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MEGADIVERSIDADE | Volume 1 | Nº 1 | Julho 2005 I NTRODUÇÃO O Brasil, que em estimativas conservadoras contém mais de 13% da biota mundial (Lewinsohn & Prado [citações sem data referem-se à artigos desta edição especial]), inspirou o conceito de um país megadiverso (Mittermeier et al., 1997). De fato, com cinco importan- tes biomas e o maior sistema fluvial do mundo, o Bra- sil, indiscutivelmente, tem a mais vasta biota continen- tal da Terra. Embora a biodiversidade brasileira seja impressionante, os artigos nessa edição especial indi- cam que ela é, sem dúvida, mais notável do que nós sabemos atualmente. A bacia amazônica, responsável pela maior biodiversidade terrestre e de água doce do Brasil, representa cerca de 40% das florestas tropicais remanescentes no mundo (Peres). O Brasil também con- tém dois hotspots de biodiversidade (o Cerrado e a Mata Atlântica) e a maior área úmida tropical do mundo (o Pantanal). Ele é o quinto maior país do mundo e o maior entre os países tropicais, com um território de 8.514.877km² e jurisdição sobre mais de 3,5 milhões de km² de águas costeiras. No Brasil vivem mais de 183 milhões de pessoas e, atualmente, é a décima primeira maior economia do mundo. Nesta edição especial sobre a conservação brasilei- ra, preparada para marcar o XIX Encontro da Society for Conservation Biology em Brasília, vários especialis- tas – a maioria residente no Brasil – destacam temas que refletem sobre o que será ou não conservado nas próximas décadas e discutem os desafios e as possibili- Conservação brasileira: desafios e oportunidades dades de conservação no país. Talvez, a melhor notícia, descrita por Mittermeier e colaboradores, é que uma forte, competente e crescente base científica existe agora no Brasil, ultrapassando, efetivamente, a de to- dos os outros países tropicais. A capacidade do Brasil de pesquisar uma grande variedade de temas que tra- tam da conservação é substancial, e os brasileiros são também fortes participantes da ciência da conservação em nível internacional. Essa capacidade surgiu, princi- palmente, nas duas últimas décadas, a partir de inicia- tivas bastante incipientes, que demonstravam o valor de se investir em programas acadêmicos e nos treina- mentos em países em desenvolvimento. A pior notícia, por outro lado, é a quantidade dos desafios que res- tam, especialmente, em face da antiga busca brasileira pela integração nacional, crescimento econômico e re- dução da pobreza. Mesmo que os artigos focalizem o Brasil, eles desta- cam muitos desafios e oportunidades importantes que estão associados com a conservação nos trópicos. Os presidentes do Brasil e do Peru fecharam um acor- do, em dezembro de 2004, para a construção de uma rodovia transoceânica, da costa Atlântica brasileira até os portos do Pacífico, no Peru. Ela irá atravessar a Ama- zônia e os Andes, e cortar, no Peru, algumas das flores- tas tropicais de maior diversidade biológica. Conside- rando essa intervenção, a estrada mudará para sempre a vida de milhões de pessoas das comunidades próxi- mas à rota proposta. Os interesses de grupos indígenas não contactados, de prostitutas, de madeireiros, de KATRINA BRANDON 1 * GUSTAVO A. B. DA FONSECA 1, 2 ANTHONY B. RYLANDS 1, 2 JOSÉ MARIA C. DA SILVA 3 1 Center for Applied Biodiversity Science, Conservation International, 1919 M Street NW, Washington, D.C., 20036, U.S.A. 2 Departamento de Zoologia, Instituto de Ciências Biológicas, Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, 31270-901, Minas Gerais, Brasil. 3 Conservação Internacional, Avenida Nazaré, 541/310, Belém, 66035-170, Pará, Brasil. * e-mail: [email protected]

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MEGADIVERSIDADE | Volume 1 | Nº 1 | Julho 2005

