04 o rosto de cristo 13-39

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© Armindo Trevisan, 2003 Capa: VIOLETA GELATrl LIMA sobre foto da rosácea sul da Catedral de Chartres Diagramação: LAuRJ HERMóGENES CAR.ooso editoriaL· PAULO FUMo LEOUR Editoração AGE- AssESSORIA GRAFtCA E EorroRJAL L mA. Reservados rodos os direitos de publicação à EDITORA AGE LTDA. [email protected] Rua Dr. Ramiro d'Ávila, 20, conj. 302 Fone (51) 3217-4073- Fax (51) 3223-9385 90620-050 Porto Alegre, RS, Brasil www.editoraage.com.br Distribuidora AGE Rua José Rodrigues Sobral, 230 Fone (5 I) 3339-2952- Fax (5 I) 3352-0375 915 I 0-000 Porco Alegre, RS, Brasil [email protected] Impresso no Brasil/ Prinred in Brazil ORIGINAL Armindo Trevisan O Rosto de Cristo A Formação do Imaginário e da Arte Cristã Jtt:i EDITORA PORTO ALEGRE 2003

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  • Armindo Trevisan, 2003

    Capa: VIOLETA GELATrl LIMA sobre foto da roscea sul da

    Catedral de Chartres

    Diagramao: LAuRJ HERMGENES CAR.ooso

    Sup~rviso editoriaL PAULO FUMo LEOUR

    Editorao ~trnica: AGE- AssESSORIA GRAFtCA E EorroRJAL L mA.

    Reservados rodos os direitos de publicao EDITORA AGE LTDA.

    [email protected] Rua Dr. Ramiro d'vila, 20, conj. 302

    Fone (51) 3217-4073- Fax (51) 3223-9385 90620-050 Porto Alegre, RS, Brasil

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    [email protected]

    Impresso no Brasil/ Prinred in Brazil

    ORIGINAL ~Jf'!

    Armindo Trevisan

    O Rosto de Cristo A Formao do Imaginrio

    e da Arte Crist

    ~C?~~ ~0

    Jtt:i EDITORA

    PORTO ALEGRE 2003

  • Cfflpitulo I Procura-se um Rosto para Cristo

    1. UMA CERTA A VERSO IMAGEM

    O rosto mais conhecido no mundo ociden-tal o de Cristo. At uma criana consegue identific-lo num cartaz de rua, ou num anncio de televiso. Nesse caso, como en-tender a afirmao de um especialista do Novo Testamento, autor de uma vida de Cristo (traduzida para muitas lnguas): "As fontes fidedignas no dizem absolutamente nada sobre o aspecto fsico de Jesus?"2 No-temos um pormenor: ~solutamente nad'! Ou como diz outro autor: no existe nenhu-ma "imagem autntic' de Jesus.3

    Se queremos explicar to impressionante ausncia de informaes sobre o aspecto f-sico do personagem mais importante da ci-vilizao ocidental, devemos reportar-nos poca em que Jesus viveu. No havia, ento, interesse das pessoas em relao quilo que ns denominamos "a vida pessoal" dos gran-des homens, sua psicologia, seus sentimen-tos ntimos. A respeito dos gregos escreve C. M. Bowra, observao que, com algumas ressalvas, se pode aplicar aos judeus: " bas-tante significativo que nunca tenham escri~

    2 RICCIOITI, Giuseppe. Vula tk Jesucristo. Barcelona, Luis Miracle Editor, 1951. p. 195. 3 PRAT, Ferdinand.]t'sus-Christ. Paris, Beauchesne, 1947. 6 d. Tome I. p. 147.

    to confisses nem autobiografias. No h dvida de que, no sculo V a. C., fon de Quos escreveu umas memrias, mas pare-cem ter sido mais sobre os outros que sobre ele prprio. A primeira alma humana que se nos abre em lngua grega, e sem segredos, no a de um grego, mas a de um hebreu entre os hebreus, Paulo de Tarso. "4

    Em linhas gerais, os autores do passado se fixavam mais naquilo que os personagens histricos "representavam", do que naquilo que eles eram. Ou seja, dirigiam seu interes-se para a atuao pblica dos personagens.

    A rigor, no se pode falar em retratos, no sentido preciso do termo, antes do s-culo XIV. Os historiadores apontam exce-es, que poderiam ser certas figuraes encontradas em- mastabas5 de Tebas, e nas mscaras funerrias de Fayum dos sculos III-IV. Na realidade, o primeiro retrato livre, "em que a pessoa se apresenta sem outro objetivo que o de mostrar-se", o de Joo, o Bom (uma pintura sobre ma-deira, datada de 1360, atualmente no Lou-vre).6

    4 A Experincia Grega. Lisboa, Arcdia, 1967. p. 208-209. 5 Tmulos do Egito antigo, que abrigavam uma capela de oferendas e um poo de acesso cmara funedria sub-terdnea. 6 FRANCASTEL, Galienne, et Pierre. El Retrato. Ma-drid, Ediciones Ctedra, 1978. p. 74 e p. 86.

  • I 4 ARMINDO TREVISAN

    Por outro lado, importante fazer-se aqui uma referncia ao aniconismo7 judaico. Uma observao insuspeita de Bernard Berenson facilita-nos a compreenso disso: "Nem eles prprios (os judeus), nem seus antepassados possuam qualquer espcie de habilidade plstica ou at mecnica. Seus registros di-zem que durante grande parte do seu pero-do herico no havia nenhum ferreiro no pas. ( ... ) Na verdade, Israel, atravs das eras, no manifestou nada especialmente nacio-nal nas artes plsticas, nem na Antiguidade nem por toda a Idade Mdia, nem hoje em dia. "8 A observao de Berenson merece re-paros, sobretudo no que concerne poca moderna e contempornea: Liebermann, Pissarro, Modigliani, Chagai! e, de modo especial, Rothko, esto a para desmentir, ao menos parcialmente, o autor. Apesar disso, vale a pena deter-se na afirmao de Beren-son. A averso s imagens tinha suas origens na Bblia, particularmente no xodo, onde se l: "No fars para ti imagem esculpida de nada que se assemelhe ao que existe l em cima, nos cus, ou embaixo da terra, ou nas guas que esto debaixo da terra".9

    Dois outros textos parecem restringir se-melhante interdio representao dos deu-ses, isto , aos dolos: "No fareis deuses de prata ao lado de mim; nem fareis deuses de ouro para vs"10; e: "Maldito seja o homem que faz uin dolo esculpido ou fundido, abo-minao para Iahweh, obra de arteso, e o pe em lugar secreto"."

    Mesmo assim, convm lembrar que nem toda representao era proibida aos judeus. Citemos o episdio da "Serpente de Bron-

    7 O termo significa "averso s imagens". 8 Estltica ~Histria. So Paulo, Editora Perspectiva, 1972. p. 161-162. 9 Exodo 20, 4. Trad. da Bib/ia de ]erusaltm. So Paulo, Edies Paulinas, 1991. p. 134. 1o /Jxodo 20,24. Ib. p. 135. 11 Deutmmmio 27, 15. Ibid. p. 311.

    ze" fixada por Moiss a um poste (Nmeros 21, 4-9), e as imagens dos Querubins da Arca da Aliana (a que se refere o codo 25-18).

    S com o surgimento dos Macabeus, quando o perigo helenista de contaminao idoltrica ameaava Israel, que os judeus voltaram estrita observncia da antiga in-terdio. A despeito disso, nos incios da era crist, a proibio mosaica estava considera-velmente atenuada.

    2. FEIRA OU BELEZA DE JESUS?

    Uma vez que os textos do Novo Testamento no diziam nada sobre a aparncia fsica de Jesus, o caminho ficava aberto s hipteses subjetivas.

    Com o passar do tempo surgiram dois gru-pos de opinio: o dos partidrios da feira de Jesus, e o dos partidrios de sua beleza.

    Ambos os grupos buscavam apoio nos textos sagrados. Os partidrios da feira de Jesus, a maioria dos padres antigos da Igre-ja, como Clemente de Alexandria, Orfgenes, Baslio e Cirilo de Alexandria, recorriam a um . texto do Profeta Isaas, atribudo pela tradio ao "Servo de lahweh": "( ... )no ti-nha beleza nem esplendor que pudesse atra-ir o nosso olhar, nem form"osura capaz de nos deleitar". 12 Segundo Justino, Jesus teria sido at disforme. 13 Efrm, o Srio, pensava que ele era de baixa estatura: pouco mais de trs cvados, isto , aproximadamente 1,35 m

    14 Clemente de Alexandria no receou afir-mar que Jesus era feio de semblante.15

    Os partidrios da beleza de Jesus encon-tram-se entre os padres da Igreja mais re-

    12 Isaas 53,2 Cf. A Biblia de jerusalm. p. 1449. 13 Cir. por RICCIOTTI, Giuseppe. Vida de ]esucristo. p. 196. 14 Cir. Ibid. p. 196. 15 Cit. Ibid. p. 196.

    i I

    centes, como Gregrio de Nissa, Joo Cris-tstomo, e Jernimo, o autor da Vulgata. Cabe a Agostinho de Hipona o mrito de ter sido o principal defensor da beleza de Cristo. Os defensores dessa hiptese apela-vam, particularmente, para o salmo messi-nico 45,2: "s o mais belo entre os filhos dos homens, a graa escorre dos teus lbios, porque Deus te abenoou para sempre".16

    1Amb . fu, . os os grupos eram 1rre tave1s no seu recurso aos textos sagrados, por uma sim-ples razo: tais textos no se referiam ao as-pecto fsico do Salvador, mas ao seu perfil simblico, ou melhor, sua imagem ideal.

    3. O SURGIMENTO DAS LEGENDAS

    Cristo foi morto por volta do ano 30 da nossa era. 17 A primeira meno histrica a uma representao sua ocorre 170 anos aps, num livro do bispo lrineu de Lyon: Adver-sus Haereses. Nessa obra o autor menciona uma seita gnstica, que declarava possuir uma imagem de Jesus, mandada fazer por Pncio Pilatos quando o Mestre estava vivo.18

    Quase um sculo e meio mais tarde sur-ge a segunda meno, numa biografia do imperador Alexandre Severo (que reinou de 222 a 235 d. C.). Diz o seu bigrafo Hlio Lamprdio: "Todas as manhs o imperador Alexandre Severo praticava suas devoes no lardrio (capela dos deuses-la-res, entre os antigos romanos), onde ha-via colocado as imagens dos mais dignos entre os imperadores divinizados e de ai-. guns dos melhores homens de bem, entre

    16 A Biblio de ]erusallm. p. 996. 17 GNILKA, Joachim. Jesus de Nazari. Petrpolis, Vozes, 2000. p. 290. 18 GHARIB, G. Os !cones de Cristo. So Paulo, Editora Paulus, 1997. p. 27-28.

    o ROSTO DE CRISTO 15 '

    os quais Apolnio de Tiana ( ... ), Cristo, Abrao, Orfeu e outros ( ... )" 19.

    Portanto, nos sculos li e III d. C. j exis-tiam imagens de Cristo no mundo ociden-tal. Vejamos como ocorreu a evoluo des-sas imagens.

    Aproximadamente no ano 570 d. C., deparamo-nos com o testemunho de um autor cristo, o Annimo de Piacenza, que fez uma viagem ao Egito e Palestina. Ele escreveu uma espcie de dirio-de-viagem sobre suas andanas, conhecido pelo ttulo latino de !tinerarium.

