01-9 - Ética e psicologia comportamental

14
9 Ética e psicologia comportamental Marilda Novaes Lipp As profissões que lidam com a vida do ser humano, em suas implicações físicas e psicológicas. cada vez mais sentem a necessidade de um código de ética forte (Turri, 1988; Pereira, 1991; Custer, 1994; Lee. 1994) que delimite o exercício da profissão e que proteja o usuário destes serviços. Porém além de um código suficientemente abrangente para cobrir os inúmeros conflitos que surgem, e específico suficientemente para oferecer diretrizes em momentos mais complicados, aparece também a necessidade de se fornecer aos profissionais maiores esclarecimentos quanto às normas já existentes. Francisco (1991) revela, por exemplo, que um grande número das denúncias encaminhadas aos conselhos regionais e de psicologia e ao CFP indicaram a falta de compreensão dos princípios abordados pelo Código de Ética dos Psicólogos. Não parece suficiente somente se possuir um código adequado mas também que se possibilite uma reflexão sobre como este código pode ser vivenciado e integrado ao cotidiano da ação profissional. Na área da psicologia, o cuidado com as questões éticas tem sido acentuado pois é importante levar em conta o potencial do impacto da ação terapêutica nos valores, ideais e estilo de vida dos pacientes. Embora este tópico seja controvertido e seja comum se afirmar que o terapeuta deve sempre respeitar os valores e características do paciente, estudos revelam que ao fim da terapia é comum se verificar uma convergência dos valores do paciente para aqueles do terapeuta (Hamblin, Beutler, Scogin e Corbishley, 1993). Se isto é verdadeiro, então, dentre todas as outras razões mais óbvias para se oferecer normas de condutas, certamente necessidade existe de se oferecer diretrizes aos pscó1ogos, principalmente aos com menos experiência, quanto a como evitar excessos e como garantir a autonomia do modo de pensar de sua clientela. Esta, por certo, é somente uma das razões, e uma razão muito pouco reconhecida. A preocupação constante com o respeito pela individualidade, valores culturais e religiosos do paciente tem gerado um número grande de publicações internacionais. Por exemplo, em 1974. Lorion publicou um trabalho de pesquisa em que as variáveis paciente-terapeuta, em casos de o paciente ser de classe socioeconômicocultural muito baixa, foram enfocadas. Em 1982 o livro de McGoldrick, Pearce e Giordano revelou as dificuldades e as peculiaridades que devem ser levadas em consideração ao se fazer terapia familiar com pessoas de outras culturas. Em 1985 surge o trabalho de Root com diretrizes para a terapia com pacientes de origem asiática e em 1988 Comas-Diaz e Griffith sugeriram diretrizes para avaliação de saúde mental levando em conta os aspectos transculturais dos casos. Schaie (1993) publicou um trabalho que se constitui de diretrizes para pesquisadores e clínicos no que se refere ao atendimento psicológico de populações de culturas diferentes dentro 110 Bernard Rangé (Org.)

Upload: rayssa-souza

Post on 03-Jan-2016

320 views

Category:

Documents


1 download

TRANSCRIPT

Page 1: 01-9 - ÉTICA E PSICOLOGIA COMPORTAMENTAL

9

Ética e psicologia comportamental Marilda Novaes Lipp

As profissões que lidam com a vida do ser humano, em suas implicações físicas e psicológicas. cada vez mais sentem a necessidade de um código de ética forte (Turri, 1988; Pereira, 1991; Custer, 1994; Lee. 1994) que delimite o exercício da profissão e que proteja o usuário destes serviços. Porém além de um código suficientemente abrangente para cobrir os inúmeros conflitos que surgem, e específico suficientemente para oferecer diretrizes em momentos mais complicados, aparece também a necessidade de se fornecer aos profissionais maiores esclarecimentos quanto às normas já existentes. Francisco (1991) revela, por exemplo, que um grande número das denúncias encaminhadas aos conselhos regionais e de psicologia e ao CFP indicaram a falta de compreensão dos princípios abordados pelo Código de Ética dos Psicólogos. Não parece suficiente somente se possuir um código adequado mas também que se possibilite uma reflexão sobre como este código pode ser vivenciado e integrado ao cotidiano da ação profissional. Na área da psicologia, o cuidado com as questões éticas tem sido acentuado pois é importante levar em conta o potencial do impacto da ação terapêutica nos valores, ideais e estilo de vida dos pacientes. Embora este tópico seja controvertido e seja comum se afirmar que o terapeuta deve sempre respeitar os valores e características do paciente, estudos revelam que ao fim da terapia é comum se verificar uma convergência dos valores do

paciente para aqueles do terapeuta (Hamblin, Beutler, Scogin e Corbishley, 1993). Se isto é verdadeiro, então, dentre todas as outras razões mais óbvias para se oferecer normas de condutas, certamente necessidade existe de se oferecer diretrizes aos pscó1ogos, principalmente aos com menos experiência, quanto a como evitar excessos e como garantir a autonomia do modo de pensar de sua clientela. Esta, por certo, é somente uma das razões, e uma razão muito pouco reconhecida. A preocupação constante com o respeito pela individualidade, valores culturais e religiosos do paciente tem gerado um número grande de publicações internacionais. Por exemplo, já em 1974. Lorion publicou um trabalho de pesquisa em que as variáveis paciente-terapeuta, em casos de o paciente ser de classe socioeconômicocultural muito baixa, foram enfocadas. Em 1982 o livro de McGoldrick, Pearce e Giordano revelou as dificuldades e as peculiaridades que devem ser levadas em consideração ao se fazer terapia familiar com pessoas de outras culturas. Em 1985 surge o trabalho de Root com diretrizes para a terapia com pacientes de origem asiática e em 1988 Comas-Diaz e Griffith sugeriram diretrizes para avaliação de saúde mental levando em conta os aspectos transculturais dos casos. Schaie (1993) publicou um trabalho que se constitui de diretrizes para pesquisadores e clínicos no que se refere ao atendimento psicológico de populações de culturas diferentes dentro

110

Bernard Rangé (Org.)

