01-04-2016 - universidade de coimbra · dos tratados orçamentais (défice, dívida, etc.) para...

8
01-04-2016 PEDRO PENILO (2016) SANDRA MONTEIRO oi há 40 anos. A Assembleia Cons- tituinte, reunida em plenário a 2 de Abril de 1976, aprovou e decretou a Constituição da República Portuguesa, que entraria em vigor a 25 de Abril do mesmo ano. No texto ficaram plasmados os direi- tos e liberdades fundamentais, bem como o princípio do primado do Estado de direito democrático. Da garantia da democracia po- lítica aos direitos económicos e sociais, os deputados constituintes apontavam o ca- minho: «a construção de um país mais livre, mais justo e mais fraterno». Para o concreti- zar, os direitos materializavam-se em cons- truções que se tornaram pilares do Estado social e de direito: o Serviço Nacional de Saúde (SNS), a escola pública, a Segurança Social, as leis laborais, etc. Mesmo com as sucessivas alterações de que foi alvo, o texto constitucional mantém elevados níveis de protecção dos mecanis- mos promotores de justiça social. Prova disso é que, quando muitos desses meca- nismos foram atacados, o recurso para o Tribunal Constitucional permitiu que vá- rias medidas governamentais tivessem de cair ou ser substituídas. Isso foi muito visí- vel nos anos mais recentes, quando o pro- jecto neoliberal iniciado da década de 1980 deu um salto de gigante com a imposição do regime de austeridade, em contexto de crise financeira internacional e de imposi- ção da armadilha da dívida aos Estados. De repente, os combates das várias esquer- das, que no essencial se limitavam a fazer re- troceder medidas causadoras de regressão social, de mais desigualdades e mais recessão económicas, passaram a ser vistos, não como um simples regresso às bases de um pro- grama social-democrático capaz de assegu- rar mínimos de decência social, mas como so- nhos utópicos de radicais e extremistas (por estarem fora do consenso neoliberal). É compreensível que, à direita, a resposta ti- vesse sido esta tentativa de estigmatização das oposições àquele projecto. No fim de contas, que outra defesa, senão o ataque, poderiam apresentar perante o fracasso retumbante das respostas que deram à crise iniciada em 2008? Como defender soluções que, não re- solvendo nenhum dos problemas, acrescen- taram muitos outros e perpetuam a instabili- dade e as crises? Neste contexto altamente de- gradado, é também compreensível que as vá- rias esquerdas tenham dado prioridade à de- fesa dos aspectos mais basilares da democra- cia, concentrando-se, nos termos do acordo para a governação actualmente em vigor, em devolver as condições de subsistência aos mais desprotegidos, repondo salários e pen- sões e, reinvestindo nos serviços públicos es- senciais Outra questão, ainda sem resposta, é saber se a União Europeia, e a sua arquitectura institucional e monetária, irá permitir esta go- vernação alternativa, que recusa insistir na auste ridade, ou se utilizará os instrumentos dos tratados orçamentais (défice, dívida, etc.) para forçar o retorno da velha receita Enquanto isso, podem os objectivos dos que se opõem ao neoliberalismo limitar-se à reposição dos patamares anteriores à eclo- são da mais recente crise? Não será esse o caminho para se ir, de crise em crise, de pata- mares mínimos em cada vez mais mínimos, até à derrota final? É certo que, hoje, lutar pelos mínimos sociais-democratas - impor- tante avanço face a políticas sociais-liberais ou ultra-liberais - dá pelo menos tanto tra- balho e exige pelo menos tanta mobilização à esquerda quanto noutros tempos terá exi- gido combater pelo socialismo. A isto se cha- mam tempos de retrocesso: parece que se luta cada vez mais, por cada vez menos. Mas, se criássemos um Observatório da Radicalidade (não do radicalismo: isso é ou- tra coisa e infinitamente menos interessante), que balanço faríamos da qualidade desta de- mocracia constitucionalizada há 40 anos? A Constituição que temos tem-nos servido ra- zoavelmente bem, mas a sociedade que cons- truímos tem servido menos bem os princí- pios, os valores, os objectivos e as instituições que ela criou. Portugal já era antes da crise uma das sociedades mais desiguais, e entre- tanto a situação não terá melhorado. Nesta economia crescentemente financeirizada, globalizada e desregulada, os recursos de que precisamos para combater a pobreza, o de- semprego e a precariedade são canalizados para pagar uma dívida insustentável, para ali- mentar fortunas que alimentam bolhas espe- culativas e que fogem para paraísos fiscais - fogem, note-se, com o nosso dinheiro, e não só com o seu. Competimos com uma produção global com contornos de quase escravatura, ou pelo menos crescentemente indigna em termos sociais e ambientais, e impedimos o cidadão comum de optar por consumos res- ponsáveis pressionando-lhe os salários sem- pre para baixo. Trocamos soberania do Es- tado por formas de integração (europeia, re- gional, internacional) que colidem com polí- ticas orientadas para o desenvolvimento eco- nómico, para a coesão social e territorial. Passados 40 anos, a sociedade portuguesa não é apenas uma das mais desiguais. É tam- bém muito pouco democrática Com efeito, já antes da crise, num estudo de 2008 111 , Portugal era apontado como um dos países menos democráticos da Europa (atrás, só a Bulgária, a Roménia, a Polónia e a Lituânia; no extremo oposto, a Suécia, a Dinamarca, a Holanda e a Finlândia). O que explica isto? O think tank britânico Demos aplicou um «Ín- dice de Democracia Quotidiana» («Everyday Democracylnde,o>) a vinte e cinco países eu- ropeus que permite olhar para outros aspec- tos da qualidade de uma democracia que não apenas a «democracia formal» (eleições e procedimentos) - aliás, a área em que Por- tugal está mais bem classificado. Os outros critérios usados pelo estudo estão agrupa- dos nos seguintes indicadores: activismo e participação; deliberação e aspirações; de- mocracia nas famílias; democracia nos servi- ços públicos; democracia nos locais de traba- lho. São estes indicadores que relegam Por- tugal para ou últimos lugares da tabela Forças políticas e uma sociedade mobiliza- das para construir mais democracia e mais justiça social não podem deixar de colocar no debate público e na agenda política todas estas dimensões da democracia Ao combate pelos direitos económicos e sociais, pelo di- reito ao trabalho, à habitação, à mobilidade e à cidade (analisados no dossiê que dedicamos nesta edição ao 40.2 aniversário da Constitui- ção), há que juntar os combates pela demo- cracia nas empresas e demais locais de tra- balho; pela gestão democrática nas escolas e nos estabelecimentos de ensino superior; pela participação dos utentes nos serviços públicos, como na saúde; pelo envolvimento de comissões de trabalhadores e utentes no funcionamento dos transportes públicos; pela valorização do papel e da organização democrática dos sindicatos e das associa- ções; pelo aprofundamento do poder local, com orçamentos participativos e outras ini- ciativas; pelo incentivo a diferentes formas de propriedade, pondo em comum o que, se o não for; contraria os interesses das comuni- dades; pela desconstrução dos tradicionais papéis de género nas famílias e tantas outras formas de discriminação no espaço público e privado (género, etnia, etc). Celebrar a Constituição, 40 anos depois, é também recuperar uma radicalidade que ela inscreveu e que se perdeu pelo caminho ou não chegou a tornar-se prática Não signi- fica dedicar menos energias à defesa dos pa- tamares que ainda há pouco dávamos como adquiridos: significa que temos ainda mais trabalho pela frente. A boa notícia é que, quando temos uma prática quotidiana su- ficientemente regular e ambiciosa para ga- nhar músculo democrático numa certa área, estamos de facto a contribuir para a boa ir- rigação dos tecidos de todo o sistema Bem vistas as coisas, 40 anos é uma boa idade para apostarmos a sério na saúde desta nossa democracia r 111 Citado em Ricardo Paes Marnede, A Economia como Desporto de Combate, Relógio d'Água, Lisboa, 2016, p. 220. Ver também vvww.compassonline.org.uk.