INTRODUÇÃO

O Brasil, que em estimativas conservadoras contém maisde 13% da biota mundial (Lewinsohn & Prado [citaçõessem data referem-se à artigos desta edição especial]),inspirou o conceito de um país megadiverso(Mittermeier et al., 1997). De fato, com cinco importan-tes biomas e o maior sistema fluvial do mundo, o Bra-sil, indiscutivelmente, tem a mais vasta biota continen-tal da Terra. Embora a biodiversidade brasileira sejaimpressionante, os artigos nessa edição especial indi-cam que ela é, sem dúvida, mais notável do que nóssabemos atualmente. A bacia amazônica, responsávelpela maior biodiversidade terrestre e de água doce doBrasil, representa cerca de 40% das florestas tropicaisremanescentes no mundo (Peres). O Brasil também con-tém dois hotspots de biodiversidade (o Cerrado e a MataAtlântica) e a maior área úmida tropical do mundo(o Pantanal). Ele é o quinto maior país do mundo e omaior entre os países tropicais, com um território de8.514.877km² e jurisdição sobre mais de 3,5 milhõesde km² de águas costeiras. No Brasil vivem mais de 183milhões de pessoas e, atualmente, é a décima primeiramaior economia do mundo.

Nesta edição especial sobre a conservação brasilei-ra, preparada para marcar o XIX Encontro da Societyfor Conservation Biology em Brasília, vários especialis-tas – a maioria residente no Brasil – destacam temasque refletem sobre o que será ou não conservado naspróximas décadas e discutem os desafios e as possibili-

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Conservação brasileira: desafios e oportunidades

dades de conservação no país. Talvez, a melhor notícia,descrita por Mittermeier e colaboradores, é que umaforte, competente e crescente base científica existeagora no Brasil, ultrapassando, efetivamente, a de to-dos os outros países tropicais. A capacidade do Brasilde pesquisar uma grande variedade de temas que tra-tam da conservação é substancial, e os brasileiros sãotambém fortes participantes da ciência da conservaçãoem nível internacional. Essa capacidade surgiu, princi-palmente, nas duas últimas décadas, a partir de inicia-tivas bastante incipientes, que demonstravam o valorde se investir em programas acadêmicos e nos treina-mentos em países em desenvolvimento. A pior notícia,por outro lado, é a quantidade dos desafios que res-tam, especialmente, em face da antiga busca brasileirapela integração nacional, crescimento econômico e re-dução da pobreza.

Mesmo que os artigos focalizem o Brasil, eles desta-cam muitos desafios e oportunidades importantes queestão associados com a conservação nos trópicos.Os presidentes do Brasil e do Peru fecharam um acor-do, em dezembro de 2004, para a construção de umarodovia transoceânica, da costa Atlântica brasileira atéos portos do Pacífico, no Peru. Ela irá atravessar a Ama-zônia e os Andes, e cortar, no Peru, algumas das flores-tas tropicais de maior diversidade biológica. Conside-rando essa intervenção, a estrada mudará para semprea vida de milhões de pessoas das comunidades próxi-mas à rota proposta. Os interesses de grupos indígenasnão contactados, de prostitutas, de madeireiros, de

KATRINA BRANDON1*GUSTAVO A. B. DA FONSECA1, 2

ANTHONY B. RYLANDS1, 2

JOSÉ MARIA C. DA SILVA3

1 Center for Applied Biodiversity Science, Conservation International, 1919 M Street NW, Washington, D.C., 20036, U.S.A.2 Departamento de Zoologia, Instituto de Ciências Biológicas, Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, 31270-901, Minas

Gerais, Brasil.3 Conservação Internacional, Avenida Nazaré, 541/310, Belém, 66035-170, Pará, Brasil.

* e-mail: [email protected]

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pequenos fazendeiros, de criadores de gado, de produ-tores de soja convergirão para um caminho de prová-vel insustentabilidade. A estrada também trará impac-tos globais – os preços da carne, da ração para gado edo tofu cairão, e as grandes queimadas da FlorestaAmazônica, provavelmente, levarão o Brasil além da suaatual oitava posição no ranking mundial dos maioresemissores de gás de efeito estufa. O provável impactoda estrada na emissão de gás carbônico é particular-mente preocupante, levando em consideração dadosdo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recur-sos Naturais Renováveis (Ibama), que mostram um au-mento de 36% nas queimadas florestais, comparadascom os níveis 2003, no estado do Mato Grosso (Ami-gos da Terra – Amazônia Brasileira, 2005).

