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CAP›TULO 3 33 © Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA 3 CAPÍTULO Fisiologia da Emoção na Dor NELSON FRANCISCO ANNUNCIATO Tudo o que somos e fazemos depende do nosso Sistema Nervoso (SN). Nossos pensamen- tos, atos, ações, reações, análise e julgamento do passado, observação do presente, planos para o futuro, medos, frustrações, amores, alegrias, dores etc., dependem conspicuamente do nos- so SN. Ainda que inúmeros cientistas tentassem, durante décadas, delimitar e localizar determina- das funções no SN, esse conceito “localizacio- nista” tem dado lugar a um SN mais dinâmico e responsivo, onde diferentes estruturas com dis- tintas funções conectam-se de uma maneira ad- mirável, para nos agraciar com uma harmonia inigualável no controle de todas as nossas fun- ções nervosas, neuro-hormonais, neuroimunoló- gicas e orgânicas. Esse SN se desenvolve como um todo; sua cisão se faz puramente com finali- dades didáticas e, em sua evolução, determina- das áreas acabaram por se especializar e facultar-nos uma cognição, uma linguagem arti- culada, memória, percepção sensorial, intenção e planejamento dos movimentos voluntários, pen- sar, filosofar e/ou compor uma sinfonia. Todos esses fenômenos são, inquestionavel- mente, um somatório de distintas subfunções espraiadas por todo o SN. O SN é responsável pelo controle da homeos- tase de si mesmo e de todos os outros sistemas de nosso corpo. É fascinante poder observar que o ser humano pode viver nas montanhas ou na planície, no deserto ou na floresta, no frio ou no calor e, tudo isto porque seu meio interno se man- tém, admiravelmente, constante. Essa homeos- tase está à mercê do controle do SN vegetativo, do sistema neuroendócrino e neuroimunológico. É, também, graças a esse SN que aprendemos, adquirimos lembranças e uma carga emocional no que tange a todos os assuntos, pensamen- tos, lembranças, imaginações e pessoas. Não conseguimos, destarte, manter uma conversa, mesmo que seja de negócios, sem ter, concomi- tantemente, uma carga emocional associada. Muitos aspectos do comportamento emocio- nal são inconscientes e controlados por sistemas neurais. Elementos cognitivos nas emoções são mediados por vias, as quais conectam estruturas antigas do ponto de vista filogenético e posicio- nadas em regiões subcorticais cerebrais. EMOÇÃO E SENSAÇÕES Para que possamos compreender a fisiolo- gia da Emoção na Dor, devemos abordar, inicial- mente, a emoção em si. Vários são os nossos estados emocionais como, por exemplo, prazer, tristeza, depressão, alegria e euforia, dentre ou-

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CAP›TULO 3 33© Direitos reservados à EDITORA ATHENEU LTDA

3CAPÍTULO

Fisiologia da Emoçãona Dor

NELSON FRANCISCO ANNUNCIATO

Tudo o que somos e fazemos depende donosso Sistema Nervoso (SN). Nossos pensamen-tos, atos, ações, reações, análise e julgamentodo passado, observação do presente, planos parao futuro, medos, frustrações, amores, alegrias,dores etc., dependem conspicuamente do nos-so SN.

Ainda que inúmeros cientistas tentassem,durante décadas, delimitar e localizar determina-das funções no SN, esse conceito “localizacio-nista” tem dado lugar a um SN mais dinâmico eresponsivo, onde diferentes estruturas com dis-tintas funções conectam-se de uma maneira ad-mirável, para nos agraciar com uma harmoniainigualável no controle de todas as nossas fun-ções nervosas, neuro-hormonais, neuroimunoló-gicas e orgânicas. Esse SN se desenvolve comoum todo; sua cisão se faz puramente com finali-dades didáticas e, em sua evolução, determina-das áreas acabaram por se especializar efacultar-nos uma cognição, uma linguagem arti-culada, memória, percepção sensorial, intençãoe planejamento dos movimentos voluntários, pen-sar, filosofar e/ou compor uma sinfonia.

