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ética e educaçao social interpelações de contemporaneidade [ 37 ] sips - pedagogía social. revista interuniversitaria [1139-1723 (2012) 19, 37-49] tercera época Resumo Detentores de um conhecimento sociopeda- gógico especializado e chamados a intervir prioritariamente junto de pessoas e grupos hu- manos em situação de privação, sofrimento e vulnerabilidade, os educadores sociais ac- tuam como agentes privilegiados de condição humana, desempenhando um papel crucial na promoção de uma contemporaneidade mais justa e solidária. O presente texto pretende justamente evi- denciar princípios de racionalidade socioe- ducacional congruentes com a utopia do hu- mano em contexto de «sociedade educativa», perspectivando os desafios de profissionali- dade e/ou autoridade pedagógica dos educa- dores sociais à luz de uma concepção ampla de ética, valorizada na sua tripla dimensão – teleológica, deontológica e prudencial. O de- ver de excelência que anima os processos de desenvolvimento contínuo de padrões de con- duta e de disposições de carácter constitui im- perativo inalienável de quem se identifica com a sua profissão e não uma imposição exterior. Neste entendimento, inscrevemos as exigên- cias de reflexividade profissional dos educa- dores sociais no quadro de uma «ética de hos- pitalidade» assente nos valores acolhimento, responsabilidade e bondade como condição de qualificação ética e estética da acção so- cioeducativa. palavras-chave: Educação Social, Pedagogía Social, Ética, Moral, Deontologia, Hospitali- dade. Abstract Social educators, who are specialists in socio- pedagogical knowledge, are destined to be- come especially involved with individuals and human groups in situations of deprivation, suffering and vulnerability. Therefore, they act as privileged agents of the human condi- tion, playing a crucial role in promoting more just and supportive times. This paper mainly seeks to provide evi- dence of the principles of socio-educational rationality that are in keeping with the human utopia within an “educational society’. Thus, it focuses on the challenges of ethical profes- sionalism and/or the pedagogical authority of social educators in the light of a broader con- cept of ethics, considered in its triple teleolo- gical, deontological and sensible dimension. The commitment to excellence, which en- courages the ongoing development of ethi- cal standards and rules, are an inalienable im- perative of those who identify themselves Ética e Educação Social Interpelações de contemporaneidade Ethics and Social Education – Interpellations of Contemporaneity Ética y Educación Social – Interpretaciones contemporáneas Isabel Baptista Universidade Católica Portuguesa – Porto

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sociologia

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  • tica e educaao social interpelaes de contemporaneidade [ 37 ]

    sips - pedagoga social. revista interuniversitaria [1139-1723 (2012) 19, 37-49] tercera poca

    Resumo

    Detentores de um conhecimento sociopeda-ggico especializado e chamados a intervirprioritariamente junto de pessoas e grupos hu-manos em situao de privao, sofrimentoe vulnerabilidade, os educadores sociais ac-tuam como agentes privilegiados de condiohumana, desempenhando um papel crucialna promoo de uma contemporaneidademais justa e solidria.

    O presente texto pretende justamente evi-denciar princpios de racionalidade socioe-ducacional congruentes com a utopia do hu-mano em contexto de sociedade educativa,perspectivando os desafios de profissionali-dade e/ou autoridade pedaggica dos educa-dores sociais luz de uma concepo amplade tica, valorizada na sua tripla dimenso teleolgica, deontolgica e prudencial. O de-ver de excelncia que anima os processos dedesenvolvimento contnuode padres de con-duta e de disposies de carcter constitui im-perativo inalienvel de quem se identifica coma sua profisso e no uma imposio exterior.Neste entendimento, inscrevemos as exign-cias de reflexividade profissional dos educa-dores sociais no quadro de uma tica de hos-pitalidade assente nos valores acolhimento,responsabilidade e bondade como condio

    de qualificao tica e esttica da aco so-cioeducativa.

    palavras-chave:Educao Social, PedagogaSocial, tica, Moral, Deontologia, Hospitali-dade.

    Abstract

    Social educators, who are specialists in socio-pedagogical knowledge, are destined to be-come especially involved with individuals andhuman groups in situations of deprivation,suffering and vulnerability. Therefore, theyact as privileged agents of the human condi-tion, playing a crucial role in promoting morejust and supportive times.

    This paper mainly seeks to provide evi-dence of the principles of socio-educationalrationality that are in keeping with the humanutopia within an educational society. Thus,it focuses on the challenges of ethical profes-sionalism and/or the pedagogical authority ofsocial educators in the light of a broader con-cept of ethics, considered in its triple teleolo-gical, deontological and sensible dimension.The commitment to excellence, which en-courages the ongoing development of ethi-cal standards and rules, are an inalienable im-perative of those who identify themselves

    tica e Educao Social Interpelaes de contemporaneidade

    Ethics and Social Education Interpellations of Contemporaneity

    tica y Educacin Social Interpretaciones contemporneas

    Isabel BaptistaUniversidade Catlica Portuguesa Porto

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    with their job and do not regard it as somet-hing external to them. Therefore, the de-mands of the professional reflection by socialeducators fall within the framework of an et-hics of hospitality based on values such aswelcome, responsibility and goodness for theethical and aesthetic qualification of socio-edu-cational action.

    key words: Social Education, Social Peda-gogy, Ethics, Moral, Deontology, Hospitality.

    Resumen

    Los profesionales del conocimiento sociope-daggico especializado, en relacin sobre todocon individuos y grupos en situacin de pri-vacin humana, sufrimiento y vulnerabilidad,los educadores sociales actan como agentesprivilegiados de la condicin humana, ju-gando un papel crucial en la promocin de unfuturo ms justo y solidario.