    Nesse relato o autor diz ter encontrado em Mnfis, no Egito, um vu de linho com o qual Jesus enxugara o rosto, deixando nele impressa a marca dos seus traos. Demos a palavra ao autor: "Conta-se que quando era vivo ele enxugou o rosto com aquele pano, deixando nele a sua imagem. Hoje este pano venerado; e tambm ns o veneramos; mas pelo esplendor que dele emanava, no pu-demos olh-lo, e quanto mais procurvamos olh-lo, tanto mais se mudava diante dos nossos olhos."20 Outra curiosidade desse di-rio a aluso a um retrato de Jesus exposto no Pretrio de Pilatos, do qual o autor nos d a seguinte minuciosa descrio: "O p bonito, regular, delicado; a estatura comum; o rosto belo, os cabelos anelados, as mos formosas, os dedos longos: estes so os ca-racteres do retrato enquanto ele estava vivo; e que foi colocado depois no prprio Pre-trio" .21

    Quase dois sculos aps o dirio do An-nimo de Piacenza, surgem dois outros de-poimentos que lhe reforam a importncia, acrescentando-lhe detalhes dignos de aten-o, sobretudo para se compreender o esp-

    19 Cir. por GRABAR, Andr. E/ Primer Arte Cristiano. Madrid, Aguilar, 1967. p. 287. 2o Cit. por GHARIB, G. lbid. p. 35. 21 Ibid. p. 35.

  • 16 ARMINDO TREVISAN

    rito de algumas legendas posteriores. Andr, . metropolita de Creta em 71 O d. C., menciona uma imagem do Salvador exposta na Igreja de Santa Sofia, em Constantinopla. A des-crio, que o autor faz da citada imagem, parece derivar de uma fonte bizantina, mes-clada a outras fontes desconhecidas: "Todos atestam que Lucas, apstolo e evangelista, pintou com as prprias mos o Cristo en-carnado e a sua imaculada Me, e que essas imagens se conservam em Roma com gran-des honras; afirma-se tambm que essas ima-gens se conservam em Jerusalm. Mas mes-mo o judeu Josefo (Flvio) conta que o Se-nhor tinha sido visto do mesmo modo: com sobrancelhas unidas, belos olhos, rosto alon-gado, um tanto curvado, de boa estatura, como certamente aparecia morando em meio aos homens. Do mesmo modo descre-ve tambm o aspecto da Me de Deus, como hoje se v (pela imagem), que alguns cha-mam de "a Romana."22

    Notemos, de passagem, a expresso "um tanto curvado", que alguns autores interpretam como sinal da feira de Cris-to. A tradio da beleza de Cristo. ter-se-ia atenuado pela tradio de sua feira, com-pondo assim um retrato ao gosto de am-bas as tradies.

    Citemos o segundo depoimento, o de um certo Epifnio (800 d. C.), do q4al se sabe apenas que foi monge em Constantinopla. Deixou uma Vida de Maria, donde extra-mos o seguinte trecho: "Jesus media cerca de seis ps (aproximadamente 1,70m), com cabeleira loura e um pdhco ondulada, so-brancelhas pretas no totalmente arqueadas, com uma ligeira inclinao do pescoo, de modo que a sua aparncia no era totalmente perpendicular, com o rosto no redondo mas

    22 Ibid. p. 66.

    um tanto alongado, como o da sua Me, com a qual, alis, ele se parecia em tudo."23

    interessante transcrever o retrato que Epifnio traa de Maria: "Era de estatura alta, embora alguns digam que apenas supe-rava os limites da mdia. Sua cor, ligeiramen-te dourada pelo sol da sua terra, refletia a cor do trigo. Louros os cabelos, vivos os olhos, pouco olivcea a pupila. As sobran-celhas arqueadas e pretas, o nariz um pouco alongado, os lbios vermelhos e cheios de suavidade no falar. O rosto, nem redondo nem aguado, mas elegantemente oval; as mos e os ps adelgaados. "24

    Portanto, j no sculo IX se havia che-gado a uma espcie de retrato ideal de Cristo e da Virgem, um retrato evidente-mente falado, que no tardaria a se con-cretizar numa srie de pinturas mais ou menos estereotipadas. As caractersticas do retrato de Jesus remetem a um conjunto de qualidades morais, que a tradio jul-gava descobrir nas Escrituras, nos textos a ele atribudos profeticamente. Foi a partir desses textos que se elaborou uma confi-gurao visual mais definida, influencia-da por rasgos tnicos, e por outros rasgos tributrios de uma certa concepo de beleza, relacionada com os cnones bizkn-tinos. Mas o retrato falado de Cristo de-veria passar por um momento importante de sua trajetria: o das legendas. Dentre estas, duas adquirram singular relevncia: a primeira a do rei Abgar de Edessa; a segunda, a de Tiago de Vorgine, autor da Legenda Dourada, publicada aproximada-mente em 1250 d. C., que teve papel de-terminante na difuso de uma certa ima-gem de Jesus.

    23 Ibid. p. 68. 24 Cit. Ibid. p. 68.

    FIGURA 1 O Mandylion de Edma. Sculo XVIII. Pintura; 0,40x0,32 m. Hampton Court Palace, Londres.

    4. O MANDYLION DE EDESSA E A QUESTO DO SUDRIO

    Mandylion uma palavra aramaica que sig-nifica toalha. Outros pretendem que a pala-vra procede do rabe mandil, por sua vez derivado do latim mandile: vu ou leno.

    A primeira referncia a essa relquia en-contra-se na Histria Eclesistica, de Eus-bio, redigida nos incios do sculo IV, mais exatamente no ano 324 d. C.

    Recordemos a legenda: Abgar V, o Ne-gro, rei de Edessa (atual Urfa, cidade na fron-teira da Turquia com a Sria), teria enviado uma carta a Jesus para convid-lo a ir sua corte a fim de cur-lo da lepra que o desfi-gurava, impedindo-o de receber os sditos. Eis a carta de Abgar:

    '~gar, toparca25 da cidade de Edessa, a Jesus Cristo, o excelente mdico que surgiu em Jerusalm, salve!

    Ouvi falar de ti e das curas que realizas sem remdios. Contam efetivamente que fazes os cegos ver, os coxos andar, que puri-ficas os leprosos, expulsas os demnios e os espritos impuros, curas os oprimidos por

    25 Toparca: na antiguidade, uma espcie de prncipe inde-pendente.

    0 ROSTO DE CRISTO 17

    longas doenas e ressuscitas os mortos. Ten-do ouvido de ti tudo isso, veio-me a convic-o de duas coisas: ou que s Filho daquele Deus que realiza estas coisas, ou que s o prprio Deus. Por isso, te escrevi pedindo que venhas a mim e me cures da doena que me aflige e venhas morar junto a mim. Com efeito, ouvi dizer que os judeus murmuram contra ti e te querem fazer mal. Minha cida-de muito pequena, verdade, mas honra-da e bastar aos dois para nela vivermos em paz."26

    Segundo a legenda, o rei teria confiado essa carta a um pintor de nome Ananias, considerado bom retratista. Tendo encontra-do Jesus, o mensageiro entregou-lhe a carta, e se empenhou em pintar-lhe o rosto. Aper-cebendo-se do embarao do pintor, Jesus pediu gua para lavar o rosto, e uma toalha para o enxugar. No momento de enxug-lo, imprimiu na toalha a sua imagem, que ofe-receu a Ananias, acompanhada da seguinte mensagem:

    "Bem-aventurado s, Abgar, porque acreditaste em mim, embora no me te-nhas visto. De mim, com efeito, est es-crito que quem me vir no crer em mim, para que os que no me vem creiam em mim e tenham a vida. Quanto ao convite que me fizeste para ir ter contigo, respon-do que preciso que eu cumpra aqui toda a minha misso, e que depois do seu cum-primento eu volte para aquele que me mandou. Mas quando tiver subido para junto dele, te mandarei um dos meus dis-cpulos, de nome Tadeu, para curar-te do mal e oferecer-te a vida eterna e a paz a ti e aos teus, e para fazer, pela cidade, quan-to for necessrio para defend-la dos ini-migos."27

    26 Cit. por GHARIB, G. Os !cones tk Cristt>. p. 43. 27 Cit. por GHARIB, G. p. 43.

  • 18 ARMINDO TREVISAN

    No Sinaxdrio, nota litrgica lida no dia 16 de agosto, no ofcio da transladao do Mandylion de Edessa para Constantino-pla28, segundo o rito da Igreja do Oriente, l-se que Cristo aplicou, no fim da carta, sete selos com letras hebraicas, cujo significado era: "Viso maravilhosa de Deus"29 O mon-ge Simeo de Metrafrastes (886-912), autor do mencionado texto, ajunta que o rei Ab-gar ficou curado da lepra, com exceo de uma pequena pinta sobre a fronte. 30

    Que aconteceu, porm, com essa ima-gem, que os gregos afirmam ser achiropoi'e-tos, isto , "no feita por mo" (humana)?

    Segundo a tradio, ela teria sido expos-ta a venerao dos fiis, em Edessa, com a inscrio "Cristo Deus, quem em ti espera no se perder". Em 57 d. C., porm, um neto de Abgar promoveu um retorno ao paganismo. Advertido em sonho dos planos desse soberano, que pretendia destruir a imagem, o bispo da cidade mandou-a em-paredar num nicho, ocultando-a sob uma placa de cermica. O Sinaxdrio afirma que em 544 d. C., isto , 487 anos aps, a ima-gem foi redescoberta, quando . o rei persa, Cosros, depois de ter saqueado todas as ci-dades da sia, sitiou Edessa. Uma viso re-velou ao bispo Eullio a existncia da rel-quia esquecida. Graas a ela, Edessa foi sal-va das mos do exrcito persa, que foi obri-gado a retirar-se quando seu arsenal se in-cendiou.

    Outros documentos apresentam verses algo contrastantes sobre os incidentes que se seguiram morte do rei Abgar. De qual-quer modo, h um perodo de obscuridade entre 544 e 944 d. C., quando a imagem foi levada para Constantinopla.

    28 944 d. c. 29 Jbid. p. 43. 30 Jbid. p. 43-44.