CONSERVAÇÃO NO BRASIL – O QUÊ, ONDE E COMO

Nesta edição especial, ensaios introdutórios são segui-dos por artigos sobre a conservação no Brasil: o quê,onde e como fazê-lo. Essa estrutura organizacional de-monstra nossa visão de que “o quê” e “onde” são oscomponentes da conservação que mais claramente si-tuam-se no âmbito das ciências biológicas e ecológi-cas, enquanto que o “como” é norteado em grande partepelas dimensões humanas e pelas ciências sociais. Osprimeiros três artigos oferecem uma breve visão geralda história, do contexto e do estado atual da conserva-ção no país. Mittermeier e colaboradores destacammuitos dos projetos e pessoas influentes que têm afe-tado significativamente a conservação no Brasil, e dis-cute as características distintas dos esforços brasilei-ros para a conservação. O passado e o presente dasáreas protegidas brasileiras são o tema dos dois arti-gos: Marina Silva, a atual ministra do Meio Ambientedo Brasil, apresenta uma perspectiva governamentalsobre as realizações do Governo Lula, no que diz res-peito à criação e consolidação das áreas protegidas, umatarefa que tem estado na linha de frente dos esforçosnacionais de conservação nas últimas duas décadas.Rylands & Brandon enfatizam a evolução do sistema deunidades de conservação.

Outros oito artigos tratam de temas diversos rela-cionados à conservação das espécies no Brasil. O pri-meiro posiciona a questão “Quantas espécies existemno Brasil?” (Lewinsohn & Prado). Logo depois, sete ar-tigos falam do estado do conhecimento, ameaças, status

de conservação e da avaliação do habitat das plantas(Giulietti e colaboradores), invertebrados terrestres(Lewinsohn e colaboradores), biodiversidade em águas

continentais (Agostinho e colaboradores), anfíbios(Silvano & Segalla), répteis (Rodrigues), aves (Marini &Garcia) e mamíferos (Costa e colaboradores). Tais arti-gos ressaltam a proeminência global da biodiversidadebrasileira, destacando, por exemplo, a extraordináriadiversidade de mamíferos (mais de 530 espécies iden-tificadas), de plantas (60 mil espécies) e de anfíbios (765espécies).

O Brasil tem cinco biomas principais (Figura 1), alémdas áreas marinha e costeira. Mas o país é mais conhe-cido internacionalmente pelas questões da Amazônia,discutidas nos artigos que tratam da biogeografia e dosmodelos de endemismo amazônico (Silva e outros au-tores), da dinâmica do desmatamento na Amazônia(Fearnside) e da necessidade de ampliar a escala dosesforços de conservação e aumentar o número de par-ques e reservas no bioma (Peres).

Os artigos subseqüentes enfocam os biomas ondeos impactos humanos têm sido maiores. A Mata Atlân-tica, apontada por Tabarelli e colaboradores, é umhotspot de floresta tropical com alto nível de endemis-mo, e muito fragmentada pela agricultura e pela pre-sença de centros urbanos, como o Rio de Janeiro e SãoPaulo. A Caatinga – um mosaico de arbustos espinho-sos e florestas secas sazonais (Leal e colaboradores) –tem relativamente, poucos endemismos, e ainda nãoatingiu altos níveis de degradação como do Cerrado eda Mata Atlântica.

O Cerrado, o outro hotspot brasileiro, é a savana maisrica em diversidade botânica do mundo e abriga mui-tas espécies de plantas, aves, peixes, répteis, anfíbios einsetos endêmicos (Klink & Machado). A planície doPantanal contém a mais rica avifauna das áreas úmidasdo mundo (Harris e colaboradores).

O Brasil tem 7.637km de litoral, que abrigam umaenorme flora e fauna litorânea. Com extensos estuá-rios, lagoas costeiras, e mangues, mais de 3.000km derecifes de coral e habitats bentônicos que atravessamambientes tropicais, subtropicais e temperados, o Bra-sil tem enfrentado desafios na conservação marinha queestão se tornando significativos (Amaral & Jablonski).O grupo final de artigos trata especificamente dos de-safios e oportunidades de conservação no Brasil, quenós brevemente resumimos nos parágrafos seguintes.

