseguiu não só justificar seu procedimento contra a ordem régia que proibia toda a qualidade de comunicações por água ou por terra entre o Pará e as Capitanias de Mato Grosso e Goiás, mas também a permissão de regressar pelo mesmo caminho, o que aliás parece não ter realizado.

A Aldeia do Borary foi elevada a categoria de Vila e Freguesia no ano de 1757. Deu-se por essa ocasião um fato deplorável que mostrou quão degenerada estava no Pará a sociedade religiosa que, em seus tempos heroicos, teve a glória de contar entre seus ilustres membros, varões tão virtuosos e de tão grande veneração para o mundo católico, - os Anchietas e Nóbregas.

Os dois Missionários Jesuítas que administravam a Aldeia do Borary, conhecendo que, com a criação da Vila e Freguesia, lhes viria necessariamente a perda da influência que exerciam, tomaram imprudentemente a deliberação do despir a Matriz dos paramentos e vasos sagrados e, metendo-os em frasqueiras, os remeteram para Belém com direção ao Reitor do seu Colégio.

Não contavam com as novas ordens em virtude das quais todos os artigos e cargas chegadas do interior eram submetidas a uma vistoria, inclusive as dos Missionários, que até então tinham o privilégio de fazê-las embarcar e desembarcar livremente.

Assim, logo que as frasqueiras chegaram ao Pará (Belém), procedendo-se a vistoria e dando-se com aquela profanação, comunicou o General ao Reverendo Bispo o fato a fim de que providenciasse como julgasse do acerto.

Era isto em junto de 1757.

O sábio e virtuoso Bispo ficou profundamente penalizado de semelhante desacato; mas já ele tinha visto cousa pior, pois que os mesmos Jesuítas tinham, poucos dias antes e em outra Aldeia, profanado as imagens, tirando-as dos altares e removendo-as para casas particulares e subtraindo os vasos sagrados e enviando todos esses objetos para a cidade, escondidos no meio de cacau e outros gêneros de comércio.

O Reitor do Colégio a quem estes fatos foram expostos não deu providência adequada no sentido de corrigir tanta impiedade; pelo que força foi ordenar o Governador a expulsão dos Missionários delinquentes.

Pouco depois, a Aldeia ou Vila foi submetida ao “regimem” do diretório que não abusou menos do que os Missionários do poder e influência de que a instituição o revestia.

Mais tarde, foi esse diretório também abolido em benefício da liberdade dos índios.

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Treinando para Travessia da Laguna dos Patos

O Madeira, como os demais amazônicos caudais, possui um encantamento próprio, suas águas fluem céleres buscando o Rio-Mar; nas suas margens, ribeirinhos hospitaleiros nos saúdam

alegremente e os menos tímidos nos alcançam de “voadeira”, convidando-nos para uma breve parada para um lanche ou mesmo almoço; os monumentos arbóreos, tombados, são arrastados

pela rude correnteza transformando-se em verdadeiros aríetes contra os cascos das frágeis embarcações; os pequenos afluentes e Lagos pululam de vida e, como se tudo isso não fosse suficiente, ainda tivemos, eu e meu filho João Paulo, o privilégio de sermos sistematicamente acompanhados pelos amigáveis golfinhos, que nos encantaram com suas graciosas evoluções.

Depois de duas semanas de descanso da última jornada, de 2.000 km, pelos Rios Madeira e Amazonas, de Porto Velho, RO, a Santarém, PA, retornamos aos treinamentos para a próxima Travessia, desta feita pela Margem Ocidental da Laguna dos Patos, partindo na madrugada de 12 de abril, da Praia do Laranjal, Pelotas, RS, com chegada, prevista, na Praia de Ipanema, Porto Alegre, RS, às quinze horas do dia 22 de abril.

- Velho Guaíba

Acompanhado do Professor Hélio Bandeira, pilotando agora um excelente Cabo Horn, da Opium Fiberglass, fomos até o Parque Fazenda Itaponã, próximo a Guaíba, visitar nosso caro amigo Jurez Boneberg. Eu tinha levado um quarto de ovelha para que ele o preparasse para o almoço. Infelizmente o Juarez estava envolvido com o seu patrão Marcelo, demarcando cercas, e adiamos para o dia seguinte nosso planejado almoço. Retornamos à Raia depois de algum tempo e me comprometi de retornar no dia seguinte para almoçar com o amigo e sua família. Foi um treino bastante curto, vinte e dois quilômetros, apenas para marcar o início dos treinamentos.

No dia seguinte, atraquei defronte ao restaurante do Parque e, depois de cumprimentar seu administrador, o Bilu (Hélio), fui a pé até a casa do Juarez. Quando lá cheguei, o amigo já estava assando a carne, e sua esposa preparando o almoço. Após a refeição, permanecemos um longo tempo conversando à sombra das árvores. O amigo conhece as coisas do campo como ninguém e sobre elas discorre com a clareza e o discernimento de um sábio, sua simplicidade de homem do campo me encanta. Madrugando no passado, lembro-me de meu saudoso pai, quando eu então o acompanhava nas caçadas e pescarias, extasiado ouvia as estórias, à beira de um fogão de chão, que ele e os peões de estância contavam. Meu pai, meu querido velho e eterno Mestre Cassiano escutava atento os “causos” e suas histórias de vida e lhes relatava as suas sem afetação, de igual para igual.

No terceiro dia de treinamento, resolvi estender um pouco meus limites, para 40 km, indo até a Ilha do Chico Manoel, de propriedade do Clube Veleiros do Sul. Lá conheci, graças ao “Toco”, caseiro da Ilha, o Comandante Luiz Alberto Pereira Morandi, a quem solicitei autorização para pernoitar na Ilha no dia 21 de abril, quando da travessia da Laguna. Mais tarde, depois de consultar os demais Conselheiros do Clube, ele gentilmente me comunicou que os membros do Conselho foram favoráveis ao meu pleito.

