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Trabalho de Campo:Envolvimento e Experiências

em AntropologiaHumberto Martins

Paulo Mendes(organizadores)

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Capa e concepção gráfica: João SeguradoRevisão: Levi Condinho

Impressão e acabamento: Gráfica Manuel Barbosa & Filhos, Lda. Depósito legal: 413177/16

1.ª edição: Setembro de 2016

Financiado por: Fundos Europeus Estruturais e de Investimento, na sua componenteFEDER, através do Programa Operacional Competitividade e Internacionalização

(COMPETE 2020) [Projeto n.º 006971 (UID/SOC/04011)]; e por Fundos Nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia,

no âmbito do projeto UID/SOC/04011/2013.

Instituto de Ciências Sociais — Catalogação na PublicaçãoTrabalho de campo : envolvimento e experiências em antropologia /

org. Humberto Martins, Paulo Mendes. - Lisboa : ICS. Imprensa de Ciências Sociais, 2016.

ISBN 978-972-671-374-6CDU 39

Imprensa de Ciências Sociais

Instituto de Ciências Sociaisda Universidade de Lisboa

Av. Prof. Aníbal de Bettencourt, 91600-189 Lisboa – Portugal

Telef. 21 780 47 00 – Fax 21 794 02 74

www.ics.ulisboa.pt/imprensaE-mail: [email protected]

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ÍndiceOs autores . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11

Agradecimentos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15 IntroduçãoTrabalho de campo antropológico: (con)vivendo e conhecendo com muitos outros . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17Humberto Martins e Paulo Mendes

Capítulo 1Quando o campo são emoções e sentidos. Apontamentos de etnografia sensorial . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 39Chiara Pussetti

Capítulo 2Dos nós na garganta e outros registos dos diários de campo: «São Tomé e Príncipe é como sangrar clorofila» . . . . . . . . . . 57Joana Areosa Feio

Capítulo 3Memorando das invisibilidades: fragmentos da memória de um trabalho de campo entre os felupes da Guiné . . . . . . 79Luís Costa

Capítulo 4Regimes de informalidade no trabalho de campo em Angola: desafios, dificuldades e estratégias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 101Margarida Paredes

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Capítulo 5Dilemas e desafios do trabalho de campo em contextos institucionais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 119Cristina Santinho

Capítulo 6A etnografia encontra o swing: reflexões do trabalho de campo sobre a troca de casais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 139Maria Silvério

Capítulo 7O método etnográfico e os judeus: acesso, ética e intersubjectividade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 159Marina Pignatelli

Capítulo 8Localizações e itinerâncias: crónica de um trabalho de campo transatlântico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 179Octávio Sacramento

Capítulo 9A persona do antropólogo na etnografia como acção: o jogo dos papéis, do registo, e as metodologias teatrais . . . . 201Ricardo Seiça Salgado

Capítulo 10Aparentemente no mesmo terreno. Notas sobre trabalho de campo colaborativo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 221Rita Cachado e Inês Lourenço

Capítulo 11Investigação de imagens e turismo em Kolkata, Índia: trabalho de campo com metodologias visuais participativas . . . . . . . . 241Sandra C. S. Marques

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Índice de figuras

2.1 Conversar e partilhar comida. Roça Mendes da Silva, Fevereiro de 2012, São Tomé e Príncipe . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 662.2 Primeiras impressões à chegada: o tamanho das folhas das árvores, cidade de São Tomé, 3 de Fevereiro de 2012 . . . . . . . 672.3 Primeiras impressões à chegada: Vitaminas e Virgem Maria, cidade de São Tomé, 3 de Fevereiro de 2012 . . . . . . . . . . . . . . . . . 682.4 Uma roça acima das nuvens, a caminho da roça, Fevereiro de 2012, São Tomé e Príncipe . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 692.5 A estrada que vem da cidade: a caminho da roça, de motorizada, Fevereiro de 2012, São Tomé e Príncipe . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 692.6 Início de uma reunião comunitária, pessoas a chegarem. Casas-comboio ou antigas sanzalas a partir da antiga casa do feitor. Roça Bernardo Faro, Fevereiro de 2012, São Tomé e Príncipe . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 702.7 Aterragem no Aeroporto Internacional de São Tomé e Príncipe, Janeiro de 2014 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 758.1 A praia de Ponta Negra, ainda à «distância» (Brasil, Novembro de 2009) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1838.2 «De perto e de dentro», no segmento da praia mais frequentado por gringos e mulheres locais (Brasil, Janeiro de 2010) . . . . . . . . . . 1878.3 Em trânsito, cerca de Lelystad (Holanda, Setembro de 2010) . . . . 1928.4 Em trânsito, nas montanhas de Aosta (Itália, Outubro de 2010) . . 19311.1 Gravações de photovoice em exteriores para o documentário, Kolkata, 2007 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 254

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Os autoresHumberto Martins é licenciado em Sociologia, doutor em Antropo-

logia Social e Antropologia Visual – Universidade de Manchester (2005)e professor auxiliar na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro. In-vestigador integrado do Centro de Estudos Transdisciplinares para o De-senvolvimento (CETRAD-UTAD) e associado do CRIA. Os seus inte-resses de investigação situam-se na antropologia visual e nos estudos dasáreas protegidas. Desenvolve actualmente um estudo longitudinal noParque Nacional da Peneda-Gerês sobre relações entre os humanos e osnão-humanos. [email protected].

Paulo Mendes é licenciado e doutorado em Antropologia Social peloISCTE-IUL. É professor auxiliar na Escola de Ciências Sociais e Huma-nas da UTAD e investigador integrado no CRIA/ISCTE-IUL. Apesarde interesses diversos, tem trabalhado principalmente sobre questões re-lacionadas com a dicotomia natureza/cultura, prosseguindo investigaçõesque ensaiam a integração ecológica do que é social e cultural. Presente-mente desenvolve no CRIA/ISCTE-IUL, enquanto investigador em pós--doutoramento financiado pela FCT, investigação sobre alterações cli-máticas. [email protected].

Chiara Pussetti (PhD 2003, Universidade de Torino, Itália) conduziutrabalho de campo em Guiné-Bissau, Portugal e Brasil, publicando ex-tensivamente nas áreas da antropologia médica, do corpo e das emoções.Nos últimos 12 anos, trabalhou como docente a nível de graduação epós-graduação em universidades europeias e brasileiras, e como artista ecuradora na associação EBANO Collective, da qual é membro fundador.É actualmente investigadora pós-doc do ICS/UL. [email protected].

Inês Lourenço é doutorada em Antropologia (ISCTE-IUL) e investi-gadora integrada do Centro em Rede de Investigação em Antropologia

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(FCT/CRIA-IUL). A sua investigação centrou-se na diáspora hindu emPortugal, assente num trabalho etnográfico realizado em Portugal e naÍndia desde 2000 e, mais recentemente, no consumo de bens culturaisde origem indiana na sociedade portuguesa. [email protected].

Joana Areosa Feio licenciou-se em Antropologia pelo ISCTE-UL,onde defendeu em 2008 a tese de mestrado «De étnicos a étnicos»: Umaabordagem aos angolares de São Tomé e Príncipe». É bolseira de douto-ramento em Antropologia pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia,e encontra-se a finalizar a tese de doutoramento no Instituto CiênciasSociais da Universidade de Lisboa, sobre Mobilidades, Etnicidades e Es-tatutos Socioeconómicos em São Tomé e Príncipe, numa perspectivalongitudinal. Viaja para São Tomé e Príncipe desde 2002. É ainda mem-bro do Centro de Rede de Investigação em Antropologia (CRIA). [email protected].