Upload: others

Post on 04-Mar-2020

2 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: 01-04-2016 - Universidade de Coimbra · dos tratados orçamentais (défice, dívida, etc.) para forçar o retorno da velha receita Enquanto isso, podem os objectivos dos que se opõem

01-04-2016

PEDRO PENILO (2016)

SANDRA MONTEIRO

oi há 40 anos. A Assembleia Cons- tituinte, reunida em plenário a 2 de Abril de 1976, aprovou e decretou a

Constituição da República Portuguesa, que entraria em vigor a 25 de Abril do mesmo ano. No texto ficaram plasmados os direi-tos e liberdades fundamentais, bem como o princípio do primado do Estado de direito democrático. Da garantia da democracia po-lítica aos direitos económicos e sociais, os deputados constituintes apontavam o ca-minho: «a construção de um país mais livre, mais justo e mais fraterno». Para o concreti-zar, os direitos materializavam-se em cons-truções que se tornaram pilares do Estado social e de direito: o Serviço Nacional de Saúde (SNS), a escola pública, a Segurança Social, as leis laborais, etc.

Mesmo com as sucessivas alterações de que foi alvo, o texto constitucional mantém elevados níveis de protecção dos mecanis-mos promotores de justiça social. Prova disso é que, quando muitos desses meca-nismos foram atacados, o recurso para o Tribunal Constitucional permitiu que vá-rias medidas governamentais tivessem de cair ou ser substituídas. Isso foi muito visí-vel nos anos mais recentes, quando o pro-jecto neoliberal iniciado da década de 1980 deu um salto de gigante com a imposição do regime de austeridade, em contexto de crise financeira internacional e de imposi-ção da armadilha da dívida aos Estados.

De repente, os combates das várias esquer-das, que no essencial se limitavam a fazer re-troceder medidas causadoras de regressão social, de mais desigualdades e mais recessão económicas, passaram a ser vistos, não como um simples regresso às bases de um pro-grama social-democrático capaz de assegu-rar mínimos de decência social, mas como so-nhos utópicos de radicais e extremistas (por estarem fora do consenso neoliberal).

É compreensível que, à direita, a resposta ti-vesse sido esta tentativa de estigmatização das oposições àquele projecto. No fim de contas, que outra defesa, senão o ataque, poderiam apresentar perante o fracasso retumbante das respostas que deram à crise iniciada em 2008? Como defender soluções que, não re-solvendo nenhum dos problemas, acrescen-taram muitos outros e perpetuam a instabili-dade e as crises? Neste contexto altamente de-gradado, é também compreensível que as vá-rias esquerdas tenham dado prioridade à de-fesa dos aspectos mais basilares da democra-cia, concentrando-se, nos termos do acordo para a governação actualmente em vigor, em

devolver as condições de subsistência aos mais desprotegidos, repondo salários e pen-sões e, reinvestindo nos serviços públicos es-senciais Outra questão, ainda sem resposta, é saber se a União Europeia, e a sua arquitectura institucional e monetária, irá permitir esta go-vernação alternativa, que recusa insistir na austeridade, ou se utilizará os instrumentos dos tratados orçamentais (défice, dívida, etc.) para forçar o retorno da velha receita

Enquanto isso, podem os objectivos dos que se opõem ao neoliberalismo limitar-se à reposição dos patamares anteriores à eclo-são da mais recente crise? Não será esse o caminho para se ir, de crise em crise, de pata-mares mínimos em cada vez mais mínimos, até à derrota final? É certo que, hoje, lutar pelos mínimos sociais-democratas - impor-tante avanço face a políticas sociais-liberais ou ultra-liberais - dá pelo menos tanto tra-balho e exige pelo menos tanta mobilização à esquerda quanto noutros tempos terá exi-gido combater pelo socialismo. A isto se cha-mam tempos de retrocesso: parece que se luta cada vez mais, por cada vez menos.

Mas, se criássemos um Observatório da Radicalidade (não do radicalismo: isso é ou-tra coisa e infinitamente menos interessante), que balanço faríamos da qualidade desta de-mocracia constitucionalizada há 40 anos? A Constituição que temos tem-nos servido ra-zoavelmente bem, mas a sociedade que cons-truímos tem servido menos bem os princí-pios, os valores, os objectivos e as instituições que ela criou. Portugal já era antes da crise uma das sociedades mais desiguais, e entre-tanto a situação não terá melhorado. Nesta economia crescentemente financeirizada, globalizada e desregulada, os recursos de que precisamos para combater a pobreza, o de-semprego e a precariedade são canalizados para pagar uma dívida insustentável, para ali-mentar fortunas que alimentam bolhas espe-culativas e que fogem para paraísos fiscais -fogem, note-se, com o nosso dinheiro, e não só com o seu. Competimos com uma produção global com contornos de quase escravatura, ou pelo menos crescentemente indigna em termos sociais e ambientais, e impedimos o cidadão comum de optar por consumos res-ponsáveis pressionando-lhe os salários sem-pre para baixo. Trocamos soberania do Es-tado por formas de integração (europeia, re-gional, internacional) que colidem com polí-ticas orientadas para o desenvolvimento eco-nómico, para a coesão social e territorial.

Passados 40 anos, a sociedade portuguesa não é apenas uma das mais desiguais. É tam-

bém muito pouco democrática Com efeito, já antes da crise, num estudo de 2008111, Portugal era apontado como um dos países menos democráticos da Europa (atrás, só a Bulgária, a Roménia, a Polónia e a Lituânia; no extremo oposto, a Suécia, a Dinamarca, a Holanda e a Finlândia). O que explica isto? O think tank britânico Demos aplicou um «Ín-dice de Democracia Quotidiana» («Everyday Democracylnde,o>) a vinte e cinco países eu-ropeus que permite olhar para outros aspec-tos da qualidade de uma democracia que não apenas a «democracia formal» (eleições e procedimentos) - aliás, a área em que Por-tugal está mais bem classificado. Os outros critérios usados pelo estudo estão agrupa-dos nos seguintes indicadores: activismo e participação; deliberação e aspirações; de-mocracia nas famílias; democracia nos servi-ços públicos; democracia nos locais de traba-lho. São estes indicadores que relegam Por-tugal para ou últimos lugares da tabela

Forças políticas e uma sociedade mobiliza-das para construir mais democracia e mais justiça social não podem deixar de colocar no debate público e na agenda política todas estas dimensões da democracia Ao combate pelos direitos económicos e sociais, pelo di-reito ao trabalho, à habitação, à mobilidade e à cidade (analisados no dossiê que dedicamos nesta edição ao 40.2 aniversário da Constitui-ção), há que juntar os combates pela demo-cracia nas empresas e demais locais de tra-

balho; pela gestão democrática nas escolas e nos estabelecimentos de ensino superior; pela participação dos utentes nos serviços públicos, como na saúde; pelo envolvimento de comissões de trabalhadores e utentes no funcionamento dos transportes públicos; pela valorização do papel e da organização democrática dos sindicatos e das associa-ções; pelo aprofundamento do poder local, com orçamentos participativos e outras ini-ciativas; pelo incentivo a diferentes formas de propriedade, pondo em comum o que, se o não for; contraria os interesses das comuni-dades; pela desconstrução dos tradicionais papéis de género nas famílias e tantas outras formas de discriminação no espaço público e privado (género, etnia, etc).

Celebrar a Constituição, 40 anos depois, é também recuperar uma radicalidade que ela inscreveu e que se perdeu pelo caminho ou não chegou a tornar-se prática Não signi-fica dedicar menos energias à defesa dos pa-tamares que ainda há pouco dávamos como adquiridos: significa que temos ainda mais trabalho pela frente. A boa notícia é que, quando temos uma prática quotidiana su-ficientemente regular e ambiciosa para ga-nhar músculo democrático numa certa área, estamos de facto a contribuir para a boa ir-rigação dos tecidos de todo o sistema Bem vistas as coisas, 40 anos é uma boa idade para apostarmos a sério na saúde desta nossa democracia r

111 Citado em Ricardo Paes Marnede, A Economia como Desporto de Combate, Relógio d'Água, Lisboa, 2016, p. 220. Ver também vvww.compassonline.org.uk.

