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PENSAMENTO E CULTURA

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  • Governo Federal

    Presidente da RepblicaLuiz Incio Lula da Silva

    Ministro da EducaoFernando Haddad

    Secretrio ExecutivoJos Henrique Paim Fernandes

    Secretrio de Educao Bsica Francisco das Chagas Fernandes

    Diretor do Departamento de Articulao e Desenvolvimento dos Sistemas de EnsinoHorcio Francisco dos Reis Filho

    Coordenadora Geral do Programa Nacional de Valorizao dos Trabalhadores em EducaoJosete Maria Canguss Ribeiro

    Coordenao Tcnica do ProfuncionrioEva Socorro da Silva e Ndia Mara Silva Leito

    Apoio TcnicoAdriana Cardozo Lopes

    Universidade de Braslia UnB

    ReitorLauro Morhy

    Vice-ReitorTimothy Martin Muholland

    Coordenao Pedaggica do ProfuncionrioBernardo Kipnis - CEAD/FE/UnBFrancisco das Chagas Firmino do Nascimento - FE/UnBJoo Antnio Cabral de Monlevade - FE/UnBMaria Abdia da Silva - FE/UnBTnia Mara Piccinini Soares - MEC

    Centro de Educao a Distncia - CEAD/UnBDiretor Bernardo KipnisCoordenao Executiva Jandira Wagner CostaCoordenao Pedaggica Maria de Ftima Guerra de Souza

    Unidade de ProduoGesto da Unidade Bruno Silveira DuarteDesigner Educacional Bruno SilveiraReviso Daniele SantosCapa e Editorao Evaldo Gomes e Tlyo Nunes

    Unidade de PedagogiaGesto da Unidade Maria Clia Cardoso Lima

    Unidade de Apoio Acadmico e LogsticoGesto da Unidade Silvnia Nogueira de SouzaGestora Operacional Diva Peres Gomes Portela

  • Brasil. Ministrio da Educao. Secretaria de Educao Bsica.B823 Homem, pensamento e cultura : abordagens filos-

    fica e antropolgica : formao tcnica / [elaborao: Dante Bessa]. Braslia : Universidade de Braslia, Centro de Educao a Distncia, 2005.

    92 p. : il. (Curso tcnico de formao para os fun-cionrios da educao. Profuncionrio ; 3)

    ISBN 85-86290

    1. Educador. 2. Formao profissional. 3. Escola. I. Bessa, Dante. II. Ttulo. III. Srie.

    CDU 37.01 2 edio atualizada

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)

  • ApresentaoAlguma vez voc j se perguntou como se tornou o

    que hoje: a sua humanidade, a sua profisso, a sua cida-

    dania, os seus valores? Alguma vez j se perguntou se quer,

    se pode e como poderia se tornar diferente? J se perguntou se

    hoje diferente do que j foi antes? Voc encontrou uma ou mais de

    uma resposta para essas perguntas? Alguma vez j se perguntou se as

    respostas a essas perguntas valem para as pessoas que convivem com

    voc? Alguma vez j se perguntou se essas respostas valem para qualquer

    um, independentemente das condies de vida? Alguma vez j se perguntou

    se as outras pessoas teriam as mesmas respostas ou respostas diferentes das

    suas? E j se perguntou por que e como as pessoas podem pensar a mesma

    coisa ou pensar coisas diferentes, sobre si mesmas, sobre a vida, sobre a socie-

    dade, sobre o mundo?

    Bom, vou parar com as perguntas, pois h uma infinidade de outras que po-

    deriam ser colocadas junto a essas. Importa perceber que perguntar pensar.

    Perguntar faz pensar. Buscar respostas pensar. Buscar respostas faz pensar. Res-

    ponder pensar. Responder faz pensar. Pensar d trabalho!

    Alm de fazerem pensar: perguntar, buscar respostas e responder fazem falar.

    Fazem escutar. Fazem olhar. Fazem observar. Fazem escrever. Fazem ler. Fazem

    conversar. Fazem perguntar outras coisas. Fazem aprender. Fazem ensinar. Fazem

    educar. Fazem trabalhar. Enfim fazem fazer! Pensar d trabalho!

    Neste mdulo, convido voc a se perguntar sobre o homem1. Sobre o homem,

    o pensamento e a cultura, para provoc-lo a pensar e responder de algum jeito

    as perguntas do primeiro pargrafo, com base nas atitudes que os pargrafos se-

    guintes sugerem.

    Perguntar sobre o homem, o pensamento e a cultura far voc pensar sobre o

    significado sociocultural do existir humano e (re)pensar sua vida e sua profisso,

    com vistas a poder participar mais intensamente na escola como educador profis-

    sional e como cidado.

    Para isso, este Mdulo est divido em 5 unidades, nas quais voc vai trabalhar

    sobre:1Por comodidade e necessidade, utilizarei a palavra homem para designar quaisquer dos gneros humanos, isto , tanto para o feminino quanto para o masculino. Em outros momentos utilizarei tambm a palavra humano ou a expresso ser humano com o mesmo sentido

  • Unidade 1 O tornar-se humano e profissional como construo sociocultural

    Unidade 2 O tornar-se humano e profissional pelas prticas simblicas

    Unidade 3 O tornar-se humano e profissional pelo trabalho

    Unidade 4 O tornar-se humano e profissional pelas prticas valorativas

    Unidade 5 O tornar-se humano e profissional na escola

    Voc trabalhar o tornar-se humano e profissional levando em conta o homem gen-

    rico (conceito de homem) e cada homem individual ao mesmo tempo. Assim, cada unida-

    de apresenta perguntas, respostas possveis, outras perguntas e sugestes de atividades

    de reflexo, observao e escrita, alm de sugerir outras leituras e filmes que podem lhe

    ajudar a pensar sobre os assuntos em estudo.

    As atividades sugeridas dizem respeito ou a algum contedo do mdulo apresentado antes, ou

    que ser apresentado depois, ou a alguma situao das prticas sociais na escola ou fora dela.

    Objetivo do Mdulo

    Apropriar e criar condies terico-prticas com as quais problematizar, investigar e

    criticar a participao na escola, com vistas construo da identidade de educador pro-

    fissional.

    Ementa

    Processo de construo da cidadania. Filosofia como instrumento de reflexo e prtica. tica, moral e poltica. O ambiente fsico e social. Relaes homem/natureza. Aspectos e valores culturais. Linguagem e comunicao.

  • Mensagem do Autor

    Amiga educadora e amigo educador,

    H 10 anos tenho sido professor de Filosofia e de Filosofia

    da Educao em escolas e universidades pblicas e privadas.

    Nesse perodo, alm daquele em que fui aluno, sempre estive

    lado a lado com pessoas que trabalhavam nas escolas, mas

    nunca pude saber o que pensavam sobre as relaes entre o

    seu trabalho e a educao, nem sobre o seu lugar na escola.

    Nunca pude perceber como se sentiam em relao educa-

    o feita ali onde trabalhavam e se em suas prticas profissio-

    nais havia alguma inteno educativa.

    Agora chegou a oportunidade de saber alguma coisa sobre

    voc que participa da educao na escola e no professor

    nem aluno. Que bom! Estou feliz com essa oportunidade!

    Por outro lado, por saber pouco sobre o que voc pensa, es-

    crever este mdulo se colocou para mim como um desafio.

    Desafio de escrever como penso a escola e o trabalho escolar

    e de provoc-lo a pensar sobre isso. Quer dizer: escrevo para

    que voc pense e construa os seus saberes, mas no para

    que pense e saiba a mesma coisa que eu.

    isso, naquilo que eu escrevo voc poder perceber um ou-

    tro olhar, uma outra viso, um outro jeito de encarar as coi-

    sas. Perceber isso deve ser motivo para pensar sobre o olhar,

    a viso e o modo como voc mesmo tem encarado a escola.

    Nessa interao, vamos tentar compartilhar alguns proble-

    mas que precisamos enfrentar na formao profissional e as

    possibilidades terico-prticas para enfrent-los.

    A minha suposio, contudo, a de que, querendo ou no,

    quando nos dispomos a escutar e a ler o diferente, o outro,

    ele sempre nos faz pensar e transformar. Bem, pelo menos

    o que eu espero, confessando que muito do que eu pensava

    sobre voc e sobre a escola, antes de escrever este mdulo,

    agora j se tornou diferente em mim.

    Desejo, ento, que voc fique bem vontade na leitura. Con-

  • centre-se nela para compreender os problemas colocados e

    por que eles so colocados. Concentre-se na leitura para co-

    locar seus prprios problemas em relao ao que est escrito

    e ao que voc sente na escola. Que essa concentrao traga-

    lhe dvidas suficientes para que possa se desconcentrar da

    leitura, pensar e construir os saberes de que voc e as escolas

    necessitam para ser mais do que so.

    Eu sou assim mesmo: gosto de estar com as pessoas e escu-

    t-las. Gosto de saber o que elas tm a dizer com base no que

    experimentam no mundo e no com base na experincia dos

    outros. E gosto de perguntar, como voc j percebeu. Tenho

    c minhas experincias, voc tem a as suas. Perguntamos,

    contamos entre ns o que experimentamos e aprendemos

    uns com os outros.

    Muito perguntar, muito pensar e muito trabalho a todos!

    Dante Diniz Bessa

  • Sumrio

  • INTRODUO 13

    UNIDADE 1 Devir humano 17

    UNIDADE 2 Linguagem, prticas culturais e educao 33

    UNIDADE 3 Trabalho, prticas culturais e educao 51

    UNIDADE 4 Valores, prticas culturais e educao 65

    UNIDADE 5 Prticas culturais na escola e cidadania 79

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS 90

  • IntroduoNa convivncia voc est com o outro e diante do outro. Com ele se educa e pode pensar sobre si mesmo. Para saber como se torna o que , voc se identifica (percebe o que h de co-mum) e se diferencia do outro.

    Assim, para pensar sria e intensamente sobre o homem, voc precisa compreender que os homens se tornam humanos nas relaes que estabelecem com o outro; precisa pensar como a educao acontece nessas relaes, sejam elas dentro ou fora da escola.

    Mas quem esse outro?

    Genericamente falando, o outro o diferente, a possibilidade, o limite, o contorno, o desconhecido. Aquilo que permite que algum se reconhea em si mesmo pela diferenciao que estabelece com ele.

    O outro pode ser uma pessoa, um grupo, um pen-samento, uma palavra, uma coisa, todas as coisas, a natureza, o mundo, a cidade, a escola, a lei, a regra, o hbito, o costu-me. Olhem na ilustrao a seguir quantos outros na escola!

