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    Uma tentativa de afastar as

    sombras:A Costa dos Murmrios,

    de Ldia Jorge

    Isa Lopes Coelho(Universidade Federal Fluminense)

    RESUMO

    O romance A costa dos murmrios de Ldia Jorge desmistifica o discurso da

    histria oficial e revela a desintegrao da identidade nacional portuguesa. Numprimeiro momento do romance, o discurso mtico de supremacia do grandeimprio Portugus reduplicado nas vozes harmnicas da verdade nica dasEvitas, estas rendilheiras do Stella, Penlopes espera dos seus heris, quese fazem ouvir no relato de Os Gafanhotos. Entretanto, logo depois,testemunhamos a desconstruo deste discurso representado em OsGafanhotos e a construo de uma verdade vacilante que se equilibra naprecariedade dos murmrios das memrias e nos mantm conscientes dafragilidade destas lembranas enquanto sujeitas a um filtro seletivo e parcial.PALAVRAS-CHAVE:autoridade; memria; conto

    ABSTRACT

    The novelA costa dos murmriosde Ldia Jorge dismystifies the discourse of theofficial history and unveils the desintegration of the Portuguese nationalidentity. In a first moment of this novel, the mythical discourse of thesupremacy of the great Portuguese Empire is redoubled in the harmonic

    voices of the univocal historic truth of the Evitas, those rendilheiras doStella, Penelopes awaiting their heroes, who have a voice in the account ofOs Gafanhotos. However, soon afterwards, we witness the deconstructionof this discourse represented in Os Gafanhotos and the construction of a

    vacillant truth that finds its balance in the precariousness of the murmuring of

    the memories and keeps us aware of the fragility of this recollection as it issubject to a selective and partial filter.KEYWORDS: authority; memory; tale

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    A teoria tem uma fora vitalque ultrapassa a vida. A teoria e o conto.

    Ldia Jorge (1988, p. 258)

    O romance A costa dos murmrios, de Ldia Jorge, tem sido objeto deinmeros estudos literrios que, na sua grande maioria, focalizam os aspectosformais da narrativa, alm de questes inerentes ao nosso tempo, inserindo-ono que Linda Hutcheon denomina de metafico historiogrfica. umromance que, ainda segundo Hutcheon, pode ser definido como aquele em quea fronteira entre histria e fico encontra-se empalidecida na medida em que otexto se mostra deliberadamente fictcio e, apesar disso, ao mesmo tempo,inegavelmente histrico. (HUTCHEON, 1991, p. 184). Neste breve estudo,temos por objetivo tecer algumas consideraes adicionais dentro dessemesmo vis.

    O romance de Ldia Jorge se revela metaficcional ao enfatizarrepetidamente seu carter de construto e, enquanto narra os fatos, discutir seuprocesso de criao, levantando questes sobre a sempre complexa relaoentre fico e realidade. A histria se passa em Beira, Moambique, e tem seudiscurso ficcional autenticado atravs de referncias a acontecimentoslocalizados historicamente nos primeiros quatro anos da dcada de 70, perodoque antecedeu o final das guerras coloniais: a operao N Grdio, noterritrio maconde de Cabo Delgado, comandada pelo General Kalza de

    Arriaga, o general do texto, e o massacre de Wiryiamu, evidenciado nanarrativa pelas fotos que Helena mostra a Evita e pelo relato da limpezaapresentado pelo alferes Gis. Todavia, a narrativa de Ldia Jorge subverte anarrativa tradicional da guerra ao ignorar qualquer descrio direta das aesblicas enquanto teoriza e re-inventa o ato de escrever sobre a guerra.