Page 2: 01-04-2016 - Universidade de Coimbra · dos tratados orçamentais (défice, dívida, etc.) para forçar o retorno da velha receita Enquanto isso, podem os objectivos dos que se opõem

01-04-2016

DOSSIÊ . Nos 40 anos da Constitui ão: direito ao trabalho, à cidade, à habita ão

A 2 de Abril de 1976, a Assembleia Constituinte aprovou a Constituição de República Portuguesa, que entraria em vigor a 25 de Abril desse ano. Passados 40 anos, reflectimos sobre o campo de possibilidades que ela traduziu e abriu. Plasmando correlações de forças políticas e sociais então existentes, o texto constitucional exprimiu valores e princípios democráticos estreitamente vinculados aos objectivos de justiça social e económica. A crise de 2008 e a sociedade da austeridade

apoiaram-se na excepção não democrática para capturar estes valores e direitos, em particular os direitos económicos e sociais (trabalho, educação, saúde...). Mas outros são os direitos, como o direito à cidade e à habitação, que estão a ser fortemente atacados, por pressão mercantil e por uma persistente polarização social que desprotege as classes e sectores mais fragilizados, desde logo os trabalhadores pobres e os oriundos da imigração.

ANTÓNIO CASIMIRO FERREIRA *

s constituições traduzem a reali- dade sociológica de um país, não sendo «mera folha de papel» e não

funcionando por si mesmas a partir do mo-mento em que são adoptadas. Na comemo-ração dos 40 anos da Constituição da Repú-blica Portuguesa vale a pena ter presente esta afirmação, dado a nossa vida constitu-cional evidenciar o facto de a conformação constitucional da realidade social não resul-tar de um acto de generosa vontade social, mas sim de possibilidades. Possibilidade, desde logo, face aos contextos e condições favoráveis, ou desfavoráveis, para a aplica-ção e realização dos direitos e valores cons-titucionais. Mas também, possibilidade de-pendente do afastamento das posições ra-dicais daqueles que pretendem «ajustar contas» com o 25 de Abril e tornam a Cons-tituição num permanente bode expiatório culpado das vicissitudes de Portugal.

Ultrapassados os entendimentos forma-listas e positivistas da falsa neutralidade dos direitos fica-nos um entendimento da Constituição enquanto parte dos proces-sos de estruturação das sociedades, como «consciência colectiva» e como campo de luta político-ideológica resultante da cor-relação de forças e disputas entre projec-tos e actores sociais. De uma forma mani-festa, tal dinâmica encontra-se espelhada no momento constituinte, nos processos de revisão constitucional, nas influências do transconstitucionalismo ou, ainda, na capacidade de mobilização e interpreta-ção do texto constitucional por movimen-tos, actores sociais e políticos, agentes económicos, parceiros sociais, etc.

À luz deste ponto de vista, a Constitui-ção, enquanto «direito vivido» e prota-gonizado política e socialmente, é indica-dor dos conflitos estruturais existentes na sociedade portuguesa. Identifico três que me parecem particularmente rele-vantes. O primeiro, a propósito da polí-tica constitucional e da dimensão norma-tiva da Constituição. Aqui, o que está em causa é o pacto político que dá forma às instituições constitucionais, relativizado

pelos que orientam os seus juízos morais pelo interesse e pelo cálculo instrumental pró-mercado, e os que defendem a Cons-tituição Portuguesa como portadora de um princípio de justiça universal extensí-vel e aplicável a todos (pré-convencionais os primeiros, e pós-convencionais os se-gundos, caso utilizemos os termos de La-wrence Kolhberg). O segundo, a propósito da efectividade das normas constitucio-nais. Neste caso, pressupõe-se a existên-cia de actores sociais e de interesses, cujas práticas sociais podem contribuir para re-duzir, ou não, a discrepância entre a law in books e a Iaw in action constitucional. Fi-nalmente, o terceiro, ligado ao reconheci-mento do regime político-jurídico dos di-reitos de cidadania e direitos fundamen-tais económicos, sociais e culturais, cone-xos ao Estado social, os quais podem, ou não, ser «levados a sério».

A captura da Constituição pela sociedade da austeridade

A tradução política concreta destes con-flitos cristaliza-se em torno da concorrên-cia, em Portugal e na Europa, entre dois cenários constitucionais contrapostos: o dos que defendem a Constituição como referencial normal para uma sociedade mais justa e democrática, promovendo o Estado social e os direitos sociais; e o dos que, ao abrigo da emergência e da excep-ção instigadas pela crise, fazem uma lei-tura não democrática da Constituição, promovendo a sua captura pelas lógicas da austeridade, trivializando o desmante-lamento da sua dimensão social. Este úl-timo cenário, segundo o qual a sociedade de austeridade capturou a Constituição, resulta num profundo revés para o pro-jecto de um constitucionalismo «transfor-mador» no quadro das sociedades demo-cráticas.

Mas como ocorre este processo de cap-tura da Constituição? Como e por que meios? Desde logo, através da apropria-

ção, mobilização e interpretação da Cons-tituição pela configuração da excepção austeritária não democrática, a qual as-senta em múltiplas interdependências entre agentes públicos e privados, tanto da sociedade civil como da esfera da go-vernação, ao nível nacional e suprana-cional. A sua acção produz um apaga-mento da memória social da Constituição e a desqualificação dos objectivos demo-cráticos desejáveis que consigna. Ela dá prioridade absoluta à racionalização dos meios e à redução das despesas públicas, de modo a adoptar uma racionalidade gestionária do direito constitucional. Faz, ainda, a afirmação de uma política consti-tucional dual que preconiza a prioridade dada à economia e aos mercados financei-ros. Em qualquer dos casos, criam-se dis-positivos que filtram os bens e os princí-pios constitucionalmente consagrados, com o fim de optimizar o funcionamento dos mercados financeiros.

O constitucionalismo não democrático tem quatro especificidades. A primeira delas é a que contrapõe o tempo nor-mal da Constituição ao tempo de excep-ção, subjacente às lógicas da emergência e da necessidade marcadas pela crise que constrangem a força normativa da Consti-tuição e lhe retira a capacidade de trans-mitir a temporalidade da esperança e da promessa democráticas. A segunda, a que contrapõe o poder constituinte democrá-tico do poder eleito ao «poder constituinte não democrático» do poder dos não elei-tos (troikas, bancos centrais, agências de notação Ir-atina], Fundo Monetário Inter-nacional [FMI], etc.). Este fenómeno co-loca em evidência como, nas sociedades democráticas, a esfera do económico-fi-nanceiro menoriza o poder dos eleitos, ou os coopta, produzindo narrativas de inter-pretação da lei constitucional que a tor-nam politicamente irrelevante. A terceira, a da afirmação da lógica da excepção e dos seus mecanismos político-jurídicos, os quais enfraquecem a força vinculativa da Constituição, na medida em que subs-

tituem o normal referencial democrático por um referencial de excepção caracte-rizado pela governação neoliberal e aos-teritária da crise. A quarta corresponde à contraposição entre as dinâmicas sociais expectáveis e as que são colocadas em ac-ção pela sociedade de austeridade. Desta última, emerge um modelo de sociabili-dade punitivo relativamente aos indiví-duos e grupos sociais, a antropomorfiza-ção dos mercados como valor superior ao valor da dignidade humana, e as políticas de legitimação através do medo social e individual, que desqualificam a segurança e o bem-estar social.

A Constituição contribui para a organi-zação do social sendo possível observá--la como reflexo das dinâmicas de evo-lução em vários níveis de processos his-tórico-funcionais. Daqui decorre que, no actual contexto marcado pela sociedade de austeridade e pelas lógicas da excep-ção, a Constituição seja por elas afectada. Está-se, com efeito, perante um momento de ruptura ou, pelo menos, de desconti-nuidade introduzido pela crise de 2008, e pelo respectivo processo de institucio-nalização de um novo sistema de medi-das e de pesos éticos, políticos e jurídicos, orientador dos processos de produção e reprodução social. Trata-se, no essencial, de reconhecer que a austeridade e a ex-cepção se assumem corno paradigma de organização da sociedade diferente dos anteriores. Nesta medida, o referente so-cial da Constituição tende a alterar-se.