    A convivncia com o outro supe construo, desconstruo e reconstruo de cada um dos diferentes e das relaes que existem entre ambos, o que caracteriza a educao e o tornar-se humano (devir humano).

    Por isso, voc pode dizer que na escola a educao do ho-mem acontece pelas influn-cias que as prticas escolares tm sobre cada um de ns. As influncias so resultan-tes das relaes estabeleci-das entre as pessoas e delas com a prpria escola.

    No estudo deste mdulo, alm de l-lo, ser importan-te que voc pense e investi-gue suas prticas e vivncias de trabalho e as prticas co-tidianas de sua escola e do

    A escola construda por quem nela e com ela se encontra. Logo, independentemente do papel que desempenhamos estamos na escola, estamos fazendo a escola e educando outros. Mas, claro, no podemos esquecer de que no so apenas as pessoas que esto na escola que a fazem: h uma legislao que a orienta, um poder pblico que a mantm, uma comunidade a que ela atende, uma histria da qual ela participa, uma economia a qual est vinculada, etc.

  • mundo no qual ela e voc esto inseridos. Pensar e investigar as vivncias e prticas pode fazer mudar sua viso sobre a escola e sobre seu trabalho. importante, ento, pensar no seu dia-a-dia e no dia-a-dia da escola.

    Investigar a escola no seu dia-a-dia v-la como espao em que pessoas diferentes se encontram e realizam diversas pr-ticas com o objetivo de educar. nas prticas escolares que interessa ver e pensar o humano, o educador e o cidado, su-pondo que um profissional da educao precisa saber que pr-ticas podem ser mais significativas para a educao desejada e planejada na escola, quem as realiza e como so realizadas, para saber das influncias que elas podem ter sobre o modo de pensar e de viver daqueles que participam dessas prticas (alunos, professores, funcionrios, pais, comunidade).

    Algumas prticas do cotidiano escolar so to comuns e b-vias que muitas pessoas sequer prestam ateno a elas, no reconhecendo a importncia que podem ter na educao dos outros e na sua prpria educao.

    Ento, experimente problematizar e valorizar as prticas es-colares, a partir das seguintes questes: por que so feitas? Como so feitas? Para que so feitas? Que influncias podem ter na vida das pessoas? Voc ver que muitas prticas ganha-ro outra importncia se conseguir perceber isso.

    Problematizar significa colocar problemas a serem pensados e investigados para que se possa saber e ser mais no que se . Propor problemas significa tornar estranho aquilo que sem-pre pareceu familiar, lanando-se dvidas, suspeitas, questio-namentos que faam pensar o sentido dessas prticas para a educao, mesmo que no dia-a-dia da escola elas paream no ser problemticas.

    Investigar um problema, por outro lado, no necessaria-mente resolv-lo, mas t-lo como algo que faz pensar e agir, isto , que possibilita mudar de atitude diante do que parece ser sempre o mesmo.

    A investigao a que lhe convido, nesse sentido, ser feita como um modo possvel de construir alguns saberes que po-dem ajudar a assumir uma atitude crtica.

    Um profissional crtico, atento s prticas de que participa, poder vir a planej-las e participar delas sabendo de suas intenes, objetivos e influncias possveis. Com isso, poder

    Por atitude crtica entendo a que no aceitamos imediatamente: coisas, idias, acontecimentos, tais como nos so ditos ou apresentados, seno que antes suspeitamos, interrogamos, buscamos informaes, analisamos para, ento, poder assumir posio terica e prtica.

    Olhe com ateno a ilustraoda pgina anterior. Voc enxerga prticas e posturas escolares nela? Essas prticas e posturas seriam as da escola em que voc trabalha? Seriam da escola que voc deseja trabalhar? Ou seriam prticas e posturas que precisam ser questionadas? E os espqos escolares que ali voc enxerga: so os da escola em que trabalha, so os que voc deseja para a escola a ilustrao no d conta de todos os espaos escolares?

  • trazer muitas contribuies para que a educao escolar pos-sa ganhar uma qualidade diferente da que tem tido.

    E como vai ser essa investigao?

    Bem, vai ser uma investigao antropolgico-filosfica.

    O que eu quero dizer com isso?

    Quero dizer que alm de ler este mdulo, voc vai aprender a investigar: perguntar, observar, descrever, narrar, analisar, interpretar, refletir e criticar o cotidiano escolar, tentando criar as condies para que possa construir, desconstruir e recons-truir suas prticas e a si mesmo, alm de tentar entender como a escola produz e reproduz cultura e como isso influencia no tornar-se humano de cada pessoa.

    Acho que com isso voc j pode comear a investigao.

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    Podemos entender a palavra conceito como aquilo que pensamos sobre as coisas e os acontecimentos, isto , os significados que construmos no pensamento e com os quais podemos classificar e diferenciar as coisas e acontecimentos. Relacionando os conceitos, podemos emitir juzos sobre o mundo. Podemos dizer o que pensamos com sentido.

    Comece por se perguntar: o que faz com que eu me chame e

    me sinta humano?

    Veja que essa pergunta no parece ser problemtica para mui-

    ta gente. No qualquer um que pensa sobre isso, pois mui-

    tas pessoas j conhecem as respostas (que so bvias) sem

    ter colocado a pergunta: somos humanos porque nascemos

    de humanos, somos sangue de nossos pais esta uma res-

    posta; somos humanos porque Deus nos criou assim esta

    j uma outra resposta; uma terceira afrma: somos humanos

    porque o destino e a natureza nos fizeram assim.

    Apesar das diferenas, essas trs respostas dizem a mesma ob-

    viedade: somos humanos porque h uma

    fora fora de ns que nos faz assim o san-

    gue dos pais, Deus, a natureza, o destino.

    Mas, a proposta de estudo justamen-

    te tornar o bvio estranho, no ? Um

    jeito de fazer isso pensar porque, para

    outras pessoas, essas respostas no so

    bvias. Veja o que esses outros podem

    nos fazer pensar sobre isso.

    Os outros a que estou me referindo

    so filsofos, antroplogos e cientistas

    sociais que, em geral, acreditam que

    outra(s) resposta(s) possa(m) ser dada(s) caso se coloque d-

    vidas sobre a vida que se vive. Para eles, no nos chamamos

    humanos por causa do sangue, de Deus, do destino ou da

    natureza, mas porque nos fazemos humanos na vida. Huma-

    no um conceito que criamos para significar a ns mesmos

    e ao nosso modo de viver.

    Por isso, interessante que voc procure compreender como

    que o conceito de humano foi construdo e reconstrudo,

    voc no acha? Ento, procure pensar nas condies em que

    cada um vive e pode se fazer, chamar-se e sentir-se humano.

    Para que possa pensar sobre isso com outros, passo a apre-

    sentar alguns conceitos j elaborados por filsofos, antrop-

    logos e cientistas sociais.

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    n Meu pai, devenir fruta ou verdura?

    n Por que perguntas filho?

    n Meu pai, quero, se possvel, que veja minhas razes. O senhor j me ensinou que quando se recebe uma pergunta, s se deve entrar com outra, depois de ter respondido. E eu, seu filho, firmado na sua ortodoxia quero para mim as vantagens da sua observao.

    n Bem, vejo que voc tem razo. Dese-jo, no entanto, dizer-lhe que se voc me houvesse feito, ontem, essa inquirio,

    confesso que no estaria em condies de respond-la. Porm hoje, depois de certo progresso que fiz posso afirmar que DEVENIR no fruta nem verdura. , sim, uma concepo filosfica.

    n Agora sim, concepo filosfica! Mas...

    n Nem mais nem menos, agora a vez minha, Scrates.

    n O senhor sabe que no gosto de ser chamado de Scrates3, pois acho aque-le velho muito feio e sua mulher que me

    O DEVENIR

    2Jos Rodrigues de Oliveira, poeta popular que divulga seus escritos no site www.divulga-se.net/cordel - literatura de cordel on line.3Scrates viveu em Atenas, na Grcia Antiga, no sc V a.C. e considerado por muitos como o primeiro grande filsofo da histria ocidental.

    1 A natureza no humano

    Um primeiro conceito para ajudar a pensar sobre as condi-

    es em que algum se faz, chama-se e sente-se humano o

    que est no ttulo da unidade: devir humano.

    Ento, leia o ttulo com ateno. Sem ler o restante do texto,

    procure ver se h algo que voc estranha na expresso. Se

    h, ento, pergunte-se: por que est escrito devir humano

    e no ser humano? Ser devir humano o mesmo que ser

    humano? Faz diferena falar e pensar devir humano em vez

    de ser humano? Afinal, o que significa devir humano?

    Se voc, ao ler o ttulo desta unidade, havia colocado essas ou

    outras perguntas, porque j est entrando no esprito crtico

    e investigativo proposto. Avance no pensar o que significa de-

    vir humano e o que isso tem a ver com a identidade humana.

    Leia com ateno, agora, o texto abaixo, de Jos Rodrigues de Oliveira2 e procure pensar o que pode ser dito sobre a natureza no humano quando ele se refere ao devenir ou devir.

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    desculpe, mas acho o nome dela horro-roso! Xantipa! S sendo grega.

    n Est certo, mas, por que voc me per-guntou se devenir fruta ou verdura?

    n Perguntei porque a mame falou que algum comeu a folha do devenir. O ve-lho se arrumou na cadeira de balano, tirou os culos e, depois duma mordaz e gostosa gargalhada, falou: Paulinho, voc um anjo. Voc, sua me e seus irmos azucrinam meus ouvidos, mas tambm fazem ccegas no meu cora-o. Presta ateno, filhote, devenir o mesmo que devir; uma srie de transformaes. A transformao ou mudana de estado considerado em si mesmo. O devenir a nossa carac-terstica fundamental e a tudo quanto no mundo nos rodeia. A Filosofia tem se empenhado em compreender o de-venir, cuja questo decisiva a relao deste com o ser. Herclito e Parmni-des4, quatro sculos antes de Cristo, j se ocupavam com o assunto, que veio receber mais luz agora no sculo XX com o nosso querido Einstein5. J expli-quei muito, pelo seu aspecto, vejo que voc entendeu pouco, no foi?

    n Para ser sincero, papai, no entendi nada e, se eu quisesse ser chato, iria fa-zer mais perguntas.

    n Pode perguntar, entretanto, Piaget6 aconselha que devemos aprender as coisas aos poucos, as doses do saber devem ser homeopticas. E voc ain-da criana. Segundo o mesmo educa-dor existe a idade para a abstrao.