    Convm notar que o grande padre da Igreja e defensor corajoso das imagens du-rante o perodo iconoclasta Joo Damasce-no (falecido em 749 d. C.), menciona duas vezes a imagem de EdessaY

    De 944 a 1204, a imagem teria perma-necido em Constantinopla. Existem docu-mentos que parecem comprov-lo.32

    Em 1204 a capital foi invadida e saquea-da pelos exrcitos da Quarta Cruzada. A suposta imagem de Abgar novamente tomou rumo inesperado. Ficou-nos um registro da ocupao de Constantinopla, escrito pelo cavaleiro francs Robert Clari, no qual se menciona um Suddrio, tambm portador de uma imagem aquiropita, isto , "no feita por mos humanas". Leiamos o texto de Robert Clari:

    "E entre estas outras igrejas existe uma que se chama Senhora Santa Maria de Bla-cherne, onde se achava o sudrio que tinha envolvido Nosso Senhor que cada sexta-fei-ra era exposto desdobrado, de tal modo que nele se podia ver bem a figura de Nosso Se-nhor. Ningum soube, seja grego ou fran-cs, o que aconteceu com este sudrio quan-do a cidade foi conquistada."33

    Seria esse sudrio, de que fala o cavaleiro francs, a mesma imagem do Mandylion de Edessa? Qual das duas imagens seria respon-svel pela criao da Sagrada Face, .o arqu-tipo de toda imagem de Cristo, da Arte Bi-zantina aos dias de hoje? A lenda da Verni-ca, nesse caso, no passaria de uma verso ocidental do Mandylion de Edessa? ~rnica - uma palavra hbrida, semilatina e semi-grega: Vera-Eikon (vero-cone) - teria sido feminizada para ajustar-se representao de

    3! Cit. por GHARIB, G. Jbid. p. 48. Cf. tb. PAYNE, Ro-ben. E/ Mundo de/Arte. Barcelona, Ediciones Martinez Roca, 1974. p. 209. 32 GHARIB, G. lbid. p. 53-55. 33 Ibid. p. 56. .

    uma mulher que se tornou personagem de uma das narrativas piedosas do autor da Le-genda Dourada? Eis a verso da legenda, tal qual no-la oferece o Bispo de Gnova:

    "Entretanto Tibrio adoecera grave-mente; algum lhe disse que em Jerusa-lm havia um mdico que curava os en-fermos com a simples palavra: na verdade ainda no se tinha espalhado a notcia de que tinha sido morto (Jesus} por Pilatos e pelos judeus. Disse ento Tibrio a Volu-siano: 'Corre logo alm mar e dize a Pila-tos que me envie imediatamente esse m-dico'. Volusiano foi at Pila tos e referiu-lhe a ordem do imperador; este, aterrori-zado, pediu um prazo de quatorze dias. Durante esses dias aconteceu que Volusiano encontrou uma mulher amiga de Jesus, chamada Vernica, qual perguntou onde poderia encontrar Cristo. ~i de mim, res-pondeu Vernica, era o meu Senhor, mas Pilatos por inveja o condenou e mandou crucificar'. Grandemente entristeceu-se o enviado do imperador e disse: 'Infelizmen-te no posso cumprir a ordem do impera-dor'. E Vernica: 'O meu Senhor estava sempre em viagem a pregar e por isso eu, que muito sentia a falta da sua presena, quis que um pintor me representasse o seu rosto para que um pouco me consolasse. Enquanto levava o lenol para ele pintar, encontrei o meu Senhor: perguntou-me aonde ia e tendo-o sabido mandou-me que lhe desse o lenol. Logo que encostou nele o rosto, ficou sobre o pano a imagem dele'. E Volusiano: 'Por essa imagem no pode haver retribuio adequada de ouro ou de prata?' 'No, disse a mulher, apenas a de uma sincera piedade. Eu irei contigo a Roma e mostrarei a imagem a Csar, de-pois voltarei para c'; Volusiano chegou a Roma com Vernica e disse a Tibrio: 'Pi-latos e os judeus injustamente condena-ram morte aquele Jesus que tanto qui-

    O RosTo DE CrusTo 19

    seste conhecer, por inveja o suspenderam na cruz. Mas veio comigo uma mulher, tra-zendo a imagem de Jesus; se devotamente a olhares, logo recuperars a sade'. En-to Tibrio mandou cobrir o cho de ves-tes de seda e mandou apresentar-lhe a

    Imagem. Logo que olhou para ela achou-se curado."34

    Vrios autores identificaram a imagem de Edessa com a do Sudrio. Ian Wilson, jornalista ingls que tratou do tema num livro de grande repercusso: The Shroud ofTurin. The Burial Cloth of Jesus Christ? ( 1978), supe que o Sudrio estivesse do-brado em Edessa, de modo a mostrar ape-nas o rosto de Cristo. Quando desapare-ceu de Constantinopla, o linho foi aber-to, deixando ver o corpo inteiro. 35 Em 1985, o dominicano A-M. Dubarle reto-mou a hiptese de Wilson. Sobre essa con-trovrsia escreve Georges Gharib: "A hi-ptese realmente sedutora, porque per-mite completar lacunas da histria do su-drio. Mas a identificao proposta vai de encontro ao fato de que o Mandylion, se-gundo toda a tradio antiga, literria e iconogrfica, trazia apenas o rosto de Cris-to sobre o fundo dele e no o corpo intei-ro. Ademais, o Mandylion no um re-trato funerrio, como o caso do Sudrio de Turim".36

    A legenda de Vernica muito antiga .. J existia no tempo de Dante. Nessa po-ca identificava-se a ~rnica com uma ima-gem supostamente impressa num suddrio, guardada na antiga Baslica de So Pedro,

    34 La Legenda Aurea. Firenze, Libreria Fiorenrina, 1985. I. vol. p. 245-246. Apud GHARIB, G. p. 266. La Ligen-de Dore. Paris, Flammarion, 1991. Tome I. p. 267-268. 35 O livro de lan Wilson foi" traduzido para o 'portugus: O Sudrio de Turim. So Paulo, Edies Melhoramentos, 1979. Jbid. p. 282.

    . 36 Jbid. p. 57.

  • 20 ARMINDO TREVISAN

    numa capela que o Papa Joo VI mandara construir especificamente para tal culto. Eis os versos de Dante referentes a essa imagem:

    "Qual peregrino que, da Crocia .fria, vem por ver a Vernica, e no antigo desejo de fit-la se extasia,

    e treme, e no se afasta, e diz consigo: '6 Senhor Jesus Cristo, Deus veraz, enfim contemplo o teu semblante amigo: '~7

    A legenda de Vernica inspirou muitos artistas ocidentais, entre os quais Albrecht Drer (1471-1528), autor de uma gravura que se tornou popular.38

    5. O QUE PENSAR DA AUTENTICI-DADE DO SUDRIO?

    Comecemos por uma questo: quando teria sido visto pela primeira vez?

    Na hiptese de sua identificao com o Mandylion de Edessa, a questo j foi res-pondida. No sendo admitida essa identifi-cao, os fatos so os seguintes: em 1353, Godofredo de Charny entregou a relquia aos Cnegos de Lirey, na Frana. Em 1452, Margarida de Charny doou o Sudrio a Ana de Lusignolo, mulher de Lus de Savia. Em 1506, o Papa Jlio II autorizou o culto li-trgico e pblico ao Santo Sudrio, transfe-rido em 1578 para Turim. Em 1694, o Aba-de Guarini o colocou numa capela da Cate-dral de So Joo de Turim. Em 1898, o Su.

    37 A Divina Comdia. "O Paraso", XXXI, 103-108. Belo Horizome, Editora Itatiaia- EDUSP, 1976. p. 800. C( Opere di Dante (A cura di Manfredo Porena e Mario Pa-zzaglia). Bologna, Zanichelli, 1966. p. 897-898. 38 Cf. ilustr. em PFEIFFER, Heinrich. Le Christ aux Mi-/k Visages. Paris, Nouvelle Cit, 1986. p. 39.

    drio foi fotografado, pela primeira vez, pelo advogado Secondo Pia. Em 1973, foi exibi-do, pela primeira vez, na televiso. Em 1978, formou-se uma Comisso Ecumnica de 40 cientistas americanos (6 agnsticos, 2 mr-mons, 3 judeus, 4 catlicos, sendo os de-mais protestantes: metodistas, luteranos, congregacionalistas, presbiterianos, episco-palianos e reformistas), para examinar o Su-drio luz dos ltimos avanos em tica, espectroscopia, radiografia, vulcanologia, meteorologia, astronomia, fsica nuclear, f-sica molecular, entomologia, microscopia, botnica, bacteriologia, micologia, fisiologia, patologia, endocrinologia, anatomia imuno-lgica, hematologia, cincias qumicas: ana-ltica, inorgnica, biolgica, fisiolgica, far-macutica, geolgica, txtil e geoqumica. Os

    FIGURA 2 O Sudrio ek Turin (foto de Giuseppe Enrie, 1931). (Esta foto considerada a mais perfeita imagem do Sudrio.)

    mencionados cientistas dedicaram aproxi-madamente 150 mil horas de trabalho a essa pesquisa, denominada Projeto de Pesquisas do Sudrio de Turim. (STURP: Shroud of Tu-rim Research Project).39

    Vejamos, primeiramente, como o Dr. John H. Heller descreve o Sudrio:

    "O Sudrio de Turim um pano de li-nho com 4,36 m de comprimento e 1,1 O m de largura. A linha foi fiada mo e a fazen-da tecida tambm manualmente com trama sob a forma de espinha-de-peixe.

    Sobre o longo tecido existem duas des-maiadas imagens cor de palha, uma da fren-te e a outra das costas de um homem nu que foi, aparentemente, flagelado e crucificado, com as mos cruzadas sobre a plvis. As ima-gens aparecem cabea com cabea, como se o corpo tivesse sido deitado de costas em uma das pontas do tecido, o qual foi dobrado para cobrir a frente do corpo.

    O pano tem muitos buracos queimados e chamuscados: os buracos foram remenda-dos. Existem, tambm, grandes manchas de gua."40

    O Sudrio foi submetido percia de dois mdicos legistas. Eis um trecho do relatrio deles: "Trata-se de um homem branco, com 1,80 m de altura, pesando cerca de 80 qui-los. As leses so as seguintes: comeando pela cabea, existem derramamentos de san-gue de numerosos ferimentos por perfura-o, no alto e atrs do crnio e na testa. O homem foi espancado no rosto, h uma tu-mefao sobre uma das faces e, indubitavel-mente, tem um olho escurecido. A ponta do nariz est esfolada, como ocorreria em de-corrncia de uma queda, e parece que a car-tilagem nasal pode ter-se separado do osso.

    39 Cf. HELLER, John H. O Sudrio ek Turim. Rio de Janeiro, Editora Jos Olympio, 1985. 40 Ibid. p. XVII.

    O RoSTo DE CRISTo 21

    H um ferimento no pulso esquerdo, o di-reito estando coberto pela mo esquerda. Essa a leso tpica de uma crucificao. A representao artstica clssica e lendria de uma crucificao, com cravos atravessados nas palmas das mos, espria: as estru-turas das mos so frgeis demais para sus-tentar todo o peso de um homem, parti-cularmente, de um dessas propores. Se o homem tivesse sido crucificado com cra-vos nas palmas, estas teriam rompido os ossos, msculos e ligamentos e a vtima teria cado da cruz.

    ( ... ) Atrs e na frente existem leses que apa-

    rentam ser marcas de aoite. Historiadores tm indicado que os romanos usavam um chicote chamado jlagrum. Esse chicote ti-nha duas ou trs pontas, e em suas extremi-dades existiam peas de metal ou osso que pareciam pequenos halteres. Estes eram des-tinados a abrir estrias na carne. As pontas e as ponteiras de metal do jlagrum romano combinam com preciso com as leses an-teriores e posteriores do corpo. A vtima foi chicoteada pelos dois lados por dois homens, um dos quais era mais alto do que o outro, conforme fica demonstrado pelo ngulo das pontas do chicote. H uma tumefao nos dois ombros, com escoriapes indicativas de que alguma coisa pesada e spera havia sido carregada nos ombros do homem poucas horas antes de sua morte. No flanco direito, um tipo qualquer de lmina, longa e estrei-ta, penetrou em direo ascendente, perfu-rou o diafragma, penetrou na cavidade to-rcica atravs do pulmo, indo at o cora-o. Esse foi um evento ps-morte, porque componentes isolados de glbulos vermelhos e de soro vazaram da leso. Mais tarde, de-pois que o cadver foi deitado hOJ;izontal-mente e de rosto para cima sobre o pano, o

    sangue gotejou do ferimento lateral e em-poou-se na altura dos rins. No h evidn-

  • 22 ARMINDO TREVJSAN

    cia de que qualquer das pernas tenha sido fraturada. H uma abraso de um joelho, coincidindo com uma queda (da mesma for-ma que a ponta do nariz); e, finalmente, um espigo foi cravado nos dois ps, com vaza-mento de sangue para o pano. Fica bem de-finida a evidncia de que um homem foi aoitado e crucificado, rendo morrido de insuficincia cardiopulmonar tpica de cru-cificao. "41

    Surge a hiptese: no seria o Sudrio uma folsificao, realizada com muita habilidade por uma pessoa de talento artstico?

