02 fernando

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A LINHA DA MÃO ESQUERDA: JOÃO CABRAL CRÍTICO DE JOAN MIRÓ FERNANDO PESSOA [Professor de Filosofia, UFES]

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02 Fernando

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  • A LINHA DA MO ESQUERDA: JOO CABRAL CRTICO DE JOAN MIRFERNANDO PESSOA[Professor de Filosofia, UFES]

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    Inocncia, a criana, e esquecimento;

    um novo comeo, um jogo, uma roda que

    gira por si mesma, um movimento

    inicial, um sagrado dizer sim.

    F. Nietzsche

    Joo Cabral de Melo Neto sempre manifestou o seu desejo e sua vocao para a atividade crtica, seja a de si mesmo, a crtica sobre a prpria poesia, ou uma crtica ao outro Meu ideal foi sempre ser crtico literrio. (...), mas a minha poesia quase sempre crtica.1 Essa vocao se revela em toda a sua obra, sendo tema constante de suas poesias, bem como motivo de uma antologia organizada pelo prprio poeta, Poesia crtica, na qual escreveu como apresentao na Nota do autor: Este livro rene os poemas em que o autor tomou como assunto a criao potica e a obra ou a personalidade de cria-dores poetas ou no.2 Nesse sentido, conforme o assunto e a sua

    1. Entrevista de Joo Cabral a Edla van Steen, publicada originalmente em Viver e escrever. Porto Alegre: L&PM, 1981 (v. 1). Em Flix de Athayde. Idias fixas de Joo Cabral de Melo Neto. Rio de Janeiro-Mogi das Cruzes: Nova Fronteira, FNB Universidade Mogi das Cruzes, 1998.2. Joo Cabral de Melo Neto. Poesia crtica (antologia). Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1982.

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    diviso, essa antologia foi estruturada em duas partes: na primeira, intitulada Linguagem, Joo Cabral faz crtica da prpria atividade potica, e na segunda, intitulada Linguagens, ele faz a crtica da obra ou da personalidade de criadores, poetas ou no. Dentre os di-versos criadores abordados pela sua poesia crtica, encontramos, no poema O sim contra o sim, o pintor Joan Mir. Alm desse poema, Cabral tambm escreveu um ensaio em prosa sobre Mir, intitu-lado Joan Mir, que foi publicado, em sua primeira edio, numa pequena tiragem de luxo, com gravuras originais de Mir, e hoje se encontra editado em suas Obras completas.

    Nessa sua crtica a Joan Mir, Joo Cabral ressalta dois elementos complementares e igualmente fundamentais de sua pin-tura: o rompimento com o paradigma tradicional da composio re-nascentista e o constante esquecimento de todo e qualquer hbito ou habilidade, o desaprender, que, resguardando a inocncia de sua criao, mantm o vigor do indito em seus quadros. A partir desses dois elementos, Cabral caracteriza a obra de Mir como uma pin-tura viva.

    Joo Cabral defende a tese de que o Renascimento criou a pintura, medida que, at ento, o que era pintado no se encon-trava em nenhuma relao especfica com os limites da superfcie que o continha. Seja nos desenhos rupestres, em retbulos ou nos afrescos murais, as imagens estavam sempre soltas no espao, a ser-vio de uma funo simblica ou utilitria. Por sua vez, a superf-cie era um elemento neutro, cuja funo era unicamente suportar a figura pintada. At ento, somente na pintura decorativa a superfcie era relevante, mas tambm apenas em um sentido funcional. Pode-se dizer que o Renascimento associou o objeto, isto , a representao utilitria, ou a utilidade da representao, superfcie decorada, isto ,

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    utilidade da contemplao. Dessa associao nasceu a pintura, o que tem sido para ns a pintura, o quadro.3