de um mesmo país. Além disto, recentemente a revista American Psychologist (1993a) tornou público um conjunto de diretrizes para nortear as avaliações de casos de custódia de crianças cujos pais estão se divorciando e, em abril de 1994. Haldeman escreveu um artigo controvertido sobre a ética de se fazer terapia para mudar a orientação sexual de homossexuais. No Brasil, a não ser as publicações do CRP, que são excelentes para o esclarecimento e especificação de normas éticas, não se encontram muitos artigos, dentro das publicações em psicologia, que abordem o importante tema da ética do psicólogo clínico explicitamente. Por exemplo, duas publicações brasileiras, muito interessantes, cuja leitura interessa a todos (A for,nação profissional do psicoterapeuta, de Cardoso (1985) e Ser terapeuta, organizado por Porchat e Barros (1985) não contêm capítulos explícitos sobre ética, embora este assunto esteja naturalmente implícito em vários momentos destes livros. Nos Estados Unidos, a conduta ética do psicólogo clínico é extremamente supervisionada, a ponto de, antes de se obter o registro de psicólogo (que só pode ser atribuído após dois anos de prática supervisionada depois de formado). é necessário um atestado de

idoneidade ética do indivíduo, concedido por três psicólogos já registrados. Lá, também, se um membro da American Psychological Association (APA) é julgado culpado de ação não ética, não só ele perde o registro e fica proibido de clinicar, mas também é expulso da APA, a qual envia no fim do ano, para todos os seus associados, uma lista dos membros expulsos e a razão da expulsão. Há de se convir que mesmo com todos os cursos sobre ética e exigências de conhecimento dos códigos, alguns psicólogos na sua condição de ser humano, também têm certas dúvidas em momentos mais difíceis e às vezes cometem erros e transgridem as normas sem reconhecerem que o estão fazendo. Por isto, torna-se importante publicar diretrizes que possibilitem ao psicoterapeuta uma atuação mais adequada em casos mais complexos e menos claros. Esta preocupação se manifestou, por exemplo, quando o Departamento de Assuntos Referentes a Grupos Étnicos Minoritários da APA publicou em 1991 (American Psychologist, 1993b) um conjunto de diretrizes para psicólogos que atendem grupos minoritários, caracterizados na publicação em pauta como “índios, negros de descendência africana, hispânicos/latinos, asiáticos, judeus e grupos religiosos do tipo Menonite, Amish etc. A publicação é interessantíssima, e deve ser lida por todos interessados

Page 2: 01-9 - ÉTICA E PSICOLOGIA COMPORTAMENTAL

nas implicações das diversidades culturais do nosso país, pois direciona os terapeutas americanos a respeitarem de todos os modos possí vei

a cultura e os valores destes grupos, inclusive normas familiares, crenças e fatores políticos. Um outro exemplo do cuidado especial que está se dando internacionalmente à necessidade de diretrizes que norteiem a ação do psicólogo em casos especiais é dado por Custer (1994). Custer expôs as principais idéias discutidas por vários psicólogos durante o Congresso da APA em Los Angeles, mostrando haver congruência quanto a como os princípios éticos feitos explícitos por meio de códigos ou de diretrizes podem ser de imensa valia para direcionar a ação dos terapeutas em situações mais complicadas. As aplicações éticas discutidas dizem respeito, dentre outras áreas, a:

— abuso físico de crianças, em que o terapeuta é eticamente obrigado a relatar o problema para a autoridade competente imediatamente após tomar conhecimento do fato; — abuso de pessoas idosas, acima de 65 anos de idade. Neste caso o abuso pode ser físico ou mental e deve ser relatado dentro de 36 horas do ocorrido; — casos em que o paciente declare que vai assassinar alguém, a obrigação ética do terapeuta é de avisar a pessoa em perigo; — casos de internação não voluntária, em que o terapeuta deve manter registro de todas as interações com o paciente a fim de que, se for acusado de arbitrariedade, ele possa apresentar os registros; — situações de conduta sexual inadequada por parte do paciente, em que convites ou sugestões ou tentativas de sedução estão presentes. Neste caso o terapeuta deve ter muita sensibilidade e cuidado para lidar com a ação, tomando nota de todas as interações ocorridas e

ações por ele tomadas. É aconselhável que discuta o caso com outro psicólogo, mantendo a identidade do paciente em sigilo. Às vezes é recomendado que o paciente seja encaminhado para outro terapeuta. porém isto só deve ser feito após uma tentativa de se resolver o problema, a fim de não caber a queixa de que o terapeuta abandonou o pacien te;

— casos de pacientes violentos ou agressivos, em que o terapeuta deve aprender técnicas de restrição, não violentas, do paciente e atender estas pessoas somente quando mais alguém estiver por perto. Não impedir que um paciente cometa uma violência ou se machuque é tão

Psicoterapia comportainental e cognitiva

11]

antiético como uma ação violenta por parte do terapeuta; casos em que o paciente morre e se torna a atenção do público. O terapeuta não pode falar com jornalistas sobre a terapia de uma pessoa mesmo depois de morta.

Ética na terapia com portamental

A história da Humanidade mostra que ela foi construída pelo uso do poder e do controle. Desde o início, os povos mais poderosos têm utilizado reforço e punição, dos mais variados tipos, para controlar o comportamento dos grupos menos poderosos e mais destituídos. O exercício do poder, nestes moldes, resultou sempre cm aumentos dos bens disponíveis aos grupos controladores e. conseqüentemente, na manutenção ou até no aumento do poder de tais grupos e enfraquecimento dos menos poderosos. Periodicamente, este aumento contínuo do poder e dos bens dos grupos minoritários foi revertido pelas guerras e rebeliões, quando, então, muitas vezes uma inversão de quem detinha o poder ocorreu. Uma vez ocorrida a inversão e mudança de em que mãos os bens e o poder se encontram, um novo processo sempre se inicia com os novos poderosos controlando a distribuição de reforços e punição, até que mais uma vez o poder mude de mãos. Vê-se, então, que o uso do reforço e punição tem sido feito desde sempre para direcionar a Humanidade. Em inúmeras situações este uso tem sido feito para dominar e abusar dos direitos de certos grupos e povos. Martin e Pear (1978) sugerem que talvez esta tradição histórica, aliada à história pessoal de cada um que muitas vezes envolve abuso do poder por parte de outros para benefício próprio e contra pessoas de algum modo menos favorecidas, leve as pessoas a reagirem negativa- mente a quatquer tentativa mais franca e objetiva de controle do comportamento. É consideravelmente mais fácil, de um modo geral, exercer controle do comportamento de alguém por meios mais suaves e indiretos, levando a pessoa a pensar que está se autodeterminando, do que por meio da prática objetiva e franca, quando a pessoa pode se sentir, às vezes, controlada, O domínio dos meios mais indiretos não deve ser subestimado, pois é mais difícil de ser identificado e, portanto, não há como o indivíduo, que está sendo controlado, se opor ou se libertar daquilo que ele não percebeu. Na maioria das vezes, esta pessoa, que está sendo totalmente controlada por meios indiretos, sente-se orgulhosa de sua autodeterminação e livre-arbítrio e critica tentativas científicas