    Analisemos algumas das objees a seme-lhante hiptese:

    1. "Todo artista, seja ele destro ou canhoto, mostra uma direo nas marcas do seu pincel quando pinta. Mesmo se a tcnica a de manc,has justapostas, como nos quadros dos pontilhistas, h uma dire-o. Mas no Sudrio no havia qualquer direo. Certamente, as imagens no eram pinturas a leo ou aquarela feitas no pano por pinceJ."42

    2. "As imagens do corpo eram amarelo-palha, e no 'spi, conforme todas as narrativas afirmavam. O amarelo no variava signifi-cativamente, nem na cor nem na profun-didade. Em resumo, o pano era essencial-mente monocromtico, com a cor apenas nas pontas das microfibras dos fios. Onde uma dessas fibras cruzava sobre outra, ha-via um ponto branco sobre a fibra subja-cente. Algumas microfibras pareciam com-pridas balas de acar brancas e amarelas, a rea branca resultante de um fio cruzando sobre outro e protegendo as reas subjacen-

    41 O Sudrio tk Turim. p. 3-5. 42 Ibid. p. 35.

    FIGURA 3 O Sudrio de Turin. Uma das caractersticas do Sudrio a forma como o contorno do Corpo de Cristo aparece mais numa fotografia negativa do que numa po-sitiva. surpreendente o efeito tridimensional que se ob-tm quando se olha a imagem atravs de um scanner.

    tes do processo de formao da imagem. As fibras listradas de amarelo no mostra-vam sinais d~ capilaridade-o princpio que

    faz a tinta espalhar-se sobre o mata-borro. Se uma ponta de um mata-borro colo-cada numa gota de tinta, o fluido absor-vido por ele. O lquido penetra nas fibras polissacardeas (papel, algodo, raiom e li-nho) pela ao capilar. A ausncia da capi-laridade evidncia de que nenhum fluido foi usado. Por definio, a pintura tem uma base lquida. Quando a base gua, geral-mente uma goma ou uma protena acres-centada como um agente de suspenso. Ento, se se tivesse usado pintura no Sud-rio, as fibras deveriam ter aderido umas s outras e se emaranhado. Um veculo oleo-so teria tido o mesmo efeito. Mas nenhum emaranhamento de fibras ou aderncia en-tre elas foi visto na imagem do Sudrio. 43

    Eis um resumo das concluSes da Comis-so Ecumnica dos 40 Cientistas Americanos:

    I. "Vocs descobriram alguma coisa que im-possibilite que o Sudrio seja autntico? -No E esta pergunta no uma pergunta co-mum. Nada em todas as descobertas da turma do Sudrio, em trs anos, continha u.rila nica informao que contestasse as narrativas dos Evangelhos."44

    li. "No todo, um documentrio mdico sen-sacional do que foi descrito to brevemen-te nos Evangelhos. Nem houve nenhuma outra coisa no Sudrio que pudesse negar a presena real de um homem aoitado, cru-cificado, estendido naquele linho. Mas exa-tamente de quem era o corpo? A cincia no tem meios de determinar a resposta. N6s, simplesmente, no: sabemos. Explicamos ao auditrio do que a ima-

    gem era feita- oxidao acidodesidratante

    43 Ibid. p. 112. 44 Ibid. p. 215.

    O RosTo DE Cru5To 23

    do linho com a formao de uma carbonila cromfora amarela.

    Depois, evidentemente, fizeram outra pergunta com a qual estivemos lutando du-rante nove meses: - "Como as imagens en-traram no pano?"

    Respondemos discutindo todas as possi-bilidades que havamos conseguido imagi-nar. E depois explicamos que tnhamos tido que rejeitar todas, uma por uma. . - Afinal - nos perguntaram - qual a resposta?

    - Ns, simplesmente, no sabemos! E este o X do problema. Nenhum mem-

    . bro da equipe havia trabalhado num vcuo. Quando confrontado com um problema, ele o discutia com outros, em sua prpria insti-tuio ou em outras instituies. Cada um dos quarenta membros do STURF deve ter consultado pelo menos outros dez investi-gadores que no faziam parte da equipe do Sudrio. Desse modo, pelo menos quatro-centos cientistas haviam acrescentado suas informaes. Alm disso, todos ns hava-mos feito palestras nas reunies das sees locais da Sociedade Qumica Americana, nas Universidades em todo o pas e nos seus grupos de ex-alunos, tais como o do MIT, nas reunies de outras sociedades cientficas - da engenharia fsica s cin-cias mdicas. De todos havamos recebi-do informaes e sugestes. Mas sobre o tema de como as imagens do corpo entra-ram no Sudrio, toda sugesto fora inva-lidada pelos dados existentes.

    O Sudrio permanece, como ocorreu atravs dos sculos, um mistrio."45

    Portanto, ser impossvel explicar essa "imagem espectral de um homem nu" -como a qualifica Denis Thomas?46

    45 HELLER,John H. O Sudrio de Turim. p. 216-217. 46 A Fac de Cristo. So Paulo, Circulo do Livro, 1977. p. 46.

  • 24 ARMINDO TREVISAN

    Contentemo-nos com o seguinte: a ima-d S d ' . ' al . 47 gem o u ano e, re mente, um emgma.

    Mas um enigma admirvel e fecundo: admi-rvel por ser uma das mais impressionantes fi-guraes de Cristo em toda a histria do Cris-tianismo; fecundo porque a imagem do Sud-rio a imagem-motor de quase todas as ima-gens de Cristo, ou - como diz Heinrich Pfei-ffer: "( ... ) todas as imagens de Cristo, que con-

    FIGURA4 Albrecht Drer: O Vu de Vernica. 1513. Gra-vura sobre meral; 1,02x1,40 em. Museu Albertina, Viena.

    47 Ou um milagre? Escreve o cientista catlico A. Garza-Valds: "O que pode ter acontecido com o corpo de Jesus de Nazar depois de posto no tmulo? No sei. Tudo que posso dizer que o pano no esteve em contato com o corpo por muito tempo, seno haveria sinais de deteriorao, como em qualquer pano usado no sepultamento de um corpo. A reli-gio catlica prega que Ele ressuscitou no terceiro dia, e acei-to isso como verdade. Acredito que a imagem do Sudrio no esteve l no inicio, mas tornou-se com o tempo como as imagens nos jades. Mas onde est o milagre? Para mim, o milagre na produo da imagem no Sudrio a presena de todas as condies necessrias para form-la no exato mo- mento em que foram necessrias. Mesmo que essas condi- ' es sejam cientificamente explicadas, sua presena no mo-mento exato em que elas foram necessrias para a produo da imagem pode ser interpretada como o milagre". O DNA tk Dnt~? So Paulo, Editora Mandarim, 2000. p. 80. O mes-mo cientista esclarece: ~ imagem (do Sudrio) foi criada por um fenmeno narural, a presena de bactrias. So essas bactrias que produzem um revestimento plstico para pro-teger seu trabalho. Essa me parece a explicao mais clara. No h dvida sobre a presena do revestimento bioplstico, nem de que obtemos os tbulos vazios quando o linho digerido." Ibidem. p. 119-120.

    cordam com a imagem de Edessa, derivam fi-nalmente da imagem do Sudrio".48

    Lembremos que o Sudrio de Turim ins-pirou, ao longo da histria, mais de 60 ar-tistas, que o pintaram ao vivo, entre os quais Van Dyck e Rubens.49

    6. UM MONGE IMAGINOSO

    Por volta do sculo XIII, os elementos fun-damentais da legenda do Rei Abgar estavam suficientemente assimilados pelo imagin-rio cristo. Foi ento que um monge (pro-vavelmente) comps outra legenda sobre a anterior, para conferir maior credibilidade ao retrato falado de Jesus. A nova legenda obteve grande aceitao no Ocidente entre os sculos XIV e XVI. a chamada "Carta do Procnsul Pblio Lntulo" (em latim Publius Lentulus) ao imperadorTibrio, cujo texto original G. Ricciotti reproduz em sua Vida de Cristo:

    '~pareceu nestes ltimos tempos, e vive entre ns, um homem de singular valor, cujo nome Jesus Cristo, considerado pelas mul-tides. um verdadeiro profeta, e a quem seus companheiros chamam Filho de Deus. Cura os enfermos e ressuscita os mortos. Tem um rosto venerv~l, e atrai os olhares. Inspira amor e temor.ao mesmo tempo. Seus cabe-los so compridos e louros, lisos at as ore-lhas, e das orelhas para baixo crespos e ane-lados. Divide-os ao meio uma risca, e che-gam at os ombros segundo o costume da gente de Nazar. As f~ces esto cobertas de leve rubor. O nariz bem conformado, a barba crescida, um pouco mais escura do que os cabelos, e separada em duas pontas. Seu

    4B L~ Christ aux Milk Vuag~s. Paris, Nouvelle Cit, 1986. p. 95. 49 Ibid. p. 211.

    olhar revela sabedoria e candura. Os olhos so azuis, com reflexos de vrias cores. Esse homem, amvel ao conversar, torna-se ter-rvel ao fazer qualquer repreenso. Mas, mesmo nesse caso, sente-se nele segurana e serenidade. Ningum nunca o viu rir. Mui-tos o tm visto chorar. de estatura nor-mal, corpo ereto, mos e braos to belos que um prazer contempl-los. O tom da voz grave. Fala pouco. modesto. belo quanto um homem pode ser."50

    Ricciotti observa que a ltima frase, atri-buda ao suposto pago Lntulo, uma ci-tao do Salmo 45,3: "Speciosus inter filios hominum'', isto : "s o mais belo entre os filhos dos homens!", exatamente o texto principal inspirador dos partidrios da bele-za de Jesus. 51

    Perante tais textos, que concluso tirar? Talvez nenhuma. A imaginao crist,

    simplesmente, funcionou, e com certa gra-a. As vezes de acordo com os padres oci-dentais, como acabamos de ver. Trata-se de

    50 Vida d~ J~sur:risto. p. 197-198. 51 lbid. p. 198.

    O RoSTo DE CruSTo 25

    FIGURA 5 Legmda d~ Pub/ius Lmtulus. XV-XVI. leo sobre tela; 0,38x0,27 m. Museu Catha-rinenconvent, Utrecht.

    fices poticas, que tiveram o mrito de mover os cinzis e os pincis de nossos artis-tas. Logo veremos que outras imagens se sobrepuseram a elas, e que a inexistncia de um retrato verdadeiro de Cristo permitiu que o seu rosto se encarnasse numa multiplici-dade de semblantes.

    7. A LUZ SUBTERRNEA DAS CATACUMBAS

    S se pode compreender a formao das ima-gens de Cristo se nos fixamos no seguinte fato bsico: ao implantar-se em Roma (em meados do sculo I), o Cristianismo foi obrigado a vi-ver na clandestinidade. a poca das perse-. guies, a primeira das quais teve incio no rei-nado de Nero (a partir do ano 64), associada ao incndio de Roma. As perseguies mais violentas, que se seguiram de Nero, foram as dos imperadores Dcio (249-251), Valeriano (253-260) e Diocleciano (284-312). VIsavam destruio da Igreja nascente, golpeando, de preferncia, sua hierarquia: o papa, os bispos, os presbteros e os diconos.