    Contudo, faa a pergunta, sua curiosi-dade muito me agrada.

    n Devenir o mesmo que futuro?

    n No. Entretanto, podemos relacion-lo no s com o futuro como tambm com progresso e o regresso vida e morte.

    n Com a vida e com a morte!?

    n Sim, com a vida e com a morte. At conosco, com voc, meu filho, veja s, voc vai completar 13 anos no prximo ms, j notou sua voz como est fican-do diferente? Os plos do seu bigode esto engrossando. (Ao ouvir isso o ra-pazinho no se conteve e escandalosa-mente sorriu).

    n Voc, devenirmente, caminha para puberdade, depois tornar-se- adulto, daqui a cem anos quando voc morrer ir modificar o ph da terra onde colo-carem seu corpo. Antes disso, voc vai mudar de tal forma que quem lhe ver hoje, e s possa ver daqui a alguns anos, talvez no lhe reconhea. Salvo melhor juzo, isso devenir. Gostou?

    n O devenir se limita de acordo com a idia que se tem do progresso, sendo a idia um progresso, preciso que o devenir seja compreendido, sendo compreendido, encontrar-se- nele um movimento que o que existe de mais concreto. Herclito, o filsofo do vir-a-ser, do devenir, disse que o vir-a-ser est em tudo, porque nada . Para ns, modernamente, tudo j era. Eu e voc no somos mais aqueles de quando ini-ciamos essa conversa, eu, afora o sutil

    4Herclito e Parmnides tambm so filsofos que viveram na Grcia Antiga entre os sculos VI e V a.C. 5Conhecido como pai da teoria da relatividade, Albert Einstein viveu no sculo XX.6Bilogo suo, Jean Piaget viveu no sculo XX e suas pesquisas contribuiram muito para o conhecimento do desenvolvimento cognitivo de uma perspectiva interacionista.

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    E ento, o que achou dessa bela maneira de expressar a na-tureza no humano? Voc consegue perceber, com ela, o que significa dizer que o devir (devenir) a natureza no humano? Quer dizer, o que h de natural no humano a transformao, a mudana, o tornar-se diferente do que j foi.

    Isso sugere que cada um de ns muda ao longo da vida, que a espcie humana muda ao longo da histria e que o conceito de humano tambm muda. O pensar muda. Portanto, a humanida-de, aquilo com que os humanos se identificam, muda confor-me so criadas e inventadas novas condies de existncia.

    Pois , no devir humano a natureza se faz na humanidade e em cada um de ns. Ela faz com que o homem seja o que e possibilita que ele a transforme em outra natureza, a histria, num movimento permanente.

    da natureza, j bebi um copo dgua, emiti essas palavras e dei aquelas ri-sadas. Voc, alm de outras coisas que aconteceu, j pode ouvir falar em de-venir sem aquela estranheza do incio desse bate-papo. Verdade?

    n Ah!...Ento quer dizer que aquela ca-neta que lhe dei a pouco, no essa que est a, porque a que lhe dei sofreu o calor das suas mos, a tampinha es-tava do lado oposto, j escreveu e, con-seqentemente, est com menos tinta.

    n Muito bem! Demorou, mas chegou. Observo com muita satisfao que j ampliou a dialtica. Quero, aproveitan-do a ocasio, que voc saiba que o mo-vimento dialtico o que mais existe de concreto no progresso.

    n Obrigado, meu pai. Amanh vou pe-dir a minha me para comprar um di-cionrio novo para o senhor, pois o seu est bastante devenirzado.

    n Tambm j sei quem comeu a folha do devenir.

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    Se for assim, como que acontece esse devir? s ficar parado e esperar que ele aja sobre cada homem?

    Ser que voc pode participar desse devir de algum modo? Se puder, em que condies isso pode acontecer? No passe adiante sem pensar sobre isso. Anote suas

    concluses e anexe o documento ao seu memorial.

    Voc pensou? Ficou com dvidas?

    Siga em frente, acrescentando outros elementos que possam ajud-lo nessa investigao.

    2 O humano na natureza: cultura e prticas culturais

    Antes tentei chamar sua ateno para o fato de que a presen-a da natureza no homem , ao mesmo tempo, a presena do homem na natureza.

    Isso significa que, assim como o homem transforma a nature-za, ela transforma o homem.

    Agora quero chamar sua ateno para que pense nas ques-tes sobre por que e como natureza e homem se transformam mutuamente.

    Acontece que o devir humano no se d apenas na e pela na-tureza, mas, principalmente, na e pela cultura. Essa uma viso predominante entre filsofos, antroplogos e cientistas sociais. Voc pode pensar, at mesmo, que o homem tem uma nature-za cultural. O homem se transforma no mundo que ele mesmo constri: mundo social, cultural, histrico: o mundo humano.

    Assim, parece evidente que, para pensar e investigar a nossa iden-tidade e o devir, preciso estudar a cultura. Sim, porque a cultura condio para algum se fazer, chamar-se e sentir-se humano.

    Mas o que significa cultura?

    Um conceito de cultura que pode ajud-lo na investigao o de que a cultura a presena do

    humano na natureza, isto , as transformaes que homens e mulheres produzem na natureza e em si

    mesmos ao construrem o mundo humano.

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    TEO que que isso significa?

    Primeiro, significa que cultura pode ser entendida num sen-tido bem amplo como o conjunto de prticas pelas quais os homens agem sobre e transformam o que est na natureza, tornando-se co-responsveis com a natureza pelo mundo e pela humanidade que constroem.

    Segundo, significa que cultura a forma de viver dos huma-nos em grupos sociais e, ao mesmo tempo, a forma de viver em grupos sociais especficos. Assim, no primeiro caso, voc pensa em cultura no singular, como aquilo que diferencia os homens de outros seres. J no segundo caso, voc pensa em culturas, no plural, como o que diferencia grupos sociais entre si. Mas, no pode deixar de notar que esses conceitos e dife-renciaes so criados pelos prprios homens que aprende-ram a pensar numa dada cultura!

    Assim, um terceiro significado o de que cultura o conjunto de conhecimentos, de valores, de crenas, de idias e de pr-ticas de um grupo social, ou de um povo, ou de uma poca.

    Com esses trs significados voc pode perceber que cada um de ns, homens e mulheres, tornamo-nos o que somos quando produzimos e adquirimos cultura; aprendemos e construmos nosso modo de viver socialmente. Por isso, o devir humano ao mesmo tempo devir natural e cultural. Tem a ver com transformaes biolgicas do nosso corpo como, por exemplo, as funes psquicas (pensar e significar, que se desenvolvem na espcie humana e em cada homem e mulher) que nos tornam capazes de criar, de conservar e de transformar nosso jeito de viver. E tem a ver, tambm, com as transformaes na forma de viver, que contribuem com a transformao das condies biolgicas (naturais) de existncia. Isso se d quando, por exemplo, inventamos m-quinas para trabalhar e pensar por ns.

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    O jeito de viver humano um jeito de viver sociocultural e envol-ve trs elementos muito importantes que ajudam a padronizar o comportamento de cada um em um grupo social: a linguagem, o trabalho e os valores, com os quais os homens produzem e transformam coisas e idias, decidem o que e o que no importante e organizam as relaes, criando regras para a vida social.

    Portanto, ao mesmo tempo que homens e mulheres produzem cultura, so produzidos por ela como humano. Isso acontece pelas prticas de linguagem, de trabalho e de valorao, com as quais so criadas regras que orientam as relaes sociais. Assim, homens e mulheres constroem o mundo humano e fa-zem-se presentes na natureza.

    A condio de viver, de pensar e de organizar a vida coletiva (vida social), como voc pode perceber, o que movimenta o processo de autocriao humana, de produo da humani-dade e da cultura.

    Como, ento, voc responderia a seguinte questo: somos humanos porque pensamos ou pensamos

    porque somos humanos? E o que voc pensa sobre isso tem a ver com o que j sabe, com o que no sabe ou com o que os outros sabem sobre voc? No deixe de anotar

    as respostas e dvidas para retomar mais tarde!

    3 Cultura e culturas

    Voc se lembra que antes eu havia escrito que com o conceito de cultura o homem se diferencia de outros seres e os grupos humanos se diferenciam entre si? Nesse sentido, voc pode pensar em cultura e em culturas, no ? E pode falar de hu-mano e humanos tambm, no ?

    Voc diria que humanos de grupos sociais diferentes so hu-manos diferentes?

    E diria, amplamente, que modos diferentes de organizao de grupos sociais (famlia, comunidade, categorias profissionais, povos, etc.) podem tornar as pessoas desses grupos diferen-tes entre si, porque cultivam costumes e padres de compor-tamento prprios de cada grupo.

    Cultura o forma de viver dos humanos em geral e, ao mesmo tempo, o jeito de viver de grupos sociais especficos. Assim, falamos em cultura no singular, como aquilo que diferencia os homens de tudo o mais que existe no mundo. Culturas, no plural, o que diferencia os homens entre si.

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    Voc concorda com o que foi dito acima? Se existe uma pluralidade de comportamentos e prticas sociais, isto , se existem modos diferentes de organizar e de viver a vida social, podemos dizer que existem diferentes culturas? Se existem diferentes culturas, como conseguimos conviver com elas? Escreva uma carta a algum de quem gosta expressando sua opinio sobre esse problema. Conte o que voc pensa sobre a questo e pergunte qual a opinio dela.

    No so questes fceis, no ? Ento introduzirei mais dois con-ceitos na sua investigao para ver se eles ajudam a pensar. So eles: etnocentrismo e diversidade cultural.

    Se voc pensar que a cultura serve como uma lente para ver e pensar, e que s consegue enxergar o mundo pela lente que tem, a tendncia de que voc supervalorize sua forma de ver. Ao fazer isso, possvel que desvalorize outras possibili-dades de enxergar o mundo, fixando sua viso no centro de todas, como sendo a melhor, a correta, a verdadeira, a real. A nica possvel.

    Um exemplo bem explcito sobre isso o seguinte: se algum est acostumado a olhar a rua pelo buraco da fechadura, a rua ganha um formato e uma extenso especfica: da fechadura. Se a pessoa puder olhar da janela, ento a rua ganhar outro formato e extenso. E se puder ainda sair de casa e andar, ver que a rua fica mais diferente. Ento, se a pessoa ficar olhando a rua pelo buraco da fechadura, jamais poder saber que a rua pode ser diferente e achar muito estranho que ou-tro que esteja na rua fale dela de outra maneira. Dir que um louco. Um ignorante. Uma pessoa inculta, s porque enxerga a rua de forma diferente.