Luís Manuel Neves Costa é investigador colaborador do Centro emRede de Investigação em Antropologia [CRIA]. Mestre em AntropologiaMédica, pela Universidade de Coimbra, com investigação sobre a cons-trução social da lepra entre os felupes da Guiné. Actualmente desenvolveinvestigação de doutoramento em Antropologia, com financiamentoFCT, sobre a doença do sono e missões médicas na Guiné Portuguesa(1855-1974). Com interesses de investigação que se posicionam no en-trecruzamento da antropologia com a história e estudos sociais da ciên-cia, concretizando-se em linhas de pesquisa sobre biopolítica colonial,medicina e império e história social da saúde. luismncosta@ gmail.com.

Margarida Paredes é licenciada em Estudos Africanos pela Faculdadede Letras de Lisboa e doutorada em Antropologia pelo ISCTE-IUL, Ins-tituto Universitário de Lisboa, investigadora pós-doc em Antropologia naUFBA, Universidade Federal da Bahia, Salvador, Brasil. Trabalhou no doutoramento com as «Mulheres na Luta Armada em Angola» e nopós-doutorado trabalha com as «Mulheres Afrodescendentes da PolíciaMilitar em Salvador». Desenvolve uma linha de pesquisa sobre Masculi-nidades Femininas no Campo Militar. [email protected].

Maria Cristina Ferraz Saraiva Santinho doutorou-se em Antropolo-gia, pelo ISCTE-IUL. Actualmente é investigadora do Centro em Redede Investigação em Antropologia (CRIA-IUL), com bolsa de pós-dou-toramento atribuída pela FCT. Os seus temas de interesse são as migra-

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ções, analisadas através da perspectiva social, política, dos direitos hu-manos e da saúde. Especializou-se sobre refugiados, em Portugal. Nesteâmbito e para além da tese de doutoramento, com o título «Refugiadosem Portugal: Contornos Políticos no Campo da Saúde», tem produzidovários artigos científicos e organizado cursos, seminários e projectos. [email protected].

Maria Silvério é doutoranda em Antropologia pelo Instituto Univer-sitário de Lisboa (ISCTE-IUL) e investigadora do Centro em Rede deInvestigação em Antropologia (CRIA-IUL). Autora do livro Swing: Eu,Tu... Eles (2014). Estuda temas relacionados com a sexualidade, género econjugalidades não-monogâmicas consensuais, como swing, poliamor,casamento aberto e amor livre. Mestre em Antropologia com ênfase emGlobalização, Migrações e Multiculturalismo pelo ISCTE-IUL e gra-duada em Jornalismo pela PUC-MG. [email protected].

Marina Pignatelli é doutorada em Ciências Sociais e mestre em Ciên-cias Antropológicas pela Universidade de Lisboa, ISCSP, onde lecciona.Completou pós-graduações em Etnologia das Religiões (UNL-FCSH) eem Estudos Sefarditas (Cátedra Estudos Sefarditas). Tem-se dedicado aoestudo da realidade judaica em Portugal desde 1991 e encontra-se a ter-minar um pós-doutoramento sobre os judeus de Moçambique. É cola-boradora do CAPP-ISCSP (Centro de Administração e Políticas Públicas)e investigadora integrada do CRIA – Centro em Rede de Investigaçãoem Antropologia. [email protected].

Octávio Sacramento é doutorado em Antropologia (ISCTE-IUL).Professor auxiliar na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro. In-vestigador integrado do Centro de Estudos Transdisciplinares para o De-senvolvimento (CETRAD-UTAD) e colaborador do CRIA. Tem pesqui-sado sobre prostituição feminina em regiões da fronteira ibérica;HIV/sida no Nordeste de Portugal; mobilidades e configurações de in-timidade euro-brasileiras; e, recentemente, sobre beneficiárias do rendi-mento social de inserção na região do Douro vinhateiro. [email protected].

Ricardo Seiça Salgado é antropólogo e performer de formação, con-jugando as duas áreas nos seus projectos artísticos e científicos. Investi-gador integrado no CRIA, realiza agora o seu pós-doutoramento comobolseiro da FCT. É autor de vários textos para conferências, revistas es-

Os autores

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Trabalho de Campo: Envolvimento e Experiências em Antropologia

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pecializadas, exposições, edições fotográficas e performances teatrais. É co-fundador do baldio – estudos de performance, e deu aulas naESTAL. Como performer fez diversos workshops em diferentes metodo-logias e trabalhou com vários encenadores. É director artístico do pro-jecto BUH! onde realiza as suas performances interdisciplinares. ricar-doseica@ gmail.com.

Rita Cachado concluiu doutoramento em Antropologia Urbana atra-vés do programa de doutoramento ISCTE/URV-Tarragona (2008). Feztrabalho etnográfico de longa duração com população hindu na GrandeLisboa. É bolseira de pós-doutoramento (FCT/CIES-IUL) com projectosobre história da Etnografia Urbana em Portugal. No 1.º semestre do anolectivo é professora auxiliar convidada no ISCTE-IUL na UC de Pesquisade Terreno. [email protected].

Sandra C. S. Marques é doutorada em Antropologia pelo ISCTE--IUL, em 2009, com a tese «As Câmeras e o Turismo em Kolkata: Repre-sentações em Photovoice», é investigadora de pós-doutoramento no Cen-tro em Rede de Investigação em Antropologia (Instituto Universitáriode Lisboa) e bolseira da Fundação para a Ciência e a Tecnologia com oprojecto «Práticas e Representações do Corpo na Índia Bengali» (2010--2016). Desde 2004, investiga na área dos estudos visuais, práticas e re-presentações de identidades, aplicando metodologias visuais no processode investigação e na exposição de resultados. [email protected].

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Joana Areosa Feio

Capítulo 2

Dos nós na garganta e outros registosdos diários de campo: «São Tomé e Príncipe é como sangrar clorofila» Escrevo neste ou naquele diário?

No terreno, elaboro dois tipos de diários, prática comum a vários an-tropólogos:1 aqueles onde registo o que acontece em cada dia, de umaperspectiva mais etnográfica, e um outro, onde registo sensações, desa-bafos, zangas, alegrias, de um ponto de vista mais pessoal e sem filtro.Como é óbvio, é um exercício quase irreal o de, ao longo do campo eda escrita, decidir em que diário pegar, e como é também óbvio, um eoutro diário misturam-se e confundem-se, muitas das vezes. Ao diáriomais intimista denomino «diário de campo poético», mesmo que nãotenha nada de poético, devido ao facto de, por vezes, não conseguir ex-primir o que sinto em forma de narrativa escorrida ou prosa, como seesta forma me fosse insuficiente, e recorro assim ou ao poema, ou aoconto, ou imagino estar a escrever uma carta a um amigo, a alguém queacabo de conhecer, a um familiar. São formas que me permitem registare soltar a emoção tal qual a senti no momento de um encontro, de umaconversa, de um episódio particular. Nesses diários, também se podemencontrar gatafunhos, desenhos, colagens, citações, diálogos improvisa-dos, palavrões. Para este texto peguei nalguns desses diários mais intimis-tas e deparei-me com as minhas principais zangas com o terreno, que re-sultam de encontros marcantes, e que correspondem talvez ao momento

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1 Há décadas que diversos autores têm reflectido, mais ou menos abertamente, sobreos lugares das notas de campo na produção do próprio conhecimento antropológico, bemcomo na sua relação com a identidade do antropólogo e da disciplina. Veja-se, por exem-plo, o livro Fieldnotes organizado em 1990 por Roger Sanjek.