  • 26 ARMINDO TREVISAN

    Durante esse perodo - o da igreja sub-terrnea - os cristos no podiam realizar assemblias litrgicas ao ar livre. Usavam para tal fim residncias particulares, sobre-tudo as de fiis abastados (as assim ditas igre-jas domsticas).

    Nesses tempos os cristos sepultavam seus mortos em cemitrios pblicos. A lei roma-na considerava terreno sagrado a rea desti-nada aos mortos. Por essa razo, medida que a nova f penetrava nas classes altas, co-mearam a surgir cemitrios especificamen-te cristos, em locais doados por membros da comunidade. Devido s perseguies, os cristos acabaram transformando seus cemi-trios em lugares de venerao dos defun-tos, sobretudo daqueles que davam sua vida pela f, os mdrtires. Foi nesses locais de pou-ca luz e pouco ar que nasceu a arte crist, e neles tambm se desenharam as primeiras imagens de Cristo.

    Catacumbas ... O nome pouco tem a ver com os mortos! Devido sua f na ressur-reio, os cristos substituram a palavra ne-crpole (cidade dos mortos) por cemitrio (lu-gar do sono ou 'dormitrio). A expresso catacumba procede de Kata-Kumbbn, e era usada em guias-de-viagem (Itinerdrios) da Idade Mdia, destinados aos peregrinos da cidade de Roma, para designar uma peque-na parte das atuais catacumbas, isto , as que hoje se situam em i:orno da antiga baslica de So Sebastio, a 3 km a sudeste da cida-de. Como havia ali uma depresso de terre-no, chamavam-na: perto do vale.

    Pelo espao de 300 anos as catacumbas foram locais de sepultamento, de orao, e at mesmo de culto eucarstico. So galerias escavadas no tufo, dispostas em at 4 anda-res, atingindo 30 metros de profundidade: "Qual ser a extenso desta cidade da som-bra?" - pergunta-se Daniel Rops. S o ce-mitrio de Santa Sabina, que foi medido com grande cuidado, deu como cifras para as suas

    escavaes: 16.475 metros quadrados de superfcie, 1.603 metros de comprimento e 5.736 tmulos. E no , no entanto, a mais vasta das catacumbas. possvel que no conheamos todas aquelas que a piedade crist abriu no solo de Roma e que a arqueolo-gia venha amanh a descobrir outras."52

    As mais antigas catacumbas remontam ao sculo I d. C. Uma delas, a de Flvia Domi-tila, deve seu nome a uma sobrinha do im-perador Vespasiano, que mandou cavar uma sepultura para os membros de sua famlia, convertidos f crist. Nessa catacumba exis-tem pinturas ornamentais de alto nvel. Fl-via no esqueceu os seus irmos mais hu-mildes: mandou cavar tambm galerias fu-nerrias destinadas a eles. A Via pia, onde j se erguiam numerosos monumentos fu-nerrios pagos, o local de muitas das ca-tacumbas. A partir do sculo III, as catacum-bas passaram a pertencer prpria comuni-dade. Os seus administradores gozavam de grande prestgio. Um deles, Calisto, tornou-se papa no ano 217, sucedendo ao pontfice Zeferino, que recebera da famlia dos Ceci-lii a rea destinada ao primeiro cemitrio dependente da Igreja de Roma.

    8. AS IMAGENS DA ESPERANA

    At ao Edito de Constantino do ano 313 d. C., que significou a liberdade total de vida e de culto para os cristos, a presena destes em. Roma (uma cidade provavelmente de um mi-lho dehabitantes) era a de uma minoria, inex-pressiva do ponto de vista estatstico, e tam-bm do ponto de vista cultural. S muito len-tamente a nova f p)nseguiu infiltrar-se nas camadas superiores da sociedade. No final do

    52 A lgrqa dos Apstolos e d!Js Mdrtires. Pono, Livraria Ta-vares Martins, 1956. p. 239.

    sculo I j contava com a adeso de alguns membros da aristocracia. permitido aplica-rem-se aos cristos de Roma dessa poca as palavras de So Paulo endereadas aos Corn-tios: "Irmos, pensem no que eram, quando foram chamados por Deus. No eram muitos os intelectuais, os poderosos ou os da alta so-ciedade. ( ... ) Deus escolheu os que, no mun-do, no tm importncia nem valor, para dei-tar abaixo os que parecem importantes."53

    Quase todos os dirigentes da comunidade crist, o papa e seus auxiliares diretos, provi-nham de famlias de classes baixas. Alguns pon-tfices exerceram profisses humildes. O j ci-tado Calisto (217-222), antes de ser adminis-trador de um cemitrio cristo, fora escravo. 54

    Embora o clima em relao aos membros da nova f fosse de rejeio social e persegui-o, havia neles algo que os tomava nicos: a crena fervorosa na Parusia. Este termo grego significava, genericamente, presena ou vinda. A partir dos Ptolomeus, passou a designar no mundo helenstico a visita oficial de um rei a uma provncia ou cidade. No tempo dos im-peradores a Parusia tambm significava o prin-cpio de uma nova era. O termo foi usado so-bretudo por So Paulo, em relao ao regresso de Cristo. O Apstolo, de alguma forma, com-binou o sentido poltico-religioso do mundo pago com as idias tradicionais do Antigo T estarnento a respeito do Dia tJ Senhor, inter-pretadas luz da pessoa de Cristo.

    A crena no retorno triunfal de Cristo contribuiu para que os cristos se desinte-ressassem das imagens. Se o Senhor voltaria em breve, para que servir-se de simulacros de sua presena?

    A crena na Parusia associou-se ainda a outra realidade que a condicionava: a con-

    53 I Corntios 1,26-27. O Novo Testamento (Trad. inter-confessional do texto grego para portugus moderno). Lisboa, Sociedade Bblica, 1978. p. 335. 54 Rops. Ibid. p. 387.

    O RosTo DE CRisTo 27

    fiana no poder de Deus, o qual podia li-bertar das mos dos inimigos os seus filhos oprimidos, ou mant-los fiis no meio das torturas. O martrio, isto , a confisso de f que acarretava a morte de quem a pronun-ciava, era uma realidade cotidiana. Como no recorrer, em tais circunstncias, s sole-nes promessas de Cristo a respeito da sorte reservada aos que "perseveravam at o fim"?

    Tal necessidade espiritual da comunida-de incitou os cristos crena jubilosa no reencontro depois da morte. Eis a razo por que a arte das catacumbas uma arte (em-bora s raramente atinja a excelncia artsti-ca, no sentido rigoroso da expresso) otimista e alegre. O seu leit-motiv a paz, no sentido bblico da palavra Shalom, cujo contedo

    . to amplo que dificilmente pode ser tradu-'zido para outro idioma. Talvez a expresso vida feliz d uma idia desse vocbulo. Afi-nal, para quem vivia sob a ameaa perma-nente da morte, a idia de vida feliz prome-tida por Cristo: "Dou-vos a minha paz; eu vos dou a minha paz" significava a anteviso do Banquete Nupcial no Reino dos Cus.

    Por ser uma arte da vida feliz, a arte paleo-crist- paradoxalmente- uma arte fune-rria. Durante certo tempo, os historiado-res defrontaram-se com uma questo at certo ponto enigmtica: qual a razo da pre-ferncia dos artistas por determinadas figu-ras do Antigo e do Novo Testamento, inclu-sive por determinadas imagens de Jesus?

    In pace: isto , "descansa em paz!" Eis o epitfio-padro das catacumbas, que pode

    f. i'i~ ~~''' f~ORENTIVs~:,: .. : ~[~f-;, IJ\TPACAE \

    ... ' ' 4

    ... r._. "'~----~ ........ _ .. ......,., ..... -:~~ .. o?~--.....~-

    FIGURA 6/n Pact. Sculo IY. Lpide funerria de Floren-tias. Mnnore, 0,22x0,77x0,2 m. Museu Vaticano, Roma.

  • 28 ARMINDO TREVISAN

    ter variaes: "Tu vivers ... tu vivers em Cristo ... Tu vivers eternamente ... " Ou sim-plesmente uma nica palavra, incansavel-mente repetida: "Vida ... vida ... vida!" Era esta a f que enchia a alma dessas mes cris-ts, cujo exemplo citado muitas vezes, e que, vendo morrer seus filhos, exclamavam, como se diz na paixo de So Montano de frica: "Glria! Glria! Ningum teve um to belo martfrio!"55

    Os primeiros estudiosos da arte crist insistiam na sua dimenso catequtica. As imagens das catacumbas seriam uma es-pcie de anncio evanglico visual. A tese, porm, esbarrou numa dificuldade: por que no existia, em todo o repertrio ico-nogrfico, nenhuma representao do dog-ma essencial da Redeno? Em razo dis-so, os estudiosos fixaram-se num outro aspecto: a correlao das imagens com os textos utilizados pela Igreja na encomen-dao dos mortos. Embora no se tenham descoberto textos funerrios dos albores do Cristianismo, certo que as frmulas, ain-da hoje presentes nas cerimnias litrgi-cas de encomendao dos mortos, remon-tam aos incios da era crist. Os ;rquelo-gos descobriram, por exemplo, uma pre-ce, que a Igreja de Antioquia recitava cabeceira dos moribundos, muito cedo adotada pela comunidade romana:

    "Pai, livra sua alma como livraste No do Dilvio, Isaac, das mos de Abrao, Jonas, do monstro marinho, Daniel, da Cova dos Lees,

    S5 Cit. por ROPS, Daniel. A lgr~a dos Apstolos~ dos Mdrtires. p. 445. Cf. PERATE, Andr. r: Arch~log

    Chrtienn~. Paris, Librairies-Imprimeries Runies, 1892. p. 118.

    os Trs jovens, da fornalha ardente, Suzana, das mos dos velhos. Tu, filho de Deus, livra sua alma, tu que abriste os olhos ao cego de nascena, tu que curaste o paraltico, tu que ressuscitaste Ldzaro. '%

    Outra prece da poca menciona os mes-mos personagens bblicos:

    "Livra, Senhor, a alma do teu servidor, como tu livraste Henoque, Elias (...) No (. .. ), ] (. .. ), Isaac (...), Moiss (. .. ), David(. . .), Pedro e Paulo (...)-57

    Pode-se sintetizar a inteno dos primei-ros cristos na seguinte frmula, que con-densa o que encontramos nos afrescos sub-terrneos e nos relevos dos sarcfagos:

    "O Senhor, bom Pastor, livra a alma do teu smJdQr (ou da tua servidora), esta orante aqui representada, como livraste teus servidores No, Isaac, Daniel, Suzana, f e Jonas, e todos aqueles cujas imagens acompanham sua prprid imagem. '?B

    As cenas mais freqentes do Antigo e do Novo Testamento, encontrveis nos monu-mentos cristos primitivos, so as que se re-ferem aos personagens que acabamos de mencionar.

    56 Cit. por MLE, ~mile. "rArr Chrtien Primirif er I' Arr Byzanrin". In: Histoirt Gn&ale de /'Art. Paris, Flammari-on, 1950. p. 257. 57 Cir. por PRAT~, Andr. In: L'Archelogie Chrltimne. Paris, Librairies- Imprimeries Runies, 1892. p. 70-71; p. 73. 58 P~RAT~. Andr. Ibid. p. 74.