Todos esses fenômenos são, inquestionavel-mente, um somatório de distintas subfunçõesespraiadas por todo o SN.

O SN é responsável pelo controle da homeos-tase de si mesmo e de todos os outros sistemas

de nosso corpo. É fascinante poder observar queo ser humano pode viver nas montanhas ou naplanície, no deserto ou na floresta, no frio ou nocalor e, tudo isto porque seu meio interno se man-tém, admiravelmente, constante. Essa homeos-tase está à mercê do controle do SN vegetativo,do sistema neuroendócrino e neuroimunológico.É, também, graças a esse SN que aprendemos,adquirimos lembranças e uma carga emocionalno que tange a todos os assuntos, pensamen-tos, lembranças, imaginações e pessoas. Nãoconseguimos, destarte, manter uma conversa,mesmo que seja de negócios, sem ter, concomi-tantemente, uma carga emocional associada.

Muitos aspectos do comportamento emocio-nal são inconscientes e controlados por sistemasneurais. Elementos cognitivos nas emoções sãomediados por vias, as quais conectam estruturasantigas do ponto de vista filogenético e posicio-nadas em regiões subcorticais cerebrais.

EMOÇÃO E SENSAÇÕES

Para que possamos compreender a fisiolo-gia da Emoção na Dor, devemos abordar, inicial-mente, a emoção em si. Vários são os nossosestados emocionais como, por exemplo, prazer,tristeza, depressão, alegria e euforia, dentre ou-

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tros. Esses estados emocionais são divisíveis emdois componentes, a saber: (1) sensação físicacaracterística e (2) sensação consciente. Em ou-tras palavras, a emoção se refere ao “estado cor-poral”, enquanto a sensação é utilizada,comumente, para se referir à “sensação consci-ente” como, por exemplo, sentir o pulsar do cora-ção quando estamos com medo ou raiva. Assim,emoção subentende ativação do córtex cerebralacompanhada de reações psicofisiológicas (mu-danças no diâmetro pupilar, mudanças de pres-são arterial, modificações da freqüência eprofundidade respiratória e mudanças de tônusmuscular, dentre outras) e comportamentais (sor-rir, chorar, agredir, acariciar etc.), culminando emum estado afetivo de prazer ou desprazer.

As sensações conscientes são mediadasatravés do córtex cerebral, em particular pelo cór-tex do giro do cíngulo (do latim cingullu, cinta) —assim denominado por se encontrar como umaverdadeira cinta ao redor do corpo caloso — epelos lobos frontais. Estes últimos são extrema-mente importantes nos processos de consciên-cia, pensamentos e emoções.

Uma classificação das emoções não é tarefafácil, haja vista que podemos, por vezes, identifi-car emoções opostas (amor-ódio, alegria-triste-za). Todavia, não encontramos, outras vezes, osantagonistas diretos e específicos de, por exem-plo, encantamento, agonia, inveja, pânico, des-prezo etc. Quiçá facilite a classificação simplesentre valores emocionais positivos (prazerosos)e negativos (desagradáveis). Torna-se, assim, fá-cil imaginar que os indivíduos tendem, em condi-ções psicológicas normais, a buscar as emoçõespositivas, tentando se afastar daquelas situaçõesnegativas, como acontece também na dor.

TEORIA DAS EMOÇÕES

Em 1894 o psicólogo e filósofo americanoWilliam James e o psicólogo dinamarquês CarlLange propuseram, independentemente, teo-rias sobre as emoções. Essas teorias se as-semelhavam em inúmeros aspectos e secomplementavam em outros. Foram posterior-mente denominadas Teoria de James-Lange, quesupunha que experimentamos a emoção em res-posta a modificações fisiológicas em nosso or-ganismo. Por exemplo, ao participar do enterrode um ente querido, afloram lágrimas nos nos-sos olhos e, por isso, sentimo-nos tristes. Emoutras palavras, nossos sistemas sensoriais or-gânicos do meio interno enviam informações acer-