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em que decido estudar São Tomé, em 2002 – será que há mesmo ummomento de decisão ou isto é uma fantasia romanceada? –, a registosde acidentes, de pele arranhada, de fortes impressões. Exponho-me e aotrabalho, partindo de uma grafia mais emocional e afectiva, e tambémmais sensorial. Explicito o que normalmente apago dos textos, num exer-cício que poderia bem ser o de tentar «contextualizar a própria etnogra-fia», como sintetiza Matos Viegas num livro sobre Antropologia e Emo-ções (Frias 2008). Viegas e Mapril, num dossiê sobre trabalho de campoque organizaram para a revista Etnográfica, escreveram sobre como o tra-balho de campo não só resulta, «como é em si mesmo, a própria relaçãoentre pessoas» (2012, 513). Pina-Cabral tem vindo a salientar em diversostextos (ex., 2007) precisamente a «dimensão processualista e intersubjetivado conhecimento onde os imprevistos se integram, pelo facto de a etno-grafia se produzir no seio de relações sociais» (cf. 2012, 513). É nesta linhaque se inscreve este texto. Assim, demonstro e penso em excertos dosdiários intimistas, exercício legitimado pelo «reflexivismo metodológico»,que será também «epistémico», como propõem Viegas e Mapril (2012,518). Assim, este tipo de reflexão passaria «[...] por descrever como setransformam em conhecimento as reacções imprevistas de interlocutoresem campo, nesse sentido contribuindo para essa ampla e inacabada tarefade explicarmos porque a antropologia não parte de hipóteses e sim deproblematizações» (2012, 518).

Para este texto, revisitei não só as páginas escritas, como também asfotografias e os objectos, de 2002, 2004, 2012 e 2014, anos que corres-pondem às minhas estadias nas ilhas. Acabei por selecionar registos queme causaram os tais nós na garganta, mas também momentos de algumapaziguamento, nos quais me senti acolhida pelo terreno. Tal como es-crevi, a propósito da minha exposição de «fotografia e diários de campo»intitulada Isto não é São Tomé realizada em 2013 no Centro Intercultura-cidade (Lisboa), trata-se de olhares e impressões que não obedecem a umesquema predefinido. A exposição foi muito divulgada, sobretudo entreos são-tomenses na diáspora e no próprio arquipélago (RTP-África; RDP--África), o que era um dos meus principais objectivos: imaginei a expo-sição como um modo de explicitar junto das pessoas com quem convivie vivi, o que fazia nas ilhas ao longo dos anos. Os excertos que seleccioneipara aqui não são, apesar de tudo, os mesmos da exposição. Mas são namesma isto que escrevi à altura: sentir de novo, pelos registos, São Tomée Príncipe em forma de ilha e mar e terra e verde. Lembrar essa grafiados afectos, que de resto me está inscrita no corpo, para evocar as paisa-gens, as roças e as ruínas, as pessoas vivas, as pessoas mortas, os espíritos,

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os poros abertos, o suor e os silêncios das estórias; as lágrimas das con-versas, as manifestações, a posse da terra, os afogamentos; o cor-de-rosados alguidares, as pedras, os gritos, as folhas gigantes das árvores, a fome,os acidentes, as discussões, a paz, a solidão, o prazer, os domingos, osaviões, as motas, o mercado, a rotina, os risos, os eventos, os rios, aspraias, a língua; todas as pessoas com quem vivi, todos os outros dias dasemana. Se não fossem os registos escritos assim, se não fosse a fotografiadaquele prato sobre a mesa, a outra da vela, aquela ali das mãos, um fós-foro, uma carica, um rótulo de garrafa, uma factura de um lanche, umbúzio branco-cal, será que me lembraria de São Tomé e Príncipe emforma sentida? Um São Tomé que não o é em si, mas que também é umbocadinho isto: ilha, continente, mar, deserto, casa, prisão, abandono,fome, revolução, castigo, terra em verde. Se não fossem os registos assim,será que me lembraria e saberia dizer que São Tomé em mim é mais oumenos... como sangrar clorofila? Cada imagem, cada objecto que guardo,cada carta/poema do caderno, fazem-me lembrar tudo isto: «Onde re-pousei o olhar naquele dia? Onde me aquietei?», «Resolvi olhar o tectopara não ver. Olhei o tecto e a escuridão»; «Entrei em modo aquário»,não entrava mais nada, não saía mais nada, a cabeça em modo peixe--balão. Água e bolhas. Nem mais uma migalha»; «Estava com saudadesde casa quando resolvi gravar a chuva? Estava contente quando fotografeiesta pedra?», «E a paz, como explico a paz da sesta colectiva em casa deR.? Como fotografo o silêncio e esta paz? Talvez me volte a lembrardisto, talvez o consiga descrever, se fotografar aquele banco assim, a sua-vidade do cor-de-rosa ou a forma subtil desta folha.»

Gostaria aqui de pensar sobre os contextos relacionais, sobre represen-tações e identificações que me agradaram e sobre as que me provocaraminquietações profundas. Como já foi referido, a etnografia e a antropo-logia são em si mesmas actividades, nas quais nos deparamos com con-flitos de várias ordens (cf. Pina-Cabral 2007, 192). Se por um lado, a etno -grafia «implica uma proposta de diversidade de perspectivas, dediferença», o seu entendimento só será possível se for postulado «umcontexto de semelhança» (2007, 195). Neste sentido, mostro aqui partedo que me interpelou poros adentro, como o encontro da roça Bom-baim, em 2002, o que permitirá problematizar a minha pesquisa, bemcomo os lugares em campo, enquanto pessoa e enquanto etnógrafa/an-tropóloga, lugares que se vão baralhando, confundindo, fragmentando,consolidando, com capas e armaduras, que de novo se derretem, numciclo contínuo e de certo modo infinito, que é a própria experiência detrabalho campo antropológico, que não é diferente da própria vida.

Dos nós na garganta e outros registos dos diários de campo

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Parece-me assim relevante reconhecer alguns dos «lugares emocionais»de onde parti, uma ou outra vez. Assim, fui procurar cadernos molhadosde chuva, de nódoas; folhas arrancadas, terra. Revisito não apenas excer-tos mas também fotografias e objectos, que talvez funcionem em certasalturas enquanto post-its sensoriais e afectivos. Mas são também uma es-pécie de amuletos que resolvem dilemas e inseguranças do tipo «vais con-seguir escrever este texto». Serão ainda uma espécie de ambientadores,que guardam e emitem não apenas cheiros, como conversas sentidas, hi-póteses, seguranças, dúvidas, conclusões. Algo assim.

Antes de partilhar, finalmente, alguns dos registos, gostaria de enunciaralgumas questões, em parte respondidas no início deste texto e que con-tinuarão a ser abordadas no decorrer do mesmo. Ao olharmos o trabalhode campo antropológico e a observação participante em particular, en-quanto modos de sentir e de estar em relação (com um tema, um terreno,com pessoas), que lugar deveremos dar às emoções em campo? Se a emo-ção – e a crença na emoção – for entendida enquanto contexto do tra-balho em si, que permeia todo um processo relacional, a sua explicitaçãotornará o nosso trabalho metodologicamente mais leal? Ou serão tudoisto pretextos para nos dedicarmos a exercícios de mera contemplaçãoautobiográfica? E ainda, se as emoções se espelham nas relações que seestabelecem em campo, entre a antropóloga e os interlocutores, entre aantropóloga perante si própria (enquanto pessoa, enquanto mulher, «por-tuguesa», «branca», a trabalhar numa ex-colónia, enquanto profissional,e enquanto cidadã com crenças e valores específicos), então as emoçõesem campo acabam por informar todo um contexto relacional, logo, todoum percurso de pesquisa. E ainda: como lidar com algumas das identi-ficações que nos atribuem no terreno, aquelas que nos atropelam e noscausam angústia? Como estas: «És branca, dá-me dinheiro!», «Os teusavós fizeram-me escravo!», «Branca, branca, faz-me um filho!». Podemos,devemos, conversar com os interlocutores sobre as mesmas, discuti-las?Explicitá-las e partilhá-las apenas com as pessoas com quem convivemose de quem estamos mais próximas? Ou devemos guardar as nossas opi-niões e emoções para os diários de campo, que depois dão excertos queirão embelezar ou ilustrar um texto? Passemos aos registos.