    9. DUAS IMAGENS PREDILETAS: A ORANTE E O BOM PASTOR

    Para tornarem mais compreensveis os prprios contedos religiosos, e tambm por no dis-

    FIGURA 7 lmagnn de uma Orant~. Afresco IV d. C., proveniente de um aposento situado debaixo de Igreja dos Santos Joo e Paulo, em Roma.

    porem de um repertrio especifico de imagens, os primeiros cristos recorreram s figuraes pags que mais se prestavam expresso de seus sentimentos. Privilegiaram duas imagens estreitamente vinculadas dimenso funer-ria de sua arte: a imagem da Orante e a ima-gem do Bom Pastor.

    A imagem da Orante consistia numa fi-gura feminina, s em raras ocasies mascu-lina, de braos erguidos, em atitude de s-plica. Era uma alegoria, ou imagem simb-lica, da Pietas (Piedade), conceito derivado da filosofia estica, especialmente de Epte-to (50 a. C. - 138 d. C.), filsofo nascido na Frgia e falecido no piro. Epteto fora escravo. Um discpulo seu recolheu no En-chiridion, isto , Manual, :os ensinamentos do mestre. Nessa obra o filsofo enaltecia a piedade como virtude distintiva do cidado cumpridor dos seus deveres para com os deu-ses e para com os homens. Ensinava, tambm, que os homens eram todos irmos, e que no se devia retribuir o mal com o mal.

    O Rosro DE Crusro 29

    As imagens da Pietas, cunhadas nos mea-dos do sculo li d. C., destinadas a honrarem os Imperadores Antoninos, apareceram com freqncia, tanto nos afrescos das catacumbas como nos sarcfagos cristos posteriores. Os cristos transformaram to sugestiva imagem pag numa imagem fvorita, que adquiriu, com o passar do tempo, trplice simbologia:

    a) Principiou sendo smbolo da alma do de-funto. Aos poucos assumiu traos indivi-dualizadores, chegando, finalmente, a se constituir num retrato da pessoa morta.

    b) Numa segunda fase, tornou-se smbolo de um defonto venerado pela comunidade, isto , o mdrtir, considerado um interces-sor qualificado.

    c) Numa terceira fase, a partir do sculo IY, converteu-se em sfmbolo da intercessora por excelncia, a Virgem Maria. 59

    A imagem do Bom Pastor, que j aparece num afresco da Cripta de Lucina, no sculo li, e que se imps nos sculos III c IV, pro-cede de outra figurao pag, relacionada, por sua vez, com o conceito de Filantropia, traduzido em latim para HumanittJs. Na Gr-cia arcaica a imagem representava um fiel conduzindo um animal para o sacrifcio. O fiel-doador pretendia, assim, perpetuar-se no templo. Mais tarde a imagem tornou-se uma das figuraes do deus Hermes (conhecido no mundo romano como Mercrio), encar-regado de conduzir as almas para o alm. Na poca helenstica, a imagem do pastor com a ovelha, ou com o cordeiro aos om-bros, foi reassumida pelos poetas na "atmos-fera de humanismo risonho" que caracteri-zava esse perfodo.60

    59 GRABAR. Andr. lAs VIas de la Crtadn m la !conogrrtjla Cristtna. Madrid, Alianza Editorial, 1985. p. 7779. 60 MARROU, Henri-Irene. Dadlnda Romana ou An-tiguidade Tardia?Lisboa, Editorial Asrer, 1979. p. 53.

  • 30 ARMINDO TREVISAN

    Ao se apoderarem do tema, os poetas ele-gacos conferiram-lhe acentos comovedores, apresentando a figura do pastor como uma espcie de encarnao da bondade. Calpur-nius Siculus refere-se ao pastor que:

    'ao anotecer, a caminho do redil, no hesita em carregar a ovelha cansada que acaba de dar luz. '151

    natural que os cristos identificassem essa figura com a Daquele que dissera: "Eu sou o bom pastor",62 associando a esse texto

    FIGURA 8 O Bom Pastor. Sculo IV. Mrmore; 0,43 alt. Museu Nacional, Roma ..

    61 Cit. por MARROU, Henri-Irene. Ibid. p. 53. 62 Evangelho de So ]DiJ, Cap. I O.

    tambm o SalJ:Ilo 23: "O Senhor o meu pastor: nada me falt'. Pode-se dizer que as imagens de Cristo como Bom Pastor ilus-tram trs aspectos especficos de sua ao salvfica: o do pastor que reconduz as ove-lhas ao aprisco; o do pastor que socorre as ovelhas; e o do pastor que protege as ovelhas contra o lobo devorador.63

    Registremos que o tema elegaco do pastor foi fundido pelo imaginrio primitivo cristo com o tema mitolgico de Orfeu. Orfeu era filho do deus Apolo e da musa Calope. Toca-va a lira com tanta perfeio que nada resistia ao encanto de sua msica. At as feras se aman-savam ouvindo os acordes de sua lira. Sua ama-da Eurdice, tendo sido mordida no p por uma serpente, morreu. Orfeu no se resignou per-da da amada, e resolveu procur-la na regio dos monos. Apresentou-se a Pluto e Prosr-pina. Cantou sua dor perante eles com tanta comoo e beleza, que os deuses o autoriza-ram a levar consigo Eurdice, sob a condio de no olhar para trs para v-la. sada, po-rm, da regio inferior, Orfeu, impaciente, no resistiu: para certificar-se de que Eurdice o acompanhava, olhou para trs. Perdeu a ama-da pela segunda vez.

    Era impossvel no associar to encantado-ra imagem imagem de Cristo,. cuja doutrina fascina a alma, e cujo poder liberta as almas da morte. Conhecem-se quatro afrescos das cata-cumbas onde aparece Orfeu, sempre ocupan-do um lugar de honra. O Orfeu do Cemitrio de Priscila fz urna sntese entre o personagem mtico e o Bom Pastor. Est sentado, tocando a lir, com dois cordeiros aos ps. Desapare-ceu completamente a paisagem. Notemos que a arte paleocrist no deixou nenhuma ima-gem de Eurdice ... 64

    63 DANILOU, Jean e MARROU, Henri. Nova Histria da Igreja. 2. ed. Vol. I. Petrpolis, Editora Vozes, 1973. p. 184. 64 PRAT, A. L'A;che/Qg Chr!tienne. p. 65-68.

    10. IMAGENS SIMBLICAS CRISTIANIZADAS

    medida que a posio social dos cristos se consolidava, e suas relaes adquiriam complexidade, foram obrigados a criarem uma linguagem de comunicao com os pagos. Por no disporem de um cdigo vi-sual de inspirao teolgica, tiveram de assi-milar o da cultura pag vigente, a da Baixa Antiguidade (ou Antiguidade Tardia), do-minada pelo Helenismo, que sucedeu An-tiguidade Clssica. O Helenismo principiou a impor-se como civilizao com a vitria de Filipe da Macednia em Queronia, no ano 338 a. C., expandindo-se com as con-quistas de Alexandre Magno. A partir do sculo li a. C., a unidade cultural do mun-do mediterrnico j era um fato, embora bifronte: o Oriente Grego e o Ocidente Lati-no. No plano religioso, o perodo helenstico significou a morte dos dolos, como se pode ver neste poema dedicado pelos atenienses ao seu libertador Demtrios Poliorceta:

    "(...) os outros deuses, ou esto muito longe, ou no tm ouvidos, ou no existem, ou no se lembram nada de ns ... Mas a ti, vemos-te, tu estds a{, niJ s de pau, nem de pedra, s bem reaL A ti suplicamos, pois, e, antes de tudo, concede-nos a paz, carssimo, pois s tu o Senhor, tu sim. '1>5

    LIVrA NICAAVS : IVAEPRIM[T!Vf\E

    SORORI FECIT QV ANXXIO!MV!lll

    65 Cir. por MARROU, Henri-Irene. Decadfncia Roma-na ou Antiguidade Tardia? Lisboa, Aster, 1979. p. 42.

    O RosTo DE CrusT 31

    O homem helenstico revela-se menos sensvel aos valores religiosos. obsessiona-do pela busca da felicidade. Aos poucos, to-davia, em oposio a essa debilitao do sen-tido do sagrado, surge, no final do perodo, um novo terna, que assume contornos cla-ros no sculo Ill, uma espcie de nova reli-giosidade, caracterizada pela importncia que se atribua ao Alm, e ao conceito cor-respondente de salvao. 66

    Foi nesse clima espiritual que os cristos buscaram inspirao para sua linguagem ar-tstica. Alm da imagem-me do Bom Pas-tor, inspirada no mito de Orfeu, havia ou-tras que se adaptavam personalidade do Salvador. Urna delas, a de Apolo-Hlios, cujo culto o imperador Aureliano organizara como uma religio de Estado, aceitvel e comum a todo o Imprio. Num dos tmu-los descobertos perto da Confisso de So Pedro no Vaticano, v-se na abbada a figu-ra de Cristo sob os traos de um Apolo-H -li os, o deus do Sol Invicto, a conduzir sua quadrigaP Apolo tinha a vantagem de evo-car a eterna juventude do Ressuscitado, e a luz sobrenatural de sua mensagem: "Eu sou a luz do mundo". Essa imagem, que comea a aparecer no sculo III, ser referncia para as imagens de Cristo Imberbe, que sero co-muns at se impor, do sculo IV em diante, a imagem tnica do Cristo Barbudo. Apolo representava para os pagos o conjurador do mal, a divindade da purificao e da profe-

    FIGURA 9 Slmbolos primi-tivos cristos (Sarcfago de Lfvia Primitiva III d.C.; Louvre; Sarcfago da Pai-xo, IV d.C.; Museu do La-tro, Roma; Representao do Batismo de Cristo, VI d.C., Ravena.

    66 MARROU, Henri. Ibid. p. 42-48. 61 Ibid. p. 51.

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    cia. Representava~ tambm, o ideal grego da ordem inteligvel perante as foras do caos. Filho de Jpiter, possua uma juventude eter-na. Eis porque o Cristo-Apolo tornar a re-aparecer no Renascimento, sobretudo no Cristo do juizo Final de Miguel ngelo, na Capela Sistina, que reala a nudez atltica do modelo pago.68

    importante fazer-se aqui uma meno disciplina do arcano. A expresso refere-se severa regra imposta aos cristos que lhes proibia a revelao dos mistrios da f e do culto aos pagos, e at aos prprios catec-menos, isto , convertidos f crist, que no tinham recebido o batismo. Estes eram obrigados a se afastarem no momento em que se entrava na fase solene da cerimnia (ainda hoje, na liturgia grega soa, por qua-tro vezes, nessa altura o aviso: "Todos os ca-tecmenos devem sair!").69

    At, pois, ao Edito de Constantino, quan-do se autorizou o culto pblico cristo, os cristos foram obdgados a elaborar um di-cionrio secreto para uso da comunidade. Atravs de tais senhas a comunidade identi-ficava seus membros. Eis por que muitos smbolos pagos migraram para o imagin-rio cristo, entre eles os smbolos do Peixe, do Cordeiro, do Pavo, da Fnix, da nco-ra, do Navio, e at mesmo o da Cruz.