Primeiramente, apesar de um crescente nível de co-nhecimento sobre a biodiversidade brasileira, muitaslacunas de conhecimento precisam ainda ser enfoca-das para que a ciência tenha uma influência positivanas ações de conservação. Na prática, todos os artigosnas seções sobre espécies e biomas enfatizam os limi-tes das informações existentes sobre história natural,

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ecologia e habitats da maioria das espécies já identifi-cadas. Por exemplo, no Brasil, sete novas espécies deprimatas e 18 novas espécies de pássaros foram identi-ficadas nos últimos dez e 12 anos, respectivamente.Lewinsohn & Prado registram que podemos esperar umimpressionante número de espécies, pertencentes agrupos taxonômicos menos evidentes, a serem encon-tradas e identificadas nas próximas décadas, como re-sultado de pesquisas de campo.

A descrição de novos táxons é essencial, mas, alémdisso, informações adequadas sobre a distribuição geo-

gráfica da maioria das espécies continuam escassas.Agostinho e colaboradores discutem a necessidade deavaliar a biodiversidade das águas doces nas áreas pro-tegidas (amplamente estabelecidas por sua biodiversi-dade terrestre) e da realização de pesquisas sobre adiversidade e distribuição das espécies de água doce.O grau de conhecimento sobre táxons, habitats e biomasé heterogêneo. Peres fornece um excelente resumo deáreas prioritárias para realização de pesquisas na Ama-zônia. As ações de conservação podem ser melhor evi-denciadas pelo aumento de pesquisas que enfoquem

Brandon, Fonseca, Rylands & Silva | 9

FIGURA 1FIGURA 1FIGURA 1FIGURA 1FIGURA 1 – Principais biomas do Brasil, baseados nas ecorregiões terrestres definidas por Dinerstein (1995). Informaçõesadicionais da Digital Chart of the World (DCW).

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os invertebrados da Caatinga e do Pantanal, enquantoque uma melhor compreensão da distribuição e diver-sidade da vegetação ajudará a localizar as prioridadespara a conservação do Cerrado.

Uma nação megadiversa como o Brasil será sempreum território fértil para pesquisas sobre a biodiversi-dade, mas devido à urgência da necessidade de açõesde conservação, estudos estratégicos devem ser priori-zados e implementados o quanto antes. Um caminhoparticular é aumentar nossa compreensão acerca degrupos sobre os quais nosso conhecimento permanecefragmentado, porém crescente (p. ex., vertebrados evegetação). Essa estratégia pode facilitar o refinamen-to das prioridades para proteção do habitat. Por exem-plo, os resultados da recentemente finalizada Avalia-ção Global de Anfíbios (Global Amphibian Assessement– GAA) pode ser usado para ajudar a identificar áreas-chave de biodiversidade (KBA – Key Biodiversity Areas)(Eken et al., 2004; Stuart et al., 2004). Além disso, inves-timentos relativamente modestos podem tornar aces-síveis as informações existentes sobre grupos seletosde invertebrados, como as ordens Lepidoptera eOdonata, o que permitiria a realização de análises com-plementares àquelas realizadas utilizando-se dadossobre vertebrados. Também é provável que o tipo e aprofundidade dos estudos necessários em algumas áreasvariem substancialmente. Por exemplo, a Amazônia, aMata Atlântica e o Cerrado precisam de mais pesquisasorientadas para a biodiversidade e a biogeografia. Emcontraste, no Pantanal e na Caatinga precisamos en-tender melhor a dinâmica do ecossistema para instruiro manejo do local.

Existem pelo menos cinco importantes exercícios quepriorizaram áreas de acordo com a relevância biológicaem todos os biomas brasileiros e o ambiente marinho,mas a identificação de prioridades baseada na intensi-dade das ameaças e na insubstuibilidade das áreas per-manece necessário (Rodrigues et al., 2004). O Brasil, re-centemente, comprometeu-se, por meio da Convençãosobre Diversidade Biológica, a construir um abrangen-te sistema de unidades de conservação terrestres até2010 e um sistema marinho até 2012. Ainda que tenhahavido muito progresso nessa arena (Rylands &Brandon), muitas lacunas permanecem no atual siste-ma, que merecem atenção especial. Isso também exigi-rá investimentos focados em pesquisas biogeográficassobre espécies ameaçadas e outras tantas com interes-se de conservação.