    Metfora uma forma de comunicao indireta que utiliza uma histria ou uma figura de linguagem e implica uma comparao.

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    A essa fixao da uma cultura no centro de todas as culturas, voc pode chamar de etnocentrismo.

    O etnocentrismo responsvel por muitos dos conflitos so-ciais (entre etnias, gneros, religies, geraes, grupos reli-giosos, etc.). Uma postura etnocntrica tambm responsvel por preconceitos contra minorias, contra outras culturas, pre-conceito contra a diferena, preconceito em relao ao outro.

    Voc j pensou sobre isso? Sobre sua postura em relao queles que tm um jeito de viver

    diferente do seu? Como voc se relaciona com os adolescentes ou com as crianas da escola em

    que trabalha? Voc j tentou se pr no lugar deles para tentar entender como eles pensam e vem o mundo? Procure fazer isso observando suas prticas e conversando com eles sobre a escola ou sobre a vida.

    Registre por escrito a conversa e as observaes para no perd-las. Voc pode precisar delas depois.

    Pois , as roupas, os enfeites, as tatuagens, o jeito de falar, as brincadeiras e muitas outras coisas que voc faz e usa, ou fazia e usava, so diferentes do que as crianas e os adoles-centes que freqentam a escola fazem.

    Assim, se voc acredita que seu jeito de vestir, de enfeitar, de pensar e de viver o melhor, vai achar que precisa ensinar os outros a se comportarem como voc. Na escola, onde, em ge-ral, trabalha-se para ensinar um comportamento padro, que envolve conhecimentos, valores, disciplina, modo de pensar, entre outras formas, as diferenas de comportamento ficam bem marcadas e geralmente no so bem-vindas. Na escola, muitas vezes, acaba-se obrigando os mais jovens a pensarem e fazerem o que melhor para os adultos, mas que no , necessariamente, para eles. Voc tem a um exemplo do et-nocentrismo.

    Um outro exemplo de etnocentrismo, mais abrangente, quando uma nao ou um grupo de naes quer fazer com que os outras tenham a mesma viso de mundo, o mesmo modo de viver, mostrando o seu imperialismo.

    Imperialismo a poltica de expanso e domnio territorial e/ou econmico de uma nao sobre outra.

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    Alis, sobre etnocentrismo e diversidade cultural h uma polmica entre tericos no Brasil: afinal, a identidade do povo brasileiro uma mistura das culturas dos ndios, dos negros e dos europeus ou no h uma identidade nica, mas diversas identidades? Observe a sua comunidade, sua escola, sua cidade, as novelas na televiso, etc. O que voc acha sobre isso, com base no que vem pensando neste mdulo?

    Bem, se o etnocentrismo a supervalorizao de uma cultura e a iluso de que ela a nica correta, ento porque existe mais de uma cultura. No s existe mais de uma como as cul-turas so diferentes: s vezes parecidas, s vezes antagnicas (contrrias). No so a mesma. Com isso, voc pode pensar na idia de diversidade cultural, que diz respeito s diversas culturas especficas de grupos sociais determinados que se diferenciam na construo da humanidade.

    Veja mais um exemplo para que possa perceber bem o con-ceito de diversidade cultural.

    Alguma vez voc j foi a uma floresta nativa? Como se sentiu? Eu j fui e me senti perdido. Sinceramente, fiquei com medo de adentrar muito para no correr o risco de me perder. Afinal, no conhecia nada ali. Ao contrrio, nas cidades, em qualquer cidade, no me preocupo se posso ou no me perder. At te-nho medo da violncia, assalto, etc., mas no de me perder. E algum que tenha vivido a maior parte da sua vida numa floresta, ser que sente a mesma coisa que sinto? A floresta tem um sentido para um ndio, por exemplo, que tenha aprendido a viver ali. As rvores, os cips, os cheiros, os rastros constituem um cdigo, um sistema de sig-nos, uma linguagem que o ndio compreende do seu jeito. Essa a sua cultura. Ele aprendeu e construiu esses significados. Talvez, ao contrrio, na cidade, os sinais de trnsito, as ruas, os veculos, essa linguagem que eu

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    compreendo lhe causem um outro sentimento. Enfim, diante de uma mesma situao, o ndio e eu percebemos coisas dife-rentes e nos comportamos de formas diferentes. Eis a diversi-dade e a diferena entre ns.

    Isso pode ajudar a pensar, ento, que culturas diferentes tm lgi-cas diferentes, isto , grupos sociais diferentes ordenam e organi-zam o mundo de maneiras diferentes, ao contrrio da viso etno-cntrica pela qual se pode pensar que uma outra cultura, por ser diferente, no tem lgica, no tem ordem, irracional, absurda.

    Agora, que importncia pode ter para voc saber que existe uma pluralidade de culturas? Ora, voc j deve ter percebido que diferentes culturas se encontram, convivem umas com as outras, relacionam-se, entram em conflito, diferenciam-se. Na medida em que isso acontece, preciso saber lidar com a di-versidade sem querer necessariamente fazer com que a sua cultura ou uma suposta cultura universal se coloque sobre todas as outras. Pense bem nos exemplos anteriores.

    A escola, que espao da diversidade, pois rene homens e mulheres; crianas e adultos; negros e brancos; alunos, pro-fessores e funcionrios; tem o papel de valorizar e respeitar a(s) cultura(s) com e pela(s) qual(is) diferentes pessoas e gru-pos sociais se fazem, chamam-se e sentem-se humanos.

    Porm, antes de pensar na escola, pense na educao de um modo geral.

    4 O humano no humano: cultura e educao

    As culturas se transformam. Transformam-se em ritmos dife-rentes umas em relao a outras, conforme o contato mais ou menos freqente entre elas e conforme as novidades (inova-es) vo sendo produzidas no devir cultural.

    As culturas se transformam tambm pela recepo que as no-vas geraes fazem daquelas prticas sociais que lhe ensinam as geraes mais velhas.

    Um exemplo: durante muito tempo acreditou-se na vocao feminina para cuidar do lar e da educao dos filhos e na vo-cao masculina para trabalhar fora de casa e participar da vida pblica. Quanto tempo levou para que essas crenas fos-sem derrubadas e mulheres e homens pudessem assumir ou-tros lugares sociais? No difcil para voc pensar, ento, que

    Essa uma questo bem importante, voc no acha? Que cultura essa na qual podemos perceber as diferenas entre culturas particulares? E por que as diferentes culturas se encontram nela?

    No nos iludamos, hein! Cultura um conceito para significar as prticas que constituem o jeito de viver e de pensar das pessoas e de grupos sociais. J vimos isso. A cultura muda, portanto, quando as prticas sociais mudam.

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    TEficando o papel das mulheres restrito ao ambiente domstico,

    ela estaria excluda de outras atividades, que s os homens podiam fazer.

    Esse um exemplo de prtica social de restrio participa-o de pessoas ou grupos sociais na vida pblica. No caso, temos o exemplo da restrio da participao das mulheres na vida pblica, que aos poucos foi sendo desconstruda e reconstruda.

    Para que essa transformao (desconstruo e reconstru-o) da cultura acontea, as pessoas tm de ter um mnimo de participao nas prticas sociais. Para participar, preci-sam poder e saber agir, alm de saber o que esperar (pre-ver) como ao do outro. Isso seria quase impossvel se as pessoas no conhecessem as regras, as normas de conv-vio, os smbolos, a lngua, as relaes de poder, enfim, os padres de comportamento social.

    No difcil perceber a situao das crianas quando chegam escola, no ? Procure observar ou lembrar de alguma situao de aluno ou aluna recm chegado na escola que possa exemplificar as dificuldades que algum sente quando chega em um ambiente social novo para ela. Procure ver ou lembrar como essa pessoa foi recebida na escola e como ela foi se inserindo na vida escolar.

    No interior da cultura, portanto, homens e mulheres recebem, aprendem, reproduzem, transmitem, transformam e criam o mundo e a humanidade por meio das prticas socioculturais. Com isso voc j deve ter entendido que homens e mulheres se educam e so educados nessas prticas, quando partici-pam de um mundo humano.

    Assim, a educao acontece em todos os lugares em que as pes-soas esto se relacionando umas com as outras: na famlia, no trabalho, no templo, no quintal, no mato. Em qualquer ambiente desses, algum educa algum com ou sem inteno de educar.

    O processo pelo qual homens e mulheres entram em uma cul-tura e aprendem a ser e a viver denominado endoculturao.

    A educao como endoculturao a forma pela qual as pessoas

    Participar sob dois sentidos: fazemos parte desse mundo e o assimilamos por um lado e, por outro, agimos nele, adaptando-o a ns.

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    aprendem a conviver socialmente, compartilhando, disputando e negociando valores, crenas, saberes, normas e significados. , ao mesmo tempo, um acontecimento pessoal (educo-me com os outros) e social (sou educado pelos outros). E , sobretudo, o modo como o humano se faz presente no prprio humano. o modo como o humano transforma o humano.

    Voc deve estar pensando que, sendo a educao uma forma de transmisso cultural entre os indivdu-

    os, ento a cultura no se transforma. Ser? Qual o seu testemunho sobre isso? E o de seus colegas de trabalho? O seu modo de pensar e de viver o mesmo dos seus pais, por exemplo? Pense na sua histria de vida e procure saber da histria de mais um ou dois colegas. Lembre-se de

    que escrever tudo muito importante.

    Se voc notou que a educao um acontecimento pessoal, precisa notar que homens e mulheres recebem o transmitido socialmente de forma pessoal. As pessoas ou grupos sociais (novas geraes ou novas profisses, punks, jogadores de fu-tebol, por exemplo), com seu jeito prprio de receber e de se relacionar com o que recebem, com o que gostam ou desgos-tam, com o que valorizam ou desvalorizam, vo reinventan-do a(s) cultura(s). Portanto, pela educao que a cultura e a humanidade so transmitidas, conservadas e transformadas. Educao tem tudo a ver com devir humano.

    E onde entra a escola nisso?

    5 Escola, cultura e cidadania

    Desde o nascimento as pessoas aprendem a viver em uma cultura que as geraes anteriores criaram. Essa transmisso cultural a presena do humano no humano. A educao , em sentido bem amplo, o local onde homens e mulheres se fazem, chamam-se e sentem-se humanos e educadores na vida social.

    Voc deve estar se perguntando o que a escola tem a ver com isso, no ?

