0 marmore e a murta: sabre a inconstancia da alma selvagem...0 marmore e a murta: sabre a...

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0 marmore e a murta: sabre a inconstancia da alma selvagem 0 problems da descrenga no skid° XV1 brasileiro' Em uma pigina magnifica do Sertncio do Espirito Santo (0657), Antonio Vieira escreve: Os que andantes pelo mundo, e entrastes em casas de prater de principes, verieis naqueles quadros e naquelas runs dos jardins dois gineros de estd- tuas muito difirentes, umas de mdrmore, ()tetras de murta. 4 estcitua de mdrmore custa muito a Ater, pela dure ta e resistincia da matdria; mas, depois de feita uma ve t , nao a necessdrio que the ponham mais a meio: sempre conserva e sustenta a mesma figura; a estdtua de murta é mais fdcil de formar, pela facilidade corn que se daram os ramos, mas necessdrio andar sempre reformando e trabalhando nela, para que se conserve. Se deixa ojardineiro de assistir, em quatro dias sal urn ramo que the atravessa os olhos, sai outro que the descompOe as orelhas, saem r. Agradeco a Marcio Goldman, Tfinia Stolz Lima e Carlos Fausto pelas discusoes que levaram a versio final deste ensaio, e l especialmente a Manuela Carneiro da Cunha pela parceria na formula*, ha algttns anon, de muito do aqui exposto (cf. Carneiro da Cunha & Viveiros de Castro 98i). 0 ensaio foi escrito gracas a insis- tencia kenerosa de Aurore Becquelin e Antlinette Molinie, que o aguardaram corn paciencia e (no caso de Aurore) o traduziratn parcialmente para sua publica* na coletinea Memoire de la tradition (Becquelin & Molinie [orgs.] 1993). 183

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Page 1: 0 marmore e a murta: sabre a inconstancia da alma selvagem...0 marmore e a murta: sabre a inconstancia da alma selvagem 0 problems da descrenga no skid XV1 brasileiro' Em uma pigina

0 marmore e a murta: sabre a inconstanciada alma selvagem

0 problems da descrenga no skid° XV1 brasileiro'

Em uma pigina magnifica do Sertncio do Espirito Santo (0657), AntonioVieira escreve:

Os que andantes pelo mundo, e entrastes em casas de prater de principes,

verieis naqueles quadros e naquelas runs dos jardins dois gineros de estd-

tuas muito difirentes, umas de mdrmore, ()tetras de murta. 4 estcituade mdrmore custa muito a Ater, pela dureta e resistincia da matdria;

mas, depois de feita uma vet, nao a necessdrio que the ponham mais ameio: sempre conserva e sustenta a mesma figura; a estdtua de murta émais fdcil de formar, pela facilidade corn que se daram os ramos, mas

necessdrio andar sempre reformando e trabalhando nela, para que se

conserve. Se deixa ojardineiro de assistir, em quatro dias sal urn ramo

que the atravessa os olhos, sai outro que the descompOe as orelhas, saem

r. Agradeco a Marcio Goldman, Tfinia Stolz Lima e Carlos Fausto pelas discusoesque levaram a versio final deste ensaio, e lespecialmente a Manuela Carneiro daCunha pela parceria na formula*, ha algttns anon, de muito do aqui exposto (cf.Carneiro da Cunha & Viveiros de Castro 98i). 0 ensaio foi escrito gracas a insis-tencia kenerosa de Aurore Becquelin e Antlinette Molinie, que o aguardaram cornpaciencia e (no caso de Aurore) o traduziratn parcialmente para sua publica* nacoletinea Memoire de la tradition (Becquelin & Molinie [orgs.] 1993).

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dois que de cinco dedos Ike fa tem sete, e o que pouco antes era homem,jd d uma confutho verde de murtas. Eis aqui a difirenca que Id entreumas nafaes e outras na doutrina da fi. Hci um= nacOes naturalmenteduras, senates e constantes, as quais dificultosamente recebem a fe` edeixam or erros de sews antepassados; sesistem corn as arms, duvidarncorn o entendimento, repugnam corn a vontade, cern:in-se, teimam,argumentam, replicam, dcio grande trabalho ate se serulerem; mas, umavet rendidas, uma vet que receberam a fi, ficam nelas Ames e constan-tee, como estdtuas de mtinnore: nao I necesscisio trabalh.ar mais corn elas.Hci outs= nafaes, pelo contrdrio e ems sao as do Brasil— que recebemtudo o que lhes ensinam corn grande docilidade e facilidade, sem argu-.mentas, sem replicas, sem duvidar, sem resistiri mas sao esuituas demusts que, em levantando a mao e a tesoura ojardineiro, logo perdem anova figura, e tornam a brutela antiga e natural, e a ear mato coma dan-tes cram. E necessdrio que assista sempre a estas eadtuas o mestre delayuma vet, que Ma cone o que vicejam as olhos, para que creiant o quenao viem; outra vet, que lhes cerceie o qua vicejam as orelhas, para quendo diem ouvidos as fdbulas de seas aruepassados; outra vet, qua Ike:decepe o que vicejam ay pis, para que se abstenham das acties a costumesbeirbaros da gentilidade. E so desta mancira, trabalhando setnpre contraa natureta do tronco e humor das mites, se pode conservas nestas plantasrules a forma nao natural, a compostura dos ramos.

0 imperador da lingua portuguesa, como o chamou Fernando Pessoa,elabora nessa passagem urn tOpico venerivel da literatura jesuitica

sobre os indios. O terra remonta ao inicio das atividades da Compa-

nhia no Brasil, em 1549, e pode ser resumido em uma (rase: o gentio

do pais era exasperadoramente dificil de converter. Nio que fosse

feito de materia refrataria e intrativel; ao contririo, ivido de novas

formas, mostrava-se entretanto incapaz de se deixar impressionar

indelevelmente por elas. Gente receptiva a qualquer figura mas

impossivel de configurar, os indios exam para usarmos urn simile

menos europeu que a estitua de murta como a mats que os agasa-

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lhava, sempre pronta a se refechar sobre os espacos precariamenteconquistados pela cultura. Eram como sua terra, enganosamente fer-til, onde tudo parecia se poder plantar, mas onde nada brotava quenao fosse sufocado incontinenti pelas ervas daninhas. Esse gentiosem a, sem lei e sem rei nao oferecia urn solo psicolOgico e institu-cional onde o Evangelho pudesse deitar raizes.2

Entre os pagaos do Velho Mundo, o missionirio sabia as resisten-cias que teria a veneer: idolos e sacerdotes, liturgias e teologias — reli-giOes dignas desse name, mesmo que raramente tao exclusivistas comoa sua prOpria. No Brasil, em troca, a palavra de Deus era acolhida alacre-mente por urn ouvido e ignorada corn displicencia pelo outro. 0 inimigoaqui nao era urn dogma diferente, mas uma indiferenca ao dogma, umarecusa de escolher. Inconstancia, indiferensa, olvido: "a gente destasterras é a mais bruta, a mais ingrata, a mais inconstante, a mais avessa, amais trabalhosa de ensinar de quantas ha no mundo", desfia e desafia odesencantado Vicira. Eis por gut: Stio Tome fOra designado por Cristopara pregar no Brasil; justo castigo para o apOstolo da dtivida, esse delevar a crensa aos incapazes de crer ou capazes de crer em tudo, o quevern a dar na mesma: "outros gcntios sao incredulos ate crer; os brasis,ainda depois de crer, sac) incredulos".3

Il selvaggio a mobile. 0 terra da inconstancia amerindia fezfortuna, dentro e fora da reflexao missioniria, e bem alem de seu

a. Taylor jiobservou que a naturaiizac5o dos indios da America tropical fez-se sobre-tudo em termos do reino vegetal (1984: 233 n? 8). Para urn exemplo que a auroranao usa, veja-se, corn efeito, o contraste de Gilberto Freyre (1933: 214-15) entre a

"resister-Ida mineral* dos Inca e Azteca — a mcdfora 6 aqui o bronze, nao o marmore— e a resistencia de "pura sensibilidade ou contratilidade vegetal" dos selvagens brasi-leiros. Valeria a pena fazer a histOria dessa imagistica, que por vezes, como na piginavieiriana, records irresistivelmente as composisbes de A.reimboldo.3. Ism 6 ainda o Sam& do Espirito Santo (Vieira 1657: 216). Sobre o motivo de SaoTanta na Asia a na America, c sua assimilai5o ao dcmiurgo tupinambi Sun* cf.1446traux 1928: 7-i t, c Buarque de Holanda 1969: 104-25.

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exemplo primordial, os Tupinambi litoraneos. 4 Serafim Leite, ohistoriador da Companhia de Jesus no Brasil, fundou-se nas obser-va95es dos primeiros catequistas para identificar a "deficiencia davontade" e a "superficialidade de sentimentos" como principalsimpedirnentos a conversao dos indios; mas socorreu-se tambem daopiniao de leigos, alguns insuspeitos de jesuitismo: Gabriel Soaresde Souza, Alexandre Rodrigues Ferreira, Capistrano de Abreu, una-nimes no apontar a amorfia da alma selvagem (Leite 1938: 7-11).5Essa proverbial inconstancia nao foi registrada apenas para as coisasda fe. Ela passou, na verdade, a ser um tract) definidor do miteramerindio, consolidando-se como urn dos estereOtipos do imagina-rio nacional: o Indio mal-converso que, a primeira oportunidade,

manda Deus, enxada e roupas ao diabo, retornando feliz a selva,presa de um atavismo incurivel. A inconstancia a uma constants daequacao selvagem.

A imagem do selvagem inconstante a conspicua na historiografia,desde o eminente e reacionirio Varnhagen: "eram falsos e infieis;inconstantes e ingratos..."(185 4: p). A importacio de mao-de-obra africana, a consabido, foi frequentemente justificada pelaincapacidade de os indios suportarem o trabalho naplantatton cana-vieira (Freyre 1933: 316-18). A antropologia racialista de GilbertoFreyre reservou ao contraste entre o vigor animal dos africanos ea preguica vegetal dos amerindios um papel de destaque. Mas auto-res muito mais politicamente corretos que esses dois tambirn explo-raram a oposicao indios/africanos em termos da inconstancia dogentio brasileiro:

Como e praxe na bibliografia etnolOgica, emprego o etnOnimo 'Ttipinamba' para

designar os diversos grupos tupi da costa brasileira nos secs. xvi e xvn: Tupinam-ba propriamente dims, Tupiniquim, Tamoio, Temimin6, Tupinae, Caete etc., que

falavarn uma mesma lingua e participavam da mesma eultura.Poderia ter citado Gandavo: "sam mui inconstantes c mudaveis: crem de ligeiro

tudo aquillo que Ihes persuadem por dificultoso e impossivel que seja, e corn qual-

quer dissuacam facilmente o tornam logo a negar..." (1576: 122; cf. tambem a p. 141,

onde a inconstancia aparece no contexto da catequese); ou ainda a anedota de Leryque conclui: "voila l'inconstance de ce pauvre peuple, bel exemple de la nature cor-rompue de l'homme..." [eis a inconstancia desse pobre povo, belo exemplo da natu-reza corrompida do homem]. (Lery 1578: 193-94). Abbeville é o linico, salvo engano,

a destoar, corn urn otimismo quase suspeito: "outros dizem que eles sao inconstantes,volaveis. Na verdade sao inconstantes se deixar-se conduzir unicamente pela razao

pode ser chamado inconstancia; mas sao dOceis aos argumentos razoiveis, e pela

raid() faz-se deles o que se quer. NI° sac) volfiveis, ao contrario, sao razoiveis e em

nada obstinados..." (1614: 244). Mesmo Evreux, em geral tao simpatico aos nativos

como o outro capuchinho, bate na tecla: "Ils sont fort amateurs de via... lubriques

extremement..., inventeurs de fausses nouvelles, menteurs, legers, inconstants..."[Eles sao grandes amantes de vinho...extremamente hibricos, inventores de falsas

histOrias, mentirosos, levianos, insconstantes.] (1614: Sc). Cf. tambem a Crcnica da

Companhia de Jesus: "Sao inconstantes, e variaveis..." (Vasconcelos 1663: I, 103).

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[Os amigos moradores da terra] dificilmente se acomodavtim... aotrabalho acurado e metddico que exige a exploracao dos can' aviais.Sua tendencia espontanea era para atividades menos sedentdriase cue pudessem exercer-se sem regularidade forcada e sem ivigilan-cia e fiscalitaitio de estranhos. Versetteis ao extremo, eram-lhesinacessiveis certas nofaes de order, constanda e exatidao, cue noeuropeufirmam como cue uma segunda nature{a e parecemi

regui-sitar fundamentals da existencia da sociedade civil (Buarque deHolanda 1936: 43).

0 tema das 'tees ragas' na formacao da nacionalidade brasileiratende a atribuir a cada uma delas o predominio de uma faculdade:aos indios a percepcao, aos africanos o sentimento, aos europeusa razao, numa escala que, como em Freyre, evoca as tres alznas dadoutrina aristotelica. E por falat em AristOteles, patron() do debatequinhentista sobre a natureza e!condicao do gentio americano, per-gunto-me, corn o devido me0 do ridiculo, se de nao teria a sua

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parte na histOria da imagem vegetal dos indios, a partir, justamente,dessa proverbial inconstancia e indiferenca I crenca. Na Metafisica,16-se que o hornem que "nao tem opiniao prOpria sobre nada", recu-sando-se, em particular, a se curvar ao princfpio de nao-contradicao,

"nao é melhor que um vegetal" (too6a1-15); mais adiante o filOsofopergunta: se este homem "nao acredita em nada, que diferenca have-ria entre ele e as plantas?" (roo8b5-to). Como se sabe, o homem-planta é aqui o sofista, que, em seu relativismo radical, nä° deixade ser um antepassado a altura dos Tupinamba. E veja-se, enfim,

esta passagem do Didlogo da conversao do gentio: "Sabeis qual he

a mor dificuldade que lhes acho? Serem tarn faciles de diserem atudo si ou pa, ou como v6s quiserdes; tudo aprovio logo, e corn a

mesma facilidade corn que dizem dizem aani

(N6brega 150-57: n, 324.4

centralizada e de implantacao territorial estivel e que os primei-..ros jesuitas rotulavam mais simplesmente de "maus costumes". Veja-se esta passagem de NObrega, por exemplo, que esti provavelmenteentre as Pontes inspiradoras do concetto do marmore e da murta:

Esta gentilidad no tiene la calidad de fa gentilidad de la primitiva Igle-

sia, los guales o maltratavan o matavan luego a quien les predicava

contra sits idolos, o creian en el Evangelio; de manera que se aparejavan

a morir por Chritto; pero esta gentilidad come no tierce idol= por quien

mueran, todo quanto les &tea creen, solamente la dificultad estd en qui-

toilet codas sus malas costumbres... lo qua!pide continuacan entr'ellos...

y que vivamos con ellos y les eriemos los hijos dea pequeaos en doctrina y

buenas costumkes...(1553:1, 452).8

Anchieta enumera concisa e precisamente os entraves:

Por geral que seja, entretanto, e fundado em experiencias variadas,parece-me que o conceito da natureza inconstante da alma selvagemderiva principahnente, no caso brasileiro, dos anos inicials de pro-selitismo missionirio entre os Tupi. 0 problema dos indios, decidi-ram os padres, nao residia no entendimento, gilts agil e agudo, masnas outras duas potencias da alma: a mernOria e a vontade, fracas,remissas.7 "E gente de muy fraca memOria para as coisas de Deus..."(Pires 1552: 1, 323). Do mesmo modo, o obstaculo a superar nit) era apresenca de uma doutrina inimiga, mas o que Vieira descrevia como

"as aces e costumes barbaros da gentilidade" canibalismo e guerrade vinganca, bebedeiras, poliginia, nudez, ausencia de autoridade

As citacaes das cartas jesuiticas pelos algarismos t, it e m remctem a edisao ern

tres volumes das Cartas dos primeiros jeauitas no Brasil (t50-1563): cf. bite (org.)

191618. ji os escritos de Anchieta citados ou referidos am indicasio de volume

remetem is Carta:, informasJes, fragmentar hilarity: 8 woad, (Anchieta; 1933).

Para as "tree poténcias da alma" no caso dos indios, cf. o Didlogo da maven& do

patio (NObrega 150-17: 11, 332-40).

188 0 nuirmon e a mum

Os impedimenta:. que ha para a conversao e perseverar na vida crista departe dos Indios, seas costumes inveterados como o terem mat=mu/heves; vinhos em que sao muito continuos e em tirar-lhos ha ordi-nariamente mart dificuldade gue em tad° o mais ... Item as guerras emque pretendem vinganca dos inimigos, e tomarem nomes novas, e titulosde honrai o scram naturatmente pouco constants., no cornecado, e sabre-tudo faltar-lhes temor a sujeiclio (t584: 333).

8. 0 topes do contraste entre o apostolado no Willa e no Novo Mundo parece terdesempenhado um gapel importance na reflexao de Vitoria, Soto e seguidores:"[O]smissionSrios encaravam sus tarefa como sendo, primariamente, uma de inscrusao.Os indios nao cram judeus ou musulmanos que tinham de ser forsados a aceitar

uma religiao desprezada por seas prOprias crensas. Eles cram apenas uma gente

ignorance e desoriemada que logo veria a luz da ratio, lama vez removida a bagagemde seu velho modo de vida" (Pagden 1982: 102).

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E bem conhecida a estrategia catequetica que tal imagem motivou:para converter, primeiro civilizar; mais proveitosa que a precariaconversio dos adultos, a educacio das criancas lunge do ambientenativo; antes que o simples pregar da boa nova, a policia incessanteda conduta civil dos indios. Reuniao, fixacio, sujeiclo, educacAo.Para inculcar a fe, era preciso primeiro dar ao gentio lei e rei. A con-versao dependia de uma antropologia capaz de identificar os humana

impedimenta dos indios (Pagden 1982: 100-02), Os quais eram de umtipo que hoje chamariamos 'sociocultural'.

Muito ji foi escrito sobre o impact° cosmolOgico causado peladescoberta do Novo Mundo, sobre a antropologia tomista iberica,sobre a catequese jesuitica, e sobre o papel da Companhia no Brasilcolonial. Nada posso acrescentar a temas que fogem a minha compe-

t'encia. 9 Interessa-me apenas elucidar o que era isso que os jesuitase dernais observadores chamavam de Inconstancia' dos Tupinamba.Trata-se sem citivida de alguma coisa bem real, mesmo que se thequeira dar outro nome; se nao urn modo de ser, era urn modo deaparecer da sociedade tupinambi aos olhos dos missionarios. E pre-ciso situa-la no quadro mais amplo da bulimia ideol6gica dos indios,daquele intenso interesse corn que escutavam e assimilavam a men-sagem crista sobre Deus, a alma e o mundo. Pois, repita-se, a queexasperava os padres nao era nenhuma resistencia ativa que os 'bra-sis' oferecessem ao Evangelho em nome de uma outra crenca, massim o fato de que sua relacâo corn a crenca era intrigante: dispostosa tudo engolir, quando se as tinha por ganhos, eis que recalcitravam,voltando ao "vOmito dos antigos costumes" (Anchieta 1555: II, 194).

9. A literatura a enorme. Sobre os debates antropolOgicos ibericos, cf. Pagden 1978;para os jesuitas no Brasil, cf. ao menos Menget 1985c e Baeta Neves 1978; para a

questa° geral da imagem do Indio no sec. xvt, Carneiro da Cunha 199o; para as

fontes francesas sobre os Tupinamba, Lestringant 199o.

190 0 mdrmore e a murta

A CULTURA COMO SISTEMA RELIGIOSO

A aceitacio entusiastica mas altamente seletiva de um discurso totali-zante e exclusivo, a recusa em seguir ate o fim o curso desse discurso,nä° podiam deixar de parecer enigmaticas a homens de missao, obedien-cia e rentincia; e penso que esse enigma continua a nos incomodar, anos antropOlogos, mesmo que por motivos outros que os dos velhosjesuitas. Primeiro, a inconstancia selvagem a urn tema que ainda ressoa,em seas mtiltiplos harmOnicos, na ideologia dos modernos disciplina-dares dos indios brasileiros. 1° Segundo, e mais importante, ela de fatocorresponde a algo que se pode experimentar na convivencia corn mui-tas sociedades amerindias, algo de indefinivel a marcar o torn psico16-gico, nao so de sua relasio corn o cardapio ideolOgico ocidental, mastambem, e de urn modo ainda mais dificil de analisar, de sua relacioconsigo mesmas, corn suns prOprias e 'autenticas' ideias e instituicaes.Por fim, e sobretudo, ela constitui urn desafio cabal is concepOes cor-rentes de cultura, antropolOgicas ou leigas, e aos temas conexos da acul-tura* ou da mudansa social, que dependem profundamente de urnparadigma derivado das nosties de crenca e de converdo.

Dizer, como fizerarn a seu modo os jesuitas, que a resistencia dosTupinambi ao cristianismo nao se devia a sua religiao, mas a sua cultura,nao ajuda muito. Pois nos, modernos e antrop6logos, concebemos a cul-tura sob urn modo teolOgico, como urn `sistema de crencas' a que osindividuos aderem, por assim dizer, religiosamente. A reducao antropo-lOgica do cristianismo, empresa tau decisiva para a constituicio de nossadisciplina, nao deixou de impregnar o conceito de cultura corn os valo-res daquilo que ele pretendia abarcar. A "religiao como sistema cultural"(Geertz 1966) pressupOe uma ideia da cultura como sistema religioso.'

to. A antropologia dos jesuitas, como nota Menget (1985c: 192), deixou intimerosfrutos na legislacao e nas politicas do Estado brasileiro para os indios.

1. Naturalmente, essa conjetura algo ponderosa sobre a relacao entre as modernasnoceies de cultura e as nocties teolOgicas de crenca exigiria muito trabalho para se >

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Sabemos por que os jesuitas escolheram os costumes C01710

inimigo principal: barbaros de terceira classe, os Tupinamba tfio

tinham propriamente uma relight:), apenas supersticOes. 12 Mas os

modernos no aceitamos tal distincio etnocatrica, e diriamos: osmissionarios nao viram que os `maus costumes' dos Tupinambicram sua verdadeira religilo, e que sua inconstancia era o resul-tado da adesSo profunda a um conjunto de amps de plenodireito religiosas. Os jesuitas, como se tivessem lido masentendido muito been Durkheim, separaram desastradamente osagrado do profano (Pagden 1982: 78). N6s, em troca, sabemosque o costume é rho so rei e lei, mas deus mesmo. Pensando bem,talvez os jesuitas soubessem disso, no fundo, ou nio teriam logodetectado nos costumes o grande impedimento a conversio. Estriclaro tambêm, hoje, que o gentio tinha algo mais que maus costu-

> tirar dela algo de Cull. Desde Boundieu, pclo menos, tornou-sc de born tom castigaro vies teoricista dos antropOlogos, que os faria ver a cultura como sistema arquite-temice de regras e principles etc. Stria interessante explorar a dependencia dessaprepria postura teoricista frente ao paradigma teol6gico. A questa° da crenia, perseu turn, que continua a obcecar a antropologia de tradiclo anglo-saxA, delta prova-velmente suas raizes bem para alkrn de Hume, direto na epistemologia da Reforma.Quanto ao papel da doutrina calvinista do simbolo na formac5o da antropologiareligiosa vitoriana (sem falarmos no que pode ter contribuido pan o principlegenebrinol da arbitrarledade do signo), esta C mais outra coisa que ainda esti

per ser devidamente elucidada.12. Literalmente tie terceira class; pois os Tupinambi sio urn dos exemplos da ter-ceira categoria de barbaros de Acosta (Pagden 1982: 164-72). Serafim Leite (1938:12-13) aventura o delicioso sofisma: como a questa° da convers3o dos Indies do

Brasil nio era doutrindria, mas tuna questa° de costumes (grifos dole), nao houve

nenhuma violencia na catequese jesuitica, nem vileza alguma nas chantagens mate-

rials que os mission ►rios praticavam contra os Indies pan converte-los: sporque s6

hi lugar para a violencia, quando se arranca uma religiAo ou um culto, impondo-se-

lhe outro. Ora Itão era into que se dava. ' Ali onde 6 portanto a irreligao o sistema

cultural, introduzir uma religi5o torna-se uma questio, digamos, meramente cultu-

ral. E o compelle intrare vita casino de boas maneiras.

1192 0 truirmorc e a murta

mes. Desde Metraux (1928), os antropOlogos identificam nos tes-temunhos dos prirneiros cronistas urn conjunto de mitos de Obviasignificacio filosOfica, bem como esti() cientes da importanciados xamas e profetas na vida religiosa e politica dessas sociedades.Sabemos por fim que os Tupinamba, como os demais povos tupi-guarani, dispunham de urn `sistema de crencas' antropolOgicas,teolOgicas, cosmolOgicas — no qual o tema da 'Terra sem Mal' ocu-pava urn lugar major (H. Clastres 1975).

0 equivoco dos jesuitas serviu de licOo. Hoje a concepcäo religiosada ordem cultural conhece grande sucesso no seio da Igreja pro-

gressista, so que desta vez a favor dos indios. Mais prOximas que a

nossa dos valores originals do cristianismo, as socicdades indigenas

transpirariam religiosidade por todos os poros, sendo verdadeiras

teodiceias em estado pride°. E assim, substituindo a imagem cristo-

lOgica da encarmicOo por aquela antropolOgica da enculturacio, o

novo missionirio descobre que nOo sio os indios que precisam se

converter, mas ele prOprio — alguem, naturalmente, precisa se con-

verter. A Cultura Indigena, devidamente sublimada por uma vigo-

rosa interpretacao anagOgica, torna-se a quintessencia do bem, do

belo e do verdadeiro. Dal o tradicionalismo ingenuo do missionario

progressista, hostil ao menor sintoma de Aufhebung antropofigica(no sentido oswaldiano) por parte de suas ovelhas, e sua nao menos

ingenua crenca na prOpria capacidade de transcender sua cultura

de origem e de ser miraculosamente enculturado, corn perdio da

expressio, pelo outro. Os velhos jesuitas, ao menos, sabiam que isso

de deixar maus costumes é via de regra muito complicado.

`Eles' tinham, enfim, uma relight:). Mas isso s6 torna o problems maisdifIcil de resolver: "dizem que querem ser como nos..."; "desean serchristianos como nosotros..." (NObrega 1549: I, 111-139). Por que,afinal, desejariam os selvagens ser como nos? Se possuiam uma

e se de qualquer modo a cultura é um sistema de crencas, cabe

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indagar que religiao e que sistema eram esses que continham em sio desejo da prOpria perdicao. Tomando a inconstancia pela outraponta, a preciso perguntar par que os Tupinambi eram inconstantesern relacao a sua pr6pria cultura-religiao; por que, malgrado o quedizia Vieira sobre a dificuldade em faze-los surdos as "fibulas dosantepassados", mostravam-se dispostos a prestar tao born ouvido as

patranhas alheias.nNo seculo xvi, a religiao sem culto, sem idolo e sem sacerdote

dos Tupinambi ofereceu urn enigma aos olhos dos jesuitas, que emtroca viram na cultura o micleo duro do esquivo ser indigena. Hoje,o problem parece set o de explicar como tal cultura, em primeirolugar, foi capaz de acolher de modo tao benevolente a teologia ea cosmologia dos invasores, como se estas, e estes, estivessem pre-figurados em algum desvao de seu mecanismo (Levi-Strauss 1991:292), como se o inaudito fizesse parte da tradis.ao, o nunca visto jiestivesse na mernOria (S. Hugh-Jones 1988: 149). Efeito-demonstra-sac) suscitado pelo reconhecimento da superioridade tecnolOgicados estrangeiros? Coincidencia fortuita de conte6dos entre a mito-logia nativa e alguns aspectos da sociedade invasora? Tais hipOtesestern urn fundo de verdade, mas, menos que explicando algo, exigem

13. Mas podiam tambem escarnecer da doutrina =Oka, sobretudo depois que tive-ram tempo de experimentar as iniquidades dos brancos. Vieira relata escandalizadocomo encontrou a missio aos Tobajaras da Serra do Ibiapaba, em meados do sec.xvn: "Na veneracio dos templos, das imagens, das cruses e dos sacramentos esta-

yam muitos deles tao calvinistas e luteranos, como se nasceram em Inglaterra ou

Alemanha. Estes chamam a Igreja igreja de Moanga, que quer dizer igreja falsa, e

a doutrina moranduba dos abares, que quer dizer patranhas dos padres..." (s/d:231). Mas, bem antes disto, Hans Staden ja se defrontara corn o sarcasmo indigenafrente a religiao europeia: "Tive que cantar-lhes alguma cousa, c entoei cantos reli-giosos, que precisei explicar-lhes em sua lingua. Disse: `Cantei sobre o meu Deus.'Responderam que o meu Deus era uma imundicie, em sua lingua: te5_u_ra..." (1557:

too). Suspeito que esta palavra e o mesmo tyvire de Lery (i 578: zoo), que significa

sodomita passivo.

194 0 nuirmore e a murta

elas prOprias explicando. Pois elas supliem uma postura ma's fun=damental, uma "ouverture a rAutre" caracteristica do pensamentoamerindio (Levi-Strauss op.cit.: i6), e que no caso tupinambi eraparticularmente extensa, e intensa. 0 outro nao era all apenas pensi-ve' — de era indispensivel.

0 problema, portanto, é determinar o sentido desse misto devolubilidade e obstinacao, docilidade e recalcitrincia, entusiasmo eindiferenca corn que os Tupinambi receberam a boa nova. E sabero que eram essa "fraca emOria" e essa "deficiencia da vontade"dos indios, esse crer sem fe; a compreender, enfim, o objeto desseobscuro desejo de ser o outro mas, este o misterio, segundo os pro-prios termos.

Nossa ideia corrente de cultura projeta uma paisagem antro-polOgica povoada de estituas de mirmore, nao de murta: museuclissico antes que jardim barroco. Entendemos que toda socie-dade tende a perseverar no seu pr6prio ser, e que a cultura é aforma reflexiva dente ser; pensamos que é necessirio uma pressaoviolenta, macisa, para que ela se deforme e transforme. Mas,sobretudo, cremos que o ser de uma sociedade a seu perseverar:a memOria e a tradisio sit) o mirmore identitirio de que a feita acultura. Estimamos, por fim, que, uma vez convertidas em outrasque si mesmas, as sociedades que perderam sua tradisao nao tern.volta. Nao hi retroceder, a forma anterior foi ferida de morte;o maxim° que se pode esperar é a emergencia de urn simulacroinautentico de memOria, onde a 'etnicidade e a ma conscienciapartilham o espaso da cultura extinta.

Talvez, porem, para sociedades cujo (in)fundamento é a rela-sao aos outros, nao a coincidencia consigo mesmas, nada disso facao menor sentido:

fls narrativas de contato e mudanca cultural dm sido estruturadas poruma dicotomia onipresente: absoriao pelo outro ou resistincia ao outro.[...] Mas, e se a identidade for concebida, nao como uma fronteira a ser

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defendida, e sun como um nexo de relacaes e transafaes no qua o sujeito

estd ativamente comprometido? A narrativa ou narrativas da interacao

devem, nesse caso, tornar-se mais complexas, menos lineares e teleolo-

gical. 0 que muda quando o sujeito da `hisaria' nao I mais ocidental?

Como se apresentam as narrativas de contato, resistencia ou assimilacao

do ponto de vista de grupos para os quais i a troca, nao a identidade, o

valor fundamental a ser afirmado? (Clifford 1988: 344).

0 INFERNO E A GLORIA

Antes de serem as efemeras e irnprecisas estatuas de murta vieirianas,os Tupinatnbi foram vistos como homens de cera, prontos para aimpressao de uma forma. A primeira carta brasileira de N6brega é

otimista:

Todos estes que tratam comnosco, diTern que querern ser coma nos, sena°

que nom tem corn que se cubrao como nes, e sate zoo inconveniente tem.

Sc ouvem tanger a missa, jd acodem, e quanto nos vein fader, tudo

fatem: assentao-se de giolhat, batent nos peitos, alevantao as maos ao

ceo; e jd hum dos principaes delle.t aprende a ler e coma ficao coda dia

com grande cuidado, e em dous dias soube Ito "tac todo, e ho insinamos

a berqer, tomando tudo corn grandes desejos. Ditque quer ser christao e

nom corner carne human, nem ter nsais de uma molder e outras cousas;

SOOMMU que it a guerra e as que cativar vendi-las e servir-se

chiles, porque estes data terra sempre tem guerra corn outros e ass andao

sodas em discordia. Coment-se buns a outros, digo hos contrarios. He

gente que nenhum conhecimento tem de Deus, nem idolos, faire: tudo

quanto the diem. (rm: 1, III)

Aqui esti° alguns dos elementos cruciais do problema: entusiasmomimetic° pelo aparelho ritual dos missionarios, disposicio em dei-xar os maus costumes; vicuo religioso clamando pot ser preenchido.Os Tupinambi aparecem alienados, escravos de um triste desejo

196 0 abirmare e a murta

de reconhecimento. 14 Discretamente, verdade, o texto refereuma pequena intransigencia daquele principal tao solicito: larga ocanibalismo e outros pessimos costumes, mas vai continuer indoa guerra. Tal intransigencia reaparece em uma anedota de Thevet,onde se esboca uma faceta adicional do `encontro' entre os Tupi eos missionirios:

Un Roy aussi de ce pass, nomme Pinda-houssoub, que je fus voir, lay

estant au lict, attain: d'une fievre continue, me demanda que deve-

noient les ames apres qu'elles estoien: sorties hors du corps: et comme

je luy eusse respondu, qu'dles alloient avec Toupan, Id hauls au ciel,

avec ceux qui avoient Bien vescu, et qui ne s'estoient venget de l'in-

jure de leurs ennemis, y adjoustant fay, entra en grand contemplation.

[...j Deux fours apres it m 'envoya querir, et estant devant luy me dist,

Vienca, je t'ay ouy faire grand cornpte d'un Toupan, qui peat routes

chases: Je to prie parle ci lay pour moy, et fais quit me guerisse, etlors je seray debout, et en sante je to feral de grand: presens, et veux

estre acoustre comme toy, et porter mesme grand bark et honorer

Toupan comme to l'honore. Auquel je feis response, que s'il vouloit

gucrir, et croire en iceluy, qui a fait le ciel, la terre, et la nter, et quitne creust plus [...] a leurs Caraibes et enchanteurs, et qu'il ne se yen-geast, ny mangeast se: ennemis, comme it avoit fait route sa vie [...]sans doute it gueriroit, et que son ante apres sa mart ne seroit tourmen-tee des esprits matins, comme estoient celles de ses Peres et mere:. A

quay ce maistre Roytelet me fit response, que volontiers estant gucry

par la puissance de Toupan, quit accordoit presentement toes les arti-cles que je luy avois proposet, hot mis un, qui estoit de ne se vanger

de ses ennemis: et encores quand Toupan luy commanderoit de ne le

14. Nas duns narrativas dos capuchinhos franceses (Abbeville e Evreux) sobre osTupinambi do Maranh4o, a solicitude em atirar-se nos bravos dos curopeus a aindamais sublinhada, c pintada em cores temerariamente apologeticas, scm a cautelapessimista que os jesuitas portugueses rapidamentc adotaram.

197

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faire, it ne scauroit accorder: Ou si par cas 'Gault it l'accordoit,meritoit mourir de honte (Thevet 1575: 85-86).15

A pergunta de Pindabucu sobre o destino pOstumo das alms torna-.se ainda mais intrigante quando vemos que ela aparece, no texto

da Cosmographie, logo apOs uma exposicao da escatologia pessoaltupinambi (op.cit.: 84-85), a qual girava precisamente em torno daproeza e vinganca guerreiras, destinando aos bravos o paraiso, aoscovardes uma existencia miserivel na terra..Note-se que o "regulo"indigena nao argumenta corn Thevet em termos metafisicos, recu-sando a chantagem cristä em nome de uma soteriologia diferente,mas em termos eticos, corn a simples afirmasio de urn imperativocategOrico. Note-se, enfim, que, para ele, como para o principalde NObrega, é a vinganca o ponto inegociavel, nao o canibalismoa ela associado.