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É gratificante verificar como a irmandade de remos e velas se entende; temos, sem dúvida, a mesma afinidade e respeito pelas águas e à natureza em geral, conduta muito diferente daqueles que fazem uso das embarcações a motor. Lembro que, no ano passado, visitando a paradisíaca Ilha do Chico Manoel, eu observava encantado os velejadores e familiares desfrutando do aprazível local e degustando placidamente seu almoço, até que chegou um grupo de seis pilotos de Jet Ski. Os mal-educados aceleravam ao máximo seus motores a poucos metros da Praia provocando, além da poluição sonora, a poluição química.

- Infrações Ambientais do Jet-ski Fonte: Minuta Sobre o Jet-Ski no Capingui

Os jet-skis possuem motores de “dois tempos”, altamente poluentes, que lançam, junto com o jato do turbo, em torno de 10 (dez) litros de gasolina com óleo na água em aproximadamente 2 (duas) horas de tráfego. Conforme estudo da “California Air Resources Board”, órgão que controla a poluição nos Estados Unidos, os jet-skis potentes e desregulados jogam até 30% do combustível misturado ao óleo diretamente na água, sem queimar, aumentando consideravelmente os indicadores poluentes. Se apenas 10 jet-skis andarem duas horas no final de semana, serão 100 (cem) litros de gasolina com óleo lançados. Os jatos dos jet-skis, além de poluírem e atingirem as encostas e margens, revolvem os sedimentos do fundo, impregnando-os com o óleo, sem que se possa removê-lo posteriormente; se transformam em resíduos permanentes. Consequentemente, o fundo passa a ser composto pelo sedimento e pelo poluente lançado pelo turbo. Esse crime ambiental se agrava com as manobras de “empinamento”, “cavalos-de-pau”, dos pilotos de jet-ski, os quais fazem com que os jatos incidam diretamente no fundo, com o revolvimento completo de seus sedimentos, em especial nas demonstrações em águas rasas. Por essa razão, onde os jet-skis andam, as águas ficam “barrentas”. Em concentrações de jets, em áreas com profundidade média de 12 metros, já se comprovou a formação de “áreas barrentas”.

Fato gravíssimo é que o jet-ski funciona como um “misturador” nas áreas em que trafega. Todos os poluentes lançados pelas demais embarcações - e que permanecem flutuantes - são revolvidos e, quando os turbos remexem os fundos ou as margens, são também misturados com os sedimentos.

A violência dos turbos rebenta os ovos dos peixes e mata os alevinos.

Os jet-skis são máquinas de múltiplos impactos, pois, conforme os últimos modelos, podem alcançar mais de 100 km/h. Até a sua invenção não se conhecia outra máquina em termos de poluição sonora, poluição da água, problemas à natureza e segurança nas vias navegáveis. Além da gravidade da poluição do meio ambiente, os jet-skis produzem ruídos na faixa de 85 a 105 dB (decibéis). Os indicadores de saúde recomendam protetores auriculares em ambientes com nível acima de 85 dB. Além disso, quando o jato sai para fora d’água, o ruído muda de intensidade e tom, reproduzindo o ruído de motosserra. O ruído perturba muito mais do que sons constantes. Além de prejudicial aos humanos, conforme Joanna Burger, da Universidade Rutgers de Nova Jersey, o ruído dos jet-skis assusta e espanta os animais 6 (seis) vezes mais do que barcos com motor de popa.

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- Ilha do Chico Manoel Fonte: Folder do Veleiros do Sul, 28.01.2011

Aspectos Geográficos

A Ilha Chico Manoel situa-se no Rio Guaíba, a meio caminho entre as praias de Belém Novo e do Lami, a cerca de 32 km da sede do Veleiros do Sul. O seu formato assemelha-se a uma pera, com a extremidade mais fina apontando para o Canal do Guaíba e a mais arredondada e bojuda para a Ponta dos Coatis, da qual fica a 250 metros. A sua área tem 214.916 m² de superfície, e a sua circunferência, pela picada da base do morro é de 1.930 metros. A altura culminante na estaca 15 é de 43 metros. A extensão maior da Ilha é de Leste a Oeste, com 754 metros. E a largura menor, de Norte a Sul, 436 metros. Muito bonita e pitoresca, a Ilha tem, em seu contorno, pedras ou matacões de granito de tamanhos variados. Possui cerca de 60 metros de Praia de areia grossa, típica do Guaíba, além de Capões de mato baixo. A sua mata é composta de catiquá, camboriú, amarílis, cocão, batinga, laranjeira-do-mato, canela preta e amarela, figueira de folha miúda, ipê, guajuvira e outras madeiras brancas nativas. Também foram plantadas árvores frutíferas, tais como limoeiros, laranjeiras, ameixeiras e abacateiros, além de várias timbaúvas e acácias. Na cota de 6 metros, alternâncias de capões e campo. Nela também há um cemitério Guarani, pesquisado por arqueólogos. O seu ponto mais alto é denominado “Alto Alegre”, onde se situa o marco geodésico de triangulação do morro da Ilha.

A Ilha possui um trapiche de madeira entre dois molhes, uma sede em alvenaria, constituída por um amplo salão de 10m x 4m, uma varanda de 10m x 2m com vista sobre o ancoradouro e banheiros com chuveiros, casa do zelador, e uma picada de acesso à Praia localizada no lado Sul, dotada de sinalização e corrimão para auxiliar a passagem nos trechos íngremes.

História

A Ilha Francisco Manoel, ou “Chico Manoel”, como os frequentadores a chamam, sempre foi um ponto de atração dos velejadores em seus passeios e excursões pelo Guaíba. Oferece abrigo natural a todos os ventos e o seu uso indiscriminado estava causando a sua gradativa depredação, quer por navegadores inescrupulosos, com relação à ecologia, como por pescadores que ali acampavam.

Ao assumir a Comodoria, Mário Bento Hoffmeister ouviu do ex-Comodoro Jorge G. Bertschinger que a Ilha Francisco Manoel estava abandonada e seria oportuno tentar conquistá-la para o Veleiros. Em entrevista com o Governador Ildo Meneguetti, ele mostrou franca receptividade. Em segunda audiência, o Governador comunicou que não “doaria” a Ilha ao Veleiros, mas concederia o seu uso por 99 anos.