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    TEAcontece que no movimento de transformao da cultura

    (criao de novos significados, de novos modos de trabalhar e de novas regras de convivncia) a vida social transforma-da, a ponto de as pessoas precisarem se apropriar de saberes especficos para poderem participar das prticas sociais. Isso implica uma diviso do saber e do trabalho, bem como a ne-cessidade de novos saberes que possam dar conta de contro-lar a prpria vida social. Por exemplo, uns aprendem e sabem para criar, outros aprendem e sabem para imitar e repetir os outros.

    Muito embora essa diviso signifique bem uma situao de desigualdade social, ela est presente na cultura e a escola tem a ver com ela. A escola foi criada como instituio edu-cativa, para transmitir s novas geraes aqueles elementos culturais (saberes especficos) necessrios participao na vida sociocultural, conforme a diviso do trabalho, do poder e do saber.

    A necessidade de ensinar e de aprender saberes especfi-cos para poder participar da vida sociocultural fez com que a escola fosse vista como lugar em que se cuida e se ensina s crianas temas que no se aprende em casa nem na rua (saberes cientficos e tcnicos) e lugar em que se aprende (muitas vezes sem saber) de maneira diferente os mesmos temas que se aprende em casa e na rua, ou seja, o jeito humano de viver.

    A escola, mesmo sendo uma instituio criada especifica-mente para ensinar aquele mnimo de cultura necessrio convivncia das diferenas, , como qualquer outra institui-o social, um espao em que homens e mulheres produzem, transmitem e criam cultura. Logo, tambm um espao edu-cativo em sentido amplo: tem a extraordinria tarefa social de criar intencionalmente as condies educativas para que as pessoas possam receber, desconstruir e reconstruir o mundo humano j construdo.

    A escola, em sua tarefa social, educa tanto para a obedincia aos costumes (padres de comportamento) da comunidade e da sociedade, como pode educar para um posicionamento crtico e autnomo em relao a esses padres.

    LEITURAS

    SANTOS, Luiz Carlos. O que cultura. So Paulo: Brasiliense, 1983.BRANDAO, Carlos Rodrigues. O que educao. So Paulo: Brasiliense, 1981.ROCHA, Everardo. O que etnocentrismo. So Paulo: Brasiliense, 1984.DUARTE JR. Joo-Francisco. O que realidade. So Paulo: Brasiliense, 1994.

    FILMES

    Mississipi em chamas, de Alan ParkerBlade Runner, o caador de andrides, de Ridley ScotteO enigma de Kaspar Hauser, de Werner Herzog.Greystoke, A Lenda de Tarzan, de Hugh Hudson - BBCidade de Deus, de Fernando Meirelles - Brasil

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    Considerando o que voc pensou nesta unidade, procure descrever o ambiente em que voc trabalha

    e o trabalho que voc e seus colegas fazem, tentando perceber as condies (prticas socioculturais) que tm conseguido criar para que os alunos e vocs mesmos

    possam se fazer, se chamar e se sentir humanos.

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    Como se sente depois de ter lido e estudado a primeira unida-de? Foi trabalhosa? Fez pensar? Espero que sim!

    Se voc sentiu alguma dificuldade, procure investig-la mais a fundo: se foi por causa das palavras estranhas, cujos signifi-cados voc no conhecia ou se foi por causa da forma como o texto est escrito. E, se no for por isso, pode ser ainda que a escrita esteja mostrando um mundo diferente do que voc est acostumado. So possibilidades de entender a possvel dificuldade que voc tenha sentido!

    Espera a! Para que mesmo voc est lendo este mdulo? Para compreender o que est escrito? Para saber o que o eu, como autor, sei e penso sobre o assunto? Ou o texto pretexto para voc se perguntar, pensar e buscar respostas sobre o que acontece no mundo e na escola?

    As trs alternativas ao mesmo tempo? Como assim?

    Ah, sim! Voc recebe do seu jeito aquilo que tento comuni-car. Ento, na leitura voc precisa saber ler e interpretar a es-crita. isso? E eu escrevo tendo de saber escrever e expressar, pela escrita, o que penso e sei sobre o assunto de tal maneira que voc possa ler e interpretar, no isso? A escrita serve ao mesmo tempo para que eu expresse meu pensamento, para que eu e voc possamos falar sobre as mesmas coisas, sobre o mesmo mundo e para que voc possa significar as suas vi-vncias com base na leitura que faz, ao mesmo tempo em que pode significar a leitura com base nas vivncias. Buscamos nos comunicar. E, no entanto, nem nos conhecemos pessoal-mente. Como isso possvel?

    Eis o problema a ser investigado nesta unidade: como a lin-guagem e as prticas simblicas influenciam no tornar-se hu-mano?

    Na unidade anterior, voc viu que uma das prticas culturais pelas quais o humano se constri no mundo a prtica sim-blica ou prtica da linguagem. Aqui voc ver como essas prticas de linguagem, a simbolizao e a comunicao, se relacionam entre si e com o devir humano.

    Chamei sua ateno nos pargrafos anteriores de que a lin-guagem nos possibilita ter contato uns com os outros. uma das condies da vida sociocultural. Portanto, o humano um ser simblico, um ser que cria e usa smbolos com os quais e pelos quais significa o mundo e comunica aos outros, crian-do, ento, um ou diversos mundos simblicos.

    Lembre-se de que o modo como voc est recebendo o que est escrito neste mdulo sua maneira de transformar a sua cultura, a cultura escolar, a cultura humana. um modo de descontruir e reconstruir significados e valores. Tenha coragem! Fique firme na investigao!

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    TEQuando eu escrevo, crio um mundo simblico. Quando voc

    l, poder criar outro mundo.

    Contudo, nem sempre pessoas e grupos sociais conseguem se entender com outros sobre o significado que constroem no mundo.

    Pois , como dizia Plato7, a linguagem pode ser, ao mesmo tempo, remdio e veneno. Sim, pois se os significados so construdos na e pela linguagem, homens e mulheres podem muito bem se enganar e ser enganados com ela.

    Com a linguagem as pessoas podem tanto esclarecer quanto obscurecer. Tanto podem emancipar-se, tornar-se autnomas nos seus saberes, nas suas decises e atitudes, como podem se iludir e ficar dependentes dos outros. Sobretudo quando os outros utilizam mecanismos de poder diversos para evitar que a linguagem multiplique os significados e faa o pensamento fluir. Ento, tanto as pessoas se entendem como se desentendem pela linguagem. Tanto podem dizer o que querem como podem ficar limitados a dizer o que os outros querem que digam.

    7Filsofo grego, viveu em Atenas no sculo V a.C.

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    Voc concorda que h situaes em que as pessoas parecem com papagaios que s conseguem repetir o

    que os outros dizem e no conseguem dizer nem pensar de forma diferente? Voc teria condies de descrever uma situao em que isso aconteceu? Isso j aconteceu com voc? Ento escreva: onde, quando, com quem e o

    que aconteceu.

    Com base nesse problema da comunicao e do poder na lin-guagem, nesta unidade, voc investigar o elemento simbli-co da cultura no devir sociocultural do homem.

    Voc saberia dizer, antes de entrarmos em maiores detalhes sobre a linguagem, se tudo o que acontece

    na escola tem o mesmo significado para todos que convivem nela e com ela? Procure perguntar a alguns alunos, professores e funcionrios da escola que

    significados eles atribuem ao recreio.

    1 Linguagem: conceito e elementos

    A linguagem elemento constituinte do humano, pois com ela o homem significa pensamentos, sentimentos, emoes, inte-resses, vontades e atos. Com ela, organiza o mundo humano, construindo sentido para o que faz e aprende, bem como para o que existe e acontece no mundo.

    A linguagem elemento fundamental da vida social. Com a linguagem homens e mulheres se expressam, representam as coisas, os outros, com os quais se comunicam. Sem ela a con-vivncia humana seria muito diferente do que .

    Ento a linguagem natural aos homens? Voc deve estar se perguntando. Ao que eu respondo: sim e no.

    Tal como foi dito na unidade anterior, o devir humano tem elementos naturais e culturais. Isso quer dizer que h fatores biolgicos que possibilitam significar, falar, escutar, escrever e ler, sentir, por exemplo. Nosso corpo, por assim dizer, possui certas condies para construir significados.

    Mas esse equipamento corporal ser suficiente para poder ex-pressar, representar, significar e comunicar? O fato de voc poder

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    TEescutar ou emitir algum som, ler ou escrever alguma palavra, ver,

    sentir ou fazer algo lhe garante que possa compreender o signifi-cado desse som, dessa palavra ou dessa realizao ou ao?

    Parece que no. Afinal, quando nasceu j existia uma linguagem sua disposio, que voc aprendeu para se relacionar melhor com os outros. Mesmo aqueles indivduos cujo corpo no apre-senta todas as condies para aprender a falar, por exemplo, con-seguem se relacionar por meio de outras formas de linguagem.

    Na escola em que voc trabalha existem alunos com necessidades educativas especiais? Procure saber o que acontece com eles e como eles tm conseguido conviver e sentir-se na escola.

    Pois , alm dessa capacidade biolgica, a linguagem um sistema simblico: um conjunto de signos combinados e usa-dos segundo regras. Esse sistema simblico criado cultural-mente. bvio, portanto, que voc precisa conhecer e saber usar as linguagens para poder expressar seus sentimentos, pensamentos e emoes, representar as coisas e aconteci-mentos do mundo e comunicar-se com os outros.

    Com a linguagem voc tem condies de simbolizar e com a simbolizao tem condies de significar e registrar aconte-cimentos que no podem ser repetidos, nem revividos. Que importncia tem o registro de acontecimentos? Ora, os outros s sabero desses acontecimentos e pensaro no seu signifi-cado se estiverem registrados.

    Como voc saberia alguma coisa sobre a chegada dos portu-gueses nessas terras, se Pero Vaz de Caminha no estivesse escrito cartas?

    A simbolizao uma espcie de traduo em palavras, desenhos, gestos, sons, objetos, etc. de outras formas que no so palavras, desenhos, gestos e sons, assim como a linguagem.

    Tente pensar numa situao do dia-a-dia, como o ptio da es-cola no horrio do recreio. Nesta situao, voc acabou de

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    investigar como as pessoas compreendem e significam esse evento. Quando voc fez esse questionamento, percebeu que s podia saber o significado para elas se as pessoas falassem ou descrevessem para voc em palavras, certo?

    Agora se coloque numa outra posio: ao invs de escutar e tomar a linguagem oral (as palavras faladas de alunos, de professores e de funcionrios) para saber o significado do ptio, procure obser-var voc mesmo como as pessoas se comportam nesse espao.