Um dos debates que se coloca actual-mente é o da antinomia entre os proble-mas emergentes da complexidade social e os problemas oriundos da busca por uma sociedade mais justa. A ideia em causa é a de que as sociedades se têm tornado, em diversos sentidos, mais complexas, sendo essa complexidade prioritária face aos temas da justiça social, na medida em que importa preservar o equilíbrio e a or-dem da realidade social complexa. Assim se procura afastar a defesa da dignidade da pessoa e daquilo que se considera ser

Page 3: 01-04-2016 - Universidade de Coimbra · dos tratados orçamentais (défice, dívida, etc.) para forçar o retorno da velha receita Enquanto isso, podem os objectivos dos que se opõem

01-04-2016

fft;e4'..= 714r7 •••.' •

=Md& fiffid balk a

Espaço MIRA , GINA COSTA . Espaço MIRA, Porto, entre 30 de Abril e 11 de Junho

uma vida que está à altura dessa mesma dignidade. Os defensores do constitucio-nalismo não democrático concordarão com a troca entre justiça social e comple-xidade. Na sua perspectiva, o acréscimo das desigualdades e da exclusão social correspondem a danos colaterais. A ges-tão de riscos requer peritos, técnicos, ex-pertise e não debate político, intervenção pública e contestação social.

O ataque aos direitos económico-sociais, em particular ao trabalho

A austeridade é, inequivocamente, um momento de confronto e desafio à Consti-tuição, nomeadamente em matéria social. A comprová-lo está a identificação da se-veridade com que os direitos fundamen-tais económico-sociais têm sido afectados. Por exemplo, de acordo com o relatório publicado pelo Parlamento Europeu, The itnpact of the crisis on fundamental rights across Member States of the EU - Compara-tive analysis (2015), a situação portuguesa é retratada de forma dramática. Em áreas como o direito à educação, que pôs em

causa a qualidade das escolas públicas, o di-reito à saúde, com a desqualificação do Ser-viço Nacional de Saúde, os cortes sofridos em medidas de protecção social como o di-reito às pensões e o direito à Segurança So-cial, e o direito ao trabalho, que foi «prova-velmente o mais afectado pelas medidas de austeridade». Este último merece um par-ticular destaque, considerando-se as fortes alterações introduzidas que corresponde-ram a um recuo dos direitos fundamentais do trabalho em matérias como a negocia-ção colectiva, a protecção do despedimento e a organização do tempo de trabalho. O re-ferencial constitucional em matéria labo-rai vacilou perante a erosão dos direitos so-ciais e laborais do que resultou a redução da protecção dos trabalhadores, uma trans-ferência de poder entre o capital e o traba-lho com a desqualificação do papel dos sin-dicatos, e uma transferência de rendimen-tos entre capital e trabalho, por via da apli-cação da legislação laborai da austeridade.

Sob o signo das reformas estruturais, têm-se efectivamente descaracterizado elementos fundamentais das aspirações inscritas nas sociedades democráticas. Mas importa realçar que é um abuso de

linguagem designar por projectos de re-forma medidas que apenas fazem apelo à desregulamentação, flexibilização, priva-tização e degradação do Estado social.

Se o leitor me acompanhou até aqui, tem presente o tom deliberadamente pes-simista adoptado quanto à afirmação dos conteúdos democráticos da Constituição Portuguesa Fi-lo como forma de realçar os perigos e ameaças que se continuam a co-locar à Lei Fundamental do país. Não obs-tante, devem registar-se as manifestações de defesa da Constituição como referen-cial democrático e de promoção do Estado social e dos direitos sociais. Esta defesa da Constituição democrática tem sido prota-gonizada e afirmada por diferentes acto-res sociais, políticos e institucionais. O Tri-bunal Constitucional, apesar das flutuações jurisprudenciais, tem contrariado o consti-tucionalismo de excepcionalidade, dando resposta à incapacidade dos dispositivos da democracia representativa para baliza-rem o poder das nebulosas de parceria es-tratégicas entre o poder dos eleitos e dos não eleitos, A jurisdição constitucional em contexto de austeridade e de excepção tem sido, deste modo, um mecanismo de com-

pensação face à debilidade do poder regu-latório das instituições democráticas.

Acresce que, da mesma forma em que há uma configuração de acção não demo-crática, existe uma configuração de acção democrática. A sua actuação tem permi-tido afirmar os valores do Estado social de Direito democrático e dos princípios polí-tico-constitucionais da segurança, da con-fiança e da promessa democrática. Ela tem sido protagonizada por partidos políticos, movimentos sociais, sindicatos, e por to-dos aqueles para quem a Constituição é, como já afirmei, portadora de um princí-pio de justiça social universal que tem de ser protegido. Nestes termos, há que con-trapor ao pretenso reformismo da auste-ridade e da excepção, um verdadeiro re-formismo que assenta no controlo político democrático suportado pela defesa de um mundo mais livre, mais igual e mais justo.

* Sociólogo. Professor na faculdade de Economia da

Universidade de Coimbra e investigador do CES -Centro de Estados Sociais da Universidade de Coimbra.

Autor, entre outras obras, de Politica e Sociedade:

teoria social em tempo de austeridade (Vida Económica, 2014); e de Sociedade da Austeridade e

direito do trabalho de exceção (Vida Económica, 2012).

Page 4: 01-04-2016 - Universidade de Coimbra · dos tratados orçamentais (défice, dívida, etc.) para forçar o retorno da velha receita Enquanto isso, podem os objectivos dos que se opõem

01-04-2016

DOSSIE . Nos 40 anos da Constituicao: direito ao trabalho, a cidade, a habitacào

Gentrificação e turistificação: o caso do Bairro Alto em Lisboa Que evoluções houve no direito à cidade nas últimas décadas? Analisando o caso do Bairro Alto, em Lisboa, são visíveis diferentes gerações de políticas. Mais viradas para acções de reabilitação integrada que visavam o reforço das identidades locais no fim do século XX, são hoje caracterizadas por lógicas neoliberais que favorecem formas diversas de segregação.

FABIANA PAVEL *

omeçado a ser urbanizado a partir

(...„ de 149801, o Bairro Alto constitui- -se como um marco na história ur-

banística e social de Lisboa. Ao longo dos seus mais de 500 anos de vida, a área tem conseguido auto-regenerar-se, chegando aos dias de hoje com uma identidade pecu-liar, caracterizada por uma forte heteroge-neidade social e arquitectónica.

Estas características foram postas em causa nos anos cinquenta do século XX, quando o arquitecto Cristino da Silva ela-borou, a pedido da Câmara Municipal de Lisboa (CML), o Ante-Plano de Urbanização e Remodelação do Bairro Alto, que previa a renovação radical do bairro. No quadro do paradigma higienista e funcionalista, pre-via-se a criação de amplas vias de circula-ção e a construção de novos edificios (de 10 a 12 andares). A realização deste plano im-plicava a demolição de 597 edificios onde estavam instalados 11 040 habitantes, de baixo nível económico, de uma população total de 14 348'21. Não era suposto realojar--se a população preexistente nos novos edi-ficios a construir, no quadro das interven-

ções da época que não consideravam rele-vantes os aspectos sociais.

Do antigo conjunto urbanístico preten-dia-se conservar apenas uma pequena zona «em que deverão manter-se (...) as caracterís-

ticas que dão feição pitoresca ao aglomerado

(..) formando uma zona convenientemente

estudada e dirigida no sentido de salvaguar-

dar o interesse turístico do local» t31

Nota-se que o interesse para com o de-senvolvimento turístico das cidades não é um fenómeno característico apenas da ac-tualidade. O turismo considerado hoje «cul-tural» tem origem no século XVII, quando para uma elite de jovens cultos e abastados o «grand tour» era parte fundamental de uma boa instrução. Já nas primeiras déca-das do século XX se iniciaram, em algumas cidades como Barcelona, transformações urbanísticas com o intuito de criar espaços urbanos com funções turísticas'''.