15. [Fui visitar urn rei dessa regiao, chamado Pindabucu. Estando acamado, presa deuma febre persistente, ele me perguntou o que era feito das almas depois que saiam

do corp.°. Respondi-lhe que elas lam para junto de .Tupi, la no alto, no ceu, corn

aqueles que viveram bem e que nao se vingaram da injaria de seus inimigos; ao queo rei deu fe, e caiu em grande contemplacio. [...] Dois dial mais tarde, mandou-mebuscar, e estando eu diante dele, me disse "Vem ca, eu te ouvi dizer grandes coisas

de um Tupa que pode tudo. Rogo-te que fales a ele por mim, e faze corn que mecure; assim que eu estiver de pe e com laude, eu te darei grandes presentes, e tereiprazer em me paramentar como tu, e usar a barba comprida, e honrar Tupa comotu o fazes." Ao que respondi que, se ele queria curar-se, e crer Naquele que fez oceu, a terra e o mar, e nao crer mais [...] em seus Caraibas e feiticeiros, e que se nä°mais se vingasse, nem comesse seus inimigos, como fizera toda sua vida, [...] semdilvicla de se curaria, e sua alma, ap6s a morte, nao seria atormentada pelos espiri-tos malignos, como o cram as de seus antepassados. Ao que esse senhor rêgulo merespondeu que corn prazer, uma vez curado pelo poder de Tup5, ele se conformariaa todos os artigos que eu the propusera, corn excecio de um se), que era o de nao se

vingar de seus inimigos; e que, mesmo se o prOprio Tupi lho ordenasse, de nab

poderia assentir, e se por acaso o fizesse, mereceria morrer de vergonha].

198 0 marmore e a murta

Voltaremos ao problema do canibalismo e da guerra; fique-mos, pot ora, corn o pedido de informacOes sabre o Alem feito porPindabucu. Foi provavelmente tal tipo de demanda que encantouos jesuitas, certos de terem encontrado os fregueses ideals para suamercadoria. Assim, rejubilava-se NObrega (1549: I, 136): "ningandios tinen cierto y qualquiera que le dizen ese creem...". Pedindomais missionarios a Portugal, dizia que nao carecia serem ilustrados:

"Aci pocas letras bastan, porque es todo papel blanco y no ay masque escrivir a plazer..." (id. ibid.: r, 142). Pero Correia (1551:1, 220)relata a vontade dos principals em aprender a a de Cristo; e Leo-nardo Nunes avanca uma possivel explicacio de tal desejo:

Pues quanta a los gentiles de la tierra veo tantas muestras que por el

gran aparejo que veyo, me ponen muchas vexes en confusio para dexarde todo los christianos y meterme por antre ellos con todos los Hermanos,y segundo los deseos que esta gentilidad muestra que andemos entre ellos,

por la mucha voluntad que muestran.[...) Y por no andar ya ensetleindo-los se perdieron muchas animas; porque son grandissimos los deseos quetienen de conoscer a Dios y de saber lo que han de hater para salvarse,porque temen mucho la muerte y el &a del juijio y el infierno, de quetienen ya alguna notitia, despues que nuestro Selior truxo al charissimoPedro Correa a ser nuestro Hermann, porque en las pltiticas que les hatesiempre le mando tocar en esso, por que el temor los meta en gradis' simaconfusion. (1551: I, 234-35)

A noticia do Juizo Final foi causa de grande maravilha (Rodrigues5552: 1, 410). E as solicitacOes de longa vida e saude aos padres cramconstantes: "Ho seu intento he que the demos muyta vida e saudee mantimento sem trabalho como os seus feiticeiros the prometem"(Pires 1552: I, 325); "porque pensan que le podianmos dar salud..."(Lourenco 5554: II, 44). No relat6rio da embaixada de Anchieta aosTamoios, o missionario recorda seu discurso de chegada; disse entâoque viera para que Deus

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lhes desse abundancia de mantimentos, saade, e viaria de sous inimigos

e outran coisas semelhantes, sem subir mais alto, porque esta geracao

sem isle escalao nao quer:m subir ao ciu... (1161: 199).

0 principal da aldeia ouviu maravilhado sobre "o inferno e aglOria", e advertiu seus companheiros para que nao fizessem malao padre: "Se nos outros temos medo de nossos feiticeiros, quantamais o devemos ter dos padres, que devem ser santos verdadeiros..."(id.: 204-o5); por fim, pediu a intercessao de Anchieta junto a Deus:

"rogai-The que me di longa vida, que eu me ponho por vas outroscontra os meus..." (id.: 210).

Embora os jesuitas fossem os destinatarios ideais, essa demancla

de longa vida parece ter sido tambem dirigida a outros europeus

eminences. Ver Thevet (1175: 2o) sobre os pedidos a Villegagnon:

"fais que nous ne mourions point...".'6 NA* demorou muito, 6 ver-

dade, para que a atribuicao de poderes taumattlrgicos aos missioni-

dos se transformasse no inverso. A igua batismal, poderoso vetor

patogénico (al6m de frequenternente administrada in extremis), foi

logo associada a morte, e recusada corn horror pelos indios, quechegavam a fugir I chegada dos padres, e a Ihes entregar os cativos

de guerra por medo de feiticaria (NObrega 1549: 1, 143; Pires 1552:

I, 395-97; Gra 1554: II, 133-34; Si 1559: tit, I8-2o). Considerava-se

ainda que o batismo estragava a carne dos prisioneiros, tornando-

a mortal para quern a ingerisse (Lourenco 1553: 1, 517-18; Correia

i6. r faca corn que nao morramos certo que tal pedido foi feito no Con-

text() de uma epidemia que andava a dizimar as indios, as quaffs suspeitaram de fel-ticaria francesa. 0 pedido de `nao-morte' ao senhor do Forte Coligny (e cambia, aThevet —op.cit.: 88), portanto, implica uma concerti° deste como feiticeiro-chefs,

nick como dispensador puramente positivo de Longa vida. Recorde-se que os paitis

e karaiha tupinamb4s costumavam =leapt. os indios de morte m5gica, segundo

os cronistas.

1554: II, 67-68); o que nao devia andar longe da verdade. A mensa-

gem escatokigica dos padres passou a ser vista como mau agouro:

Como los vijuntos dixe a una lengua que ai yenta que les dixessealguna cone de Dios, y ellos todos escuchavam, man como vino ahablar de la muerte no quisicron oir, y &flan a la lengua que nohablase (Lourenco 1 554 : 11 , 44);

El hablar de la muerte es acerca dellos mui odioso, porque tienen

para si que se la echan, y este pensamiento basta pare morrerem

de imaginaciOn; y muchas vetes me an ellos rogado que no se laechasse... (Gra 1 5 5 4: II, 137).

Os grandes popularizadores desta . teoria da letalidade do batismoforam os pajes e karaiba.

DIVISAO NO PARAISO

Longa vida, abundancia, vi tOria na guerra: os temas da 'Terrasem Mal'. Os padres da Companhia foram assimilados aos xardas-profetas tupinamba, os karaiba. Isso deve ser visto no contexto daclassificacao dos europeus como personagens sobrenaturalmentepoderosos: Malt (ou "Maira"), nome de urn importante demiurgo,era o etnOnimo para os franceses; e karaiba (termo que qualificavaos demiurgos c herOis culturais, dotados de alta ciència xarainica)veio a designar as europeus em geral, nao apenas os padres. Falandodos karaiba e suas praticas, Anchieta esclarece:

Todas estas invenfaes por um vccdbulo geral charnanz Caraiba, que querlifer como coma santa, ou aobrenatural; e por esta causa puseram este nome

aos Portuguese:, logo quando vicram, tendo-os For cousa grande, como do

outro mundo, por virgin de tao longe por cima des ciguas (1184: 332).

200 0 mannare e a meta 201

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Thevet sugere mais diretamente que a assimilacio dos europeus aoskaraiba miticos encontrava-se pre-formada na religiäo tupinambi; oesperto frade parece tambem ter sido o primeiro a perceber a genera-lidade da associacâo amerindia entre a chegada dos brancos e a voltade hethis miticos ou divindades:

le ne passeray aussi plus oultre sur la dispute, si le diable spit et cong-no/st les choses futures.— Mats un cas your diray-je bien, que long tempsavant que nous y arrivassions l'esprit leur avoit predit nostre venue: etje le scai, non seulement d'eux mesmes, mais aussi de plusieurs Chres-dens Portugais, qui estoient detenuurisonniers de ce peuple barbare: Et

auto/a en fut dit aux premiers Espagnols, qui one descouvrirent le Peru,et Mexique (Thevet op.cit.: 82; ver tambem. Lery 1578: 193-.04)•17

Ha, de fato, fortes indicios de que a `leitura' dos brancos em termosde Mair e karaiba foi mais do que uma metifora inofensiva, e deque a astiicia tecnolOgica dos invasores desempenhou urn papelnesta assimilacâo. 18 Aqui se entreve a ponta de um iceberg mito16-

[Eu nao you entrar na disputa sobre se o diabo sabe e conhece as coisas futuras...Mas uma coisa posso dizer: muito tempo antes que nos chegassemos, seu espirito

ja lhes havia predito nossa vinda: e sei disso nä° apenas pot des mesmos, mas por

varios cristios portugueses aprisionados por esse povo birbaro. E o mesmo foi dito

aos primeiros espanhOis que descobriram o Peru e o Mexico.]Para Thevet (op.cit.: 4 1), os franceses sac> tidos como Mhos de Maire Monan por

serem grandes tecnOlogos, e senhores de muitas coisas nunca vistas. 0 problemae que os portugueses, que n5o deviam ser muito diferentes dos franceses sob estes

aspectos, nunca foram chamados de Mair, mas de Perri, nome provavelmente deri-

vado do antropOnimo Pero ou Pedro. Anchieta (1584: 332) entende que a aplicaciio

do termo Mair aos franceses vinha do fato dessa personagem mitica ser inimiga de

Sums, figura que, de alguma forma, seria identificada aos portugueses (creio ter sido

Anchieta quern, aproximando s u me a Siio identificou-se, c aos scus pat ricios,a esse personagem). Uma outra razäo possivel para os franceses terem sido

zados' foi a tez dos marinheiros normandos, mais clara que a dos portugueses, >

gico, que pode dar sentido aos pedidos de longa vida aos padres ea outros europeus eminentes. Os mitos tupi da separack entre oshumanos c os herOis culturais ou demiurgos s5o tambem mitos deorigem da mortalidade; eles remetem, sob virios aspectos, ao temada "origem da vida breve" analisado por Levi-Strauss ( rI ) F0 i_ .essa mesma matriz mitica de separacão entre humanos e herOis cul-turais — fundante da condicâo humana, isto é, condicao social e mor-tal (H. Clastres 1975) — que serviu para pensar a diferenca indios/europeus: os mitos de origem do homem branco, dos Tupi como demuitos outros amerindios, utilizarn o motivo da ma escolha, caracte-ristico do complexo da vida breve, para dar conta da superioridadematerial dos brancos. Pode-se imaginar assim que, tendo feito a 'boaescolha' na origem dos tempos, os brancos dispusessem =them daciencia divina da näo-mortalidade, atributo dos mair e dos karaiba,de quem eram os "successeurs et vrays enfans".

> e seus cabelos louros. (Urn outro nome para os franceses era ajurujuba, `papagai0samarelos'.) 0 tema da pele muito branca de Maira aparece em algumas mitologiastupi, estando associado ao motivo da imortalidade obtida pela troca de pele.

0 termo tupinambi geral para os europeus parece ter sido mesmo karaiba,ea explicacio de Anchieta é razoivel. A etimologia desta palavra, difundida entre osTupi contemporineos como etncinimo para os brancos, a incerta. Montoya (1640:9ov) identificou na forma guarani carat° lexema cam, que significaria enge-nhoso, astute. Ha, a claro, o espinhoso problema de saber sea palavra karaiba ternalgo a ver corn Caribe, Caraibas etc. No Alto Xingu, karaiba e o termo usado porCodas as tribos para os brancOs. Von den Steinen estava convencido que este era urnterm() de origem caribe.

Vale notar que os europeus, chamados de karaiba, e como tais personagensinicialmente tratados, terminaram trazendo para as indios o exato oposto do que oskaraiba prometiam: em vez de errincia migratOria, aldeamento forcado; em lugarde longa vida a abundlin.:ia sem esforc(1, morte por epidemias a trabalho escravo;em lugar de vitOria sobre os inimigos, proibiciio de guerra e canibalismo; ern lugarde liberdade matrimonial, novas restricties.

202 0 mcirmore e a murta 1)203

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O tema da ma escolha como originando as diferencas culturais entre

indios e brancos nao aparece diretamente cm Thevet, mu em Abbe-ville (1614: 6o-61), sob a difundida forma da °Ka° oferecida aos huma-nos pelo(s) demiurgo(s) entre as armas indigenas e europOias. Esse

tema se reencontra, por exemplo, nas mitologias alto-xinguana (Agos-

tinho 1974b: M2) e rionegrina. Nesta ultima, tanto na versao barasana

(S. Hugh-Jones 1988) como na maku (que diz respeito a diferenca

Maku /Mikan° — Ramos et a!. 198o: 168), acha-se o motivo 'Esati e

Jac& da inversio da ordem de senioridade entre urn par de irmaos, que

Abbeville (op.cit.: 251-12) tambem registra para o mito tupinambi.

Roberto DaMatta (1970, 1973), em trabalhos pioneiros, demons-

trou a relacao estrutural entre os mitos timbira de origem da cultura

(do fogo culinirio) e de surgimento dos brancos. Mais recentemente,

Levi-Strauss (1991) observou que a narrativa de Auke analisada por

DaMatta é uma inversio do mito tupinambi de origem dos brancos,

recolhido por Thevet como episedio de urn vasto ciclo cosmog6nico.

De minha parte, sugeriria uma relacao entre os mitos de genese dos

brancos e a etiologia da vida breve ou da mortalidade, cuja pertinen-

cia ao complexo de origem do fogo/cultura foi exposta em 0 cru e ocolido (1964). Levi-Strauss aborda os mitos da vida breve em termosdo "codigo dos cinco sentidos". Seria possivel ver no motivo da ma

escolha uma modulacio desse cOdigo: em lugar de erros relaciona-dos a sensibilidade, teriamos aqui uma falta ligada ao 'born senso'

(ao entendimento). 0 divOrcio dos demiurgos tupinambi, fruto da

ingratidao ou agressividade dos humanos, node igualmente set vistacomo caso exemplar de ma escolha, ausencia de discernimento por

parte da humanidade (i.e. dos indios, pois a ruptura engendrou a

diferenca brancos/indios a partir destes

0 mito rionegrino analisado por Hugh-Jones é uma variante muito

prOxima do mito tupinambi. Nao hi aqui espaco para analisar ern deta-

lhe a relacao entre des; chamo a atencao apenas para urn aspecto do pri-

meiro. Etc estabelece utna conexao direta entre a origem da vida breve

(dos Indic%) e a origem dos brttncos; cstcs Cdtimos .s5o scinclitantes

aranhas, cobras e mulheres, em sua capacidade de longa vida, ligada

a troca de pele. Ao contririo da troca de pele natural das cobras, ara-

nhas e mulheres (a menstruagao é concebida como urna troca de pele),

os brancos trocam uma pele cultural, as roupas; saber tecnico e imor-

talidade, assim, mostram-se ligados. 0 tema da troca de pele como

signo ou instrumento de imortalidade e central na cosmologia de

virios grupos tupi contemporaneos; entre os Arawete (Viveiros

de Castro 1986a) ele esti associado aos Ma((ver o tupinambi Mair).

Mencione-se ainda uma transformagao negativa do tema, que

associa causalmente a imortalidade dos brancos e a vida breve dos

indios: o famoso complexo andinu e sub-andino do pishtaco ou pela-cara, hipOstase monstruosa dos brancos que caca os indios para red-

rar-lhes a pele do rosto (ou a gordura do corpo) e usa-la para o

rejuvenescimento de seu prOprio povo (Gow 1991a: 2 45). Os Piro

estudados por Gow sutentam a tese de que os pelacara abastecem

os cirurgibes plisticos das grandes cidades, o que a urna brilhante

leitura moderna do motivo da troca die pele.

Isso nao significou, diga-se claro, que aos europeus tenha sido

votado qualquer culto, de dulia ou de 'atria. Assim que comesarama mostrar a face mesquinha, foram mortos como todo inimigo; suacovardia no momento de enfrentar a borduna do executor, alias, era

motivo de espanto e chacota. A religiao tupi-guarani, como argu-

menta Helene Clastres, fundava-se na ideia de que a separacAo entreo humano e o divino no era urna barreira ontolOgica infinita, mas

algo a ser superado: homens e deuses cram consubstanciais e comen-

suriveis; 4 humanidade era uma condisao, nao uma natureza." Seme-lhante teologia, alheia a transcendencia, era igualmente avessa

19. Adiantc, o leitor encontrara alguns pontos de discordincia diante das analises de

Hilêne Clastres; por isso mesmo, fiquc logo registrado que acho La Terre sans Mal

um livro admirivel por sua penetrai5o e densidade, especialmente no que concerne:t carat:it:64;101 I tit's temas ceturais da

204 0 nuirmerc c a murta 20i

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ma consciencia, e imune a humildade. Mas ela tampouco favoreciaa contrapartida dialetica destas afeccoes: era inconcebivel aos Tupi aarrogincia dos povos eleitos, ou a compulsao a reduzir o outro aprOpria imagem. Se europeus desejaram os indios porque viramneles, ou animais uteis, ou homens europeus e cristios em potencia,os Tupi desejaram os europeus em sua alteridade plena, que Ihesapareceu como uma possibilidade de autotransfiguracao, urn signoda reuniao do que havia sido separado na origem da cultura, capazesportanto de vir alargar a condicão humana, ou mesmo de ultrapassi-la. Foram entao talvez os amerindios, nao os europeus, que tiverama "vis5o do paraiso", no desencontro americano. Para os primeiros,nio se tratava de impor maniacamente sua identidade sobre o outro,ou recusa-lo em nome da prOpria excelência etnica; mas sim de, atua-lizando uma relacào corn ele (relac5o desde sempre existente, sob omodo virtual), transforma.r a prOpria identidade. A inconstancia daalma selva gem, em seu momento de abertura, é a express5o de urnmodo de ser onde "é a troca, näo a identidade, o valor fundamental aser afirmado", para relembrarmos a profunda reflex5o de Clifford.

Afinidade relacional, portanto, nä° identidade substancial, erao valor a ser afirmado. Recordemos aqui que a lteologia' de.:algunspovos tupi formula-se diretamente nos termos de uma sociologiada troca: a diferenca entre deuses e homens se diz na linguagem daalianga de casamento (Viveiros de Castro 1986a), aquela mesma lin-guagem que os Tupinambi usavam para pensar e incorporar seusinimigos. Os europeus vieram compartilhar um espaco que ji estavapovoado pelas figuras tupi da alteridade: deuses, afins, inimigos,cujos predicados se intercomunicavam. E a partir dal que se podeminterpretar as diversas observacties sobre a "grande honra" alme-jada pelos indios ao entregarem suas filhas e irmas em casamentoaos europeus (Anchieta 1554: II, 77; 1563: III, 549; 1565: 201-02;

Abbeville op.cit.: 63). Alem de urn calculo de benefIcios econOmi-cos — ter genros ou cunhados entre os senhores de tantos bens eracertamente uma consideracäo de peso —, ha que se levar em conta

os aspectos nio-matetiais, pois esti-se falando de honra. Era em ter-mos dessa mesma ideia de honra que os cronistas interpretavam acessio de mulheres aos cativos de guerra, antes de sua execucão ceri-monial (Correia 1551: I, 227; Monteiro 161o: 411; Cardim 1584:114).A honra parece-me aqui marcar o lugar do valor primordial da cul-tura tupinambi: a captura de alteridades no exterior do socius e suasubordinacao a lOgica social Interna i , pelo dispositivo prototipico doendividamento matrimonial, eram o motor e motivo principais dessasociedade, respondendo por seu impulso centrifugo. Guerra mortalaos inimigos e hospitalidade entusiastica aos europeus, vinganca cani-bal a voracidade ideolOgica exprimiam a mesma propensio e o mesmodesejo: absorver o outro e, neste processo, alterar-se." Deuses, inimi-gos, europeus eram figuras da afinidade potencial, modalizacOes deuma alteridade que atraia e devia ser atraida; uma alteridade sem aqual o mundo sogobraria na indiferenca e na paralisia.

Perguntas como a de Pindabucu para Thevet ecoam na litera-tura missioniria;" a pregacâo escatolOgica dos jesuitas fez grandesucesso, ao menos no comeco. Ela vinha encontrar uma questäo-chave da religiao indigena, a recusa da mortalidade pessoal (Clastres1975; Viveiros de Castro 1986a; Combes 1992). Por sua vez, a men-sagem apocaliptica cristi coincidia corn o tema nativo da catistrofec6smica que ira aniquilar a terra." Mas parece-me haver aqui mais

Por isto, foi tanto o caso dos Tup in ambi 'quererem virarbrancos' quanto ode quererque osbrancos virassem Tupinamb5. As cartas jesuiticas abundam em queixas sobre osmaus cristios que estariarn going native, casando poligamicamente com indios, matan-do inimigos em terreiro, tomando nomes cerimonialmente, e mesmo comendo gente.

Ver os edificantes dialogos de conversao em Evreux (1614: "second traitê", caps.xv a xxt), onde os indios enderecam uma quantidade de questoes cosmohigico-teo-16gicas aos padres.

22. Mem dos Guarani contemporaneos, cujo caso-tipo são osApapocuva de Nimuen-daju (1914), ver ainda os Wayapi (Gallois 1988) e os Arawete (Viveiros de Castro1986a). Heiêne Clastres (1975: 35) afirma que praticamente nib se acha memo noscronistas ao tema indigena do apocalipse (exceto uma muito vaga passagem de >

206 0 mcirmore c a murta 0207

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que tais coincidencias — evidentemente filtradas de um conjunto,

sob outros aspectos, totalmente estranho as idiias nativas — na aten-

cäo as noticias do Mem trazidas pelos padres. Na medida mesma

cm que provinham "do outro mundo", como formulou Anchieta, os

europeus eram mensageiros da exterioridade, familiares das almas e

da morte: como os karaiba ou "santidades" a que foram assimilados,

sua provincia era a nao-presenca; como os magos indigenas, os euro-

peus estavam na posicao de enunciacio adequada para falar do que

estava Aim do dominio da experiencia.

Nao penso que a inegivel convergencia de conteados entre a religiao

tupi-guarani e a palavra dos missionirios possa servir de explicacao

final. Demandas tao desconcertantes (para os antropOlogos e demais

culturalistas) quanto as dos Tupinamba podem ser observadas ainda

hoje: P. Gow (1991b, c) relata como os Piro, cuja cosmologia nao éparticularmente semelhante a dos Tupi quinhentistas, dirigiam aos

missionArios do Summer Institute of Linguistics o mesmo tipo de per-

gunta, delegando a ales e a outros gringos a competincia cognitiva,

nada isenta de ambigiiidade, quanto ao que se possa no Exterior: a

morte, os confins do mundo habitado, os cius.lithos observadores

testemunharam fatos analogos. Por isso, encaro corn reservas a hipO-

tese de H. Clastres (1m: 63) de que o exito dos jesuitas junto aos

Guarani (o sucesso junto aos Tupi costeiros foi hem menor, diga-se

de passagem)23 deveu-se As analogias entre a escatologia crista e o

> Thevet). Nas Camas dos primeiros jesuitas no Brasil, entretanto, Anchieta narra a

anedota de um velho Indio que doutrinarai "Lo que mas se le imprimi6 fue el myste-

rio de la RessurrectiOn, lo qual repetia macho vexes diziendo: 'Dios vercladeiro esJes6 que se sali6 de la sepultura y se fue al cielo, y despite* a de venir muy airado aquemar Codas las cosae" (Anchieta 1563:11, 56o). L avio quc ha ai uma ittfluaticia

do Juizo Final, mas suspeito tambern da presenca da conflagracao universal da mito-logia tupi; de qualqucr modo, foi esse teina crist5o quc marcau a vellwa.23. Os jesuitas da costa brasilcira, desanimados com sues ovelhas, acalentaram

tangos sonhos de mudar-se ao Paraguai, pois ouviam maravilhas sabre os indios >

terra da Terra sem Mal — corn a -vantagem extra, para a primeira, de

que ela nab corria o risco de desmentidos, pois, ao contrario do que

prometia o discurso profetico nativo, o paraiso cristao nao podia ser

atingido em vida. A explicacao para a receptividade (inconstante) ao

discurso europeu nao deve, parece-me, ser procurada apenas ou prin-

cipalmente no piano dos contetidos ideolOgicos, mas naquele das for-

mas socialmente determinadas de (auto-) relacao com a cultura outradicao, de um lado, e naquele das estruturas (culturais) de pressu-

posicao ontolOgica, de outro. Uma cultura nao é urn sistema de cren-

cas, mas antes-- já que deve ser algo — um conjunto de estruturacOes

potenciais da experiência, capaz de suportar contetidos tradicionais

variados e de absorver novos: ela é um dispositivo culturante ou cons-tituinte de processamento de crencas. Mesmo no piano constituidoda cultura culturada, penso que é mais interessante indagarmos das

condicaes que facultam a ccrtas culturas atribuir as crencas alheiasurn estatuto de suplementaridade ou de alternatividade em relacao asprOprias crencas.24

> de 15, os Guarani: que cram excelentes cristaos, monOgamos, nao corniam gente,tinham chafes de yen:lade, obedeciam aos padres etc. Anchieta resume: "Alan destesindios [Tupi], ha outro gentio espalhado ao longe e ao largo, a que chamam Cari-jOs, nada distinto destes quanto 5 alimentacilo, modo de viver e lingua, mas muitomais manso e mais propenso as coisas de Dcus, coma ficamos sabendo claramenteda experiencia feita corn alguns, quc morreram aqui entre nos, bastante firmes econstantes na fe" (1554: 11, 116; cf. tambem Nunes 1552:1, 339-4 0; NObrega 1553: I,

493-94; id. 1553: 11, 15-16; id. 1555: II, 171 -72 ; id. .! 557: II, 402-03; id. 1558: 11, 456-57).Nisso entrava, scm dtivida, uma boa dose dc itiealizasao; mas as jesuitas do Brasilinsistiam que muitos CarijOs nit) cram canibais. (Embora as Irmaos Pero Correiae Joao de Souza tenham lido mortos pelos CarijO do sul em *554 dois indios queos acompanhavam, devorados—, Anchieta esclaiece que estes cram ainda indOmitos,mas que a maioria da nava° ja estava bem sujeita aos espanhOis.)24. Para uma discussio inspiradara de um problema muito semelhante, ver oartigo de D. Tooker (1m) sobre os Akha da Birminia, cuja referi•ncia agradecoa Tim Ingold.

.to8 0 mirmore e a murta 209

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Os missionirios, em particular, foram vistos como semelhantes aos

karaiba, e souberam utilizar-se disso. Sua errancia e seu discursohortativo aparentava-os desde o inicio aqueles. Passaram tambema adotar a pregacio matinal, a moda dos xamas e chefes (Correia1551: I, 220); usaram liberalmente do canto como instrumento deseducão, aproveitando o alto conceito de que gozavam a mUsica e

os bons cantores (entre des os karaiba) junto aos Tupinambi, pro-

vavelmente beneficiando-se da mesma imunidade que protegia osprofetas errantes e demais "senhores da fala" (Cardim 1583: 186).Atenderam ainda, corn as devidas reservas mentais, a demandanativa, prometendo vitOria sobre os inimigos e abundancia material(Anchieta 1565: 199). Aos pedidos de cura e longa vida, respondiamcorn o batismo e a pregacâo da vida eterna (Azpicuelta 155o: 1, 18o);e aceitaram, levemente constrangidos, ate mesmo imputacOes depresciencia (Si 1559: III, 40)."

25. Helene Clastres interpreta as indicaceies das fontes sobre o prestigio e imunidadedos cantores e "senhores da fala" como se aplicando exclusivamente aos karaiba,

conformc sua teoria da extraterritorialidadc dcstes personagens. Isso, penso, n5o sesustenta. Ver Blizquez: "Avia en csta poblaziOn un principal mui antigo y a quien[...] tienen grande credit°, porque Ile llaman 'sear de la habla'" (1561: tit, 408).Anchieta: "Fazem muito caso entre si, como os Romans, de bons linguas e lheschamam senhores da fala e urn born lingua acaba corn des quanta quer e lhes fazemnas guerras que matem ou nao matem e que vao a uma parte ou outra, e e senhor devida e morte. [...] Por isso ha pregadores entre eles muito estimados que os exortama guerrear, matar homens e fazer outran facanhas desta sorte" (1585: 433). Soares

de Souza: "Entre este gentio sao os mtisicos mui estimados, e por onde quer quevao, sao bern agasalhados, e muitos atravessaram ja o sera° por entre seus contra-rios, sem lhes fazerem mal" (1587: 316). Monteiro: "os dextros nesta arte [canto]

sao entre des mui prezados, tanto que se tem em seu poder algum contrario. born

cantor e inventor de trovas, que entre eles sao raros, como a insignes na arte the

d5o a vida e o tern em muita conta so pela rraisica, que e o tinico remedio corn quealguns se livram de morrer no terreiro" (161o: 415). Nenhuma destas referencias

pode ser interpretada como se referindo exclusivamente aos karaiba, mas apontam

para o valor geral quc a mtisica e o discurso tinham na sociedade tupinamba. Sobre >

IOs Tupinambi souberam tambem, e obvio, aproveitar-se dosmissionarios. Em primeiro Lugar, se los karaiba se mostraram, emdiversas ocasities, opositores ferrenhos dos padres, nâo poucos des-tes personagens apropriaram-se do dOcurso crist5o, desafiadora ouoportunisticamente:

Trabaji por me ver con un hechifero, el mayor desta tierra. [...j Pre-guntele in qua potestate hec faciebat, si tenia comunicatiOn con Diosque hit° el cielo y la tierra y reinava en los cielos. [...J Respondamecon poca verguenca, que a era dios y avia nacido dios, y presentOmealli uno a quien de'ia aver dado salude, y que el Dios de los cielosera su amigo, y le aparecia en nuves, y en truenos, y en relcimpagos...(NObrega 1549: I, 144)-

Outro "feiticeiro errante", de uma aldeia pernambucana,

viendo el credit° gue tenian los Padres con el gentil, decia que era supariente y que los Padres devan la verdad, y gue el id muriera y pasaradesta vida y tornara a vivir como decian los dichos Padres, y que por-tanto creiessen en el, y dtivanie en este medio tiempo las has a su petti-don— (Rodrigues 1552:1, 320).26

Em segundo lugar, as intlmeras referencias epistolares a principalsdesejosos de se converter sugerem que os homens politicamentepoderosos, cabecas de aldeia ou de casa, agarraram pelos cabelos aoportunidade de entrar de posse em um saber religioso alternativo

> a mtisica como tatica de convers5o, cf. Azpicuelta 1 . 55o: 1, 18o; o delicioso trechode Pires 1552: 1, 333-84; e Blizquez 1557: II, 350-51.

26. Portanto, se os padres eram uma especie de karaiba, os karaiba cram uma especiede padres. Ver os desejos de ser padre exprimidos pelo xam5 Pacim5o, em Evreux1614: 241 e ss. Para urn caso de apropriac5o do discurso crist5o por urn profeta, cf.Abbeville 1614: cap. XII.

210 0 nuirmore e a murta211

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ao dos karaiba; sem que seja preciso aceitar integralmente a hip6tese

de H. Clastres sobre a "contradicao entre o politico e o religioso" nasociedade tupi pre-colonial, pode-se ainda assim ver aqui uma disputa

entre eminencias concorrentes.P 0 use dos padres para a consecucao

de objetivos politicos prOprios, alias, era extensivo: os Tamoio deIperoig aceitaram a embaixada de Anchieta de forma a ganhar os por-tugueses como aliados contra seus adversirios tradicionais, os Tupi-niquim de Sao Vicente. Aparentemente pouco inclinados a qualqueroposicao segmentar, os Tupi vendiam a alma aos europeus para conti-nuar mantendo sua guerra corporal contra outros Tupi. Isso nos ajudaa entender por que os indios nao transigiam coin o imperativo de vin-ganca; para eles a religiao, pr6pria ou alheia, estava subordinada afins guerreiros: em lugar de terem guerras de religiao, como as quevicejavam na Europa do semi°, praticavam uma religiao da guerra.

DO QUE COSTA CREH

Os padres foram, entao, vistos como uma especie particularmente

poderosa de karaiba. Mas, eis-nos diante do grande problema: acredi-

tavam os Tupinamba em setts profetas? As primeiras cartas jesuiticas

lamentam, nao sem antecipar urn proveito, a credulidade dos indios,que se deixariam guiar cegamente pelas santidades: "qualquier delos suios que se quiere hazer su dios to creen y le din enter() crc-dito..." (Nobrega 1549: 1, 137-38); "ay entre ellos algunos a quien tie-nen por sanctos y dan tanto credito que to que les mandan hacer essohazes" (Correia 1551: 1, 231). Sao bem conhecidas as cerirnOnias detransfusao de poderes espirituais realizadas pelos xamas, as curas,previsaes e proezas sobrenaturais que se Ihes creditavam, suas fun-cOes de mediacao entre o mundo dos vivos e dos mortos, para nao

27. Cf. Evreux (op.cit.: 220-2t), para o conilito entre um principal c urn "grand

barbier*.

falarmos nas formidiveis migracaes desencadeadas e conduzidaspelos karaiba em busca da Terra sem Mal. Não ha dilvida, ern suma,que xamas e profetas gozavam de "imenso prestigio" (H. Clastres1975: 42) junto aos Tupinambi, desempenhando urn papel religiosode destaque. Resta saber se tal prestigio, que se comunicou em largamedida aos missionarios cristaos, pode ser traduzido na linguagempolitico-teolOgica da fe e da crenca.

Embora os jesuitas constatem o prestigio deleterio dos karaiba,curioso que estes nao aparecam nas cartas como obstaculo princi-

pal a conversao do gentio, mas antes como urn percalco suplemen-tar, parte dos maus costumes nativos, incapaz, por si s6, de turvar odesejo de cristianizacao:

Los gentiles, que parece que ponian la bienaventuranca en matar sus con-

trarios y comer corns humana, y tener muchas mugeres, se van mucho

emendando, y todo nuestro trabajo consiste en los apartar desto. Porquetodo lo demds es filed, pues no tienen idolos, aunque ay entre ellos algu-nos, que se hafen cantos y les prometen salud y victoria contra sus enerni-gos. Con quanto gentiles tengo hablado en esta costa, en ningunarepugnancia a lo que deficz: todos quieren y dessean ser christianos, perodeixar sus costumbres les parece dspero... (NObrega 1551: 1, 267-68).

Tinindoles las matancas y el coiner came y quitdndoles los hechi-eros y hariindolos bivir con una sola muger... (Blizquez 15 5 8: II, 430).

No periodo do desencanto jesuitico que logo seguiu o otimismoinicial, a tipica inconstancia selvagem prepondera sobre a ac5odas santidades coma entrave a conversao: "porquc como nä° ternquem adorem, salvo uma sanctidade que the vem de anno em anno,[...] facilmente dizem que querem ser christios, e asi facilmentewrap atraz..." (Pires 1552:1, 324). Pouco a pouco, os padres come-pram a perceber que o tipo de crenca depositada nos karaiba naoera exatamente aquele que gostariam fosse votado a eles e a sua

212 0 marmore e a murta 213

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doutrina: "Algunos dellos que se hazen santos entre ellos aora lesdan credit() aora no, porque las mas de las vexes los hallan en men-

tira" (Correia 1553:1, 447). Nä° se ponha isto na conta de mero des-peito ou chime profissional; o ceticismo, reconheciam os padres,

estendia-se a eles mesmos: -

Y vale poco ides predicar y volver para casa, porque, aunque algan cre-dit° den, no es tanto que baste a los desraigar de sus biejas costumbres, ycreennos como creen a sus hechiteros, los glides a las vetes les mienteny a las veres aciertam a detir verdad... (Neibrega 1558: II, 452).

Profetas que caiam em desgraca junto a seus seguidores eram fre-qiientemente mortos (Thevet 1575: 81; Cardim 1584: 103). Em cer-tos casos, como naquele do feiticeiro pernambucano reportado por

Vicente Rodrigues (ver supra), foram os padres os responsiveis portal descredito (ver tambem Abbeville op.cit.: cap. xir). Uma situagaosem drivida inquietante: nao seria esse tipo de adesao condicionadaveracidade das profecias e a eficicia das curas que poderia predispor

a religiao revelada. 0 estilo de religiosidade tupinambi nao era demolde a criar urn ambiente para a autentica fe: "bien que no hai enesta tierra idolatria, sino ciertas sanctidades que ellos dizen que nicreen ni dexan de creer..." (Gra 1556: II, 292). Nem creem nem dei-xarn de crer: os indios, pelo jeito, nao conseguiam acreditar nem emDeus, nem no terceiro excluido. Ou, como diria mais tarde Vieira,

"ainda depois de crer, sac) incredulos." Os missionirios, que poucosanos antes haviam insistido sobre a universal credulidade do gentio,deram-se conta que as coisas eram bem mais complicadas, e que acrenca nas santidades e nas fibulas dos antepassados nao demarcavaem negativo o lugar de uma conversao.