    Voc percebe como os alunos se movimentam, conversam, gri-tam, correm, brincam, riem, choram... E como os professores e os funcionrios em geral no ficam no ptio no momento do interva-lo, a no ser quando precisam cumprir alguma funo especfica?

    Observando e descrevendo o que percebe, voc criar signi-ficados para o ptio sem precisar perguntar a outras pessoas. Como isso possvel?

    Ao fazer isso, voc simboliza, transformando o comportamen-to dos alunos, dos professores e dos funcionrios em expres-so simblica. Usando as palavras, voc est significando, simbolizando. Ao simbolizar est usando as palavras para sig-nificar o que percebe e poder transmitir a outros. Talvez voc possa dizer: os alunos se sentem livres no ptio ou o ptio deixa as crianas enlouquecidas!, conforme a viso simbli-ca que voc j tenha construdo com experincias anteriores, ou seja, com seus pr-conceitos.

    Simbolizar transpor em signos e smbolos as idias, os acontecimentos, os pensamentos, os sentimentos, as coisas, as pessoas e outros signos e smbolos.

    Voc usar um repertrio de palavras que conhece para poder expressar o que percebeu ou sentiu ao observar os alunos no ptio, ou seja, vai falar ou escrever a algum conforme as con-dies lingusticas que tiver para isso. Talvez, quem escutar ou ler no entenda tal como voc pretendeu demonstrar. Isso um problema, porque os signos se tornam independentes dos sujeitos quando so expressos.

    No caso dessa escrita, por exemplo, as palavras que voc est lendo tm o significado da sua leitura e no o significado com o qual eu as escrevi.

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    Voc compreendeu o conceito de simbolizao e como construmos um mundo simblico? Ento, faa isso: observe o recreio. Depois procure conversar com algum (um colega de trabalho, talvez) tentando dizer em palavras o que voc observou e o que entendeu que acontece l. Preste ateno se seu colega concorda com voc. Preste ateno, sobretudo, em como voc pode ficar sabendo se o seu colega concorda ou no com voc. Qual o papel da linguagem e da simbolizao nessa relao entre vocs?

    Como produto da cultura e como prtica cultural, as lingua-gens podem ser transformadas pela apropriao e pelo uso (prtica) que as pessoas fazem quando as recebem, criando novos significados para os signos e novos signos para expres-sar pensamentos, sentimentos e acontecimentos.

    Mas, o que significa mesmo significado?

    Que pergunta estranha, no? Qual o significado do significa-do?

    O significado algo que o homem cria a partir dos signos e smbolos. o que as pessoas pensam que os acontecimentos, pessoas e palavra dizem a elas.

    Acontece que os signos so significantes, assim como os acontecimentos e os homens so significantes para os ho-mens. Eles possibilitam a construo de significados pelos quais os homens se situam no mundo. No caso do exemplo da floresta, na unidade anterior, tanto para o ndio como para mim as rvores so significantes. Porm, o significado da r-vore diferente para cada um de ns. Por isso, o mundo do ndio diferente do meu. Cada um tem um mundo simblico relativo cultura na qual foi educado.

    Ento, os signos so significantes porque possibilitam que voc construa, expresse e comunique significados com eles, para dizer aos outros o que sente, v, pensa, isto , para compartilhar, disputar e negociar o sentido do mundo com os outros.

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    Registrando em signos ou smbolos os acontecimentos do mundo, seus sentimentos, emoes

    e pensamentos podem tornar-se presentes para voc mesmo e para os outros. Isso permite lembrar e pensar o passado, viver e pensar o presente e imaginar o futuro. Com a linguagem, ento, instaura-se a historicidade no

    homem e com ela a humanizao da natureza.

    A linguagem tambm inseparvel da imaginao e da cria-o. Por isso, voc pode dizer tranquilamente que o homem um ser simblico e vive num mundo simblico, porque esse mundo criado por ele na linguagem. Ou seja, so homens e mulheres que criam, junto com os outros homens e mulheres, o sentido da vida e do mundo humanos. No h humano sem linguagem. O humano um signo para homens e mulheres.

    2 Linguagem e lngua

    Voc, talvez, possa se perguntar se linguagem e lngua so a mesma coisa, j que antes os exeplos eram sobre falar e escrever.

    Novamente vou responder: so e no so. Isso quer dizer

    Voc se expressa na sua lngua, certo? Mas o modo como voc fala o mesmo de outras pessoas que compartilham essa lngua com voc? O modo como falam na sua regio sempre foi o mesmo? Voc diria que a lngua que voc fala a mesma que seus antepassados falavam?

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    TEque a lngua um tipo de linguagem entre muitos. A lngua

    linguagem, mas no toda linguagem, muito embora seja, ao longo da histria, a linguagem mais importante para o ho-mem. Tradicionalmente, as linguagens so classificadas em dois grandes tipos: as no-verbais e as verbais.

    Entre as no-verbais voc en-contra a linguagem por sinais, por gestos, por desenhos, por cores, etc. J a linguagem verbal so as diversas lnguas faladas e escritas no mundo (portuguesa, guarani, espanhola, inglesa, por exemplo).

    As lnguas so convencionais, foram criadas por homens e mulheres em determinadas condies histricas e foram se constituindo em estrutura inde-pendente de quem as usa.

    Como estrutura, a lngua pode ser entendida como um cdigo, um sistema simblico, pelo qual os signos se movimentam, indo do falante ao ouvinte, do escritor ao leitor. Para isso, tem de haver um emissor (falante ou escritor) que codifica (simbo-liza) na lngua seu pensamento e emite um signo para um re-ceptor (ouvinte ou leitor) que o recebe e decodifica. O emissor e o receptor precisam compartilhar, saber usar a lngua na sua estrutura (ter competncia para isso, ter participao numa comunidade lingstica) e saber us-la de sua prpria maneira (performance atos de fala ou de linguagem que realiza), ou seja, ter um jeito de falar que comunique.

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    Codificar e decodificar signos supe que as lnguas sejam transparentes como cdigos. como se o que fosse dito na fala ou na escrita tivesse um significado preciso, que pode ser compreendido pelo simples fato de se saber usar a lngua. E se algum no consegue entender os significados veiculados na lngua porque no tem competncia, no sabe us-la. Esse um jeito de significar e entender a lngua.

    Contudo h um outro jeito. Quando voc aprendeu a falar, quando aprendeu a usar a lngua portuguesa, ela j tinha sua estrutura, porm s ao vivenciar suas experincias com ela que a lngua passou a existir, na prtica, para voc. Ento, as prticas socioculturais com a lngua dizem respeito, primei-ramente, a fala humana. O homem, ao falar, criou a lngua, como uma instituio sociocultural, para poder expressar al-guma coisa para os outros, independentemente das regras de combinaes e uso que a estruturam.

    Ao mesmo tempo em que criou a lngua, o homem passou a ser criado na linguagem, como indivduo, cuja existncia vai sendo marcada pelos limites da lngua que o expressa pela prpria boca e pela boca dos outros. Assim, voc, por exem-plo, vai se tornando aquilo que voc mesmo diz e o que os outros dizem e escrevem a seu respeito e para voc. Os limi-tes criados pela lngua permitem ou impedem voc de pensar sobre o que dizem que . Voc levado a pensar que s pode fazer o que dizem que podem fazer e ser como dizem que deve ser.

    Contudo, um mundo novo pode se abrir quando voc se per-guntar sobre o significado do que dito e escrito a seu res-peito.

    Quer dizer, um mundo novo se abre quando perceber que voc pode ser voc mesmo e no o que os outros dizem como deve ser.

    Tem muita gente que pensa que pessoas sem escolarizao tm dificuldades para aprender, para

    compreender conceitos e que elas tm preguia de pensar. Vocs concordam com isso? Vocs poderiam descrever um ou mais exemplos que mostrem se essa

    idia verdadeira ou se falsa?

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    TEPois , com e pela linguagem e lngua que voc se torna o

    que e pode mudar seu mundo e a si mesmo, mudando, ao mesmo tempo, a linguagem e a lngua, quando cria outras for-mas de pensar, de falar, de expressar e de comunicar-se.

    Na linguagem e com a linguagem que homens e mulheres se encontram com os outros e podem perceber e imaginar como os outros pensam e vivem, do que gostam ou no gos-tam, o que valorizam ou no valorizam, o que sabem e o que no sabem. Mas, por meio dela, tambm, que homens e mulheres constrem e aceitam muitos preconceitos.

    Com a linguagem, portanto, voc pode virar as costas ou pode tentar se colocar no lugar dos outros para conhec-los, o que sugere que haja comunicao.

    3 Linguagem e comunicao

    Como voc j viu, preciso compartilhar uma linguagem para que haja comunicao. Pode ser, por exemplo, a linguagem dos sinais ou a lngua portuguesa. E preciso, tambm, que se pratique essa linguagem. Com isso, voc tem condies para expressar e significar alguma coisa: sentimentos, pensa-mentos, saberes, conhecimentos, opinies.

    Entretanto, o problema que voc est investigando a suspei-ta de que a linguagem pode ser remdio ou veneno ao mes-mo tempo, lembra? Aquilo que algum expressa nem sempre fica assim to fcil de compreender na linguagem a tal ponto que o receptor possa entender o significado de um signo tal como expresso pelo emissor.

    Se o signo no transparente para o receptor, ento ele tem de dialogar com o emissor: fazer perguntas, conversar, etc. preciso saber se o que ele entendeu o que o emissor queria dizer. Quando isso acontece, emissor e receptor estabelecem um tipo de interao em que ambos trocam de papis. J no so mais emissor e receptor. So agora interlocutores.

    Mas o que preciso, ento, para que a comunicao acontea?

    preciso que a linguagem seja compartilhada, que os sig-nificados possam ser expressos e mais: preciso que eles possam ser compreendidos e que haja interao entre emis-sor e receptor de tal modo que sejam interlocutores. A comu-

    Preconceitos so significados construidos por outros, que aceitamos sem perguntar pela sua verdadeira validade para a vida social, ou melhor, eles j esto validados para ns quando nos preocupamos com seu significado, com voc pode perceber na reflexo anterior.

    Interlocutores so aqueles que esto envolvidos num processo de comunicao: emissor e o receptor; os dialogantes, enfim, so pessoas que interagem entre si na e pela linguagem, sabendo us-la.

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    nicao acontece com base nos signos, nas suas regras de combinao e uso, com os significados que os signos podem possibilitar e, o mais importante, com base no entendimento e cooperao entre os interlocutores na construo dos sig-nificados.