    Principiemos pelo smbolo do Cordeiro. J nos referimos sua importncia na mitologia helenstica ao falarmos na figura do Bom Pas-tor. Alm de significar a alma do cristo, o cor-deiro representava o prprio Cristo, devido particularmente s palavras de Joo Batista: "Eis o Cordeiro de Deus, que tira os pecados do mundo".7 Existem representaes de Cristo-

    68 Cf. PFEIFFER, Heinrich. Christ aux Mil!~ Visag~s. p. 25-26; p. 31. 69 MARROU, H. J. p. 87. 70 Evangelho de Joo 1,29.

    Cordeiro em epgrafes sepulcrais do Ili sculo, e nos sarcfgos de Ravena. Posteriormente, na poca da iconoclastia, o Conclio dito In Trullo, de 619 d. C., proibiu o uso desse sm-bolo, uma vez que o prprio Verbo, ao fzer-se homem, escolhera a sua prpria forma visvel. A Igreja Oriental, a partir de ento, utilizou apenas imagens humanas de Cristo. A Igreja do Ocidente, porm, no s conservou o sm-bolo do Cordeiro, como ainda o privilegiou, sobretudo no princpio do sculo VIII, quan-do o papa Srgio I introduziu no rito da missa, no momento em que a hstia oferecida aos fiis, as palavras: "Eis o Cordeiro de Deus". Na fachada ocidental da antiga Baslica de So Pedro existia um grande mosaico representan-do o Cordeiro Pascal e os smbolos dos evan-gelistas. 71

    Examinemos o smbolo do Pavo. Devi-do sua esplndida cauda circular, essa ave j era um smbolo solar. Tornou-se, no con-texto cristo, smbolo da ressurreio dos corpos. Agostinho, no sculo IV, dir que a carne do pavo incorruptvel. Quanto ave fabulosa Fnix, que, de acordo com a mitologia, vivia 500 anos, aps o que se sa-crificava voluntariamente no fogo, para re-nascer ao terceiro dia das prprias cinzas, era natural ver-se nela um smbolo da vitria de Cristo sobre a morte. Mais uma vez eviden-cia-se a dimenso funerria da arte crist.

    A simbologia do peixe oferece algumas pe-culiaridades. O vocbulo em grego, lngua ofi-cial da Igreja nos primeiros tempos, : Ychtys. Este termo facultava um jogo de palavras de carter esotrico. Suas iniciais constituam um notarikon, isto , as iniciais de uma fra-se: J-esous; Ch-ristos; Th-eou; Y-os; S-oter:

    "Jesus Cristo, Deus, Filho, Salvador".

    7 1 Cf. HENDERSON, George. Aru Medit~~al. So Pau-lo, Editora Cultrix, 1978. p. 219-241.

    Trs outros significados corroboravam tal simbologia:

    I. As 5 palavras, derivadas das iniciais de Ichthys: "Jesus Cristo, Deus, Filho, Salva-dor", so um mltiplo do nmero 3 (3x3x3=27), que indica poder. O nmero 3 referia-se a Cristo. Esse clculo foi conhe-cido tambm por Santo Agoscinho.72

    li. Jesus era comparado ao peixe da histria do jovem Tobias (Livro de Tobias. Cap. 6, 4): assim como o peixe pescado pelo jovem trouxera sade ao velho pai, resti-tuindo-lhe a luz dos olhos, assim Cristo trazia sade humanidade.73

    UI. A imagem do peixe evocava, igualmente, as guas do Batismo. Tertuliano chamara a Cristo de peixe, e aos cristos de "peixinhos de Cristo''.74

    N.Finalmente, associava-se o peixe ao culto eucarstico por causa do milagre da mul-tiplicao dos pes.

    Uma inscrio sepulcral, encontrada em Autuo, na Frana, datada do sculo III (ou IV?) d. C., revela essas atribuies simblicas.

    " raa divina do Ichthys celestial: recebe, com corao contrito, os mortais. Rejuvenesce a tua alma, querido amigo, nas dguas divinas, nas ondas eternas da Sabedoria, porque nelas esto os verdadeiros tesouros. Recebe o alimento, doce como o mel do Salvadm dos Santos. Satisfaz a tua fome! Bebe at nio sentires mais sede! Tu tens o Ichthys nas palmas das mos. Alimenta-nos, Mestre e Salvador, com o Ichthys.

    72 Cf. Patrologia Latina, 41, 580. Cit por BAGATI1, Be-larmino. A lgrqa da Circundso. Petrpolis, Editora Vo-zes, 1975. p. 221. 73 BAGATI1, Belarmino.Ibid. p. 221. 74 Ibid. p. 223.

    O RoSTo DE Crusro 33

    Q!te minha me descanse em paz, eu te suplico, luz dos mortos. Arr:dio, meu pai, na companhia da minha doce me e de meus irmos, com toda a gratido da minha alma eu te peo: na paz do Ichthys recorda Pectriof'"5

    Clemente de Alexandria, ao recomendar aos cristos que no mandassem gravar nos seus anis figuras idoltricas ou erticas, su-geria-lhes, entre outros smbolos, o do pei-xe.76 Clemente tambm menciona o smbo-lo da pomba, que entre os gregos era rela-cionada com o eros sublimado. Era a ave-de-Vnus. Os cristos a converteram numa imagem trplice: imagem da alma imortal; imagem da paz divina (por lembrar o epis-dio bblico da pomba do Dilvio, com o ramo de oliveira no bico); e imagem doEs-prito Santo, (por este ter pousado sobre a cabea de Cristo no Rio Jordo). Excepcio-nalmente, a pomba simbolizava o pr6prio Cristo: o vocbulo grego Peristerd equivale ao nmero 801, resultado da soma dos va-lores numricos das letras que compu-nham essa palavra: 80 + 5 + 1 00 + 1 O + 200 + 300 + 5 + 100 + 1 = 801. , alis, o mesmo nmero que se obtm com as le-tras alfa e mega77

    Os smbolos restantes, a incora e o na-vio, estavam relacionados secretamente com o smbolo da Cruz. A ancora era uma ima-gem de esperana; evocava os perigos das tempestades na viagem da alma para Deus. O navio, por sua vez, foi vinculado cruz: "primeiro por causa da vela, que, quando

    75 ROPS, Daniel. A Igreja dos Apstolos e dos Mdrtirts. p. 236; PRAT, Andr. L'Arch~logi~ Chrtimne. p. 92. 76 Cit. por MARROU, Henri.ln: Dmu/Jnt:ia Romana ou Antiguidade Tanlia~ p. 76. 77 BAGATII, Belarmino. Ibid. p. 220-221. PRAT, Andr. L'Archlologi~ Chrltimn~. p. 90-92.

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    desfraldada, tem a aparncia de cruz; segun-do, porque feito de madeira e de ferro como a cruz; e, finalmente, porque s vezes o mas-tro bifurcado".78 So Justino, segundo al-guns, teria sido o iniciador do simbolismo do navio como imagem da Igreja. Ao recor-dar a arca de No, esse autor escreve: "Cris-to, primognito de todas as criaturas, tor-nou-se num novo sentido o chefe de uma outra raa, aquela que foi por Ele regenera-da pela gua, a f e o lenho que continha os mistrios da Cruz, como No foi salvo no lenho da arca, levado sobre as guas com os seus".79

    ll.POR QUE TANTO SILNCIO SOBRE A CRUZ?

    Sabemos, pelos escritos dos Padres da Igre-ja, que a cruz foi muito venerada desde os primrdios do cristianismo. A Igreja, porm, no permitia que fosse figurada. No convi-nha expor wmbaria dos infiis a figura de Cristo Crucificado, e do instrumento do seu suplcio.

    A primeira representao da cruz, em monumentos cristos, aparece numa inscri-o do ano 134, encontrada na cidade de Palmira. Desse mesmo sculo e do sculo seguinte so trs gemas, um jaspe e duas cor-nalinas. 80 Do ano 220 outra representa-o, localizada num tmulo do Viale Man-wni, em Roma. 81

    No fim do sculo 11, ou talvez um pouco mais tarde, aparece um dos documentos mais impressionantes at hoje descobertos, o famo-so grafito dos apartamentos dos pajens impe-

    78 BAGATII, Belarmino. lbid. p. 225. 79 Cir. por BAGATII, Belarmino. Ibid. p. 225. 80 HEINZ-MOHR, Gerd. Lessko di Iconografia Cristia-na. Milano, Istituto di Propaganda Libraria, 1995. p. 128. 81 ROPS, Daniel. A lgrrja dos Apstolos e dos Mdrtim. p. 436.

    FIGURA 1 O Grafito do Burro Crucificado. Caricatura pag do sc. III sobre um muro do Monte Palatino, conserva-da no Museu Kircher, em Roma. Representa Cristo sob a forma de um burro. Ao seu lado aparece uma pequena figura de homem, acompanhada de uma inscrio grega que significa: "Alexamenos adora seu Deus". A figura est reduzida a um quarto do original.

    riais na "Casa degli Araldi" sobre o Palatino, traado com estilete sobre estuque, onde se v um crucificado com cabea de burro, ladeado por uma figura em p. Acompanha-o a legen-da: 'Wexamenos adora o seu Deus". Esta cle-bre caricatura do Crucifixo, conservada no Museu Kircher, de Roma, cuja primeira divul-gao ocorreu eni 1856, foi seguida da desco-berta de outro grafito, no mesmo local, uma espcie de eco do primeiro: "Alexamenos fiel"82 "Qual seria a origem desse insulto, j dirigido aos judeus, e que passou a ser empre-gado contra os cristos, juntando-se-lhe o por-menor da cruz?". " possvel, diz Rops, que os espetculos de nomos83 e de atelanas, em que

    82 PI!RAT~, Andr. L'Archlologie Chrltimne. p. 141-142. 83 Nomos: entre os gregos, composio vocal destinada a venerar os deuses, acompanhada por ctara ou flauta, se-guindo padres fixos, aos quais se atribua influncia mgica; atelanas: um~ espcie de comdia ou farsa, com intenes crticas atualidade poltica.

    os atores usavam mscaras ridculas com cabe-as de asno, tenham contribudo para isso. Poder tambm fazer-se uma aproximao com o deus Seth dos egpcios, uma divindade com aspecto de semi-homem e semi-asno; e, de fato, certos gnsticos assemelham Seth a Cristo, um e outro chamados filhos tJ homem. Pensou-se tambm no burro do Prespio e no do Do-mingo de Ramos, assim como se sugeriu uma aproximao com certa passagem escabrosa do Asno de Ouro de Apuleio, em que ~ animal desempenha o papel de gerador."84

    A partir do sculo IV, as imagens da cruz sem vtima tornam-se freqentes nos sarc-fagos. Existe um marfim do sculo IV, hoje no Museu Britnico, onde Cristo repre-sentado carregando a cruz.

    Pode-se admitir que, durante as persegui-es, reinou um acordo tcito entre os cris-tos, no sentido de no se falar em pblico de um dos aspectos mais incompreensveis da sua doutrina, que poderia parecer provoca-o em tempos de martrios freqentes. Os textos patrsticos demonstram que o instru-mento do suplcio de Jesus era, para os pri-meiros cristos, mais um trofu de vitria, um smbolo do triunfo de Cristo sobre a morte, do que objeto de venerao especial, relacionado com sua humanidade, como acontecer mais tarde, aps a condenao da heresia monofisita pelo Conclio de Cal-cednia, em 451 d. C.