Em segundo lugar, o nível de ameaça às espécies eaos ecossistemas é considerável e crescente. A maioriados artigos dessa série retrata um quadro moderado

do nível de ameaça às espécies conhecidas e seushabitats. Os impactos ambientais diretos (p. ex., des-truição, fragmentação ou distúrbio do habitat; exaus-tão dos recursos; alteração dos regimes de incêndio;modificação no regime de águas; contaminação) sãoresultado de uma longa lista de ameaças comuns (p.ex.,desenvolvimento e infra-estruturas em grande escala;conversão dos usos da terra; energia e mineração; açõeshumanas não-sustentáveis; poluição; urbanização; tu-rismo) que resultam na perda da biodiversidade ao lon-go de toda a região tropical. Esses problemas não sãoexclusivos do Brasil.

A ameaça aos biomas é altamente heterogênea.Fearnside discute o desmatamento na Amazônia, colo-cando em perspectiva reportagens que fazem parecerbanais perdas florestais equivalentes a, digamos, o ta-manho da Bélgica. Em contraste, Fearnside observa que,embora ainda uma imensidão, o nível atual de ameaçaà Amazônia permite-nos construir cenários futuros quevão desde uma significativa degradação da floresta atéo seu desmatamento maciço. Os padrões de desmata-mento também refletem de forma diferenciada os al-vos da conservação da biodiversidade, porque a Ama-zônia é cada vez mais compreendida não como umafloresta homogênea fechada que circunda um granderio, mas que engloba pelo menos oito áreas deendemismos distintas separadas por rios principais que,por sua vez, são formados por centenas de outros cur-sos d’água importantes, que têm funcionado como me-canismos de especiação (Silva e colaboradores).

Outros biomas também estão diante de desafios im-portantes. Embora as estimativas variem, as alteraçõeshumanas na Caatinga estão entre 30,4% e 51,7%, e oque ainda resiste está altamente fragmentado (Leal ecolaboradores). Usos impróprios da terra custaram suadesertificação, que já ameaça 15% da região e que, pro-vavelmente, levará os agricultores familiares que vivemem uma dada área a outros locais ainda não cultivados.Mais da metade do Cerrado (1 milhão km²) foi transfor-mado em pasto e agricultura extensiva nos últimos 35anos, e a conversão agrícola para a soja e a criação degado em larga escala ainda são sua maior ameaça (Klink& Machado). Embora o Pantanal tenha sido afetado porimportantes alterações das áreas adjacentes, as maio-res ameaças são agora o desmatamento do habitat e aintrodução de gramíneas exóticas – que estima-se terafetado 40% das savanas e florestas (Harris e colabora-dores). Finalmente, a Mata Atlântica exemplifica o con-ceito de hotspot – uma região de biodiversidade muitoalta, que se encontra sob ameaça extrema. Somente 7%do bioma permanece como fragmentos isolados

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(Tabarelli e colaboradores) em uma região onde 40% das20 mil espécies vegetais são endêmicas.

Ainda que os níveis de ameaça e suas causas imedia-tas sejam primeiramente apontados nos artigos sobrebiomas e espécies, outros artigos discutem algumas dasprováveis causas da perda de biodiversidade em umfuturo próximo. O futuro da conservação no Brasil de-penderá enormemente de como essas questões serãosolucionadas. Fearnside descreve forças subjacentes queestimulam o desmatamento da Amazônia – especial-mente, políticas governamentais relacionadas à taxa-ção, crédito, subsídios, posse de terras, e assentamen-tos; falta de coordenação intergovernamental; e a for-ma como tratados e acordos internacionais são estru-turados. Os artigos de Schwartzman & Zimmerman, Sil-va e colaboradores e Peres enfocam a função e a neces-sidade de manter reservas grandes e complementarespara os povos indígenas e para a proteção estrita dabiodiversidade. Alguns especialistas comentam que, atu-almente, tais modelos são tratados como opostos, quan-do, na realidade, eles se reforçam mutuamente e, jun-tos, podem trazer resultados para a conservação emlarga escala. As reservas indígenas, por exemplo, alémde sua contribuição intrínseca para os objetivos con-servacionistas, podem agir como barreira à invasão dasáreas de proteção integral. Reciprocamente, as unida-des de conservação podem ajudar a manter os serviçosambientais e servir como fonte colonizadora de ani-mais silvestres utilizados pelos ameríndios. No contex-to amazônico existem argumentos convincentes paratais tipos de estratégias, porque a região, primordial-mente, precisa de megareservas para assegurar sua con-servação em longo prazo (Peres). Os argumentos sãoexaminados detalhadamente por Tabarelli & Gascon,que apontam as conseqüências da fragmentação dohabitat, talvez como a mais traiçoeira das ameaças àelevada biodiversidade dos trópicos, depois da com-pleta conversão das terras.