    Este documento pretende dar a conocerlos principios de racionalidad, congruentescon la utopa social de los humanos en el con-texto de la sociedad de aprendizaje, pre-viendo los desafos de la profesionalidad y/oautoridad de enseanza de los educadores ala luz de una concepcin amplia de la tica,por un valor de tres dimensiones teleolgi-cas, deontolgicas y prudencial. El deber deexcelencia que impulsan los procesos de de-sarrollo continuo de las normas de conductay normas es el carcter imperativo inaliena-ble de quienes se identifican con su profesiny no una imposicin externa. Bajo esta pre-misa, hemos puesto las demandas de los edu-cadores de reflexin profesional en el marcode una tica de la hospitalidad basada enlos valores, la responsabilidad y la bondadcomo una accin de calificacin tica y est-tica de la accin socioeducativa.

    palabras clave: Educacin Social, Pedago-ga Social, tica, Moral, Deontologa, Hospi-talidad.

    Introduo

    Vivemos um tempo complexo e muito pro-blemtico, ensombrado por situaes recor-rentes de precariedade, violncia e exclusosocial. Um tempo de extrema privao e so-frimento para muitos dos nossos compa-nheiros de humanidade. Vivemos um tempode crise globalizada, pobre em desejo de fu-turo e que ameaa tornar-se ainda mais incertoface ao agravamento de fenmenos como apobreza, o desemprego e a perda de direitoscvicos. Sem esquecer tambm o enfraqueci-mento do prprio mundo natural que, na ver-dade, constitui parte substancial da vulnera-bilidade do humano num tempo feito demuitos desacertos e desencontros.

    Por outro lado, porm, vivemos um tempoluminoso, fecundo e promissor. Um tempo fa-vorecido por poderes cientfico-tecnolgicossem precedentes e amplamente tributrio dosideais democrticos consagrados na Declara-o Universal dos Direitos Humanos (1948),entre os quais se encontra a educao que, emsi mesma, constitui um dos compromissos ti-cos mais relevantes da nossa contemporanei-dade. Porque, na verdade, reconhecer que aeducao constitui um direito humano fun-damental, potenciador do acesso a outros di-reitos, implica tornar esse direito acessvel atodas as pessoas, sem excepo.

    Os imperativos de educao cruzam-se as-sim com imperativos de solidariedade e numcontexto de renovao paradigmtica do cha-mado Estado Social. A existncia de meca-nismos de proteco e assistncia deixou defuncionar como resposta suficiente para osproblemas de autonomia e bem-estar das pes-soas, apelando para intervenes mais inte-gradas e menos focadas nas zonas de exclu-so e/ou de fractura. Ao mesmo tempo quesuportam os processos formativos numa l-gica de aprendizagem na e com a vida, asdinmicas de mediao socioeducativa aju-dam a fazer sociedade, fomentando condiesde lao social num mundo desenlaado.

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    Nos diferentes planos existenciais, pre-ciso agir in solidum, colocando a educaoe a solidariedade no corao das estratgias dedesenvolvimento humano. Ao institurem-secomo sociedades educativas, as sociedadesdo sculo XXI passam a equacionar uma mul-tiplicidade de exigncias de aprendizagem(formais, no formais e informais), valori-zando a componente sociocomunitria daeducao, com tudo o que isso implica de mo-bilizao de saberes e fazeres. A pedagogia so-cial v assim reforado o seu estatuto cient-fico enquanto disciplina vocacionada para oenquadramento da prxis socioeducativa napluralidade das suas expresses, passando aresponder por um universo de actuao cadavez mais amplo e desafiante.

    Neste contexto, a educao social surge-nos como uma das reas mais importantes deinterveno sociopedaggica, ainda que noexclusiva, correspondendo quela que melhorcorporiza o patrimnio histrico da pedago-gia social, tradicionalmente associado s pr-ticas de beneficncia e de ajuda a pessoas egrupos considerados como excludos ou sus-ceptveis de excluso. Dotados de um saber pe-daggico especializado e apoiados em leiturasmais integradas da realidade, os educadoressociais encontram-se em posio privilegiadapara fazer subordinar as interpelaes danossa contemporaneidade ao lado mais lu-minoso da condio humana. Ora, precisa-mente nessa aptido para visar o bem, pro-movendo as condies de perfectibilidade eeducabilidade de todas as pessoas, em parti-cular das mais vulnerveis, que se situa oponto de ancoragem essencial do thos (ca-rcter) da educao social.

    Ligando os desafios de contemporanei-dade a uma concepo ampla de tica tecidana zona de confluncia de duas correntes fun-dacionais, a aristotlica e a kantiana, recorre-mos ao contributo terico de autores comoPaul Ricoeur, Emmanuel Lvinas, Jacques Der-rida, Zygmunt Bauman e Hannah Arendt,para sublinhar razes de sabedoria prtica in-

    trnsecas educao social. Optamos nessesentido por falar simultneamente em ticasocioeducacional e em tica profissional, con-siderando que nenhuma das duas dimenses redutvel outra. A tica consubstancial aoprocesso de afirmao identitria dos educa-dores sociais, mas s valorizando a tica pro-fissional na sua tripla dimenso -teleolgica,deontolgica e prudencial-, poderemos fazerjustia ao carcter distintivo da profisso, aquiinterpretado luz de uma tica da hospita-lidade assente no trptico acolhimento,responsabilidade e bondade.

    1. tica, moral e deontologia razes de sa-bedoria prtica

    Ponderadas no quadro da racionalidade so-ciopedaggica, as noes de tica, moral edeontologia em referncia inscrevem-se numalinha de encontro entre duas correntes de ins-pirao clssicas, como foi dito. A primeiraligada perspectiva teleolgica (do grego te-los-meta, alvo, fim) herdada de Aristteles(384-322 ac) e a segunda perspectiva deon-tolgica (do grego deonta-dever) defendidapor Immanuel Kant (1724-1804).

    Recorde-se que o termo tica provm dogrego (th - morada) e o termo moral de-riva do latim (mores - mos), mas os dois re-metem para a ideia de hbitos e costumes,para o modo de ser, de estar e de agir que qua-lifica o comportamento dos indivduos, dosgrupos, das organizaes e das comunidades. partida, esta afinidade etimolgica parecejustificar o uso indiscriminado dos dois ter-mos na linguagem corrente, assumindo cadaum deles a dupla conotao do que tidocomo bom e do que se impe como obri-gatrio, como notou Ricoeur (1990). Aco-lhendo a este respeito as linhas de fora da teo-rizao tica contempornea, entendemos que preciso superar essa ambiguidade semn-tica, adequando o sentido etimolgico s exi-gncias de inteligibilidade e de aco do nossotempo.