Essa versa() tupinambi do "probUme de l'incroyance au seiTieme

siecle", para evocarmos o celebrado livro de Lucien Fevre, apre-senta dois aspectos interligados: um, cognitivo, e o outro, politico.Quando Vieira dizia que o jardineiro de suas estatuas de murta deve

214 0 nub-more e a murta

cortar "o que vicejam os olhos, para que creiam o que nao veem",talvez estivesse fazendo mais que uma alusao evangelica. Do mesmomodo, quando os cronistas pintam os Tupinambi a modalizar cer-tas declaracOes cosmolOgicas por frases do tipo: "conforme nosdizem os nossos karaga", "o lugar que nossos pajes dizem ter visto"(Thevet op.cit.: 85, 99; Lery 1578: 22o-11), isso pode significar mais

— ou antes, menos — que o reconhecim irnto da absoluta autoridadedos xamas e profetas no que respeitavalao Alem.

A lingua tupinambi, como comium nas culturas amerindias,distinguia entre a narragão de eventos pssoalmente experimentadospelo locutor e aqueles ouvidos de terceiros. 28 Minha experiencia cornos Arawete, povo tupi que apresenta numerosas afinidades com osTupinambi — inclusive na centralidade da figura dos xamas comoformuladores e divulgadores do saber cosmolOgico — inclina-mea tomar as declaracties do tipo "assim dizem nossos pajes" comoformulas citacionais que marcam uma relacao nao-experiencial dolocutor corn o tOpico do discurso. No caso arawete, onde proliferamxamas e versOes do que se passa no ceu corn os mortos e os deuses,isso esta claramente associado corn uma distincao entre o conheci-mento obtido pelos prOprios sentidos e aquele obtido pela experiin-cia (direta ou indireta) de outrem, conhecimentos que nao possuemo mesmo estatuto epistemico. Estou longe de pensar que os Arawete

"nao creiam no que nao veem"; mas eles tomam extremo cuidadoem distinguir o que viram do que ouviram; e isso a especialmentemarcado no caso das informacOes cosmolOgicas que dao ou pedem.Nä° duvido que eles acreditem em seus xamas, mas de um modoque Vieira possivelmente resumiria como "ainda depois de crer, saoincredulos", pois certamente nao tem nada de parecido com uma ver-dade revelada, e a nocao de dogma lhes a completamente estranha.

28. Aproveito aqui ideias apresentadas por Peter Gow (1991b, c) em duas palestrasno Museu Nacional, bem como retomo observacties ji feitas em Viveiros de Castro1986a, sobre a "politica discursiva" dos Arawete.

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E claro, por fim, que as variadas fabulaceies xamanicas convergempara urn foco virtual corn todas as caracteristicas de urn sistema; masnao penso que se trate de urn sistema de 'crencas'. De resto, a prolife-racao de xamas e discursos xamanisticos impede o congelamento dequalquer ortodoxia. Li nao pode haver crentes, pois nä° ha hereges.Teria sido diferente no caso tupinamba?

0 problema epistemico erzL na verdade politico, coma percebe-ram os jesuitas:

Me parece que se ha de tener con ellos mucho trabajo,y una de las causaly mas principal es porque no tienen rey, antes en coda Aldea y casa aysu Principal. Assi es que es necessario andar de povoacidn en povoacidn.

Y sy oviera rey, el convertido, fueron todos... (Correia 1151: t, z31);

Nao estao sujeitos a nenhum rei ou chefe e so tbn nalguma estirna ague-les que fizeratn algum feito digno de homem fine. Pot isso frequente-menu, quando os julgamos ganhos, recalcitram, porque nao ha quern osobrigue pela jolt: a obedecer... (Anchieta 154: II, 114).

Mas é no Dialog° da conversdo do gentio que se poe o dedo na ferida:

Se tiveram rei, poderdo-se converter, ou se adorciram algtuna cousa; mas,como nam salsem que cousa he air nem adorar, nao podem entender hapregacdo do Evangelho, pois ella se funda emfaTer crer e adorar a humtoo Deus, e a use so servir; e como este gentio nam adora nada, nem creenada, todo o que the dileis se figua nada. (NObrega 1556-57: II, 320).

Aqui esti: os selvagens nao creem em nada porque nao adoramnada. E nao adoram nada, no fim das contas, porque obedecem aninguern. A ausencia de poder centralizado nao dificultava apenaslogisticamente a conversio (nao vigorando o cujus regio, os missio-

narios precisavam trabalhar no varejo); eta a dificultava, acima dctudo, logicamente. Os hrasis nao podiam adorar e servir a urn Deus

soberano porque nao tinham soberanos nem serviam a alguem. Suainconstancia decorria, portanto, da ausencia de sujeicao: "nao hiquern os obrigue pela forca a obedecer..." Crer e obedecer, lembra-nos Paul Veyne 19( R

3:curvar-se verdade revelada, adorar a

loco de onde emana, v e4n4e);rar seus representantes. No modo de crerdos tupinambi nao havia lugar para a entrega total a palavra alheia:

"como no tiene[n] idolos por quien mueran", nao podiam ter religiaoe fe, que exigem a disposicao em morrer por aiguma coisa. Modode crer, modo de ser. E conclui filosoficamente Luis da Gra (1554:II, 147): "y to que parecia gut, les ayudaria a ser christianos, que esno tener idolos, esso parece que les desayuda, porque no tienen sen-tido alguno". Inconstancia, indiferenca, nada: "Lo que yo tengo pormaior obsticulo para la gente de todas estas naciones es su propriacondiciOn, que ninguna cosa sienten mucho, ni perdida spiritual nitemporal suia, de ninguna cosa tienen sentimiento rnui sensible, ni queles dure..." (Gra :556: II, 294)

A validacao da cosmologia nativa pelo recurso a palavra dos pajóse profetas nao significava, portanto, uma nesta palavra, nosentido politico-teolOgico do term, porque faltava exatamente

componente de sujeicao, de abdicacao do juizo e da vontade. 0reformado Liry (1578: 192) notava corn certo prazer perverso :

Au rem, not Totioupinambaoults [...] nonobstant routes les ceremo-nies yu'ils font, n 'adorent pas en flichissant les genottx ou selond'autres manifestations e.x-tirieures. Its n'adorent ni leurs Caraibes,ni leurs Maracas, ni quelgue creature gut ce soit...29.

29. [Dc resto, !lassos Tupinambi [...), apcsar de codas as ecrimOnias que fazem, nao

cult lial» de joelbou ou con) sutras manifcstacilcs exteriorcs. Nat, vencram nem scus

Caraibas, nem seus Maracis, nem qualquer outra criatura.1

116 0 anirmore c a nuerta 217

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A referencia de Lery aos maracas a interessante, pois a insistencia

dos jesuitas sobre o fato de que os selvagens nao tinham fdolos

nao significa que praticassem uma religiao sem qualquer forma

de objetivacao material. Os chocalhos de xamanismo, sobre possui-

rem uma evidente importhricia migica e simbOlica, recebiam uma

decoracio antropomorfa, e falavam corn seus donos;" e ha referen-

cias esparsas a desenhos e objetos supostos representarem espiritos.

Do mesmo modo, os jesuitas e demais cronistas se estendem sobre

as marcas de respeito dedicadas aos karaiba errantes: limpeza dos

caminhos que os conduziam ate as aldeias, cfinticos de boas-vindas,

cloaca° de alimentos, extra-territorialidade. Mencionam tambem o

temor que estes xamis-profetas despertavam, em sua capacidade

de lancar a morte sobre os que os desagradavam; e naturalmente

escandalizavam-se ao ouvi-los se definirem como "deuses e Mhos

de deuses", nascidos de virgens etc. Entretanto, nada disto bastou

para caracterizar, aos olhos europeus, uma religião e urn culto, na

ausencia dos indispensiveis "temor e sujeicão" (Anchieta); os Tupi-

namba nao adoravam estes objetos e personagens, desconhecendo

a capacidade de sentir uma reverencia e urn temor propriamentereligiosos, fundamento de uma crenca digna deste nome.3'

Assim se ye que as tres ausencias constitutivas do gentio brasileiroestavam causalmente encadeadas: nao tinham fe porque nao tinhamlei, nao tinham lei porque nao tinham rei. Sua lingua nao tinha nem osom (efes, des e erres), nem o sentido. A verdadeira crenca supae a

3o. Mentes menos teohigicas, como a de 1-lans Staden, tinham os chocalhos porobjeto de crenca: "os selvagens creem numa cousa que cresce como uma abObora"

(t55 711 73). Para uma referencia a antropomorfizacão dos chocalhos, cf. Azpicaelta1555: IL, 2,46.

31. A repugnincia dos indios a castigos fisicos ou a ordens Aspens, e a dificulcladeque dali advinha em educi-los no temor a autoridade, é registrada duas vezes por

Luis da Gra (1554: H, 136-7; 1556: II, 294).

218 0 mdrmore e a murta

submissio regular a regra, e esta supde o exercicio da coercio por urnsoberano. Porque nao tinham rei, acreditavam nos padres; pela mesma(des)ralia, porque nao o tinham, desacreditavam. A recusa do Estado,para recordarmos um term celebre, nä° se manifestava portanto ape-nas, ou principalmente, em um discurso profetico negador da ordemsocial (H. Clastres 1975); ela ji estava embutida na relacab corn tododiscurso, enquanto ordem de rubes corn pretensao totalizante, e istoincluia a palavra dos karaiba. 32 Os Tupinambi faziam tudo quantolhes diziam profetas e padres — exceto o que nao queriam.

Ressalvo que nao vejo os Tupinamba como urn povo de empi-ristas ceticos; nem penso que sugerir ser inadequado assimilar umacultura a urn sisterna de crencas deva desaguar no utilitarismo daraid° pritica (no sentido de Sahlins 1976). Meu ponto é apenas queo 'genie du paganisme"(Auge 1982) nä° fala a lingua teocratica dacrenca. Pierre Clastres fez uma boa pergunta: é possivel conceberurn poder politico que nao esteja funds' o no exercicio da coersio?Bern, ela vale esta outra: épossivel co , ceber uma forma religiosaque nao esteja assentada na experiencia normativa da crenca? Tal-vez se trate exatarnente do mesrno problrna; mas a resposta de Clas-tres foi a invencio da Sociedade Primitiva, sujeito transcendente do

I

32. A insistencia de H. Clastres na tese do incipierte centralism° politico dos Tupi-Guarani — e portanto no papel revolucionirio dos profetas, que questionariam opoder perigosamente pre-estatal dos grandes chefes de guerra — levou-a, penso, aminimizar as informa�es que sugerem um certo ceticismo inconstante dos indiosem relac5o aos karaiba. A autora tampouco parece I evar em conta as iduneras obser-vaciies dos jesuitas c cronistas sobre a `ausencia de rei', i.e., de poder politico forte ecorn algum indicio de centralismo, nos Tupi costeiros. No minimo, deve-se observarque pode ter havido diferencas profundas entre os Guarani do atual Paraguai e osTupi da costa, ou, para char a prOpria autora, "e preciso proceder corn prudencia,Pais a hontogeneidacle [...I da cultura tupi-guarani obviamcnte nao autoriza umaatribuicao automatica aos segundos do que sabemos ser verdade dos primeiros"(1975: 22). Sobre o poder politico entre os Tupi da costa, cf. Fausto 1992.

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poder politico nao-coercitivo, ao passo que a resposta a segunda per-gunta implicaria uma problematizacão radical desse sujeito.

0 no da questäo esti na ideia de que 'a religioso' é a via real queconduz a essencia Ultima de uma cultura. Por tris disso ergue-se oidolo durkheimiano da totalidade: impulso de contemplacäo e cans-tituicio do todo, a Crenca da tribo é a crenca na Tribo, é o Ser e operseverar do Ser da tribo. Duvidar que tal idolo seja adorado pelosselvagens é suspeitar da icliia de sociedade enquanto totalidade refle-xiva e identitiria que se institui pelo gesto fundacional de exclusäode um exterior. E nao a preciso ser Os-modern° (Deus nos livre)para duvidar disso. A religi5o tupinambi, radicada no complex° doexocanibalismo guerreiro, projetava uma forma onde o sociu.r consti-tuia-se na relacio ao outro, onde a incorporacao do outro dependiade urn sair de si o exterior estava em processo incessante de inte-riorizac5o, e o interior nä° era mais que movimento para fora. Essatopologia nao conhecia totalidade, nao supunha nenhuma mOnadaou bolha identitiria a investir obsessivamente em seas fronteiras eusar o exterior como espelho diacritic° de uma coincidencia consigomesma. A sociedade era ali, literalmente, um 'Unite inferior da pre-dacios (Levi-Strauss 1984:144), o residua indigerivel; o que a moviaé a relacio ao fora. 0 outro nä° era urn espelho, mas um destino.

Nao estou dizendo para insistirmos nesta antropologia nega-tiva que nao tenha existido alga como uma religi5o, ou uma ordemcultural, ou uma sociedade tupinambi. Estou apenas sugerindo queessa religiao nao se pensava em termos da categoria da crew, essaordem cultural nao se fundava na exclus5o unicista das ordens alheias,e essa sociedade nao existia fora de uma relac5o imanente coma alteri-

dade. 0 que estou dizendo a que filosofia tupinambi afirmava umaincompletude ontolOgica essential: incompletude da socialidade, e,em geral, da humanidade. Tratava-se, em suma, de uma ordem ondeo interior e a identidade estavam hierarquicamente subordinadosa exterioridade e a diferenca, onde o devir e a relaclo prevaleciamsabre o ser e a substincia. Para esse tipo de cosmologia, os outros

sao uma solucâo, antes de serem como foram os invasores europeus

— urn problema. A murta tern razeies clue o mirmore desconhece.

A inconstancia selvagem apareceu ainda, aos olhos dos jesuitas, sob

a luz agravante do interesse mesquinho. Crer ou nao crer, eis, para

o gentio, uma questao respondida pelas vantagens matcriais quedali adviessem:

Esta gente, Padre [Loyolaj, no se convierte con k ditir de las cosas

de la fee, ni con "atones, ni palabnu de predication. [...j El modo

de los convertirlar, de los blancos, es alleguar commodidades tem-

porales sin noticia alguna de cosas a'e la fee... (Gra 1554: II, 137).

Y si algunas apparentias de bien y alguna esperanca nos tienen

dada en estos seis altos que a que con ellos tratamos, alo causado

mcis el intetesse,y la esperanca del que ellos tienen, que no elPryor

de la fe que en sus coracones tengan (NObrega 1555: II, 171).

verdade [...] que nossos catectimenos nos deram ao principio

grande maitre de fi e probidade. Mas, como se movem mais

pcla esperanca de lucro e certa vanglOria do que pela ft, nao tem

nenhuma firmeta e facilmente ci menor contrariedade voltam ao

vcimito, sake:ado nao undo nenhum temor dos cristaos (Anchieta1555: 11, 208).

Huma cousa tem estes peior de codas, que quando vem ci minha •

tcnda, corn hum antol que lhes di, os converterel a codas, e corn

outros os tornarci a desconverter, por serem incostantes, e nao

entrar a verdadeira fee nos coracas... (NObrega 1556-57: II, 310).

Se, a principio, os jesuitas rejeitaram isso que viam como pura vena-

lidade espiritual, nä° demorou a que recorressem pragmaticamente

a chantagem econOrnica como forma de persuas5o e controle:

220 0 ►ruirmore c a murta 221

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Grande es la embidia que los gentiles tienen a estos nuevamenteconvertidos, porque yen grain favorecidos son del gobernador y deotras principales personas, y si quisiessemos abrir la puerta al bap-tisms quasi todos se vendrian, to qua/ no harems si no conocemosser aptos para esso, y que viene[n] con devociOn, y con contritionde los malos costumbres en que se ha[n] criado, y tambien porqueno tornen a retroceder... (Pires 1551: 1, 254).

Yo tengo dicho a algunos indios princtp. ales destas panes algu-nas cosas acerca de mandar el Rei que no les den cuchillos gran-des ni pequeiios [...] y que to ha tt, porque no es raOn que lascosas Buenas que Dios trig que las den a los que a Dios no conos-cen, pasta entretanto que primero se hagan todos christianos[...] en estas partes de S. Vicente, como por toda la costa, lo=is seguro y firme a de ser ponerlos en necessidad, que veanellos claramente que no tienen ningien remedio pare aver /a hera-mienta para sus rotas, sino es tornarse christianos... (Correia

1 553 : I , 444-45).

Ern suma: o gentio n5o so era inconstante, como se guiava, emsuas deambulacOes ideolOgicas, pela cobra de bens temporais.Eis urn outro tema que fez fortuna, na construcão da imagemnegativa do Indio sujeito leviano, capaz de fazer qualquercoisa por urn punhado de anthis — e que continua a frequentar ospesadelos de muitos observadores bem-intencionados: antropO-logos, indigenistas, missionirios progressistas que gostariam dever `sous' indios recusarem, em nome dos valores mais altos dacultura nativa, as quinquilharias como que lhes acenam. A guisade racionalizaca'o, costuma-se recorrer ao argumento da superio-ridade tecnica dos implementos europeus, cuja irresistivel atra-cao corrOi o marmore do orgulho e da autenticidade culturais.Sem pOr em thivida as vantagens materiais muito palpiveis que

"cuchillos grandes y pequerios" oferecem a povos desprovidos de

metalurgia,33 penso que esta explicag5o exprime um utilitarismobanal, terminando por validar juizos como o dos jesultas. A alter-

nativa de se considerar a `vena/idade e leviandade indigenascomo uma camuflagem estrategica, que permite a obtencAo decoisas preciosas (como instrumentos de ferro, ou a tranquilidade)em troca de concessOes irrelevantes (como a alma, ou o reconhe-cimento dos poderes constituidos), nio é inteiramente falsa, masme parece insuficiente. Certamente muitos povos indigenas trata-ram e tratam os brancos como idiots savants de quem se pode sub-trair objetos maravilhosos em troca de gestos de fachada; e muitosoutros pagam o preco da adesio verbal para que os deixem em paz.34Mas, sobre implicar uma concepcao estitica e reificada da cultura,como algo a ser prescrvado sob camadas de verniz refletor, essearguments esquece que em muitos casos as concessOes foram bemreais, e que os efeitos da introducao de bens e valores europeussobre as estruturas sociais nativas foram profundos. Ele esquecetambem que a relacão corn a parafern5lia dos invasores, ainda queinevitavelmente guiada por fins culturais autOctones, nâo se deixaler sempre em termos de um instrumentalismo auto-esclarecido.Ele ignora, sobretudo, que a cultura estrangeira foi muitas vezesvisada em seu todo como um valor a ser apropriado e domesticado,como urn signo a ser assumido e praticado enquanto tal.

NI° a mera pirueta dialetica dizer que os Tupinambi nuncaforam mais si mesmos que ao exprimilrem seu desejo de "ser chris-tianos como nosotros". As eventuais iantagens priticas que busca-vam ao declarar seu desejo de converSäo estavam imersas em urn

33. Algumas das quais residindo, justamente, na possibilidade de intensificacio de priti-cas tradicionais valorizadas. Veja-se aqui a notivel carta de Pero Correia 0553:1, 445),onde este observa uma conexäo causal entre a introducão de implementos de ferro, oaumento das areas plantadas, e a intensificasio das cauinagens e das guerras.34.0 melhor exemplo dessa tolerincia irOnica para como os brancos esta numa diver-tida passagem de Nimuendaju 1 9 1 4 : 28-29.

222 0 nuirmore e a nzurta 223

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"calcul sauvage" (Sahlins 1 985) onde ser como os brancos — e o ser

dos brancos — era urn valor disputado no mercado simbOlico indi-gena. Os implementos europeus, alem de sua Obvia utilidade, eram

tambem signos dos poderes da exterioridade, que cumpria capturar,

incorporar e fazer circular, exatarnente como a escrita, as roupas,

os salamaleques rituals dos missionarios, a cosmologia bizarra que

propalavam. Exatamente, alias, como os valores contidos na pessoa

dos inimigos devorados: os Tupinamba sempre foram uma `socie-

dade de consumo'. Isto que chamariamos de impulso aloplistico ou

alomOrfico dos Tupi nio pode estar mais distante do patetismo da

alienacao ou do espelhismo do Mestre e do Escravo; etc é a contra-

partida necessiria de urn canibalismo generalizado, que se distingue

radicalmente da vertigem aniquiladora prOpria dos imperialismos,

ocidentais ou outros. As leituras da antropofagia tupi nos termos

simplistas de um impulso de absorcao e controle (simbOlico, poli-

tico ou como se o queira chamar) do outro negligenciam esta dupla

face e este duplo movimento: incorporar o outro a assumir sua alteri-dade. A moda inconstante da casa, bem entendido; o 'virar Branco e

cristae dos Tupinambi nao correspondia em nada ao que queriam

os missionarios, como vein a demonstrar o recurso a terapia de cho-

que do compelle intrare."

Como os Tupinamb6 perderam a guerra

A pregacao escatolOgica dos padres coincidia corn as ideias nativassob alguns aspectos: imortalidade da alma, destino pOstumo diferen-

35• Nib é o caso de discutirmos acid a virada jesuitica em dire* a linha dura. Os

trechos das cartas jesuiticas pertincntes esti .° em: Anchieta *554 t4, *IS; t $15:

11, 2o6-o8; Camara 1557: II, 421; NtSbrega '517: H, 401-02; 1558: H s 447-48 , 410;

hires $58: n, 463; NObrega 1559: 72; Pereira 156o: III, 293; e a eilebre carta de

Anchieta 1563: III, 554.

ciado conforme a qualidade da vida levada na terra, conflagracaoapocaliptica. Mas havia uma discordancia de principio quanto asinjuncOes envolvidas nas concepcOes crista e indigena do reto cami-nho. Como ouvimos na fala de Pindabugu, guerrear e vingar-se

era consubstancial ao ser de um homem. 0 imperativo da vingancasustentava a miquina social dos povos da costa: "como os Tupi-nambi sao muito belicoso s, todos os seus fundamentos sao comofarao guerra a seus contrizios" (Soares de Souza op.cit.: 320). 36 Eiso avesso da inconstancia indigena. Pois se os indios mostravam-seadmiravelmente constantes em alga, e se de alguma coisa tinham urn

"sentimento muy sensible, y que les lure", era em ludo que dizia res-peito a vinganca:

Tienen guerra linos con otros, scilicet una generacidn contra otra generacidn,a die{ e quinte e veynte leguas, de manera que todos entre si esan divisos.[...] Y en estas dos cocas, siclket, en toner muchas mugeres y matar suscontraries, consiste toda su honrra, y esta es su felicidad y deseo. Y notienen guerra por cokkia que tengan [...] sino solamente por odio y ven-ganca... (NObrega t 549: 1, 136-37).

Llamando todos sus parientes que se viniesen a vengar — la qual es lamaior honrra que deficit, porque quando alguno estd en la jin de susmos dins pide carne de sus contrarian para comer, porque asi van conso-lados, y tambiin se honrran mocha tenor en la cabecera de la red, dondeduermen, un novillo de carne... (Rodrigues 1552: 1, 307-08).

Y lo que mds los tiene ciegos, es el infassiable appetitu que denen de ven-

guanfa, en lo qual consiste su honra... (Gra 1554: II, 132-33).

36. Sobre a guerra c o canibalismo tupi, cf. Mêtraux *967; Fernandes 1949, 1952; H.Clastrcs 1972; Viveiros de Castro 19116a; Combs 3992; Carneiro da Cunha & Vivei-ros de Castro 1985; Saignes 1985; Combil & Saignes 1991; Fausto 1992.

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Sus guerras, en las quales como tengan puesto quasi todo su pensamientoy cuidado en ellas... (Anchieta 156o: III, 258-59).

[Anus de partirem a guerra, um principal os arenga, falando-lhes da]obrigacao que dm de it tomar vinganca de seus contrariot, pondo-lhesdiante a obrigacao que tern para o fa Terem e para pelejarem valorosa-mente; prometendo-lhes vitdria contra seus inimigos, sem nenhum peri gode sua parte, de que ficarci deles memaria para os que vas lies vieremcantar em seus louvores... (Soares de Souza 1587: 32o).

Se os brasis nao tinham idolos por quern morressem, morriam entre-tanto, e matavam, por outras coisas: por seus "costumes inveterados".Eis porque estes eram o verdadeiro obsticulo, mais que os profetas. Avinganca guerreira estava na origem de todos os maus costumes: cani-balismo, poligamia, bebedeiras, acumulacio de nomes, honras, tudoparece girar cm torno dente tema. Note-se que o discurso dos karaiba,ele tambem, se pregava a abolicao de regras essenciais, suspendendoa ordeal social — abandono das regras matrimoniais, da vida agricolae aldea preservava e estimulava a empresa guerreira. A Terra sem

Mal nao exclula, antes potencializava a guerra. Recordemos a triadeclassica de promessas dos profetas: longa vida, abundancia sem tra-balho, vitOria contra os inimigos. 0 xamanismo possuia conexaesdecisivas corn a guerra: os "Pager et Caraibes" , diz Thevet, "rendentresponsables, comme oracles, a ce peuple, sur les evenemens de leurs affai-res, et nommiment des guerres, qui est leur estude principal"37 (1575: 77);

" les plus grandes clzoses que lesdits Pager demandent a 'esprit, c'est sur

le faict de la guerre... (id.: 82).38

37. [Pajes e Caraibas transmitem, como oriculos, a esse povo os acontecimentos emsuas atividades, especialmente as guerras, que sao seu assunto principal; as maiorescoisas que os ditos Pajes inquirem ao espirito sio assuntos da guerra.]38.E isto que torna pouco sustentavel a tese de H. Clastres sobre o carater negadordo discurso profetico: pois se a guerra era o fundamento da sociedade tupi, e um >

fio rubro da viriganca percorria a vida e a morte dos homense mulheres tupinamba. Ao nascer, urn menino recebia urn pequenoarco e flecha e urn colar de garras de jaguar e de harpia,

.e fin qu'il snit vertueux et de grand courage, comme le faisant protesterde faire a jamais guerre a leurs ennemis: d'autant que ce peuple ne sereconcilie jamais a ceux contre lesquels it a eu autrefois guerre. [...] Sic'est une fille, on lay Pend au col des dens d'une beste quits nommentCapiigouare [...J a fin disent-ils, que leurs dents soient meilleures etplus fortes a manger leurs viandes..." (id. ibid.: 5o).39

Nao sei se é demasiado supor que " leurs viandes" se referia a carnedos cativos; mas os rims da menarca envolviam a mesma imposica.ode um colar de dentes de capivara, "a fin [...J que leurs dents soientplus fortes a mascher leur breuvage qu'ils appellent .Kaouin" (id.ibid.: 2o7)4°. Isso parece marcar os dois sexos pot suas atividadesprincipals no complexo guerreiro: os homens como responsiveispela captura e morte dos inimigos, as mulheres, pela producao deurn componente essencial do festim canibal, o cauim.'

> dos temas principais dos karaihe... (Carneiro da Cunha & Viveiros de Castro 1985:z96). As cartas jesuiticas e demais cr6nicas atestam a abundincia essa relacio entrea palavra dos xamas e a guerra. Cf. Correia 1551: 1, 225; Anchieta 1554: It, 108-09;Blizquez 1156: II, 270; Staden t557: 174; Liry 1578: 190-91.39. [Para que seja virtuoso e de grande coragem, incitando-o a jurar fazer guerrapara sempre contra seus inimigos, ate porque, esse povo jamais se reconcilia cornaqueles contra os quais ji guerreou. Se é uma menina, penduram-lhe ao pescocoos dentes de um animal que chamam Capiigouare (capivara) de modo que, dizem,seus dentes fiquem maiores e mais fortes para comer1suas carnes]

4o. [De modo que seus dentes sejam mais fortes para lmascar a beberagem que cha-mam Kaouin (cauim)]

41. Cf. tambem Cardim: "[S]e [o filho] é macho the faz um arco corn frechas, e lhoata no punho da rede, e no outro punho muitos molhos d'ervas, que sao os contra-rios que seu filho ha de matar e corner..." (15 84: 107)1

226 0 ruirmore e a meta 227

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Para os homens, o rito de passagem equivalente aos ritos damenarca era a execucao cerimonial de urn prisioneiro. Sem ter mortourn cativo e passado por sua primeira mudanca de nome, urn rapazestava apto a se casar e ter Mhos (Anchieta 158$: 434; Cardim 1584: 103;Monteiro 161o: 409); nenhuma mae daria sua filha a urn homem quenão houvesse capturado urn ou dois inimigos e assim trocado seu nomede infincia (Thevet op.cit.: 134). A reproclucao do grupo, portanto,estava idealmente vinculada ao dispositivo de preaslo e execuc5o ritualde inimigos, motor da guerra. Casados, os homens deviam presentearseus sogros e cunhados corn cativos, para que estes pudessem vingar-see ganhar novos nomes; essa prestac5o matrimonial parece ter sido umdos requisitos para a saida de um homem da "servidão" uxorilocal. 42

A medida que lam tomando e executando cativos de guerra, oshomens acumulavam nomes e renome:

Sua bem-aventurance hi nzatar e ter mimes, e esta hi sua glade par que

mais fctrem... (NObrega 1556-57: 11, 344).

Comidere um homem sua major honra capturar c mater muitos

o que entre tiles i habitual. Trar cantos names quantal inimigos matou,

e as mais nobres entre Iles sao aqueles que tern muitos names (Staden

1 557 : 172).

42. Uma prestac5o alternativa a esta era a cenao de uma fillsa ao irmao da esposa; osTupinambii, como se sabe, cram adeptos do casamento avuncular. 0 descumprimentodessas obrigacaes podia levar ao confisco de uma mulher por seus irrn5os. Ver o relatode Vicente Rodrigues (1552:1, 307): "fueranse a la guerra pars sc vengar, donde fuabun hilts de un Principal de la misma Aldea, christiano que se llamava Bastian

Tellez...; y iendo mataron muchos contrarios y cativaron, el qual cativo uno que le

vino a su pane. Yendo asi con victoria, los parientes de La muger de Bastian Tam lepedieron el suio, diciendo qua si no se lo diesen, qua le avian de tomar In muger, el qualse to di6 con verguenca que recibiria de los blancos si le tomassem in muger." Sobre acessiio de tithas como condislo para a saida da uxorilocalidade, e sobre a obrigacilo de

urn jovem recem•casack presentear seus afros corn cativos, cf. Thevet tin 130, 132.

228 0 nuirmare e a mart*

De codas as honras e gostos da vide, nenhum a tamanho pare este gentio

como matar e tomer names nas cabefas de seus contraries, nem entre

elles ha festas que cheguem as que farem na mane dos que matiio corn

grandes ceremonies... (Cardim 1584: 113).

Urn dos mores apetites, que tem este naccio, i a matanca dos traps,pelo que fatem extremes [...] a conta de serem havidas por esforcados,

que entre des i a supreme honra e felicidade, tomando novos nomes, con-

forme os contrarios que matam, dos quail a lguns chegam a ter cento e

mais apelidos... (Monteiro 161o: 409).

Tais nomes, mernOria dos feitos de bravura, signos e valores essen-ciais da honra tupinambi, eram parte de uma panOplia que incluiaescarificacOes, batoques facials, direito a discursar em paha; eacumulacão de esposas. A poligamia suntuaria parece ter sido urnatributo dos chefes ou grandes guerreiros. Acumu/aclo de cativos,de signos, de mulheres, de genros: escapando da dependencia uxo-rilocal pelo renome guerreiro, um homem seria capaz de impor estasujeicao a seus jovens genros, maridos das filhas geradas nas suasmuitas esposas: "e assim quern tern mais filhas é honrado pelos gen-ros que corn elas adquirem, que sao sempre sujeitos a seus sogros ecunhados..." (153 4: 329).4'

43. Sobre a acumulaciits de nomes c escarificaciies memorials, cf. Anchieta 1585: 434;Abbeville 161 4: 268. Sobre a proliferacio de batoques a medida quc se acumulavamcativos mortos, e sobre o direito a falar cm p6blico que o porte dates aderecossignificava, cf. Monteiro 161o: 409. Sobre a relacio entre poligamia a prestigio, cf.Thevet op.cit.: 135-36; Lery 1578: 199; Soares de Souza *587: 304; Abbeville op.cit.:222-33, 255. Nos documentos jesuiticos, a relacio entre poligamia e proeza guerreiraé em geral apenas de parataxe; ndo consegui achar all nenhuma vinculacao causal,salvo em urn treclso da "I nformaiNio do Brasil e dc suas capitanias" (Anchieta 1514:329), que nos afirma ser usual ter urn homem tres ou quatro mulheres, exceto "seprincipal c valente, [quando) tern der., doze e vintc". Sobre a acumulac'ào de nomespclas mulheres conforme o ntInsero de cativos mortos pelos maridos, cf. Staden >

229

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Por fim, se a proeza guerreira era condic5o da honra nestemundo, era tambem necessaria para uma existencia confortivel noAlem: so os bravos tinham acesso ao paraiso, as alms dos covardesestavam votadas a uma miseravel errancia na terra, junto aos demo-nios Anhang (Thevet 1575: 8 4-85; Lery 1578: 185; Abbeville 1614:

252; Metraux 1928: 111-12, e Fernandes 1949: 285}"E mais: se yin-gar-se matando inimigos era a marca de uma vida de valor, o kilosMariam era o que se obtinha em combate, e supremamente sendo avitima de uma execucâo cerimonial em terreiro. 4 cativeiro e o `sacri-

deveriam ser suportados corn bravura e altivez:

4queste mal de comer unos a otros anda muy dauiado entre ellos, y estam° que los Bias passados hablaron a uno o dos que tentan a engordarpara esto, si queria que le rescatassen; 11 de tlo que no to vendiessen, por-que le cumplia a su honrra passar por tal muerte coma valiente capita(Azpicuelta 1551: 1, 279).

Aos contrarios the tem persuadido que em cater todas aquelas cerimoniassao valentes e esforcados, e logo lhes chamao fracas e apoucados se corn

> 1557: 17o. Monteiro (1610: 4 11) acrescenta que elas tomavam novos nomes tam-bem ao participarem da cerimOnia de recepc5o dos cativos. Sobre a sujeic5o doshomens a seus afins doadores, cf. ainda: "el suegro en esta tierra tiene el marido dela hija subiecto y los hermanos della al cufiado..." (Gri ;50: it, 295).

44. Seria apressado, entretanto, concluir que a guerra tupinambi era guiada pe!o fimexclusivo, ou mesmo principal, de se aceder ao paraiso; recordo que Pindabucu naoevocou a salvac5o de sua alma como motivo para nao transigir corn o imperativoda vinganfa, mas simplesmente afirmou a impensabilidade de tal desistencia. Seuargumento foi a vergonha absoluta, nao a perdic5o eterna. N3o ha duvida que aguerra possuia mnitiplas conexOes religiosas, e que os Tupinambi eram razoavel-mente obcecados corn o tema da imortalidade pessoal; mas penso que o caso eraantes o de atingir o ceu porque se obedeceu as normas da bravura guerreira, que ode se obedecer a elas para atingir o ceu. A possibilidade das mullicres atingiremo paraiso e algo sobre que pouco se sabe; cf. Metraux 7928: 112.

230 0 mdrmore e a murta

o medo da morte refusaa de facer isto; e daqui ssocede que porfrgir estainfamia, a see parecer grande, totem cousas ao tempo de morrer queserd incredivel a quern nao no tem vista, porque comem e &hem e sedeleitao, coma hornets sem sentido, em os contentamentos da came taodevagar corno se nao ouvessem de morrer (Blizquez 7557: II, 386).

Ha aqui dois motivos entrelacados, urn de ordem escatolOgica epessoal, outro de ordem sociolOgica e coletiva. A devoracio pelosinimigos estava associada a um tema caracreristico das cosmologiastupi-guarani, o horror ao enterramento e a putrefacio do cadaver:

Ati os cativos julgam que Ihes secede nissso coisa nobre e digna, depa-rando-se-lhes morte tao gloriosa, como eles julgam, pois diem que Ord-prio de anima tImido e impro'prio para a guerra morrer de maneira quetenham de suportar na sepultura o peso da terra, que julgam ser muitogrande (Anchieta 1554: II, 713).

E alguns anddo tao contentes corn haverem de ser comidos, que por nenhumavia consentirao ser resgatados para servir, porque diem que e triste comamorrer, e ser fedoreeta e comido de bichos (Cardim 7584:174}.

Jacome Monteiro, evocando os "agouros do gentio", relata que umadas coisas que fazia uma expedicao guerreira desistir da empresa erao apodrecimento das provislies que levava:

Se a came depois de cotida toma bichos, a que é mui fdcil por causada muita quentura da terra, e diem que assi como a came toma bichos,assim seus contrdrios nao os camera°, mas deixd-los-ao encher de bichosdepois que os matarem, o que é a mor deso)Fa que hd entre estes bdrba-ros (Monteiro z6zo: 413).