Foi assim que, em 30.06.1966, o Governador do Estado, Ildo Meneguetti, o secretário da fazenda Ary Burger e o secretário dos transportes Tertuliano Borfill assinaram o Decreto n° 17946 com cessão por 99 anos à Sociedade Náutica Veleiros do Sul, da Ilha Francisco Manoel. Na ocasião da doação, a Chico possuía apenas, além de dois molhes de pedra, uma casa velha de madeira do ex-Deprec, a cabana do velho pescador que lá residia, além do marco de triangulação geodésica, colocado em seu ponto culminante.

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- Jornadas Mágicas pelas Lagunas Litorâneas

O sonho é o combustível que nos empurra, nos arrasta para diante. A vida segue e você deixa atrás de si as marcas de suas passadas na superfície da Terra.

(Aleixo Belov)

No fim de semana, aproveitei o tempo bom e parti com a Rosângela para Cidreira, onde pretendia realizar algumas travessias da Laguna da Fortaleza até o Rio Tramandaí. O trajeto era um velho conhecido, mas as experiências e as variáveis naturais de toda ordem não permitem jamais que as expedições se transformem em mera rotina. Quando chegamos ao local da largada ficamos impressionados com as marcas da estiagem na Laguna da Fortaleza e principalmente na represa da CORSAN. Nenhum fio d’água corria pela represa, as águas do canal tinham submergido profunda e drasticamente no seu leito, um vivo contraste com o período de inverno onde as águas do canal estavam quase niveladas com as da Laguna. Arrastei meu caiaque pela grama até um local que me pareceu mais adequado na margem direita, a jusante da represa e iniciei meu périplo.

Em alguns lugares foi preciso abandonar o remo e usar as mãos para desencalhar o caiaque e em outros tive de rebocá-lo. O canal transformara-se em um pequeno e estreito Lago onde apenas os predadores mais capazes tinham sobrevivido. Lancei minha tarrafa diversas vezes em uma pequena, mas profunda baía do estreito canal e consegui pescar mais de sessenta peixes-cachorro, de bom tamanho, todos acima de 25 cm, o maior medindo 36,5 cm, limpei-os, preparei os “filés” retirando a espinha, “tiqueias” para degustar mais tarde.

Acestrorhynchus pantaneiro Menezes: é conhecida popularmente como peixe cachorro ou dourado-cachorro e apresenta dentição peculiar e hábito carnívoro. A presença de Acestrorhynchus pantaneiro nas lagunas litorâneas a caracteriza como uma espécie alóctone, isto é, espécie nativa de bacia hidrográfica brasileira e registrada em bacia onde não ocorreria naturalmente. (Nota do Autor)

O acesso ao canal Manuel Nunes estava quase que totalmente tomado pelos juncos e consegui encontrá-lo, sem o GPS, graças a um pequeno saco plástico que algum precavido pescador prendera nos juncos para se orientar. Na Margem esquerda do canal, avistei uma formidável tropa de cavalos crioulos que sempre se afastavam assustados quando por ali eu passava. Peguei a câmera e me preparei para fotografá-los. Qual não foi minha surpresa ao notar que se aproximavam da margem para me observar em vez de partir em polvorosa! Comi metade de uma banana e joguei a outra metade para um deles que estava mais próximo. O animal virou a cabeça curioso, cheirou a banana, e veio beber água a um metro de minhas mãos.

Noutro dia, realizando este mesmo percurso, espantei uma enorme capivara que há pouco saíra d’água para aquecer-se ao sol. Parei de remar e permaneci imóvel, admirando o enorme roedor que, igualmente, me mirava e iniciou muito vagarosamente sua caminhada até a água onde submergiu quase sem fazer marolas.

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No domingo, a forte canícula forçou-me a diminuir o ritmo das remadas. Cheguei ao Rio Tramandaí à tarde, por volta das dezesseis horas, e mais uma vez tive a oportunidade de presenciar a conduta altamente reprovável dos pilotos de Jet skis. Os pescadores entregues à sua labuta, eram perturbados pelos imprudentes que faziam voltas ao redor dos barcos com o único intuito de molestá-los.

É impressionante se verificar a omissão das autoridades portuárias locais que permitem que esses verdadeiros bandidos ajam impunemente sem qualquer tipo de controle. Recentemente tivemos oportunidade de acompanhar pela mídia acidentes provocados pelos inconsequentes pilotos que, podendo pagar bons advogado, continuarão a dirigir alcoolizados e a entregar suas máquinas a menores, como pudemos observar no canal de Tramadaí, em que pais com os filhos no colo dirigiam em alta velocidade sob o protesto dos ribeirinhos.

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O Mar, a Escada e o Homem (Augusto dos Anjos)

“Olha agora, mamífero inferior, “A luz da epicurista ataraxia, “O fracasso de tua geografia

“E de teu escafandro esmiuçador!

“Ah! jamais saberás ser superior, “Homem, a mim, conquanto ainda hoje em dia, “Com a ampla hélice auxiliar com que outrora ia

“evoando ao vento o vastíssimo vapor,

“Rasgue a água hórrida a nau árdega e singre-me!” E a verticalidade da Escada íngreme:

“Homem, já transpuseste os meus degraus?!”

E Augusto, o Hércules, o Homem, aos soluços, Ouvindo a Escada e o Mar, caiu de bruços

No pandemônio aterrador do Caos!

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Travessia da Laguna dos Patos - Uma Ode ao CMPA

Amigas e amigos, de todos os rincões, manifestaram-se preocupados com meu longo afastamento da web. Agradeço, sensibilizado, sua preocupação, mas estava por demais envolvido no treinamento, planejamento e execução de mais uma épica jornada na Laguna dos Patos. Infelizmente, meu treinamento para a Travessia da Margem Ocidental da Laguna dos Patos, em homenagem ao Centenário do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA), tanto nas Lagunas Litorâneas, como no “Rio” Guaíba e na represa da Granja do Valente, de propriedade da família Schiefelbein, em Bagé, foi bastante prejudicado por diversos problemas alheios à minha vontade. Eu teria, desta feita, de enfrentar “inconstância tumultuária” da Laguna dos Patos sem estar gozando de minha condição física ideal.