ca de nossa situação para o nosso encéfalo, oqual, por sua vez, decodifica-as e envia sinais parao organismo, modificando uma série de suas fun-ções, como aumento ou diminuição da freqüên-cia cardíaca, aumento ou diminuição da sudorese,secreção salivar etc. De acordo com esses auto-res, se pudéssemos remover as modificações fi-siológicas, a emoção desapareceria com elas.Exemplificando: quando encontramos o grandeamor de nossas vidas, nossas pupilas se dilatam,nossos corações batem com uma freqüênciamaior, a pressão arterial aumenta, a respiraçãose faz mais profunda e rápida etc. Porém, se en-contrarmos uma pessoa, que, pretensiosamen-te, deveria ser o amor de nossas vidas e, nessemomento, não ocorressem as modificações fisi-ológicas do coração, da respiração etc., ela, pes-soa, com certeza não seria a nossa musainspiradora.

Embora a teoria acima tenha-se tornado po-pular, em 1927 ela foi contestada pelo brilhantefisiologista americano Walter Cannon, que propôsuma nova teoria. Essa nova teoria foi modificadadepois por Philip Bard e ficou sendo conhecidacomo a Teoria de Cannon-Bard. Nesta última, umaexperiência emocional pode ocorrer independen-temente de uma “expressão emocional”. Em ou-tras palavras, Cannon afirmava que é possívelvivenciar emoções sem que as mesmas, neces-sariamente, tenham que ser, primeiramente, sen-tidas em nossas vísceras. Como exemplo, sãocitados estudos em que animais tiveram sua me-dula espinal seccionada e, mesmo deixando deexperienciar as sensações do organismo abaixodo nível da lesão, não tiveram suas emoções abo-lidas. De forma semelhante, argumentava ele, se-res humanos com lesões medulares cervicais altasnão deixam de ter suas emoções. Essas argumen-tações foram, entretanto, contestadas através deestudos ulteriores, nos quais se pôde verificar umacorrelação grande entre a perda sensorial e asdiminuições das experiências emocionais relata-das por homens adultos lesados medulares.

Outro fato que se apresenta é o de que, porvezes, reações dos mesmos órgãos podem es-tar vinculadas a mais de uma emoção. Exemplifi-cando, quando sentimos dor, temos, dentre outrasreações, inibição da digestão, sudorese, aumen-to de pressão arterial; ou seja, reações da partesimpática do nosso Sistema Nervoso Autônomo(o qual deveria ser mais corretamente denomina-do pela Terminologia como “Sistema NervosoVegetativo”). Outrossim, essas mesmas reaçõesse fazem presentes por ocasião do medo ou da

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raiva ou em outras circunstâncias como a febrealta, ou seja, elas (reações) não são exclusivasde uma só emoção.

Assim, poder-se-ia resumir as duas teorias naFig. 3.1.

bico. Naquela oportunidade, porém, o autor nãofez relações entre o lobo límbico e as emoções.Pensou-se, por algum tempo, que essas estrutu-ras estivessem vinculadas ao Sistema Olfatório,fato que o tornou conhecido como Rinencéfalo.Essas estruturas, em forma de borda, são: o girodo cíngulo, à frente e acima do corpo caloso, es-tendendo-se até o esplênio do mesmo, como sefosse um verdadeiro “cinto”, o que lhe valeu onome (do latim cingullo, cordão, cinta), giro pa-rahipocampal (face medial do lobo temporal, la-deando o hipocampo), únco (outrora denominadoúncus, do latim, uncus, gancho, garra) e giro den-teado (do hipocampo).

O CIRCUITO DE PAPEZ E AS EMOÇÕES

Em 1937 o neurologista americano JamesPapez publicou um fascinante trabalho relacio-nando as estruturas límbicas, outrora descritaspor Broca, com as emoções, denominando-as,na ocasião, de Sistema da Emoção. Além deidentificar as estruturas límbicas acima descri-tas pelo neurologista francês, Papez amplioubrilhantemente e de maneira ímpar os seus cir-cuitos, incorporando estruturas, hoje sabidamen-te de crucial importância dentro das emoções,quais sejam: corpo amigdalóide (complexo neu-ral em forma de amêndoa), hipotálamo, corposmamilares, núcleos anteriores do tálamo e neo-córtex. Essas estruturas se conectam através devias axonais, dentre elas o fórnice e o fascículomamilotalâmico.