Junto com as maiores alterações dos habitats estãoas políticas públicas, apoiando o desenvolvimento deinfra-estruturas de transporte, energia e comunicações,que abrem áreas para conversão, colonização e outrosusos. O Brasil tem bilhões de dólares em projetos pú-blicos em elaboração. Reid & Sousa discutem se e comoeles podem ser implementados. O espectro de novasáreas sendo abertas e a urgência dos sem-terra reivin-dicando tais locais é legítima. Os donos de grandes emédias propriedades são responsáveis, atualmente, por70% do desmatamento da Amazônia (Fearnside). Porém,estimados em milhões, os sem-terra brasileiros podemtambém tornar-se uma importante ameaça à Amazô-

nia. Cullen e colaboradores demonstram como as inva-sões de terra podem divergir dos objetivos conservaci-onistas, na falta de um planejamento rural de uso daterra. A diminuição de recursos para a conservação, li-gado à forte dependência do setor público e à reduçãoda ajuda estrangeira é descrita por Young.

Apesar dos desafios, da falta de conhecimento e doalto grau de ameaças presentes em todos os biomas dopaís, um senso de oportunidade surge da maioria dosartigos presentes nessa edição especial, como aponta-do por Fearnside: “Um dos maiores impedimentos paraa ação efetiva é o fatalismo. O fatalismo age como umdissuasor na tomada de decisões que envolvem o com-prometimento de recursos financeiros substanciais ena aceitação de riscos políticos percebidos ou reais”.As oportunidades de reação a esse fatalismo são des-critas a seguir.

Em terceiro lugar, são abundantes as oportunidadespara se identificar soluções criativas contra as ameaçase para explorar as áreas nas quais o Brasil tem demons-trado liderança. Ainda que muitos autores nessa edi-ção especial apontem os altos níveis de ameaça comunsà biodiversidade brasileira, eles também apresentaminúmeras razões para um otimismo cauteloso desde queas autoridades de poder decisório façam escolhas quefavoreçam a sustentabilidade ambiental e econômica,em vez de ganhos em curto prazo. Mittermeier e cola-boradores resumem brevemente a história da conser-vação no Brasil e esclarecem os fatores que o diferenci-am dos outros países megadiversos, incluindo a vigo-rosa aptidão para a ciência da conservação, uma fortee ágil rede de organizações não-governamentais (ONGs)que mantém bom relacionamento com ciência e gover-no e um promissor programa de proteção das espé-cies. Tais direcionamentos são reforçados pela açãodecisiva em relação à expansão do sistema de unidadesde conservação mencionado por Rylands & Brandon, e,especialmente, na explanação da ministra Marina Silva.A criação de parques nacionais, estaduais e municipaisé inspiradora. O estado do Amapá, por exemplo, com-prometeu-se, recentemente, a estabelecer um corredorde biodiversidade que se estende por 10 milhões dehectares, incluindo nele a maior área protegida em flo-resta tropical do mundo, o Parque Nacional das Monta-nhas do Tumucumaque, com 3.882.376ha.

O nível de otimismo dos autores em relação à con-servação no Brasil depende dos enfoques de cada área.Para aqueles que trabalham com conservação das es-pécies, a megadiversidade brasileira é intimidante, por-que o conhecimento sobre a situação taxonômica e dis-tribuição das espécies é limitado e o grau de ameaças

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na natureza crescente. Em contraste, autores que tive-ram como tema os biomas são, em geral, mais positi-vos na sua percepção, devido aos vários exercícios dedefinição de prioridades realizados recentemente, queforneceram uma sólida referência para o progresso dasmedidas de conservação.