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    Neste sentido, identificamos a tica coma reflexo sobre os fundamentos e os fins daaco humana, numa aproximao intencio-nal ao estilo teleolgico de Aristteles. Citandoo autor de tica a Nicmaco, uma das obrasmatriciais da cultura ocidental, alcanaremosmais facilmente o que devido, se, tal comoos arqueiros, tivermos um alvo a apontar(2004, Livro I-1094a1). Ou seja, caber ticaassegurar a articulao racional do bem e demodo a que cada um seja capaz de orientar asua vida em funo de metas audaciosas ebem definidas. Ao contrrio do que acontececom os outros animais, o animal humano pos-sui a aptido para consciencializar e direccio-nar o seu processo de desenvolvimento. Essaintencionalidade o que, afinal de contas, de-fine a relevncia e especificidade de todo oprojecto pedaggico.

    Mas no basta visar o bem, preciso agirem consequncia, cuidando de todos os pro-cedimentos prticos necessrios. aqui quese situa a moral. A moral corresponde ao planode efectivao da tica, com as suas normas,obrigaes e deveres, associando-se dessemodo perspectiva deontolgica de inspira-o kantiana. Para Kant, s o exerccio de umavontade auto-determinada conduz a acespraticadas por respeito ao dever e no so-mente em conformidade com o dever. Ageapenas segundo uma mxima tal que possasao mesmo tempo querer que ela se transformeem lei universal (1995,28). Esta formulaodo imperativo categrico contmos princpiosbsicos da moral ocidental -universalidade, ra-cionalidade e constrangimento.

    Indexado ao universo da moral, o termodeontologia (do grego deonta - dever e lo-gos - razo) foi introduzido no discurso cor-rente pelo jurista e filsofo ingls Jeremy Bent-ham (1748-1832) na obra Deontologia oucincia da moralidade publicada dois anosaps a sua morte, em 1834. Bentham no pre-tendeu, como Kant seu contemporneo, de-senvolver uma teoria geral do dever, cen-trando-se antes na anlise das dimenses do

    dever ser relativas a cada comunidade e acada situao em concreto. O que explica aevoluo do termo deontologia por associaos morais profissionais. Actualmente, quandofalamos em deontologia referirmo-nos ao uni-verso moral especfico de uma determinadaactividade profissional.

    Esta ordem de distino e hierarquizaoconceptual entre as noes de tica, moral edeontologia permite-nos desenvolver trs ei-xos de anlise fundamentais do ponto de vistada racionalidade socioeducacional: reconhe-cimento do primado da tica sobre a moral ea deontologia; passagem obrigatria do op-tativo da tica ao imperativo da moral; valo-rizao da tica como sabedora prtica de ca-rcter eminentemente prudencial.

    a) Reconhecimento do primado da ticasobre a moral e a deontologia, dado quea tica engloba as outras dimenses, pre-cedendo-as na ordem do fundamento.Mais do que uma metamoral, centradano estudo das diferentes esferas da vidaprtica e/ou na anlise lingustica dosenunciados morais, a tica funciona comoo outro da moral, segundo o sentido dealteridade advogado pelo filsofo Emma-nuel Lvinas para quem a tica no su-plemento de uma base existencial prviamas reflexo fundamental e intrnseca condio humana (Lvinas, 1992). Na suaperspectiva, a tica responde ao desejo deinfinito, essa misteriosa fome de invis-vel desperta na relao com outrem. Umdesejo de transcendncia que, como tal, su-blinha a condio perfectvel e educvelde todo ser humano, justificando o carc-ter deconstrutor e subversivo da tica poroposio moral. A um nvel essencial, atica desejo de tica.b) Passagem obrigatria do optativo datica ao imperativo da moral, assumindotodos os constrangimentos e todas as me-diaes interpessoais e institucionais ne-cessrias justia, conforme defende PaulRicoeur. A justia representa o alarga-

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    mento da tica esfera da cidadania e dasocializao, ligando assim as aspiraesde realizao pessoal aos imperativos devida em comum. Visar o bem, vivendocom e para os outros em instituies jus-tas, dever ser esta, segundo o autor deO Si-mesmo como um Outro (Ricoeur,1990), a estrutura essencial da moralidade.O sim da tica deve dar lugar ao noda interdio moral, por dever de con-cretizao histrica do bem desejado mastambm em virtude da presena do malno mundo e face impossibilidade depermanecer inocente ou indiferente pe-rante situaes de discriminao, violn-cia e injustia. As morais profissionais oudeontologias expressam o regime de ob-rigaes recprocas adoptado no mbitoda regulao de carcter profissional.c) Valorizao da tica como sabedora pr-tica, como espao de mediao crtica en-tre a universalidade das leis e a singulari-dade de cada situao e de cada rosto.Um espao de natureza eminentementereflexiva e prudencial que, como tal, re-quer temperana e coragem, as duasvirtudes que Aristteles associa phro-nesis ou qualidade da aco ponderada esensata. Prolongando e reajustando o sen-tido etimolgico, diremos que a tica nose refere apenas aos hbitos e costumes,mas aos hbitos e costumes consideradosmelhores e na conscincia de que os pro-cessos de melhoria esto sempre emaberto, convocando nessa medida os po-deres decisionais dos autores, neste casodos educadores sociais, enquanto sujeitosde responsabilidade profissional dispos-tos para a excelncia.

    2. tica socioeducacional e tica profissional

    No seguimento do que foi explicitado ante-riormente, o primeiro desafio que se nos co-loca prende-se com a definio do telos daeducao social, com a reflexo sobre o bem

    e/ou os bens que devem definir e orientar osaber ser e o saber fazer dos educadoressociais, legitimando os processos de desen-volvimento e reconhecimento de uma comu-nidade profissional autnoma. Enquanto exi-gncia interior profisso, esta questo remetepara um campo de problematizao maisvasto onde hoje se impem questes de ra-cionalidade sociopedaggica essenciais e re-lativas ao prprio estatuto antropolgico, epis-temolgico e sociopoltico da educao social.