Julho de 2002: introdução às ilhas

Visitei pela primeira vez São Tomé, no Verão de 2002. Fui na compa-nhia de um grupo de artistas plásticos, recém-licenciados da Faculdadede Belas-Artes de Lisboa, portugueses e são-tomenses. Tratava-se de um

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projecto que consistia em formar jovens nas áreas de desenho, pintura eescultura em ferro, aproveitando-se as antigas embarcações enterradas nabaía da cidade capital desde o tempo colonial. Esta foi uma introduçãoprivilegiada ao terreno, em termos de conhecer pessoas. Foi em 2002 queconstruí duas amizades que se tornaram fundamentais nas minhas futu-ras idas às ilhas, já sozinha e já «oficialmente» enquanto antropóloga.Falo de dois homens, são-tomenses, o artista Geane e o taxista Zé, doisdos meus portos de abrigo nas ilhas, juntamente com uma das famíliascom quem vivi em 2012.

Em 2002 sabia que não iria aterrar em nenhum paraíso tropical, aocontrário do que me diziam alguns turistas portugueses. Sabia tambémque não iria fazer turismo, até porque ia com os tostões contados. Cadapassagem de avião custava na altura bem acima dos 1000 euros, já paranão falar das despesas de saúde. Tinha bem presente a memória de PauloValverde, que faleceu precisamente devido a uma malária cerebral ad-quirida em São Tomé, e de quem me lembro sempre que estou nas ilhas.Já esperava emergir num contexto de extrema pobreza. Mas uma coisa éa preparação pré-terreno e a antecipação, outra coisa é a realidade. A re-soquina (profilaxia da malária) e os seus efeitos colaterais tornaram tudomais pesado, não só para mim, como para os dois artistas portuguesescom quem vivi nesses dois meses, o Jorge (escultor) e a Margarida (pin-tora). Ficámos instalados num bairro periférico da capital. Os artistas são--tomenses ficaram em casas de familiares, mas convivíamos diariamente.A casa onde ficámos era simples, porém de cimento, destacando-se detodas as outras. Havia água de dois em dois dias, tínhamos luz e latas deatum, pelo que não nos podíamos queixar. Não possuíamos transporte,e por isso eram longas as caminhadas até à cidade, onde decorriam asaulas de desenho e escultura a que assistia e que duravam todo o dia. Seescrevo que fui privilegiada por ir com estas pessoas, não o fui a outrosníveis (por exemplo, a falta de mobilidade), o que terá sido importantecomo preparação para um futuro campo. Essa primeira viagem não mefoi fácil, confesso. A verdade é que adoeci várias vezes, bem como osmeus companheiros, razão pela qual antecipei o meu regresso.

Ainda Julho de 2002, o encontro poros adentro

Nos primeiros dias, visitámos a roça Bombaim, eu, o Jorge e a Marga-rida, numa carrinha de caixa aberta, floresta adentro. Era uma roça isoladae de muito difícil acesso, na qual viviam alguns antigos contratados deCabo Verde e seus descendentes, em situação de miséria extrema. Aí se

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protagonizou um dos encontros mais marcantes de todo o meu percurso.A energia do choque resultante desse encontro, foi mais tarde canalizadapara um trabalho de mestrado (Feio 2008), e depois para um trabalho dedoutoramento que me encontro a finalizar. Julgo que a curiosidade defundo se manteve. Ao rever o texto que abaixo partilho, penso não só noque realmente me move, nos obstáculos e na superação conjunta, e emcomo a zanga com o campo (com as pessoas em campo, comigo mesmaem campo), pode funcionar como um óptimo motor de trabalho, paraalém de se constituir enquanto terreno de grande potencial reflexivo.

Em Bombaim, conheci um senhor, de cerca de 70 e muitos anos, cabo--verdiano. Ali estava desde os seus 20. Contou-nos que para ali ficou,abandonado, e que ainda hoje esperava o avião que o viria buscar e de-volver à terra onde nascera, e onde assinara um contrato temporário parair trabalhar nas roças de São Tomé. Na altura escrevi-lhe um longo poema,no tal diário. Intitulava-se Eu sou uma ruína desfeita e agora não tenho dono.Era, sobretudo, um exercício de tentar imaginar-me na sua pele, para ten-tar compreender. É um poema sobre abandono, sobre o modo como aspessoas às vezes não resistem, e de como podem sobreviver de migalhas.É um poema sobre manipulações, atrocidades. É um texto sobre o modocomo uma vítima pode passar a venerar o agressor e por isso sofre quandoeste parte. É um poema sobre resignação, acomodação, sobrevivência, so-lidão e desalento. É um poema sobre esperanças dissimuladas. Mas é tam-bém um poema sobre fantasmas e pessoas que já estão mortas.

O senhor, como já disse, dizia-nos que estava à espera de que o aviãochegasse, para o levar de volta a Cabo Verde, como se se tivesse esquecidode que já tinha envelhecido, que o tinham deixado ali, que nenhumavião iria chegar... que a família que deixara para trás já não estaria sequerviva. Não me pareceu um louco, como já me sugeriram, pareceu-me quetentava sobreviver agarrado àquela esperança. Caçava cobras no mato,para matar a fome, dormia numa antiga sanzala completamente arrui-nada; mostrava os castigos no corpo, mas olhava-me como se tivessevisto Deus. Desculpava-se por estar roto, desculpava-se por ter fome, pa-recia desculpar-se por existir. Disse-me ainda que o patrão lhe batia por-que ele era preto e que os pretos, Deus os fez assim, são mais burros queos brancos. Que os brancos vieram ao mundo para estar em posição depoder, Deus deu-lhes inteligência. Aos pretos, Deus deu a força para otrabalho braçal. Perguntei-lhe onde fora desencantar tamanha teoria.Disse que era o que os «seus senhores» lhes diziam e ele concordava. Quevivia melhor naquele tempo, que o patrão só lhe batia porque no fundoqueria o melhor para ele, que os portugueses foram os pais que nunca

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teve, que me estava grato, a mim, como se eu representasse alguma li-nhagem da geração dos patrões. Disse-me ainda que ele era como umcão, mas um cão esperto e obediente aprendia rápido as lições. Mas queagora estava triste porque era um cão sem dono. Juro que ele disse estaspalavras, que era um cão, que agora era um cão sem dono, e que não eraeu a delirar, se bem que por vezes ainda me custe a crer. Quis ir mostrar-nos livros antigos, sobre a história de Portugal; cantava-me vezes semconta os nomes dos caminhos-de-ferro e de todos os rios de Portugal.

Ouvi esta cantilena, naquele cenário, olhos mortos, as marcas no seucorpo, os seus filhos e netos, rotos e famintos à minha volta, a olharem--me como se eu fosse Deus, as ruínas, a fome e o pedido de desculpas porter fome, por estar roto, por existir assim. Por momentos, achei que esteacreditava que eu fazia parte da equipa do avião que o ia tirar dali, quequeria rever os pais que já não existiam, e que por isso me mostrava queaprendera toda a lição, que era um bom menino que merecia regressar. Fa-lava-me nestes termos: que em tempos tinha tido um senhor. E eu já lhedizia que não, que Portugal não era o meu país, na minha cabeça já estavaexpatriada, e ele continuava a desfiar a lengalenga dos rios e dos caminhos--de-ferro e as ruínas e as barrigas das crianças e a desesperança e eu tinha asensação de ter entrado num filme de terror. Só consegui dizer-lhe que elenão era nenhum cão, que nunca fora, que eu não concordava com castigos,que o meu país não era Portugal, que eu não era portuguesa, que nem se-quer era branca, que já havia independência em São Tomé, que os seus se-nhores não eram uns «senhores». Só não tive coragem de lhe dizer que oavião não iria regressar. Ele não ficou contente com o que lhe disse. Assentientão de novo em ouvir os rios e os caminhos-de-ferro de Portugal, assentiem dizer que afinal Portugal também era um bocadinho o meu país, quea minha pele afinal também era um bocadinho branca, mas pedi-lhe emtroca os nomes dos rios e das plantas de São Tomé e os de Cabo Verde,que eu preferia aos de Portugal. Achou muito estranho o meu pedido, edisse apenas alguns, e falámos então um pouco mais, nos seus termos, atéao meu limite. Este encontro foi para mim muito triste. Odiei – e enver-gonhei-me – da veneração misturada de medo de me desagradar. Mas tam-bém percebi, muito depois, que não era para mim, para nós, que eleolhava, e que lhe era impossível ver-me como sou.