de mudanças comportamentais planejadas. É esta, provavelmente, a maior razão pela qual os princípios de modificação de comportamento, que deram origem à terapia comportamental, são temidos e criticados, pois eles se originam nos estudos das leis naturais que controlam o comportamento. A terapia comportamental específica e enfaticamente professa

Page 3: 01-9 - ÉTICA E PSICOLOGIA COMPORTAMENTAL

que não só o comportamento humano é passível de ser modificado e controlado, mas também que é desejável que isto ocorra. Esta proposição leva a oposições filosófjcas de pessoas que preferem ignorar as leis naturais do comportamento humano que operam no universo através dos milênios, quer sejam elas codificadas dentro da rubrica de “terapia comportamental” quer sejam elas deixadas não identificadas a terem seu efeito incisivo no mundo. A terapia comportamental sofre críticas de dois tipos; as puramente filosóficas e as que se referem à sua metodologia. Algumas das objeções mais comumente mencionadas quando a terapia comportamental é discutida se referem a; (1) o controle do comportamento humano e suas implicações para o livre-arbítrio; (2) a escolha de objetivos e de comportamentos-alvo ou metas, a serem trabalhados; (3) o conceito de chantagem, manipulação do comportamento e aspectos mecanicistas e impessoais.

O livre-arbítrio

A objeção à terapia comportamental, no que se refere ao desrespeito ao livre-arbítrio, é filosófica e, talvez, seja a que mais cause impacto nas pessoas que desconhecem alguns conceitos fundamentais desta terapia e que temem o controle comportamental. A doutrina do livre-arbítrio professa que a pessoa pode proceder a escolha e moldar seu destino independentemente de sua herança genética e da influência exercida pelo seu meio ambiente. O argumento usado é que o comportamento humano é livre ou, pelo menos, não totalmente determinado, portanto, é inútil tentar controlá-lo, pois a pessoa pode sempre ter livre-arbítrio para agir diferentemente, O que tem mantido esta crítica é o fato de que ela nunca pode ser provada como errada, pois existe sempre a possibilidade de, em casos dados como exemplo, o comportamento fugir às previsões feitas. Isto, naturalmente, ocorre até mesmo nas ciências exatas e. mais ainda, na psicologia, pois é quase impossível, em dado momento, reconhecer todas as variáveis que estão em ação. Filosoficamente é interessante estudar se o comportamento humano é, de fato, completamente controlável por variáveis ambientais aliadas à ge

112

Bernard Rangé (Org.)

nética, porém na prática o que se verifica é que um bom controle sobre o comportamento é atingível e desejável em situações as mais variadas que podem gerar mudanças positivas na vida do ser humano e da sociedade.

É fácil se verificar como uma afirmação contra o controle do comportamento e a favor da autodeterminação torna-se fascinante, com a rápida conclusão de que toda tentativa de controle é antiética. Garry e Pear (1978) argumentam que toda profissão de ajuda (educação, psicologia, psiquiatria) só podem atingir seus objetivos se os profissionais envolvidos exercerem controle sobre o comportamento. O objetivo dos professores, por exemplo, é moldar o comportamento dos alunos para que eles se beneficiem do que o ambiente oferece, inclusive por meio da aprendizagem da leitura. O objetivo do psicólogo ou do psiquiatra é mudar o comportamento do paciente para que ele passe a funcionar mais apropriadamente do que antes da ajuda terapêutica. No entanto, a maioria dos profissionais não admitem que eles controlam o comportamento dos pacientes. Preferem afirmar que estão simplesmente ajudando-os a alcançar controle sobre seu próprio comportamento. Na realidade, mesmo quando a escolha da mudança é governada, aparentemente, só pelos valores e crenças do paciente, necessário se torna lembrar que estas crenças e valores formam o ambiente interno da pessoa (Lipp, 1984) o qual foi moldado por contingências externas, ocorridas durante o desenvolvimento do ser humano. Assim sendo, o livre- arbítrio não é livre, pois depende da história de condicionamento, de reforço e punição do indivíduo através dos anos, aliada à herança genética por ele trazida. Mesmo nas terapias que professam crescimento interior, auto-atualização e insights, controle da situação sempre existe por parte do terapeuta, até mesmo quando o terapeuta seleciona certas verbalizações para serem interpretadas. Como O’Leary e Wilson (1975) mencionam que a questão de relevância não é se o comportamento do paciente deve ser ou não controlado, pois isto é inquestionável, mas sim se o terapeuta compreende que ele está exercendo este controle. Enquanto na terapia comporta- mental as metas terapêuticas são explicitadas, nas terapias psicodinâmicas é o insight que é valorizado. Insight este que é certamente influenciado pelo sistema de valores e orientação teórica do terapeuta. O método sutil utilizado nas terapias psicodinâmicas provavelmente resulta em uma manipulação bem maior do que o método direto e explícito utilizado pelos terapeutas comportamen tais.

A noção de um homem passivo perante as contingências ambientais é sempre mencionada quando se critica a terapia comportamental, porém, como Bandura já

mencionou em 1973, o ambiente que molda as contingências existe devido ao comportamento. Assim sendo. o comportamento cria o ambiente que então vem a influenciar o comportamento em um processo de interação contínua.