    Retomando a lio aristotlica, lembramosque, se verdade que toda a percia, todo oprocesso de investigao, todo o procedimentoprtico e toda a deciso pressupem a refe-rncia a um bem maior, igualmente ne-cessrio que esse bem maior seja articuladocom a pluralidade de bens subsequentes. Ouseja, importa especificar com rigor as confi-guraes de ordem teleolgica que nos servemde orientao, sob pena de permanecermosnum plano de expresso rico em desejo masdemasiado vago e inoperante.

    Tomando em considerao as interpela-es de desenvolvimento humano que con-figuram a nossa contemporaneidade, pode-mos identificar a finalidade primeira daeducao social com a capacitao subjectivae cvica de todas as pessoas, em contextos so-ciocomunitrios balizados por valores debem-estar e incluso social. Mas bastar for-mular a questo nestes termos? Em que queesta formulao permite caracterizar e dife-renciar o sentido orientador da educao so-cial? A ideia de uma educao ao longo davida, associada a valores de incluso e coesosocial, ser mesmo especfica da educao so-cial? Em rigor, ela no corresponde ao bemcomum de referncia de toda a sociedadeeducativa? Que tipo de relao existe ou deveexistir entre a educao social e outros sa-beres sociais e educacionais, designadamenteentre a educao social e a pedagogia social?O que que distingue a autoridade profis-sional dos educadores sociais da autoridadede outros tcnicos de interveno socioedu-

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    cativa, como os animadores socioculturais,por exemplo?

    Em suma, face tendencial expanso docampo da aco socioeducativa, de quem fa-lamos quando falamos de educadores so-ciais?

    Certamente que no ser possvel, nem de-sejvel encontrar respostas definitivas paraeste tipo de interrogaes, sobretudo estandoem causa razes de afirmao identitria.Como notou Bauman (2007), a identidade um nome estranho, apresenta-se geralmentena forma de substantivo quando na verdadese comporta como um verbo conjugado poruma pluralidade de sujeitos, cada qual prota-gonizando processos de identificao emcurso. Mas justamente por reconhecermosesta sonoridade verbal da identidade que su-blinhamos a necessidade de deciso e com-promisso. Admitir que estamos perante pro-cessos em aberto no o mesmo que dizer queestamos perante processos aleatrios ou queestejamos condenados a tomar decises comoquem mergulha no desconhecido. No sa-bendo com exactido onde vamos chegar, ocerto preciso saber para onde desejamos ir.Sobretudo quando, na qualidade de educa-dores, assumimos a responsabilidade de orien-tar outros na construo dos seus caminhos.Em educao visa-se a mudana e visar a mu-dana significa fazer escolhas, apontando paraalvos bem definidos.

    A expresso educao social serviu du-rante muito tempo para designar a totalidadedo campo prtico da pedagogia social, abran-gendo assim toda a educao dita no-esco-lar. Todavia, por fora das mudanas para-digmticas entretanto operadas, os educadoressociais so hoje chamados a conviver comuma diversidade de outros tcnicos de inter-veno socioeducativa, cada qual reclamandoespaos de autoridade profissional muito pr-prios. Deixou, portanto, de ser pertinente iden-tificar como educao social a totalidade docampo prtico da pedagogia social, do mesmomodo que deixou de fazer sentido definir a

    pedagogia social como teoria geral da educa-o social.

    Em nosso entender, a educao social cor-responde rea da pedagogia social especifi-camente vocacionada para a prxis educa-tiva em contexto de aco social. Estaaproximao ao universo das chamadas pro-fisses sociais acontece numa altura em quea prpria noo de trabalho e/ou servio so-cial deixou de funcionar como categoria dis-ciplinar e profissional homognea. Actual-mente, o campo da aco social contemplaigualmente uma diversidade de perfis tcni-cos, em conformidade com novos valores e no-vos modelos de interveno social.

    Consideramos, pois que os educadores so-ciais actuam em favor da capacitao sub-jectiva e cvica de todas as pessoas e ao longode toda a sua vida, designadamente daquelasque, por se encontrarem em situao de es-pecial vulnerabilidade, requerem intervenopedaggica especializada e prioritria. Estavocao sociopedaggica especfica investe amisso dos educadores sociais de uma res-ponsabilidade tica acrescida, conferindo-lheum carcter nico. Com efeito, se, por princ-pio, todas as ticas profissionais se referem aquestes de direitos humanos, de justia e so-lidariedade, para quem, como os educadoressociais, trabalha em relao de proximidadecom pessoas e grupos humanos desfavoreci-dos, estas questes adquirem particular acui-dade. Explica-se assim a importncia que aschamadas ticas do cuidado tendem a as-sumir no seio das profisses sociais, onde sur-gem com frequncia valorizadas em contra-ponto s ticas da justia.

    Originadas a partir das crticas de teor fe-minista feitas por Carol Gilligan teoria mo-ral de Lawrence Kolhberg centrada na apli-cao de direitos e regras, as ticas do cuidadosubordinam a moralidade preocupao como bem-estar do Outro, segundo lgicas rela-cionais pautadas por valores como sensibili-dade, solicitude e proteco. Ao formalismoprprio das ticas da justia, as ticas do cui-

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    dado opem a singularidade dos dramas exis-tenciais, vividos e sofridos por gente de carnee osso, na conscincia de que no outro ploda relao esto seres humanos com histriasirredutivelmente singulares. Mais do que umateorizao moral, as ticas do cuidado apre-sentam-se como filosofias de aco, como res-posta concreta s necessidades de pessoas con-cretas, de pessoas ao seu cuidado.

    Por razes de afirmao tcnica e profis-sional, os valores de educao e trabalho so-cial evoluram numa linha de ruptura com asprticas de caridade e de assistencialismo com-passivo. Mas a verdade que estes valores dadedicao desinteressada ao prximo, da ge-nerosidade e mesmo da misericrdia, consti-tuem parte integrante da memria social des-tas profisses, representando um patrimnioprecioso que, como tal, merece ser objecto deactualizao e de apropriao crtica, evitandoassim correr riscos de tecnicssimo excessivoe de funcionarizao e/ou proletarizao dafuno sociopedaggica.