Ye-se a cumplicidade entre cativos e captores, que fazia corn queo inimigo ideal de urn tupinambi fosse outro tupinambi. De resto,

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varios aspectos do cativeiro e execusdo dos inimigos atestam urnesforso de transformacio do prisioneiro em um ser a imagem dosTupinamba, se jfi nao o era: os europeus eram depilados e pintadosa moda da casa (caso de Hans Staden); os cativos deviam dancar,comer e beber com seus captores, eventualmente acompanha-losguerra; e a entrega de uma mulher ao cativo, sua transformacio emurn cunhado, parece-me dever ser interpretada neste sentido, comouma ernpresa de socializaclo do inimigo. Os Tupinambi queriamestar certos de que aquele outro que iriam matar e comer fosse inte-gralmente determinado como um homem, que entendesse e dese-jasse o que estava acontecendc consigo.

Nio ha drivida de que a morte e devorasio pelos inimigos seinsere na problemitica pan-tupi de imortalizasio pela sublimasaoda porsio corruptive) da pessoa (H. Clastres 1971; -Viveiros deCastro 1986a), e que o exocanibalismo tupinambi era diretamenteurn sistema funeririo; mas é igualmente certo que os Tupinambiinao devoravam seus inimigos por piedade, e sim por vinganca ehonra. Aqui entra o motivo sociolOgico que me parece fundamen-tal, remetendo a algo talvez mais profundo que este conjunto detemas personolOgicos sobre a putrefasio e a incorruptibilidade

e mais resistente que o canibalismo aos esforsos catequiticos ereformadores dos missionarios. 0 que a morte dos inimigos e amorte em mios dos inimigos permitia era nem mais nem menosque a perpetuasao da vingansa:

E depois que assi cliegam a comer a write de seas contraries, ficam os

adios confirmados perpetuamente, porque sentem macho esta injuria, a por

isso andam sempre a vingar-se !tuns dos outros... (Gandavo I $76: 139).

precise primeiramente que se saiba que ncio fapm a guerra pare con-

servar ou estender os limites de seu pais, nem para enriquecer-se com

os despojos de seas inimigos, mas unicamente pela honra e pela vin-

ganca. Sempre que julgam ter sido ofcndidos pelas naciies vizinhas ou

131 0 truirmore e a Mind

nao, sempre que se recordam de seas antepassados cut amigos aprisiona-

dos e comidos pelos seus inimigos, excitam-se mutuamente a guerra...

(Abbeville op.cit.: 229).

A morte em mios alheias era morte excelente porque era morte vin-dicavel, isto é, justificivel e ving5vel; morte corn sentido, produtorade valores e de pessoas. Andre Thevet exprime bem a conversioda fatalidade natural da morte em necessidade social, e desta emvirtude pessoal:

Et ne pensci pas que le prisonnier s'estonne de ces nouvelles [que seria

executado e devorado em breve], ains a opinion que sa mort est honora-

ble, a qu'il luy vault beacoup micux mourir ainsi, que en sa maison de

quelquc mort contagieuse: car (disent-ils) on nc se peuh venger de la

mort, qui offense et tue les hommes, mais on verge ken ceux qui ont ite

occis et massacreT en fait de guerre (Thevet op.cit.: ,96).45

A vinganca nao era assim um simples fruto do temperament° agres-sivo dos indios, de sua incapacidade quase patolOgica de esquecer eperdoar as ofensas passadas;" ao contrario, eta era justamente a insti-tuisk que produzia a memOria. MemOria, por sua vez, que nio era

[E nao pensem que o prisioneiro se assusta corn essas noticias, ao conttirio, acre.dita que sua morte a honrada, c que mais vale morrer assim do que em sua casa, dealguma doenca contagiosa, pois, dizem eles, nao podemos nos vingar da morte, queofende e mata os homens, mas podemos vingar aqueles que foram mortos e massa-crados no trato da guerra.]

"Et de la sons venues ces guerres san juste occasion, ains d'une seule opinion devengeance, et dune bestiale aprehension, qui les fait aussi sanguinaires, en laquelleils sont si plongez, que si une mouche leur passe par devant les yeux, ils ?en you-dront venger..." [E dal vieram essas gucrras sem justa causa, obra de uma meravontadc de vinganca, e de uma indole bestial, que os faz tao sanguinirios e na qualestao t5o imcrsos, que, Sc uma mosca passar diantc de sous olhos, des quererio yin-gar-se dela.] (Thevet 207).

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outra coisa que essa relacao ao inimigo, por onde a morte individualpunha-se a servico da longa vida do corpo social. Dal a separacãoentre a parte do individuo e a parte do grupo, a estranha dialeticada honra e da ofensa: morrer em maos alheias era uma honra parao guerreiro, mas um insulto a honra de seu grupo, que impunha res-posta equivalente. 47 E que a honra, afinal, repousava em se poder sermotivo de vinganca, penhor do perseverar da sociedade em seu pro-prio devir. 0 Oclio mortal a ligar os inimigos era o sinal de sua mtituaindispensabilidade; este simulacro de exocanibalismo consumia osindividuos para que seus grupos mantivessem o que tinham de essen-cial: sua relacao ao outro, a vinganca como conatus vital. A imortali-dade era obtida pela vinganca, e a busca da imortalidade a produzia.Entre a morte dos inimigos e a prOpria imortalidade, estava a trajet6-ria de cada urn, e o destino de todos.

FALAR 00 TEMPO

0 lugax.onde se pode melhor apreciar a funcäo mnemOnica da vin-ganca o dialog° cerimonial entre o cativo e seu futuro matador. 0sacrificio do prisioneiro operava em duas dimensOes distintas, uma,

47. Dal a rcpulsa de muitos cativos a fugir ou ser rcsgatados pelos curopeus:"ainda que sao alguns tarn brutos que näo querem fugir depois de os terem presos;porque houve algum que estava ja no terreno atado pera padecer e dav50-lhe avida e nä() quiz sena() que o matassem, dizendo que seus parentes o no teriampor valente, e que todos correriio corn elle; e daqui vem não estimarem a morte;e quando aquella hora no na terem em conta nem mostrarem nenhuma triste-

za naquelle passo (Gandavo c. 1570: 55). Ver tambem Abbeville: "erabora Ihes

seja possivel fugir, a vista da liberdade de que gozam, nunca o fazem apesar de

saberern que ser5o mortos e comidos dentro em pouco. E isso porque, se urn pri-

sioneiro fugisse, seria tido em sua terra por cuave eim, i.e., poltrao, covarde, e

morto pelos seus entre mil censuras por n5o ter sofrido a tortura e a morte junto

aos inimigos, como se os de sua nac5o nao fossem suficientemente poderosos e

valentes para vingi-lo" (1614: 230-31).

234 0 mfirmore e a meta

`16gica', e a outra, `figica'. A antropologia canibal dos Tupinambiera preparada por uma antropofagia dialOgica, uma solene logoma-quia que opunha os protagonistas do drama ritual da execucio. Essedialog() era o ponto culminante do rito. Foi ele, diga-se de passagem,que tornou os Tupinambi famosos, gracas a leitura cavalheirescafeita no "Des cannibales", onde Montaigne o interpreta como urncombate quase hegeliano pelo reconhecimento, uma luta de mortetravada no elemento do discurso (Lestringant 1982).

De faro, o diilogo se presta a maravilha para urria leitura em ter-mos de honra guerreira. Mas aparentemente, a pouco mais que isso.Os exemplos nä° trazem nenhuma evocacio religiosa, nenhumamencAo a divindades, ou ao destino pOstumo da alma da vitima. Emtroca, todos eles falam de alga que passou despercebido aos comenta-dores. Eles falam do tempo.

0 dillogo consistia numa arenga do matador, que pérguntavaao cativo se ele era um daqueles que mataram membros da sua tribo,e se estava preparado para morrer; exortava-o a tombar como urnbravo, "deixando uma memOria" (Monteiro 16to: 411). 0 cativoreplicava orgulhosamente, afirmando sua condicio de matador ecanibal, evocando os inimigos que havia morto nas mesmas circuns-tancias em que agora se achava. Versa() feroz da vitima aquiescente,reivindicava a vinganca que o abateria, e alertava: matem-me, poisos meus me vingatio; vocis tombatio da mesma forma.

Ha diversas referencias a ester diilogos, a maioria, infelizmente,em estilo indireto livre ou em glosas resumidas:

Y un dia antes gue le maten, Idvanlo todo, y el dia siguiente lo sacan, y

pOnenlo en un terreno atado por la cintura con una cuerda, y vienne uno

de tilos muy Bien ataviado, e le hare una pldtica de sus antepassados.Y czcabada, el gae estd para morir, le respond; diriendo que de los valien-tes es no temer la muerte, y que el tambien tuatara muchos de los suyos,y que acd guedavan sus parientes, que lo ven ‘Tarian, y otras cosas seme-jantes (NObrega 1549: I, 152).

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Feitas estas cerimonias, afasta-se algum tanto delle, e comeca a faTer

puma falla a modo pregacum, ditendo-lhe que se mare mui esforiado em

defender sua pessoa, pera que o nam deshonre, nem digam que matou lawn

homem frac°, afeminado, e de pouco aninzo, e que se kmbre que dos valen-

tes he morrerem daquella maneira, em maw de seas immigos, e nam em

suas redes como mulheres fracas, que nam foram nascidas pera corn stub

mortes ganharem semelhantes honras. E se o padecerue he homem animas°,

e nam esui desamaiado naquelle paw, como acontece a alguns, responde-

the corn muita soberba e owadia que o mate muito embora, porque o mesmo

tem elkfiito a muitos seas parentes e amigos, porern que the kmke que assi

como tomam de suas mortes vinganca nelle, que assi tambem as sew o Fazio

de vingar coma valentes hymens e haverem-se ainda corn elle c corn todo a

sua gerafam daquella mesma maneira (Gandavo 1576:137).

seguir retorna o tacape aquele que vai matar a prisioneiro e di{: "Sim,aqui atOU eu, query matar-te, pals tua genie tambern matou e comeu

tea dos mew amigos". Re-spade-the o prisioneiro: "Quando estiver mono,

terei arida muitos amigos que saberao vingar-me "(Staden 1557: 182).

"N'est-tu pas de la nation...qui 110i14 est ennemie? et n'eu-tu pas toy-rnesnse

cue et mange de nos parents et anzis?" — Lui, plus assure que jamais,

re'pondait: "Pa che tantan, aiouca atoupave, Ouy, je suis tris fort et

en ay voirement ussommi et mange plusieurs... 6 que je ne my suis pasfeint; u conzbien j 'ay cite Nardi d assail, et a prendre sic vas gees, Ja-

guar j'ay tant et tant de toffs mange". L'exieuteur ajoutait: "Toy estant

maintenant en noire puissance seras presentement tuff par may, pas boa-cane et mange de tow now wares." -• "Eh hien, ripondu, menparents mac vengeront aussi." (Lary apud Metraux 1967: 62-63)."

48. ("Voce nao 6 da nacao que 6 nossa inimiga? E voce mesmo nao matou ccomeu nossos parentes c amigos?". Ele, mais seguro quc nunca, rcspondeu: "Pa

che tantan, aiouca atoupavi; Sim, sou muito forte a realmente abati e comi virios dosscus. N5o mc fis de rogado. Como fui corajoso para atacar c capturar suas gentcs,›

236 0 mdrmore e a muna

Alas pouco aproveitei, quc ek nao quis ser Cristao, ditendo-me que os

que nos outros batitavamos nao morriam como valentes, e ale queria

morrer morte form= e mostrar sua valentia, em o terreiro atado corn

cordas rnui longas pola cinta, que tres oat quatro mancebos tem hem esti-

radas, conlecou a di:ter: "Matai-rne, que been uncles de que vos vingar

em mim, que cu comi a fulano vosso pai, a tal vosso irmao, e a tal vosso

filho" —fiziendo um grande processo de muitos que havia consido destou-

tros, corn tao grande tinimo e festa, que mats parecia ale que estava para

matar os outros gue para ser motto (Anchieta 1565: 223-24).

E e tanta a bruteia date que, por nao temerem outro mal senao aquelle pre-sate nao inteiros esti° coma se nao fosse nada, assim para fallar, comopara exercitar as forfas, porque depois de se despedirem da vida corn dimque muito embora morra, pois muitos tem mortos, e gate alem disco cdficao sew irmaos c parentes para o vingarem, e nista aparelha-se um parafurtar o corpo, quo I toda a honra de sua morte (Cardim 1583: 118).

E coma eves cativos viem chegada a Nora em que hay de padecer, come-

cam a pregar e diter grandes louvores de sua pessoa; diTendo gate jai

estao vingados de quern os ho de matar, contando grandes facanhas e

mortes qua deram aos parentes do matador, ao qual ameafam e a Wei

a genre du aldeia, di(endo que sans parentes os vingarao (Soares de

Souza 1587: 326).

0 dialogo parecia inverter as posicOes dos protagonistas. Anchietase espanta: o cativo "mais parecia estava para matar os outros quepara ser morto". E Soares de Souza registra esta outra invers4o,agora temporal: os cativos diziam que jd estavam vingados de quemos iriam matar. 0 combate verbal dizia o ciclo temporal da vinganga:

> que tantas a tantas vacs comi!" 0 executor acrescentava: "Voce, estando agoracm nosso podcr, sera mono par mim c depois moqucado a comido por codas osoutros". "Muito bum, respondia-lhe, mcus parentes mc vingaraci tambim".

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o passado da vitima foi o de urn matador, o futuro do matador serao de uma vitima; a execucdo iria soldar as mortes passadas as mortesfuturas, dando sentido ao tempo. Compare-se este discurso que socontern passado e futuro corn o que disse H. Clastres sobre os cantossagrados Guarani:

[Nesta linguagem sagrada] aquele que fala I tambem, e ao mesmotempo, aquele que escuta. E, se ele questiona, sabe porlm que nao hdoutra resposta que sua prOpri a quest-do indefinidamente repetida... [...]Uma questa° que nab suscita nenhuma resposta. Ou antes, o que as betaspalavras parecem indicar, I que pergunta e resposta igualmenteimpossiveis. Basta atentar para os tempos e formal verbais: a afirmacao

ndo aparece send() no passado e no futuro; o presente é sempre o tempo

da negafii° ( 1 975 : 143-44).

No dialog° tupinamba, ao contrario, o presentee o tempo da justi-ficasao, into é, da vinganca: da afirmacao do tempo. 0 dueto e oduelo entre cativo e matador, associando indissoluvelmente as duasfases do guerreiro, que se respondem e se escutam — as perguntase as respostas sao permutiveis aquilo que torna possivel umarelasao entre passado e futuro. SO quem esti para maw e quem estipara morrer a que esti efetivamentepresente, isto é, vivo. 0 dialog°cerimonial era a sintese transcendental do tempo na sociedade tupi-namba. A categoria a priori da vinganca impunha esse duplo esque-rnatismo, verbal e canibal, que Java corpo ao devir. Antes de corner,era precis() conversar — e estes dois atos explicavam a temporalidade,que emergia de dentro da relacào de nultua implicacio e reciprocapressuposicao corn o inimigo. Longe de ser urn dispositivo de recupe-raga° de uma integridade originaria, e assim de negacao do devir, ocomplexo da vinganca, por meio deste agonismo verbal, produziao tempo: o rito era o grande Presente.

238 0 rnarmore e a mina

Uma semiofagia. Como ji mencionamos, tomava-se o maxim° cui-dado para que aquilo a ser morto e comido fosse urn homem, urn serde palavra, de promessa e de lembranca. Infuneros detalhes do rito,

culminando no dialog°, testemunham esse esforco de constituicioda vitima como urn sujeito integralmente humano. Frank-Lestrin-gant (1982), em uma beta anilise do ensaio de Montaigne sobre osTupinambâ, detecta ali a reducao do canibalismo a uma mera "eco-nomia da palavra", o ocultamento de sua dimensão selvagem taopresente nos cronistas. Montaigne, argumenta Lestringant, teria ela-borado uma versâo nao-alimentar do canibalismo tupinambi, anteci-pando a leitura simbolista da antropologia moderna, apOs urn longohiato de naturalizacio, representado no mesmo seculo xvi pelo

materialismo truculento de Cardano, uma especie de antepassadode Marvin Harris. 0 modo como Lestringant caracteriza a "idealiza-cab" montaigniana, contudo, parece-me exprimir perfeitamente omomento dialOgico do rito tupinamba; seja-me permitido assim persuas palavras a meu servico:

A came do prisioneiro'que se vai devorar ndo 4 de modo algurn, umalimento: elu a um signo... [...] 0 ato canibal representa uma vin-ganca extremada... [...} Esse esforco para apreender nas praticas docanibal a permanincia de um discurso... [...] Sem se demorar sobreas seqiielas do massacre, Montaigne retorna sempre ao desafio dehonra, d troca de injurias, dquela 'cancel° guerreira' composta peloprisioneiro anus de ma morte. Acabamos, assim, por esquecer quea boca do canibal a provida de dentes. Em vet de devorar, eta selimita a proferir. (1982: 38-40).

Näo ha dtivida que a boca dos canibais tinha dentes, akin de lingua(igualmente afiada); mas Lestringant esquece que eram os prOpriosTupinamba, não Montaigne, que separavam a boca que devoradaquela que profere: o matador era o tinico a nao corner a camedo inimigo (Correia 1551: 1, 228; Gandavo 1576: 139). 0 discurso,

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`representacao i da vinganca, transformava a carne que se is consu-

mir num sigma 0 cozinheiro dialOgico nao provava dela.

Qual o contend° desta memOria instimida por e para a vinganca?Nada, sena° a prOpria vinganca, isto é, uma pura forma: a formapura do tempo, a desdobrar-se entre os inimigos. Com a permissao

de Florestan Fernandes (1952), nao penso que a vinganca guerreira

fosse urn instrumentum religionis que restaurava a integridade docorpo social ameasado pela morte de um membro, fazendo a sock-dade voltar a coincidir consigo mesma, religando-a aos ancestraismediante o sacrificio de uma vitima. Nao creio, tampouco, que o

canibalismo fosse um processo de "recuperacio da substancia" dosmembros mortos, por intermedio do corpo devorado do inimigo.Pois nao se tratava de haver vinganca porque as pessoas morrem eprecisam ser resgatadas do fluxo destruidor do devir; tratava-sede morrer (em moos inimigas de preferencia)para haver vinganca,e assim haver futuro. Os mortos do grupo cram o nexo de ligacio

corn os inimigos, e nä° o inverso. A vinganca nao era urn retorno,mas um impulso adiante; a memOria das mortes passadas, prOprias ealheias, servia a produco do devir. A guerra nao era uma serva da

religiao, mas o contrario.'"A dupla interminabilidade da vinganca — processo sem termo

e relacio que nao se deixava apreender por seus termos sugere

que ela nao era uma daquelas tantas miquinas de abolir o tempo,mas uma miquina de produzi-lo, e de viajar nele (o que talvezseja o Unico modo de realmente aboli-lo). Ligacao corn o passado,sem dtivida; mas gestacao do futuro igualmente, por meio dogrande presente do duelo cerimonial. Sem a vinganca, isto é, semos inimigos, nä° haveria mortos, mas tampouco filhos, e nomes,

49. Em Viveiros de Castro t98(ia aclia-se until critica argutuentada da scoria sacrifi-

cial de Florestan Fernandes.

240 0 ?Fantle:WC e a Marla

e festas. Assim, nao era o resgate da memOria dos finados dogrupo que estava em jogo, mas a persistencia de uma relacao cornos inimigos. Estes cram os guardiaes da memOria coletiva, poisa mernOria do grupo — nornes, tatuagens, discursos, cantos — eraa memOria dos inimigos. Longe de ser uma alumna° obstinadade autonomic por parte dos parceiros desse jogo (como quisFlorestan, e mais tarde Pierre Clastres), a guerra de vingancatupinambi era a manifestacao de uma heteronomia primeira, oreconhecimento de que a heteronomia era a condicao da autono-mia. 0 que e a vinganca como motivo, sena° urn modo de reco-nhecer que a "verdade da sociedade", para hegelianizarmos cornBataille (1973: 64), esti sempre nas maos dos outros? A vingancanao era uma conseqiiencia da religiao, mas a condicao de possibi-lidade e a causa final da sociedade — de uma sociedade que existiapor e para os inimigos. Portanto, nao se trata simplesmente dedeslocar da religiao e suas crencas para a vinganca e suas honrasa fungi° de hipOstase da Totalidade: o que a vinganca guerreiratupinambi exprimia, ao se constituir como valor cardinal dessasociedade, era uma radical incompletude — uma incompletuderadicalmente positiva. Constancia e inconstincia, abertura e tei-mosia, cram duas faces de uma mesma verdade: a indispensabili-dade dos outros, ou a impensabilidade de urn mundo sem Outrem(Deleuze 1969).

A LEI VEIHA

A vinganca era, assim, o fundament° da "lei velha" (Pires 1559:111, 1io-11) que os missionirios precisavam destruir. Se a religiaostrict() sensu era o dominio onde os indios abriam-se a mensagemcrist5, a guerra e seus desdobramentos era por onde des se fecha-vam; se mostravam "muy fraca memOria para as coisas de Deus",revelavam uma memOria elefantina para as coisas dos iniinigos. Ainconstancia lamentada pelos padres significava, invariavelmente,

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o retorno as priticas de execucao ritual dos cativos, e por vezes aocanibalismo. 0 ApOstolo do Brasil, por exemplo, deblatera contrauma dessas recaidas, a do chefe converso Tibirica, grande csperanca

dos jesuitas de Piratininga (Sao Paulo), que na "guerra geral" de1555 dos Tupiniquim contra os Tupinambi tomou cativos e queria atodo transe mats-los a moda antiga:

Assim manifestou o fingimento da sua fC, que ate entao disfarcara, e

e todos os mais eatee..dmenos cairam e voltam sem freio aos anti gos cos-

tumes. Nao se pode portanto esperar nem conseguir nada em toda esta

terra na conversao dos gentios, sem virem para cd muitos cristaos que

[...] sujeitem os indios ao jugo da escravidao e as obriguem'a acolher-se

d bandeira de Cristo (Anchieta 1555: II, 207).

Esse foi urn dos pomos da longa discOrdia entre os jesuitas e colo-nos pelo controle dos indios. Mesmo que nab fossem cegos aosbeneficios eventuais que a belicosidade intra-tupi trazia a segurancados europeus e eventualmente a catequese, 5' os padres obstavam aguerra por saberem de seus objetivos e consequencias — a persevera-cab nos velhos costumes:

5o. Ha conjeturas malthusianas: "Son tantos, y es la tierra tan grande, y van entanto crecirniento, que si no tuviessen continua guerra, y se no se comiessen los

unos a los otros, no poderian caber" (Bras 5v: t, 275). Hi raciocinios mais poli-

ticos: [Na Baia] andao dies agora todos baralhados em crucis guerras. [...] E heagora o mais conveniente tempo pera a todos sujcitarem e os emporem no que qui-zerem..." (NObrega 1555: it, 16-17); "esta guerra fue causa de mucho bien para nues-tros antiguos discipulos, los quales son agora forcados pot la necessidad de dexartoclas sus habitationes en que se avian dispargido y recogerse todos a Piratininga"(Anchieta 1563: III, 553-54). Mas os padres nunca chegaram a fria acao de gracas deum Gandavo, p. ex.: "E assi como sao muitos permitiu Deos que fossem contrarioshuns dos outros, e que houvesse cntrcllcs grandes odios a discordias, porquc se assinao fosse os portuguezcs nao poderiao vivcr na terra nem seria possivel conquistar

tamanho poder de gente" (c. 157o: 52).

Iendo los christianos nuevamente convertidos con sus otros parientes a laguerra, lo qua[1] lo defendian los Padres porque era para se corner unosa otros... (Rodrigues r 552: 1, 3 t 8).

Os impedirnentos vie pera into it desta maneira coma ads rnuito Ad deseja-vantos era() as guerras continuas e muy cruets que os mesmos naturaes entresi tratem, e este era o principal impedimenta de corn elks se Fader entender

pot sua pouca quietacao, e daqui procediao as mattes e comerem-se hunsaos outros, que nac fay pouco defender-lho... (Pines 1558: xi, 463-64).

Por isso queixavam-se amargamente dos moradores europeus, queestimulavam as hostilidades entre os indios e coonestavam a abomi-nacao canibal:

A estes Indios, que ficarao aqui junto as christios, pasta que the defende-

r& o corner came human, nao lhes lir& o hirem a guerra e Id matarem,e par conseguinte comerem-se huns a outros, o que 6em se pudera defen-der a estes vitinhar dos christaos, segundo est& amedrontados, mas

a pratica comum de todos as christaas faterem-nos guerrear e matar, e

indufirem-nos a isso por cliterem que assi estarao mail seguros; ho que hi

total estorvo de sua conversao, e por esta causa e outros niter outarao asPadres a bautirci-los, ate se niso nao prover (Biazquez 1556: xi, 267).

Em soda a costa se tem geralmente, par grandes e pequenos, que higrande service, de N. Senhor.faTer aos gentios que se cam& e se travemhurts com os outros, e nista tern mais esperanfa que em Deus viva, e nista

diem consist& o hem e seguranca da terra. [...] Louvao e aprovaa ao gen-ii° o comerem-se huns aos outros... (NObrega 1559 : III, 76-77).51

51. "De facto, alguns cristios nascidos de pai portugues e mae brasilica, que esti°apartados de nos 9 milhas numa povoacao de Portugueses, nao cessam nunca deesforcar-se, juntamentc com scu pai [Joao Ramalho], por lancar a terra a obra que pro-

curamos edificar corn a ajuda de Deus, pois exortam repetida e criminosamente >

242 0 nuirmore e a murta 243

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Por esta causa se alevantou tambent grande murmuracdo antre os chris-

:Jos, ditendo que os deixassem comer que nisso estava a seguranfa da

terra, nio olhando que, ayndapera o bem da terra, hi nzilhor screm eles

christclos e estarem sohjeitos... (Nobrega 1559: III, 90).

Mas os padres conseguiram, afinal, que Os governadores-gerais condi-cionassem as guerras nativas a ama licenca official, punissem o crime decanibalismo e definissem os termos de rendisio impostos aos gruposvencidos nas sucessivas guerras que lhes moveram os portugueses:

Que na:o matassem os contrarios senao quando fassem d guerra, como

soem fetter Codas as outras naclies, e, se por acaso os cativassem, ou

que Os vendessem ou que se servissem delles como escravos (Blizquez

1 557 : II, 382.).

A lei, que Me: hao-de dar, c defender-Mes comer carne humana eguerrear sem licenca do Governador; filler-Me: ter uma so mulher,

vestirern-se pois tem muito algodao, ao men*: despois de cristaas,

> os catecamenas a apartarem-se de nos e a crerem neles, que usam arco e frechascomo os indios, c a no se fiarem de nos que fomos mandados aqui por causa de

nossa maidade. Com estes e semelhantes coisas conseguem que uns nio creiam na

pregacIo da palavra de Deus e que outros, que parecia ji termos encerrado no redilde Cristo, voltem aos amigos costumes e se apartem de dm, para poderem viver

mais livremente. Os nossos Irmaos tinham gasto quase um ano inteiro cm doutri-

nar uns, que distam de nets 90 milhas, e eles renunciando aos costumes gentilicos,

tinham resolvido seguir os nossos e tinham-nos prometido nem matar nunca osinimigos nem corner came human:. Agora, prim, convencidos por estes cristios

e levados polo exempt° duma nefanda a abominivel depravaclo, preparam-se nao

s6 para matar mas tambem para os corner" (Anchieta t554: 1 .14-15). Este trecho,

see mais urn exemplo dos antagonismos lzrozes a separarem colonos e jesuitas, n5oé imediatamente interpretivel como mais urn exempt° da perfidia dos primeiros,pois etc pode tanthem se inscrevt r nos casos de Indigcnizai5o' de europeus (cf.

nota 20 supra).

244 0 marmore e a fauna

tirar-lhcs os feiticeiros... fate-los viver quietos sem se mudarem para

outra parte, se njo for para antre cristilos, tendo terras repartidas que

lhes bastem, e corn estes Padres da Companhia para as doutrinarem

(NObrega 1558: II, 450).52

POde veneer Men de Saa a contradicao de codas os Christaos desta terra,quc era quererem vie os hellos se comesscm, porque nisso punhio a segu-

ranca da terra e quererem que os Indios se furtassem buns aos outras pera

elles terem escravos e quererem tomar as arras etas Indios contra revio e

justica e tirankarem-nos por codas as vias, e rao que[reirem que se ajun-

tem pera serene doutrinados e outros inconveniences desta maneira,

os quais tados elle vence, a qual eu ncro tenho por menor victoria, que as

outras que Nano Senhor the deu; c defendeo a came humana aos Indios

tact longe quanta o sea poder se estendia, a qual antes se comia ao redor

da cidade e cis vetes dentro nella, prendendo os culpados, e tendo-os pre-

sos an que elles bem conhecessetn scu erro (1•16brega 1561: In, 329).

Atraves de uma implacivel guerra oar Indios, o dispositivo teolOgico-politico dos invasores conseguiu finalmente domesticar a guerra dosIndios, retirando-lhe o miter de finalidade social para transforms-la

52. Este ó o famoso "piano civilizador" de Narega, desencadeado pela devoracAodo Bispo Sardinha pelos Owes (1556), que levou os jesuitas a endossar a doutrina daguerra justa ao gentio (NObrega i$58: It, 449). Distinga-se, portant°, a posicioda Companhia sobre as guerras intratupinambi daquela sobre as guerras movidascontra os indios pelos europeus. Neste Ultimo caso, a Companhia oscilou entre acondenaclo movida tanto pela indignacao contra as atrocidades cometidas peloscolonos coma pela competicao corn estes, que apresando os indios furtavam-nosfixacio nas aideias missionirias (NObrega t 559: tit, 93-94)— e a recomendaiao, noquadro da guerra justa c do compelle intrare. Mcsmo neste caso, a guerra deveriaser o mais oficiai possivel, movida ou sancionada pcio Governo-geral. Por fim, aatitude jesuitica quanto a guerra anti-indigena esti ligada ao problema ainda maiscomp?icado da legitintidade da escravidao dos indios, que n5o temos cspaco paraabordar actin.

245

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em meio para seus prOprios fins. E foi assim que os Tupinambi per-

derarn, &las vezes, a guerra.

As nurnerosas referências jesuiticas ao estimulo dado pelos colonos

as hostilidades intra-tupinambi levantarn a questa° de saber se a

extensio e intensidade da guerra indigena nao teriam sido muito

ampliadas pela invasao europêia, nao apenas daquele modo ji evo-

cado (ver nota 33 supra), mas de forma mais direta e deliberada.

Penso que esse foi de fato o caso, pelo menos para algumas partes do

Brasil; mas dai a se sustentar que o padrao guerreiro tupinamba de

meados do seculo xvi explica-se essencialmente pelo 'contato corn

o Ocidente' (esta e a posicao geral que Ferguson [mob apesar de

suas ressalvas, termina por caucionar), vai uma distancia so Iran-

queivel pela atual tendencia a se i.mputar qualquer aspecto problema-

tic° — via de regra, irredutivel a consideraciles pritico-adaptativas

das sociedades amerindias aos efeitos avassaladores do Ocidente.

A guerra mpinambi era urn dado irredutivel desta sociedade, sua

conclicâo reflexiva e seu modo de ser, que, se foi potencializado

pela introducao de objetos estrangeiros e eventualmente explorado

pelos europeus, nab foi posto la por eles. De resto, a importancia da

guerra na sociedade tupinambi nao se mede pelo rnimero de mor-

tos que provocava, nem se deixa explicar facilmente por racionali-

zaceies ecolOgicas:

Toda esta costa maritima, na extensdo dc goo nzilhas, a habitada

por indios que sem excepfao comem carne htzmana; nisso sentem

Canto prayer e docura que frequentemente percorrem mais de Soo

milhas quando vao a guerra. E se cativarem quatro ou cinco dosinimigos, sem cuidarem de mais nada, regressam para corn gran-des vcqearias e festas e copiosissimos vinhos, que fabricam corn rat-

Fs, as comerem de maneira que nao perdem nem sequer a menorunha, e toda a vida se gloriam daquela egrigia vittiria (Anchieta

1554: II, i13).

246 0 nuirmore e a murta

Esta citacio permite introduzir uma precisao necessiria em face

de algumas discussaes mais ou menos recentes a propOsito da guerra

indigena. Nao penso que os materials tupinambi corroborem de

qualquer maneira que seja as especulacetes sociobiolOgicas (enfeita-

das por um duvidoso aparelho estatistico) de Chagnon (1988,199o)

sobre a vinganca de sangue yanomami, o sucesso reprodutivo dife-rencial dos matadores, e assim por diante. No que concerne aosYanomami, minha posicao é de irrestrita concordancia corn Albert(1989, 199o) e Lizot (1989). Quanto aos Tupinambi, o que disse-

mos aqui sobre a guerra e a vinganca refere-se ao que se poderia

(Ammar de ordem ideolOgica desta sociedade, tal como apreensivel

a partir dos relatos quinhentistas. Os dados nao permitem qualquer

estimativa estatistica sobre os casos de morte violenta, ritual ou nao.Trechos como o de Anchieta, acima, parecem indicar que ao se

buscava o exterminio dos inimigos (e o raciocinio de Bras citadona nota 5o supra pertence indubitavelmente ao dominio das `Just-sostories'). As baralhas indigenas descritas pelos cronistas envolviam

urn bocado de bravatas, troca de insultos e gesticulacao, e nao ha

nenhuma referencia a carnificinas — exceto, a claro, quando se faladas guerras dos portugueses contra os indios.

A pessoa do prisioneiro, que podia viver anos entre seus inimigosate ter a morte decidida, era simbolicamente apropriada por uma

quantidade de gente: o captor, as mulheres que recebiam e guarda-vam o cativo, os homens a quern ele era presenteado pelo captor,

o matador ritual. Depois de executado, o inimigo era comido por

centenas de pessoas; uma se) morte podia reunir diversas aldeias

aliadas, que compartilhavam uma especie de sopa muito rala, onde

se achava diluida a niveis quase homeopiticos a carne do contra-

rio. 0 corpo dos inimigos era simbolicamente (se nem sempre real-

mente) escasso, pois urn contrario era comido ate a Ultima unha,

como diz Anchieta. Quanto a poligamia dos principais e guerreiros

renomados, é Midi precisar a parte real deste ideal. Estimo que a

situacao tupinambi encaixa-se sem grandes problemas no quadro

247

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das "brideservice societies" proposto por Collier & Rosaldo (1981),

sendo assim possivel que valesse tambern para ales a observacão

de que o taco entre poligamia e proficiencia Utica é mais ideal&

gico que objetivo, nesse tipo de sociedade (op.cit.: 294, 312). Isto

posto, nao se pode nem se quer ignorar as infimeras informacOes

que sublinham o alto valor atribuido a proeza guerreira, a onipre-

senca do tema da vinganca, a natureza iniciatOria do homicidio, e as

conexaes entre guerra e casamento. Seja coma for, embora talvez

caiba rotular os Tupinambi de extremarnente belicosos, seria muito

dificil considers-los coma particularmente violentos. Os cronistas

e missionirios representam sua vide cotidiana coma marcada paruma notivel afabilidade, generosidade e ccrtesia. E, como observei

acima, seu Odic) aos inimigos e todo o complexo do cativeiro, execu-

cab ritual e canibalismo estavam assentados em urn reconhecimentointegral da humanidade do contririo — a quo nada tem a vcr, bem

entendido, corn qualquer humanismo.

0 SUMO DA MEMORIA

Ha um aspecto dos maus costumes do gentio que merece destaque:

o lugar central que o cauim de milho ou mandioca ocupava no corn-

plexo guerreiro. 0 significado das bebidas fermentadas nas culturasamerindias ainda esta a espera de uma sintese interpretativa. Ele man-tern relacties estreitas corn o motivo do canibalismo, e aponta para a

importancia decisiva das mulheres na economia simbOlica dessas cul-

turas. Os materiais tupiriamba sugerem, Mem disso, uma vinculasio

entre as festas de bebida e a memOria, mais especificamente a memeiria

da vinganca. Os Tupinambi bebiam para nao esquecer, e ai residia o

problema <las cauinagens, grandemente aborrecidas pelos missionirios,

que percebiam sua perigosa relacao corn tudo que queriam abolir. Ji

vimos que Anchieta punha como um dos impedimentos a conversao

do gentio "seus vinhos em que sac) muito continuos c em tirar-lhos ha

ordinariamente mais dificuldade que em todo o (I584: 333).

Foi mais dificil acabar com os "vinhos" que corn o canibalismo; mas as

bebedeiras conjuravam sempre o espectro desta abominacao:

Seus prateres sao coma an-de it a guerra, como an-de beber hum die

e huma noute, sempre beber e canter c bailer, sempre em pee correndo

toda a Aldea, e coma an-de matar os contrarios e faor cousa nova pera

a matania; an-de aparelhar pera seus vinhos e corinhadas de carne

humana; e as seas santidades, que que as velhas se an-de tornar

(J5come 1551: t, 242).