    O romance divide-se em duas narrativas separadas dos mesmos fatos,mas s ao final da leitura de ambas as partes que se consegue apreender aobra em toda a sua densidade. A primeira narrativa, intitulada Osgafanhotos, cuja ao se passa quase que totalmente no terrao do hotel StellaMaris, constitui-se de um breve relato que, em terceira pessoa, narra acomemorao do casamento entre o alferes Lus Alex e Evita, alm de trazer baila alguns acontecimentos paralelos. Suas personagens so oficiaisportugueses e suas famlias, que, na sua maioria, esto hospedados nesse hotel.Fica bem clara a nfase dada ao papel da mulher como moldura nesse contextoda guerra, entretanto com exceo de Evita e Helena, a mulher do capito ,as mulheres no tm nomes prprios, sendo denominadas de as mulheres dosoficiais ou as rendilheiras do Stella, numa clara referncia Penlope.Desempenham o papel que tradicionalmente, em sociedades patriarcais, seespera das mulheres patriotas no perodo de guerra: aceitam com submisso aagressividade dos maridos, reduplicam seus discursos, fazem tudo parajustificar seus atos violentos e desumanos e se recusam a entender aquilo quepossa ser comprometedor. As mais novas, com seus cabelos longos passados aferro, desesperam-se quando se veem diante de situaes insustentveis,sentiam-se abatidas como as frutas podres, porque no havia quem culpar; asmais velhas, de cabelo em forma de colmeia, suportavam melhor porquemuita morte intil j tinha ficado por explicar. (JORGE, 1988, p. 116). Aprofessora Margarida Calafate Ribeiro desenvolveu um cuidadoso estudo sobreo papel da mulher portuguesa durante o perodo da Guerra Colonial na fricae aponta para um fato indito que ocorreu naquela ocasio:

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    [A] ida de mulheres acompanhando os maridos em missomilitar na frica. Aproximando assim a chamada frenteinterna da frente de guerra, proporcionou-se uma certaestabilidade social dentro de um quadro de inevitvel mudana.Paradoxalmente, criaram-se tambm, a prazo, as condies paraa mudana, na medida em que essas mulheres seriam tambmtestemunhas e, de alguma forma, cmplices de um mundo deguerra, aparentemente reservado aos homens. (RIBEIRO, 2004,p. 15).

    Entendemos que, em A costa dos murmrios, as rendilheiras do Stellaemergem da obra como cmplices da violncia masculina, ainda que, namaioria das vezes, seja uma cumplicidade que se d pelo silncio.

    Essa primeira parte do romance, cujo ponto de vista predominante odo opressor, parece alimentar a verdade nica por tanto tempo veiculada pelahistria oficial, que sustentava e era sustentada pelo imaginrio nacional, ao nosdar uma imagem espetacular, quase mgica, na sua harmonia e encantamento,de um episdio to trgico da guerra colonial. Uma leitura menos atenta desterelato cairia na armadilha de apenas registrar o clima de festa que reina nestesuposto osis de paz e encanto, onde casais riem e danam descontraidamente;nada que lembrasse que estavam em pleno processo da guerra, pois ainda eramuito cedo para se falar em guerra, que, alis, no era guerra, mas apenas umarebelio de selvagens... Era muito cedo para se falar em Imprio.... (JORGE,1988, p. 13).

    A paz desse osis no maculada nem mesmo quando tomamconhecimento de que uma infinidade de pretos apareceram mortos na praia eesto sendo recolhidos por dumpersde lixo. A grande comoo se d geogrficae emocionalmente fora do hotel. Para os oficiais portugueses e suas esposas,tudo no passa do grande espetculo duma noite secreta e memorvel(JORGE, 1988, p.18) a que assistem, dos seus camarotes, munidos debinculos para nada perder:

    Afinal, durante a noite, haviam pressentido algo dedeslumbrante, mas exaustos do cortejo, tinham mergulhadonum sono estpido sem darem importncia s corridas quepassavam sob as janelas do hotel Stella Maris. Tinha sido pena!

    Alis, por que razo haviam sido cleres em recolher os corpos?Essa era uma pergunta colectiva mas que s algunsformulavam. (JORGE, 1988, p. 20).

    Os portugueses no tm dificuldade em encontrar explicaes para oocorrido, ainda que se tratassem de estivadores, homens de potentesmsculos, bons nadadores. (JORGE, 1988p. 19). O major acredita nasmatanas sazonais e cr que tenham se matado catanada e foram-se atirandoao mar ou talvez, num gesto nobre e por se saberem vencidos, suicidaram-secoletivamente. Tudo explicado com muita naturalidade. Em um curtopargrafo a palavra naturalmente repetida oito vezes. E uma imensa ternurase instaura entre os casais, como se depreende, a ternura e o entendimentoeram o contraponto daquele arrebatador espetculo, cujo auge, acontecidodurante a noite, era preciso imaginar. A imaginao despertava a ternura.(JORGE, 1988, p. 21). Mas quando ficam sabendo que, na verdade, os pretosforam os responsveis por seu prprio envenenamento, eles ficam chocados