    3. Padres de profissionalidade e dispo-sies tico-deontolgicas

    A entrada numa profisso como a de educa-dor social implica uma dupla incluso, a in-sero num sistema de servio pblico rele-vante mas tambm, e forosamente, o ingressonuma comunidade humana particular inte-grada por outros companheiros de profisso.Nessa medida, a tica profissional constituium factor de credibilizao e reconhecimentoexterno funcionando, ao mesmo tempo, comoreferncia interna, como elemento agregadore estruturante das prticas.

    O termo profissionalidade traduz essesentido de coeso identitria, remetendo paraos modos de ser e de fazer caractersticos deum grupo profissional. Por sua vez, toda a pro-fissionalidade deve ser exercida com profis-sionalismo, pautando a qualidade do seuexerccio por critrios de excelncia. O deverde profissionalismo qualifica e distingue a

    forma como cada profisso praticada, apli-cando-se a uma multiplicidade de actividadese contextos.

    A deciso sobre padres de profissionali-dade e profissionalismo constitui um dos in-dicadores mais importantes sobre a maturi-dade tica de uma profisso, expressando ocompromisso dos profissionais perante si-mes-mos e perante os outros, os educandos, os co-legas, a instituio e a comunidade. Um com-promisso que dever encontrar traduo noplano normativo, atravs de declaraes, car-tas ou cdigos de conduta moral. A formali-zao de procedimentos e as mediaes insti-tucionais consequentes so fundamentais paragarantir a materializao do poder instituinteda tica, para que a liberdade se engrene efec-tivamente no real e o transforme, conforme su-blinha Emmanuel Lvinas, justamente ogrande terico do face a face. A liberdadegrava-se na pedra das tbuas onde se inscre-vem leis, existe pela incrustao de uma exis-tncia institucional. A liberdade est ligada aum texto escrito, destrutvel, por certo, mas du-rvel, em que fora do homem, se conserva aliberdade para o homem (Lvinas:1992, 270).

    Note-se, no entanto, que falamos de leismorais e no de leis jurdicas. O factor deconstrangimento ligado obedincia a cdi-gos e a regulamentos deontolgicos leva a quea deontologia seja muitas vezes confundidacom uma esfera do direito. Mas a diferenade situarmos a deontologia na esfera da ticae no na esfera do direito prende-se precisa-mente com a remisso para um universoidentitrio, implicando que os deveres de pro-fissionalismo sejam subordinadas aos crit-rios de profissionalidade em referncia. Ex-pressando deveres de profissionalidade deidentidade profissional, as obrigaes de ca-rcter deontolgico reportam-se apenas co-munidade profissional a que dizem respeito,constituindo nessa medida verdadeira ex-presso de autonomia. O cumprimento ou nocumprimento das regras deontolgicas no passvel de jurisdio pblica. Neste caso, a in-

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    terdio moral desempenha uma funo es-sencialmente pedaggica e prospectiva, res-pondendo a exigncias de comportamento in-teriorizadas pelos prprios sujeitos de aco.S assim a deontologia poder funcionar comoelemento estruturante do saber profissional e,simultaneamente, como factor de credibiliza-o pblica. Pela mesma ordem de razes, ocomportamento inadequado de um profissio-nal, dizendo respeito esfera de responsabi-lidade individual, acaba, na verdade, por ser le-sivo para a imagem de toda a profisso.

    Reconhecendo o carcter reflexivo que sub-jaz interdio moral, optamos por falar emdisposies tico-deontolgicasque, seguindoa matriz aristotlica, no so nem afeces nemcapacidades, mas sim qualidades de carcterafirmadas no plano da aco concreta. No bastaconhecer e cumprir regulamentos, ficar como-vido em situao ou estar apto a, preciso quese esteja disposto a agir e a responder por.Ser capaz de praticar o bem no garantia deque o bem seja, realmente, praticado. Por ou-tro lado, possuir uma capacidade para fazer algo,no autoriza a que essa capacidade seja accio-nada em qualquer circunstncia, a qualquercusto. A violncia e a perverso que marcammuitas das relaes de poder so geradas a par-tir desse equvoco e, importa lembr-lo, as rela-es pedaggicas so relaes de poder. a pr-pria identidade profissional que fica em causaquando a prtica profissional fica refm da for-matao normativa ou de habilidades de tipomeramente instrumental.

    O carcter nico e especial da prtica pe-daggica reside na trama intersubjectiva ge-rada no encontro entre liberdades separadasque mutuamente se acolhem e respeitam. Su-blinhamos trs princpios orientadores dasdisposies tico-deontolgicas dos educado-res sociais que nos parecem basilares:

    a) Crena incondicional na perfectibili-dade de todos os seres humanos, na suaaptido intrnseca de aperfeioamento.b) Educabilidade perseverante, subordi-nada ao primado tico da alteridade, ao res-

    peito do Outro como fim em si-mesmo.c) Humildade de compromisso e/ou pa-cincia da vontade, evitando cobrar juntodos educandos direitos sobre o exercciodos deveres profissionais.

    Assumidos como postulados da razo so-ciopedaggica, como mximas de aco acei-tes priori, estes princpios devem funcionarcomo ideias reguladoras de toda a prtica pro-fissional numa perspectiva de permanenteprocura de excelncia, isto , tentando semprefazer bem e da melhor maneira possvel obem a que nos propomos. Partilhamos nestesentido da tese de Macintyre (2008), segundoa qual s a aposta em padres de excelnciapermite assegurar a qualidade interna da ac-tividade profissional. Esta aposta pressupe,desde logo, a valorizao do capital de co-nhecimento prtico das comunidades profis-sionais. Mas a verdade que a experincia pro-fissional s se converte em sabedoria quando reflectida e partilhada em contexto da rela-o inter-pares. Resgatar a fora da experin-cia implica reflectir sobre o vivido, capitali-zando memria colectiva. Sem esquecer, poroutro lado, que ao serem investidos de cons-cincia moral os sujeitos, neste caso os edu-cadores sociais, so inevitavelmente confron-tados as dimenses de ambivalncia, deincerteza e de inquietude inerentes a essa con-dio. Intensamente atravessada por interro-gaes, problemas e dilemas ticos geradoshumanos, com toda a sua complexidade e mis-trio, a prtica socioeducativa requer dispo-sies prprias de uma racionalidade prtica.