Porque es esta genre tan inddmita y bestial, que toda su felicidad tiene

puesta en matar y corner carne humane, de to qual por la bonded de

Dios tenemos apartados estos; y con todos tienen tan arraigada la cos-

tumbre de bebery canter sus cantares gentaicos, que no ay remedio pare

los apartar del todo della; (Anchieta 1554: 11, 120-21).

Y to que mss los tiene cegos, es el infassiable appetite que tienen de ven-

geance, en to qual comine su honra, y con esto el mucho vino que beven,

hecho de relies o jiutas, que todo a de seer masticado por sus hijas y

tams mocat, que solos ellas en quanto son virgins use o pera este officio.Ni 31 otra mejor trace de infierno que ver una multitud dellos quando

beven, porque pera ono combidan de mui lexos; y esto principalmente

quando tienen de mater alguno o corner alguna carne humana, que elks

traen de moquen (Gri 1'54: 11 , 132-33).

De aqui fuy harto trine para otras aldeas, donde tambiin les liablecosas de nuestro Sob,. Holgavan de oyrlas, mas luego se lcs olvidan,

mudando el sentido en sus vinos y guerras (Azpicuelta 15$5: 11, 248).

Torno aos nossos, os quaffs estao divididos em tres habitafaes pare que

possam livremente Ember, porque este costume, ou por melhor diet nate-

reia, mui dificultosantente se lhos &I de extirpar, o qual permanecendo

nao se lhes poderd plantar aft de Chrism (Anchieta 11, 368).

248 0 indrmore e a murta 249

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A atitude dos jesultas quanto a bebida recorda os discursos moder-nos sobre as drogas como fonte de todos os males e crimes, corna particularidade de que as cauinagens tupinambi eram uma into-xicacâo pela memOria. Bebados, os indios esqueciam a doutrina-cao crista e lembravam do que nao deviam. 0 cauim era o elixirda inconsfancia:

Estes nossos catecumenos, de que nos ocupamos, parecem apartar-se

um pouco dos seas antigos costumes, e ja raras vexes se ouvem os gritosdesentoados que costumam fates nas bebedeiras. Este d o seu maior mal,donde the vim todos as outros. De facto, quando est& mais bebados,renova-se a memOria dos males passados, e comecando a vangloriar-se deles logo ardem no desejo de matar inimigos e na fome de carnehumana. Mas agora, como diminui urn pouco a paixao desenfreadadas bebidas, diminuem tambem necessariamente as outras nefandasignorninias; e alguns sao-nos tao obedientes que nao se atrevem a bebersere nossa licences, e so corn grande moderacao se a compararmos corn aczntiga loucura... [...] Diminui contudo esta nossa consolacao a dureraobsti nada dos pais, que, excepto alguns, parece quererem voltar aovOmito dos antigos costumes, indo ers festers dos seas miserrimos can-tares e vinhos, na morte prOxima de um [contrdrio] que se preparavanuma aldeia vizinha (Anchieta 1555: II, 194).

A funcao presentificadora das cauinagens, e sua relasio corn o com-plexo oral dos cantos, declaragâo dos feitos de bravura e proferi-mento dos names a soberbamente expressa por Jacome Monteiro:

Tomando novos nomes, conforme aos contrdrios que matam, dos

quaffs chegam alguns a ter cento e Inds apelidos, e em os relatar sao

muff nziudos, porque em todos os vinhos, que e a suma Testa deste gen-

tio, assi recontam o modo corn que os tais nomes alcancaram, como

se aquela fora a primeira vex que a talfacanha acontecera; e daqui

vent nao haver crianfa que nao saiba os nomes que cada um alcan-

250 0 mcirmore e a murta

C:011, matando os imigos, c into e o que cantam e contam. Contudo as

cavaleiros nunca faiem menfao dos seus!nomes, Jen -do quando hd

fester: de vinhos, na qual so se ouve a prdtica da guerra, come mata-

ram, como entraram na cerca dos inzigos, como The quebraram ascaleca,. Assim que as vinhos sae os memorials e crOnicas de sussfacanhas." (16to: 409-10)

Recorde-se, finalmente, que o cauim só podia comecar a ser bebido porquern ji matara inimigo, ou por pessoas casadas -- logo, por homicidase mulheres que passaram pelo rito de puberdade (Monteiro id.: 409;Cardim 1584: 103-04). Isso explica observas:Oes como as seguintes:

De los niaos tenemos mucha esperanca, porque tienen habil:Wad y

ingenio, y tornados ante que vaian a la guvra, ado van y min las =de-re:, y antes que bevan y entendian en desonnestidades (Gra 5554: II,

132-33).

53. Cf. tambem Soares de Souza (1587: 323) sobre homicidio, nominacio e bebidas:"Costuma-se, entre os Tupinamba, que todo aquele que mata contririo, toma logonome entre si, mas nao o diz sena° a seu tempo, que manda fazer grandes vinhos;e como esti° para se poderem beber, tingem-se I vespera de jenipapo, e comecama tarde a cantar, e toda a noite, e depois que tem cantado um grande pedago, andatoda a gente da aldeia rogando ao matador, que diga o nome que tomou, ao quese faz de rogar, e, tanto que o diz, se ordenam novas cantigas, fundadas sobre amorte daquele que morreu, e em louvores daquele que matou..." Estamos aqui,mais uma vez, diante do que se poderia chamar de complexo da oralidade canibaldos Tupinamba: enorme prestigio dos cantores e "senhores da fala", marcacao,pelo porte do batoque, do direito a discursar em pa ha), proferimento ritual dos

nomes etc. Jacome Monteiro: "Assim que a 2f bem-aventuranca destes a seremcantores, que a prirneira a serem matadores" (op.cit.: 415). Ver, por Tim, o costumeindigena de jactar-se dos feitos de bravura corn discursos interminiveis, que irri-tava grandemente os europeus (Thevet 1575: 92; Anchieta 1565: 206, 219, 222-23;

Blâzquez 1559: 111, 133).

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Los hombres hasta 18y 20 annos dan buena muestra, dende adejantecomiencan a bever y hdtense tan rudos y tan ruiner que no es de creer.Este es el peccado de que parece menos se emendardn, porque mui poco

es el tiempo que no estin beodos, y en estos vinos, que ellos haten de

todalas cam, se tratan todalas mallet.= y deshonestidades... (Gra 1556:

IT , 294).

E explica cambial o orgulho dos padres quando os meninos infernosnos colegios tomavam atitudes como a relatada por Pero Correia:

Y son algunos destos MOCOS [da escola dc Piratininga] tan vivos y tanbuenos y tan atrevidos, que quiebran las tinajas llenas de vino a lossuyos para que no bevan (1554: 11, 70.54

CANIBAIS RECALCITRANTES

Chegamos, enfim, a questa° do abandono do canibalismo. Vimoscomo a primeira carta de N6brega (i549: I, I 1 1), bem como o co16-quio de Pindabugu corn Thevet, sugcriam que os Tupinambi pare-d= dispostos a deixar o aspecto canibal de seu sisterna guerreiro cmtroca da satide, longa vida a outras coisas prometidas pelos padres,mas que a guerra de vinganca, enquanto tal, era intocivel.

Transcrevemos passagens das cartas c demais crAnicas onde seatesta a importancia do canibalismo, enquanto forma perfeita e acabada

54. 0 cauim rupinamba, cuja importincia para o festim canibal foi abundantemente

documentada pelos cronistas, parece assim estar articulado a difereneiageres scxuaise etirias. Os Ovens de ambos os sexos n5o bebiam; mas as responsOveis pela mas-

tigagao da matiria-prima da bebida cram magas virgens, como registra Gra t 554:11, 131-33 (cf. tambem Thevet 1575: 55-56), o que signifies tambem pre-piTheres.Os adultos casados de ambos os sews bebi3m, e as velhas parece ter cabido a orga-nizagio do processo de producao da bebtda, bem como a fabricagOo dos vasos de

ceramica para guards-la.

252 Q nuirmore e a 'liana

da vinganca, vindo coroar o sisterna ritual de captura, cativeiro e exe-efts:a° dos inimigos. Ha numerosas outras referencias sobre as dificul-dades de se resgatarem inimigos das maos dos indios, sobre a violentaoposigao a seu batismo in articulo mortis (estragava-lhes a Carne, comoji referirnos) e sobre os artificios que utilizavam os Tupinambi paracomer os contrarios ao arrepio dos interditos dos padres." Mas as car-tas mostram tambent uma certa ambigilidade dos indios frente aosargumentos escandalizados dos missionarios„ uma atitude que hesitaentre a firmeza e o lavar as maos:

[Estdo] muy arruygados en el corner carne humane, de tal manera

que, quando estein en el traspasamiento deste mundo, piden luego carne

humane, deciendo que no lleva[n] otra consolaciOn sino esta, y si no les

aciertan allay, dicen que va[n] mds desconsolados hombres del mundo;

la consolaciOn es 31i vinganca. El ma.; del tiempo gasto em repreender

este vicio. La respuesta que algunos me dan es que no comen sino las

viejas. Otros me dicen que sus abuelos comieron, que ellos an de comer

tambiin, que es costumbre de se vengaren de aquella manera, pues los

contrarios comen a ellos: que porque les quiero tirar su verdadero man-

jar? (Azpicuclta 1$50: 1, 182).

Mesmo entre os Tamoio de Iperoig, muito pouco sujeitos aos euro-peus c ainda fora do circulo da doutrinagao jcsuitica, Anchieta encon-tra ulna certa compreensao para corn sua mensagem anti-canibal:

55. Sobre as artimanhas a que recorriam os indios parr, corner contrarios mesmo sob

o protesto dos padres, cf. NObrega a 55o: 1, 159-6o. Sobre as dificuldades em se resga-

tarem cativos dcstinados a morte e devoragao, cf. NObrega t 550: t, 165 ("et a tanto

difficile a fare it riscatto [a] questa gcnerutione de Topenichini the non si potria mai

pensare") e Rodrigues tip: 1, 307-o8 ("Y is to tenian chamuscado y concertadopara abrirlo y hazer reparticiOn. Tremian como vergas quando nos In querian totnar,

y antes murieran que dexar passar por si tat ilaqueza").

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[Admoestei-lhes]... especialmente yue aborrecessem o comer da camehumana porque nao perdessem suas almas no inferno, an qual veto todosos comedores dela e que nao conhecem a Deus seu Creador, e eles nosprometiam de nunca mais come-la, mostrando muito sentimento de termortos, sem este conhecimento, seus antepassados e sepultados no inferno.0 mesmo ditiam algumas mulheres em particular, que pareciam folgarmais corn nossa doutrina, as quaffs prometiam que assim o fariam; aoshomens em geral faldmos nela, direndo-lhes como Deus o defende, e quetzar outros nao consentiamos em Piratininga aos que ensinavamos que oscomessem a des nem outros alguns, mas eles diriam que ainda de comer deseus contrarios, ate que se vingassenz bem deles, e que devagar cairiam emnossos costumes, e its verdade, porque costume em que des rim pasta suamajor felicidade no se Ihes ha de arrancar too presto, ainda que i certoque ha algumas de suas mulheres que nunca comeram carne humana, nema cornern, antes ao tempo que se mata algum, e se lhes fat Jena no Lugar,escondem todos seus vasos em que cotnem e bebem, porque nao usem delesas outras, e junto corn into tem outros costumes tao Ions naturalmente queparecem nao haver procedido de nacclo tao cruel e carniceira (1565: 201).

Na verdade, se algumas cartas trazem os indios dizendo que a camehumana a "seu verdadeiro manjar", como a de Azpicuelta acima, ouesta de Blizquez:

Asi como alguns em a dinheiro ou contentamento sensual, ou em o muitovaler pjem sua bem-aventuranca, asi estes gentios tern pasta sua felici-dade em matar hum contrario e despoil em vinganca comer-the a cameto sem horror e nojo que nao hd mar jar a seu gosto que se achegue aeste...(1557: II, 383)

outras, como a de Anchieta acima, indicam que o canibalismo naoera exatamente uma unanimidade. 0 ApOstolo do Brasil repetiraisto anos mais tarde: "'Todos os da costa que tem uma mesma lin-gua comern carne humana, posto que alguns em particular nunca

254 0 rtuirmore e a murta

comeram c tem grandissimo nojo dela" (1584: 329). t neste mesmodocumento, alias, que se acha aquela enumeracao dos impedimentosa conversao que transcrevemos no comeco do presente ensaia Note-se que a lista de Anchieta jet nao inclui o canibalismo como um dosimpedimentos. Aquela altura, entre os indios sob o controle dos jesui-tas e dos colonos, a guerra India estava completamente submetidaaos fins dos invasores, ou prosseguia sob a forma minimalista da vin-ganca sem festim canibal. No Maranhao Frances dos primeiros anosdo seculo seguinte, Abbeville encontrari lima mesma aparente repug-nancia fisica ao canibalismo, praticado quilse como por obrigacao:

Nilo a prater propriamente que as leva a comer tais petiscos, nem o ape-the sensual, pois de muitos ouvi diter gue nao raro a vomitam depoisde corner, por nao ser o seu estamago capat de digerir a came humana;fatem-no sd para vingar a morte de setts antepassados e saciar o delloinvencivel e diabdlico que votam a seus inimigos (1614: 233).

Nao parece ficil conciliar estas informaceies sobre a repulsa ao cani-balismo, e sobre uma certa disposicao em deixi-lo, corn aquelas queafirmam seu valor e honra, e mesmo sua excelencia enquanto praticaalimentar, como o celeberrimo dialog° de Hans Staden corn o princi-pal Cunhambebe:

Durante into Cunhambebe tinha a sua frente urn grande cesto cheio decame humana. Comia de uma perna, segurou-m'a diante da boca eperguntou-me se tarnhim queria corner. Respondi: "Um animal irracio-nal nao come um outro parceiro, e urn homem deve devorar um outrohomem?" Mordeu-a entao, e disse: latthra iche. Sou um jaguar. Estesgostoso." Retirei-me dele, a vista disco (1557: 132).56

56. Sobre a excelencia gustativa da came humana para os Tupinambi, ver as referen-cias recolhidas por Combes 1987. Para uma andlise desta replica de Cunhambebe,cf. Viveiros de Castro 1986a: 625-26.

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Pode-se, decerto, argumentar que Os dados sobre os Tupi amigos

provem de muitos pontos da costa brasileira, e referem-se a epo-cas diferentes. Nio haveria porque termos uma opinilo monoliticasobre as virtudes da came humana. Teriamos algo como o caso dosAche, que a ipoca da pesquisa dos Clastres estavam divididos emdois grupos, urn canibal, o outro n5o, e que assim

responderam ci questao do etncilogo, que queria saber por que cada grupoera o que era. Os canibais: comemos os mortos porque a came humana

dote. Os outros: nao comemos da came humana porque eta a atnarga.(H. Clastres /972: 82).

Questa° de gosto cultural, dir-se-ia. 0 problema é que no caso tupi-nambi as opinibes, aparentemente, variavam dentro de um mesmogrupo. Sobretudo, mesmo aqueles grupos que prezavam enorme-mente esse comer e essa comida deixaram corn relativa facilidadetais priticas. De qualquer modo, tudo indica que a pritica do cani-balismo tinha urn peso diferenciado no sistema guerreiro dos Tupie Guarani da costa. Os Tupinamba da Bahia, por exemplo, pareceterem sido especialmente tenazes no apego a ela; os Tupiniquim deSio Paulo deixaram-se dissuadir corn maior facilidade; e os CarijO(Guarani) do Moral sul seriam, talvez, menos dados ao canibalismo.

Uma explicacào para o abandono do canibalismo pelos iadios,ou antes, a determinacao dos motivos e processos que responderampela major facilidade corn que essa pratica foi coibida pelos jesuitase governadores-gerais, comparativamente ao caso da guerra de vin-ganca, exigiria uma anilise global do significado do canibalismo nasculturas tupi, also que nio podemos fazer aqui. ji mencionamos umaspecto do motivo canibal, aquele que o toma pela perspectiva davitima: evitacão do enterramento e da putrefasio, ou, dito de outraforma, um metodo de aligeiramento do corpo, tema importante na per-sonologia tupi-guarani (H. Clustres 1975; Vivciros de Castro 1986a;Combes 1987, 1992). Tornado pela outra Ponta, da perspectiva dos

256 0 Intim:ore e a murta

devoradores, o canibalismo deixa cntrcver multiples conexOes. Antes

de mais nada, ele era o aspecto e o modo da vinganca que cabia acoletividade dos captores e seus aliados (ao passo que a execucioritual era levada a cabo por urn so homem, que nao comia da carnedo contrario); neste sentido, era a maxima socializaciio da vinganp,pela qual todos os devoradores se afirmavam como inimigos dos ini-migos, colocando-se no campo da "revindita compulsOria" (Fernan-des 1949: 123) por parte do coletivo associado a vitima. Em seguida,ha indicios de que ele remetia aos mesrnos temas escatolOgicos e per-sonolOgicos que atravessam a religi5o, o xamanismo e a mitologiatupi-guarani: assim, as repetidas mencOes voracidade das velhas,grandes inimigas dos jesuitas nesta hist6ria de acabar corn o caniba-lismo, sugerem que o que se buscava no repasto canibal não devia serdiferente daquilo que os karaiba prometiam: "Y prometeles longavida, y que las viejas se Ilan de tornar mops..." (NObrega 1549:151; ver tambem Jacome 155z: I, 24 2; Azpicuelta i555: II, 246). 51 0canibalismo parece ter sido, entre muitas outras coisas, o metodoespecificamente femirtino de obtencao da longa vida, ou mesmoda imortalidade, que no caso masculino era obtido pela bravura nocombate e a coragem na hora fatal. Ha mesmo indicacOes de que acarne humana era diretamente produtora daquele aligeiramento docorpo que os Tupi-Guarani buscaram de tantas formas diferentes,pela ascese xamanica, a dance, ou a ingestäo do tabaco (ver Combes1987, e Saignes s/d, citado por ela). Por fim, o rito canibal era umaencenacao carnavalesca de ferocidade, urn devir-outro que revelavao impulso motor da sociedade tupinambi — ao absorver o inimigo,

Vero treche ji citado de Azpicuclta: "La respuesta (pc me dan es clue no cotncnsino las viejas..." As refetincias a grandc influ'incia das velhas nos negOcioscos, em particular na guerra e no canibalismo, mereceriam urn ameba aprofundado:Lourenco 1553: I, 517-11I; 1557: It, 35 2 c 3 K7- K8; Anchieta 1560: III, 259. 11;1muito mais aqui que urn fantasma idt:olOgico projctado pelos observadorcs, comoquer Bucher 1977.

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o corpo social tornava-se, no rito, determinado pelo inimigo, consti-tuido por este (Viveiros de Castro 1986a).

Forma maxima da vinganca, o canibalismo nao era entretantosua forma necessaria. 0 gesto prOprio da vinganca guerreira, e orequisito crucial para a obtencao de urn novo nome, era o esfacela-mento ritual do cranio do contrario:

Posto que este gentio pelo campo mate o inimigo ds estocadas... como onao matou com lhe quebrar a caeca, logo hao que o motto nao é motto,nem o matador se pode jactar de the haver dada a morte, nem poderdtomar nome nem riscar-se (Brandao 1618: 259-60).

Tor vezes, desenterravam -se inimigos para lhes partir a cabeca:

Porque nao se contentam de matar os vivos, mas tambim de desenterrarOs mortos e /hes quebrar as cabecas para maior vinganca e tomar novoname (Anchieta i565: 237).

Se encontram alguma sepulture antiga dos contrcirios, the desenterrama caveira, e lha quebram, com o que tomam nome novo, e de novo se tor-narn a inimirar (Soares de Souza 158 7: 3o1).

Esse gesto era exclusivamente masculino. As mulheres podiam matarurn prisioneiro corn as prOprias maos, quando furiosas; mas precisa-vam chamar urn homem para quebrar o cranio do cadaver (Anchieta1565: 203).

0 fato da vinganca em sua forma minima e necessaria — con-fronto corn o inimigo para quebrar-lhe o crania, de preferencia nasituacao ritual — ter resistido mais que o canibalismo as injuncelesjesuiticas deve-se, provavelmente, a sua indispensabilidade na pro-ducao de pessoas masculinas completas, matadores renomados erenorninados. Sem dtivida, o fato de que a antropofagia era umaabominacio absoluta, ao passo que a vinganca era apenas urn "mau

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costume", tambem deve ter contribuido para uma major toleranciados europeus frente a esta aim. De qualquer forma, talvez sejapossivel ver no abandono do canibalismo uma derrota, sobretudo,da parte feminina da sociedade tupinambi.ss

Quao facil foi dissuadir os Tupinambi de comerem os inimigos?Na Bahia, isto exigiu uma campanha de guerras, as vezes de extermi-nio (Itapoi, Paraguay), conduzidas pelos governadores-gerais, queterminou corn a proibicao de guerras indigenas sem licenca e corn adecretacao da pena capital para o crime de antropofagia. Os Indiossubmetiam-se com a morte na alma:

[0 principal Mbar& vai d guerra]: Pediu elle licence: ao Governadorpera matar aquelle, poi: era dos que aviao mottos aos seus pera conso-la.r ho nojo que tinha dos que Ike aviam mortar. Deu-lhe o Governadorlicenca pera o matarem fora da Firercia-no osi, e matar am-noe comerao-no, porque lho acharao a corer. frinte o protesto dos padres,o governador Duarte da Costa] mandou aPregoar por suas .4ldeas sobpena de morte que ninguem comece came tr.mana, de maneira que asIndios fiquaram mui atemorirados (Blizquz 1556: it, 267-68).

Pet-se-lhe duro aos Indios este contrato, porque, asi como alguns em odinheiro ou contentamento sensual, ou em q muito vcder poem sua bem-aventuranca, asi estes gentios tem pasta sua felicidade em matar hum

contrario e despoil em vinganca corner-lhe a came tao sem horror e nojoque nao AO manjar a seu gos. to que se achegue a este: e esta era a causaporque diriao ao Governador que em lhes dram into lhes tiravao toda

a gloria e honrra que Ihes deixarao seas avoos, mas contudo que

estvao aparelhados dahi por diante nao facer mais isto que nos tantoabominavamos, corn tal condicao que lhes deixassem agora matar sete

58.0 horror II came humana sentido por algumas mulheres de Iperoig (cf. Anchieta)poderia, assim, ser tornado como uma demonstracAo a contrario desta inscricãofeminina do canibalismo.

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contrarios que avia muito tempo que as sink& em cordas pera corner, ale-gando que elles tinhao mono: sew pais e sew filhos. Concedeo-lhoGovernador, excepto que rulo nos comessem, e asi o prometerao, cousaque elles nunqua Agra°, rwm fiTerao se nao nos pusera em tam grandeaperto, porque nao se tern por vinguados cam as maser, sena', com oscomer (Blizquez 1557: 11, 332-83).

Mas terminaram por se submeter, e logo o canibalismo nao era maisque uma mem6ria envergonhada:

Todos ester vac) perdendo ho comer came humana e, se sabemos quealguns ha tem pera comer e lha mandarnos pedir, ha mandao, como fiTe-rao os dies passados e no-la oat= de mui longe pera que a entreremosou queimemos, de mancira que codas tremern de medo do Governador...(Pires 1558: II, 471).

Ha came humane que sodas comae e muy perto da cidade hi agoratirade, e muitos tomao jd par injuria alembrar-lhe aquelle tempo, ese em alguma parte se comet,: sao amoestados e castigados por isso(N6brega 1559: 111,57).

E que nao aviao de matar nem corner came humane.. into fay superfluoporque jd o des agora nao faTem (Pires 156o: HI, 313).

Dilem-me sodas que hi muy facil acabarmas corn elles quc nao coma°came humane... (Pereira 1561: III, 334).

No sul, entre os Tupiniquim de Sao Vicente e Piratininga, os jesuitasparece terem conseguido sucesso mais rapid° na empresa de dissuasao:

Es samba's mucho pare espantar y dar muchas gratias al todo poderosoDios que ni ales ni los otros de los lugares veiinos que ya algtin tiernpooyeron de nosotros y min agora muchas veils oyen la palabre de Dios no

comen came humane, no teniendo ellos subiectiOn alguna ni miedo delos christianos (Anchieta 156o: III, 259-6o).

Mesmo as recaidas eventuais dos catecamenos, que levaram Anchietarepetidas vezes a clamar pela "predica da espada e da vara de ferro"(1563: III, 55 4), nao Mcluiam essa pritica:

[Estao] totalmente metidos en sus antiguas y diabaicas costumbres,excepto el comer corner came humane, lo qual, por la bonded del Saar,parescc quc estd alga dcsarraigado entre cstos que ya enseriamos. Vcrdades quc azin haten grandes fiestas cn la matanya de sus enemigos ellos ysus hijos, etiam los que sabian leery escrivir, bebiendo grandes vireosconzo antes acostumbravany, si no los comen, a'anlos a comer a otros susparientes que de diverse.: panes vieneny son convocados pare !as fiestas.Todo eso viene de ellos no ester subiectos... (Anchieta 1561: III, 37o).

Uma pera essencial da luta contra o canibalismo talvez a jogada deci-siva — foi a internacao dos meninos indios nas escolas jesuiticas, corna inculcagio muito provivel de um horror sagrado aqtaela pritica:

Porque aunque muchos mochachos buelven atrat a seguir las costumwbres de sus padres adonde no tienen subjection, a lo messes esto se gana,que no buelven a comer came humane, antes lo estraiian a sus padres...(NObrega 1561: tit, 361).

Haveria todo urn outro estudo a fazer sobre a estratigia jesuitica deseqUestro dos meninos rupinambi.

ELOGIO DA INCONSTANCIA

Os materiais tupinambi parecem, enfim, justificar as observacOes deLevi-Strauss sobre a labilidade do canibalismo. All onde esta priticaexiste, eta 6 raramentc coextensiva ao corpo social; e mesmo

26o 0 nuirmore c a mina 26z

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Id onde sua pritica parece ser a norma, notam-se excefles soh a formade reticincia ou de repugneincia. 0 caster labil dos costumes canibaisé algo que chama a atencao. Em todas as obserwrifes disponiveis, dosdculo xvt ate nossos dial, vemo-los surgir, difitndir-se e desaparecerem urn lapso de tempo muito curto. E isso, sem dtivida, que explica seuabandon fregiiente desde os primeiros contatos com os brancos, antesmesmo que este: dispusessem de meios de coerfdo (1984: 143).

No caso tupinamba, o canibalismo coincidia com o corpo socialinteiro: homens, mulheres, criancas, todos deviam corner do contrario.De fato, ele era o que constituia este corpo em sua maxima densidade eextensfio, no momento dos festins canibais. Sua pratica, entretanto, exi-gia uma exclusao aparentemente menor e temporaria, mas decisiva:o matador nao podia corner de sua vitima. Isto me parece significarmais que uma aplicacao daquele principio de ampla difusio na Ame-rica indigena, que veda ao cacador corner de sua presa. A abstinén-cia do matador aponta para uma divisao do trabalho simbOlico norito de execucao e devoracao, onde, enquanto a comunidade se trans-formava em uma malta feroz e sanguinfiria, encenando urn devir-ani-mal (lembremos do jaguar de Cunhambebe) e urn devir-inimigo, omatador suportava o peso das regras e dos simbolos, recluso, emestado liminar, prestes a receber urn novo nome e uma nova perso-nalidade social. Ele e seu inimigo mono eram, num certo sentido, osimicos propriamente humanos, em toda a cerimOnia. 0 canibalismoera possivel porque urn nao comia.

Vimos tambern que, apesar de suas mtiltiplas conexOes religio-sas e seus significados cosmolOgicos e escatalOgicos, o canibalismonao era o sine qua non do sistema da vinganca guerreira, mas suaforma Ultima. Vimos ainda que algumas Pontes atestam a existenciade movimentos de repulsa a manducacao de came humana. Observa-mos que, em pelo menos algumas panes do Brasil, o canibalismo foiabandonado por nao muito mais que a pregacao jesuitica, antes dequalquer possibilidade de pressao militar. E notamos, por fim, que

ele nao parece ter passado da decada de 156o, entre as Tupinambiem contato direto com os europeus.

Levi-Strauss tern o canibalismo por uma forma instivel quese desenha contra um fundo de identificacio a outrem, fundo esteque seria coma a condicio geral da vida social (1984: 143-44). 0canibalismo estaria situado em uma espicie de panto extrema deurn gradiente de sociabilidade, cujo outro polo seria a indiferencaou incomunicabilidade. Se este 6 o caso, end° o abandon de talpritica significou, de alguma forma, a perda de uma dimensaoessencial da sociedade tupinamba: sua Identificacie aos inimigas,entenda-se, sua autodeterminacio pelo outro, sua essencial alteracio.Mas end°, igualmente, cabe perguntarmos se a relativa rapidez comque o canibalismo foi abandonado nao se deveu de fato I chegadados europeus: Tao apenas ou principalmente, porim, porque estes aabominavam e reprimiram, mas antes porque vieram ocupar o lugare as fumes dos inimigos na sociedade tupi, de uma forma tal queos valores que portavam, e que deviam ser incorporados, termina-ram por eclipsar os valores que cram interiorizados pela devoracaoda pessoa dos contririos. A persist6ncia da vinganca guerreira e desuas conseqiiencias onomisticas, honorificas e memorials atesta queo motivo da predacio ontolOgica continuou a ocupar os Tupinambipor algum tempo ainda. Atesta tambem que, coma o atesta a etno-logia dos amerindios contemporfineos, nao a necessario corner lite-ralmente os outros para continuar dependendo deles coma Pontesda prOpria substfincia do corpo social, substincia que nao era maisque essa relacao canibal aos outros. De qualiuer modo, se o caniba-lismo 6 mesmo uma forma Wail e instavel porlexceléncia — eu is dizerinconstante end° ele nao pode ter sido nais emblematic° dosTupinambi, gente admirivelmente constane em sua inconstfincia.

Os Arawete, pequeno povo tupi conten:iporfineo da AmazOniaoriental, afirmam — nao sei se cr6em que; os Mai, raga de divin-dades celestes, sao canibais. Os Mai devoram as almas dos mortosrecem-chegadas ao cell; em seguida, imergem os despojos em um

262 0 marmore e a murta 263

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banho migico que ressuscita e rejuvenesce os mortos, transformando-os em seres imortais como ales mesmos, que vivem em urn paraisoperfumado onde abundam a bebida, o sexo e a milsica. As (micas almasque nio sofrem a prova da devoracio sic) aquelas de homens que

mataram um inimigo em vida. Temidos pelos Mai, os matadores ara-

weti ji sio como ales, ferozes e canibalescos (considers-se que um

homicida tern a barriga enchida corn o sangue do inimigo, e o devepurgar); nio precisam assim que se lhes digira uma humanidade ji

deixada para tras. Os Mai', que abandonaram a terra no comeco dostempos, nio slo concebidos como pais, criadores ou mesmo hereis

culturais dos homens. Na verdade, s5o classificados como "nossosgigantescos tisvel". Tiwa, palavra de conotacOes agressivas, signi-

fica potencial', e é desta forma que o espirito de um inimigomorto chama seu matador, em sonhos, para ensinar-lhe cantos. Emsuma: asses canibais celestes, que nos devoram para nos transforina-rein em algo a sua imagem e (des)semelhanca, sao inimigos a armspotenciais dos humanos, mas tambem representam um ideal paranos. A partir da sociologia canibal dos Tupi do sOculo xvi, os Ara-wea desenvolveram uma escatologia n5o menos canibal; os inimi-gos se transformaram em deuses, ou antes, os humanos ocupamosagora o lugar dos inimigos, enquanto esperamos ser, corn a morte,transformados em nossos inimigos-cunhados, os deuses. Os Mar

sio, de certo modo, os Tupinambi divinizados. Como se \rt., a almaselvagem dos Tupi continua implicada em histOrias de canibalismo.

IMANENCIA DO INIMIGO

264 0 auirmare t a mums

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267Moca-do afiando a ponta de uma flecha para caca grossa (Ipixuna ; 1982)A danca do cauim arawete (Ipixuna, 1981)

Imanencia do inimigo

Pois que trago a mim cornigo

tan2anho imigo de mim

Si de Miranda

Discutem-se neste artigo as relaciies entre o guerreiro e sua vitima

tal como concebidas pelos Arawete, um povo de lingua tupi-guara-

ni da AmazOnia oriental.' Os materiais que oferecemos a considera-

ção do leitor ji foram apresentados em urn texto de maior fOlego;

des sac) aqui resumidos e retomados de uma perspectiva comparati-

va.2 Nossa questa° 6 a dinfimica identitaria envolvida na determina-

ção do estatuto do moropend ("matador") arawete. A questa() diz

menos respeito, portanto, as funcOes — politicas, ideolOgicas ou ou-

tras — associadas a esse estatuto que a sua constituicao mesma, leva-

da a cabo atraves de certos processos rituais. Cuidamos que seu exa-

me pode contribuir para o melhor entendimento de um regime

simbOlico de ampla difusao na AmazOnia indigena, uma economia

da alteridade onde o conceito de `inimigo' assinala o valor cardinal.

i. Este trabalho foi originalmente apresentado no seminirio do grupo de pesquisa"Anthropologie Comparie du Champ Religieux" dirigido por Marcel Detienne,na Ecole Pratique de Hautes Etudes, em maio de 1992. Ele resume, outrossim, tresconferencias feitas na Maison Suger, no mesmo mes e ano, sob o patrocinio do pro-jeto "Nouvelles approches de la tradition: representation et communication desconnaissances culturelles", do Laboratoire d 'Anthropologie Sociale (College deFrance) e do Laboratoire d 'Ethnologie et de Sociologic Comparative (Nanterre).Agradeco a Marcel Detienne, Carlo Severi, Michael Houseman e Pascal Boyerpelos convites e pelos debates.2. Cf. Viveiros de Castro 1992a.

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Elementos de cosmologia

O universo dos Arawete tern sua origem e fundamento na diferen-ciaclo entre a humanidade (Bide) e a divindade (Mai). Essa diferen-co foi criada pela separaclo entre o ceu e a terra, no comeco dos tem-pos. Em conseqiiencia de uma querela que open os homens aosfuturos deuses, estes ultimos partiram, levantando o firmamento elevando consigo a ciéncia da eterna juventude e da abundancia semtrabalho. Os humanos, desde entao, definem-se como "os abando-nados" (herd mi re), os que foram deixados para tras pelosTudo que existe sobre a terra compartilha de uma condiclo geralde minoridade ontolOgica frente as pessoas e coisas que passaramao patamar celeste. Em particular, os viventes terrestres estäo sub-metidos ao tempo, isto e, säo mortais.

Entre todos os seres pereciveis de nosso nivel cOsmico, entre-tanto, os humanos ocupam urn lugar a parte: eles sâo "aqueles queirk," (uha mee rin), os Onicos que se juntarlo postumamente aos

Por ocasiio da morte, uma parte da pessoa, a in ou 'alma', so-be aos ceus, onde é recebida pelos Mai-hete, os `deuses per excelen-cia', a raga divina mais diretarnente interessada na humanidade. 3 OsMai-bete assemelham-se aos Arawete, salvo que slo mais belos, maisaltos e mais fortes que qualquer humano, como e o caso de tudo que

celeste. A ornamentacao corporal dos deuses a uma hiperbole da-quela tipica do grupo em ocasiOes cerirnoniais: pele e cabelos unta-dos de urucum vermelho-vivo, salpicados corn pliimulas brancas dopeito do gavilo-real; diademas coronais feitos corn as remiges dasararas vermelha ou caninde; brincos floriformes compostos da plu-magem amarela do papo de tucano e do azul-turquesa das penas decotinga. Mas osMaiostentam, alem disso, esplendidos desenhos geo-

3. Ha dezenas de ragas ou especies divinas, com nomes e atributos prOprios. 0 su-fixo modificador -here indica a prototipia e autenticidade do referente do conceitomodificado, servindo ainda como marcador de enfase ou de ipseidade.

metricos sobre seus corpos, gregas, losangos e riscos finos feitos corno suco negro-azulado do jenipapo. Esse estilo a caracteristico devarios inimigos dos Arawete, em particular, dos temidos KayapO.Os Arawete besuntam o rosto e o corpo corn o suco deste fruto,associado ao jaguar, quando vio a guerra ou a coca, mas jamais outilizam para desenhar sobre o corpo. Os Mai, em suma, tern umaaparencia que mistura tracos arawete e inimigos.