– Equipe de Apoio

O Coronel PM Sérgio Pastl e o Comandante Norberto Weiberg, da bela e hospitaleira cidade de Canela, RS, embarcados no “Hagar”, um pequeno e versátil veleiro “Day Sailer”, capaz de nos apoiar nas águas rasas e ultrapassar os extensos bancos de areia dos “Pontais” da Laguna sem a necessidade de longas desbordagens, nos aguardavam desde a véspera, de 12 de abril, na boca da Lagoa Pequena, proximidades da Ponta da Feitoria. Graças ao Professor Paulo César Camargo Teixeira, Diretor da Escola Estadual de Ensino Médio Leopoldo Maieron – CAIC, de Bagé, minha amiga e parceira de aventuras Rosângela Maria de Vargas Schardosim pôde me acompanhar na primeira perna da Travessia desde a Praia do Laranjal, em Pelotas até São Lourenço do Sul. O Professor Paulo, desde que tomou conhecimento de nosso Projeto, tem sido um incansável incentivador do mesmo.

– Partida de Bagé (11 de abril)

Saímos de Bagé, eu e a Rosângela, depois do almoço do dia 11 de abril, rumo à Praia do Laranjal, em Pelotas. Contatamos, pelo celular, o Professor Hélio Riche Bandeira, por volta das 16 horas, na Praia do Laranjal e nos deslocamos até a Pousada em que ele estava. A tarde sem vento prenunciava uma largada tranquila e sem as dificuldades enfrentadas em setembro do ano passado. Depois de devidamente instalados, recebemos a visita do Sr. Joel Ramos, um veterano e entusiasta canoísta da região, com quem permanecemos conversando até tarde.

– Partida da Praia do Laranjal (12 de abril)

Os Lusíadas Canto I – 43

(Luís Vaz de Camões)

Tão brandamente os ventos os levavam, Como quem o Céu tinha por amigo;

Sereno o ar e os tempos se mostravam Sem nuvens, sem receio de perigo. ()

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Partimos às 05h40 e aportamos às 07h57, na Ponta da Feitoria (31°41’36,50”S / 52°02’22,18”O), depois de percorrer pouco mais de 21 km a aproximadamente 9,2 km/h. Desta vez, os ventos suaves de popa nos permitiram atacar o primeiro ponto mantendo uma trajetória bastante retilínea. Contatamos a equipe de apoio e, depois de descansar uns trinta minutos, partimos. Contornamos a Ponta da Feitoria e avistamos, na sua face Este, diversos acampamentos de pescadores envolvidos na pesca do camarão. Neste ano, a salinidade vinda do Oceano, através da Barra de Rio Grande, chegou até São Lourenço. A falta de chuvas nas cabeceiras dos Rios que deságuam na Laguna manteve o nível do Mar de Dentro bastante baixo, permitindo a entrada de água salgada, própria para o desenvolvimento do camarão, produzindo uma safra abundante.

Aportamos às 09h35, sob as belas raízes de uma enorme figueira próxima às belas ruínas da centenária sede da Estância Soteia (31°37’52,31”S / 52°00’57,38”O) mais conhecida como Casarão da Soteia (casa com terraço), construído pelos índios Guaranis, nos idos de 1780, e que remonta à época da Real Feitoria de Linho Cânhamo, embora não tenha sido a sede da mesma. Apesar do triste estado em que se encontram as ruínas, ainda é possível visualizar-lhe o belo terraço, de frente para a Laguna dos Patos, que lhe empresta o nome.

Ano passado, depois de enfrentar ventos fortes de proa durante todo o trajeto, tínhamos chegado exaustos à Soteia por volta das dezesseis horas, onde senhor Flávio Oliveira Botelho gentilmente nos abrigou e nos brindou com um saboroso carreteiro. Neste ano, ao contrário do ano passado, a sujeira gerada pelo desleixo dos pescadores que acampam no entorno e nas instalações da Soteia maculavam a centenária construção. Já estávamos partindo quando avistamos a equipe de apoio. Conversamos com os amigos, reiniciamos nossa jornadas às 10h40 rumo ao Arroio Grande, onde fizemos uma parada para o almoço, antes de rumarmos para São Lourenço do Sul onde aportamos às 16h02.

– São Lourenço do Sul

Na Pérola da Laguna, “Terra de Todas as Paisagens”, ficamos hospedados na Pousada da Laguna Apart Hotel administrada, com esmero, pelo Sr. Alberto Furlanetto, onde consegui me preparar para a próxima empreitada. O atendimento cordial da gerência, o preço diferenciado para idosos e a qualidade das instalações, colocam a Pousada na Laguna como ponto de referência para os turistas que procuram bons preços e qualidade de serviços ao visitar São Lourenço do Sul. Aproveitamos o bom tempo da sexta-feira, 13 de abril, para conhecer um pouco o belo Município e sua história, visitando a Fazenda do Sobrado, Boqueirão, São João da Reserva e a Coxilha do Barão, onde conhecemos a casa de Jacob Rheingantz.

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- Jacob Rheingantz Fonte: Vivaldo Coaracy - A Colônia de São Lourenço e seu fundador - Jacob Rheingantz

Jacob Rheingantz, comerciante e administrador alemão, nasceu no dia 13 de agosto de 1817 em Sponheim, Hamburgo. Filho de Johann Wilhelm Rheingantz e Anna Maria Kiltz, dedicou-se inicialmente ao comércio e, em 1839, partiu para a França, onde trabalhou como produtor de Champagne. Em 1840, foi para os Estados Unidos da América onde permaneceu até 1843, quando veio para o Rio Grande do Sul, estabelecendo-se em Rio Grande, como empregado na casa comercial de Guilherme Ziegenbein.

Em 9 de julho de 1848, casou-se com Maria Carolina Fella, passando a residir em Pelotas. Em 1856, comprou terras devolutas na Serra de Tapes, com o objetivo de fundar uma colônia. Fundou a Colônia São Lourenço, em 1858, em sociedade com José Antônio de Oliveira Guimarães.

Na Pátria-mãe, a Dúvida, o Sonho No Mar, a Vela, a Incerteza, a Dor, a Saudade.

Em São Lourenço do Sul, a Fé, a Esperança, a Coragem, a Vida.