É importante pensar que o indivíduo que procura uma terapia já está sendo controlado pelo reforçamento não planejado de comportamentos inadequados. Reforçamento este que deu origem ou serviu para manter o problema emocional da pessoa. A terapia comportamental age, assim, no sentido de oferecer ao ser humano mais poder sobre o seu próprio comportamento e, conseqüentemente, aumenta o seu livre-arbítrio. Deste modo pode-se garantir que a terapia comportamental contribui para aumentar a liberdade pessoal e produzir maior bem-estar ao ser humano. Considere-se, por exemplo, dentre inúmeras que poderiam ser mencionadas, situações de fobia, em que a pessoa se priva de determinadas

Page 4: 01-9 - ÉTICA E PSICOLOGIA COMPORTAMENTAL

atividades devido às suas limitações, como o caso verídico de Walter, um engenheiro, professor universitário. que desenvolveu uma fobia à sala de aula. Este professor procurara uma terapia de base analítica e há seis meses se encontrava em processo terapêutico sem grandes mudanças em seu estado. Quando nos procurou encontrava-se ainda afastado de suas atividades de docência, situação esta que não poderia perdurar por muito tempo mais. Uma terapia comportamental baseada em dessensibilização sistemática foi implementada e dentro de quatro sessões Walter se encontrava pronto para retornar à sala de aula. A satisfação e o senso de auto-realização experimentados por este paciente bem atesta a favor de uma intervenção mais direta e explícita e demonstra como a terapia comportamental contribui para um aumento do poder e da capacidade de escolha da pessoa. Não se pode esquecer também como a terapia comportamental contribui para o desenvolvimento de uma maior autodeterminação quando ela é usada no tratamento de psicóticos e de pessoas portadoras de deficiência mental. Como Hardy e CulI (1974) mencionam, exceto por pacientes mais prejudicados, muitas vezes hospitalizados, que têm a maioria das suas escolhas já feitas pelas instituições, as pessoas, em geral, concordam com os objetivos de programas comportamentais, pois elas querem melhorar.

A escolha de objetivos e metas terapêuticas: quem a faz?

A crítica da terapia comportamental como mecanicista e maquiavélica reflete somente a extrema relutân

Psicoterapia co;nportarnental e cognitiva

113

cia de determinadas pessoas realmente estudarem o processo psicoterápico de abordagem comportamental. Quando este estudo ocorre, tal visão é destruída, pois fica claro que os alvos ou metas terapêuticas na abordagem comportamental de modo algum são impostos arbitrariamente a pessoas indefesas. Todo objetivo terapêutico é discutido com o paciente e é ele, e somente ele, quem determina em que direção e o quanto ele deseja mudar. No caso de pessoas incapacitadas, como deficientes mentais e psicóticos, tal decisão é tomada pelas pessoas responsáveis de comum acordo com o terapeuta. Este pode até discordar e resolver que seus próprios princípios não lhe permitem trabalhar para a concretização dos objetivos do paciente, porém nunca ele poderá sobrepor seus próprios objetivos aos do cliente. Certamente, o psicólogo exerce influência sobre a escolha que o paciente faz porque isto é parte intrínseca do processo psicoterápico, uma vez que raramente a pessoa procura terapia sabendo com precisão qual o seu problema e para onde ela quer caminhar. Contrário ao que muitos críticos alegam, não cabe ao psicólogo comportamental o estabelecimento de objetivos, mas sim auxiliar o paciente a ser mais específico em sua queixa que, na grande maioria das vezes, é muito geral, a fim de que objetivos possam ser formulados. A escolha de metas terapêuticas é questão de valores pessoais e o psicólogo comportamental respeita sempre as decisões do paciente, embora ele deva mostrar o seu ponto de vista quando necessário. Compete a ele abrir um leque de opções para o indivíduo, auxiliando-o a produzir várias possibilidades de ação, analisando as conseqüências positivas e negativas de cada uma e, então, aceitar a decisão do paciente. Logicamente o terapeuta não pode se despir de seus próprios valores durante este processo, por isto em casos em que julgue necessário ele deve explicitar quais são eles a fim de que o paciente saiba que poderá haver um viés nas opiniões fornecidas. Nos casos de pessoas institucionalizadas, uma comissão de direitos humanos, ou de ética, assiste na formulação das metas terapêuticas. No caso de crianças, as metas terapêuticas são sempre formuladas conjuntamente com os pais, os quais auxiliam no tratamento dos filhos. Adicionalmente, é importante lembrar que a terapia comportamental baseia-se em princípios, técnicas e procedimentos sobre como produzir mudanças, ela não estipula a priori “quem” “deve mudar “qual” comportamento, “por quê”e”quando” (O’LearyeWilson, 1975). Estas decisões são tomadas pelo cliente. Ao terapeuta compete identificar pessoas e estímulos ambientais que estejam mantendo o problema e fornecer os meios, su geri

técnicas e procedimentos a serem utilizados para que os objetivos do paciente sejam alcançados. O terapeuta comportamental diferencia entre seus conhecimentos científicos quanto à administração de contingências e seu sistema de valores pessoais.

Chantagem e aspectos mecanicistas /impessoais

Muitas vezes a crítica ética não se refere ao controle do comportamento exatamente, mas ao modo como a terapia comportamental é conduzida. Argumenta-se que não é ético planejar o controle do comportamento por meio da dispensa calculada de reforços socioafetivos e que o terapeuta comportamental é frio e distante em suas interações. Embora se encontrem terapeutas comportamentais frios e distantes também se encontram analistas assim. Tais características pertencem mais ao âmbito pessoal do que ao da terapia comportamental. O terapeuta trabalhando na abordagem comportamental em geral é amigável e genuinamente interessado na pessoa do paciente. O controle planejado do comportamento humano não é mecânico nem impessoal dentro da terapia comportamental, na realidade, ele é visto como uma vantagem, pois é a falta de um plano de administração de contingências que pode levar ao desencadeamento de comportamentos-problema, reforçados inadvertidamen te.