A não implementação do Ante-Plano de 1942-1952 permitiu a sobrevivência do conjunto urbanístico do Bairro Alto. Contudo, a zona, que apresentava carên-cias do ponto de vista higiénico e de con-

servação, não foi alvo de acções de reabili-tação durante décadas.

No pós-25 de Abril

Duma forma geral, na primeira metade da década de oitenta do século XX, os nú-cleos históricos das cidades portuguesas encontravam-se deteriorados, apresen-tando um parque edificado em más con-dições de habitabilidade e conservação, e eram alvo de processos de despovoamento. Neste contexto, e sob a pressão de gru-pos de cidadãos, a CML criou, em 1986, os Gabinetes Técnicos Locais (GTL) de Alfama e Mouraria e, em 1988, o Gabinete para a Recuperação do Bairro Alto (GRBA).

O GRBA deparou-se com três tipos de problemas: degradação, más condições de habitabilidade, emergência de especula-ção imobiliária A degradação dos edificios e dos espaços públicos do Bairro Alto tinha alcançado níveis graves, e as condições de habitabilidade eram muito débeis, tanto ao nível da organização interna dos fogos, quanto ao nível da salubridade151.

Os bons resultados obtidos levaram a CML a criar, em 1990, a Direcção Municipal de Reabilitação Urbana (DMRU), que pas-sou a enquadrar os Gabinetes Locais, para as zonas de Alfama, Mouraria, Bairro Alto e Bica, Núcleos Dispersos, Pátios e Vilas.

O Gabinete Local do Bairro Alto e Bica (GLBAB) lançou acções de reabilitação ur-bana integrada que tinham subjacente a noção de direito ao lugar da população re-sidente e de direito a uma habitação con-digna. A melhoria das condições de habi-tabilidade visava contribuir para a manu-tenção da população em geral, e em par-ticular da população mais jovem, evitando que se mudasse para bairros periféricos. As acções do GLBAB baseavam-se em pro-gramas e acções assentes em métodos de actuação ágil e num contacto directo com os residentes.

Apesar dos esforços do GLBAB, já nesta época o Bairro Alto apresentava indícios de gentrificação (gentrification) habitacional e

comerciaM, e terá sido nesta altura que co-meçou a massificação do comércio nocturno. O Bairro Alto constituiu-se desde as suas ori-gens como um marco na vida nocturna da

cidade; na década de oitenta tornou-se o es-paço da revolução cultural da geração pós-25 de Abril; na segunda metade da década de noventa e início de dois mil, em concomitân-cia com a realização de alguns mega eventos (Lisboa Capital Europeia da Cultura, 1994; Expo 1998; Europeu de Futebol, 2004), o Bairro passou a ser conhecido internacional-mente como bairro da vida boémia

O início do século XXI é marcado, em Lisboa, por uma reestruturação orgânica da CML, efectuada a partir de 2002. Entre outras acções, é extinta a DMRU e os GL são convertidos em Unidades de Projector/J. Nesta altura assiste-se a uma mudança das políticas camarárias, abandonando o mo-delo de intervenções de impacto mínimo interligadas com o apoio local aos residen-tes, e agravando o desinvestimento na re-abilitação, começado na segunda metade dos anos noventa do século XX.

O quadro económico neoliberal enfatizou o progressivo abandono de acções que se pautam por valores de coesão social e terri-torial. Por exemplo, o Novo Regime Jurídico de Reabilitação Urbana (NRJRU) de 2009 limita as operações de reabilitação urbana à mera acção fisica, perdendo a preocupa-ção para com a vertente social. Ao mesmo tempo, a Estratégia de Reabilitação Urbana de Lisboa 2011-2014, partindo da consta-tação da escassez de recursos públicos e da degradação do parque edificado, é ali-cerçada na defesa do investimento privado para a reabilitação (fisica).

Entre as causas da degradação e aban-dono do parque edificado, podem-se desta-car a contenção do valor das rendas; a ma-nutenção dos edificios devolutos por fins especulativos; a incapacidade financeira de os munícipes se substituírem aos proprie-tários em acções de conservação e reabili-tação'81. Estes aspectos são, em parte, cau-sados por alguns obstáculos legais e admi-nistrativos à reabilitação de edifícios. As ac-ções efectuadas para ultrapassar estes im-pedimentos ficaram aquém das expectati-vas. Em particular; o Novo Regime Jurídico do Arrendamento Urbano (NRAU) de 2006 não resolveu «de forma cabal o problema do constrangimento das rendas»[91,

Perante a existência de um parque edifi-cado degradado, alguns autores sublinham

Page 5: 01-04-2016 - Universidade de Coimbra · dos tratados orçamentais (défice, dívida, etc.) para forçar o retorno da velha receita Enquanto isso, podem os objectivos dos que se opõem

01-04-2016

Espaço MIRA . GRACE BRIGNOLLE . Espaço MIRA, Porto, entre 30 de Abril e 11 de Junho

que os processos de gentrificação trazem

impacto positivo para a reabilitação física

dos edificios e para o aumento da econo-

mia. Verifica-se todavia, como refere Neil

Smith11°I, que os conceitos de reabilitação

são usados de forma estratégica para justi-

ficar processos de renovação e de exclusão

da população mais carenciada.

No Bairro Alto, a leitura dos Censos de

2001 e 2011 mostra uma inversão dos

resultados positivos obtidos na década

de noventa do século XX, e um reforço

da turistificação. Em 2011 encontram-se

35,2% de alojamentos vagos (contra os

17,5% de 2001), 58,1% dos quais se en-

contram fora do mercado. A população,

entre 1991 e 2001, aumentou 3,58%; em

contrapartida, entre 2001 e 2011 observa-

-se um decréscimo de 29,23%. A este dado

acresce a presença de 1 lugar cama por 2

habitantes, tendo estes lugares sido cria-

dos, na sua maioria, na primeira década

do século XXII". Sublinha-se que o novo

Plano Director Municipal (PDM) de Lisboa

de 2012 admite a mudança sem limita-

ções de habitação para outros usos, entre

os quais o turístico.

Duma forma geral, as mais recentes ac-

ções da CML parecem tender para a positive gentrification (gentrificação positiva) por meio de políticas inclinadas a apoiar proces-sos de gentrificação como instrumento para «dar vida» aos centros das cidades através do recurso à arte e à cultura, as quais por sua vez servem o turismo.

Como todo o centro de Lisboa, o Bairro

Alto entrou em grande ritmo num processo

de turistificação. A tendência para a gentrifi-

cação habitacional, que apareceu na década

de noventa do século XX, alterou-se para a

tourism gentrification. A abertura de nume-

rosos hostels e a conversão de habitações em

alojamentos locais contribuem para o des-

povoamento da área e para o deslocamento

da população de diversas formas: desloca-

mento directo; deslocamento por exclusão;

pressão do ruído e convivência; desloca-

mento colectivo1121.

«Disneyficação» e «folclorização»

A massificação do comércio nocturno conduziu a uma «Disneyficação» e «foldo-

rização» da área, causando graves distúr-

bios para os moradores em termos de ru-

ído, segurança e higiene, bem como ao de-

saparecimento progressivo do comércio de

proximidade. A dinâmica imobiliária apro-pria-se dos valores do local desenvolvendo

um marketing que enfatiza valores como a

história cia área e a possibilidade de se vi-

ver durante a estadia num bairro tradicio-

nal juntamente com a população local, ao

mesmo tempo que favorece o desapareci-incuto desta mesma população.

Encontramo-nos perante cidades onde o consumo é o motor principal das acções ur-

banísticas. A consequência é a proliferação

de espaços de segregação cultural e econó-

mica, que afastam a população da realidade urbana, e fazem com que as cidades se pa-

reçam umas com as outras[13). Os processos

de gentrificação e turistificação são alguns

dos motores desta segregação.