A primeira leva de imigrantes partiu de Hamburgo com 88 pessoas, vindos no navio holandês “Twee Vrienden”. Mudou-se com a família para a própria colônia onde era a autoridade máxima. No ano de sua morte, sua colônia era um sucesso, já tinha um total de 52 mil hectares e mais de 6.000 moradores, além de 16 escolas particulares destinadas à educação da nova geração.

– Partida de São Lourenço (14 de abril)

Às 06h00, partimos confiantes para a segunda etapa de nossa travessia na Laguna dos Patos rumo à Fazenda Flor da Praia. A suave brisa permitia que apontássemos proa diretamente para a Ponta do Quilombo (31°20’00,83”S / 51°51’20,96”O) onde aportamos às 07h40 e fizemos uma parada de vinte minutos. A partir do Quilombo, enfrentando ventos de 20km/h vindos de Sudeste, rumamos diretamente para a Foz do Camaquã onde aportamos em um bosque de eucaliptos (31°16’44’’S / 51°44’16’’W).

A Procela (Fausta Nogueira Pacheco)

Sucumbido pela tempestade, entre ondas gigantescas em cega fúria, debate-se contra a força atroz dos vento, o barco frágil nas águas desses mares

A terrível procela destemida avança, Arrebentando suas onda no convés.

A tripulação vê o horror se aproximando E de joelhos prostrada clama aos céus!

Os ventos aumentaram significativamente, a temperatura despencou e uma chuva gelada começou a cair antes de partirmos. Partimos para a Ponta do Vitoriano e tivemos de fazer uma parada intermediária, para nos aquecermos, em um pequeno bosque próximo a um captador de água (31°16’11’’S / 51°38’40’’W) depois de remar quase 10 km.

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Havíamos enfrentado ventos de través, vindos de Sudeste, de 30 km/h com rajadas de 50 km/h e ondas de até 1,5 metros. Depois desta parada resolvemos remar diretamente para a Fazenda Flor da Praia (31°08’25,59”S / 51°37’06,85”O).

As enormes ondas nos forçavam a fugir da rebentação e, a apenas 1,7 km de distância de nosso objetivo, me distraí, por um momento, me aproximei demais da Praia e permiti que uma enorme onda de través arrebentasse sobre o insuperável Cabo Horn virando-o. Apenas um pequeno e gelado susto já que eu estava próximo à margem; foi com muito esforço que arrastei o pesado caiaque até a Praia e retirei a água que invadira o seu “cockpit” até a altura do convés superior. Minhas pernas estavam praticamente congeladas, eu não havia colocado o “neoprene” pois a temperatura, na saída de São Lourenço, era agradável. Não foram as ondas que nos derrubaram, o desgaste físico e a friagem, além da distração, certamente, contribuíram para que eu tomasse o primeiro tombo depois de navegar por mais de 40.000 km em caiaques modelo “Cabo Horn”, da Opium Fiberglass.

O Jornal O SUL estamparia na edição do dia seguinte:

Jornal O SUL, 15.04.2012

Velejadores são resgatados no Guaíba

Quatro velejadores foram resgatados ontem após acidente com um barco no Rio Guaíba, em Porto Alegre. A embarcação virou com forte vento. O grupo ficou agarrado nos pilares da ponte. Após este salvamento, os bombeiros foram ao Arroio das Garças, em Canoas, atender outra ocorrência de barco que virou. Ninguém ficou ferido.

Aportei na Praia da Fazenda Flor da Praia às 15h30 e procurei o capataz que permitiu que acantonássemos em um dos galpões da Fazenda. Tivemos de deixar a luz acesa à noite, pois o galpão estava infestado de ratos.

– Partida da Fazenda Flor da Praia (15 de abril)

O sol reinava soberano e apenas uma leve brisa acariciava levemente a superfície da Laguna, condições bastante diferentes do dia anterior. Iniciamos nossa remada, às 08h05, até o Pontal Dona Maria (31°05’16’’S / 51°26’19’’W) aonde aportamos, às 11h20, e de onde podíamos observar o canal de acesso à Lagoa do Graxaim, em cujas margens se encontra o povoado de Santa Rita do Sul, Distrito de Arambaré. As figueiras e pequenos arbustos bioindicavam a direção predominante dos ventos oriundos de Este e Nordeste que açoitam sistematicamente a vegetação nativa.

Do Pontal Dona Maria aproamos, às 11h40, diretamente para o conjunto de figueiras que ostentavam grinaldas de bromélias e orquídeas (31°01’35,98”S / 51°29’09,89”O) e cuja beleza eu não pudera materializar, no ano passado, tendo em vista que minha Canon emperrara.

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Os monumentos arbóreos tinham cravado suas raízes nas voláteis e alvas dunas tentando, em vão, manter o equilíbrio enquanto as areias lenta, inexorável e criminosamente escoavam cômoro abaixo, expondo mais e mais as magníficas fundações das centenárias figueiras. Depois de fotografar de todos os ângulos possíveis daquela paisagem fantástica, partimos para o marco que “homenageia”, em sua placa, o General Francisco Pedro de Abreu (31°00’10’’S / 51°29’35’’W), onde chegamos às 14h20. Na placa estão gravadas as seguintes palavras:

Nas proximidades deste local, em 16.04.1839, o General Francisco Pedro de Abreu desembarcou Tropas Imperiais para o malogrado ataque ao estaleiro Farroupilha na Barra do Camaquã. Independentemente do alinhamento ideológico daqueles bravos, o CTG

Camaquã, entidades tradicionalistas e o povo de Arambaré reverenciam suas memórias.

Continuamos nossa jornada rumo a Arambaré. Navegamos bem próximo à bela Praia da Costa Doce, entramos no Arroio Velhaco e aportamos no Clube Náutico (30°54’38,01”S / 51°29’47,50”O) onde estacionamos nossos caiaques e fomos procurar abrigo no Destacamento da Brigada Militar, comandado pelo Sargento PM Juliano.

– Capital das Figueiras (16 de abril)

No dia seguinte, o Sargento PM Juliano nos proporcionou um pequeno “tour” pela cidade e depois nos levou até Santa Rita do Sul onde visitamos a “Arrozeira Camaquense”, fundada em 10 de junho de 1948, onde um enorme e antigo gerador a lenha ocupava lugar de destaque. O equipamento, na época, proporcionava energia suficiente para alimentar, além do complexo industrial, a Vila. Depois de Santa Rita, fomos até a Fazenda da Quinta.