Com efeito, os Arawete afirmam que os Mat, mesmo sendo"como nos", são ao mesmo tempo "como inimigos". NI° apenasporque se pintam como inimigos, mas, sobretudo, porque slo fero-zes e perigosos. Os Mai si° antrop6fagos. Eles matam e comem osmortos assim que estes chegam aos ceus. Em seguida, eles os refa-zem, mergulhando os ossos de suas vitimas em uma bacia de pedracheia de uma igua magica, que ferve (-pipo, ferver ou fermentar)sem fogo. Os mortos entio ressuscitam, tornando-se "como osMai",isto 6, eternamente jovens e belos. Os mortos tornados divinos ca-sam-se com os deuses, voltando a terra corn eles para compartilharos alimentos oferecidos pelos humanos ao povo celeste, por °easily)dos rituais. Os xamis (peye), em suas viagens ao ceu, tratam corn osdeuses e os mortos, trazendo-os frequentemente a terra para estesbanquetes festivos, ou simplesmente para conversar corn os viven-tes. 0 xamanismo arawete a essencialmente urn dispositivo de in-tercambio entre os viventes e os Mai. Os humanos dio de comer aosdeuses, no sentido alimentar como no sexual, 4 recebendo em trocacantos (a "milsica dos deuses" cantada pelos xamis) e outros bensespirituais: a vida pOstuma nos ceus, bem entendido, mas tambem apersistencia do mundo, pois a consumacio canibal e sexual dos mor-tos impede que os Mai facam cair o firmamento, esmagando a terra.

Os deuses arawete sib ambiguos a mais de urn titulo. Diferen-temente do que sucede na maioria das cosmologias tupi-guarani, a

4. Como é o caso de tantas outras linguas, o vocabulario arawete da manducacioaplica-se tarnbem ao comercio carnal.

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dos Arawete nao concebe os como herOis culturais, pais cria-dores, ou senhores da humanidade. 5 Os deuses arawete esti° ao mes-mo tempo Aim e aquern da cultura ou civilizacio. Se des dispOemde uma ciencia xamánica absoluta, capaz de ressuscitar os mortos,ou fazer corn que os instrumentos trabalhem sozinhos, nem por issodeixam de ser definidos como primitivos (uka-hete me e, "meramen-te existentes", como se diz dos animals), gente sem fogo e sem plan-tas cultivadas. Estas conquistas da civilizacão nao se devem aosMai; muito ao contririo, foi urn humano quern outrora lhas ensi-nou. Assim, embora empreguem hoje uma tecnologia culiniriasemelhante a dos humanos, urn curioso epiteto continua a marcaros deuses como selvagens: 'nee wi a-re, "comedores de carne crua",expressão que descreve exemplarmente os jaguares.6

preciso compreender bern o que querem dizer os Arawete,quando afirmam que os Mar sao "como inimigos" (awin herin). Osdeuses sao como inimigos porque tratam os mortos arawete comose ester fossem inimigos: des Os matam e devoram. Mas o fazem por-que os mortos comportam-se como inimigos frente aos deuses: urnmorto recente a urn ser feio, sujo e mesquinho, cheio de rancor porter morrido. Ao chegar no ceu, as almas masculinas sic) acolhidaspelos Marcom demandas insistences de presentes preciosos; as al-mas femininas, corn a exigencia de favores sexuais. Como os mor-tos sao sempre muito avaros, recusando-se a estabelecer relacOescorn os Mai, fazem-se matar. Os deuses, end°, sao "como inimi-gos"; na verdade, porem, sao os mortos os verdadeiros inimigos,pois os senhores da perspectiva celeste sic, os deuses. 0 que os faz

S. Mare urn cognato de Matra, o nome muito difundido entre os Tupi para os de-miurgos ou herOis culturais que se afastaram dos homens no comeco dos tempos.6. A palavra wi corresponde ao portuguis %tongue ' e, aplicada especificamente acarne, ao `cru'. Recordo que um dos epitetos de Dionisio era exatamente este:ronistis ou &radios, "comedor de came crua" (Detienne 1977: i5o).

ser, finalmente, "como nos" (bide herin): eles sao os detentores legi-timos da posicâo de sujeito em seu mundo.

A palavra bide, que traduzi por "humanidade", significa tambem

"nos", "a gente", e "os Arawete". Não se trata, note-se, de urn et-

nOnimo, equivalente a `Arawete' (palavra inventada pelos brancos)

ou de uma `autodesignacäo' substantiva e distintiva. Bide a sintiti-

ca e semanticamente equivalente a vane, o pronome da primeira

pessoa do plural inclusivo (por oposicäo a ure, primeira do plural

exclusivo). Bide 6 uma marca de posicão enunciativa, ou seja, tra-

ta-se efetivarnente de urn pronome que marca a posicao de sujeito,

nao de urn nome prOprio. Como virias outras sociedades amazOni-

cas, os Arawete nao objetificam o coletivo a que pertencem por meiode substantivos de tipo etnonlmico, reservando-os para os outros,

isto 6, precisamente, para os inimigos (awin).7

A ambigiiidade categorial dos deuses reflete seu estatuto sociolOgi-co: cOnjuges futuros dos mortos, os Mai' sao afins dos viventes. OsMar-here, em particular, recebem o epiteto de ure tiwii oho, "nossosgigantescos-temiveis afins potenciais". Tiwa, afim potencial ou pri-mp cruzado, a urn termo que se aplica a todo nao-parente; ele carre-ga conotaciies agressivas e/ou lascivas, e nao deve ser normalmen-te empregado como forma de tratamento para urn concidadao. Umtiwil a quase urn awin, urn inimigo, mas urn inimigo concebido sob omodo da alianca possivel. Os Arawete design= por tiwd todoArawete corn quem estabelecem relacOes outras que aquelas, glo-bais e impessoais, em vigor entre eles e os coletivos inimigos.

Ferozes mas esplandidos, perigosos mas desejados pelos huma-nos, orn6fagos mas providos de uma supercultura xamanica, inimi-gos mas aliados, os Matestão marcados por uma ambivalencia fun-

7. Cf. cap.7 infra.

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damental. Eles sao ao mesmo tempo o 'ideal de Ego' arawete e o ar-quetipo do Outro. Os Arawete olham-se corn os olhos dos deuses,ao mesmo tempo em que olham os deuses do ponto de vista huma-no, terrestre e mortal.

0 matador e sua vitima

Se os mortos arawete sac) inimigos — ji frente aos humanos, pois amorte gera urn espectro terrestre que assombra os viventes ate a de-saparicao das partes moles do cadaver, ji frente aos deuses, pois asalmas celestes comportam-se incivilmente ao adentrar o paraiso —,e se os Mal sao a seu modo igualmente inimigos, nao hi, entretanto,lugar no ceu Para os inimigos humanos dos Arawete. As almas dosinimigos mortos nao acham acolhida, mesmo canibal, entre osque as arremessam de volta a terra, onde perecem definitivamente.

Mas o caso do inimigo morto pelos Arawete é muito diferente.A alma de urn moropena (matador) arawete e aquela do inimigo queele matou nao somente sobem aos ceus, como ali desfrutam de umasituacao especial. Elas se fundem em uma entidade dual que, comoveremos, a tratada pelos Mai corn a atencio e cautela devidas a quernlhes esti a altura.

ApOs ter matado, ou simplesmente ferido, urn inimigo numa es-caramuca, um homem "morre" (umanun). Assim que volta a aldeiaele cai em uma especie de estupor, permanecendo imOvel e semi-consciente por virios dias, durante os quais nada come. Seu corpoesti cheio do sangue do inimigo, que ele vomita incessantemente.Esta morte nao a urn simples afastamento da alma (que sobrevemdiversas vezes na vida de uma pessoa), mas urn verdadeiro tornar-se cadaver. 0 matador ouve o barulho das asas dos urubus que seretinem a volta de `seu' corpo morto isto é, o corpo de seu inimi-go deixado na floresta —; sente-se "como se apodrecendo", seus os-sos amolecem, ele cheira mal.

Quando o inimigo foi verdadeiramente mono (e nao apenasferido), o estado de morte do matador dura cerca de cinco dias. Eledeve beber uma infusao amarga de casca de iwiraraT (Aspidospermasp.), a mesma que tomam as mulheres durante as regras e os paren-tes em couvade. Ele nao pode tocar qualquer parte do corpo de suavitima, sob pena de ver seu prOprio ventre inchar e explodir, em umaespecie de patio mortal.

O matador esti tambem submetido a urn interdito mais longo.Durante virias semanas apOs seu feito, ele nao pode ter comerciocorn a esposa. 0 espirito do inimigo estando "sobre ele", seria o pri-meiro a penetrar sexualmente a mulher; o matador, "vindo apOs oinimigo", seria contaminado pelo esperma da vitima, o que acarre-taria sua morte imediata.

O periodo de abstinencia termina quando o espirito da vitimadecide it aos confins da terra "buscar cantos". Ao retornar, trans-mite esses cantos ao matador durante o sono, bem como uma seriede nomes pessoais que serao conferidos aos recem-nascidos. Certanoite, o espirito do inimigo acorda bruscamente o matador, exor-tando-o: "vamos, tiwa, ergue-te e dancemos!". 0 inimigo é dito es-tar enraivecido corn o matador, mas ao mesmo tempo acha-se-lheindissoluvelmente ligado. Corn o tempo, essa raiva se transformaem amizade; a vitima e seu matador tornam-se "como apihi-pihr

Apihi-piha é o nome da relacao mais valorizada na sociedade arawe-te. Trata-se de uma forma de amizade cerimonial na qual dois casaispartilham sexualmente os cOnjuges de sexo oposto, passam longosperiodos juntos na floresta em expedicoes de cap., e sao parceirosobrigatOrios nas dancas coletivas que ocorrem durante as cauinagens.

Pode-se ver aqui uma nitida progressao nas relacOes entre a vi-tima e seu matador. Elas vac* da alteridade mortifera a identidade fu-sional: alguem que era urn puro inimigo, urn awin, transforma-se

primeiramente em um tiwa, urn afim potencial; em seguida, torna-se urn amigo ritual, uma especie de duplo social e afetivo do Eu que

na verdade urn anti-afim, pois que se trata de alguem corn quern

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se partilham esposas em vez de se trocarem irmas. Finalmente, corna morte do matador, a vitima se consubstancializa a pessoa deste: ela

fica para sempre "corn" [-rehewe] ou "em" [-re] o matador, tornan-do-se um como apendice seu, distinguindo-o do comum dos mor-tais no mundo celeste.

Note-se que, inicialmente, as rein -6es sexuais do matador corn a es-

posa eram perigosas porque o esperma do inimigo poderia conta-

mini-lo; ao inverso, a transformacao subsequente da vitima em

apihi-piha do matador sugere a mistura de sementes, por comparti-

lhamento das mesmas mulheres. Note-se, ainda, que este comum

acesso aos respectivos deluges, ao distinguir os amigos rituais dos

cunhados, pareceria aproximi-los da relnao entre germanos de

mesmo sexo, que tern oficiosamente tal prerrogativa. Entretanto, se

as relnOes de apihi-pihd podem ser estabelecidas entre pessoas li-

gadas por uma variedade de tacos de parentesco previos, elas ex-cluem precisamente dois tipos de laic): aquele entre cunhados e ague-le entre germanos. Dois irmaos reais nao podem jamais entrar em

relnaes de amizade ritual — a inversio da afinidade (o amigo coma`anti-afim) nao reconduz, portanto, a mera consanguinidade, mas

cria uma terceira posicao. De um modo geral, os apihi-pihd sâo re-crutados na periferia da parentela, into é, na esfera onde se encon-tram os diva, nao-parentes ou parentes distantes, que podem seralternativamente afinizados ou transformados em amigos rituais.

A morte ventriloqua

Durante a danca que encerra a reclusio do moropi'na e celebra a mar-te do inimigo, o espirito deste é dim postar-se imediatamente as cos-tas do matador, que é tambem o cantador da cerimemia. 0 inimigoe seu "professor de canto" (marakii memo to-ha), soprando-the aoouvido as palavras da cancäo que ele deve proferir, as quais sào re-

tomadas pela comunidade masculina da aldeia reunida a sua volts.Assim, se o inimigo "vinha adiante" do matador durante a recius'ao,o que tornava as relacOes sexuais perigosas, na danca guerreira elepassa a ocupar uma posicao posterior. Se, antes, havia uma especiede competicäo de corpos entre o inimigo e o matador (o risco damistura seminal), na danca tern-se uma colaboracâo entre os dois,manifestada numa comunhäo de palavras.

Os inimigos recebem em geral dois epitetos muito sugestivos:kd'un nahi, "molho do cauim" (a cerveja de milho servida durante adanca comemorativa), e maraka nin, "futura mfasica". 0 primeirouma clara alusäo canibal. Se os Arawete nao comem seus inimigos,pois a antropofagia é prOpria dos deuses, ao menos des os utilizampara dar gosto a bebida, infundir-lhe 'espirito'. 0 segundo indica afunck principal dos inimigos: trazer novos cantos. Vistos par seulado born — seu lado morto os inimigos sao aqueles que trazemnovas palavras ao grupo, ou ao menos que vem dar un sens plus puraux mots de la tau.

As cancOes cantadas durante as dancas arawete, notadamentedurante as festas de cauim que se realizam varias vezes ao ano, siotodas cancOes dos inimigos cantadas originalmentepor um matador.

As awin maraka ("milsica dos inimigos", expressao corn senti-do tanto genitivo como possessivo) sâo simples: quatro a oito ver-sos repetidos dezenas de vezes, de ritmo binario e linha melOclicamonOtona. Elas s'ao cantadas em urn registro grave por toda a co-munidade masculina, em unissono, apOs o matador ter proposto aspalavras. Cada inimigo morto pode dar virias cancOes a seu mata-dor. Uma vez enunciadas na danca que comemora o fim da reclusaode homicidio, os cantares de inimigo caem no dominio publico, po-dendo ser retomadas por qualquer homem que se encontre na fun-cab de cantador de uma cauinagem.

A complexidade essencial dessas canceies reside em seu regimeenunciativo, marcado pelo ponto de vista do inimigo. 0 sujeito daenunciacäo é sempre a vitima, que pode estar falando em seu prOptio

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nome, mas pode tambem estar citando a palavra de terceiros. 0 estilocitacional tipico das narrativas arawete atinge um grande rendimentonos awin maraka, criando um jogo intrincado de identificacoes entreos dois cantores, a vitima e seu matador. Vejamos, a titulo de exem-plo, uma cancio atribuida a Yakati-ro, um homem arawete falecidoem 1976, que the foi ensinada por uma vitima do povo Parakanl

"Estou morrendo"-assim dizia o finado Moiwito;assim falava minha presa,assim falava o finado KoiarawY;

Em seu amplo patio,"Eeh!" — disse o Towaho,

"Eis meu prisioneiro,8. no pitio do grande passaro".

O morto que diz estar morrendo — o finado Moiwito ou Koiarawl: —e urn homem que tombara sob as flechas parakani pouco antes daexpedicäo retaliatOria arawete, quando o inimigo que fala nesta can-cio foi morto por Yakati-ro. Desta forma, o inimigo-cantor se pOea si mesmo, no verso 112 3, como sendo o matador de Moiwito, e citao que diz sua vitima: "Estou morrendo". Na segunda parte do can-to, marcada por uma mudanca de andamento, o sujeito do enuncia-do muda. 0 verso nQ 5 refere-se ao urubu, evocado no verso n-Q 8pelo circunlOquio "grande pissaro". 0 "patio do grande pissaro"

uma metifora macabra para a clareira aberta pelos urubus nafloresta, em torno do cadaver do inimigo morto — entenda-se, docadaver do homem parakan5 que e o sujeito da enunciacào deste can-to, n'ao de Moiwito. As palavras desta segunda parte do canto säoatribuidas ao Towaho mencionado (pelo inimigo) no verso n2 6.Towaho e o norne de uma antiga tribo inimiga dos Arawete, 8 que

8. A palavra é uma provivel contracab de 'town- oho, "inimigo monstruoso (grande)".>

funciona como sinedoque para em muitas narrativas tra-dicionais. Mas, no presente canto, o Towaho nio e ninguem menosque o prOprio Yakati-ro, isto é, o matador arawete que esti a cantara cancio ensinada pelo inimigo. Do ponto de vista da vitima para-kanä, seu matador a um Towaho, um Inimigo. Yakati-ro, o matador-cantor, fala de si mesmo, falando as palavras de sua vitima, as quaissic) uma citacio do que ele estaria dizendo: o matador `repete' por-tanto suas prOprias palavras. Uma especie de ecolalia enunciativa,ou um processo de reverberactio: urn inimigo morto cita sua vitimaarawete (verso n2 r), e em seguida cita seu prOprio matador (versos11Q 5-8), tudo isto pela boca deste ultimo, que cita globalmente o quesua vitima esti a dizer. Os que acabam por falar, ou ser citados, säo

todos arawete: o morto Moiwito, o matador Yakati-ro, mas ambosdo ponto de vista de urn terceiro, a vitima inimiga. E Pica-se sem sa-ber, diante dessa construcio em abismo: quem fala, em tal cantar?quem e o morto, quern o inimigo?

Veja-se outro exemplo, urn tanto mais bucOlico. Trata-se deum canto ensinado a KariiwIdin-no pelo espirito de urn homem dopovo Asurini, por ele ferido no comeco dos anos 7o:

r. "0 falcao rata se rejubila"

- disse a cotinga [pousadal nc, pequeno arco;"ele esti alegre no galho de yocin",

4. — assim ouviu minha mulher;

S. "A taquarinha se desvia,ela se desvia de nos;ela se desvia de nosso caminho"

8. — assim conversava minha mulher.

> *Thula; que nio existe em arawete como lexema aut6nomo, seria talvez umcognato da forma tupi-guarani mais comum para "inimigo", tovajar ou towayat(cf. tupinamba tovajara, inimigo e cunhado).

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Aqui o inimigo, que escapou corn vida das flechas dedin-no, rejubila-se por sua sorte. Ele cita o que disse ou ouviu suaesposa. A primeira parte do canto evoca o falciozinho tata saltitan-do alegre num galho da arvoreyocrn; uma cotinga, pousada no arcodo cantor, é quern diz isto a esposa do inimigo. A segunda parte co-memora a ma pontaria do cantor, cuja flecha ("taquarinha") 9 desvia-

se do inimigo e sua mulher. Aqui tambem o inimigo cita sua esposa.Ao transcrever este canto, o antropOlogo obtemperou corn seus

interlocutores: mas o inimigo asurini fora flechado quando estavasozinho na floresta; quem, portanto, seria esta minha mulher que fa-la? Explicaram-lhe: tratava-se de ou seja, da esposado guerreiro arawete; "minha mulher" designava a esposa do cantor,mas quem estava dijendo "minha mulher" era o espirito do inimigo.0 canto é enunciado de seu ponto de vista: as flechas desviam-se de-le. Mas o regime enunciativo faz corn que o cantador, referindo-sea prOpria esposa como "minha esposa", esteja na verdade citandopalavras do inimigo. Vimos as precaucaes que o matador deveriatomar quanto ao sexo, logo apOs o homicidio: sua esposa, de fato,se torna uma esposa de inimigo.

0 destino do guerreiro

A reverberacio entre o matador e sua vitima esta na origem da si-tunic) paradoxal da danca guerreira, situacio de major coesio so-cial e de maxima 'efervescência coletiva' na sociedade arawet( ., quan-do a comunidade masculina retine-se em torno do matador para,identificando-se a este, repetir palavras enunciadas por outrem.Esse processo, como se pode imaginar, tern seu preco. A fusio en-tre o matador e o inimigo pressupeie urn devir-outro do primeiro:

9. Epiteto irOnico, pois a ponta das tlechas arawete é uma respeitivel lamina detaquarucu de ate 6o cm de comprimento, muito major que a das flechas asurini.

o espirito de sua vitima jamais o deixa. Assim que mata seu inimigo,as armas do matador devem ser afastadas dele; o espirito do morto,tornado de sentimentos de vinganca, inspira-lhe urn furor homicidacapaz de vira-lo contra os seus. Um guerreiro permanece exposto aesse perigo durante muito tempo depois de seu feito. Ele e freqiien-temente presa de acessos de raiva que devem ser apaziguados porsuas amigas rituais (as esposas dos apihi-pihd, ver supra). Por vezes,precisa fugir para a floresta, pois o inimigo "empluma sua cabeca" ethe transtorna os sentidos. "Quando chega sobre o matador, o espi-rito do inimigo transforma-o em urn inimigo para nos", diziam-meos Arawete. 0 inimigo não pode se vingar do matador, ja que é umaparte sua; assim, ele tenta vingar-se sobre os concidadRos de seu du-plo. SO muitos anos depois, ao que parece, ele entra em quiescenciae deixa o homicida em paz.

Os moropend arawete sao tidos por pessoas temperamentais,capazes de passar as vias de fato quando irritados. Nisso des se dis-tinguem das pessoas marin-in >nee, "inofensivas" (todos os nab-ma-tadores), que exibem, normalmente, urn notavel autocontrole. A po-sicio de matador na'o confere privilegios cerimoniais, e tem como(mica marca visivel a franja falhada, pois o espirito do inimigo fazcair os cabelos da fronte do homicida. Mas essa e uma condicäo hon-rosa; os moropend sic) admirados e ligeiramente temidos. Os seis ho-mens que tinham tal estatuto na sociedade arawete, em 1991, esta-vam entre as poucas pessoas que jamais eram aivo da maledicênciae do sarcasmo Cab apreciados pelos Arawete, e que nao poupamsequer xamäs reputados. 0 colapso demografico causado pelo con-tato, em 1976, fez os Arawete perderem em pouco tempo oito mata-dores, e isso é freqiientemente lamentado. Antigamente, "todosos homens eram matadores, sem excecao". Declaracio certamen-te exagerada, mas que exprime, tambem corn certeza, urn ideal.

A diferenca metafisica da pessoa do matador s6 se revela ple-namente apOs a morte. Ser devorado postumamente e o destino detodo individuo, macho ou femea, xami ou homem comm. Um tini-

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co estatuto poe seu titular ao abrigo do canibalismo divino: o de mo-rogna. 0 espirito de urn matador sobe aos ceus fundido corn o es-pirito de sua vitima. La, eles se transformam em urn Iraparadi; urntipo de entidade que os Maitemem e respeitam. Um Iraparadi, a al-ma de urn matador arawete acrescida de seu suplemento inimigo,nao é devorado pelos deuses. Ele passa diretamente ao banho deimortalidade, transformando-se em urn ser incorruptivel sem passarpela prova da morte canibal. E possivel, alias, que o matador deixede passar pela prova da morte, pura e simplesmente. Diz-se de vi-rios guerreiros da antiguidade que eles nao morreram, tendo subi-do aos cells em carne e osso. A ideia as vezes se exprime de mododogmitico: "um matador nao morre".

Vimos que, ao matar urn inimigo, o matador "morre", e em se-guida ressuscita aqui mesmo na terra. Doravante, pode-se dizer, ele

imortal; eis porque nao a devorado ao chegar no ceu. Ele a em simesmo um canibal (seu ventre esti cheio do sangue do inimigo); eele ji 6 urn inimigo, uma fusäo complexa de atributos bide e awin.Em suma: ele ja é um Mar. 0 matador 6 urn deus antecipado: ele en-carna a figura do Inimigo sendo ao mesmo tempo o Arawete ideal.

0 consumo canibal dos mortos no ceu 6 a condiclo de sua trans-formacäo em seres imortais, dotados de urn corpo glorioso e incor-ruptivel. Mas, como o matador 6 urn outro sendo urn inimigo —,ele ji sofreu sua apoteose. Na antiguidade exemplar, os matadoressubiam aos cells em seus corpos; hoje, o corpo enterrado de urn ma-tador apodrece, como todos podem atestar; mas alguns me sugeri-ram que seu cadaver n'Ao produz o espectro terrestre, maldoso e re-pugnante, que todo cadaver emite. Disseram-me, alternativamente,que os moropr'n'd mortos produzem, sim, urn espectro, mas que esteé "inofensivo", ao contrario do espectro das pessoas comuns — queeram, ao contririo dos matadores, inofensivas quando vivas.

Enquanto transformacAo final da condicdo de matador, o con-ceito de Iraparadi se mostra como sendo essencialmente uma pers-pectiva. Se os deuses canibais Sao, ao mesmo tempo, o equivalente ce-

leste dos Arawete e uma figuracio do Inimigo, se eles nos olharn cornolhos de inimigo e se nos os vemos como inimigos, a perspectiva doIraparadi mostra Os Arawete vendo-se ativamente como inimigos. Es-sa capacidade de se ver como Outro — ponto de vista que 6, talvez, oAngulo ideal de via() de si mesmo parece-me a chave da antropo-fagia tupi-guarani. Enfim, se 6 verdade que "o canibal [seja] sempreo outro" (Clastres & Lizot 1978: 12,6), end() o que a urn Iraparadr,senio o Outro dos Outros, um inimigo dos deuses que, por isso mes-mo, torna-se, como estes, urn mestre do ponto de vista celeste?

0 ideal de que, antigamente, todos os homens eram matadorestraduz, implicitamente, uma situacio em que so as mulheres seriamdevoradas pelos deuses.'° Ou melhor, ele sugere que a posicio de"comida dos deuses" (Mai demido, epiteto que descreve a condicäohumana) a feminina que a condicao de vivente humano é femini-na, portanto. 0 morto `tipico' a assim uma mulher, como o imortalideal é urn guerreiro. Ideal, mas paradoxal: urn matador morto, urnhomem que se) realiza plenamente sua potencia nessa dupla relacàocorn a morte. Urn matador morreu ao matar seu inimigo, identifica-se a ele, e s6 aproveita efetivamente estas mortes quando morre: con-frontado corn os deuses, nä() é tratado como um inimigo, porque éum inimigo, e assim imediatamente urn Mai.

No tempo em que convivi corn os Arawete, a posicio de mata-dor era bem menos importante e conspicua que a de peye, xami.0 lugar de cantador das festas de cauim era vicariamente ocupa-do por qualquer adulto capaz de lembrar-se dos cantos. Em troca, oexercicio cotidiano do xamanismo cabia a homens que dispunhamdo poder intransferivel de manifestar a voz dos deuses.

Essa importancia diferencial dos dois modos de ser masculinos

1o. As almas de criancas tampouco sac) devoradas pelos Seu 'corpo' é esfre-gado corn o sumo de uma fruta que lhes regenera a pele (o banho da imortalidadeem que sio submersos os despojos dos mortos adultos é igualmente dito "banhoda troca de pele") e as transforma magicamente em jovens adultos.

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pode ser creditada, em parte, a paz vivida entao pelos Arawete; mascreio que ela tern um fundamento estrutural. Urn xama é um mortoantecipado; em suas descricOes das viagens ao ceu, sempre mencio-na que os deuses se referem a ele como "futura presa". Mas desem-penha uma funcao vital e social: ele é um ser-para-o-grupo. 0 ma-tador, se é um deus antecipado, manifesta uma funcao mortal eindividual: ele a um ser-para-si. 0 peye e o vivente por excelencia,o representante dos viventes no ceu, e o canal de transmissao dosmortos celestes. Ele é um mediador; ubiquo mas sempre distinto doque comunica, comunica o que esti separado. Sua eficicia dependedele estar vivo, e trazer os mortos. Ji o matador nab representa nin-guem, mas encarna o inimigo, corn quern se confunde; ele é o lugarde uma metamorfose complexa, que so beneficia a si mesmo. E cer-to que o ideal de uma sociedade composta integralmente de mata-dores esti presente na cultura arawete, e teri sido duplamente 'vi-tal' em sua histOria de tantas guerras. Mas, do ponto de vista daescatologia pessoal, urn moropenii a alguem que já passou para o ou-tro lado, virado inimigo e virado divindade. Por isso, se o xama estipara o morto como o matador para a divindade, o primeiro esti pa-ra os vivos como o segundo para os mortos. A sociedade seria im-possivel sem o peye; mas a masculinidade seria impensivel sem a fi-gura do morapeniz.

Os Mai sio ao mesmo tempo xamas e matadores, vida e mor-te. Sao o arquetipo do xama, pois detem a ciacia da ressurreicao; esao o arquêtipo do matador, pois sao fusbes arnbivalentes de ego einimigo, bide e awi, que transformam os mortos neles mesmos peladevoracao, exatamente como o homicida transformava o inimigo,transformando-se nele.

0 ponto de vista do inimigo

Excetuando-se a natureza relativamente elaborada do jogo ventrilo-quo das cancOes de inimigo, os materiais arawete sobre as relacOes

entre o matador e sua vitima surpreendem pela simplicidade, se corn-parados ao que se sabe sobre as ressonancias simbOlicas e imagini-rias da violencia guerreira em outras sociedades da America tropi-cal. A parte as reais limitacties de seu etn6grafo, é possivel atribuirtal aparencia esquemitica ao estilo geral fiesta sociedade, que, sobrepouco afeita a grandes elaboraciies rituais, tern sido antes vitimaque agressora frente as diversas sociedades inimigas com que sedefrontou nas tIltimas acacias. A valorizacao da condicao de mata-dor entre os Arawete nao significa que eles sejam particularmentebelicosos, ou particularmente eficazes como guerreiros.

E possivel, tambem, que a predacao ontolOgica do exterior co-mo condicao da reproducao social, terra caracteristico de muitas so-ciedades amazOnicas,' I desempenhe urn papel menos importante en-tre os Arawete que entre, digamos, os Tupinambi, os Jivaro ou osMunduruku. Isso talvez se explique por urn movimento de translac'-abque se pode observar na cosmologia arawete: os contetidos simbOli-cos que, em outras sociedades amazOnicas, sao veiculados pelo corn-plexo guerreiro encontram-se, no caso arawete, em grande parte des-locados para a relacão entre os deuses e os homens; o espaco e asfuncties da exterioridade foram apropriados pelos Mai. Uma compa-rack, corn os Tupi quinhentistas reforca tal interpretacao (Viveirosde Castro 1992a; ver cap. 3 supra). A sociologia canibal dos Tupinam-bi, que sustentava um sofisticado sistema ritual de captura, cativeiro,execucao e devoracao de inimigos-cunhados, transforma-se, entre osArawete, em uma `teologja' e uma escatologia que, mesmo se sempremarcadas pela linguagem da afinidade e do canibalismo, mostram urnrendimento institucional inferior a sua riqueza ideolOgica.

Isso posto, talvez seja tal despojamento mesmo que nos permi-ta abordar diretamente certos elementos essenciais do duo matador-vitima na Amazonia indigena.

Cf. cap. 2 supra.

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OS VMS DE HOMICIDIO

Os rnateriais arawete manifestam a pregnfincia de um complexo sim-b6lico muito geral na AmazOnia e certamente encontravel alhures

que tern como elementos minimos os tracos seguintes:[I] 0 estado de perigo mistico em que cai o matador, contor-

nado por precauceies que visam impedir fenOmenos letais de 'rico-chete ' causados direta ou indiretamente pela vitima;

Urn comercio espiritual entre o matador e o inimigo morto,e, ao mesmo tempo; um paralelismo entre os processos ocorrentesno corpo do matador e no da vitima;

Um conjunto de ritos de homicidio concebidos como meta-bolizacão do sangue do inimigo, corn enfase ora anabOlica (diges-tao, sublimacio em outras substincias corporais), ora catabOlica (vo-mit,, sangria);

Urn interdito de contato entre o matador e os despojos doinimigo, os quais sofrem processos variados de socializacao, isto é,de apropriacio pela comunidade do matador; em particular, ali on-de se pratica o canibalismo efetivo, o matador jamais pode corner desua vitima;

A abstinencia sexual do matador durante a reclusão, usual-mente associada a outras restricties alimentares e de conduta, queevocam em alguns casos a pratica da couvade, e em outros uma ana-logia explicita corn o resguardo menstrual;

[6] 0 increment° do capital ontolOgico do matador ao fim doresguardo, expresso em uma relacao de anexacao de certos atributosmetonimicos da vitima: alma, nomes, cantos, trofeus.

Deste complexo, cornentem-se apenas alguns aspectos. Em pri-meiro lugar, tudo parece se passar como se o aumento da potenciaespiritual do matador dependesse de urn periodo de sujeick previaas influencias corporais da vitima, ou aos poderes espirituais destaenquanto inerentes a certas substancias vitais, notadamente o san-gue. Os processos de elaboracâo do sangue inimigo devern ser por-

tanto encarados sob uma dupla perspectiva: se eles manifestam umatransformack do inimigo realizada no matador, nio sib menos, poroutro lado, uma transformacio do matador levada a cabo pela viti-ma. A ideia de que o moropi'na morre apOs seu feito sugere uma alie-nacio do matador, sua captura pela imagem da vitima. 12 Recordoque as reclusOes de homicidio, particularmente quando funcionamcomo ritos de passagem, facultando o acesso a estatutos valorizados(adulto em condiceies de casar, lider ritual, chefe de guerra), fazemum use abundante dos simbolos classicos de morte e ressurreicão:liminaridade, silencio, nudez, perda do nome. Nesse sentido, a mor-

te da vitima a efetivamente a morte do matador, e o renascimentodeste nab é menos urn renascimento daquela.

Em segundo lugar, as regras que impedem um comercio exces-sivo entre o matador e sua presa humana sic) particularmente salien-tes nas sociedades que praticavam o canibalismo efetivo; naquelasonde a decantacao das vitimas em trofeus incomestiveis (cabecas re-duzidas, dentes, escalpos) desempenhava urn papel major, em con-trapartida, nit) parece terem vigorado interditos de manipulacäodestas partes pelo matador.° 0 interdito de manducacio da vitimapelo matador evoca imediatamente a difundida regra amathnica queimpede um cacador de corner sua prOpria presa. Essa regra é usual-mente interpretada nos termos de uma injuncio de reciprocidade,que baniria o `autoconsumo' como analogo do incesto etc. Nä° hathivida que algo do mesmo tipo aplica-se as presas humanas; de

Compare-se, p. ex., o apodrecimento do matador arawete e sua digestao dosangue inimigo ao canibalismo do matador yanomami, que vomita a gordura e oscabelos da vitima, sinal de que comeu-lhe a alma, e a sua possessio pelo principiovital desta, que o atormenta e enlouquece de um modo arillogo a obsessio do ma-tador arawete pelo espirito inimigo (Lizot 1976: 13, 228; Albert 1985: 360-55).

Para o primeiro caso, cf. Viveiros de Castro (1992a: 282—ss) sobre os Tupinamba,e Vilaca (1992: 1oi-15) sobre os Wari'. Para o segundo caso, cf. Taylor (1993a) sobreos Jivaro, Menget (1993) sobre os Munduruku e Sterpin (1993) sobre os Nivacle.

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resto, nas sociedades adeptas da caca de cabecas, tais trofeus deviamser igualmente socializados, isto 6, deviam beneficiar toda a comu-nidade do matador, trazendo-lhe abundancia, fecundidade, prate-cao contra os inimigos, prestigio. 0 que merece atenc5o aqui, entre-tanto, a menos a semelhanca entre os tratamentos das presas humanase animais, por sujeitas a uma mesma lOgica do dom, que as condi-cOes de possibilidade de tal aproximacào.

A evidente continuidade, tecnica como simbOlica, entre caca eguerra na AmazOnia foi, durante muito tempo, recalcada pelos an-tropOlogos. Talvez porque reconhece-la implicaria imputar as cul-turas da região uma `animalizacio' dos inimigos, quando não termi-nasse por explicar a guerra indigena em termos etolOgicos mais queetnolOgicos. Mas tais conseqiiincias, inaceitiveis, näo sao inevita-veis, se adotarmos um ponto de vista menos estranho as concepcOesindigenas. A animalizacäo do inimigo latente no complexo belicoci-negetico depende de uma primeira, e bem mais fundamenuljilamani-zacão do aimi. Para dize-lo rapidamente: na AmazOnia indigena,as relacOes entre humanos e nao-humanos, ‘sociedade' e `natureza',näo são concebidas como relacOes naturals, mas como relacOes elasmesmas socials." Guerra e caca são, literalmente, um mesmo corn-bate: um combate entre seres socials, isto é, entre `sujeitos'. Nessesentido, rao ha descontinuidade entre a predacio cinegetica e a pre-dacio belica; a alienacão ritual do matador n5o 6 essencialmente di-versa daquela perigosa identificacio entre o cacador e sua presa, queimpOe uma disjuncao na ordem do consumo, isto 6, no momento deobjetivacão da presa, que se acha vedado ao cacador. 0 caraterintegralmente subjetivo da relacio entre predador e presa, humanaou animal, e a meu ver a dimensao crucial do fen6meno, responden-do pela reversibilidade latente nesta relacão: a reciproca pressuposi-cio, ou determinaclo, entre matador e vitima.