As ações e oportunidades de conservação, freqüen-temente, surgem quando há uma crise aparente(Brandon, 1998; Tabarelli & Gascon). Até pouco tempo,a Mata Atlântica era um lugar onde as chances de su-cesso pareciam baixas: a propagação do desmatamen-to e as severas alterações e fragmentações no habitatlevaram à maior concentração de espécies ameaçadasdo país. Porém, muitas áreas estão agora no caminhoda recuperação, prioridades para as espécies podem,na maioria dos casos, serem tratadas em nível local, e aconsciência do problema estendeu-se por diferentes se-tores da sociedade. Iniciativas vêm sendo executadasem múltiplas escalas, apoiadas por políticas públicas,ONGs e, em alguns casos, até mesmo com a influênciapolítica do Movimento dos Trabalhadores Rurais SemTerra. As habilidades institucionais estão em desen-volvimento e múltiplos setores estão cada vez maisdispostos a colaborar. Em uma imprevista mudança derumos, a Mata Atlântica, o bioma que já esteve nas maishorríveis condições, pode ser o único com o mais sóli-do e favorecido contexto para o futuro.

O panorama também é de esperança em outrosbiomas. As estruturas institucionais e as iniciativas deconservação na Mata Atlântica estão fornecendo ummodelo de como proceder na Caatinga. O forte traba-lho de relacionamento entre as ONGs e o Ministério doMeio Ambiente levou a pesquisas, a formação de umgrupo de trabalho e recomendações por ações urgen-tes de conservação do Cerrado (Klink & Machado).A situação no Pantanal depende, em grande parte, dobalanço das decisões de infra-estrutura a serem toma-das (Harris e colaboradores). As chances de conserva-ção dos táxons previamente negligenciados tambémestão melhorando. Um recente decreto, por exemplo,listou invertebrados aquáticos e peixes reconhecidoscomo espécies ameaçadas de extinção e como espé-cies sobrexplotadas ou ameaçadas de sobrexplotação(Instrução Normativa do Ministério do Meio Ambientenº 5, de 21 de maio de 2004). A captura de espéciesameaçadas é proibida, e o decreto instrui que planosde recuperação sejam desenvolvidos e implementadospara todas as espécies listadas.

Todos os artigos sobre os desafios e as oportunida-des de conservação no Brasil destacam ações pró-ativas – a maioria, mas não todas, do setor público.

Mesmo que o país tenha, recentemente, desenvolvidoum trabalho melhor que muitos outros países no apoioaos povos indígenas e seus territórios, ainda resta mui-to trabalho a fazer. Schwartzman & Zimmerman apre-sentam argumentos para que os conservacionistas au-mentem o apoio às reservas e aos territórios indíge-nas, particularmente, ajudando a identificar maneiraspelas quais os serviços ambientais possam ser valoriza-dos e os povos indígenas compensados pela proteçãodos seus territórios e da vida selvagem. Cullen e cola-boradores analisam como organizações conservacionis-tas e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terrapodem trabalhar juntos para influenciar políticas pú-blicas, por meio da identificação de terras que melhorse adéquem a agricultura de pequena escala, a geraçãode emprego, a preservação de habitats, e ajudem naconexão entre os fragmentos de floresta.

Em termos de conservação, o Brasil tem muitos fa-tores que o recomendam, mas é primordialmente im-portante que a ligação entre ciência e governo sejafortalecida. Vários artigos nesta edição destacam a for-ça dos estudos brasileiros sobre conservação. Em julhode 2005, o Brasil sediará não somente o encontro in-ternacional da Society for Conservation Biology, mastambém o encontro da Association of Tropical Biologyand Conservation. Eles complementam encontrosregulares, com boas audiências, das sociedades cientí-ficas brasileiras, como a Sociedade Brasileira de Orni-tologia, a Sociedade Brasileira de Mastozoologia, aSociedade Brasileira de Primatologia, a SociedadeBrasileira de Zoologia, a Sociedade Brasileira de Her-petologia, a Sociedade Brasileira de Limnologia e a So-ciedade Brasileira de Ecologia. Na maioria dos casos,entre 500 e 1 mil participantes comparecem a tais en-contros, a maior parte estudantes e jovens profissio-nais, o que confirma a capacidade brasileira de cresci-mento científico e conservacionista. O mesmo fenôme-no ainda precisa desenvolver-se quando o assunto sãoas ciências sociais relacionadas às questões ambientais,mas existem sinais de esperança como o crescimentoda Sociedade Brasileira de Economia Ecológica. O de-safio será transportar os resultados científicos para aesfera das políticas públicas. Vários artigos, especial-mente os escritos por Silva e colaboradores e Mittermeiere colaboradores, identificam o surgimento de uma ge-ração de líderes conservacionistas no Brasil, que estãoabertos a novas idéias. Young registra que alguns líde-res locais estão querendo tentar novos mecanismos definanciar a conservação ambiental, como os instrumen-tos econômicos para o manejo ambiental, fundos decompensação dos projetos, incentivos fiscais e direitos