- Arrozeira Camaquense

Silvio Luís, Francisco Luís e Lauro Azambuja constituíram a Arrozeira Camaquense, em 10.06.1948, uma Sociedade Anônima, com participação de outros associados, de Barra do Ribeiro e Tapes. A Sociedade adotou o processo de arrendamento de suas terras. O sistema de arrendamento da empresa de secagem e beneficiamento do arroz fez crescer o número de produtores de arroz, aumentando a mão-de-obra onde predominava o trabalho braçal. No final da década de 1960, a Arrozeira Camaquense foi comprada por José Cândido Godói Neto, um grande acionista da empresa que comprou as ações de todos os outros sócios. A partir de então, se iniciou o declínio do empreendimento e de Santa Rita do Sul.

Após a Revolução Redentora de 1964, o governo investiu em uma política agrícola que priorizava a produção e produtividade. Adotou-se um sistema de créditos e subsídios fomentando a pesquisa, a assistência técnica, a adoção de tecnologia, o que aumentou intensamente a utilização de máquinas e insumos de origem industrial.

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No final da década de 1980 a política agrícola sofreu profundas alterações e os proprietários das terras voltaram a vender o patrimônio fundiário. Apenas uma pequena quantidade de produtores conseguiu manter-se na condição de orizicultor. O maior empregador local passou a ser a indústria de beneficiamento de arroz, mas como não conseguia absorver toda a mão-de-obra da atividade agrícola, os trabalhadores migraram em massa para Vila.

– A Saga da Equipe de Apoio

Preocupados com nossa equipe de apoio que partira de Tapes tentamos, sem sucesso, contato via rádio. Permanecemos, até ao anoitecer, postados no trapiche e nada; resolvemos então deixar rádio ligado para que, quando eles se aproximassem mais, pudéssemos fazer contato. Mais tarde, tomamos conhecimento de que eles estavam operando no Canal 16 e não no Canal 6 como havíamos combinado anteriormente. Nesse ínterim, veio nos visitar, no Destacamento da Brigada, o amigo Pedro Auso, de Camaquã e, quando este já estava de saída, aproveitamos a carona para ir até o Clube Náutico de Arambaré. Lá chegando, deparamos com nossa equipe de apoio aportando.

A equipe de apoio chegou à noite ao Clube Náutico orientada pelo Sr. Charles Rodrigues Berçot. Berçot é um nauta, com espírito de escoteiro, que se compraz em auxiliar o próximo. Seu relato pessoal a respeito da recuperação do Farol do Cristóvão Pereira mostra muito bem esse seu lado de bom samaritano (http://www.popa.com.br/diarios/arambareh_cristovao.htm)

No dia 18 de setembro corrente, eu, Charles Berçot, juntamente com o Adriano Becker, em um Guanabara (Ibaré) e, a reboque, um O’Day 12 (Beluga), cruzamos a Lagoa dos Patos em direção ao farol Cristóvão Pereira. Saímos às 9h45 do dia 18 e chegamos ao outro lado (atracamos) às 16h15mim, exatamente 6h30min de travessia, muito tranquila, apesar da fome, o que nos ansiava para a chegada e o início do almoço. No domingo dia 19, pela manhã, resolvemos fazer um rapel no farol, o que conseguimos com facilidade. Lá chegando, fomos à exploração. Ao subir no farol, nos deparamos com a placa solar, caída e com um dos fios de alimentação solto. Fizemos o conserto da melhor forma que nos possibilitou e fixamos novamente a placa solar.

O Coronel PM Sérgio Pastl faz o seguinte relato a respeito do deslocamento dele e do Comandante Norberto Weiberg desde o Clube Náutico Tapense (CNT) até o Clube Náutico de Arambaré no “Hagar”:

Saímos com o Hagar do CNT às 15h30 de 16.04.2012, contornado a Ponta da Helena ao anoitecer, e velejamos à noite na enseada de Arambaré. O Farolete que marca o ponto do canal está às escuras, de modo que fomos pelas luzes da cidade e por marca do GPS da Foz do Arroio Velhaco, capturado no google pelo Norberto. A aproximadamente duas milhas da cidade, o Norberto chamou no rádio portátil na frequência marítima, canal 16, e o Charles Berçot atendeu, estava de plantão, como aficionado rádio amador que é, além de grande nauta.

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Gentilmente deslocou-se até a extremidade Norte da cidade, sinalizando com os faróis de seu carro, e depois foi até a Foz do arroio, que está literalmente bloqueada não por um banco de areia, mas sim por um morro de areia. Orientou-nos a prosseguir mais 500 m para o Sul, rente à costa, e então subir rumo Norte, já por dentro do alfaque (banco de areia). Não fosse ele, sem nenhuma chance teríamos que aportar na Praia e arrastar o Hagar a braços até a Foz. Ainda na Foz, nos indicou um tronco encalhado a desviar, e nos acompanhou até ancorarmos na marina. Como reza a tradição do Mar, o homem é hospitaleiro, sábio e voluntarioso.

Apenas para ilustrar: nos anos 2004, ele foi com um veleiro guanabara e parceiros até o Farol Cristóvão Pereira, e restaurou sua luz de sinalização, sem ônus para o Estado nem para a União. Soube, também, pelo guarda da noite do Clube que, quando ele estava na Comodoria do clube, ele instalou às suas expensas uma estação de rádio, e treinou os funcionários para ficarem na escuta 24 h, para apoiar navegadores ao largo, mas a nova Comodoria decidiu retirar o equipamento. O homem é um grande altruísta; além de outras cavalheirescas virtudes, brindou-nos com um gostoso vinho naquela noite fria, em que o Nordeste nos incomodou (molhadinhos até os ossos, né!). No Clube, nos indicou um local ideal para a barraca, e permitiu-nos o uso da cozinha do Clube e seu quiosque e demais dependências, sem custo, um fidalgo verdadeiro. Estou em dívida com ele e espero poder retribuir oportunamente.