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    com tanta estupidez e tudo perde a graa e a beleza. No obstante, o essencialera acreditar que eles no tinham nada a ver com a mortandade dos pretos epoder regressar todos ao terrao, pedir ao Gerente que mandasse servir l emcima o almoo, e se possvel o jantar, para no perderem a cena de barbrieque estava afinal ocorrendo entre o Chiveve e o mar. (JORGE, 1988, p. 24).O importante era manter nas trevas tudo que pudesse abalar a supremacia dogrande imprio portugus. As luzes? E para qu acend-las? Devia-se deixaras sombras ocultarem as rvores pelas suas prprias sombras.... (JORGE,1988, p. 31).

    Essa imagem idealizada da guerra e dos seus heris no podiaser manchada: Percebia-se que ningum falava em guerra comseriedade. O que havia ao Norte era uma revolta e a respostaque se dava era a contra revolta. Ou menos do que isso o quehavia era banditismo, e a represso do banditismo chamava-secontra-subverso. No guerra. (JORGE, 1988, p. 74).

    No que a palavra guerra no fosse usada, muito pelo contrrio, eracitada todo o tempo, para se referir a qualquer ao, desde que no fosse parase referir ao conflito armado: A desvalorizao da palavra correspondia auma atitude mental extremamente sbia e de intenso disfarce. (JORGE, 1988,p. 74). Oficialmente, no estavam em guerra. Assumir sua existncia eradesmistificar os fundamentos identitrios da Grande Nao Portuguesa, nosquais metrpole e colnias formariam uma s Nao. No se assumia,sobretudo, qualquer ligao entre o desequilbrio emocional que afligia algunsoficiais e o genocdio do qual participavam. E, ao final do relato, todos,inclusive Evita, atribuem o suicdio do noivo ao excesso de harmonia,felicidade e beleza e concluem que as guerras eram necessrias para equilibraro excesso de energia que transbordava da alma. (JORGE, 1988, p. 38).

    Entretanto, uma leitura mais cuidadosa de Os Gafanhotos, quetransponha a densa ironia e pardia do discurso do seu narrador, vai revelarque esse relato, semelhana de um lead jornalstico, j traz em si, veladas sobuma linguagem metafrica e codificada, as questes que sero maisexplicitamente tratadas na segunda parte do romance. Afinal lvaro Sabino, oautor de Os Gafanhotos o mesmo jornalista que escrevia as colunas dasquintas-feiras no Hinterland e que confessa a Evita que Nos regimes comoeste, mesmo caindo aos pedaos, no se escreve, cifra-se. No se l, decifra-se. (JORGE, 1988, p. 147).

    Ainda nesse primeiro momento do romance, h indciosvelados/revelados da falncia do grande imprio portugus e do sistemacolonial. Seus oficiais, esses grandes heris portugueses, to exaltados pelahistria oficial, comeam a ser desmascarados no relato de Os Gafanhotos,quando se inicia uma tentativa de afastar as sombras, de iluminar as trevas quedurante longos anos povoaram a conscincia portuguesa.A falncia dodiscurso oficial se revela at mesmo por aqueles que aparentemente oreproduzem. Um exemplo dos mais marcantes se d quando algum perguntacomo resolver a situao da colnia e a soluo vem do General, detentor daesperteza necessria a esterilizao compulsiva ou persuasiva, castrao

    voluntria em troca da qual se ofereceria um rdio aos cafres, ou, segundooutra ideia do General, bastaria apenas anular os servios de assepsia, para anatalidade inflectir como uma linha que some!. (JORGE, 1988, p. 25). Essemesmo general, na segunda parte do romance, ao voltar de Cabo Delgado, fazum discurso celebrando as recentes grandes vitrias, repleto de aluso a um

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    passado glorioso totalmente destoante da realidade, e que desmentido peloprprio noivo, como tendo sido uma grandessssima merda. (JORGE, 1988,p. 237). Em outro momento, o paraquedista lesionado no h comodesconhecer a ironia dos eptetos diz que Moambique est para a frica

    Austral como a Pennsula Ibrica est para a Europa esto ambas como abainha est para as calas e, perguntado sobre de quem a culpa, respondenuma das falas mais cnicas de todo o romance:

    Deles, da qualidade dos blacks que nos calharam em sorte! [...]Se tivssemos tido uns blacks fortes, tesos, aguerridos, ns, oscolonizadores, teramos sado da nossa fraqueza. Eles que soos culpados, e se lhes parecemos fortes porque eles mesmosso extremamente fracos. S temos de os recriminar [...].(JORGE, 1988, p. 28).