Page 5: 01-9 - ÉTICA E PSICOLOGIA COMPORTAMENTAL

A crítica do método na terapia comportamental prevalece na terapia infantil quando se questiona: (1) o reforço não poderia enfraquecer a criança diante do mundo?; (2) quando objetos materiais, ou vantagens, são usados como reforços, a criança na vida adulta não valorizará somente coisas materiais?; (3) Por que reforçar a criança por algo que ela deveria estar fazendo espontaneamcnte?; (4) o uso do reforço não se constitui em chantagem emocional?; (5) o método mecanicista comportamental não colide com uma moral verdadeira?; (6) é certo usar amor e demonstrações de prazer só nos momentos em que a criança faz o que queremos? e (7) será que o método comportamerital não serve somente aos interesses dos pais e professores que, então, se livram da obrigação de genuinamente entenderem as crianças com problemas? Algumas destas questões éticas foram levantadas 20 anos atrás por Krumboltz e Krumboltz e, ainda hoje, elas são formuladas repetidamente por muitos pais e profissionais de outras abordagens.

Não há dúvida de que o método comportamental é extremamente eficaz na modificação de comportamen

114

Bernard Rangé (Org.)

tos e que potencialmente ele possa ser usado de modo antiético mas não é o método comportamental que deve ser temido e sim o modo como ele é usado, para quê, com quem e em que circunstâncias. Justamente porque os princípios comportamentais são tão poderosos, eles podem sim ser usados para fins de obtenção de poder e de manipulação, como também podem ser utilizados para melhoria da qualidade de vida dos seres humanos, aliviando seus problemas e promovendo uma maior integração na sociedade. A fim de evitar os abusos associados a qualquer técnica ou procedimento que dêem resultados e promover o uso adequado dos princípios da aprendizagem na situação terapêutica, necessário se torna estabelecer normas e limites, bem como oferecer diretrizes éticas para os que praticam a terapia comportamental. A necessidade de se estabelecer normas éticas que possam nortear o exercício da terapia comportamental no Brasil tem sido discutida há mais de uma década (Lipp, 1980, 1984). Esta é uma proposta bastante controvertida, pois do ponto de vista de alguns comportamentalistas isto significaria a submissão voluntária a mais um conjunto de normas. Muitos argumentam que a terapia comportamental é terapia como qualquer outra e que, portanto, não necessita de diretrizes próprias. A ênfase é sempre na manutenção de mais liberdade e autonomia para tomar decisões quanto a quem deve ser tratado e por meio de que procedimentos ou, mais especificamente, com que técnicas. Este argumento foi também muito invocado nos Estados Unidos na década de 60, um pouco antes de profissionais de outras áreas (médicos, administradores e comissões de direitos humanos) assumirem a liderança e se reservarem o direito de aprovarem ou não, por exemplo, o tratamento comportamental realizado em instituições, tais como hospitais, presídios, escolas etc. Note-se que quando outros tipos de terapia são usados não há a necessidade de planos psicoterápicos ou relação de técnicas serem pré-aprovados. Nos Estados Unidos, o que se passa no consultório de um terapeuta não comportamental dentro de um presídio não se fica conhecendo, porém quando este terapeuta é comportamentalista, dentro de certos limites, a instituição deseja saber que plano terapêutico será utilizado. E assim é em hospitais, instituições para deficientes mentais etc. Tivessem os comportamentalistas, naquela época, menos receio de se autolimitarem e mais coragem para defenderem um território claramente definido, talvez hoje nossos colegas americanos não necessitassem atender às restrições/recomendações de agentes externos. Por que esta diferença entre a terapia comporta- mental e as outras? Em todas as terapias os direitos hu mano

dos pacientes devem necessariamente ter prioridade máxima e a conduta do terapeuta deve seguir os mais altos padrões, mas na terapia comportamental esta necessidade é ainda maior porque ela envolve, por parte do terapeuta, intervenções mais objetivas, diretas e norteadoras. Contrário ao que é valorizado em &utras abordagens. Intervenções diretas e objetivas podem ser avaliadas de acordo com critérios objetivos e, portanto, são mais passíveis do excrutínio externo. Teoricamente, existe considerável acordo quanto a que princípios éticos, claros e precisos devam ser estabelecidos e respeitados no trabalho psicológico, mas em situações práticas, mais complicadas, o psicólogo está preparado para uma atuação ética correta. Esta questão não é só de interesse para a prática clínica, mas também representa uma constante preocupação para o professor universitário, que tem a responsabilidade de transmitir conhecimentos e de fomentar a formação do psicólogo clínico. Logicamente todo o curso de graduação em psicologia inclui estudos sobre ética, mas muitas vezes a dúvida quanto a se esses ensinamentos estão sendo absorvidos e integrados suficientemente no âmago do terapeuta novo permanece na mente do professor que se sente responsável pela formação do psicólogo. Questionar este terapeuta simplesmente sobre o Código de Ética não é válido, pois o conhecimento teórico não garante uma prática compatível. Necessário se torna avaliar como o terapeuta atua na prática em momentos mais difíceis. Com o intuito de avaliar o preparo ético do psicólogo que trabalha em uma abordagem comportamental, analisou-se as respostas dadas por 16 psicólogos clínicos, que estavam se candidatando ao ingresso em um programa de mestrado, a uma pergunta prática sobre conduta ética. A questão formulada foi respondida sigilosamente por escrito pelos participantes. A questão foi precedida das instruções seguintes: “Os Códigos de Ética fornecem diretrizes sobre alguns tópicos de óbvia relevância para o exercício de cada profissão, mas não há norma tão abrangente que possa fornecer diretrizes sobre tudo. A ética torna-se, assim, em certos momentos, passível da interpretação e valores de cada um. Na situação que se segue, dê sua opinião no que se refere à ética.” “Você está atendendo um adolescente de 15 anos que revela estar usando cocaína com freqüência e quem a fornece é um amigo da família. Quando o contrato terapêutico foi estabelecido com ele, ficou determinado que tudo que ele dissesse

Page 6: 01-9 - ÉTICA E PSICOLOGIA COMPORTAMENTAL

seria confidencial. Os pais concordaram. Qual atitude você tomaria?” A análise das respostas fornecidas revelou que 50% dos respondentes não contariam à família e os ou-

1..