O corpo amigdalóide (conhecido mais co-mumente como “amígdala cerebral” ou simples-mente “amídala”) possui significativas conexõescom o hipotálamo e tronco encefálico. Essas co-nexões fomentam, assim, respostas vegetativas,automáticas, endócrinas e motoras inconscien-tes, que ganham importância por prepararem ocorpo do indivíduo para ações e ou reações,embutidas de diferentes, mas com inerentes,cargas emocionais.

Dentre as estruturas citadas no penúltimoparágrafo, convém, para o presente capítulo, sa-lientar, principalmente, um importante papel dohipocampo, qual seja, o do seu vínculo com aaquisição da memória. Graças à memória de-senvolvemos, também, o medo aprendido vin-culado à dor ou estados emocionais negativos(veja adiante).

Outro aspecto importante foi a inclusão doneocórtex, fato este extremamente apropriado, jáque lesões em certas áreas corticais levam a al-

Estˇmulo fˇsico(p. ex., inc¸ndio)

Receptores ñ ðrgıos dos sentidos(visuais, t˚rmicos, auditivos etc.)

Expressıo emocional(rea˘þes viscerais e somÛticas)

Experi¸ncia emocional(c˚rebro)

Fig. 3.1 – Comparação entre as Teorias da Emoção de acordo comJames-Lange e Cannon-Bard.

Na primeira, de James-Lange, após a recep-ção de um estímulo físico por distintos receptores,as informações são transportadas, primeiramen-te, para as vísceras (seta pontilhada), as quais re-agem. Essas respostas viscerais são, então,encaminhadas ao cérebro, que as decodifica e temuma experiência emocional, por exemplo, medo.

Na segunda teoria, de Cannon-Bard, apósa recepção dos estímulos físicos pelos recepto-res, as informações são transportadas direta-mente ao cérebro (seta cinza), que, apósdecodificá-las e interpretá-las, gera uma experi-ência emocional. Esta última será, agora, enca-minhada às vísceras. Com isto, temos nossasreações psicofisiológicas.

IDENTIFICANDO ÁREAS NERVOSAS

VINCULADAS ÀS EMOÇÕES

Há mais de 100 anos, precisamente em 1878,dois anos antes de sua morte, o famoso neurolo-gista francês Pierre Paul Broca descreveu, na su-perfície medial do cérebro de mamíferos, umgrupo de áreas corticais, as quais formavam umaverdadeira “borda” ao redor do tronco encefáli-co, mais precisamente do mesencéfalo. Assimsendo, Broca evocou, pela primeira vez, paradescrever aquelas estruturas, a palavra latina lim-bus, que, em Português, significa “borda”, “anel”.

A partir daquela publicação essas estruturasforam denominadas, no seu conjunto, de lobo lím-

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terações dramáticas na expressão emocional,mesmo que não comprometam significativamen-te a inteligência e/ou a percepção. Aqui, incluem-se também os lobos frontais.

O termo Sistema Límbico só passou a serpopularizado a partir de 1952, quando o fisiolo-gista Paul MacLean o relacionou com a evoluçãodas espécies e com as emoções vivenciadaspelos animais. Fato interessante, conforme vere-mos a seguir, é a relação de estruturas muito an-tigas do ponto de vista filogenético, que mantêm,também, fortes e inegáveis conexões com a dor.

DOR E MEDO

Pudemos verificar, acima, como as teorias edescobertas sobre a emoção tomaram corpo. Éfascinante observar que estruturas nervosas, porvezes tão minúsculas, possam participar dogrande fenômeno da regulação de nossos pen-samentos, atos, reações, prazeres, angústias, so-frimentos, medos e dores. Visto isto, torna-senecessário observar como estruturas do anterior-mente citado e definido Sistema Límbico partici-pam dos fenômenos do medo e da dor.