    Contudo, ao ver as fotografias guardadas em segredo na casa docapito e ler os relatos dos combatentes, Evita toma conhecimento de umaoutra guerra, o avesso da dramatizada no Stella Maris, o grandeenvenenamento que cai sem saber donde, sobre todas as coisas (JORGE,1988, p. 126) e disseminou a destruio: eu me apaixonei por um rapazinquieto procura de uma harmonia matemtica e hoje estou esperando porum homem que degola gente e espeta num pau (JORGE, 1988, p. 167). E

    vinte anos depois, no mais Evita, mas Eva, aquela que foi maculada porqueprovou do fruto do conhecimento, e que j recebera a forquilha do garfodentado de um demnio metafsico, reluzente, encarnado e tinha avaliado oquanto a rvore da sabedoria era do demnio, e a erva da inocncia pertenciaa Deus e seus correligionrios (JORGE, 1988, p. 220), parte para anularaquilo que termina to bem, to oficialmente, aquilo que est toescondido, tudo [aquilo que] termina to conforme as verses suaves queforam feitas. (JORGE, 1988, p. 252-253).

    Margarida Ribeiro reconhece que nem todas as mulheres queacompanharam seus maridos cumpriram com a sua funo de mantenedorasda famlia, assim como estabelecida em termos tradicionais, corporativos eideolgicos pelo regime:

    Acredito que muitas das mulheres que foram para frica,acompanhando os maridos na guerra, colaboraram, voluntriaou involuntariamente, consciente ou inconscientemente, para aproduo do disfarce da guerra sob uma imagem denormalidade que o regime queria projectar. No entanto, e como bem visvel nos depoimentos que podemos obter destasmulheres e na literatura que ficcionalmente as refere, haviaoutras mulheres portuguesas que parecia no encaixarem namoldura requerida e esperada. (RIBEIRO, 2004, p. 23).

    Eva fazia parte desse segundo grupo ao qual Ribeiro se refere. Ela oelemento estranho na comunidade das mulheres do Stella. Sendo assim, nasegunda parte do romance, como leitora, critica e terica, Eva desenvolve umprocesso de desconstruo e reconstruo do relato ao confrontar a verso dosfatos que o jornalista lvaro Sabino apresentou em Os Gafanhotos com asua prpria verso de protagonista da estria, enquanto Evita. Os temasanteriormente introduzidos no relato so a aprofundados, mas jamaisfechados. Numa brilhante conferncia no Real Gabinete Portugus, a

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    Professora Isabel Pires de Lima nos falou de como os romances de Ldia Jorgese valem de uma memria que no memorializa, que se mantm oscilante. Essaindeterminao se confunde com uma reflexo metanarrativa que pe emcheque a oposio entre fico e realidade.

    Eva aprova o relato do jornalista e considera que tudo exato everdadeiro, sobretudo em matria de cheiro e de som... Alm disso, o quepretendeu clarificar clarifica, e o que pretendeu esconder ficou imerso.(JORGE, 1988, p. 41). A ironia que est por trs desta afirmao nos leva acrer que nada, alm do cheiro e do som, verdadeiro no relato e assimintroduz toda uma discusso sobre a tenso entre a verdade e o real:definitivamente, a verdade no o real, ainda que gmeos, e nOsGafanhotos s a verdade interessa (JORGE, 1988, p. 85), porque para que a

    verdade nica, oficial, inquestionvel se estabelea, preciso que ela seja unida e infragmentada, enquanto o real tem de ser porque seno explodiria

    disperso, irrelevante, escorregando, como sabe, literalmente para lugarnenhum. (JORGE, 1988, p. 85).