Psicoterapia coniportaniental e cognitiva tros 50% o fariam. Dentre os que preservariam o sigilo terapêutico, três tentariam convencer o paciente a ele mesmo contar aos pais, dois usariam técnicas de indução para levar os pais a perceberem o uso da droga sem que o terapeuta o dissesse claramente e três assumiriam a responsabilidade de trabalhar com o adolescente a fim de promover uma recuperação clínica. Os terapeutas que se pronunciaram a favor do sigilo deram respostas fundamentadas na importância da relação terapeuta-paciente, na ética do sigilo, no fato de que uma quebra do mesmo seria interpretada como uma traição por parte de um adulto, o que talvez levasse o adolescente a ter mais problemas ainda. “Se o próprio psicólogo trair a confiança de uma pessoa em idade já tão difícil, como ele vai confiar em mais alguém?” e “Esse adolescente já deve estar achando que ninguém é de confiança, já que é um ‘amigo’ da família quem lhe dá a droga, se o psicólogo contar ele vai achar que todo mundo trai todo mundo” foram exemplos de respostas dadas por estes profissionais. Dentre os que contariam, as respostas incluíram tentar convencer o cliente e, se ele não concordasse, contar assim mesmo, contactar o CRP com a idéia de ter respaldo para contar aos pais e até informar a Polícia o nome do cliente e do fornecedor da cocaína. Este psicólogo afirmou: “Romperia o sigilo por se tratar de comportamento criminoso.., informaria ao cliente que não poderia manter sigilo e comunicaria à família e à Delegacia de Polícia. Ao cliente deixaria claro que faria o acompanhamento psicoterápicO durante o período que ele estivesse respondendo as questões penais...” Sem dúvida, a situação clínica apresentada é difícil, porém é possível que ocorra no consultório de qualquer psicoterapeuta comportamental ou não. As dúvidas aumentam em situações assim complexas, porém o que se notou foi uma diversificação de respostas muito grande. Muitos dos respondentes pareceram na realidade. não saber como proceder o que denota o quanto a ética na psicologia necessita ainda ser debatida e ensinada nos cursos de psicologia. Esta dificuldade dos psicólogos menos experientes de terem diretrizes já interiorizadas quanto a como agirem em momentos difíceis, poderia ser em parte também sanada por meio de supervisão com terapeutas mais experientes, porém nenhum dos entrevistados mencionou este recurso como uma possibilidade. A situação relatada é preocupante já que 50% dos psicólogos informariam à família e os outros 50% não o fariam. O fato de um psicólogo clínico ter afirmado que comunicaria à Polícia o nome do cliente de 15 anos que estava experimentando a cocaína preocupa, pois se esta fosse uma prática instituída muitos pacientes extrema-

mente necessitados de um acompanhamento psicoterápico, teriam medo de consultar um psicólogo e mais ainda, mesmo que forçados pelos pais a irem, não se arriscariam a fazer comentários sobre este tipo de assunto com o psicólogo, que se esperaria ser uma das pessoas mais qualificada para ajudá-lo. Além disto, pais que desconfiam que seus filhos possam estar se utilizando do uso indevido de drogas, ou cometendo outros comportamentos que infringem a lei, hesitariam em procurar ajuda terapêutica para seus filhos se soubessem do risco do psicólogo informar a Polícia sobre o fato. A situação acima descrita não se referia especifica- mente ‘a terapia comportamental, mas existem situações em que mais diretamente se necessita de diretrizes que sirvam de referencial para o psicólogo clínico. As diretrizes éticas funcionam não só para garantir os direitos humanos dos pacientes, evitando os abusos de poder e de controle, mas também são extremamente úteis na proteção do terapeuta. Com um campo de ação tornado explícito e normas de trabalho bem definidas o terapeuta comportamental sabe melhor como agir e corre menos risco de ser, injustamente o objeto de críticas maldosas. A literatura brasileira é escassa em artigos sobre ética no trabalho comportamental embora seja riquíssima em artigos escritos por profissionais de outras abordagens e, naturalmente, filósofos (Drawin, 85; Morais, 1992; Carvalho, 1993; Chauí, 1994). Considerando-se esta dificuldade, apresenta-se a seguir algumas sugestões sobre ética especificamente direcionadas para a área comportamental. Logicamente estas sugestões não são feitas com a intenção de substituir normas do Código de Ética ou da Lei. Em primeiro lugar o psicólogo deve seguir o Código e as leis vigentes no país. Se ele não concorda com elas ele deve lutar pela sua modificação, porém até que isto ocorra elas não podem ser desconsideradas. As sugestões abaixo representam um adendo ao que já é estabelecido em nosso meio. 1. No que se refere à atitude Contrário ao que os críticos mencionam, o terapeuta deve manter uma atitude cordial quanto ao paciente (porém não de amigo pessoal), tendo em vista que ele é um ser humano semelhante a ele e que qualquer superioridade técnica do terapeuta é algo muito específico que não necessariamente transcende a relação terapêuti 115

Page 7: 01-9 - ÉTICA E PSICOLOGIA COMPORTAMENTAL

11 Sugestões de diretrizes éticas para o terapeuta comportamental

116

Bernard Rangé (Org.)