Mais tarde, este encontro transformou-se na necessidade de encontraroutras resistências, de ouvir outras histórias, de saber que havia gentemuito viva apesar das ruínas. Outro dia, uma colega dizia enquanto eucontava algumas desventuras em campo, que o antropólogo tambémtem de perceber que às vezes, por mais que se opine e faça, há represen-

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tações muito fortes, que perduram na história e que nós fazemos partedela, mesmo que involuntariamente. Nós também somos personagensde outros tempos, para certas pessoas, mesmo e quando nos colocam dolado errado da barricada. Este é um desconforto que vim a sentir muitasoutras vezes em campo, dado o meu estatuto de «branca» e de «portu-guesa» numa ex-colónia, e de me associarem à partida a uma série deidentificações como «rica», «exploradora», «pouco fiável», «racista».

Lutei ao longo dos anos em campo, por tentar estabelecer relações compessoas que me vissem como igual, que eu própria deixasse de ser um fan-tasma de outros tempos. O maior elogio de sempre foi quando pela pri-meira vez, em 2004, me perguntaram «mas tu és o quê?! Tu és mesmobranca?! Mas então és brasileira!», sendo impossível imaginarem-me «por-tuguesa», quando me ouviam proferir, mais uma vez, que eu não era afavor do colonialismo. Valverde sentirá igual luta, como poderemos lerem Máscara, Mato e Morte, livro organizado postumamente por Pina-Ca-bral, sobre o seu trabalho no arquipélago: «os são-tomenses que abordavanão conseguiam ultrapassar, nas relações que com ele mantinham, os sen-timentos de injustiça relativa causados pelo facto de ele ser europeu e,como tal, relativamente falando, rico» (2000, xx). Valverde, tentou sempre«[...] ser tomado como um igual e como uma pessoa integral, o etnógrafodebatia-se com o muro criado por essa diferença de sortes entre si próprioe os seus novos conhecidos. [...] O leitor verá, porque ele não o esconde,que se sentiu repetidamente injustiçado» (2000, xx).

O campo constitui-se em «mutualidade», o que implicaria «uma cor-responsabilidade [...] um confronto permanente (e não determinável)com os nossos interlocutores», o que nos permite compreender «[...] a complexidade da ética no empreendimento da pesquisa antropológica».Assim, «se estamos permanentemente a ser confrontados com os outrose se faz parte do projeto de conhecimento antropológico integrar esseconfronto no nosso conhecimento, então a ética é um procedimentoque acompanha do início ao fim o trabalho de pesquisa» (2012, 518).Pina-Cabral vai mais longe, escrevendo que «[...] não basta ter boas in-tenções: é necessário ir lá e comunicar, para poder descobrir as formasverdadeiras e actuais do diálogo possível» (2000, xx).

Dizem-nos ainda Viegas e Mapril o que R. Wilson afirma sobre o pen-samento de Pina-Cabral: «o que está em causa é reconhecer que o co-nhecimento etnográfico se funda em processos de comunicação que im-plicam cedências mútuas» (2012, 514). Ou seja, quer o confronto, quera cedência mútua transformar-se-iam em «material que, por sua vez, mol-damos e transformamos em conhecimento» (2012, 518).

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Pensemos melhor Bombaim. A minha primeira reacção ao ouvir o se-nhor, antigo contratado, foi um tremendo choque «não posso estar aouvir isto!», o que me fez querer fugir dali. Porém, não me mexi. A minhareacção seguinte foi a de querer tornar visível como sou, afirmando queera contra os castigos, que o senhor não era nenhum cão, o que não sur-tiu qualquer efeito. Assim, atordoada, neguei-lhe a identificação que mecolou à pele, afirmando que não era nem branca nem portuguesa. Estemanteve a mesma postura, olhando-me como se visse Deus. Por mo-mentos, não havia chão comum, nem «contexto de semelhança», nemrelação. Não dialogávamos, falávamos línguas diferentes. Assim, intuiti-vamente, cedi a ser um bocadinho «portuguesa» e um bocadinho«branca», assenti em ouvir a cantilena, em arrepio, mas pedi-lhe em trocaa canção dos rios de Cabo Verde e de São Tomé. Assentiu. Já me via umbocadinho, e eu a ele. Juntos, fazíamos caminho. Continuei a negar aminha pertença «à linhagem dos seus senhores», mas vi os livros que memostrou, a sua família, o lugar onde dormia. Não lhe revelei porém quenão estava para chegar o avião...

Enquanto durou o nosso desencontro, enquanto não houve a tal «ce-dência mútua», enquanto não nos encontrámos a meio caminho, con-fesso que senti por minutos, deitada por terra, toda e qualquer hipótesede me ver a mim própria enquanto antropóloga, desiludida que estava.Mas afinal venho até aqui e não consigo comunicar? Sinto que querodeixar de ouvir? Deixo-me chocar assim?

Esta minha primeira experiência faz-me sentir estas palavras que leio,por as ter vivido: «Se não se reconhecer a humanidade partilhada», aforma de vida partilhada que é a condição humana [...], quebram-se aspontes, não há actividade social, nem há etnografia nem antropologia»(cf. Pina-Cabral 2007, 195). Encontro ainda alguma tranquilidade faceao temor que tenho de estar a transformar este texto em algo «excessiva-mente autobiográfico». É de facto relevante pensar o campo, as relações,as inquietações, a desilusão «[...]contrariando a ideia de que esta reorien-tação resulta de uma espécie de transcendência da produção etnográfica,onde os imprevistos seriam simples experiências autorais» (2012, 513).

2012 e o regresso às ilhas. Mergulhos

Proponho ir até 2012, até ao meu primeiro dia em São Tomé, depoisde oito anos de afastamento. Aí residi seis meses, em contexto de trabalhode campo para o doutoramento. Achei curiosa a minha total mudançade atitude. Fiz algo à chegada, impensável para mim anteriormente.

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A primeira coisa que fiz foi mergulhar na piscina de um hotel, afinalaterrara no Verão! Não o fizera antes pois entendia que não o deveriafazer porque a maioria dos são-tomenses não tinha essa opção. Seria umaespécie de... traição. Em 2012 porém, mergulhei na piscina, onde passeitoda a manhã. Depois fui ter com a minha futura anfitriã ao seu trabalho.Ao contrário do esperado, não poderia ficar a viver em sua casa, pois amesma não estava terminada. Fui então encaminhada para casa de umaoutra família onde deveria ficar apenas quinze dias, até a casa de V. estaracabada. Porém, acabei por aí residir quase dois meses, sendo que estafamília se tornou, até hoje, um bocadinho também a minha família, ecom quem mantenho contacto regular.

Recordo bem esse primeiro dia no arquipélago, depois de tantos anosde ausência. Não estranhei a temperatura, nem a humidade, estranhei emuito o tamanho das folhas das árvores, que de resto fotografei inces-santemente. Tenho mais de cinquenta fotografias de folhas de árvores,junto à piscina. [...] Tinha decidido, ainda em Lisboa, prestar muita aten-ção às minhas primeiras impressões à chegada, registando-as.