O aumento do turismo provoca grandes expectativas em termos de desenvolvimento

económico, mas coloca também a questão

dos recursos a afectar à conservação e revi-

talização dos centros históricos. Na maioria

dos casos, as cidades, por causa da pressão

exercida pela indústria turística, transfor-

mam-se em imagens estereotipadas, ou têm

de se adequar ao mercado internacionalm. Ao mesmo tempo, os processos de gentri-

ficação e turistificação provocam o desloca-

mento mais ou menos voluntário das popu-

lações locais, colocando em causa o direito de todos à cidade.

A visão teórica da reabilitação na óptica

da valorização do património para todos, da

salvaguarda da diversidade cultural e de um

desenvolvimento sustentável permanece na

agenda do dia. Porém, as dinâmicas econó-

micas e as transformações urbanas daí re-

sultantes têm vindo a comprometer a coe-

são socioeconómica e territorial.

As breves notas aqui expostas mostram como as políticas camarárias em Lisboa,

que em finais do século XX tinham subja-

centes acções de reabilitação integrada que

visavam o reforço das identidades locais, no

novo milénio se viraram progressivamente

para a lógica neoliberal, enfatizando, no

Bairro Alto, o processo de turistificação e co-

locando em segundo plano a coesão social, o

que relembra, em parte, as políticas de reno-

vação da década de cinquenta do século XX.

No Bairro Alto, a presença de uma popu-

lação que, através das associações locais, re-

dama o direito de permanecer no local e de ser

portadora e (re)produtora da sua identidade,

apela a políticas que (re)valorizem a identi-

dade espacial, cultural e social que marra o

Bairro Alto desde as suas origem e que permi-

tam a manutenção duma população estável s. * CIAUD I GESTUAL

[1] Helder Canta, Lisboa Manuelina e a formação de modelos urbanisticos da época moderna (1495-1521), Livrõs Horizonte, Lisboa, 1999. [2] Luís Cristino da Silva, Estúdio Carrasco (fotogr.), Gustavo Matos Sequeira (colab.), Ernest Fleury (co-lab.), Estudo Parcial De Urbanização, Remodelação Do Bairro Alto, Lisboa. 1949-1952 [82 desenhos de arquitectura, 132 fotografias, proposta para a elaboração do ante-plano, inquérito, notas sobre as con-dições geológicas, tábua de valores climatéricos, relatório sobre o inquérito, memória descritiva, corres-pondência, orçamentos, recibos, mapas do Inquérito], 1952. Acessível na Biblioteca de Arte da Fundação Calouste Gulbenkian. LCS 73. [3] ibidem, p. 8. [4] Agustín Cócola Gant, «La "reinvenzione" dei Barri() Gótico a Barcellona: nazionalismo e turismo alia metà de/ XX seco/o», Storia Urbana, n.° 142, Franco Angeli, Milão, 2014. [5] António Reis Cabrita, José Aguiar e João Appleton, Manual de apoio á reabilitação dos edifícios do Bairro Alto, Câmara Municipal de Lisboa, Laboratório Nacional de Engenharia Civil, Lisboa, 1992. [6) Luís Mendes, «A nobilitação urbana no Bairro Alto: análise de um processo de recomposição sócio--espacial», Finisterra, vol. XII, n.° 81, Lisboa, 2006, pp.57-82; Fabiana Pavel, «Transformação urbana de uma área histórica: o Bairro Alto. Reabilitação, Identidade e Gentrification», Faculdade de Arquitectura da Universidade de Lisboa, Lisboa, 2015 (Tese de Doutoramento) [7] Extintas com a reforma administrativa de 2012, quando o Bairro Alto é enquadrado na Unidade de Intervenção Territorial (UIT) Centro Histórico. [81Ana Cláudia da Costa Pinho, «Reabilitação de edifícios vs Reabilitação urbana: as contradições persis-tentes em Portugal», Revista Norma, AD-Urbem, Lisboa [no prelo]. [9] Ibidem, p. 6. [10] Neil Smith, «New Globalism, New Urbanism: Gentrification as Global Urban Strategy», Antipode, vol. 34, on-line [s.n.], 2002, pp. 427-450. [11] Fabiana Pavel, 2015, op. cit., pp. 219-239. [12] Agustín Cócola Gant, Apartamentos turísticos, boteis y desplazamiento de población, Barcelona, 2016, www.agustincocolagant.net. [13] David Harvey, «The right to the city», New Left Review, n ° 58, Londres, Setembro-Outubro de 2008 [14] Giorgio Piccinato, Un mondo di città, Ed. di Comunità, Turim, 2002.

Page 6: 01-04-2016 - Universidade de Coimbra · dos tratados orçamentais (défice, dívida, etc.) para forçar o retorno da velha receita Enquanto isso, podem os objectivos dos que se opõem

01-04-2016

Espaço MIRA DAVIDE CAPPONI Espaço MIRA, Porto, entre 30 de Abril e 11 de Junho

DOSSIÉ . Nos 40 anos da Constitui ão: direito ao trabalho, à cidade, à habita ão

A série sobre os tempos difíceis por que passam os trabalhadores em Portugal incide, neste mês em que se assinalam os 40 anos da Constituição, sobre um dos direitos que o texto consagra mais espezinhados: o direito à habitação. Através de um morador de um bairro na Damaia, concelho da Amadora, seguimos os labirintos do despejo sem realojamento à vista.

CATARINA SAMPAIO *

direito à habitação está definido na Artigo 65.º da Constituição Por- tuguesa: «Todos têm direito, para si

e para a sua família, a uma habitação de di-mensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar»t1t. Contrariando esta determinação, muitos cidadãos portugueses e imigrantes que residem desde há muito em bairros informais na periferia de Lisboa têm sido despejados sem o consequente e devido realojamento. As políticas de gestão do território vão promovendo os interesses privados em detrimento do bem público. Através de consecutivas acções de despejo e consequente demolição das habitações, muitos moradores do concelho da Amadora têm ficado sem casa e sem acesso a realoja-mento. É assim negado a estes habitantes, cujo quotidiano já se encontra marcado pela precariedade, vulnerabilidade e estigma, a igualdade de direitos relativamente à habita-ção e à vivência do espaço urbano. O que já se passou com o bairro de Santa Filomenat2t está agora a acontecer no bairro 6 de Maio, com consequências dramáticas. Neste artigo seguimos o processo de despejo de um mo-rador do 6 de Maio e o labirinto burocrático em que está envolvido nas suas tentativas de garantir um realojamento.

António nasceu em Dezembro de 1949 no concelho de Tarrafal, ilha de Santiago, em Cabo Verdet31. Antes de ir para a tropa traba-lhou a partir dos 17 anos como capataz na construção de estradas no concelho de Tar-rafai Depois de ter cumprido o serviço mi-litar em Angola durante a Guerra Colonial chegou a Lisboa em Agosto de 1974, prove-niente de Cabo Verde. Ficou então a viver em casa do seu pai, no bairro 6 de Maio. Em Por-tugal, este período final do Estado Novo foi marcado pela forte emigração para França e pelo rec►utamento compulsivo para a Guerra Colonial. Algumas actividades econó-micas careciam de mão-de-obra, face à ex-pansão das obras públicas e da construção civil. A entrada de cabo-verdianos foi assim incentivada. Este fluxo migratório dirigiu-se essencialmente para a Grande Lisboa, sendo o actual concelho da Amadora um dos desti-

nos privilegiados. Depois da chegada a Por-tugal, António trabalhou na Canis e na cons-trução civil. Em 1995, negociou a saída da Carris através de uma reforma antecipada Daí para cá tem trabalhado na construção ci-vil, enquanto armador de ferro, sempre com contratos precários.