    A partir dessa associao, a representao da figura passa a ser estruturada em uma relao tanto com a paisagem, quanto com os limites do quadro, a moldura; e sempre no sentido de se ob-ter, nas duas dimenses da superfcie da tela, uma iluso tridimen-sional do espao, da paisagem na qual a figura se situa. Com isso, a pintura, desde o seu nascimento, vai buscar uma dimenso que no propriamente a dela, a profundidade, mas prpria do relevo e da escultura. Cabral ressalta o fato de que para o sentido de profun-didade ocorrer na superfcie do plano necessrio haver uma viso do conjunto estruturada a partir de um nico ponto, aquele onde as trs dimenses devem ser apreendidas simultnea e articulada-mente. Por demanda da iluso de terceira dimenso, na medida em que ela exige a fixao do espectador em um ponto ideal, no qual, e somente a partir do qual, essa iluso se torna possvel, a composio renascentista anulou o aparecer dinmico do tempo em prol da aparncia do espao. Com a composio equilibrada a partir de um centro que organiza a reunio de todas as partes, a pintura posterior ao Renascimento fixa a vista na harmonia desse equilbrio. Nesse sentido, segundo o poeta-crtico, em seu nascimento, a pintura negli-gencia o ritmo do tempo a fim de conquistar o equilbrio do espao, obrigando o espectador a exercer apenas uma nica modalidade de sua viso, aquela que, detendo-se no ponto ideal do quadro, veja instantaneamente as suas trs dimenses e, assim, obtenha a iluso de profundidade na superfcie pintada. Harmonia, equilbrio e pro-poro entre figura e fundo passam a ser os elementos constituti-vos de toda e qualquer pintura, os seus pressupostos fundamentais. A imposio desses elementos, subjacente s leis que constituem a

    3. Idem. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995. p. 691.

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    composio renascentista, promove os princpios de toda pintura, instaurando o estatismo do olhar como a sua condio fundamen-tal. Da mesma maneira que a contemplao esttica, instantnea, a conveno a que se submete o contemplador desta pintura, o estatismo, nascido daquela conveno, o que se poderia chamar seu estilo, o esprito de sua organizao.4

    De acordo com essa tese, Joo Cabral de Melo Neto compre-ende que o estatismo espacial, imposto pela necessidade ilusria da terceira dimenso, estrutura a composio da pintura renascentista, forma o esprito de sua organizao, bem como determina, at os dias atuais, todo o seu desenvolvimento posterior.

    A composio de um quadro o que, juntando o que nele foi posto, estrutura e mostra a sua imagem. Embora seja o que estrutura e mostra o que visvel em uma pintura, a composio permanece sempre oculta, invisvel, na imagem do quadro. Como o espectador tem a tendncia de sempre s ver o que visvel, ele no se d conta da composio, que percebida sem uma com-preenso explcita, imperceptivelmente; a no ser quando, imper-feitamente concebida, ela se evidencia em seus defeitos. Portanto, a composio recebida sem que a ateno se d conta. nesse plano, em que a inteligncia no se d conta, que ela se cristaliza em hbi-to.5 O costume do hbito se constitui numa lei que, embora no esteja dita nem escrita, todos conhecem, acolhem e obedecem; ele forma a memria de uma tradio, a sua histria. E foi pelo costume habitual dos preceitos de centralizao, equilbrio e harmo-nia, que a composio renascentista se tornou o modelo exemplar de toda pintura, determinando, at os dias atuais, a sua histria.

    4. Idem, ibidem, p. 693.5. Idem, ibidem, p. 709.

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    Nesse sentido, Joo Cabral compreende que a pintura se fundou na modalidade de composio renascentista que, por ter como finali-dade provocar no espectador uma iluso de profundidade, impe o estatismo imediato do olhar no ponto em que a harmonia do quadro se estrutura, privilegiando o equilbrio do espao em detri-mento do ritmo do tempo.