14. Para esta ideia, cf. Viveiros de Castro 1992c, e sobretudo Descola 1993. 0 te-ma é retomado no cap. 7 infra.

Por fim, as precaucOes rituais do matador, na medida em quesão justificadas por uma concepc5o do sangue como indutor ou sig-no de uma mudanca de estatuto metafisico, trazem a cena as mulhe-res. Muito ji se escreveu sabre o papel essencial da comunidade fe-minina nos rituais guerreiros e no canibalismo; as observacOes deLevi-Strauss (1984) a esse respeito tern sido amplamente verificadaspara a AmazOnia. Por outro lado, a equivalencia simbOlica ou o en-cadeamento causal entre condicOes masculinas associadas a imposi-c5o da morte e condicOes femininas envolvidas na producäo da vida(homicidio e menstruaclo, reclus5o ritual e gestacão, guerra e casa-mento etc.) a um tema que se encontra urn pouco em toda parte, daAmazOnia a Polinesia, da Nova Guinea Grecia antiga. Cabe apenasobservar que, pelo menos em alguns casos amazOnicos, tais analo-gias sugerem urn potencial de feminizacao do matador, sua lecun-dacäo' ou `possessäo' pela vitima, condic5o que deve ser ritualmen-te transmutada em urn poder propriamente masculino de criac5o.Elas sugerem ainda uma serie de conexOes entre a transformacão ri-tual de inimigos em vitimas, isto 6, em identidades capturadas do ex-terior, e a geracão de filhos, isto é, a producao de novas identidadesno interior do grupo. Isso nos leva ao segundo ponto geral.

INTERIORIZACAO E EXTERIORIZACÂO

Vimos uma progressio operando no caso arawete. Uma situacao ini-cial caracterizada por uma distancia social maxima e uma distanciafisica minima — a mane violenta de urn inimigo desencadeia uma`catistrofe fusional' que produz uma identificacio instivel entre osp6los, e sua resolucao posterior na forma de urn englobamento me-tonimico da vitima pelo matador. Esse processo pode ser encontra-do, sob mUltiplas variantes, em outras sociedades amazOnicas. NosArawete, a vitima torna-se um apendice espiritual do moropenei, fun-cionando como seu escudo ou emblema no ambiente canibal do ceu.Em outras culturas os Nivacle sac) um born exempla (ver Sterpin

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1993: 49-50) ela a concebida como um traidor, um element° es-trangeiro que se bandeou para o grupo do homicida, mantendo-oinformado sobre os movimentos de seu prOprio grupo. Ela funcio-na, aqui, como uma especie de xerimbabo ou animal de estimacio,isto e, como uma subjetividade exterior selvagem que foi domesti-cada e desviada de sua natureza original.

Os cranios-trofeus dos Shipaya tinham a mesma funcio de 'auto'-

delatores (Nimuendaju 1981: 23-24), assim como os espiritos dos

Kayap6 mortos pelos Tapirape, que se tornavam familiares dos xa-

ma's, avisando-os dos ataques dos Kayap6 vivos (Wagley 1977:

184-85). Entre os Arawete, essa inversio do comportamento da vi-tima verifica-se no caso do jaguar. 0 espirito de urn jaguar morto

fica junto a seu matador, de quern se torna uma especie de cao de

caca: dorme embaixo de sua redo, apontando-lhe em sonhos os si-

dos de caca abundante. 0 canto tradicional que comemora a morte

de urn jaguar obedece a mesma reverberacao dos cantares de inimi-

go; o nome desse canto a "futura vitima da onca", e poe em cena

urn jaguar falando dos humanos que comers. Uma dupla inversio,

lOgica e temporal, de ponto de vista.

Em outros casos, a humanidade da vitima é radicalmente recicladaem novos componentes do grupo. 0 matador war? metaboliza o san-gue inimigo em semen, vindo a gerar urn filho que encarna o espi-rito da vitima, o que completa a transmutacâo da exterioridade Ca-

nibal e predatOria em consubstancialidade, cuidado paternal ecomensalidade 1992: tot-15). Os ritos jivaro de celebrackda cabeca reduzida culminam na transformacio desta em urn filhogeneric° (mais precisamente, urn feto) das mulheres do grupo (Tay-lor 1993a). As cabecas-trofeus munduruku, igualmente, eram con-cebidas como filhos de uma 'ma& masculine, o matador. Os Mun-duruku ilustram ainda outro tema comum na regiao: a cabeca do

inimigo morto era preparada e decorada de modo a se tornar a ima-

gem etnica de um munduruku (Menget 1993a); isto evoca os Tupiquinhentistas, onde urn cativo de guerra era laboriosamente depila-do, pintado e adornado a imagem de seus futuros executores.

Temos, assim, um processo geral de assimilacão da vitima apessoa do matador ou, mais geralmente, ao seu grupo. Tal assimila-ção parece depender, em certos casos, do reconhecimento previo davitima como, de algum modo, semelhante a seus agressores, e assimapenai os estrangeiros 'a boa distancia' sao considerados como pre-sas legitimas — é o que sucede entre os Jivaro, que so tomavam ca-becas de outros subgrupos da mesma etnia (Taylor 1985). Mas elapode tambem produzir tal semelhanca a posteriori, como nos casos

tupinambi e munduruku, em que o inimigo era `nacionalizado' an-tes de ser ritualmente elaborado. Esta combinacio de uma diferencae uma semelhanca igualmente necessarias cristaliza-se, frequente-mente, na identificacio dos inimigos a afins: os cunhados-inimigostupinambi (H. Clastres 1972) sao apenas o exemplo mais celebre deuma configuracio amerindia muito geral, em que a tensio caracte-ristica da afinidade — relacio que tem a semelhanca como base e adiferenca como principio — é utilizada para pensar a categoria do ini-migo e reciprocamente, isto é, onde os valores da exterioridade pre-dat6ria formam o subtexto da alianca matrimonial.

Todas essas ideias, vale observar, pressupeiern a humanidadeintegral do inimigo. Isto significa dizer que a relacio entre matadore vitima so pode acarretar aquelas identificacóes misticas e fuseies

rituais se for imediatamente apreendida como relacio social. Por ou-tro lado, porem, a definicio ou produclo ritual do inimigo como su-jeito, o processo de subjetivacio do outro necessario a sua

pelo mesmo, contem em si, eu diria mesmo como sua condi*,o momento inverso: a objetivacao do matador, sua alteracio pela vi-tima — sua identificack ao inimigo como inimigo. Vimos isto na re-verberacio dos cantos de guerra arawete, onde o matador apreen-de-se como sujeito a partir do momento em que ye a si mesmo pelosolhos de sua vitima, ou antes, em que diz sua prOpria singularidade

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pela boca desta ultima. Podemos ve-lo alhures; a poetica da alteri-dade dos Arawete encontra eco na estetica da exterioridade dos Wa-yana: ao partirem em expedicao de guerra, os homens wayana de-vem escarificar-se corn padrees decorativos representando jaguarese ayes de rapina figuras que encarnam os impulsos predatOrios Ca-racteristicos dos inimigos (Van Velthem 1995: 254-55). E ja havia-mos visto algo semelhante na decoracao corporal dos Mar.

Tudo parece militar, em suma, em favor de uma "impressio-nante indistincio entre o agressor e a vitima, em favor de uma espe-cie de essencia da guerra", como tao bem diz Menget (1993h: 29) apropOsito dos Ikpeng. A interiorizacao do Outro é inseparavel daexteriorizacao do Eu; o domesticar-se daquele é consubstancial ao`enselvajar-se' deste.

Resta perguntar: o que exatamente a assimilado, quando se assi-mila o inimigo? Os etnografos da Amazonia mencionam recursossimbOlicos muito variados, que esti° longe, alias, de serem mutua-mente exclusivos em cada configuracao cultural: nomes, cantos, subs-tancias espirituais, energias vitais, identidades, rostos, principios deindividuacao, e assim por diante. Sem poder retomar aqui uma ar-gumentacao ja desenvolvida a propOsito do canibalismo tupinamba(Viveiros de Castro 1992a), limito-me a repetir suas conclusees, queseguem de perto a licao dos cantares de inimigo arawete.

Para aka, das substancias ou principios mais ou menos reifica-dos que cada sociedade (ou cada etn6grafo) escoihe como substratoe objeto dos processos de assimilacao do inimigo, penso que o queesta em jogo é, em Ultima anilise, a incorporacao de algo eminente-mente incorporal: a posicao mesma de inimigo. 0 que se assimila davitima sao os signs de sua alteridade, e o que se visa é esta alterida-de como ponto de vista ou perspectiva sobre o Eu — uma relaccio. Masse o que se devora, real ou imaginariamente, da pessoa do inimigo ésua relacao ao grupo agressor, isto significa tambem que o socius se

constitui precisamente na interface corn seu exterior, ou, em outraspalavras, que ele se pee como essencialmente determinado pela ex-

terioridade. Ao escolher como principio de movimento a incorpo-rack) de predicados provenientes do inimigo, a socialidade amerin-dia nao pode terminar sena° definindo-se por esses mesmos predi-cados. Como nab chegar a esta conclusao, quando se ye que oprotagonista dos momentos rituaImente mais elaborados, e ideolo-gicamente mais densos, destas sociedades e a unidade bifronte domatador e sua vitima, que se espelham e reverberam ao infinito?

0 PONTO DE FUSAO

Se é verdade que "o ponto de vista cria o objeto", nao é menos ver-dade que o ponto de vista cria o sujeito, pois a fun* de sujeito de-fine-se precisamente pela faculdade de ocupar urn ponto de vista.Nesse sentido, a assimilacao predat6ria de propriedades da vitima,no caso amazOnico, deve ser compreendida nao tanto nos termos deuma fisica das substincias como nos de uma geometria das relacees,isto é, enquanto movimento de preensao perspectiva, onde as trans..formacees resultantes da agressao guerreira incidem sobre posiceesdeterminadas como pontos de vista.

Ao propor que a dinimica identitaria do par matador-vitimaum processo de ocupap10 do ponto de vista inimigo, estou buscandodiscernir a peculiaridade das ideias amerindias sobre a `guerra'. Lon-ge de implicar urn tratamento do inimigo como coisa (sistema ma-terial, corpo anenimo, autemato animal), o devir do par matador-vitima envolve urn confronto de sujeitos — nab, certamente, ao modohegeliano de um combate de consciencias, ate porque nesta dialeti-ca so ha Mestres que trocam pontos de vista e que alternam mo-mentos de subjetivacao e objetivacao. Objetivacio do matador pelasubjetividade da vitima, quando esta o possui, controla e `mats'; sub-jetivacao do matador pela objetividade da vitima, quando esta se de-canta em cantos, nomes, trofeus e outras sinedoques que assinalama nova condicao ontolOgica do matador.

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Pode-se, assim, dizer da violencia guerreira amazOnica o queSimon Harrison disse de seu analog° melanesio:

A agressao é concebida integralmente como um ato comunicativodirigido contra a subjetividade de outrem; e guerrear requeria a re-duf do do inimigo nao ao estatuto de uma n'do-pessoa ou de umacoisa, mas, muito ao contrdrio, a um estado de extrema subjetivi-dade (1993: 121).

0 que o leva a concluir que a inimizade, nesse tipo de sociedade, "éconceitualizada nao como uma mera ausincia objetiva de relacOessociais, mas como uma relacào social tao definida como qualqueroutra" (id. ibid.: 128). 15 0 autor prossegue:

Assim como um dom corporifica a identidade de seu doador, assim tam-

na guerra das terras baixas da Nova Guine, o matador adquire,

medi ante o homicidio, urn aspecto da identidade de sua vitima. 0 homi-

cidio e' representado ora como criando, ora coma exprimindo uma rela-

cao social, ora, ainda, como prodatindo a involucao [collapse] deuma relacao social, ao fundir duas alteridades sociais em urn so ser(id. ibid.: 130).

A relacäo entre o matador e sua vitima, quintessencia da "luta doshomens", pertence indubitavelmente ao "mundo do dom" (Lefort1978). Mas, como se depreende da passagem acima, ela ocupa umaposicio-limite nesse mundo. Se a sintese a priori do dom liga sujei-tos que permanecem objetivamente separados, a imposicào da mor-te violenta e sua lOgica canibal produzem, ao contrario, uma sinteseonde toda distancia se anula. A relacio a criada precisamente pela

15. Observacio que recorda imediatamente a passagem de Levi-Strauss sobre aimpossibilidade, "pour les indigenes", de se conceber uma ausencia de relacäo (1967a:552-53; cf. pp. 164-65 supra).

supressio de um de seus termos, que é introjetado pelo outro; a de-pendencia reciproca que liga e constitui os sujeitos da troca atingeaqui seu ponto de fug° — a fusio dos pontos de vista —, onde a dis-tfincia extensiva e extrinseca entre as partes converte-se em diferen-ca intensiva, imanente a uma singularidade dividida. A relacio depredacio constitui-se em modo de subjetivacio.

Evocando um celebre conceito batesoniano, poderiamos cha-mar esse processo de anticismogenese, pois ele parece jogar menoscorn uma diferenciacäo das perspectivas dos protagonistas da "tra-gedia canibal" (Combis 1992) que corn urn movimento de aproxi-macâo fusional e de imanentizacio da diferenca. 16 Em lugar de apa-recer como termo de uma estrutura que se desdobra ou explica emp6los opostos, ego e inimigo, essa entidade `monopolar' que e o ma-tador constitui-se por involucio ou implicacao, determinando-se co-mo foco virtual de uma condensacio predicativa onde a dupla ne-gni° eu sou inimigo de meu inimigo restitui uma identidadeque ji estaria IS como principio e finalidade, mas, ao contrario, rea-firma a diferensa e a faz imanente — eu tenho um inimigo, e por issoo sou. Ou o Eu o

A agressio guerreira amerindia revela-se end() urn processode "transformacio ritual do Eu", para emprestarmos de Simon Har-rison sua profunda definicio da guerra melanesia. Ela nos conduzao outro lado do pensamento selvagem, a face oculta da lua estru-turalista: antes que ao totemismo, ao simbolismo e a metifora, elaremete ao sacrificio, ao animismo e a metonimia. Se a map totemi-ca (se toda razâo nao o e) opera atraves da articulacâo reversivel en-tre series que permanecem distintas das relaciies a ligarem-nas, asfiguras sacrificiais, tal essa do devir matador-vitima, visam ao con-trario a transformacâo de uma serie em outra, operacio "absolutaou extrema" (Levi-Strauss 1962b: 298) que se move no elemento

16. A ideia de urn processo anticismogenetico foi-me inspirada pela releitura donaven iatmul empreendida no notavel estudo de Houseman & Seven (1994).

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sombrio da continuidade, da indiscernibilidade e da irreversibilida-de. 0 matador e sua vitima parecem estar, em suma, antes du did dechef Levy-Bruhl que du ate de chef Levi-Strauss. Nio se deve esque-cer, porem, que, exatamente como Meseglise e Guermantes, ha maisde urn carninho a ligar esses dois destinos. Mesmo porque, comoo demonstrou sua fusão final, eles nunca estiveram tao distantesurn do outro quanto imaginava o ponto de vista — inevitavelmentesubjetivo — do Narrador.

Capitulo 5

0 CONCEITO DE SOCIEDADE EM ANTROPOLOGIA

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0 conceito de sociedade em antropologia

Os dois sentidosl

Em sentido geral, a sociedade a uma condicao universal da vida hu-mana. Esta universalidade admite uma interpretacäo biolOgica (ins-tintual) e outra simbOlico-moral (institucional). Por um lado, a so-ciedade pode ser vista como um atributo basic.; mas nio exclusivo,da natureTa humana: somos geneticamente predispostos a vida so-cial; a ontogenese somatica e comportamental dos humanos depen-de da interacio corn seus semeihantes; a filoginese de nossa especie

paralela ao desenvolvimento da linguagem e do trabalho, capaci-dades socials indispensiveis a satisfaclo das necessidades do orga-nisms. For outro lado, a sociedade pode ser vista como dimensàoconstitutiva e exclusiva da natureza humana (Ingold 1994), definin-do-se por seu miter normativo: o comportamento humano torna-se agencia social ao se fundar menos em regulaceies instintivas sele-cionadas pela evolucâo que em regras de origem extra-somaticahistoricamente sedimentadas. A nocio de ‘regra' pode ser tomada

1. Este texto foi encomendado por e publicado na Encyclopedia of Social and

Cultural Anthropology, organizada por A. Barnard & J. Spencer. Suasde contend°, estilo e dimensties (da bibliografia inclusive) refletem tal origem.Ele nio pretende ser mais que um mapa muito geral das incidencias do conceitode sociedade na disciplina antropolOgica.

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em sentido moral e prescritivo-regulativo (como no estrutural-fun-cionalismo) ou cognitivo e descritivo-constitutivo (como no estru-turalismo e na antropologia simbOlica); apesar desta importante di-ferenca, em ambos os casos a énfase nas regras exprime o cariterinstituido dos principios da acao e da organizacab sociais. Os con-teticlos normativos da sociedade humana, sendo realidades institu-cionais, variam no tempo e no espaco, mas a existencia de regrasurn invariante formal (Levi-Strauss 1967a; Fortes 1983); como tal,ele seria a caracteristica distintiva da condicâo social, que deixa aquide ser um dos atributos do Homo sapiens para definir a Humanidadecomo entidade singular, composta nâo mais de individuos, mas desujeitos que sào simultaneamente criadores e criaturas do mundodas regras.

Em sentido particular, (uma) sociedade a uma designacao apli-cavel a um grupo humano corn aigumas das seguintes propriedades:territorialidade; recrutarnento principalmente por reproducao se-xual de seus membros; organizacao institucional relativamenteauto-suficiente e capaz de persistir para alem do period° de vidade urn individuo; distintividade cultural.

Aqui a nocio pode ter como referentes principals o componen-te populational, o componente instituciortal-relacional, ou o corn-ponente cultural-ideacional do grupo (Firth 1951). No primeiro ca-so, o termo é usado como sinOnimo de '(urn) povo' visto como urntipo especifico de humanidade. No segundo, em que a equivalente a`sistema' ou `organizacab' social, ele destaca o quadro sociopoliticoda coletividade: sua morfologia (composicao, distribuicão e relacOesdos subgrupos da sociedade enquanto grupo miximo), o corpo denormas jurais (noceies de autoridade e cidadania, regulacâo do con-flito, sistemas de status e papeis), e as configuracaes caracteristicasdas relacOes sociais (relacoes de poder, formas de cooperacao, mo-dos de intercambio). No terceiro caso — em que `sociedade' é fre-qiientemente substituida por `cultura' visam-se os comet:It:los afe-tivos e cognitivos da vida do grupo: o conjunto de disposicaes e

capacidades inculcadas em seus membros atraves de meios simbOli-cos variados, bem como os conceitos e praticas que conferem or-dem, significacäo e valor a totalidade do existente.

Uma das formas de administrar a relacao entre os dois senti-dos de `sociedade' foi pela divisão da antropologia em urn aspectoetnografico ou descritivo-interpretativo, voltado para a analise doparticular e privilegiando as diferencas entre as sociedades, e urn as-pecto teOrico ou comparativo-explicativo, que procura formular pro-posiceies sinteticas validas para toda sociedade humana. Apesar dastentativas de defini-los como etapas metodologicamente comple-mentares, a tendencia histOrica tern sido a de uma polarizacão epis-temolOgica entre 'etnografia' e `teoria'. A perspectiva universalistapredominou na fase formativa da antropologia, corn a enfase no me-todo comparativo e na definicäo de grandes tipos de sociedade; emseguida, o culturalismo e o funcionalismo marcaram o periodo iu-reo do metodo etnogrifico, usado polemicamente para a demolicâode tipologias especulativas (Boas) ou como via de acesso direto aouniversal (Malinowski); os estruturalismos de Radcliffe-Brown eLevi-Strauss e os neo-evolucionismos americanos (L. White, J. Ste-ward), por sua vez, voltaram a visar a comparacao e a generalizacab.

A partir dos anos 6o, essa divergencia se aprofunda. De um la-do, o interesse pelo significado e a interpretacâo rep& a etnografiacomo dimensão privilegiada, valorizando o ponto de vista dos agen-tes e buscando nas diferentes 'etnoconcepciies' de sociedade umaperspectiva que relativize criticamente os conceitos do observador.A sociedade em sentido geral subordina-se a sociedade em sentidoparticular ou plural. Mais que isso, na medida em que as concepcOesculturalmente especificas de sociedade desafiam a atribuicao de urnvalor referenda! fixo a esta nocab, eta passa a ser apreensivel apenasatraves da(s) cultura(s), e, no limite, a existir meramente como urnde seus contetados. De outro lado, os desenvolvimentos da sociobio-logia, da psicologia cognitiva e da ecologia cultural teen conduzidoa hipOteses ambiciosas sobre a socialidade enquanto propriedade ge-

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netica da especie, propondo univer sais comportamentais e cogniti-vos (e remetendo eventualmente a diversidade fenotipica do etogra-ma humano a variiveis extrinsecas, como o ambiente). Tal polariza-cao entre interpretacOes culturalistas e explicacoes naturalistasterminou por esvaziar o conceit° de sociedade, que se viu assim redu-zido, ou a representacao particular, ou ao comportamento universal.

As duas concepciies

0 pensamento ocidental oscila entre duas imagens de sociedade,opostas e combinadas de modo historicamente variivel, onde se fun-dem os sentidos particular e geral da nocao. Podemos chami-las,corn Dumont (1965), de societas e universitas, ou, usando a distincaopopularizada por este mesmo autor, de concepcOes "individualista"e "holista" do social. A primeira se funds na ideia de contrato entreitomos individuais ontologicamente independentes: a sociedadeurn artificio resultante da adesào consensual dos individuos, guia-dos racionalmente pelo interesse, a um conjunto de normas conven-cionais; a vida social esta em descontinuidade radical corn um estadode natureza, que ela nega e transcende. De inspiragao universalistae formalista, esta concepcao tern como modelo metafOrico (e geral-mente causa final) o Estado constitucional e territorial, e como pro-blema tipico, os fundamentos da ordem politica. A segunda se fun-da na ideia de urn todo organic° preexistente empirica ou moralmentea seus membros, que dele emanam e retiram sua substancia: a socie-dade a uma unidade corporada orientada por urn valor transcenden-te; ela a um universal concreto onde a natureza humana se realiza.De inspiracao particularista e substantivista, seu modelo metafOrico(e as vezes causa eficiente) e o parentesco como principio natural deconstituicao de pessoas morais coletivas, e seu problema tipico e oda integracao cultural de um povo enquanto Naga°. As grandes ima-gens modernas para estas concepcOes sac, respectivamente o contra-

to (ou seu negativo, o conflito) e o organismo, que atravessaram a an-tropologia do seculo xx sob avatares multiples, dentre os quais urndos mais conspicuos foi o contraste entre ‘teorias da nab' e `teoriasda estrutura' (Giddens 1979, 1984; Verdon 1991).

A universitas esta associada a urn horizonte pre-moderno do-minado pelo pensamento de AristOteles; a societas, aos tthricos dojusnaturalismo, de Hobbes a Hegel (Bobbio 1993). Mas deve-se re-cordar que a Antigilidade conheceu sociologias artificialistas cornos sofistas e Antistenes, e que o nominalismo medieval preparou oterreno para as teorias modernas do contrato. Por sua vez, o mode-lo holista e organicista da universitas ressurgiu na reacao romanticaao Iluminismo, desempenhando urn papel fundamental no desen-volvimento da imagem antropolOgica de (uma) sociedade como umacomunidade etnica de origem que partilha urn mundo de significa-dos tradicionais legitimados pela religiao. De outro lado, boa parteda antropologia vitoriana e sua descendencia pode ser vista comoherdeira tardia do Iluminismo (Stocking 1987).

Uma das manifestacOes da polaridade societal/ universitas e aconcorrincia entre `sociedade' e `cultura' como rOtulos englobantespara o objeto da antropologia, que op& as duas tradicOes teOricasdominantes entre 192o e 196o. A nocao de sociedade, caracteristicada 'antropologia social' britanica, deriva da sociedade civil dos jus-naturalistas, do racionalismo frames e escoces do seculo xviii e,mais proximamente, das sociologias de Comte, Spencer e Durkheim.A nocao de cultura, emblema da `antropologia cultural' americana,deita suas raizes no Romantismo alernao, nas escolas histOrico-et-nolOgicas da primeira metade do seculo )(Ix, e diretamente na obrade Boas. Isto nao significa que se possam derivar univocamente aantropologia social do individualismo da societas e a antropologiacultural do holismo da universitas. Sob certos aspectos, as coisas sepassam ao inverso. Maine ou Durkheim, por exemplo, ao mesmotempo em que assimilaram os esquemas progressistas do seculoxv111, reagiram ao artificialismo e utilitarismo a eles associados, em

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nome de concepOes essencialistas e organicistas que irao inspirar aantropologia de Radcliffe-Brown e seguidores. De seu lado, Boas,embora herdeiro do idealismo e do historicismo alernaes, entreteriuma concepcao nominalista da cultura, concebendo o individuo co-mo Unica locus real da integracao cultural. Mas nao hi drivida quese encontram marcas do utilitarismo racionalista em virias tenden-cias da antropologia social, particularmente no funcionalismo deMalinowski ou Leach e no componente spenceriano do pensamentode Radcliffe-Brown; a igualmente claro que as preocupacOes 'con-figuracionais' de antrop6logos americanos como Kroeber, Benedictou Geertz derivam do paradigma romantic° da sociedade como or-ganismo espiritual.

As duas antinomias

`Sociedade' e 'cultura' vieram ainda dividir o campo estruturado pe-la oposicao jusnaturalista entre '(estado de) natureza' e `sociedade(civil)', com a diferenciacao das duas antinomias centrais das cien-cias humanas: naturqa/cultura e individuo/sociedade. Ambas cono-tam o mesmo dilema teOrico, o de decidir se as rela93es entre os ter-mos opostos sao de continuidade (solucao reducionista) ou dedescontinuidade (solucao autonomista ou emergente). A culturaum prolongamento da natureza humana, exaustivamente analisivelem termos da biologia da especie, ou ela a uma ordem suprabio1O-gica que ultrapassa dialeticamente seu substrato organico? A socie-dade e a soma das interaceies e representact5es dos individuos que acompaem, ou ela é sua condicao supraindividual, e como tal urn 'ni-vel' especifico da realidade?

Os cruzamentos entre as duas polaridades sao complexos, poissobre serem freqiientemente subsumidas uma na outra, corn `socie-dade' ou 'cultura' opondo-se a Individuo' e `natureza', as duas 1116-mas nocOes sao vastamente polissemicas. 'Individuo' possui no mi-

nimo urn sentido empirico universal (os exemplares individuais daespecie, o componente humano de qualquer sociedade) e urn send-do cultural particular (o Individuo como valor Ultimo, origem e fi-nalidade das instituiceies sociais). ‘Natureza', por sua vez, pode sig-nificar o mundo fisico-material em oposicao as suas representacOessimbOlico-conceituais, o dominio dos fatos versus o dominio dos va-lores, o componente inato ou constante do comportamento humanoem oposicao a seu componente adquirido ou variivel, o espontaneoe necessirio versus o artificial e convencional, a animalidade em opo-sicao a humanidade, e assim por diante.

A ideia de que o social-cultural esti 'acima' do individual eiounatural aparece em todos os autores que definiram as grandes orien-ta95es da antropologia, mas com diferencas importantes (Ingold1986). Spencer concebe a sociedade como resultado da associacaointerativa de individuos, e coma instrumento dos fins destes Ültimos;ela constitui uma esfera supra-individual, mas nao suprabiolOgica,da realidade. A sociedade é urn fenOmeno natural (que nao distin-gue os homens de outros animais), sendo a fase superorganica de urnprocesso evolutivo universal que engloba as esferas inorganica e or-ganica. Durkheim situa-se no extrema oposto, vendo a sociedade co-mo urn fenOmeno exclusivamente humano, uma realidade supra-in-dividual e suprabiolOgica sui generis, de natureza moral e simbOlica.Ela a uma totalidade irredutivel as suas partes, dotada de finalidadeprOpria, uma consciencia coletiva superior e exterior as conscienciasindividuais, produzida pela fusao destas Ultimas. Corn Boas, enfim,a antinomia recebe uma terceira solucao: a cultura é uma realidadeextra-somitica de tipo ideacional, mas nab constitui urn dominio on-tolOgico distinto; existindo nas mentes individuais, ela é individual esuprabiolOgica, uma entidade nominal (semelhante a especie darwi-niana) redutivel aos comportamentos adquiridos; e a sociedade é oinstrumento de transmissao da cultura entre as individuos.

As teorias antropolOgicas posteriores exibem combina93es des-tes tres paradigmas. A teoria da cultura de Kroeber, por exemplo,

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oscilou entre posiceies boasianas e durkheimianas, enquanto seu con-ceito de sociedade a de tipo spenceriano. Em geral, a antropologiaamericana tendeu a se concentrar no par cultura/natureza, tomandoo segundo conceito ora no sentido de natureza humana — analisandoentdo a padronizacio afetiva e cognitiva dos individuos pela cultu-ra, ou ao contrario buscando estabelecer constantes psicolOgicastransculturais ora no sentido de natureza não-humana, como nocaso das tendencias ditas materialistas, que concebem a cultura comoinstrumento e resultado de um processo de adaptacao ao ambiente.

A antropologia social britanica, em troca, orientou seu eixo pro-blematic° pela polaridade individuo/sociedade e pelos conceitos(herdados do organicismo) que a exprimiam: 'estrutura' e `funcao'.Para Malinowski, o conceito de funcao referia-se ao papel desempe-nhado pelas instituicaes sociais na satisfacio das necessidades basi-cas dos organismos individuais. Para Radcliffe-Brown, ele designa-va a contribuicio fiestas instituicOes na manutencio das condiceiesde existencia do organismo coletivo, definicao que responde ao pro-blema central da teoria estrutural-funcionalista, o dos fundamentose modos de permanencia de uma dada forma social. Sob o nome de`reproducâo', tal problema näo foi menos central para o marxismoantropolOgico difundido a partir dos anos 7o, o qual pode assim serconsiderado como uma variante tardia do estrutural-funcionalismo.

Radcliffe-Brown avancou tanto definicOes natural-interativascomo moral-regulativas do conceito de estrutura social, hesitandoentre a imagem de uma rede de relacOes interindividuais e a de umarranjo normativo de relacOes intergrupos. A imagem preponderan-te, entretanto, foi a da estrutura como codex 'jural' que aloca perso-nalidades sociais a individuos ou coletividades, definindo sua posi-cao relativa em termos de direitos e deveres. Esta concepcão,aprofundada sobretudo por Fortes, conheceu sua evoca de hegemo-nia. Mas a orientacâo individualista e utilitarista, que teve em Mali-nowski seu grande campeão antropolOgico, comecou a voltar ao pri-meiro piano corn a reacao de Leach ao estrutural-funcionalismo, e

em seguida floresceu em diversas alternativas transacionalistas aoparadigma durkheimiano, todas insistindo na diferensa entre cOdi-go normativo e organizacio empirica, a sociedade oficial e a socie-dade real, e privilegiando as 'estrategias' ou o `processo' contra as`normas' ou a 'estrutura', a `acao' contra a `representacao' e o 'po-der' contra a `ordem'. Estes contrarios conceituais manifestam o di-lema classic° da antropologia britanica, a disjuncio entre as 'nor-mas' e a `pratica', que por sua vez traduz a persistencia da antinomiasociedade/individuo nesta tradicao te6rica.

Levi-Strauss, por seu lado, herdou dos boasianos a questao darelacäo entre universais psicolOgicos e determinismos culturais, ointeresse pela dimensio inconsciente dos fenOmenos sociais, e a lin-guagem da oposicão natureza/cultura. Mas seu tratamento desta

oposicio evoca as tentativas classicas de fornecer uma geneseideal da sociedade a partir do estado de natureza, e sua `cultura' guar-da muitas analogias corn a nocio de sociedade civil. Ao definir aproibicio do incesto e a troca matrimonial como condicio transcen-

dental da socialidade humana, o autor concebe a passagem entre asordens da natureza e da cultura em termos sociopoliticos diretamen-te inspirados na teoria da reciprocidade de Mauss teoria que ja foilida como resposta alternativa ao problema hobbesiano da emergen-cia da ordem social a partir do estado natural de guerra, com o Dome a troca postos como o analog() primitivo do Estado e do contrato(Sahlins 1972). Mas Levi-Strauss ira tambem se reclamar de Boas ede Saussure para explorar um novo modelo analOgico para os fenO-menos socioculturais, a linguagem. Ao contrapor a tese durkheimia-na sobre as origens sociais do simbolismo o terra dos fundamentossimbOlicos do social, ele vai derivar tanto a cultura como a socieda-de do mesmo substrato, o `inconsciente', lugar onde se anulariam asantinomias natureza/cultura e individuo/sociedade.

0 modelo da linguagem subjaz a concepcio levi-straussiana deestrutura como cargo, isto é, como urn sistema de signos dotadosde valores posicionais. 0 problema organicista da fiincao di aqui lu-

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gar ao problema semiOtico do sentido, deslocamento que, entre ou-tras coisas, responde pela pouca importancia concedida pelo estru-turalismo a nocao de estrutura social. ApOs seu livro sobre o paren-tesco, onde ainda se acham empregos de 'estrutura' prOximos aossignificados morfolOgicos tradicionais, Levi-Strauss concentrou-seem complexes classificatOrios e mitolOgicos, isto é, em estruturasmais propriamente `culturais'. Ao proclamar, em uma pagina farno-sa, que a etnologia era uma psicologia, o antrop6logo fiances ter-minou de dissolver a distincao entre sociedade e cultura; corn isto,estruturalismo contribuiu indiretamente para a dominancia atual doconceito de cultura sobre o de sociedade na cena antropolOgica. Es.ta mesma enfase nos aspectos taxonOmicos e cognitivos da vida so-cial tern sido apontada, nas avaliactles contemporaneas, como sinto-ma de uma das limitacOes maiores do estruturalismo: sua dificuldadeem dar conta da passagem entre significacao e nab, as ordens con-cebidas e as ordens vividas, a estrutura e a histOria. Este diagnOsti-co levou a antropologia contemporanea a experimentar uma varieda-de de novas abordagens, em geral adjetivadas de lenomenolOgicae.

As duas sociedades

Os problemas associados a nocao de sociedade em sentido particu-lar dizem respeito, principalmente, ao estabelecimento de tipos his-tOricos e morfolOgicos e aos principios de relacao entre eles.

A distincao entre tipos socials tern uma Tonga histOria intelec-tual. Um esquema especialmente pregnante foi a triparticao ilumi-nista entre povos selvagens, barbaros e civilizados. De miter ini-cialmente mais geogrifico que histOrico (ern Montesquieu, porexemplo), ela foi temporalizada por pensadores como Turgot, AdamSmith, Ferguson e Condorcet, gerando ainda a lei dos tres estigiosde Comte, de grande importancia para as teorias vitorianas da reli-giao (Stocking 1987). Esse esquema ganhou cidadania antropolOgi-

ca plena corn a divisao de Morgan em sociedades de cacadores-co-letores (selvageria), sociedades agricolas (barbarism) e sociedadesindustriais ou complexas (civilizacao), que foi incorporada pelo pen-samento marxista e desenvolvida pelas teorias neo-evolucionistas(Earle 1994). As tipologias tripartites sac) em geral continuistas e no-moteticas, buscando principios e mecanismos de passagem de urnestado a outro.

0 esquema de major produtividade no pensamento ocidental,entretanto, foi o dicotOmico, que se presta melhor a descontinuida-des fortes. Traduzindo a polaridade conceitual entre universitas e so-cietas em termos de uma oposicao real, as dicotomias tipolOgicasdestacam aspectos variados de urn contraste em Ultima analise redu-tivel a `1•16s' versus os `Outros', constituindo o nticleo de teorias doGrande Divisor que singularizarn o Ocidente moderno frente as de-mais sociedades humanas. Entre as dicotomias mais famosas — to-das contendo alguma referencia aos pares primitivo/civilizado outradicional/moderno podemos enumerar: parentesco/territOrio(Morgan); status/contrato (Maine); solidariedade mecanica/orga-nica (Durkheim); comunidade/sociedade (Tunnies); sociedadessimples/ complexas (Spencer); dom/mercadoria ou dom/contrato(Mauss); tradicional/racional (Weber); holismolindividualismo(Dumont); hist6ria fria/quente, pensamento selvagem/domestica-do (Levi-Strauss).

Essas dicotomias evocam certos valores da oposicao nature-za/cultura, corn o primeiro termo de cada uma delas representandoum estado mais natural (em varios sentidos do termo). Evocam tam-bem valores da oposicao individuo/sociedade, mas aqui a polarida-de se inverte, pois os primeiros termos denotam formas sociais on-de prevalece o grupo coma unidade basica, enquanto as segundosdenotam uma forma social onde o individuo ganha preeminencia.Por fim, elas ecoam a divisao traditional do trabalho te6rico entrea antropologia, clue estudaria as sociedades fundadas no parentes-co, corn uma economia do dom, sem Estado etc., e a sociologia,

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que se encarregaria das sociedades modernas, industriais e (origi-nalmente) ocidentais.