– Partida de Arambaré (17 de abril)

Partimos cedo, 06h30, contando mais uma vez com o apoio dos amigos brigadianos. Os ventos de proa freavam nosso deslocamento e só aportamos na Ponta da Helena (30°52’43,87”S / 51°23’22,13”O) às 08h20. Depois de contornar a Ponta da Helena, observamos contritos (mortificados, tristes) os bosques de “pinus”, ao longe, ultrapassando as permeáveis cercas que os confinam e invadindo inexorável e progressivamente as belas áreas de mata nativa. Como talibãs verdes, as hordas bárbaras vão estendendo seus tentáculos sufocantes, envolvendo as majestosas figueiras que, estóicas, aguardam as impiedosas mortalhas. Os proprietários destes funestos bosques deveriam ser cobrados no sentido de manter incólume a região vizinha às suas plantações, caso contrário as próximas gerações só terão conhecimento dos pretéritos bosques nativos por fotografias.

Prosseguimos rumo Norte e, antes de penetrarmos na enorme enseada conhecida como “Saco de Tapes”, fizemos uma parada, às 12h20, em um canal onde o Cel Pastl preparou um lauto almoço. Depois do almoço, remei rápido para escapar da poluição das águas do Saco de Tapes, onde o mau cheiro e a espuma flutuando na superfície marcam sua presença. A enseada que protege Tapes de poluições de outros centros não permite esconder o descaso dos seus governantes em relação ao sagrado manancial que poluem sem qualquer critério, um crime ambiental para uma cidade que se propõe a abrigar um balneário turístico às margens da Laguna. Aportamos no Clube Náutico Tapense às 15h45.

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– Tapes, a Namorada da Lagoa (17/18 de abril)

O Cel Pastl regressou, de ônibus, a Porto Alegre, depois de nos instalar confortavelmente na residência de seus parentes. No dia seguinte (18.04.2012) de manhã, nos despedimos do Comandante Norberto Weiberg, e, à tarde, nos instalamos na sauna do Clube Náutico Tapense o que nos permitiria realizar as pesquisas necessárias na cidade e partir de manhã sem grandes transtornos. Depois de visitar a Casa de Cultura, onde selecionamos o material relevante, e jantar na cidade, nos recolhemos às instalações da sauna do Clube para pernoite.

– Partida para a Ponta da Formiga (19 de abril)

Partimos às 06h30 depois de pernoitar na sauna do Clube Náutico Tapense. Os ventos de Oeste de 6 nós (10,8 km/h) permitiam que atacássemos diretamente o estreito da Restinga do Pontal de Tapes, a 13 km de distância, para onde apontamos a nossa proa. No ponto da travessia terrestre, havia um pequeno rebaixamento que, certamente, na cheia, deve permitir a passagem das águas da Laguna dos Patos até o Saco de Tapes. Chegamos ao estreito às 08h05, uma média superior aos 8 km/h, carregamos os caiaques e as tralhas pelo estreito para a face Este do Pontal. Comuniquei nossa passagem ao Cel Pastl e ao Cel Araújo, do CMPA.

Fizemos uma parada às dez horas na única Ilha de mata nativa imersa no emaranhado dos pinus, onde existia o acampamento de um solitário pescador e uma matilha de cães, e depois, às 11h55, nos eucaliptos na costa de Santo Antônio (30°32’37’’S / 51°17’33’’W).

Fizemos uma outra parada, às 13h48, na região onde havíamos resgatado o caiaque Anaico, pilotado pelo Hélio no ano passado (30°29’44,2”S / 51°16’23,5”O). Procurei a maior duna e informei, via celular, ao Cel Pastl, que iríamos continuar até o Morro da Formiga, aproveitando as condições do tempo.

Resgate do Anaico: (http://www.pantanalnews.com.br/contents.php?CID=77279)

Aportamos nas Falésias (30°26’07’’S / 51°14’19’’W) às 14h24. Subimos nas enormes Dunas de areia onde consegui contatar minha filha Vanessa, a Rosângela e o Cel Araújo e desfrutar da visão panorâmica privilegiada do local. Do alto, podia-se avistar a Nordeste a Ilha do Veado e o Morro da Formiga, a Este a Ilha do Barba Negra e ao Sul o Pontal de Tapes. Partimos às 15h10 para nosso objetivo final que se encontrava a apenas 10 km de distância.

Chegamos ao acampamento de pescadores na Praia do Canto do Morro da Formiga (30°25’34’’S / 51°08’31’’W), às 16h20, onde fomos muito bem recebidos pelos amigos pescadores. Nosso anfitrião foi o Sr. Vlademir S. Rodrigues que nos proporcionou um beliche para dormir, e um jantar soberbo onde não faltou uma saborosa feijoada e peixe frito sem espinha, que ele mesmo preparou.

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O Vlademir é um gráfico aposentado que complementa sua renda familiar com a pesca, cidadão bem informado, discorre com fluência invulgar sobre os mais diversos temas.

Tive a oportunidade de apreciar, neste dia, um pôr-do-sol magnífico, carregado de matizes suaves e nostálgicos sobre a Laguna. Era um sinal carinhoso de despedida desta querida amiga que, por diversas vezes, nos recebeu em seu seio, algumas vezes mal-humorada e agressiva; outras, porém, terna e carinhosa.

– Partida para a Vila de Itapoã (20 de abril)

Saímos sem pressa, às 07h25, estávamos muito adiantados na nossa programação, poderíamos aportar hoje mesmo em Ipanema, mas resolvemos manter a data/hora da chegada sem alteração. Os cardumes de tainhas brincavam nas águas rasas e mornas ao longo da Ponta da Formiga e da Ponta da Faxina. Fizemos uma parada numa enorme duna dourada na Ponta da Faxina e de lá ficamos observando as belas paisagens da Laguna e do Guaíba.

Saímos às 09h47, rumo à Ilha do Junco. Contornamos sua face Sul e aportamos nas praias de Leste, às 10h10. Aproveitei para lavar minha roupa e enviar uma mensagem para o Cel Pastl que partira de Tapes, acompanhado do Major PM Martins no veleiro Ana Claci. Fomos abordados por uma equipe de fiscalização do parque que informaram que era proibido aportar na Ilha. Havíamos parado apenas para descanso antes de continuar nossa jornada mas, segundo eles, nem isso era permitido. Leis idiotas em um país onde tantas outras insanidades prevalecem sobre o bom senso e as leis maiores.