    Eva aconselha o jornalista a no se preocupar com a verdade que nose reconstitui, nem com a verossimilhana que uma iluso dos sentidos(JORGE, 1988, p. 42) e, ao recordar os fatos que ela prpria viveu, faz umaseleo de acordo com o que ela chama de correspondncia. At mesmo aspersonagens esto submetidas a essas correspondncias:

    No, no vou dizer que as figuras esto erradas, e que indiferente que estejam erradas, de modo nenhum. Tudo estcerto e tudo corresponde. Veja por exemplo o major. Essemagnfico major. Est to conforme que eu nunca o vi, e oreconheo a partir do seu relato como se fosse meu pai.Reconheo-o obviamente porque os dentes dele estavam numaoutra boca, o pingalim numa outra mo, os cabelos oleadosandavam despegados do pingalim e dos dentes, numa outrapessoa... Ah, como admiro essa figura que encontrei espalhadapor vrias! ... claro que no foi assim, mas a correspondncia perfeita. (JORGE, 1988, p. 43).

    E quando se desconstri essa narrativa onde tudo termina to bem,to oficialmente (JORGE, 1988, p. 252), um outro trao metaficcional doromance, j salientado por estudiosos da obra de Ldia Jorge, se revela acrtica da Histria dentro da prpria estria. Vamos acompanhar todo umprocesso de desmistificao daquilo que por muito tempo foi consideradocomo uma verdade incontestvel, constatamos que a ironia usada com afuno de subverso do discurso vigente e, ento, o conceito de histria nica questionado, surgindo verdades plurais, frutos de olhares mltiplos.

    A Verdade e a Histria so apenas coincidncias que oferecempossveis verses e o carter autorreflexivo da fico fica assim evidenciado. Senada necessariamente endossado por uma realidade pr-existente e tudo temuma ligao com tudo, e o que no tem no relevante (JORGE, 1988, p.201), fico e realidade s se constrem na e pela linguagem e a distino entreelas fica, assim, bastante tnue.

    Eva assume que a verdade que me lembro de fragmentos. E paraqu mais? ou que me lembro imperfeitamente, o que no deve ter nenhumsignificado secundrio. (JORGE, 1988, p. 127). A narrativa da segunda partedo romance, sujeita s lembranas de Eva, apresenta-se catica, repleta delacunas que assim permanecem, testemunhando aquela parte do passado que,

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    voluntria ou involuntariamente, no se consegue alcanar at porque s existeenquanto objeto incompleto e fragmentado, e que estaria mais prximo doesquecimento do que da reminiscncia. Por conseguinte, no h inteno dedar um carter autoritrio ao discurso de Eva/Evita ou mesmo ao dojornalista, nem sequer de apresent-los como substitutos do discurso daHistria: Entre o bem e o mal uma mortalha de papel de seda (...) Sendoassim, tanto faz tudo idntico a tudo pensou transitoriamente (JORGE,1988, p. 141) (grifo nosso). A modalizao refora a indefinio do discurso. Aprpria Eva diz que memria uma fraude para iludir o olvido cor de p.(JORGE, 1988, p. 73).

    Na conferncia qual nos referimos acima, a Professora Isabel Pires deLima sublinhou que as obras de Ldia Jorge tematizam questes da identidadenacional assim como de identidades individuais; dando mais nfase, ora a uma,ora a outra.

    J em sua primeira parte, A costa dos murmrios evidencia aimpossibilidade de divorciar o particular e o pessoal do pblico. Enquantoestudantes, Evita e Lus encontravam-se numa pastelaria sugestivamentechamada Ideal, onde o noivo discursava sobre seus projetos acadmicos.Osideais do noivo, porm, se desfazem, da mesma forma que os ideais doImprio Portugus, ante as barbries da guerra colonial.

    Fica bem claro que, para Eva Lopo, o pessoal e o nacional seconfundem.Ao tomar conhecimento das atrocidades praticadas pelos oficiaisportugueses, ela procura o jornalista para denunci-los e tornar pblicos essescrimes que, at ento, mantinham-se ocultados nas verses oficiais: vejosombras (JORGE, 1988, p. 136). Porm, esses fantasmas esto na histria danao, mas esto tambm na sua prpria estria. A modificao que se operano noivo e que transforma o antigo estudante de matemtica num sdico edesumano decepador de cabeas , sobretudo, a causa de sua melancolia, desua perda de referncia e da fragmentao do seu discurso e de suasubjetividade: o que tentava era achar finalmente o momento, o brilho, apalavra que desencadeava na pessoa o gosto de degolar, ainda que soubesseque era sem dvida uma enorme ambio. (JORGE, 1988, p. 139).