    Foi Aristteles (tica a Nicmaco, Livro VI-1103b26) quem primeiro chamou a atenopara a singularidade do pensamento prticoque, pelo seu carcter intrinsecamente din-mico e relacional, se distingue de outras for-mas de racionalidade. Na sua perspectiva, a vir-tude principal da sabedoria prtica aphronesis, uma noo equivalente ao queem linguagem latina se designa por prudn-cia e que serve para qualificar toda a aco

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    ponderada e sensata. Reconhece-se assim queo bem maior ou fim ltimo para que tudoanseia no pode ser definido prioride formaabsoluta, reclamando competncias de dis-cernimento no prprio decurso da aco. O di-logo entre as duas matrizes tericas, a aristo-tlica e a kantiana, revela-se fecundo tambmaqui. Ao identificar a razo prtica com oexerccio de uma vontade subordinada ao cons-trangimento da lei moral, Kant confronta-noscom uma concepo paradoxal do dever, ba-seada na ligao entre constrangimento eliberdade, entre autonomia e heterono-mia, remetendo-nos para a necessidade deajuizar em situao, onde as virtudes de pru-dncia ganham sentido pragmtico.

    Note-se que, assim definida, a phronesise/ou prudncia no constitui uma habilidadede tipo tcnico, mas sim uma virtude que nospermite pensar a dinmica de aco analisandointegradamente todos os seus constituintes e demodo a assegurar a passagem do optativoao im-perativo, antecipando a mudana desejada. Es-tamos portanto perante uma qualidade de ac-o irredutvel a lgicas de aplicao segundoo modelo meio-fim que suporta a racionali-dade instrumental. O conceito de aplicaosubjacente s ticas prticas ou ticas apli-cadas, transcende a tradicional dicotomia en-tre campo emprico e o campo especulativo,como mostrou Adela Cortina (1993).

    Neste sentido, afirmamos, com HannahArendt (2007), a necessidade de articular afaculdade de pensar criticamente, desafiandoo mundo comum, com a arte de bom sensoenquanto sexto sentido que, ao integrar oscinco sentidos num mundo comum, permiteque nele nos orientemos com sabedoria.Ainda segundo a mesma autora, a disposiopara o bom senso, para a capacidade de serconsciente desenvolvendo dilogo srio con-sigo prprio, indissocivel do sentido de in-tegridade pessoal, outra das virtudes ticas ma-triciais. No h dons que resistam perda deintegridade que perdemos quando perdemosa nossa capacidade mais comum de pensar e

    recordar (Arendt: 2007, 87). A capacidadepara ajuizar por si prprio, com sentido de in-tegridade, desenvolve-se no plano da aco en-quanto interaco. A relao de compromissocom Outro potencia o desenvolvimento de simesmo. A disposio para questionar as in-tenes interiores revela-se assim indissoci-vel de outra disposio fundamental, a dis-posio para o dilogo interprofissionalsolidrio. Os novos cenrios de aco socioe-ducativa, ligados a modelos de actuao emrede e valorizao de parcerias e consrciosde base territorial, confirmam a impossibili-dade de viver a prtica pedaggica como umexerccio solitrio. Como nota Sarah Banks(2004), a verdade que os valores profissio-nais saem reforados e clarificados do dilogointerprofissional enquanto dinmica de par-tilha e autorizao recproca.

    enquanto disposio de ser para outremque toda a disposio tica acaba por contribuirpara o potencial de quem a detm, salientandoainda que o desenvolvimento contnuo de dis-posies tico-deontolgicas constitui condioessencial de racionalidade prtica e/ou inteli-gncia prudencial. Uma racionalidade que fun-ciona como sabedoria simultaneamente poticae poltica que, ao convocar dons de hospitali-dade racional, permite que o educador socialseja capaz de abordar a realidade pelo seu ladomais fecundo e dinmico, valorizando e aju-dando a valorizar tudo o que na vida possa ali-mentar a relao de paz com a vida e favore-cer a confiana das pessoas em si mesmas, nosoutros, no mundo e no futuro.

    4. Educao social e tica de hospitalidade- Acolhimento, responsabilidade e bondade

    Na sequncia de tudo quanto foi afirmado ataqui, perspectivamos os desafios ticos da edu-cao social no quadro de uma tica da hos-pitalidade de inspirao levinasiana e aqui es-truturada em torno de trs valores essenciais,concebidos em articulao dinmica: acolhi-mento, responsabilidade e bondade. As noes

  • de hospitalidade e acolhimento so frequen-temente apresentadas em sentido equivalente,mas na verdade, como mostrou Derrida (1997),valorizada na sua dimenso antropolgica, acategoria de hospitalidade contm a noo deacolhimento, transcendendo-a, abrindo portasa um paradigma de relao humana indexadoao primado tico da alteridade, ao acolhimentodo outro enquanto Outro.

    Recorrendo experincia comum, a hos-pitalidade define-se pela disposio para rece-ber o hspede de modo a que este se sinta emnossa casa como se estivesse em sua prpriacasa, pela disposio para aceitar que o Outropossa fazer lei no espao da nossa autori-dade. O que, antes de mais, supe a posse dacasa, a referncia a um espao prprio. nestembito que se impe a necessidade de honrara hospitalidade do mundo, donde provm o ali-mento material e espiritual indispensvel aoexerccio de ser. Ganhamos conscincia dens mesmos, fazemo-nos histria, fruindo domundo habitado. Por isso to necessrio ga-rantir que todos os seres humanos possuam ascondies necessrias a uma relao feliz comtudo o que os rodeia.