Escrevi no diário poético: «Primeiras impressões: o tamanho gigantedas folhas das árvores.» E mais tarde, já em casa: «Vitaminas e VirgemMaria». E inaugurei o caderno, antes de adormecer: «Este foi o dia emque cheguei. Fiquei instalada num pequeno quarto. [...] Por entre osutensílios de beleza, vêem-se muitos ‘utensílios’ de fé: cruzes, crucifixos,imagens. Corpo e alma, corpo e espírito. Acho muita piada a uma água--de-colónia cujo frasco é uma Virgem Maria. Tem uma coroa azul em

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Figura 2.1 – Conversar e partilhar comida. Roça Mendes da Silva, Fevereiro de 2012, São Tomé e Príncipe

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plástico, é a tampa do elixir mundano. [...] Fui desfazendo uma das malase coloquei, por acaso (pelo menos inconsciente), as minhas vitaminascerebrais ao lado da virgem Maria. Ao deitar-me, reparei nesta coinci-dência e pensei que, sem querer, coloquei duas fés lado a lado, a das pí-lulas milagrosas e a das virgem-mães. Está a seguir a foto [figura 2.3] quetirei» (3 de Fevereiro de 2012, casa de R.).

Em 2012, fiquei a residir com diferentes famílias, pois interessavam-me estudar as dinâmicas da etnicidade e da classe. A experiência nas roçascontinuou a não me ser fácil, mas era simultaneamente essa dificuldade,as conversas, as superações conjuntas, as partilhas do que se tem e doque não se tem, a solidariedade, a crença no humano, que me trouxemomentos de intensa realização, enquanto pessoa e enquanto profissio-nal que pensa por várias vezes «sou a pessoa mais sortuda do mundo porpresenciar isto, aqui e assim». Poder superar o medo em conjunto, a es-tranheza em conjunto, ver além da fome que não sentirei nunca. É tam-bém por isto que São Tomé tem um grande bocado de mim e tantas dasminhas dores de crescimento. E é também por isto que, por não saberdizer de outro modo, repito: São Tomé em mim é como sangrar clorofila.

13 de Março de 2012, tornar-me crente: depois do acidente, a Bíblia

Estava no terreno havia dezoito dias. Residia, temporariamente,numa casa perto da capital. Andava a fazer trabalho de campo re-

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Figura 2.2 – Primeiras impressões à chegada: o tamanho das folhas das árvores, cidade de São Tomé, 3 de Fevereiro de 2012

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partindo-me por vários locais: junto da própria família e outros ha-bitantes do bairro, noutros bairros, e em várias roças, objectivo quetinha desde 2002. Como esta era uma família forra de classe média,ficavam de algum modo chocados por me verem deslocar para asroças, de moto, onde ficava todo o dia, mesmo que chovesse tipomar. Alertavam-me para ter cuidado com o que designavam por «pes-soas de rua» ou «pessoas de roça» e estranhavam a minha entrega.Acho ainda que temiam que eu lhes trouxesse um pouco de rua paradentro de casa, tópico a desenvolver noutro lugar.

A minha deslocação nas ilhas faz-se sempre em transportes públicos(yasses, táxis conjuntos ou de aluguer único; moto-táxis, realidade recenteno arquipélago), por diversas razões, uma delas muito simples, o factode nunca ter querido tirar a carta de condução. Um dia combinei ir comum amigo da família, Arlindo, a uma roça distante, que este conheciamuito bem, na sua moto todo-o-terreno. Arlindo, descendente de cabo--verdianos, era um óptimo introdutor a várias roças, onde o própriocresceu. Foi um dia memorável, numa roça que se situava acima das nu-vens. Nesse dia, levei a máquina fotográfica, para além do gravador. Foitambém nesse dia, no regresso do terreno, que ambos fomos abalroadospor uma motorizada, ironicamente, num passeio da cidade capital.

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Figura 2.3 – Primeiras impressões à chegada: Vitaminas e Virgem Maria, cidade de São Tomé, 3 de Fevereiro de 2012

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Figura 2.4 – Uma roça acima das nuvens, a caminho da roça, Fevereiro de 2012, São Tomé e Príncipe

Figura 2.5 – A estrada que vem da cidade: a caminho da roça, de motorizada, Fevereiro de 2012, São Tomé e Príncipe

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O regresso da roça: alto-mar e acidentesNo regresso da roça, já de noite, tivemos de parar mais do que uma

vez, para descansar e retomar forças. O caminho era muito acidentado,e nas zonas cerradas não se via nada. A moto, apesar de todo-o-terreno,estava bastante danificada, e chegámos a perder uma ou outra peça pelocaminho. Finalmente, depois da grande descida – a roça estava numponto altíssimo – chegámos a uma estrada mais regular. Aí podíamos vera lua enorme. Estava muito contente. Como era impossível conversar,devido ao barulho da moto, resolvi ligar o ipod. Mas coloquei só um aus-cultador. Na cidade tínhamos um jantar combinado, por volta das 23h,num restaurante perto do museu. A. não queria ir por achar não ser «pes-soa de frequentar restaurantes». Eu insisti. Ao chegarmos, já no passeio,encontrávamo-nos a tirar os capacetes e as gabardines, quando uma mo-torizada nos abalroa. Primeiro bateu em mim e depois no Arlindo, queestava do lado de lá da moto. Dois miúdos conduziam a moto que nostinha atropelado, que tinham roubado de uma oficina. Para além de nãosaberem conduzir (e de virem com alguma velocidade), tentaram des-viar-se de um cão, a causa do despiste, passeio adentro. Pelo que nos foicontado, os miúdos ficaram em bastante mau estado.

Já no chão, com a minha amiga N. a meu lado, recordo-me de algumascaras a olhar para mim, o que achei desagradável e pouco reconfortante.Identifiquei o que me doía, sobretudo a perna esquerda. O meu ipod con-tinuava a tocar uma compilação de Sting. [...] A certa altura terá chegado

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Figura 2.6 – Início de uma reunião comunitária, pessoas a chegarem. Casas- -comboio ou antigas sanzalas a partir da antiga casa do feitor. Roça Bernardo Faro, Fevereiro de 2012, São Tomé e Príncipe

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um bombeiro português, voluntário de uma ONG, precisamente na al-tura em que uns homens discutiam entre si como me levantar do chão.As minhas memórias são dispersas, pelo que escrevo o que me reconsti-tuíram depois. O Nuno percebia de primeiros socorros e terá chegado naaltura certa. Sob as suas instruções fui transportada para o hospital naparte de trás de uma carrinha fechada. A. e os dois miúdos que nos atro-pelaram foram transportados numa carrinha de caixa aberta, aí deposita-dos sem cuidado. Já no hospital, mais desperta, ouvia discussões, gente agemer. Olhava para o tecto, tentei concentrar-me em «pensamento posi-tivo», apesar de me preocupar a hipótese de não existirem anestesias. A Neusa e o Nuno telefonaram a uma médica portuguesa, F., voluntáriaem São Tomé e Príncipe, que prontamente se chegou ao pé de mim, di-zendo-me que tinha em sua casa uma caixa cheia de anestesias. Fiquei maisdescansada. F. inspecionou-me a ferida na perna e aconselhou-me a nãoolhar, o que cumpri. As enfermeiras davam-me algo para tomar. De resto,fiquei por ali na maca, no corredor. [...] Às tantas comecei a tremer commuita violência. [...] Arlindo contou-me que lhe acontecera o mesmo. Aoque parece seriam reacções comuns ao choque. Entretanto, e segundo mecontaram, havia negociações entre a médica portuguesa, e as enfermeirasdo hospital, uma vez que queriam ser estas a coser-me. F. discordava, e exi-gia a presença do cirurgião. Não havia nenhum médico de serviço, peloque depois de algum tempo, alguém lhe terá ligado. Nesse tempo, lem-bro-me da visita do director do hospital, preocupado por eu tremer tanto.[...] Foi nessa altura que me trouxeram mais um lençol. O Arlindo disse--me que não teve direito a isso. O director também não foi ver mais nin-guém. A certa altura senti muito a falta da minha família, ou de alguma fa-miliaridade que não estava a conseguir encontrar, sobretudo nosmomentos em que as enfermeiras me transportavam na maca com muitopouco cuidado por entre as estradas esburacadas do hospital, entre os váriosedifícios. Senti--me de novo em alto-mar, mas desta vez não era bom.