Desde a sua chegada Lisboa, em 1974, viveu na cintura de bairros de construção clandestina que envolviam o actual bairro 6 de Maio. Este bairro fez parte de um cond. nuum de bairros informais, adjacentes à an-tiga Estrada Militar, cuja construção está intimamente ligada aos fluxos migrató-rios direccionados para a Área Metropoli-tana de Lisboa (AML). Deste continuam fa-ziam parte o bairro das Fontainhas, entre-tanto demolido, o Estrela d'Áfiica, em avan-çado processo de demolição desde 2014, e o 6 de Maio. Para ser considerado informal um bairro deve apresentar as seguintes caracte-rísticas: «A primeira é que sua formação não obedece a nenhuma das regras urbanas ou le-gislativas: as ruas não são definidas antes da construção das casas e as redes de água e es-goto são implementadas depois da constru-ção das moradias. A segunda é que as unida-des habitacionais são construídas de acordo com a disponibilidade de lotes vazios. Esse

processo de ocupação acontece, geralmente, de maneira ilegal independentemente de a área ser propriedade pública ou privada»M.

Depois da demolição do bairro das Fon-tainhas e da parcial demolição do bairro Es-trela c(' África, o 6 de Maio aparece como um espaço «amputado», um vestígio da mate-rialidade, das dinâmicas sociais e de mobili-dade que aquele todo apresentavaN.

Em 1995, António voltou a habitar no 6 de Maio. Os bairros informais onde morou anteriormente foram demolidos e os mo-radores realojados. António recorda-se de como foram os habitantes do 6 de Maio, maioritariamente de origem cabo-ver-diana, que autoconstruíram o bairro:

«Este bairro foi construído com bobi-nes de cabos de alta tensão. Ali em baixo, onde é a rua das Fontainhas, está lá o esta-leiro da Edifer, era uma fábrica de cabos de alta tensão, unia fábrica onde faziam os ca-bos de electricidade, só cabos grossos. Então, quando eles tiravam esses cabos grossos, en-tão aqueles bobines iam para lá e a gente ia--lhes pedir: Desmontávamos aquilo à picare-tada e fazíamos a barraca em madeira. Para sobreviver: Para podermos viver»16)

O bairro caracteriza-se pela precariedade das habitações e pelo espaço de circulação

composto por ruas estreitas e sinuosas, tal como o sistema das medinas árabes. Como o território do bairro é diminuto, a amplia-ção das habitações foi-se fazendo em altura. Cada unidade doméstica é inacabada, tanto a nível formal como no que respeita à orga-nização do seu espaço interior; deixando a possibilidade para alterações que vão ao encontro da satisfação futura das necessi-dades habitacionais dos moradores. Actos de resistência e teimosia permitiram que o bairro se consolidasse no tempo, apesar das frequentes políticas públicas discrimi-natórias. A história do bairro é assim mar-cada por unia luta entre Os seus moradores, que desejavam estabilizar a sua situação com a edificação de casas, e as autoridades, a limitarem a construção e a procurar elimi-nar o que fora construído.

«Os africanos viveram nessa situação»

«Os africanos viveram nessa situação. Então, quando houve o 25 de Abril, pas-sado uns tempos, começámos a ter um poucochinho de liberdade, houve alguns que compravam uns tijolos... começámos em fazer a barraca em tijolo, já tínhamos um bocadinho de poder... mais ventos, não é como agora. O tempo está totalmente mudado. Vinham os agentes da polícia, da GNR, derrubavam-nos a barracada com ti-jolo todo feito... Vinham de manhã, pumba, destruíam. Com as famílias lá dentro. Mete-ram o telhado de noite, meteram algumas coisinhas, uma caminha para desenrascar; mas eles vinham e abusavam.»171

O bairro foi-se consolidando, as habita-ções de madeira foram transformadas em casas de tijolo, para os habitantes consegui-rem melhorias das condições de habitabi-lidade das suas casas. Em 2012, enquanto corria o boato que a Câmara Municipal da Amadora (CMA) estava a construir «um novo 6 de Maio»t81 para esta população, os moradores começaram a assistir a demoli-ções pontuais.

«Eles começaram a demolir algumas bar-racas que não estavam ocupadas, porque al-

Page 7: 01-04-2016 - Universidade de Coimbra · dos tratados orçamentais (défice, dívida, etc.) para forçar o retorno da velha receita Enquanto isso, podem os objectivos dos que se opõem

01-04-2016

guns emigraram para França. Deixaram pes-soas de família lá, mas porque estas não ti-nham nome, puseram os familiares na rua e deitaram as barracas abaixo. Aqui, no iní-cio, foi assim... podiam estar a trabalhar ali no Algarve, só vinham no fim do mês ou no fim-de-semana só para visitara raça Eles vi-nham cá, funcionários da Câmara, e o pes-soal não estava porque estava a trabalhar fora e eles pumba, mandavam a barraca abaixo. Tiravam as coisas às vezes, mas até com as coisas lá dentro, eles iam depositar no armazém'da Câmara lá para o Alto do Ca-sal da Mira, e depois quando quisessem iam lá levantar... isto assisti eu muitas vezes... quando a pessoa vinha encontrava a barraca já deitada abaixo porque não tinha direito à barraca... Não estava em casa, não tinha di-reito à barraca ...»"9)

Estas demolições efectuaram-se ao abrigo do Programa Especial de Realojamento (PER)m. Este programa surgiu em 1993 com o objectivo de proporcionar aos muni-cípios das áreas metropolitanas de Lisboa e Porto condições para erradicar as barracas existentes e realojar estes moradores em ha-bitações de custos controlado& Mas na prá-tica, a melhoria das condições de vida destes habitantes parece menos relevante, e por ve-zes mesmo em oposição, à criação de infra--estruturas viárias que permitem a «moder-nização» e rentabilização da cidade.'"). Em 2015, começaram demolições e despejos a uma escala maior do que até então. Con-sequentemente, aumentaram os dramas humanos, porque grande parte da popu-lação do bairro 6 de Maio alvo de despejos não tem outra habitação para onde ir, cor-rendo o risco de ficar na rua

A história de vida de António é disso exem-plo. Apesar de ter pago imposto municipal sobre imóveis (IMI) relativo a uma habitação no 6 de Maio, a Câmara Municipal da Ama-dora (CMA) planeou a demolição do bairro em 2016 e afirma que António não tem di-reito a realojamento porque não está ins-crito no PER1121. Até há relativamente pouco tempo, porém, todos os moradores estavam convencidos que a CMA os iria realojar, em-bora também corresse o boato de que a CMA não tinha dinheiro para estes realojamentos.

Em Setembro de 2015 encontrei António no meio de um processo burocrático com-plexo de troca de correspondência com a CMA Ele tem tentado provar a legitimidade dà sua presença no bairro onde vive há dé-cadas. Numa sexta-feira, em Dezembro de 2015, recebeu uma notificação para se diri-gir à junta de freguesia. Deslocou-se com a esperança de que finalmente lhe entregas-sem a chave de uma casa, mas ao contrário das suas expectativas, disseram-lhe que não tinha direito a realojamento e devia sair do bairro. Desde esta altura, tem a obrigação de se apresentar periodicamente aos assis-tentes sociais da CMA na junta de freguesia, como um condenado. São-lhe sempre pe-didos novos documentos mas depois de os

apresentar a resposta é sempre a mesma: não tem direito a realojamento.

«Ainda penso que estas apresentações às assistentes sociais são para eu ter di-reito a uma habitação. Mas eles não que-rem é dar-me uma habitação.... Ter que ir lá de quinze em quinze dias incomoda-me porque eu tenho mais coisas a fazer. Olhe eu já sou reformado, mas o meu rendimento é pouco. Eu tenho que andar a fazer biscates, a fazer a minha horta para eu ter um apoio de subsistência. E agora eu estou a perder esse tempo, é dinheiro que eu estou a per-der para trabalhar para a minha vida... Não acho normal estas apresentações porque eles já tiveram tempo para resolver o meu problema, da minha residência Sou obri-gado a estar lá de quinze em quinze dias, é sempre a mesma coisa Eles a mandarem--me a vir morar para outro lado, porque não tenho direito à casa... Eu que estou a mo-rar dentro da mesma zona, na mesma fre-guesia, no mesmo bairro praticamente há quarenta e tal anos... Não são quarenta e tal dias... São quarenta e tal anos, desde Agosto de 1974 que eu imigrei para trabalhar; tinha acabado de sair da tropa nesse ano... Desde 1974 que eu moro no bairro e ando para cima e para baixo sem direito a uma habi-tação. Não tenho direito à barraca, nem te-nho direito a uma habitação, não sei porquê ... disseram-me que eu não tinha descontos, que em 1990 não estava no bairro, não es-tava no bairro. Eu fui à Segurança Social e ti-rei os descontos desde 1974. Levei para lá... Não, tinha que tirar os descontos com os da-dos de todas as residências para eles verem que eu nunca saí do bairro. Fui outra vez à Segurança Social pedir outra vez a certidão à senhora Eles sabem bem que só conta a residência actual, as anteriores não con-tam... A senhora da Segurança Social disse--me: isto é uma brincadeira, eles andam é a brincar consigo, eles sabem perfeitamente que só conta a morada actual... Eles é que andam a prejudicar a sua situação!» 1131

«Viver debaixo da ponte»

António receia que o seu destino seja «vi-ver debaixo da ponte» 1141.