As sensações de dor e medo ajudam ho-mens e animais a identificar ameaças à sua inte-gridade e reagir contra essas mesmas ameaças.Estudos realizados nas últimas décadas sobreas estruturas e os processos cerebrais envolvi-dos nas respostas do organismo à dor e ao medovêm possibilitando o conhecimento mais detalha-do de como o cérebro decodifica e regula essesfenômenos.

O medo se origina do contato do organismocom dois tipos de sinais de perigo: os inatos e osaprendidos. Os inatos dizem respeito àquelas si-tuações nas quais, ao longo da evolução filoge-nética, foram selecionadas como fontes deameaça à sobrevivência da espécie. A presençade um predador natural a uma espécie animal ouapenas o seu cheiro torna-se um sinal de perigo,mesmo que esses animais jamais tenham tidocontato prévio com outro membro da família des-se predador. O mesmo ocorre com macacos pe-rante cobras e com bebês humanos expostos aruídos intensos ou postos em lugares altos. Ou-tros estímulos podem passar a sinalizar perigoatravés de um processo de aprendizagem cha-mado “condicionamento clássico de medo”. Istoacontece quando estímulos, em geral inofensivos,são associados a estímulos aversivos, em espe-cial aqueles que causam dor. Um exemplo clás-sico é o de uma criança que tenha sido alertada

várias vezes para não colocar a mão no fornoquente e, mesmo assim, não prevendo as suasconseqüências, teima por fazê-lo. A dor sentidaficará na memória como algo perigoso (nocicep-tivo), que deverá ser sempre evitado.

Quando nos lembramos dos parágrafos an-teriores, em particular sobre uma das funções dohipocampo, logo vemos a relação entre ele (hi-pocampo), emoções, memória, medo (medoaprendido por meio da própria memória) e dor.

Devemos, neste caso, acrescentar outrasestruturas nervosas importantes, que tambémparticipam da dor, quais sejam: formação reti-cular (albergada ao longo de todo o tronco en-cefálico), substância cinzenta periaquedutal(atualmente denominada pela Terminologia Ana-tômica substância cinzenta central), posicionada,como o nome sugere, ao redor do aqueduto me-sencefálico, o qual conecta o III ao IV ventrículo.

Sabe-se que a estimulação elétrica dessasáreas, bem como do corpo amigdalóide e do hi-potálamo, leva a padrões de comportamento de-fensivo (de acordo com cada espécie) emanifestações comportamentais e subjetivas demedo e ansiedade em humanos.

Retrocedendo à Fig. 3.1, vemos que o cami-nho neural do medo começa nos órgãos dos sen-tidos, os quais captam os estímulos físicos(ambientais) de perigo e os encaminham ao tála-mo, que, por sua vez, redireciona as informaçõespara níveis corticais cerebrais. Porém, uma outravia, agora pertencendo ao Sistema Límbico, car-rega essas informações para os núcleos lateraisdo corpo amigdalóide. A partir da decodificaçãodos núcleos laterais, as informações de perigosão enviadas aos núcleos mediais, por meio dosquais comandos chegam ao hipotálamo e à subs-tância cinzenta periaquedutal, que, dentre outrasfunções, produz endorfinas (substância seme-lhante à morfina e, por ser produzida pelo próprioorganismo, recebeu a denominação de “opióideendógeno”). As endorfinas participam de uma cir-cuitaria essencial com a formação reticular, atra-vés da qual elas (endorfinas) atuam na regulaçãodescente da dor. Isto nos esclarece porque esti-mulações elétricas da substância cinzenta peria-quedutal podem produzir uma profundaanalgesia, como veremos mais adiante.

No caso da dor, e do ponto de vista neuroa-nátomo funcional, a substância cinzenta periaque-dutal participa, ainda, do controle das reaçõescomportamentais imediatas de defesa, enviandodetalhes aos núcleos motores de nervos ence-

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fálicos como núcleo do oculomotor, troclear eabducente (movimentos oculares), nc. motor dotrigêmeo (abertura e fechamento de boca), nc.motor do facial (expressão mímica), nc. do aces-sório (movimento e reposicionamento de cabe-ça), nc. do hipoglosso (movimentos de língua),nc. motor do vago (vocalização) etc.