Durante a cirurgia, F. manteve-se ao meu lado. As anestesias locaisdoeram, e eu queixava-me. O cirurgião estava incomodado por eu ex-pressar a minha dor. Disseram-me mais tarde que «não é hábito» fazê-lo.[...] Mas eu ainda lhe disse «deixe-me se faz favor exprimir a minha dor».Não gostou. Desde que chegara, ainda não me tinha olhado. Fiquei commedo, afinal ele estava a coser-me, e tentei ser mais simpática. Este final-mente falou comigo – o que eu teria agradecido muito mais cedo – eperguntou-me o que fazia em São Tomé, se era turista. Expliquei-lhe omeu trabalho. Expliquei-lhe também que já lá tinha estado antes, há mui-tos anos, e a minha relação intensa com as ilhas. Falei-lhe do tema da

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minha tese de mestrado. [...] Olhou-me finalmente! Disse-me então quenasceu em São João dos Angolares. Fiquei radiante. Fiz-lhe uma série deperguntas, parecia que estava a vomitar um qualquer guião, ele ria-se,senti-me feliz, mas talvez precisasse apenas e urgentemente de dar sentidoàquilo tudo. Não sei. Pensei que gostava realmente do meu trabalho, queacidentes muita gente tinha. [...] Era suposto ficar internada, mas F. dizia--me que não seria a melhor opção, e perguntou-me se tinha quem cui-dasse de mim. A família, que ouvia a conversa, prontificou-se a ajudar.E assim acabei por ser tratada em casa: antibióticos, analgésicos, poma-das, mudar o penso todos os dias, depois, dia sim, dia não, voltar ao hos-pital todas as manhãs, tirar novas radiografias, ver a evolução dos pontos,conseguir levantar-me sozinha, conseguir ir à casa de banho sem ajuda,começar a andar com muletas, primeiro uma, depois as duas, podertomar banho à vontade, sem banco ou plásticos, voltar a andar, voltar àsentrevistas, ir à praia. Este processo demorou um mês e meio, relativa-mente rápido. R. tomou conta de mim como uma mãe. Assim como asua filha e outros amigos da casa que me vinham visitar neste período.Arlindo continuou internado mais três semanas. R. e V. iam diariamentelevar-lhe comida e água, pois no hospital não se distribuem refeições.Recuperámos o resto do tempo muito juntos, nos sofás da sala da casade R. Arlindo fora catequista e filosofava como ninguém. Além do mais,partilhávamos o mesmo sentido de humor.

Na madrugada do acidente, assim que cheguei a casa, entregaram-meuma Bíblia e um livro de filosofia cristã; apesar do meu agnosticismo,transmitiu-me muita confiança, não tanto os livros, mas o gesto, a crença.Quis curar-me na fé dos meus cuidadores., não tive dúvidas de que iriaser assim. Acreditei muito em qualquer coisa. Acreditei muito nas pes-soas. E quem sabe em algo mais. Como o acidente não foi de risco,nunca coloquei a hipótese de voltar a Lisboa. Lembrei-me do exemplode coragem de vários familiares próximos [...] e concluí desde logo quehavia atropelamentos bem piores. Sabia que estava tudo bem. Escrevino diário, na madrugada do acidente, assim que cheguei à cama. Primeiroescrevi no diário e a seguir telefonei para Lisboa. «É preciso ir aí buscar--te?» perguntaram-me. «Não, não é.» Está aqui parte do que escrevi:

Madrugada de 13 de Março de 2012

«Naquele momento, eu era um corpo no meio da estrada. Mas issoera um pormenor: revi o dia, revi sobretudo a viagem de moto no matoescuro, desde a roça Mendes da Silva, passando por Castelo – onde Ar-

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lindo cortejou à moda antiga a sua amada – até ali, à beira do museu. Aoviajar no mato escuro (escuríssimo), de moto, e ultrapassando buracos epedregulhos, sob um luar imenso e amarelo, que só se via às vezes, tudome parecia possível. As sombras, os cheiros, o mar, o alto-mar onde meimaginava sempre que a moto saltava. Era um sentimento muito forte,a nível de perceção e da contemplação estética, e a nível do ‘bora lá ven-cer medos’ [...] até porque não sou fã de motos. Era um sentir-me aco-lhida pela ilha, não sei dizê-lo de outro modo. Dizia para mim mesma‘é mesmo aqui que quero estar, onde estou e como estou?’ Sentia-me es-tonteada, quente e grata. Por momentos, senti uma leve culpa por mesentir tão feliz. Ainda no chão, ao rever e reviver a felicidade sentida mi-nutos antes, desconfiei da existência de espíritos castigadores e invejosos,como costumam crer nas ilhas. ‘Será feitiço?’ pensei. ‘Deixa isso para lá’,decidi e resolvi voltar a colocar só um auscultador no ouvido. Ainda can-tava o Sting. O Sting nunca me abandona. [...] A minha queda deu-setão lentamente e com tanta suavidade que parecia algo mágico. Tive au-tomaticamente a certeza de que ia ficar bem, nunca duvidei. Por isso,sorri e mantive esse sorriso durante um bom bocado de tempo, o quemuito surpreendeu a Neusa [...].»

Pina-Cabral escreveu sobre o entusiasmo de Valverde, nas ilhas verdes:«Por um lado, há a memória da felicidade total, da fuga encantada. [...]O que há de belo e de ambíguo nas memórias de uma fuga que, mesmoque falhe no fim, ficará para sempre como realização, porque foi pro-fundamente vivida» (2000, xv). Este antropólogo escreveu sobre a sensa-ção de libertação sentida em São Tomé, e mesmo o «reencantamentocom o mundo» (2000, xxii), que não foi muito diferente do que senti.

Voltemos a casa de Rosa. No que diz respeito ao trabalho de campo,este mês e meio de recuperação permitiu-me criar laços de confiança eestima para a vida. Tive acesso a uma série de conversas, crenças, práticas,que de outro modo, não teria. [...] Nesse ano, Arlindo nunca mais quisir comigo às roças. Ele acreditava (bem como R. e toda a família) quenós os dois não poderíamos andar juntos, pois estava provado que davamau resultado. Seria preciso respeitar o que o universo nos diz. Já em2014, quando voltei com A. às roças, logo no segundo dia de visitas, ti-vemos os dois mais um percalço: uma intoxicação alimentar severa (aúnica que tive com esta gravidade), que nos deixou a ambos de camamais de uma semana. Mais uma vez, foi Rosa que nos ajudou. Estavadefinitivamente «provado» que não deveríamos estar juntos, sobretudofora da casa de R, que me chamou, subtilmente mas com gravidade, aatenção. A. nunca mais arriscou andar comigo de moto ou «fora di zona»