    Seria possvel outra forma de composio? Seria possvel devolver superfcie aquele sentido antigo que seu aprofundamento numa terceira dimenso destruiu completamente? A pintura de Mir me parece responder afirmativamente a essa pergunta. Ela me parece, analisada objetivamente em seus resultados e em seu desenvolvimento, obedecer ao desejo obscuro de fazer voltar superfcie seu antigo papel: o de ser receptculo do dinmico. Ela me parece uma tendncia para libertar o ritmo do equilbrio que o apri-siona e que aprisiona toda pintura criada com o Renascimento.6

    Para Cabral, ao abandonar a iluso de profundidade e, assim, libertar a composio de um centro dominante, a pintura de Mir rompeu com as normas, com os paradigmas renascentistas e, ao deixar de lado o seu equilbrio esttico, resgatou o dinamismo do ritmo, a fluncia do tempo. Contrrio a qualquer hierarquizao entre os elementos de seus quadros, de um centro de interesse a partir do qual a composio se estrutura, Mir desintegra a noo de unidade da tela. No h mais uma subordinao de elementos a um ponto central, organizador e dominante; em sua pintura tudo se prope simultnea e igualmente importante, exigindo do espectador uma srie de observaes sucessivas, um movimento do olhar que, agora, deve deter a sua ateno em cada setor do quadro: Ele mul-

    6. Idem, ibidem, p. 695.

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    tiplica quadros dentro de um quadro e obriga o espectador a uma srie de atos instantneos, a uma contemplao descontnua.7

    Desse modo, fragmentando a unidade hierrquica de seus elementos e descentralizando o interesse do quadro, Mir liberta a pintura tanto de sua moldura, quanto de sua paisagem, disso que a havia aprisionado no espao da composio renascentista, a fim de explorar o sentido dinmico da superfcie, o tempo. Como no h mais uma grande composio modulada pela harmonia tonal, que impe ao espectador um movimento contnuo e nico, previsto e controlado, mas uma estrutura fragmentada e serial, livre de toda predeterminao ou qualquer previso, a pintura de Mir exige um permanente discorrer da ateno sobre a superfcie; como no h mais uma soluo, uma harmonia que, com todos os elementos unificados, permite uma nica viso geral do quadro, o espectador agora precisa percorrer o olhar por cada regio da tela, deter-se em seus elementos e, simultaneamente, encaminhar-se aos outros rea-lizando, no movimento de sua viso, uma ao temporal.

    De acordo com Joo Cabral, a busca pela dinmica temporal da pintura, esquecida pela tridimensionalizao espacial da com-posio renascentista, se faz ver, fica evidente na obra de Mir, com o crescente poder da linha e suas inusitadas possibilidades rtmicas e meldicas. Ao contrrio da composio tradicional, na qual a linha, por ter uma natureza essencialmente dinmica, foi empobrecida, anulada, eliminada, em Mir a linha fundamental.

    Nesta composio, a linha no um elemento perigoso como se

    d com a composio tradicional, onde ela, se no est dominada,

    um elemento dissociador. Nesta composio, a linha a mola.

    no somente o que contemplar, mas a indicao, o guia, a norma

    7. Idem, ibidem, p. 697.

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    da contemplao. Ela vos toma pela mo, to poderosamente, que

    transforma em circulao o que era fixao; em tempo, o que era

    instantneo.8

    A obra El diamante sonrie al crepsculo, pintada em 1947 e atual-mente exposta na Fundao Mir, em Barcelona, um exemplo do que Cabral indica ser o poder da linha de Mir. Em um fundo azul, esverdeado, claro, celeste, o quadro apresenta cinco manchas redondas, de tamanhos e cores diferentes, com bordas esvoaadas: esquerda, na parte superior, a mancha maior, preta, noturna, e na parte inferior, a menor, verde; direita, uma vermelha embaixo

    8. Idem, ibidem, p. 703.

    Joan Mir,El diamante sonrie al crepsculo, 1947.

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    e outra amarela em cima, diurnas; no centro da tela, uma mancha violeta, crepuscular, dividindo, como nos dados, o quadro em cin-co reas. Tais manchas so enoveladas por quatro grupos de linha: uma abaixo da preta, rtmica e rpida, angulosa e abissal, envolve a pequena mancha verde; outras duas, uma envolta no vermelho e a outra, no amarelo, com linhas mais sinuosas e meldicas, lentas e encantadas; e outra central, que comea rtmica e termina meldica, envolvendo, de cima a baixo, a mancha violeta. Entre a noite e o dia, sobre o crepsculo central, um olho vertical, circunscrito numa linha, sugere uma face a sorrir. Trs estrelas de Mir, uma em cada regio da tela, e cinco pares de bolinhas pretas interligadas. Visto de longe, o quadro aparenta uma unidade geral que articula os seus ele-mentos em uma totalidade espacial; mas, assim, as linhas perdem as suas propriedades lineares, tornam-se massas, figuras abstratas.