O hipotálamo representa, aproximadamente,apenas 1% do volume total do cérebro e, por suavez, é povoado por núcleos pertencentes ao Sis-tema Neuroendócrino, através dos quais direcio-na informações para as glândulas supra-renais,culminando na liberação de adrenalina, elevandoo ritmo de vários órgãos, como coração e pul-mões. Acrescente-se a essa maravilhosa circui-taria as importantes projeções do hipotálamo eda substância cinzenta periaquedutal sobre a for-mação reticular.

FORMAÇÃO RETICULAR E ORGANIZAÇÃO

DE QUADROS COMPORTAMENTAIS

Nos itens precedentes analisamos importan-tes estruturas envolvidas nas emoções e nas rea-ções comportamentais envolvidas com a dor.Assim, os dados anatômicos e fisiológicos resu-midos nos parágrafos anteriores indicam clara-mente que todos esses fenômenos devam serorquestrados de maneira majestosa. Nesse con-texto faz-se mister discorrer algo mais sobre aFormação Reticular (FR).

Esta estrutura se encontra alojada dentro detodo o tronco encefálico e possui inúmeros axô-nios, os quais têm projeções tanto ascendentescomo descendentes. A FR tem, dentre incontá-veis funções, a capacidade de ativar o mantocortical através de um Sistema Ativador ReticularAscendente (SARA), pertencente, predominante-mente, aos territórios mesencefálicos. A ativaçãocortical, com o conseqüente estado de vigília,como se sabe, é de suma importância para quevários processos mentais humanos sigam o seucurso correto. Destarte, os estímulos dolorososdevem ter acesso rápido e maciço às estruturasreticulares, para que as mesmas possam “des-pertar” o córtex cerebral e ou (re)direcionar suaatenção para o que se passa, no sentido de queeste possa assumir decisões importantes paracom suas respostas. Por exemplo, se durante umadiscussão carregada de raiva, alguém lhe quei-ma com a ponta de um cigarro, isto poderá ser omotivo para se decidir por uma agressão física.Todavia, quando alguém conhecido e de papelimportante em sua vida, como, por exemplo, seu

chefe, encosta a ponta acesa do cigarro no mes-mo ponto da pele do exemplo acima, provocan-do o mesmo grau de dor, seu córtex tem queestar atento ao fenômeno da dor, mas tem que sa-ber distinguir entre uma situação e outra, ou seja,entre a agressão física e o “sorriso amarelado edócil” para seu chefe, haja vista que isto podeser decisivo na sua permanência ou não no mes-mo emprego.

Através das conexões mesencefálicas ativa-doras do córtex cerebral (SARA), pode-se tam-bém entender o porquê de não se conseguirdormir ou mesmo prestar atenção em algo queesteja acontecendo, se o nível de dor for umpouco mais elevado. O SARA não deixará, comcerteza, o manto cortical descansar, enquanto per-durar dores mais incisivas.

Outrossim, em várias das teorias correntessobre mecanismos neurais dos fenômenos dedor, vislumbra-se a participação da FR, à qual éconferida uma situação de controle eferente dasensibilidade. Um exemplo de particular interes-se clínico é representado pelo fato de que a anal-gesia, a qual é obtida inclusive em sereshumanos, pode ser atingida através da estimula-ção elétrica da substância cinzenta periaquedu-tal.

Esse fenômeno é mediado, pelo menos emparte, por projeções da própria substância cin-zenta periaquedutal para o núcleo magno da rafeposicionado no bulbo. Este núcleo, por sua vez,envia fibras para as regiões do corno dorsal damedula espinal, a qual está envolvida na trans-missão ascendente de informações dolorosas.Assim, as fibras provenientes da FR inibirão asinformações ascendentes de dor. Esse tópicoserá retomado mais abaixo por ocasião da dorcrônica.