    Paradoxalmente, porm, a aventura exis-tencial ganha sentido quando toda a riquezapossuda e fruda perde prioridade em face deoutrem, algum capaz de dar testemunho de simesmo, de nos falar, de nos perguntar coisas,de nos pr em questo. Ao contrrio do queacontece com as coisas que nos servem de car-burante essencial na manuteno dos meca-nismos vitais os alimentos, a casa e outrosbens materiais a exterioridade do rosto d tes-temunho de uma interioridade, o que faz todaa diferena. As memrias, os sonhos, as ideias,os segredos que povoam essa interioridade nopodem ser transmutados em substncia donosso corpo, como se fossem um alimento.

    Nem podem ser transformados em merasideias ou contedos da nossa conscincia. Issono significa que o Outro represente um li-mite ou uma ameaa integridade pessoal.Pelo contrrio, dando testemunho de realida-

    des nascidas fora de ns mesmos, a presenade outrem ensina, abrindo horizontes de sig-nificao inditos. No lugar de uma doaode sentido assistimos ento a uma sur-preendente, e mgica, recepo de sentido.Uma recepo intrinsecamente activa e enr-gica, que pe em conexo alma e corpo, ma-tria e esprito, teoria e prtica. que o aco-lhimento de uma ideia que no se confundecom a representao dessa ideia subverte qual-quer dicotomia conceptual, abrindo lugar aoutras lgicas de pensamento.

    Mas a presena de outrem no s interpelacomo apela ao mesmo tempo. Quando o en-contro interpessoal vivido com autentici-dade, o sujeito tocado pela situao da ou-tra pessoas ao ponto de se dispor a agir em seufavor. Podemos, certo, virar costas a apelo deoutrem mas no sem perda de inocncia. OOutro conta connosco, chama-nos para a res-ponsabilidade, como afirma persistentementeLvinas, lembrando que o lao social se apertana forma de compromisso com o destino deoutrem. E nesse vnculo que reside a verdadeda conscincia moral. A obedincia lei dorosto tem a fora do imperativo categricokantiano, sujeitando a conscincia ao exer-ccio de uma liberdade paradoxal e difcil. So-mos responsveis pelo Outro independente-mente de ele corresponder ou no a essaresponsabilidade, a resposta do Outro em re-lao a ns assunto dele (Lvinas, 1992).

    Ser responsvel pelo Outro desta maneirano significa substituir o Outro na sua prpriaresponsabilidade. No podemos tomar o lugarque lhe pertence ou arrogarmo-nos o direitode cobrar o exerccio dos seus prprios deve-res. Esta constatao parece-nos decisiva emtermos de conscincia socioeducacional. Apreocupao de agir em favor das outras pes-soas, contribuindo para o seu processo de mu-dana positiva, no pode conduzir tentaode querer mudar o Outro a todo o custo,como se a outra pessoa fosse um mero objectodo mundo ou uma obra nossa. Dai a impor-tncia da humildade de compromisso como

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  • disposio tica primordial. Uma autoridadeprofissional investida de responsabilidadetica torna-se uma autoridade bastante maisdifcil e exigente. No por acaso que se dizcom frequncia que a profisso de educador uma profisso impossvel, afinal trata-sede exercer autoridade pedaggica compor-tando-se como hspede do seu hspede. Masno residir aqui a grandeza, a excelncia par-ticular, de toda a interveno pedaggica?

    Comportar-se como hspede do seu hs-pede implica dominar a arte da passagementre optativo e imperativo, mobilizando empermanncia virtudes de saber prudencial. aqui que a pedagogia, neste caso a pedagogiasocial, se revela de importncia crucial. Ci-tando Serres (1993, 23), o jogo da pedago-gia nunca se efectua dois, viajante e destino,mas a trs. O terceiro lugar intervm a tantocomo o limiar da passagem. Ora, nem o ini-ciado, nem o iniciador, sabem muitas vezesqual o lugar ou o uso dessa porta. Um dia, emqualquer momento, cada um deles passa pelomeio desse rio lmpido, numa situao estra-nha de mudana de fase, que se pode chamarsensibilidade, palavra que significa a possi-bilidade ou a capacidade em todos os senti-dos. Uma sensibilidade que neste caso asso-ciamos excelncia da bondade.

    A bondade tempera o acolhimento e a res-ponsabilidade como um sopro de bem ou sub-til excesso da vontade que, ao mesmo tempoque faz transbordar toda a obrigao pessoal,profissional ou cvica, introduz elementos dedelicadeza, moderao e serenidade. A bon-dade no um acrescento mas um fermento.Parafraseando a exortao potica do poetaportugus Fernando Pessoa, para sermosgrandes teremos que nos dar inteiros, pondoquanto somos no mnimo que fazemos.Neste sentido, a bondade representa o sublimede todas as excelncias ticas, ajudando-nosa sustentar uma ideia de profissionalismo im-possvel de confundir com a percia tcnica oua simples obedincia ao formalismo da lei. Abondade define a essncia da aco motivada

    pelo respeito ao dever e no apenas por con-formao com o dever, de acordo com a dis-tino kantiana anteriormente assinalada.

    Alicerada nestes pressupostos, a expe-rincia intersubjectiva surge-nos como valortico por excelncia, sem que tal signifique quetenhamos que permanecer ao nvel do facea face, desvalorizando as mediaes norma-tivas e institucionais. O que preciso conse-guir assegurar, continuamente, a possibilidadede emergncia da intriga interpessoal, salva-guardando o lugar da desordem e da excepono prprio seio dessas mediaes necessrias. a que reside a verdadeira sabedoria. As ins-tituies socioeducativas justas sero aquelasque forem capazes de acolher o carcter sub-versivo prprio do encontro humano genuno,aquelas onde se possam fazer ouvir as vozesque reclamam, pessoalmente, justia. Arist-teles considerava a justia a mais completa dasexcelncias, mas lembrava tambm que a jus-tia s atinge a sua completude na relao comoutrem e em comunidade.

    So mltiplas as dimenses de hospitali-dade socioeducativa susceptveis de pondera-o tica, desde as atitudes relacionais, at configurao dos espaos fsicos, aos rituais detrabalho e de convvio. Justamente, porque nocentro das nossas preocupaes esto, devemestar, as pessoas e os seus problemas e importaatender qualidade tica dos sistemas e das es-truturas que suportam a sua dinmica exis-tencial, criando lugares de acolhimento, res-ponsabilidade e de bondade. Porm, seja emque mbito for, as prticas de hospitalidade po-dem no passar de simples tcnicas de hos-pitalidade ao servio de operaes de cos-mtica social que, em rigor, constituem umaperverso da verdadeira hospitalidade.