«A Câmara Municipal da Amadora está a portar-se muito mal com os africanos! Está a portar-se mesmo mal! Eu não sei qual é negociação que eles têm... A Câmara, como qualquer empresa, está em negociação... Isto tenho eu a confiança! Porque isto não é à toa! Porque é que as outras Câmaras tiveram a possibilidade de alojar qualquer pessoa? Em Oeiras, eu conheço muita gente de Oei-ras, foram realojados nas suas residências. Em Almada, todo o. mundo é realojado! Se-túbal, são todos realojados! E porque é que a Amadora é a única Câmara Municipal que não realoja? Câmara de Loures são todos re-alojados, tiraram a Pontinha mas a Câmara Municipal de Loures realojou todos os mo-radores das barracadas pertencentes a Lou-

res. Porque é que só a Câmara Municipal da Amadora? É porque aqui há um negócio sujo! Não acho justo isso! Que é isso? Uma pessoa viver quarenta e tal anos num país, dentro do mesmo concelho... quando vim para aqui, a Amadora não era concelho em concelho de Oeiras, a demarcar com Sintra e Loures. Era Oeiras, Sintra e Loures. Marca-vam os três concelhos a periferia de Lisboa Agora porque é que eu não tenho direito à barraca? Isto é brincar com uma pessoa! A Câmara não tem direito de fazer isto! E agora como eles dizem que em 2007 eu não estava lá a viver? Isto para mim está mal!» 05)

António conhece outros processos se-melhantes a decorrer com pessoas da mesma geração.

«Eu conheço uma senhora que é viúva e mora aqui no bairro desde mil novecen-tos e setenta e tal. O marido já faleceu. Ela tem um neto que ficou a tomar conta dela Ela tem problemas de saúde. Mora dentro da casa com o neto. O neto já tem idade, já é um homenzão, ele acompanha-a para trata-mentos porque ela não pode ir sozinha De maneira que a câmara não quer dar a casa para ela viver com o neto, porque o neto não tem direito à casa... Ele mora mesmo lá em casa com ela Como é que ela faz? Quem é que lhe dá companhia? Quem acompanha ela na falta de saúde? Será que as assisten-tes sociais têm capacidade de a acompanhar todos os dias, passar a noite com ela, se ela tiver qualquer problema de saúde? Tentam chamara ambulância para cuidar dela? Não acho justo... Isto é uma coisa que está muito mal! Ela vive com o neto! Ela criou o neto desde criancinha... O neto é considerado um filho. Eles não querem que o neto viva com ela! O neto não tem direito a casa porque não está no PER Então, se o seu falecido marido estivesse vivo, será que eles dois não tinham direito a casa? Se o neto fosse filho deles, será que o filho deles não tinha direito à casa? Olhe um pouquinho de amor...»1161

A actuação da autarquia relativamente a estes despejos e demolições é diferente consoante o caso, o que faz com que as pes-soas não saibam como fazer e o que fazer. A eficácia destas acções depende do des-conhecimento da população relativamente aos seus direitos. Direccionado para o con-texto específico de cada morador alvo de despejo, este modus operandi torna difícil uma reivindicação colectiva pelo direito à habitação. Os moradores estão indignados e expressam à sua maneira uma opinião re-lativamente ao que está a acontecer:

«Eu acho que a câmara deveria ter condi-ções para realojar os residentes do bairro, que já lá estão, ou então ter condições para manter as barracas para as pessoas lá con-tinuarem a residir. Então uma pessoa já mora lá há tantos anos e agora querem-nos na rua? Agora, o que é isso? Se a câmara não tem condições não deve tirar o bairro... A câmara deve ter condições para realojar as pessoas que estão no Bairro!»1171

Enquanto o bairro vai sendo demolido, a esperança esmorece e o sentimento de in-justiça aumenta na população. As directivas do PER não chegam para justificar a desu-manidade das demolições. Em vez de pro-curarem proporcionar a melhoria das con-dições de vida dos habitantes destes terri-tórios, estas iniciativas visam muitas vezes outros objectivos, como a rentabilização do espaço através da construção de estradas e de habitação para outras camadas sociaist"). Desta forma, territórios na margem na ci-dade, como o bairro 6 de Maio, são alvos de uma violência colectiva'191, para a qual a bu-rocracia contribui de forma bastante eficaz Os despejos e demolições, sem a garantia de realojamento ou preocupação com o futuro das populações, revelam uma dimensão es-pecífica mas muito presente, da violência a que estas comunidades estão sujeitas. a

* Antropóloga, ICS-IUL.

[1] Cf. www. parlamento. pt/Legislacao/Paginas/ConstituicaoRepublicaPortuguesa.aspx. [2] Ver André Carmo, «Santa Filomena: crónica de um desastre anunciado», Le Monde diplomatique —edição portuguesa, Setembro de 2012. [3] António é um nome fictício. [4] Elisabete França, «O que são as Favelas», AA.W., São Paulo: Projectos de Urbanização de Favelas, Superintendência de Habitação Popular/Secretaria Municipal de Habitação, São Paulo, 2010. [5] Catarina Sampaio, «Habitar o 6 de Maio: as casas, os homens, o bairro», 2013, dissertação de mes-trado em Antropologia, ICS-UL. [6] Entrevista a António em Dezembro dè 2011 [7] Relatos de António em Novembro de 2011. [8] Palavras de vários moradores em 2012. [9] Entrevista a António a 8 de Dezembro de 2015. [10] «Ó Programa de Realojamento visa proporcionar aos municípios condições para proceder à erradica-ção das barracas existentes e ao consequente realojamento dos seus ocupantes em habitações de custos con-trolados. Existe o Programa Especial de Realojamento (PER) para as áreas metropolitanas de Lisboa e Porto», www.portaldahabitacao. pt/pt/portat/habitacao/programasapoio/perhtml [11] Ver Ana Cardoso et al., «A cidade esquecida: pobreza em bairros degradados de Lisboa», Sociologia, Problemas e Práticas, 1994, n.° 15, pp. 99-11. [12] O processo de recenseamento da população deste bairro para implementação do programa PER foi executado em 1993. A inexistência de actualizações dos dados então recolhidos conduz a uma grande discrepância entre as informações de 1993 e a realidade sociodemogrãfica existente no bairro 6 de Maio na actualidade. [13] Entrevista a António a 8 de Março de 2016. [14] Entrevista a António a 8 de Dezembro de 2015. [15] Entrevista a António a 8 de Dezembro de 2015. [16] Entrevista a António a 8 de Dezembro de 2015, [17] Entrevista a António a 8 de Março de 2016. [18] Ana Cardoso, et al, bidem. [19] Ver loic Wacquant, «Que é o gueto? Construindo um conceito sociológico», Revista de Sociologia e

n 23, 2004, pp. 155-164

Page 8: 01-04-2016 - Universidade de Coimbra · dos tratados orçamentais (défice, dívida, etc.) para forçar o retorno da velha receita Enquanto isso, podem os objectivos dos que se opõem

01-04-2016

a tith, Ar. n•-•^",

Dossiê

40 anos da Constituição:

ANTÓNIO CASIMIRO FERREIRA, CATARINA SAMPAIO, FABIANA PAVEL