Voltemos ao hipotálamo. Observamos que,ainda que estudos passados tenham demonstra-do a existência de vias descendentes do hipo-tálamo, e que se distribuem para neurôniosautonômicos (vegetativos) pré-ganglionares dotronco encefálico e da medula espinal, essas pro-jeções diretas parecem ser pouco numerosas.Muito mais importante, no contexto do sistemavisceromotor central, são as vias provenientes dohipotálamo e que terminam na FR mesencefáli-ca. A partir desta última, passando por sucessi-vas sinapses ao longo da dimensão longitudinaldo tronco encefálico, os impulsos hipotalâmicossão, finalmente, transmitidos aos neurônios auto-nômicos pré-ganglionares simpáticos e parassim-páticos. Esses dados indicam claramente que

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devemos esperar por uma participação importan-te da FR na integração e no controle de mecanis-mos homeostáticos vegetativos e endócrinos, eé realmente isso que se verifica em investigaçõesfisiológicas. Assim, informações de dor, ao atin-gir a FR, levam, também, às reações dos siste-mas simpático e parassimpático.

Ainda albergados no seio da FR, estão o im-portante Centro Cardiovascular Bulbar e o Com-plexo Reticular Respiratório Pontinobulbar, osquais são acionados quando de estímulos dolo-rosos. Estes dados fortalecem mais ainda o im-portante papel da FR como integradora deinformações sensoriais e controladora de reaçõesamplas devido a quadros de dor aguda ou crôni-ca (veja mais adiante).

INTEGRAÇÃO DE QUADROS

COMPORTAMENTAIS VINCULADOS À DOR

Ainda que tenhamos, por motivos didáticos,discutido separadamente os vários mecanismosemocionais, neuroendócrino e psicossomáticosassociados à dor, não devemos perder de vista ofato de que o SN é um todo, único e indivisível.Assim, no indivíduo como um todo há situaçõesnas quais muitos desses mecanismos são, emverdade, mobilizados conjuntamente como com-ponentes de quadros comportamentais específi-cos e gerais.

Ilustração clara é a chamada reação de aler-ta, fortemente presente durante os estados de dor,mormente aguda. Essas reações foram muitoestudadas pelo já citado fisiologista Cannon. Es-sas reações comportamentais são produzidas,em maior ou menor grau, por vários tipos de estí-mulos ambientais, os quais têm em comum o fatode serem, pelo menos potencialmente, dotadosde significado biológico para o animal, como é ocaso, por exemplo, de estímulos de natureza do-lorosa ou da visão de um predador natural (medo).

A experiência mostra que, quando de umestímulo deste tipo (dor ou medo), o animal nor-mal responde com um padrão comportamentalextremamente complexo, o qual pode resultar ematividade muscular somática incrementada, pormeio da qual o animal se prepara para “fugir oulutar”. A ativação muscular esquelética é acom-panhada, tipicamente nesses casos, por um am-plo espectro de manifestações, incluindo, dentreoutros fenômenos, ativação do córtex cerebral,midríase (aumento do diâmetro pupilar), aumen-to da ventilação pulmonar, aumento da freqüên-cia cardíaca, aumento do débito cardíaco,

elevação da pressão arterial, vasodilatação dasartérias da musculatura esquelética, concomitantea uma constrição em outros territórios vasculares(como na pele, por exemplo), liberação de hor-mônios supra-adrenais, aumento do débito he-pático de glicose e da liberação de ácidos graxosa partir do tecido adiposo.

Evidentemente, todo esse conjunto de mani-festações pode ser concebido como correspon-dendo a um padrão útil de adaptação biológicado organismo que se prepara para uma atividadede “luta ou fuga”, já que estamos, basicamente,diante de fenômenos (dor e medo), os quais, atra-vés de um alerta comportamental geral, visam àpreservação do indivíduo, tentando afastá-lo dosagentes dolorosos. Dentre todos os mecanismosdescritos acima, muitos têm acesso ao nível daconsciência e impregnam-nos com emoções,medos e memórias.