    Entretanto, na proximidade, com o interesse de ver deta-lhes, o quadro revela a singular e contnua trajetria de cada linha, o seu nascimento, desenvolvimento e fim, encaminhando o olhar por percursos inusitados, em movimentos e velocidades diversas, dife-rentes ritmos e estranhas melodias. Tais linhas so guias que obri-gam o espectador ao dinamismo visual; com seus deslocamentos inesperadamente vivos e ldicos, tais linhas provocam sensaes de calma e serenidade, vertigem e angstia, turbilho, fluidez, alegria. As linhas de Mir operam uma circulao do olhar que transfor-ma o que era fixo e instantneo em dinmicas temporais, o que era representao espacial em disposies afetivas. Diferente da iluso do espao, essas linhas nos provocam experincias de tempo.

    Com as suas linhas, Mir constitui organismos que nascem e crescem em formas vivas, dinmicas, surpreendentes. Ao contrrio do fio de Ariadne, que leva sada, as linhas de Mir conduzem a viso por labirintos onde perdemos tudo que conhe-

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    cido, j sabido, certo onde nos perdemos. Nessas linhas no h certezas, previses, mtodos, apenas descobertas, surpresas. Sem-pre recomeando a cada momento um novo caminho, tais linhas desfazem a viso habitual, automtica, e impe, com o inusitado da surpresa, um olhar inocente, original. Elas nos enlaam, confundem, embaralham o j sabido e nos restituem a criana, a criao de ver o mundo como pela primeira vez. Os quadros de Mir desembaam os olhos e lavam a alma, proporcionam alegria, leveza, sorrisos.

    Sorrisos de esquecimento e inocncia. Ao contrrio de ter uma gramtica, uma lgica que, resolvendo todos os problemas, pos-sui todas as respostas, para alm das leis ou pressuposies habitu-ais, Mir est sempre, em cada quadro, aprendendo a pintar. Esta capacidade de desaprender todo o j sabido e sempre recomear o outro elemento que Cabral ressalta como igualmente fundamental da pintura de Mir. A obra de Mir me parece nascer da luta perma-nente, no trabalho do pintor, para limpar o seu olho do visto e sua mo do automtico. Para colocar-se numa situao de pureza e liberdade diante do hbito e da habilidade.9 Foi a partir, e atravs, dessa luta, do trabalho do pintor desaprender o j sabido, que Mir realizou uma efetiva superao das normas da composio renascentista. Portan-to, tal superao no ocorre como um processo intelectual, terico, mas com a fora do desaprender todo o habitual que, perdendo o seu automatismo, se abre ao embate da criao, necessidade de apren-der o que fazer a partir, e na medida, de seu prprio acontecimento. Interessado em sua obra, Mir esqueceu a tradio.

    Em sua prosa crtica, Cabral enfatiza tanto que Mir no possui um sistema, conceito ou frmula de composio, quanto que ele no busca combater, criar leis contrrias composio renas-

    9. Idem, ibidem, p. 711.

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    centista tradicional. Igualmente distante tanto do abandono ins-pirao quanto da segurana do saber acadmico, Mir, totalmente interessado em sua atividade, pinta com esquecimento e inocncia. Nada existe exterior sua atividade. Nada a que ele confie seu problema permanente, nenhuma frmula, qual ele deixe a misso de buscar tal soluo, com a qual ele compara a sua criao.10 Cabral localiza a fora de Mir nesse no-saber, em sua capacidade de esquecer de todas as solues j realizadas e sempre, de novo, aprender a pintar pintando o que, por sua prpria originalidade, inviabiliza aferir uma lei, es-tilo ou norma de sua composio.