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e eu também não insisti, respeitando a crença de todos. Valverde diránuma carta a Quintais que acreditar no feitiço «tem pouco a ver com re-gimes de verdade ou mentira [...] é mais, ou também, um estado de es-pírito». Não poderia estar mais de acordo. E acrescentaria: antes de com-preender, sente-se. O «gesto etnográfico» definido por Pina-Cabral seria«tanto físico quanto intelectual, o que levaria [...] o cientista social a des-contextualizar-se socialmente para poder recontextualizar-se no terreno»[...]» (Pina-Cabral 2007, 191-192). E acrescenta: «O processo assim ini-ciado, não teria qualquer possibilidade de sucesso se não fossem dois ou-tros factores comuns: (i) um mundo experien cial comum (e por issomesmo Evans-Pritchard (1976) enfatizava que era necessário fazer as coi-sas que os etnografados faziam; não bastava ouvi-los falar; (ii) as basescomuns da racionalidade – como insiste o filósofo Donald Davidson,‘quando o que é estudado é o mental, então as normas da coisa obser-vada também entram [em conta]. Quando o pensamento toma o pensa -mento como assunto, o observador só pode identificar o que está a es-tudar se o considerar racional – isto é, em consonância com os seuspróprios padrões de racionalidade (2004)’» (id., 209).2

Em Janeiro de 2014 regressei a São Tomé, para continuar a pesquisapara o doutoramento. Antes mesmo de ir para o aeroporto, publiqueino facebook o meu «estado de espírito»:

Caríssimos, não se espantem de me ouvir dizer/escrever Se Deus quiser, Sócom Cristo, É a vontade de Deus e afins. Não se espantem se falar com as florese pedir licença ao mar quando entrar. Posso mesmo vir a postar cenas meta-físico-religiosas e não conseguir encontrar explicações racionais para muitascoisas que aqui me acontecem. Já o ano passado foi assim, e este ano sintoainda mais intenso. É possível que venha a ser deserdada (estou a brincar),mas é assim: aqui o meu lado espiritual fica hiperbólico [status de 10 de Ja-neiro de 2014].

Valverde escreveu «[...] mas se eu entro neste jogo, mesmo com umgrão de ironia, recebo também uma tranquilidade inesperada, a de ascoisas estranhas deste mundo se tornarem inteligíveis. [...] Se um indiví-duo admite a possibilidade da feitiçaria, e de as aparências sensoriais ocul-tarem mais do que revelam, o mundo torna-se reencantado. [...] Será acafrealização que me toma» (Carta a Luís Quintais, 22 Junho 1998, 2000,

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2 Pina-Cabral remete aqui para: E. E. Evans-Pritchard, «Some reminiscences and reflec-tions on fieldwork», in Witchcraft, Oracles and Magic Among the Azande (Oxford: Clarendon Press, 1976, 240-254); e Donald Davidson, Problems of Rationality (Oxford: Cla-rendon Press, 2004, 98).

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xxii). Pina-Cabral dirá que «a referência irónica» de Valverde à cafrealiza-ção «mostra bem que Paulo estava consciente de que esta solução para aconfrontação de diferentes mundos conceptuais tem sempre algo de nãodefinitivo» (2000, xxii). Não terei tanta certeza.

11 de Janeiro de 2014«Cheguei. Saí do avião. A humidade quente não era assim tão forte,

o cheiro, que tanto adoro, esse sim. [...] Inconscientemente travei ocheiro a verde e a floresta, como se fossem encantatórios e de repente.[...] Era um pé atrás, que o meu corpo identificava com o cheiro de quetanto gosto. Mas, pensei, não quero estar assim receosa. [...] Fui reverimensa gente, foi um dia com tantas e boas horas! [...] No dia seguinte,fui fazer um piquenique, ao sul, com a ‘minha família’.» Escrevi assim:«Depois de um lindo passeio de domingo com duas das pessoas maisqueridas aqui [...] tenho os olhos a transbordar clorofila. E fico a pensarque, se eu chorasse, sairia verde, se eu abrisse assim as mãos sairia oxigé-nio» (São Tomé, 12 de Janeiro de 2014).

Na mesma noite, escrevi esta nota: «Cheguei, acendi uma vela: emque São Tomé quero estar?» Ainda no sábado da chegada, revi o meuamigo G. Este teceu um comentário sobre mim com uma colega antro-póloga, com quem jantámos e que acabáramos ambos de conhecer:«Essa aí?! Não tem como. É dura memo. Tem marca daqui e tudo.» Elee o Zé costumam dizer que sou «todo-o-terreno», que vou para as roçasonde ninguém mais vai. Às vezes até dizem coisas que me irritam como:

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Figura 2.7 – Aterragem no Aeroporto Internacional de São Tomé e Príncipe, Janeiro de 2014

© Joana A

reosa Feio

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«você a pôr repelente? Você é daqui mesmo, não precisa! [...]». Na alturado acidente de moto, G. ao ver a minha cicatriz na perna, disse meio abrincar, que eu deveria fazer uma tatuagem ali. Eu respondi-lhe, irónica:«Claro! Vai ser STP forever e ao lado um coração.» E rimo-nos muito.

A casa que tem a minha perna

Não queria deixar de partilhar o que senti assim que me sentei, àminha chegada em 2014, à mesa da casa onde estivera a recuperar doacidente. Falavam-me sobre isso, que queriam ver a cicatriz. [...] Dei pormim a agarrar a perna, enquanto falávamos. Agarrei-a no sítio exactoonde costumava agarrá-la com as dores, e fiz a mesma expressão facialarreganhada. Era um gesto que nunca mais tinha repetido, tinha-o es-quecido. Mas ali, àquela mesa, com aquelas pessoas e naquela conversa,dei por mim a agarrar uma perna como se esta ainda estivesse doente.Isso só me aconteceu dessa vez, no primeiro encontro, e durante a minhaestadia não o voltei a sentir. Ao ouvi-los falar da perna, colocava umpouco mais de pressão na parte detrás do músculo, procurava não o es-ticar, tal e qual quando me levantava da cama para vir almoçar, a protegeros pontos. [...] Fiquei mesmo surpreendida: como é possível os nossosgestos esquecidos renascerem assim, pelo facto de voltarmos a um certolugar! Quase voltei a sentir a dor e senti a impressão da pele a esticar!Que raio! Já em casa, à noite, fiquei a pensar nos corpos das pessoas nasroças. Se eu sinto isto por causa de uma simples cicatriz na perna... Nessanoite, sonhei uma mulher a chegar a um abismo num deserto. [...] Eraum local onde ela já tinha estado, sem saber. Agachou-se e involuntaria-mente soltou um grito infinito. Não era um grito qualquer. Era o gritode quando nasceu, naquele local, tal e qual. Era um grito seu, mas eratambém o grito do local, que ficou lá guardado, entranhado no pó daterra. E ela gritava assim, tal e qual a quando nascera, porque eram ossons que o lugar lhe pedia, não era nem mais nem menos que isso. O sol queimava-lhe a cara, de perfil, e a pele arreganhava-se. Depois deacordar, pensei como os locais têm nomes e cores e sons e vida, alma egritos e dores. Aquele local na casa de R., à mesa, tem as minhas doresna perna. Tem um pouco a minha perna. Tem sem dúvida muito de mim.Impossível não voltar a pensar nos corpos das pessoas nas roças. Que fi-caram nas roças, enterrados. Nos castigos, nos bebés que nunca chegarama nascer. Há bebés que nunca chagaram a nascer, contam-me. Haverá ashistórias das roças no pó da terra das roças. [...] Haverá muito mais doque pele a esticar no corpo da mulher que se senta ali assim, a contar-me

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«história di castigo». Sentir-se-á a escravatura, a história do país, as revol-tas, as lutas, os partos, a morte, no chão das roças, nos corpos das pessoasdas roças. [...] São Tomé tem muito de pele rasgada. Nas roças, mas tam-bém nos quintais, sentir-se-á o bater dos corações se encostarmos os ou-vidos ao chão, se provarmos o pó da terra? Há cheiros e sons que ficamconnosco para sempre. Ainda ontem, ao rever tudo isto, inspirei clorofila.De verdade. Estava húmido e abafado. De vez em quando acontece-me.STP forever.

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