Partimos às onze para o último lance deste curto dia rumo à Vila de Itapoã. Passamos pela Ilha das Pombas às 11h35, e aportamos na Vila, às 12h15. Instalamo-nos em uma Pousada e aguardamos notícia da equipe de apoio que chegou por voltadas das 14h00. O Major PM Martins assou algumas tainhas no quiosque da Pousada que degustamos com prazer. Depois do almoço, a equipe de apoio se dirigiu ao estaleiro do Sr. Lessa.

– Partida para a Ilha de Francisco Manoel (21 de abril)

Parti somente às onze horas, o tiro era curto. O Hélio ficou aguardando a esposa e a filha na pousada. Contatei no caminho alguns amigos canoístas e aportei na Ilha por volta das quinze horas onde fiquei aguardando o Hélio que estava com a barraca para montar acampamento. O Hélio me comunicou, mais tarde, que viria somente no dia seguinte. Improvisei um acampamento debaixo de uma mesa, ao relento, e me preparei para descansar até que o pessoal do Clube Veleiros do Sul apareceu e, preocupados com meu conforto, insistiram para que eu ocupasse as instalações do Clube para acantonar. Foi um socorro muito bem-vindo, pois durante a noite a temperatura caiu muito.

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De manhã, fiquei conversando com um grupo de velejadores dentre os quais se incluía o Comandante Luiz Alberto Pereira Morandi a quem eu havia solicitado, anteriormente, autorização para pernoitar na Ilha. É impressionante verificar como a irmandade de remos e velas se entende, temos, sem dúvida, a mesma afinidade e respeito pelas águas e a natureza em geral.

– Partida para a Praia de Ipanema (22 de abril)

O que importa é o grau de comprometimento envolvido numa causa, e não o número de seguidores! (Harry Potter)

O Hélio finalmente chegou e permanecemos durante algum tempo na Ilha conversando com os velejadores até as onze horas quando partimos, sem pressa, para nosso objetivo final. Fomos acompanhados por um dos velejadores até as proximidades da Ponta Grossa. Aportamos pouco antes da quinze horas e, embora nossa Travessia constasse como uma atividade oficial das Programações do Centenário do CMPA, apenas o Ir:. e amigo Coronel Leonardo Araújo, Chefe da Seção Comunicação Social do CMPA nos aguardava. Obrigado “Mano Velho”, são pessoas como você que nos motivam a prosseguir.

Após vocês enfrentarem uma tempestade com ondas de mais de 2 m, virarem os caiaques, arriscarem a vida e remarem tanto, era o mínimo que eu poderia fazer. Ficou célebre a frase de Harry Potter em “As Relíquias da Morte: Parte 2”: “O que importa é o grau de comprometimento envolvido numa causa, e não o número de seguidores!” (Leonardo Araujo)

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Figura 86 – Ponta da Feitoria – Pelotas – RS

Figura 87 – Equipe de Apoio – Arroio Grande – RS

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Figura 88 – Boqueirão – São Lourenço – RS

Figura 89 – São Lourenço – RS

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Figura 90 – Fazenda do Sobrado – São Lourenço – RS

Figura 91 – Monumentos Arbóreos – Arambaré – RS

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Figura 92 – Ponta da Formiga – Barra do Ribeiro – RS

Figura 93 – Ponta da Faxina – Barra do Ribeiro – RS

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Foi com imenso prazer que consegui, passo a passo (remada a remada) o caminho percorrido pela “Bandeira de Francisco de Mello Palheta”, em 1722, a “Viagem da Real Escolta”, empreendida por José Gonçalves da Fonseca, nos idos de 1749 e a “Viagem ao Redor do Brasil (1875 – 1878)”, do insigne Patrono do Serviço de Saúde do Exército Brasileiro, então Coronel João Severiano da Fonseca, pelos tumultuados saltos, cachoeiras e corredeiras do Rio Madeira.

Emocionei-me ao folhear e reescrever as páginas heróicas escritas com o sangue de nossos bravos guerreiros nos “ermos sem fim” do Vale Guaporeano. Mais uma vez, prestei reverência aos nossos irmãos lusitanos que brava e obstinadamente estenderam nossas fronteiras para Oeste com muita coragem, suor, sangue e determinação, lançando no longínquo pretérito, em terras brasileiras, nos mais desertos rincões, as pedras angulares que hoje sustentam os alicerces de nossa tão vilipendiada soberania materializada “ad æternum” pela maior obra da Engenharia Militar naqueles confins Ocidentais, o Real Forte do Príncipe da Beira

Procurei, durante toda a jornada, mostrar a meu filho João Paulo Reis e Silva como extrair a energia das águas, como desviar a atenção do cansaço e da incômoda postura no caiaque, admirando as paisagens, as gentes e os animais da formidável região amazônica. Apresentei-o aos famosos “banzeiros” que intimidam e apavoram os ribeirinhos, a ser capaz de fazer uma leitura das condições do tempo observando o vôo inquieto dos pássaros.

Longe de ser apenas uma apressada descida a remo, estávamos ali para vivenciar e aprender com a natureza e as gentes desse “Paraíso Perdido”, historicamente esquecido pelos poderes públicos. Graças aos ribeirinhos, líderes comunitários, Prefeitos e, em especial, ao General-de-Brigada Paiva, Comandante do 2° Grupamento de Engenharia, sediado em Manaus, AM, do Tenente-Coronel Rangel, Comandante do 5° Batalhão de Engenharia de Construção, Porto Velho, RO, e do Tenente-Coronel Sérgio Henrique Codelo Nascimento, Comandante do 8° Batalhão de Engeharia de Construção, Santarém, PA, conseguimos atingir todos os objetivos propostos com mais conforto e segurança.

O sucesso não seria completo, contudo, se não contasse com o apoio irrestrito de minha fiel companheira Rosângela Maria de Vargas Schardosim e dos amigos e irmãos Grupo Fluvial do 8° BECnst comandado pelo Comandante do Piquiatuba Soldado Mário e sua zelosa tripulação formada pelos soldados Vieira, Rebelo e Marçal. (Hiram Reis e Silva)