    O fato bsico, que imprimiu uma dire-o diferente iconografia e arte crist, foi a converso do imperador Constantino, "um brbaro, no no sentido moral e pejorativo da palavra, mas no sentido psicolgico, um homem da transio, ligado a tradies e princpios que no compreendia, mais ins-tintivo que poltico, mais supersticioso que razovel, um homem inteiramente lanado

    84 RbPS, Daniel. A lgrrja dos Apstolos e dos Mdrtirrs. p. 118.

    O RosTo DE CRJsTo 35

    em direo ao futuro". 85 Sua me, Helena, mulher de condio modesta, desposada le-galmente por seu pai, Constncio Cloro, iria tornar-se uma das personagens mais venera-das pelos cristos. A razo disso ter sido ela a primeira a empreender uma peregrinao Terra Santa. Que razes teriam inspirado imperatriz to inslita viagem?

    provvel que a imperatriz a tenha feito como expiao pelos gestos insensatos do imperador. Este, em 326 d. C, mandou matar Crispo, filho de um matrimnio an-terior, o mais querido dos netos de Helena; logo depois mandou assassinar sua mulher Fausta, em quem via, talvez, a amante do filho. To horrveis tragdias, que provoca-ram a clera da velha imperatriz convertida ao cristianismo j h algum tempo, t-la-iam levado a buscar o perdo para o filho na pr-pria fonte da misericrdia, isto , no monte em que ele havia sido sacrificado pela hu-manidade.

    Aos 78 anos de idade, a imperatriz em-barcou em Npoles rumo a Jerusalm. L chegando, reuniu uma comisso de sacer-dotes para determinarem o ponto certo em que se deviam fazer as escavaes. Depois de semanas de trabalho, descobriram-se trs cruzes. Como identific-las? Trouxeram uma mulher moribunda, e tocaram-na com a madeira das cruzes. Ao toque da terceira cruz, a mulher levantou-se, curada. Foi as-sim que se realizou a Inveno - isto , o encontro da Santa Cruz.

    Ao tomar conhecimento do que acontecia em Jerusalm, Constantino escreveu uma car-ta ao bispo de Jerusalm, na qual dizia: "No h palavras com que possamos celebrar este milagre. Est acima de toda a admirao o fato de que o monumento sagrado da Paixo do nosso Dern tenha podido estar oculto debaixo

    85 Ibidem. p. 484.

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    da terra durante tantos anos para surgir de novo no prprio momento em que desaba o inimi-go do gnero humano". 86 Note-se que foi Con-stantino quem aboliu o uso da cruz como mtodo de execuo de criminosos.

    Datam desse acontecimento muitos mo-numentos cristos da Terra Santa. Foram construdas, a expensas do imperador, trs igrejas: uma em honra da Paixo de Jesus, outra em honra da Cruz, e uma terceira no lugar do tmulo do Salvador, em memria de sua ressurreio. A atual Baslica do San-to Sepulcro, erigida mais tarde pelos Cruza-dos, ocupa o espao dos trs templos. A tra-dio atribui, tambm, imperatriz a cons-truo de outras baslicas e mosteiros na Pa-lestina. Segundo refere o cronista Scrates Escolstico, a imperatriz Helena teria extra-do da Cruz de Cristo dois fragmentos: um deles foi posto na Igreja do Santo Sepulcro, em Jerusalm; o outro, ela o ofereceu ao im-perador Constantino, em Constantinopla. Esses dois fragmentos, porm, no eram os nicos. Por volta de 350 d. C., Cirilo de Je-rusalm afirmava: "O mundo inteiro est cheio de fragmentos do madeiro da Cruz". 87

    Na segunda metade do sculo IV e nos princpios do sculo V, mencionam-se rel-quias da Cruz na Capadcia, em Antioquia, e em Roma. A verdadeira Cruz teria sido roubada pelos persas no sculo VII, sendo recuperada mais tarde pelo imperador He-rclio. No sculo XII, teria sido levada a uma batalha pelo bispo de Belm, durante a qual teria sido definitivamente extraviada.

    A primeira representao histrica de Je-sus, como vtima na Cruz, aparece numa das ponas de madeira da Igreja de Santa Sabi-na, em Roma. um relevo do sculo V, onde

    86 Cit. por ROPS, Daniel. Ibid. p. 499-500. 87 PEUKAN, Jaroslav. Jesus a Travs de los Siglos. Barcelo-na, Editorial Herder, 1989. p. 129.

    se v uma tosca figura de Cristo entre dois ladres, com um trapo a tapar-lhe o sexo.

    Convm lembrar, aqui, a histria do mo-nograma de Cristo, tal qual a relata o bispo Eusbio de Cesaria etn dois documentos, no

    FIGURA 11 Primtira repmmtao da Crucifixo de Cris-to: porta de entrada da Basilica de Santa Sabina ( 422-432 d.C.), em Roma. Esculpida em madeira de cipreste, apre-senta painis grandes (de 0,70x0,81 m) e painis peque-nos (0,35x0,35 m ou 0,22x0,24 m). Dos 28 painis ori-ginais restam 18. Um dos painis menores mostra uma tosca imagem do Crucificado, ladeado pelos dois ladres, figurao, talvez, inspirada num marfim sirfaco.

    Livro IX de sua Histria Eclesistica, de 313 d. C., e na sua Vida de Constantino, que data de quinze ou vinte anos mais tarde. Refere Lac-tncio, que escrevia por volta de 318 d. C.: "Uma noite, pouco antes da batalha (da Ponte Mlvia, contra o exrcito de seu rival Maxn-cio), Constantino teve um xtase, durante o qual recebeu de Cristo ordem de colocar sobre o escudo das suas tropas um sinal formado pelas letras gregas CH e R ligadas. este, com efei-to, o monograma que se encontra nas moedas e inscries constancinianas. Quanto a Eus-bio, informado - segundo ele mesmo diz -pelo seu imperial modelo que, no fim da sua vida, lhe teria contado todos os pormenores do episdio, eis a sua verso: Constantino, no

    FIGURA 12 Entre os dois personagens: Mono-grama de Constantino. V d.C. Vidro dourado; 0,84 m. de dimetro. Museu Britnico, Londres.

    momento de entrar em luta com Maxncio, apelou para o Deus dos cristos e ento, em pleno dia, viu no cu, para o lado do poente, uma cruz luminosa com estas palavras em gre-go: "Com este sinal vencers". Na noite seguin-te apareceu-lhe Cristo mostrando a sua cruz e convidando o imperador a mandar executar uma insgnia que a representasse. Esta insgnia o Labarum, estandarte em forma de cruz que, dali por diante, acompanhou os exrcitos de Constantino".88

    Podemos dizer que, nos sculos III e IV, havia um inicio de arte crist, e um repen-rio in .fieri de imagens do Salvador. Nenhu-ma delas tinha conseguido impor-se. O ros-to de Cristo ainda no se aproximara do seu

    88 ROPS, Daniel. A It,"ja dos Apstolos t: tios Mdrtiw. p. 487-488. A viso de Constantino contribuiu para que o smbolo da Cruz se tornasse o smbolo da nova religio, e para que a cruz se convertesse numa afirmao e distinti-vo dos seguidores do Evangelho. Esclareamos um deta-lhe: o sinal da cruz, inicialmente, era feito sobre a fronte, os braos e o peito, ou seja, era uma trplice marca, para assinalar as trs partes superiores do homem: a intelign-cia, o amor e a fora. $6 no sculo IV que se comeou a usar o sinal da cruz atual. ROPS, Daniel. Ibid. p. 235.

    o ROSTO DE CRISTO 37

    (eventual) rosto verdadeiro, o de um judeu da Palestina, nascido de me judia.

    12.AS PRIMEIRAS IMAGENS 1NICAS DE CRISTO

    A peregrinao da imperatriz Helena Pa-lestina e a descoberta da Cruz contribu-ram para que a sensibili

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    Nessa imagem pblica de Cristo, dos anos 401-417, vemo-lo como um monarca sen-tado no seu trono, empunhando um livro aberto, ladeado'de santos e santas. uma frmula extrada da iconografia dos im-peradores, e pode ser considerada o pri-meiro esboo da imagem do futuro Pan-tocrdtor (Senhor do Universo). Constitui uma espcie de resposta crist diviniza-o dos imperadores, prtica que come-ou com Diocleciano (284-305), que se autoproclamava deus. O seu absolutismo sistemtico o coroamento das tentativas de alguns predecessores, como Calgula e Domiciano, no primeiro sculo, Cmodo no segundo sculo, e Heliogbalo no ter-ceiro. O seu ttulo passou a ser: dominus et deus, e na fronte desses monarcas apa-receu a primeira aurola, smbolo persa sassnida do sol e da eternidade. A pri-meira aurola crist foi encontrada na ca-tacumba de So Calisto, e do sculo IV.89 Os sditos eram obrigados a renderem aos imperadores o rito da adoratio, ou pros-chynesis, isto , o rito da prosternao, bei-jando-lhes uma das dobras do manto.

    FIGURA 13 O Cris-to tnico do Evang~lidrio de Thoros de Ta-ron (Armnia), 1321 d.C. Parriacardo AI-mnio de Jerusalm.

    89 PRAT, Ferdinand.jlsur-Christ. p. 149.

    FIGURA 14 O Cristo barbudo do hipogro dos Aurlios, no ViaJe Manzoni, em Roma. Afresco do sculo 111 d.C. (Representao pro-vvel do Sermo da Montanha).

    O mosaico de Santa Pudenciana evoca, alm disso, o tema da Traditio Legis, a ceri-mnia da entrega do Livro das Leis, que re-produz o ritual de investidura de um alto funcionrio romano. Cristo visto como legislador, tanto nos sarcfagos como, logo depois, na Igreja de So Cosme e Damio (520 d. C.), confiando a Lei (o volume de-senrolado do seu Evangelho) a So Pedro, e mais raramente a So Paulo. So, igualmen-te, imperiais as figuras que os acompanham, umas oferecendo-lhe coroas, outras prostran-do-se aos seus ps.

    No fim do sculo IV, portanto, com-pleta-se o ciclo da busca de um rosto para Cristo. Justamente no momento em que surgem as primeiras negaes da divinda-de de Jesus, a conscincia crist a afirma, confessando-o acima de todas as preten-ses humanas. O filho de Maria de Naza-r , sem dvida, um homem, mas tam-bm Deus. Um novo desafio proposto imaginao dos artistas: representar o ir-representvel, o Criador de todas as coi-sas que "se fez homem", e continua a ser o Verbo Eterno. Esta aventura ser a do Creio cristo, que, no incio, constava apenas de quatro palavras: "Eu creio em Jesus!" Mais tarde viro frmulas elaboradas na maior parte das comunidades, verses, digamos, re-

    '

    FIGURA.I5 Recomtitui do rosto t um judeu conum-porneo t Jesus: Cientistas da Universidade de Man-chester, na Inglaterra, proje-taram, por meio de compu-tadores, um rosto de Cristo, usando como ponto de par-tida um crnio do sculo I d.C., encontrado numa Se-pultura, em Jerusalm. O re-sultado esta "imagem" de um homem de fuce arredon-dada, nariz grosso e barba es-pessa, que pode ser aproxi-

    mado de algumas representaes pintadas nas Catacumbas de Roma, nos sculos III e IY.

    gionais, como as de Jerusalm, de Cesaria, de Antioquia, e de Roma: " da verso ro-mana, no como a lemos em Rufino (do s-culo IV), mas completada no sculo VI na

    FIGURA 16 Cris-to imberbe de um sarcfago do sculo N d.C. Museu Ar-queolgico Cris-to, Arles, Frana.

    O RosTo DE Crus-'o 39 '

    Glia (razo por que se denomina verso gau-lesa), do tempo de So Cesrio de Arles, que procede o nosso texto atual do Sfmbolo dos Apstolos90 (encarte, fig. 2).

    90 ROPS, Daniel. A lgrtja dos Apstolos~ dos Mdrtires. p. 248.