    Por buscar compreender a pintura em seu prprio ato cria-dor, Cabral ressalta a importncia que o pintor dava atividade de pintar, uma valorizao do fazer que coloca a finalidade do trabalho em sua prpria origem, no sentido de considerar o fazer no como o meio para se chegar ao quadro, mas o quadro como pretexto para pintar Mir no pinta quadros. Mir pinta.11 Por se concentrar em sua ao e descobrir o que fazer no prprio fazer, ao contrrio de j saber previamente o que deve pintar, Mir busca compreender o que precisa ser feito no embate entre a mo e a matria, no acontecimen-to desse trabalho. Esse conceito de trabalho, em virtude, principalmente, dessa disponibilidade e vazio inicial, permite, ao artista, o exerccio de um julgamento minucioso e permanente sobre cada mnimo resultado a que seu trabalho vai chegando.12 Esse julgamento no ocorre como um policiamento que visa corrigir a ao, um esforo de controle e apoderamento da atividade, mas como uma atitude de interesse, vig-lia e lucidez prpria do artista completamente entregue ao seu acon-tecimento, ao de criao um sagrado dizer sim.

    10. Idem, ibidem, p. 715.11. Idem, ibidem, p. 711. 12. Idem, ibidem, p. 712.

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    No poema O sim contra o sim, Cabral escreveu:

    Mir sentia a mo direita

    demasiado sbia

    e que de saber tanto

    j no podia inventar nada.

    Quis ento que desaprendesse

    o muito que aprendera,

    a fim de reencontrar

    a linha ainda fresca da esquerda.

    Pois que ela no pde, ele ps-se

    a desenhar com esta

    at que, se operando,

    no brao direito ele a enxerta.

    A esquerda (se no se canhoto)

    mo sem habilidade:

    reaprende a cada linha,

    cada instante, a recomear-se. 13

    O desaprender a possibilidade de, por meio do esquecimento, se im-por a necessidade de sempre, outra vez, aprender um novo comeo. Ao contrrio do j sabido, seja pelo entendimento ou pelo hbito, do que feito automaticamente, sem pensar, o desaprender demanda o permanente esforo de manter o saber na medida do aprender, sem dispensar o pensamento. Ao sentir a mo direita demasiado sbia, to hbil que j no inventava mais nada, Mir passou a pintar com

    13. O sim contra o sim. Serial. Em Idem, ibidem, p. 298.

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    a mo esquerda a fim de reaprender, a cada linha, em cada instante, a recomear-se. Para Cabral, esse eterno recomeo do ato criador a fora do trabalho de Mir, a originalidade que mantm a sua obra sempre viva. Ao contrrio do sentido de harmonia do que est equili-brado, Cabral indica que a pintura de Mir busca obter a sensao de vivo, do indito que, surpreendendo, desperta.

    a esse vivo que parece aspirar a pintura de Mir. Isto , a algo

    elaborado nessa dolorosa atitude de luta contra o hbito e a algo

    que v, por sua vez, romper, no espectador, a dura crosta de sua

    sensibilidade acostumada, para atingi-la nessa regio onde se refu-

    gia o melhor de si mesma: sua capacidade de saborear o indito,

    o no-aprendido.14

    A fora da criao de Mir faz sua obra parecer viva, no sentido de original, espontnea a obra guarda o frescor, o vigor de sua origem. Pela vigncia desse vivo, ela pode romper a crosta da sensibilidade do espectador, formada pelo hbito de seus sentidos cotidianos, ordi-nrios. O hbito caleja; a sua familiaridade forma uma casca que impede as percepes do mundo e automatiza tanto as compreen-ses quanto as aes dos homens. Por guardar o seu vigor original, a vigncia extraordinria de sua experincia, a obra de Mir espanta, acorda essa sensibilidade adormecida no hbito. O vivo espessa a vida, desperta a capacidade de saborear o indito de sua prpria ori-gem e a origem a fora vital, a essncia primordial, da prpria vida. A partir do esquecimento e da inocncia, a pintura de Mir, superando a composio renascentista, caracterizada pelo estatismo espacial, mostra a dinmica temporal da vigncia originria da vida.

    14. Idem, ibidem, p. 718.