ca. O paciente pode ter inúmeras áreas em que ele seja superior ao terapeuta. O terapeuta, por outro lado, possui um conhecimento altamente avançado da área psicológica e está mais bem qualificado para uma atuação dentro dela. O poder do terapeuta existe sim e ele deve ter consciência de sua extensão, porém é um poder altamente efêmero no que se refere a pessoa do terapeuta. Após a terapia o paciente se desvincula e só resta o poder do que foi absorvido e interiorizado. Portanto, é fundamental que o terapeuta tenha, no mínimo, apreço pelo paciente e respeito à sua individualidade. Está claro que a atitude não deve ser a de “amigos”, pois a tônica da relação tem que ser colocada no terapêutico e não no social. Independente da competência técnica, o vínculo terapêutico é fortalecido pelo interesse do profissional pela pessoa que sofre. É fundamental que haja autenticidade no interesse do terapeuta para que um bom resultado possa ocorrer. Na relação terapêutica todo ato do profissional tem influência sobre o paciente e poderá ser benéfico ou maléfico para o mesmo. A responsabilidade do terapeuta é grande e, ao mesmo tempo, de difícil controle por se tratar de algo tão pouco palpável. Na medida em que o profissional percebe o paciente como um ser humano semelhante a ele, a relação de poder é mais administrável, e uma prática ética responsável é, mais facilmente, alcançada. O terapeuta deve também ter uma noção clara do seu sistema de valores e saber que, mesmo involuntariamente, existe uma convergência dos valores do paciente para aqueles do terapeuta. Portanto, ele deve manter uma atitude de grande respeito e tomar extremo cuidado com a adequação, para o cliente, dos valores que ele está transmitindo. A abordagem comportamental não utiliza o modelo médico em que o comportamento é visto como sintoma de uma doença ou patologia, mas sim o modelo de aprendizagem, em que se conceitua o problema como o resultado da interação de predisposições genéticas e contingências ambientais. Deste modo o relacionamento existente na díade terapeuta-cliente não é o de médico e paciente, mas sim o de professor e aluno. Este aprende a identificar os eventos, internos ou externos, que controlam seu comportamento e assume um papel ativo na busca pela solução para o problema. Cabe ao terapeuta ajudá-lo nesta jornada.

2. Quanto ao terapeuta

Conhecimento teórico e prático de alto nível na área comportamental é indispensável. O terapeuta re cém-formado

com as dúvidas normais do estágio inicial da carreira, não deve hesitar em procurar uma supervisão que lhe dê segurança no que está realizando. Ninguém completa sua instrução para terapeuta com um diploma, a aquisição de conhecimentos nunca finda. É preciso continuar sempre na busca de novas idéias. A literatura brasileira nem sempre oferece tudo o que se necessita, portanto, familiaridade com a literatura estrangeira, além da nacional, mais precisamente com os trabalhos americanos, é importante para profissionais da área comportamental. Não basta ao terapeuta saber os procedimentos e técnicas comportamentais. Ele necessita entender bem todas as implicações do uso de cada uma delas para o presente e o futuro da pessoa, no contexto da família e da sociedade. No que toca a aspectos pessoais, o terapeuta deve estar emocionalmente bem para fazer um trabalho adequado. Ele precisa pelo menos entender as contingências que o mantêm e ser capaz de identificar suas áreas de dificuldades pessoais. É recomendado que ele faça terapia a fim de entender como o processo terapêutico é vivenciado. Quando o terapeuta sentir que seus problemas pessoais poderiam atrapalhar o tratamento de um paciente ele deve encaminhá-lo. Do mesmo modo que ele também deve encaminhar o paciente que tenha objetivos terapêuticos que contrariem os seus próprios valores a ponto de interferir na terapia.

3. Quanto ao estabelecimento de metas

Page 8: 01-9 - ÉTICA E PSICOLOGIA COMPORTAMENTAL

As metas terapêuticas devem refletir os valores e escolha do paciente. Cautela deve ser tomada para que os interesses de outras pessoas envolvidas não sobrepujem os do paciente. É muito comum que parentes (pais e cônjuges principalmente) tentem influenciar o terapeuta quanto ao plano terapêutico. A não ser em casos de crianças, psicóticos, excepcionais ou de outros pacientes considerados incapazes de se autodeterminarem, o plano terapêutico deve sempre resultar de um esforço comum da díade terapeuta-paciente, em que este tem primazia. Logicamente compete ao terapeuta avaliar as metas desejadas pelo paciente e verificar se elas são alcançáveis. Se o terapeuta não concordar, eticamente, com o planejado, ele deve comunicar tal fato ao cliente. Caso não seja possível mudar as metas inadequadas para outras mais compatíveis, o terapeuta deve encaminhar o caso e dar ao paciente o direito de encontrar outro profissional que o possa auxiliar. No caso de crianças, os pais ou responsáveis têm que ser incluídos, porém cuidado deve ser tomado para que as metas terapêuticas não violem os

Psicoterapia com portamental e cognitiva

117

direitos da criança e beneficiem os adultos somente. Quando o terapeuta se deparar com uma situação como csca, ele deve primeiro tentar sensibilizar os responsáveis da necessidade de se estabelecer metas mais adejuadas. Caso ele não tenha sucesso, recomenda-se que ele tente engajar a participação de outro adulto da família, com a permissão dos pais. Se isto também não for possível, melhor é que ele encaminhe o caso para outro terapeuta que talvez tenha mais sucesso na sensibilização dos responsáveis pela criança, pois há direitos desta que os pais não podem infringir. Um dos outros cuidados a serem tomados ao se formular um plano terapêutico comportarnentai é o que se refere a escolha de comportamentos-alvo que tenham a possibilidade de serem mantidos por meio de reforçamento no ambiente natural da pessoa.

4. Quanto a técnicas e procedimentos escolhidos

Na escolha da técnica deve-se considerar: (1) a eficácia da mesma. (2) se ela se baseia em princípios teóricos estabelecidos, (3) a relação vantagens-desvantagens, (4) as implicações a longo prazo, (5) a possibilidade de a mesma ser incorporada na rotina da pessoa, (6) a coerência com as normas culturais e (7) a aceitação do paiente e do seu meio ao uso da técnica. A utilização de técnicas aversivas é sempre um tópico difícil de se considerar. Por técnicas aversivas está se referindo a qualquer contingência que não seja agraciável para a pessoa tratada, corno por exemplo, colocar urna criança em time-out. retirada de fichas ou pontos, astigo, retirada de privilégios e extinção, dentre outras. Nestes casos, necessário se torna questionar: (1) as écnicas serão realmente mais eficazes neste caso do que o seriam técnicas positivas?: (2) trata-se de técnica desumana ou abusiva?; (3) os fins justificam os meios, ou seja o comportamento a ser eliminado é ainda mais indesejável do que ela? Quando técnicas aversivas jurem utilizadas, elas devem: (a) ser operacionalmente definidas, (b) ser explicadas e aceitas pelo paciente, ou seu responsável e (e) o terapeuta deve estar convencido de que o comportamento que se está tentando eliminar gera conseqüências mais negativas do que a técnica aversiva a ser implemcntada. As técnicas aversivas às vezes necessitam ser usadas por serem as mais indicadas, como no caso de comportamentos autodestrutivos e perigosos. Quando, após todas as considerações éticas, se decidir pela sua utilização, o terapeuta deve ter a tranqüilidade de impleinentá-las. Ele precisa considerar que um grande número