MECANISMOS NEURONAIS PLÁSTICOS

DE ADAPTAÇÃO À DOR CRÔNICA

Partindo-se da definição de dor, qual seja,uma experiência sensorial e emocional desa-gradável, descrita como conseqüência de danotecidual, real ou potencial e, sabendo-se, con-forme vimos no parágrafo anterior, que a doraguda desencadeia várias reações típicas, den-tre as quais, “luta ou fuga”, torna-se interessantea constatação de que a dor crônica, por sua vez,ao contrário da dor aguda, culmina, geralmente,em modificações emocionais, tais como letargia,depressão etc. Quais seriam, então, os mecanis-mos neuronais envolvidos em tal fenômeno?

Já salientamos neste capítulo que o SN é umtodo, único, indivisível, cindido apenas com fi-nalidades didáticas. Assim, durante o processode cronicidade da dor, não há apenas uma áreaou apenas uma substância química que possadesencadear e promover os estados de adap-tação a esta nova modalidade (dor crônica). Oque se observa, outrossim, é a participação ati-va e dinâmica de várias áreas e substânciasquímicas distribuídas ao longo da parte periféri-ca e central do SN, ao mesmo tempo em queoutras são inibidas.

Acima vimos que, em um caso de dor agu-da, o córtex cerebral deve ser ativado o mais bre-ve e eficazmente possível para que o indivíduopossa ter a consciência de tal fato e possa tomaras providências cabíveis ao caso. Por outro lado,quando o processo álgico se torna crônico, den-tre os mecanismos de adaptação à dor, o córtex

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cerebral, por exemplo, deve-se tornar menos aten-to no que se refere à dor, pois ele, o córtex, devese ocupar de outras funções nervosas denomi-nadas superiores. Dessa forma, a FR já referidaacima deverá lançar mão de mecanismos quími-cos (neurotransmissores, como, por exemplo, se-rotonina) e hodológicos (vias nervosas) paradiminuir a atividade do SARA sobre o manto cor-tical cerebral, primordialmente no que se refere àpassagem de informações dolorosas. Esses ajus-tes ocorrem graças à capacidade intrínseca dascélulas nervosas em modificar suas atividadesquando da necessidade de se adaptar ao ambi-ente externo e/ou interno, como no caso da dor.Este é um dos fenômenos característicos da Plas-ticidade do Sistema Nervoso.

Vimos acima uma possibilidade elegante daFR controlar a transmissão ascendente de infor-mações dolorosas através do núcleo magno darafe. Esse núcleo, assim como os demais nú-cleos da rafe, produz grandes quantidades de se-rotonina, a qual é encaminhada para as regiõesdo corno dorsal da medula espinal, como já men-cionado, envolvidas no fenômeno da dor. Esta se-rotonina, por sua vez, inibe as informações de dororiundas da periferia. Constata-se, assim, umadas possibilidades adaptativas do organismo àdor crônica, onde a FR tenta minimizar o caráteragudo e apunhalante da dor.

Pelo exposto, mudanças na quantidade daprodução de determinados neurotransmissorese/ou neuromoduladores, bem como ajustes nonúmero de receptores da membrana pós-sináp-tica, ajudam-nos a compreender também asoscilações de humor, depressão, letargia e aten-ção, já que nossas sensações e emoções nãodependem tão e puramente das vias nervosas,mas também, e, fundamentalmente, de substân-

cias químicas.Todos esses detalhes resumidos anteriormen-

te facultam-nos a idéia da complexidade desseSN. Experiências emocionais mostram o graucomplexo das relações dos centros corticais ce-rebrais com outras áreas subcorticais como hi-potálamo e corpo amidalóide.

Emoções ímpares como amor e amizade tor-nam-nos muito mais humanos por serem dificil-mente comprovadas em outras espécies animais.Esse ser humano, com suas necessidades bioló-gicas, sociais, intelectuais, espirituais e emocio-nais, consegue dar origem a religiões e crenças,desenvolve tecnologia e ciência, e cria civiliza-ções, mas, muitas vezes, por não saber controlarsuas emoções, por medo, amplia a dor e o sofri-mento, chegando, até mesmo, a destruir a civili-zação por ele mesmo criada.

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