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negociáveis de desenvolvimento. Isso ajudou o Brasil atornar-se um dos países mais inovadores do mundo emfinanciamentos para a conservação ambiental.

O ritmo inspirador e exuberante de criação dos par-ques, o grande tamanho de algumas das novas áreascriadas, a utilização da ciência no direcionamento daexpansão do sistema de unidades de conservação e aconsciência da necessidade de ações em escala de pai-sagem para complementar as estratégias nas áreas pro-tegidas serão todas colocadas à prova pela disposiçãodo governo, além do Ministério do Meio Ambiente, deadotar uma agenda mais verde, particularmente em re-lação ao desenvolvimento da infra-estrutura e às políti-cas de agricultura. Grandes áreas permanecem intactasem todos os biomas, e é possível “harmonizar desen-volvimento da infra-estrutura e conservação da nature-za” (Reid & Souza). Talvez, nós devêssemos começara acreditar em alguns sinais promissores, como a11ª colocação do Brasil no ranking de 2005 doEnvironmental Sustainability Index (Esty et al., 2005).O Brasil foi classificado acima da média por seu produ-to interno bruto, que pode ser largamente atribuído aocrescente aumento da capacidade e aos vigorosos pro-gramas de combate às atividades madeireiras ilegais.

O Brasil é a terra natal da Convenção sobre Diversi-dade Biológica, a principal realização da Conferênciadas Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvi-mento – a Eco 92 (1992 Earth Summit) –, no Rio de Ja-neiro, o maior encontro de líderes de Estado na histó-ria moderna. A proeminência na agenda de conserva-ção global, como um dos principais países megadiver-sos, e sua manifesta vantagem comparativa em relaçãoà capacidade científica, associadas aos imensos desa-fios à frente, fazem do Brasil um solo fértil de testespara estratégias inovadoras de conservação. O país temuma oportunidade iminente de recuperar a liderançana biodiversidade global utilizando a capacidade de-senvolvida, ao longo de 13 anos, de estimular o com-prometimento com o desenvolvimento da conservaçãoe da sustentabilidade. Essa oportunidade é representa-da pelo papel do Brasil como sede do 8º Encontro daConferência das Partes da Convenção sobre Diversida-de Biológica, nos dias 20 a 31 de março de 2006. Aciência da conservação pode ter o papel principal naorientação desses novos potenciais compromissos.

AGRADECIMENTOS

Agradecemos G. Meffe por ter adotado, desde o co-meço, a idéia de produzir essa edição especial sobre aconservação no Brasil, em antecipação ao encontro in-

ternacional da Society for Conservation Biology, emBrasília. Também agradecemos M. Flagg e E. Main, quetrabalharam, incansavelmente, para fazer isso aconte-cer. Nosso trabalho e o de outros membros da equipeda Conservação Internacional, junto aos custos daspublicações associadas, foram financiados pela MooreFamily Foundation, a Gordon and Betty MooreFoundation, e vários outros generosos doadores. Inú-meros colegas, dispersos pelo mundo revisaram deta-lhadamente artigos entregues em um curto prazo, aoque também agradecemos. À N. Linderman do Centrode Ciências Aplicadas à Biodiversidade, da Conserva-ção Internacional, que disponibilizou um valoroso apoioeditorial. Nossas esposas e filhos, que foram deixadosde lado nos dias de descanso e feriados, quando muitodesse trabalho foi realizado, merecem um reconheci-mento especial.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Brandon, Fonseca, Rylands & Silva | 13