de comportamentos são moldados por contingências negativas que ocorrem no ambiente natural. Por exemplo, o cumprimento da lei envolve conseqüências negativas na forma de custo de resposta (multas), tilne-out (encarceramento) e punição (crítica social, penas), portanto, técnicas aversivas, como um meio de controlar o comportamento humano, são utilizadas regularmente na sociedade, independentemente da terapia comportamental. Porém, quando elas forem utilizadas de modo planejado e dentro do contexto terapêutico, compete ao terapeuta se certificar de que não há abuso e de que elas são utilizadas como um estágio intermediário. A eliminação de um comportamento-problema nunca é o objetivo final. Este deve ser sempre o expandir o repertório do paciente com novos comportamentos mais adequados e menos nocivos, de preferência, que sejam incompatíveis com o comportamento eliminado. No caso de déficits comportamentais, antes de se instituir um procedimento para aumentar o repertório do paciente, é indispensável que se faça uma avaliação do repertório atual, a fim de se veritjcar se os pré-requisitos estão presentes, do contrário, o procedimento não terá chance de ser bem-sucedido, além de levar o paciente a experimentar a sensação de fracasso, que talvez agrave sua condição.

5. Quanto ao resultado da terapia e à generalização

Todo caso clínico necessita ser documentado e sistematicamente avaliado, O registro de linha de base é essencial para que se possa avaliar o processo psicoterápico e o resultado da terapia. Muitas vezes é impossível conseguir que o cliente faça o registro conforme se gostaria, neste caso a linha de base pode ser constituída das próprias verbalizações ocorridas na sessão. Durante o decorrer do processo, avaliações devem ser realizadas e com base nelas os objetivos podem ser reformulados, técnicas podem ser substituídas e o tratamento deve ser adaptado à realidade do momento. Os resultados devem ser analisados com base nos dados coletados no início do tratamento, durante o registro de linha de base. Ao fim da terapia, essencial se torna rever a pasta do cliente, discutir com ele as metas alcançadas e programar a generalização dos efeitos para o dia-a-dia. Não basta que o terapeuta verifique só o progresso que foi alcançado ao término da terapia — generalização não ocorre automaticamente na maioria do casos. Ela deve ser programada ao mesmo tempo que o terapeuta planeja a sua saída da vida dc) paciente.

118

Page 9: 01-9 - ÉTICA E PSICOLOGIA COMPORTAMENTAL

Bernard Rangé (Org.)

Sem dúvida, a terapia comportamental faz uso da aplicação de princípios poderosos e eficazes que tanto podem ser utilizados de modo antiético, envolvendo abuso de poder e controle inadequado das pessoas envolvidas, como também podem ser utilizados de modo apropriado para promover o bem-estar e melhorar a qualidade de vida dos indivíduos e da humanidade. Cabe a nós, membros da comunidade de terapeutas comportamentais, normatizar a ética desta abordagem a fim de não só proteger os direitos humanos dos pacientes, mas também resguardar a pessoa do terapeuta e a imagem da terapia comportamental.

Referências

APA (1991). Guidelines for providers ofpsvchological services to ethnic, linguistic, and culturally diverse populadons, Washington: APA Office of Ethnic Minority affairs. Cardoso, E. R. G. (1985). A orinação profissional do psicote rapeuta, SP: Summus Editorial. Carvalho, K. B. (1993). Etica e psicologia. Cadernos de Psicologia, 2, 23-34. Chaui, M. (1994). Etica e universidade. Ciência Hoje, 18 (102), 38-42. Comas-Diaz, Le Griffith, E. H. (1988). Clinical guidelines in cross-cultural mental health. Nova lorque: Wiley. Custer, G. (1994). Ethical principies guide therapists in litigious era. Monitor, outubro. p. 42. Drawin, C. R. (1985). Etica e psicologia: por uma demarcação filosófica. Psicologia, Ciência e Profissão. 5(2), 14- 17. Guidelines for child custody evaluations in divorce proceedings, (1993a), American Psychologist, 49(7), 677-680.

Guidelines for providers of psychological services to ethnic. linguistic, and culturally diverse populations, (1993b), American Psychologist, 48(l), 45-48. Hamblin, D. L.; Beutier, L. E.; Scogin, F. e Corbishley, A. (1993). Patient responsiveness to therapist values and outcome in group cognitive therapy. Psychotherapy Re,search, 3(1), 36-46. Krumboltz, J. D. ekrumboltz, 1-1. B. (1972). Changing children’s behavior. New Jersey: Prentice-Hali. Lee, Yuch-Ting (1994). Why does American psychology have cultural limitations? American Psychologist, 49 (6), 524. Lorion, R. P. (1974). Patient and therapist variables in the treatment of low income patients. Psychological Bulietia, 81, 344-354. Martin, G. e Pear, J. Behavior modification. New Jersey: Prentice-HalI. mc. McGodrick. M. Pearce, J. K. e Girdano, J. (1982). Ethnicity and fa,nilv therapy, H. Y.: Guilford Press. Morais, Regis de (1992). Etica e vida social contemporânea. Tempo e Presença. 14(263). 5-13. O’Leary, K. D. e Wilson, G. T. (1975). Behavior modification: aplication and outcome. New Jersey: PrenticeHaH. Porcha, 1. e Barros, P. (1985). Ser terapeuta: depoimentos. São Paulo: Summus Editorial. Root, M. P. P. (1985). Guidelines for facilitating therapy with Asian American clients. P.sychotherapy, 22, 349- 356. Turri, A. C. (Org.), 1988. Ética médica. São Paulo: Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo.

Marilda Novaes Lipp PUCCAMP

Sobre a autora