    No possvel receber no nosso espaosem interrupo de rotina ou risco de desas-sossego. A experincia de hospitalidade ver-dadeira pressupe por isso a disposio para aruptura e para a aprendizagem. Nada preparamelhor para dialogar com o imprevisvel e oindecidvel do que a relao que nos leva a aco-

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  • lher o Outro. O futuro est cheio de surpresase assim tambm o Outro, uma vez que o te-nhamos reconhecido na sua alteridade abso-luta. O existir-para como o viver-rumo-ao-futuro: existncia cheia de antecipao, umaexistncia consciente do abismo entre o futuroprevisto e o futuro que vir a ser, este fossoque, como um imane, atrai o si-prprio em di-reco ao Outro, do mesmo modo que atrai avida em relao ao futuro, transformando avida numa actividade de vitria, de supera-o e de ultrapassagem (Bauman: 2007, 63).

    Na verdade, mais importante do que ten-tar ser o melhor do mundo o melhor tc-nico, o melhor projecto a melhor organizao procurar ser o melhor para o mundo. esse o sentido de excelncia que, em nosso en-tender, subjaz tica socioeducacional e con-figura os deveres de profissionalidade dos edu-cadores sociais.

    5. Consideraes finais

    Indissocivel da pedagogia social enquanto sa-ber cientfico enquadrador da racionalidadesocioeducacional e apoiada na articulao di-nmica entre as dimenses teleolgica, deon-tolgica e prudencial da aco humana, a ticaatravessa todos os domnios da prtica profis-sional dos educadores sociais, constituindo umesteio fundamental da sua profissionalidade.

    Conforme foi sendo sublinhado, a educa-o implica sempre uma relao de hospitali-dade e de compromisso com o Outro que ou-trem e que, no caso concreto da educaosocial, tende a apresentar-se sob a forma, porvezes extrema, de vulnerabilidade e carnciahumana, apelando nessa medida para o exer-ccio contnuo, prudente, sensvel e lcido dasdisposies de carcter. A resposta a proble-mas e dilemas ticos emergentes da prtica no susceptvel de receiturio, nem diz respeitoa necessidades excepcionais, mas sim ao di-logo reflexivo com as situaes do quotidianoprofissional, apelando para uma linha de con-tinuidade perseverante entre os universos de

    fundamentao e de aplicao, entre os planosda teoria e da prtica. Apelando, enfim, paramentalidades hospitaleiras. Porque, em rigor,na defesa de uma tica da hospitalidade oque est em causa a afirmao da tica comohospitalidade, como notou Derrida (1997).Fundada na relao interpessoal, a tica aco-lhimento, responsabilidade e bondade.

    Iluminada por valores de hospitalidade re-lacional, a tica inscreve-se no interior das pr-prias dinmicas de aco que o mesmo di-zer no interior da conscincia dos prprioseducadores sociais, aqui valorizados na ple-nitude da sua condio de autores, actores enarradores. Neste entendimento, importa queos postulados de perfectibilidade e educabi-lidade sejam assumidos tambm numa lgicade desenvolvimento e formao profissional.O respeito pela dimenso de autor que h emcada actor comea pelo modo como valoriza-mos o Outro mais prximo, o educando, mastambm o colega ou qualquer outro compa-nheiro de servio. Nada substitui a apreciaopositiva feita pelos pares, em contextos de coo-perao solidria. Nesse sentido, a partilhade valores tico-profissionais, subordinados auma perspectiva teleolgica, constitui condi-o de autonomia profissional, mas importater em conta que esses valores ou ideias-guiaesto j muitas vezes presentes no patrim-nio das organizaes e das comunidades,como herana que pede renovao e actuali-zao.Uma profisso sem narrativas prprias,sem memria social, uma profisso pobreem sentido de identidade.

    A reflexo em torno de questes de tica,moral e deontologia, convocando as dimensesideais do deve ser, tende a dar origem a dis-cursos sedutores mas por vezes demaggicos,favorecendo fenmenos de moda e de cosm-tica social que, na verdade, pervertem a ver-dadeira exigncia tica. Estes discursos so par-ticularmente apelativos em tempos deincerteza, de desencanto e de frustrao pes-soal e profissional, mas so totalmente in-compatveis com uma cultura de responsabi-

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  • lidade relacional vinculada ao primado ticoda alteridade. O que, por outro lado, como vi-mos, significa que a interpelao tica no podedivorciar-se da linguagem da justia, onde o ou-tro o qualquer um. Aquele que nos fala enos interpela directamente atesta a presenado terceiro e de toda a humanidade, recon-duzindo-nos assim a essncia da experinciasocial. O sentido de solidariedade que subjaze orienta o telos da educao social no trans-cende as noes redutoras de lao social, liga-das aos modos convencionais de coexistncia.

    E assim que, na qualidade de profissio-nais da relao humana, funcionam comoagentes de hospitalidade ao servio de umasociedade que seja, ela mesma, hospitaleira.Isto , uma sociedades vocacionada para o aco-lhimento universal, capaz de transformar apluralidade do humano em valor de plura-lismo, garantindo condies de vida plena-mente fruda, examinada e socializada a todasas pessoas, sem excepo.

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    direccin de la autora: Isabel Baptista, Pro-fessora Associada da Universidade Catlica Por-tuguesa - Porto (Faculdade de Educao e Psicolo-gia) Centro Regional do Porto. Rua Diogo Botelho,1327. 4169-005 Porto.Correo electrnico: [email protected]

    Fecha de recepcin del artculo: 28.III.2011Fecha de revisin del artculo: 29.III.2011Fecha de aceptacin del artculo: 10.VI.2011

    como citar este artculo:

    Baptista, I. (2011). tica e Educao Social in-terpelaes de contemporaneidade, en PedagogaSocial. Revista Interuniversitaria, 19, pp. 37-49.

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