    Pense nos meios de comunicao com os quais nos relacionamos diariamente: TV, rdio ou jornal, para

    citar os mais conhecidos. Que tipo de cooperao ou in-terao h entre quem emite (apresentadores, locutores e escritores) e quem recebe (espectadores, ouvintes e lei-tores) os signos? Como voc se coloca diante de um no-ticirio de televiso, por exemplo? No v adiante sem

    pensar nisso!

    Com os meios de comunicao parece que no h interlocu-o, no ? Voc um mero espectador, ouvinte e leitor. S tem direito de entender aquilo que dito sem poder questionar, pedir esclarecimentos, ter mais informaes. Embora receba informaes, no est autorizado, socialmente, a question-las. No existe interlocuo com os meios de comunicao.

    Assista ao noticirio da televiso. Preste ateno em quem tem autoridade para participar da construo do

    significado dos acontecimentos. Quem so as pessoas que opinam e defendem algum significado sobre aconte-

    cimentos polticos, por exemplo?

    A comunicao exige aes cooperadas e interativas. Isso quer dizer que, para comunicar voc precisa estar junto com o seu interlocutor.

    Estarem juntos, contudo, no significa que tenham de che-gar a acordos e produzir significados coletivos. O caso que, estando junto, voc pode interagir, participar, questionar, ter uma compreenso mais consistente do que o outro diz e, com isso, fica melhor informado, podendo se posicionar melhor em relao ao que dito.

    Na comunicao, portanto, os interlocutores podem trocar diferentes perspectivas e colocarem-se no lugar um do ou-

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    TEtro. Nessa condio que se estabelece o dilogo entre eles.

    Assim, eu posso muito bem aprender que a floresta tem um significado para o ndio que no o mesmo para mim. E voc pode aprender e compreender que o que o recreio significa para os alunos no o mesmo que para os professores e fun-cionrios, por exemplo.

    4 Dilogo, comunicao e educao

    Dilogo a palavra compar-tilhada. Uma situao de in-terlocuo ou interao, pela linguagem, em que os partici-pantes tm direito fala e, claro, direito e dever escuta.

    E por que o dilogo funda-mental na comunicao?

    Ora, porque dialogando que voc busca compartilhar, dis-putar e negociar significados com os outros. Se no h di-logo, s resta repetir o que os outros dizem ou nem sequer escut-los. Sem dilogo, a vida social perderia o sentido, pois no seria possvel perceber as diferenas nem, muito menos, construir, negociar, disputar, compartilhar significados socioculturais.

    Mas, perceba: a histria da humanidade e dos grupos humanos a histria de transformaes, de mudanas, de devir, justamen-te na tentativa de criar condies para a vida social. Assim, se-gundo o mais conhecido educador brasileiro, Paulo Freire:

    O dilogo deve ser entendido como algo que faz parte da prpria natureza histrica dos se-res humanos (...). Isto , o dilogo uma esp-cie de postura necessria, na medida em que os seres humanos se transformam cada vez mais em seres criticamente comunicativos. O dilogo o momento em que os seres huma-nos se encontram para refletir sobre sua reali-dade tal como a fazem e re-fazem.8

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    O dilogo vivenciado na busca da comunicao pode lev-lo a assumir uma postura crtica, isto , uma postura de quem e quer ser autnomo no pensamento e na ao. Essa postura assumida no dilogo pode levar a duas situaes.

    A primeira a de produzir significados coletivos, acordos so-bre o mundo, sobre ns mesmos, sobre a vida. Aqui, a co-municao visa disputa e ao convencimento, sem que as posies dos interlocutores sejam necessariamente trocadas.

    A segunda, ao contrrio, abre para mltiplas possibilidades de significao com base no fluxo das diferentes falas (culturas e pensamentos) que se manifestam no mundo, ao contrrio da idia de uma fala (cultura e pensamento) nica e universal. Aqui a comunicao visa expresso para que os diferentes possam trocar posies.

    Procure pensar sobre as situaes de dilogo que voc participa na escola. Aquelas informais com os co-

    legas na hora do cafezinho e aquelas institucionais, como uma reunio de trabalho. Voc nota alguma diferena? Em que consiste essa diferena? Para que fique bem nti-do para voc, procure descrever em detalhes uma e outra

    situao, assim poder comparar melhor.

    Apesar de diferentes, em uma ou em outra situao, uma cul-tura do dilogo educa no dilogo, isto , pode possibilitar que os diferentes se encontrem para dizer uns aos outros o que pensam, como vivem e o que esperam da vida, alm de pos-sibilitar que, desse encontro com o outro, novos significados possam ser criados. Dialogar com um aluno sobre o que ele pensa sobre o recreio pode levar voc a ter uma outra viso do aluno, do recreio e de voc mesmo.

    Contudo, se voc quiser compartilhar a palavra, no apenas pela compreenso dos significados dela que vai conseguir. Voc precisa construir a situao para poder valid-los. No porque um significado compreendido que ele pode ser considerado vlido, isto , aceito.

    Voltando situao da sua relao com este texto, por exem-plo, pode ser que voc no tenha nenhuma dificuldade de

    9Paulo Freire. Medo e Ousadia. 2ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. p.122-3. (O cotidiano do professor).

    Pois em que consiste educar-se e educar seno em compreender e tomar posio frente ao sentido da fala e da ao (prticas e atitudes) do outro, para que possamos tambm falar e agir?

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    TEcompreenso. Mas isso no significa que o esteja aceitando

    para as suas prticas escolares. Mesmo sem compreender e aceitar, poder, contudo, significados e seu modo prprio modo de agir.

    Uma educao dialgica, assim, sempre uma educao crti-ca que consiste na possibilidade de os interlocutores trocarem de papis, exporem o sentido daquilo que fazem ou dizem quando querem ensinar e aprender, de tal maneira que quem escuta possa questionar, duvidar, expressar outros significa-dos at poder compreender e aceitar ou criar outras possibili-dades de significao.

    Ento, voc pode dizer que uma educao dialgica e crtica se afirma na base da interao, da interlocuo, do dilogo e da ar-gumentao, que compem um momento participativo de refle-xo e significao, mas nunca se afirma apenas na disciplina, isto , na repetio daquilo que as autoridades dizem: governantes, estudiosos, padres, pastores, professores entre muitos.

    5 Escola, comunicao e cidadania

    Na instituio escolar, como um espao cultural e social, mui-tas vezes supe-se que o significado das coisas, dos aconte-cimentos, das aes e mesmo dos conhecimentos podem ser transmitidos transparentemente pela linguagem. Basta um diz-lo que o outro o compreende! Mas, se Plato estiver cer-to, voc precisa pensar melhor sobre isso, no ? Sim, pois, como acabou de ver, a linguagem no to transparente as-sim como muitos supem.

    Que influncias isso pode ter no seu trabalho na escola?

    Retome a situao do recreio que voc observou para pensar nos efeitos do simblico no devir humano e na vida social na qual se educa. Tente entender melhor isso.

    Voc viu que os significados podem ser construdos a partir da observao de situaes novas e de significaes j cons-trudas em outras experincias (preconceitos). Assim, no difcil notar que, de alguma maneira, essa relao tambm se d na linguagem (no simblico).

    Homens e mulheres regram (disciplinam) o comportamento pelos significados. Com a significao modelam valores, po-deres e formas de incluso e de excluso nos grupos sociais.

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    A linguagem tem o poder de cristalizar idias, significados e comportamentos, como os exemplos abaixo:

    1) Os alunos se sentem livres no ptio;

    2) os alunos enlouquecem no ptio.

    So duas significaes diferentes sobre o comportamento dos alunos, relativas postura assumida por quem observa:

    1) quando busca compreender a situao;

    2) quando quer verificar na situao um significado j cons-trudo.

    Essas duas posies podem levar tomada de decises na escola, conforme aquilo que nela se tem entendido por educa-o, considerando que ela tenha um projeto poltico-pedag-gico e que a comunidade tenha participado na construo do significado da educao proposto nesse projeto.

    Por exemplo, com base na segunda significao, gente louca gente que no sabe e no pode conviver com outros, ento precisa ser disciplinada para que possa se comportar como pessoa normal. A disciplina na sala de aula e o controle das pessoas no recreio seriam prticas educativas com esse fim. Contudo, nesse exemplo, no se questiona se o comporta-mento exigido na sala de aula tem algo a ver com o compor-tamento do recreio, isto , se a disciplina exigida em sala no afeta o comportamento no recreio.

    Ser que afeta?

    Como instituio que educa, a escola se faz em um espao de participao, de interlocuo, de compartilhamento, de dispu-ta e de negociao de significados que implicam transforma-es na vida pessoal de cada um dos que a freqentam e na vida social de todos.

    Voc pode pensar, ento, que a linguagem tem uma dimen-so comunicacional que possibilita compreender o significa-do expresso por algum pelo dilogo, isto , no momento da interlocuo, quando dois ou mais indivduos (duas ou mais culturas) se relacionam por meio da linguagem.

    Nas relaes e pelas relaes que homens e mulheres estabe-lecem com a linguagem, com o mundo e com os outros na e pela linguagem que criam, mantm, transformam e recriam as instituies, os valores, as relaes, enfim, organizam a

    LEITURAS

    BORDANAVE, Juan E. Diaz. O que comunicao. So Paulo: Brasiliense, 1982.HOUAISS, Antnio. O que lngua. So Paulo: Brasiliense, 1990.

    FILMES

    Ilha das Flores, de Jorge FurtadoDomsticas O Filme, de Nando Olival e Fernando MeirellesCidade de Deus, de Fernando Meirelles

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    TEvida e o mundo dando a eles sentido e constituindo o modo

    de viver humano, por meio da cultura e identidade. Com a lin-guagem homens e mulheres se educam e so educados.

    Entreviste alguns professores e fun-cionrios da escola em que voc trabalha (pode

    ser uns 10) e pergunte qual o significado do seu tra-balho para a educao. Anote as respostas. Depois,

    analise e reflita sobre as respostas e compare com o significado que voc mesmo pensa sobre o que faz na escola. Voc ver que os significados variam. Voc per-cebe alguma coisa diferente sobre o seu trabalho que

    voc ainda no tinha se dado conta? Voc acha que com isso seu trabalho pode ficar diferente?

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    Espero que a unidade anterior tenha lhe ajudado a pensar o significado de mundo simblico e como o homem pode se tornar diferente pela linguagem. Espero, tambm, que voc possa ter entendido o que significa ser simblico: a condi-o humana de simbolizar, significar e comunicar com signos e smbolos, alm de ser, o humano, um signo.