    Durante todas as suas lembranas, Eva tem uma atitude ambgua emrelao Evita, como bem ressalta Paulo de Medeiros no seu artigo MemriaInfinita: Eva Lopo rejeita, ao mesmo tempo em que reconhece, a suaidentidade prvia. A necessidade de isolar Evita como um outro eu, restrito aum passado e a um lugar especficos pode ser encarada como uma estratgiaimprescindvel sua sobrevivncia. (MEDEIROS, 1999, p. 74). A tal ponto,que a personagem considera: Vim enganada parar naquela costa - o que mechamou, ou me empurrou, quis que sofresse a desiluso sobre todas as coisasdaquela costa. (JORGE, 1988, p. 124).

    Para tentar reconstruir sua identidade, Eva precisa entender como sepassou essa transformao no noivo, quando isso comeou e o que a motivou.Ela acredita que tudo se d devido perda de memria: Mas agora pareciahaver perdido a memria de tudo isso, ali no pequeno quarto de frica...Ento se fssemos esquecendo do que desejvamos descobrir, e depois decomo nos chamvamos, e a seguir de que pas ramos.... (JORGE, 1988, p.47). E confessa sua preocupao para o jornalista: se nunca mais evocar estalembrana luz duma lmpada ocasional como a sua, o Stella inteiro... acabaraqui. (JORGE, 1988, p. 209). Ainda no relato, Evita reconhece que seningum fotografou nem escreveu, o que aconteceu durante a noite acaboucom a madrugada no chegou a existir.(JORGE, 1988, p. 21); que impossvel suster uma runa s com a vontade (JORGE, 1988, p. 108); que

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    de nada vale querer que existam nos escombros os fantasmas.(JORGE,1988, p. 111).

    Ela no confia na memria, A pouco e pouco as palavras isolam-sedos objetos que designam, depois das palavras s se depreendem sons, e dossons restam s os murmrios, o derradeiro estdio antes do apagamento.(JORGE, 1988, p. 259). Entretanto, confia na fico, naquilo que no foi, maspoderia ter sido A teoria tem uma fora vital que ultrapassa a vida. A teoriae o conto (JORGE, 1988, p. 258) , e pede ao jornalista: Por favor, evite assombras. Tem-se feito um esforo enorme ao longo destes anos para quetodos ns o tenhamos esquecido. No se deve deixar passar para o futuro nema sombra duma cpia, nem a ponta duma sombra. (JORGE, 1988, p.136).

    Cada vez que ns acrescentamos a nossa voz s vozes de Eva Lopo elvaro Sabino, estamos contribuindo na tentativa de afastar as sombras quequerem fazer crer que massacres como o de Wiryiamu no aconteceram.

    A grande sabedoria desse texto de Ldia Jorge se encontra, exatamente,no no uso magnfico que realiza do romance histrico, nem no atometaficcional que pratica com muita segurana e de forma legvel. Seu textoavulta pela invulgar forma de lidar com a memria: nem sistema baseado nafactualidade histrica, nem negao dessa mesma existncia fora do texto, amemria , no entanto, a instncia que dinamiza o modo de ser do fato emfico, do como se ficcional que redimensiona o vivido e o transforma naexperincia crtica e irnica que redobra, na literatura, o olhar arguto para umarealidade de outra forma apenas registrvel. Aqui, nesse texto de Ldia Jorge, amemria ficcional transforma os murmrios do imprio e as dores dooprimido em alegorias de um tempo que, colhido na dobra da fico que o fazde verdade viver, faz falar as runas de um imprio cuja identidade eautoridade se esfacelaram na corroso que praticou.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

    HUTCHEN, Linda. Potica do ps-modernismo. Rio de Janeiro: Imago, 1991.JORGE, Ldia.A costa dos murmrios. Lisboa: Dom Quixote, 1988.MEDEIROS, Paulo de. Memria Infinita. Portuguese Literary & Cultural Studies,

    Boston, n.3, p. 61-77, Spring 1999.RIBEIRO, Margarida Calafate. frica no Feminino: As Mulheres Portuguesas

    e a Guerra Colonial. Revista Crtica de Cincias Sociais, Coimbra, n 68, p.7-29, Abril 2004.

    (Recebido para publicao em 30/06/2009,

    Aprovado em 24/10/2009)

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