    Agora, passemos ao terceiro problema que est envolvido na nossa investigao e reflexo sobre o devir

    humano e educador: qual a influncia do trabalho no tornar-se humano?

    Como o assunto trabalho atravessa vrios mdulos desse cur-so, vou levantar algumas questes rpidas sobre o trabalho como prtica cultural. Questes sobre as quais voc pode co-mear a pensar aqui e continuar pensando ao longo do curso e da vida.

    Voc deve lembrar que, na Unidade 1, relacionei trabalho com uma dimenso prtica do homem. Lembram? Trabalho como prtica de transformao da natureza.

    Voc concorda com isso? Voc pensa que trabalhar est muito mais relacionado com a ao, com a prtica e com o fazer do que com o pensamento e com as formas simblicas? E voc, j pensou o porqu disso? Isso parece ser assim por que, tra-balhando as formas materiais so transformadas, no?

    Em outras palavras, talvez voc pense que trabalho tem a ver com resultados materiais do que o homem faz. Por exemplo, a sardinha que nadava livre nos mares, agora sardinha en-latada. O petrleo que estava escondido no subsolo terres-tre, agora combustvel. As rvores da floresta que guiavam o ndio e me assustavam, agora viraram mveis de madeira. So inmeros os exemplos e todos eles esto ao alcance dos olhos e das mos, so tangveis.

    Mas no se engane sobre essas questes, pois com o trabalho o homem tambm transforma as foras materiais em foras simblicas: linguagens, valores, idias. O que se faz com os braos, tambm se faz com o pensamento. E vice-versa. Com a diferena de que com os braos o trabalho feito com fora fsica e com o pensamento se usa fora intelectual. Contudo, no difcil notar que voc pensa quando trabalha fisicamente

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    TEe, de alguma maneira, usa fora fsica no trabalho intelectual.

    Ento, mesmo que o seu trabalho aparentemente exija apenas fora fsica, h nele, tambm, foras simblicas e normativas. sobre isso que eu gostaria de convid-lo a investigar e refle-tir nesta unidade.

    Tente transformar a situao em um problema, partindo das seguintes perguntas: o que o trabalho pode ter a ver com o conceito que temos de humano e com a identidade? Ser que meu trabalho tem alguma coisa a ver com o que sou e penso que sou? Trabalhando estou educando? Se educo outros e me educo com o meu trabalho, como isso acontece?

    1 Trabalho: conceito

    Comece a responder as perguntas anteriores pensando no sig-nificado de trabalho, que o conceito central nesta unidade.

    Na unidade anterior, voc viu o que simbolizar e significar o mundo pela palavra e como, com isso, possvel tomar cons-cincia e/ou enganar-se no que se pensa sobre o mundo e sobre os outros.

    Viu tambm que os significados so criados por homens e mulheres, portanto, podem ser transformados, esquecidos e recriados. Nesse sentido, h uma pergunta ser feita: o que significa trabalho para voc?

    Antes de seguir a leitura, escreva o que voc pensa que o trabalho. Ao final da unidade, retome o que escreveu e faa uma crtica.

    A origem da palavra trabalho est no substantivo da lngua latina tripalium, que era usado para nomear um instrumento agrcola formado por trs paus pontiagudos, usado para bater cereais. H a hiptese de que tambm teria sido usado como instrumento de tortura. A esse substantivo liga-se o verbo tri-paliare, cujo significado torturar.

    Como voc pode notar, o significado etimolgico da palavra trabalho tem a ver com sacrifcio, com dor, com sofrimento. Foi com esse significado que a tradio do pensamento oci-dental comeou a pensar o trabalho.

    Etimologia o estudo da origem das palavras. Muitos pensadores buscam na etimologia elementos para entender melhor o significado corrente ou para mostrar como o significado foi transformado pelo movimento histrico.

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    Entre os antigos gregos, o trabalho era relacio-nado com a escravido. A escravido, na filoso-fia de Aristteles9, por exemplo, funda-se no pensamento de que h homens que, natural-mente, no podem ser considerados humanos pelo seu modo de viver, porque dependem do trabalho para sobrevi-vncia.

    Entre os romanos, o tra-balho seria uma espcie de castigo, uma punio para os derrotados nas guerras. Os romanos escravizavam os povos dominados pela fora de seus exrcitos.

    J entre os cristos, na Idade Mdia, o trabalho era associado dor, ao sofrimento e servido.

    Dos gregos ao final da Idade Mdia, o trabalho era smbolo de excluso social, ou, pelo menos, as pessoas que dependiam do trabalho no participavam da vida poltica.

    Como assim smbolo de excluso?

    Alguns trabalhavam para a sobrevivncia de todos, enquanto outros se dedicavam ao conhecimento, espiritualidade e ao governo. Nisso o verdadeiro homem se aproxima mais das coisas espirituais, enquanto aqueles que produzem apenas as condies materiais de sobrevivncia (para si e para os ou-tros) esto mais prximos da animalidade, segundo uma vi-so etnocntrica, claro. Ou seja, o trabalho era considerado coisa de bicho.

    que, na antiguidade, a verdadeira vida humana, a vida ide-al, a natureza humana, estava na vida contemplativa; na vida dedicada ao conhecimento e virtude moral. A vida contem-

    9Filsofo grego que viveu no sculo IV a.C.

    No Brasil, ainda hoje, temos notcias de que pessoas so escravizadas por outras, o que , por direito, considerado crime.

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    TEplativa aquela em que se pode dedicar exclusivamente ao

    pensamento e s coisas da alma e do esprito, para atingir a perfeio e o encontro com as foras superiores da natureza ou coisas divinas.

    Contudo, a partir do Renascimento (sculos XV e XVI, na Eu-ropa) e com a modernidade, o trabalho ganha um outro signi-ficado: ele passa a ser considerado como uma fora de cria-o, como modo de interveno humana na natureza, para transform-la.

    Segundo Hegel, filsofo alemo no incio do sculo XIX: foi com o trabalho que o ser humano desgrudou um pouco da natureza e pde, pela primeira vez, contrapor-se como sujeito ao mundo dos objetos naturais10. Quer dizer que, diferente-mente dos antigos e medievais, os modernos passam a ver a humanizao no trabalho e no mais apenas sofrimento e castigo.

    Esse significado d uma outra importncia ao trabalho. Ele j no mais smbolo de excluso, mas o modo como o ho-mem se afirma diante da natureza. Os homens j no buscam apenas contemplar a natureza, querem tambm agir sobre ela.

    Na modernidade, ento, que o trabalho valorizado como prtica cultural pela qual o homem deixa de se sentir subme-tido s foras da natureza, passando a se sentir dono do seu nariz. Isso significa que o homem ganha liberdade e faz a sua prpria histria pelo trabalho. Contudo, esse homem de que se fala apenas um conceito, uma significao, conforme o que j se estudou sobre cultura e linguagem.

    Considere o que pensa que o trabalho e o que significa trabalhar. Voc concordaria com Hegel de que pelo trabalho os homens se tornam livres da natureza e produzem a sua histria com liberdade? E na relao entre os homens, possvel pensar o mesmo, de que as relaes de trabalho so livres?

    Independncia do homem em relao natureza um signifi-cado possvel para trabalho.

    Para mim, nesse momento, trabalho significar o modo como,

    10Citado por Konder, Leandro. O que dialtica? 22ed. So Paulo: Brasiliense, 1991. p. 24.

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    diferentemente de outros animais, o homem pode projetar e produzir os meios para sobreviver e viver melhor. Ou seja, tra-balho ser a palavra que utilizarei para significar a atividade humana ou a prtica cultural pela qual homens e mulheres transformam a realidade e constroem material e simbolica-mente o mundo: cultivando alimentos, criando instrumentos, construindo moradia, sabedoria, normas de comportamento e de relao, etc. Com essas prticas homens e mulheres edu-cam e se posicionam no mundo como humanos.

    Trabalho, bem entendido, no o mesmo que emprego. Ter emprego significa ocupar um cargo

    ou um posto de trabalho socialmente reconhecido. Contudo, mesmo que no tenhamos um emprego no deixamos de trabalhar, isto , de produzir as condies materiais e intelectuais de vida, ainda que essas

    condies sejam apenas individuais ou familiares.

    Voc pode pensar, assim, que toda prtica cultural trabalho, na medida em que com elas o homem age em um mundo j construdo, para transform-lo em outro mundo com a espe-rana de uma vida social melhor.

    2 Trabalho, tcnica e tecnologia

    O mundo, hoje, no mais o que j foi alguma vez. Nem o mundo natural, nem o mundo humano. Isso porque, alm das foras da natureza, a fora do trabalho humano atuou para transform-lo. Mas, isso no se deu s por meio da fora fsi-ca, a fora intelectual tambm contribuiu. O prprio homem desenvolveu instrumentos e formas de trabalhar e produzir as condies para sobreviver e viver melhor, de tal maneira que mudou as prprias condies de trabalho.

    O que quero dizer com isso?

    Afirmo assim que o mundo humano o mundo da cultura, produto da simbolizao, do regramento e da produo de homens e mulheres.

    Com a simbolizao homens e mulheres podem registrar e construir significados. Com isso produzem conhecimentos.

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    TECom o regramento organizam, hierarquizam e controlam (dis-

    ciplinam) as relaes sociais.

    Com o trabalho agem sobre a natureza e sobre si mesmos. Com isso produzem material e simbolicamente as condies de vida de homens e mulheres.

    Assim, podem conhecer, significar, planejar, organizar e fazer (produzir) o que necessrio para a sobrevivncia e para o bem-estar de todos.

    O homem precisa de conhecimento para produzir e usar o que tem disponvel para vida. Meios de comunicao a distncia como a TV, o telefone, o celular, o rdio, a internet; equipa-mentos hospitalares que permitem fazer exames com preci-so; equipamentos domsticos como geladeira, fogo, micro-ondas, etc, s existem porque homens e mulheres aprendem a produzir e usar o conhecimento e, com isso, aprendem a produzir equipamentos que ajudam a produzir outros conhe-cimentos e novos equipamentos, para us-los com outros e novos fins.

    A criao e produo desses equipamentos acontecem gra-as tcnica e tecnologia. Mas o que significam a tcnica e a tecnologia?

    Tcnica significa um tipo de conhecimento prtico que construdo para reproduzir o mundo material e sua forma simblica.

    Em palavras mais elaboradas, tcnica um tipo de conheci-mento necessrio para obter melhores resultados no trabalho, na educao, na economia, na poltica, enfim em qualquer tipo de atividade, sobretudo teis produo das condies da vida coletiva. O