As dicotomias acima podem ser interpretadas em termos de umdualismo ontolOgico que opOe essencias sociais irredutiveis, mastambem como um contraste sobretudo heuristico, que exprime a pre-dominancia de urn polo sobre o outro no interior de cada tipo so-cial. A tendencia recente tern sido a de desconfianca perante formu-lacOes sugestivas de qualquer Grande Divisor, em particular aquelasque validem a imagem de `sociedade primitiva' estabelecida pelospensadores vitorianos, e que teria servido de model° basic° para aantropologia desde end°. Argumenta-se que tal objeto teOrico a umamera projecio invertida da imagem, constituida a partir do seculo

da sociedade burguesa moderna (Kuper 1988). Seja comofor, a antropologia nao parece poder passar facilmente sem tais di-cotomias. Se elas arrastam consigo uma pesada bagagem ideolOgi-ca, nao deixam por isso de indicar uma serie de diferencas igualmen-te de peso, entre a maioria das sociedades tradicionalmente estudadaspela antropologia e a sociedade capitalista moderna, diferenca cujorendimento teOrico pode ser atestado na retomada de certos contras-tes classicos (Gregory 1982, Strathern 1988), ou nas tentativas derelativizar e redefinir o Grande Divisor sem dissolve-lo completa-mente (Latour 1991).

A histOria da antropologia registra diferentes modos de conce-ber a relacão entre os termos destas dicotomias. Os evolucionistasinterpretaram-na como uma sucessäo histOrica objetiva: a socieda-de moderna seria uma societas, a sociedade primitiva, antiga ou tra-

dicional uma universitas. Tal solucao, note-se, é dominada pela pers-

pectiva da societas, a qual aparece como a causa final de urnmovimento progressivo envolvendo todas as sociedades, e portantocomo a verdade imanente do mundo da universitas. Despido even-tualmente de suas conotaceies teleolOgicas, esse model° ecoa nas ten-dencias teOricas que privilegiam supostos universais formais da acào

(como a chamada escolha racional, por exemplo) e que consideramas categorias sociolOgicas geradas por e para a sociedade moderna(como o individuo, o poder, o interesse, a economia, a politica) apli-caveis a qualquer sociedade, visto que a oposicäo entre os tipos é an-tes de grau que de natureza.

A posicio alternativa, que enfatiza a diferenca qualitativa en-tre os termos, tende a privilegiar a perspectiva da universitas. EstaUltima seria a forma normal ou 'natural' da sociedade, a societas mo-

derna revelando-se uma singularidade histOrica e/ou uma ilusàoideolOgica: o Ocidente é um acidente... Aqui, a oposicio entre osdois tipos de sociedade manifestaria sobretudo a diferenca entre duasconcepcOes sociocosmolOgicas globais e uma destas, a holista, re-velaria a verdadeira natureza do social. Tal ideia, que lanca suas rai-zes imediatas na sociologia da religião durkheimiana e no determi-nismo cultural dos boasianos, sofreu desenvolvimentos bastantediferentes entre si nas maos de autores como Dumont, Sahlins ouSchneider. Na medida em que muitos antropOlogos concebem suaatividade como sendo primordialmente a de empreender uma criti-ca politico-epistemolOgica da razio sociolOgica ocidental, esta posi-c5o ocupa urn lugar central na disciplina. A valorizacio da universi-tas pode ser entrevista mesmo naqueles autores que apontam airnplicacão miitua e necessaria entre visaes holistas e individualis-tas, recusando ambas como etnocentricas em nome das sociologiasimanentes a outras sociedades.

A 'escolha' da sociedade primitiva como objeto legou a antro-pologia uma quase identidade entre seu conceito de sociedade e otema do parentesco. As criticas de Maine e Durkheim ao utilitarismode Bentham e Spencer; a descoberta por Morgan das terminologiasclassificatOrias amerindias e sua insercio em uma teoria do grupode parentesco como a unidade politica original da sociedade huma-na; as especulacOes de McLenann e Bachofen sobre o matriarcadoprimordial — tudo isso levou a antropologia nascente a explorar uma

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dimensio da socialidade que a tradicio contratualista havia negli-genciado ern favor da oposicio imediata entre o individuo e o Esta-do (pois a sociedade civil dos jusnaturalistas so veio a significar pie-namente uma esfera distinta do Estado a partir de Marx). Ao tomaro parentesco como laco constitutivo das unidades socials primitivas,a antropologia recuperou, de certa forma, a concepcio aristotelicade uma continuidade natural entre a familia e a polls, aquela conti-nuidade que, precisamente, havia sido negada pelos jusnaturalistascomo fundamento legitimo da ordem politica. Aqui jaz a inspiracãoprofunda da chamada teoria da descendéncia britinica, produto detuna fusio dos conceitos de status e de corporacio de Maine corn asolidariedade mecinica de Durkheim, que dominou a antropologiabritfinica nos anos 40 e 5o. Visto deste Angulo, entende-se melhorpor que, para urn dos mestres da teoria da descendencia, o modeloconcorrente da alianca matrimonial, dos estruturalistas franceses,

problematico: a consanguinidade (fundadora da descendencia)encerrando em si o principio do status, a afinidade so pode reme-ter ao contrato, e, portanto, a uma dimensio secundiria do sociusprirnitivo (Fortes 1969).

certo que a teoria estrutural do parentesco evoca algo do pa-radigma contratualista, ao conceber a proibicio do incesto comouma intervencio da cultura em urn espaco deixado indeterminadopela natureza (a escolha do cOnjuge), e ao definir a troca matrimo-nial ern termos da submissio das inclinacOes individuals aos interes-ses da ordem coletiva. Mas tratar-se-ia aqui mais bem de urn 'con-trato natural' estabelecido no piano da dinfimica inconsciente da vidasocial, que em sua modalidade elementar liga grupos corporadosde parentesco (e nio individuos) por lacos estatutirios perpetuos.Nesta medida, descendencia e alianca remetem ambas ao modelodurkheimiano de `sociedade segmentar' (Schneider 1965), hojesob forte suspeita critica.

Opor as tradicOes antropolOgicas a partir das antinomias e di-

cotomias acima nao passa de uma simplificacio diditica, pois a ten-sio entre os modelos hobbesiano e aristotélico ou malinowskianoe durkheimiano, para usarmos totens mais recentes (Kuper 1992) —e na verdade interna as principais orientacOes teOricas, sends assimmellior falar em preponderincias relativas. 0 esquema evolucionis-

ta, ao projetar na diacronia a oposicio entre o mundo coletivista pri-mitivo, fundado no parentesco grupal e nas relacOes normativas destatus, ao mundo individualista modern, organizado na base da con-tigilidade local, do contrato individual e da liberdade associativa, jimostrava urn compromisso conceitual. Ele serviu de contraste criti-co a quase toda a antropologia social posterior, que se dedicou a mos-trar a operacio simultinea de ambas as orientac8es no interior dassociedades `primitivas'. Neste sentido, uma solucio muito comumfoi a divisio do campo social em dois aspectos complementares, urnmais social, o outro mais individual, partici° que se exprime em vi-rias analises famosas, a comecar pelo contraste trobriandes entre di-reito materno e amor paterno (Malinowski), passando pelo papel doirmio da mae nas sociedades patrilineares (Radcliffe-Brown), e de-sembocando em oposic8es como descendencia versus filiacio corn-plementar (Fortes), descendencia versus parentesco (Evans-Prit-chard), estrutura social versus organizacio social (Firth), estruturaversus communitas (Turner). Uma vez estabelecidas tais polarida-des, o esforco analitico dos antrop6logos foi (algo paradoxalmente)em boa parte dedicado a mediatiza-las, isto é, a determinar os meca-nismos institucionais de articulacio entre os lacos grupais e os lacosinterpessoais, a ordem domestica do parentesco e a ordem politicada sociedade global, o componente normativo ou obrigatOrio das re-lacOes sociais e seu componente optativo ou estrategico.

Em suma, pode-se dizer que a imagem de sociedade primitivavigente na fase clissica da antropologia social internalizou urn con-traste que havia sido usado anteriormente para opor globalmente so-ciedades, ou concepcOes globais da sociedade. E por mais que deva

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muito de sua inspired° a tradido 'aristotelica', hi um aspecto damodernidade 'hobbesiana' a que a antropologia nao ficou imune:trata-se da ideia de que a sociedade, mesmo se é uma condido natu-ral, por consubstantial a humanidade, nao deixa por isso de ser umacona'icao problenuitica, isto e, algo que exige explicado, sena° mes-mo justificado. Isto se deve por sua vez a idea (analisada, p. ex., emStrathern 1992a, b) de que a sociedade se constitui real ou formal-mente a partir de individuos =socials, que devem ser `socializados',isto é, constrangidos pela inculcado de representac6es normativasa se comportarem de um modo determined°, e que resistem a esteconstrido por uma manipulado egoista das normas ou pela regres-sao imaginaria a uma liberdade original. Tel ideia se encontra, cornnuances variadas, em Durkheim como em Freud, em Levi-Strausscomo em Fortes ou Leach. 0 Homo sapiens pode bem ser um 'ani-mal social', mas pare a modernidade este expressao sugere um in-quietante oximoro, que esti na raiz da busca incessante pela antro-pologia de solusOes que transcendam as antinomies dele decorrentes.

Critica a wise

A represented() antropolOgica clissica de (uma) sociedade, preci-pitada pelas tradicOes funcionalista e culturalista, é a de uma mOna-da que exprime a sua maneira o universo humano: um povo etnica-mente distinto, vivendo segundo instituic6es especificas e possuindouma culture particular. A coincidencia ideal dos tees componentesconstituiria uma totalidade individual, dotada de organized° e definalidade internas. A &Case funcionalista e no aspect() total e sista-mico; a culturalista, no aspect() individual e expressive,.

Esta imagem tern sido questionada hi algum tempo. No pianoteOrico, Levi-Strauss (195o, 1958) insistiu que o estruturalismo naoera um mitodo de anilise de sociedades globais, sugerindo que umasociedade é urn complexo contraditOrio onde coexistem estruturas

de diferentes ordens, e que a "ordem das ordens", ou totalized° in-teligivel destas estruturas, a um problema antes ideolOgico que ana-litico. No piano etnografico, Leach (1954) demonstrou a inanidadede modelos epistemologicamente bem-comportados, que nao levemem conta os contextos hist6ricos e politicos de inscricao das estru-turas socials.

Mais recentemente, tem-se observado que a nod° de socieda-de como totalidade autocontida depende de categories e de institui-cOes caracteristicas do Ocidente moderno, nao podendo almejar auniversalidade antropolOgica do conceito, mas meramente a parti-cularidade etnogrifica de uma concepdo cultural. Argumenta-se,por exemplo, que a ideia de uma humanidade dividida em unidadesetnicas discretas, social e culturalmente singulares, derive da ideo-logia do Estado-nado, imposta aos povos nao-ocidentais pelo colo-nialismo, esse grande inventor conceitual e pritico de `tribos' e `so-ciedades'. Tal crftica (p.ex. Wolf 1988) tern-se traduzido em umaenfase na interdependencia dos sistemas sociais concretos (concebi-dos como superposicOes de redes socials heterogeneas e abertas),onde as relates constitutivas de configurecOes regionais mais am-plas determinam os processos internos as unidades locals — o quedissolve a sociedade em sistemas cada vez mais globais, ate o nivelplanetario e em urn privilegio de conceitos de tipo processual epragmatic° em detrimento de conceitos de tipo estrutural e norma-tive — o que nao infreqiientemente a resolve em interacOes e repre-sentacOes at6micas.

Em seu sentido geral, a nodo vem igualmente perdendo terre-no. A antropologia contemporanea tende a recusar concepcOes es-sencialistas ou teleolOgicas da sociedade como agenda transcendenteaos individuos. A sociedade como ordem (instintiva ou institucio-nal) dotada de uma objetividade de coisa, preferem-se nosOes comosocialidade, que exprimiriam melhor o processo intersubjetiva-mente constituido da vide social. 0 realismo sociolOgico tern assim

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---n.4.a.*Ame.s.dorowerembitemmisialkiliamiatallida

dado lugar a uma postura que estende reflexivamente a sociedade omesmo construtivismo que a sociologia do conhecimento aplicoucorn sucesso a natureza (em particular a natureza das cultural dooutro lado do Grande Divisor).

Se é possivel definir uma orientacao predorninante na antropo-logia contemporanea (Ortner 1984), esta consiste no abandono dasconcepciies estruturais de sociedade em favor de pragmiticas daagencia social capazes de "promover uma recuperacao do sujeito semcair no subjetivismo" (Giddens 1979: 44). As virias teorias da 'pri-tica', da 'nä° comunicativa' ou da 'estruturacao' (Bourdieu 1972;Saltlins 1981; Habermas 1984; Giddens /984); a insatisfacao com aalternativa entre concepOes interativo-naturalistas e regulativo-cul-turalistas de sociedade (Ingold 1986); a critica unanime ao paradig-ma isaussuriano' da acao como atualizacao passiva de um conjuntode regras localizado na consciencia coletiva ou no aparelho mentalda especie; o retorno multiforme de abordagens fenomenolOgicas —estes sio os sinais de que a intencionalidade e a consciencia, antesdescartadas como mero epifenOmeno de estruturas que encerravamem si a inteligibilidade e a eficicia da sociedade (sena° mesmo de-nunciadas como obsticulos epistemolOgicos a determinacao destasestruturas), tornam-se agora nao apenas aquilo que deve ser urgen-temente explicado, mas a prOpria essencia (quando nao a verdadeiraexplicacao) da socialidade. Em suma: crise da 'estrutura', retorno do`sujeito'. Tal retorno pode ser teoricamente alerta, como nas pro-postas que pretendem superar as antinomias do pensamento socialocidental, em particular aquela entre individuo e sociedade, que é aque esta em jogo nessa ideia de uma concepcao nao-voluntarista daacio social. Mas ele pode tambern significar uma retomada literal devirias figuras em boa hora rejeitadas pelos estruturalismos das de-cadas recem-passadas: filosofia da consciencia, celebracao da criati-vidade infinita do sujeito, retranscendentalizacio do individuo etc.Recordando que cads teoria social ji vinda a luz acreditou um dia

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deter a chave da sintese entre os pOlos das antinomias da razio so-ciolOgica ocidental, apenas Para ser mais tarde acusada de favorecerescandalosamente urn destes pOlos, resta ver se as neopragmiticascontemporaneas tea° de fato escapado de serem mais urn meromomento da oscilacao perene entre o nominalismo subjetivista dasocietal e o realismo objetivista da universitas.

A critica contemporfinea atinge a nocao antropolOgica de so-ciedade por todas os lados: a sociedade primitiva como tipo real; asociedade como objeto empiricamente delimitado; a sociedade co-mo suporte objetivo das representacOes coletivas, entidade dotadade coerencia estrutural e de finalidade funcional. Tal crise concei-tual deriva, em primeiro lugar, de uma crise histOrica. 0 rim do co-lonialismo politico formal e a aceleracao dos processos de mundia-lizacao dos fluxos econOmicos e culturais tornaram mais evidente omiter desde sempre ideolOgico e artificial de algumas das ideias emquestio: a mOnada primitiva nao era primitiva, e nunca foi monidi-ca. Mas tal crise histOrica reflete tambem uma mudanca na apercep-cao social ocidental, isto é, uma crise cultural. 0 objeto-ideal da an-tropologia, a `sociedade primitiva', dissolveu-se menos pela (bastanterelativa) globalizacao objetiva dos mundos primitivos locals, ou pe-lo (algo duvidoso) progresso das luzes antropolOgicas, que pela fa-lencia da nocao de `sociedade moderna' que the serviu de contra-modelo. Cresce a conviccao de que o Ocidente abandonou seuperiod° moderno, fundado na separacao absoluta entre o dominiodos fatos e o dominio dos valores — separacao que permitia atribuir,por urn lado, transcendencia objetiva ao mundo natural e imanenciasubjetiva ao mundo social, e, por outro lado, instrumentalidade pas-siva aos objetos e agenda coercitiva aos valores. Resta ver se ingres-samos (e este `nos' inclui todas as sociedades do planets) em uma fa-se p6s-moderna onde nao mais funciona tal separacao, ou se, aocontririo do que supOe a cosmologia do Grande Divisor que tor-nou possivel a antropologia, jamais fomos modernos, exceto na ima-

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ginacio de alguns ideOlogos (Latour 1991). Sabemos, entretanto, eisto é uma licao da prOpria antropologia, que concepcOes imagina-rias (mas todos o do) produzem efeitos reais (e todos o sic.). Se es-te e o caso, end() continuamos a procura de conceitos capazes de ilu-minar as diferencas entre as sociedades, tinica via abertaantropologia para visar eficazmente a condicao social de um pontode vista verdadeiramente universal, ou melhor, imultiversar, isto é,um ponto de vista capaz de gerar e desenvolver a diferenca.

Capitulo 6

IMAGENS DA NATUREZA E DA SOCIEDADE

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Imagens da natureza e da sociedade

Quando o Annual Review of Anthropology publicou sua Ultima revi-sao do campo (Jackson 1975), a antropologia da AmazOnia es-tava no comeco de urn crescimento sem precedentes: em termos com-parativos, a literatura sobre a região parece ser a que mais aumentounos tiltimos vinte anos.' 4 fenOmeno foi celebrado por varios co-mentadores (Taylor 1984; Urban & Sherzer 1988; Descola r993; Ri-viere 1993; Henley 1996), que costumam citar uma coletinea sub-intitulada "o continente menos conhecido" (Lyon [org.) 1974) paraconcluir que o panorama, felizmente, mudou.

0 otimismo se justifica. Se, como observa Taylor (1984), ate ocomeco dos anos 7o nio havia mais que cinquenta monografias so-bre a AmazOnia indigena, end° a explosão posterior quadruplicou,no minimo, essa base etnografica. Muitas sociedades foram pela pri-meira vex descritas segundo padrOes tecnicos aceitiveis; algumasdelas foram estudadas por sucessivas levas de pesquisadores, oriun-dos de diferentes tradicOes teOricas; e, para certas areas geogrificas,a bibliografia atinge hoje uma densidade impressionante. No mes-mo periodo, a ecologia, a histOria e a arqueologia realizaram umavanco n8o menos notivel. Este amadurecimento pole ser avaliado

1. Agradeco a Alcida Ramos e William Bat& pelas sugestlies e indicacOes, e aPhilippe Descola pelo convite a expor alguns dos argumentos em seu seminiriona Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales (Paris), em novembro de 199s.

al-ru no acampamento de coca (iplxuna, 1981)as arawete pescando de manhazinha no porto da aldeia (Ipixtma, 1981) 319

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em cinco coletineas publicadas na decada de 9o, que trazem umaboa amostra dos desenvolvimentos das pesquisas em diferentes areasde conhecimento, bem como diversos panoramas criticos e compa-rativos: Carneiro da Cunha (org.) 1992; Descola & Taylor (orgs.)1993; Roosevelt (org.) 1994; Sponsel (org.) 1995; Viveiros de Castro& Carneiro da Cunha (orgs.) i993•

0 presente artigo discute apenas as mudancas mais gerais porque passa a antropologia regional. Os 61timos anos assistem a emer-gencia de uma imagem da AmazOnia indigena caracterizada pela en-Case na complexidade das formas sociais e na diversidade da fisio-nomia natural da regiao. Essas novas imagens da sociedade e danatureza se formam em um contexto te6rico marcado pela sinergiaentre abordagens estruturais e hist6ricas, por uma tentativa de su-peracao de modelos explicativos monocausais (naturalistas ou cul-turalistas) em favor de uma apreensao mais nuancada das relacOesentre sociedade e natureza, e por esperancas de uma "nova sintese"(Roosevelt 1994) capaz de vir integrar o conhecimento acumuladopelas diversas disciplinas.

0 modelo padris

Os apelos a uma nova sintese refletem a obsolescencia da imagemtradicional da Amaz6nia, derivada do monumental Handbook ofSouth American Indians, editado por Julian Steward ha meio siculo(Steward [org.] 1946-195o), e do digesto delta obra dado I luz al-guns anos depois (Steward & Faron 1959). Combinando um esque-ma de areas culturais, uma tipologia de "niveis de integracio socio-cultural" e uma teoria da acao determinante do ambiente sobre o"n6cleo cultural" de cada sociedade, a visao da Amaz6nia indigenaque emergiu da sintese de Steward e colaboradores criou raizesprofundas no imaginario etnolOgico.

Nesse modelo, os horticultores de queimada do tipo "Floresta

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Tropical" apareciam como sociedades evolucionariamente interme-e tipologicamente hibridas: semelhantes, quanto a cultura

material, is chefaturas circum-caribenhas — de quem teriam tornadovarios tracos tais sociedades, do ponto de vista sociopolitico, pou-co difeririam das "Tribos Marginais" de cacadores-coletores do Bra-

sil Central e da PatagOnia (id. 1948, Steward & Faron 19 59).2 A `tri-bo' tipica da tloresta tropical era uma pequena constelacao de aldeiasautOnomas, igualitirias, limitadas em suas dimensOes e estabilidadepor uma tecnologia simples e pelo ambiente improdutivo, incapa-zes, portanto, de gerar o excedente indispensivel a emergencia daespecializacao econOmica, da estratificacao social e da centralizacaopolitica presentes em outran areas do continente. Steward reconhe-cia a existencia de diferencas ecol6gicas entre os meios ripirios e in-terfluviais, bem como ulna certa variedade interna ao tipo, em fun-cao das diferentes condicOes locais e da relacao corn os centros dedifusao cultural, mas a impressao de conjunto era a de uma grandeuniformidade socioecolOgica da "Floresta Tropical": a Amaz6nia,

em especial, era percebida como um meio hostil a civilizacio, de ocu-pacao recente, demograficamente rarefeito, sociologicamente rudi.mentar e culturalmente tributario de areas mais avancadas. Ademais,estimava-se que as sociedades indigenas que mantinham seu modode vida tradicional caminhavam a passos largos para a assimilacao

as populacoes nacionais.Na epoca em que a `velha sintese' foi produzida, a etnologia do

subcontinents era dominada por uma combinacao de difusionismo edeterminismo geogrifico, em consonancia corn a tradicao histOrico-cultural alema, sob cuja inspiracao se constituira. Acrescentandomistura uma teoria da evolucao social, Steward iria transformar cria-

2. Os Jc e Bororo do Brasil Central, "Marginais" no Handbook, foram reclassifi-

cados como "hunters and gatherers turned farmas"por Steward & Faron (15059: 285,

362-13), e aproxiinados do tipu "Floresta Tropical".

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tivarnente essa tradicio na nova disciplina da ecologia cultural, deproilfica descendencia na antropologia norte-americana e de grandepeso nos estudos amerindios desde end°. Os herdeiros da ecologiacultural de Steward (e do neo-evolucionismo de Leslie White) tive-ram por varias acacias a Amaz6nia como campo de especulacio pri-vilegiado, como atesta o acirrado debate sabre os "fatores limitan-tes" responsiveis pela fisionomia sociopolitica da area, quemonopolizou as atenceses dos pesquisadores desta persuasAo ate, pe-lo menos, os anos 8o (Hames & Vickers 1983; Sponsel 1986)

A antropologia europeia comecou a desafiar a hegemonia des-se paradigma ji nos anos 5o, com Levi-Strauss (1952a, b, i955a, 1956,1967a); mas foi a partir da publicacio das tres primeiras MitolOgicas(id. 1964, 1966, 1967b), que o estruturalismo consolidou sua presen-ca na etnologia regional, propondo urn estilo analitico e, sobretudo,uma agenda tematica de enorme influéncia. Enfatizando o valorcognitivo e simbOlico daquelas dimens6es materiais estudadas pe-los ecologistas culturais de urn ponto de vista adaptativo relaciocorn os anitnais, origem das plantas cultivadas, dieta, tecnologia —,Levi-Strauss deslocou para o interior das cosmologias amerindiasa macro-oposicio conceitual entre natureza e cultura que subjaziaas teorias deterministas dos herdeiros de Steward.

No final dessa decada, surgem as primeiras etnografias deri-vadas da tradicio antropolOgica britanica, praticamente ausente doamericanismo tropical ate ento. Os estudos pioneiros de DavidMaybury-Lewis (1967) e de Peter Riviire (1969), ambos claramen-te influenciados por Levi-Strauss, inauguram a fase contemporineada etnologia amazOnica, e do a origem imediata do salto qualitati-ve experimentado pela producio subseqilente. Nos Estados Unidos,a etnociencia e a antropologia simbOlica transformacaes comple-mentares do culturalismo boasiano que tinham afinidades corn al-guns aspectos do estruturalismo — vieram dividir o palco com o ma-terialismo cultural de Steward e White. A onda de monografias sobreos sistemas sociocosmolOgicos amazOnicos que se iniciou nos anos

70 mostrari, em dosagem variivel conforme o estilo de forma*dos pesquisadores, uma combinacâo de influencias das escolas so-ciolOgicas europeias e do neoculturalismo americano, mas nenhumeco perceptive' — sena° sob a forma de urn silencio hostil das abor-dagens ecolOgico-materialistas.3

As duas decadas seguintes assistirio, assim, a uma polarizacaocrescente. De urn lado, os descendentes de Steward e White, adep-tos do tur-field approach, interessados em grandes panoramas his-tOrico-culturais e em macro-tipologias, guiados por uma concepcSoadaptacionista e energetica da cultura que sublinhava seu ordena-mento material pela natureza, e privilegiava a interface tecnolOgica.Do outro lado, os antropOlogos de orientacào estrutural-funciona-lista ou 'estrutural-culturalista', voltados para a analise sincrônicade sociedades indigenas particulares — ou para um cornparativismoantes morfolOgico que genetic° interessados nas dimensties insti-tucionais (parentesco, organizacao social) e ideolOgicas (sistemasde classificacao, cosmologias) dos grupos que estudavam, e privile-giando o ordenamento simbOlico da natureza pela cultura, e portan-to a interface cognitiva.

Nao obstante a polarizacao, varios aspectos da imagem produ-zida pelo Handbook eram compartilhados pelos dois campos: a Ama-zOnia continuava a ser vista como o habitat de pequenos gruposdispersos e isolados, aut6nomos e autocontidos, igualitirios e tec-nologicamente asceticos. Os ecologos culturais procuravam desco-brir quais eram as determinacOes ambientais que respondiam por es-se perfil sociopolitico 'simples', ou, em outras palavras, a que recursonatural escasso (solos ferteis, proteina animal) ele era uma adapta-

3. Dentre estas monografias (livros ou ceses aparecidos entre 1976 e 1995), recor-dem-se, p. ex.: DaMatta 1976; Gregor 1977; Carneiro da Cunha 1978; C. Hugh-Jo-nes 1979; S. Hugh-Jones 1979; Seeger 1981, Chaumeil 1983; Albert 1985; Crocker1985; Viveiros de Castro 1986a; Galtois *988; Erikson 1990; Gow *991a; Santos 1991;Vilna 1992; Gonsalves 2001 ; Lima 1995; Teixeira-Pinto 1997; Van Velthem 1995.

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c.5o. Os antropOlogos sociais tomavam tal perfil como urn dadoproblematic°, tratando de descrever os contetidos culturais comple-xos e especificos associados a tal simplicidade material; ou end°,quando tentavam a generalizacao, explicavam a autonomia, o igua-litarismo e a economia minimalista das sociedades indigenas con-temporlineas, nao por pressOes ambientais extrinsecas e negativas,mas por limitac6es socioculturais intrinsecas e positivas (como naobra de Clastres [1974], e em certas passagens de Levi-Strauss): re-cusa ideolOgica da mudanca histOrica, resistencia social a centraliza-cio politica, bloquelo cultural a acumulacao econ6mica.

A derrocada do modelo pada°

Os elementos que contribuiram para a falencia dessa imagemse acumulando ha bastante tempo. Eles procedem, antes de maisnada, de uma revisão das ldelas aceitas sobre a ecologia e a hist6-ria cultural da AmazOnia. Essa revisio F parte de uma reavaliaciogeral da America pre-colombiana, que vem consistentemente ten-dendo a: [1] majorar as estimativas da populacao amerindia em1492; [2] recuar as datacOes arqueol6gicas; [3] atribuir major corn-plexidade as formacOes sociais fora das areas andina e meso-ame-ricana, promovendo virias `tribos' a categoria das 'middle-range

societies' de tipo chefatura ou proto-estado; [4] sublinhar a impor-tancia de sistemas regionals que articulavam zonas ecol6gicas e ti-pos sociopoliticos heterogeneos; [5] destacar a acio de influenciassocietarias de longa distancia.

O outgo elemento responsavel pela refor mulacrto da imagemtradicional da Amaz6nia foi a consolidacao de uma antropologiateoricamente renovada das formates sociais nativas. Aqui tambemmuito se deve a reordenamentos intelectuais mais amplos, notada-mente: [I] a critica dos paradigmas clissicos da teoria do parentes-co, na medida em que estes foram percebidos como dependentes de

uma concepcio regulativa e mecanicista da vida social; [2] a recusamuito generalizada de urn conceito de sociedade como entidade on-tologicamente fechada e internamente estruturada; [3] as tentativasinsistentes de escapar das dicotomias classicas, como as chamadas`teorias do Grande Divisor', a oposicao entre Natureza e Cultura, oantagonismo entre abordagens materialistas e mentalistas, a antino-mia entre estrutura e processo, e assim por diante.

No que segue, assinalam-se as incidencias mais importantesdesses pontos sobre a antropologia recente da Amazonia indigena.

Ecologia humana

A mudanca mais relevante na area da ecologia diz respeito a enfasecrescente na diversidade ambiental da AmazOnia e nas correlacOesentre essa diversidade e a atividade humana. Sabia-se ha bastantetempo (Lathrap 1970; Meggers 1971) da diferenca entre a vdrtea, asplanicies aluviais dos rios de 'agua branca' que recebem os sedirnen-tos andinos, e a terra firme, o meio interfluvial mais pobre, de solosdrenados por rios de 'figua preta' ou de 'agua Clara'. Dias como Mo.ran (1993, 1995) e outros (Prance & Lovejoy [org.] 1985) tern insis-tido, a diversidade pedolOgica, floristica e faunistica da AmazOnianio cabe nests oposicio simples; sobretudo, nio a possivel conti-nuar a subsumir na categoria geral de 'terra firme que caracterizacerca de 98% da região, uma quantidade de ecossistemas fortementeheterogeneos.

Alem disso, acumulam-se as evidencias de que varias zonas fo-ra da varzea possuem solos mais fermis do que se imaginava, e quealgumas delas foram objeto de ocupacio pre-histOrica intensa e pro-longada, como atestam os sitios de ocorrencia de solos antropoge-nicos, que representariam, apenas na AmazOnia brasileira, no mini-mo iz% de toda a terra firme (Balee 1989b). Esses solos costumamser favorecidos pelas populacoes atuais, por sua alta fertilidade; sus-

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tentam, Aim disso, associacOes vegetais de extrema importincia pa-ra a economia indigena, como as matas de palmeiras, os castanhaise outras, que representariam "velhas florestas de capoeira (arrestedsuccessional forest) sobre sitios arqueolOgicos, incluindo tanto rocaspre-histOricas como aldeias e acampamentos" (id. ibid.: 6). Em ou-tras palavras, boa porcao da cobertura vegetal da Amaz6nia é o resul-tado de milenios de manipulacao humans. ; William Balee, o pesqui-sador que tern extraido as licetes mais importantes destas descobertas,observa que a `natureza' amazOnica 6 parte e resultado de uma Ton-ga histOria cultural, e que as economias indigenas tomadas comoexemplos de "respostas adaptativas" (Hames & Vickers [org.]7983) a urn ambiente primevo e transcendente sao, na verdade, me-ta-adaptacOes a cultura, ou ao resultado histOrico de uma transfor-macao cultural da natureza (Balee RR R h79__, 19_9a, b, 1990, 1992, 1994).

Ao contrfirio do que se imaginaria, alias, as florestas antropogenicasapresentam maior biodiversidade que as florestas nao-perturbadas(id. 1993a, b).

A perspectiva adaptacionista da antropologia ecolOgica produ-ziu estudos valiosos sobre certas dimensOes quantitativas das priti-cas de subsistencia amerindias; mas seu dialog° corn a antropologiasocial sempre foi minimo, visto serem duas abordagens tao incomen-suriveis como a economia neoclissica e a economia politica (Gre-gory 1982). Esta é mais que uma mera analogic: pois as teorias adap-tacionistas partem dos postulados marginalistas da escassez derecursos e da otimizacao do balanco custoiresultado (yield-to-efforiratio), supondo uma racionalidade infusa de tipo evolucionario, re-gida por parametros termodinamicos, ao passo que a antropologiasocial da AmazOnia tende a sublinhar as determinacaes estruturaisde regimes socioecon6micos fundados na reciprocidade e na troca

4. Ha mesmo quern estime, como Denevan (1992), que ji nit) existiam quaisquerflorestas tropicais `virgens' em 1492, o que pole ser urn tanto exagerado.

de dons, e a destacar a natureza histOrica, socialmente constituida,da interacao corn o mein fisico (embora, como se vera adiante, al-gumas formas de escassez nio-ambiental tenham sido sugeridas pa-ra explicar as morfologias socials amazOnicas). A distfincia entre asduas abordagens, de qualquer forma, diminuiu significativamentecorn o surgimento, apOs a yoga das teorias dos "fatores limitantes"e depois do "forrageio Otimo" (ver Hames & Vickers 7983; Roose-velt 198o; Sponsel 7986, para avaliacOes internas a tradicao; e Des-cola 7985,1988a, para uma critica informada pelo outro paradigma),de estudos sobre as estrategias de "manejo de recursos" implemen-tadas pelos povos indigenas (Posey & Balee [org.] 1989), que daogrande destaque as conceitualizacOes nativas dos ecossistemas (Ba-lee 1994) e permitem, pela primeira vez, que a expressio 'ecologiacultural' nao signifique mais apenas 'aspectos ecologicamente cau-sados da cultura', mas tambem 'aspectos culturalmente construidosda ecologia'. Ha problemas empiricos e teOricos pendentes nestaabordagem por exemplo, a questa() do grau e da natureza (inten-cional ou nio) da modelagein ambiental mas ela manifests umasalutar, ainda que incipiente, propens gio da antropologia ecolOgica aadmitir a causalidade formal da cultura (ou, para usarmos uma lin-guagem mais moderna, a capacidade de "auto-selesao cultural", verDurham 1991). Isso parece ser parte de uma tendencia geral a seabandonar a visa° das sociedades como isolados em the-a-the adap-tativo corn a natureza, em favor de uma concepcao essencialmentehistOrica da ecologia humana, que comeca a dar frutos na Amaz6-nia (Balee [org.] 7998; Heckenberger 1996).

Arqueologia

Foi do interior mesmo dos quadros do materialism° cultural quesurgiu a reacio atualmente mais em evidencia a imagem da Amazo-nia como regiao impropicia a complexidade social. Trata-se da tese

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que Anna Roosevelt (1980, 1987, 1991a, b, 1992, 1993) vem advo-gando sobre as sociedades da varzea, e que tem como antagonistaprincipal as ideias de Betty Meggers sobre as Jimitacaes ambientaisao desenvolvimento cultural na AmazOnia, formuladas inicialmentenos anos 5o (ver Meggers 1954,1957, 1971; Meggers & Evans 1954).Defrontada corn a sofisticacio das culturas que deixaram os vesti-gios ceramicos do baixo Amazonas e corn as descricoes dos pri-meiros cronistas sobre as sociedades que encontraram na varzeadeste rio Meggers procurou salvar a teoria de que a regilo naopoderia sustentar (e sobretudo gerar) formacOes sociopoliticas es-tratificadas e complexas, atribuindo tais registros arqueolOgicos auma influencia ou mama a uma migracio andina.

Contra isso, Roosevelt argumenta que a varzea foi capaz de sus-tentar populacOes muito densas, gracas ao cultivo do milho e outrasplantas de semente (Roosevelt 1980) ou a uma intensificacao pro-dutiva mais ampla (id. 1991a). Ela sugere que o milho nao teria sidodifundido a partir dos Andes ou da Mesoamerica em direcao a Ama-zOnia, mas pode ter sido domesticado independentemente nesta 61-tima regiao, e que, em geral, os Andes nao foram urn fator de difu-sao cultural para a Amaz6nia, e sim o inverso: embora as sociedadesda varzea so tenham atingido um nivel de complexidade elevado bemmais tarde que o mundo andino, certos tracos culturais panamerica-nos (ceramica, sedentarismo, agricultura) teriam surgido primeiroall. As formacOes pre-histOricas tardias da varzea, em particular asociedade que floresceu na ilha de MarajO entre 400 e 1300 AD, se-riam chefaturas complexas ou mesmo Estados de origem autOctone,exibindo estratificacio social, manufaturas especializadas, sacerdo-tes, culto de ancestrais e outras caracteristicas `avancadass.

A aurora conclui que as sociedades indigenas atuais sao "rema-nescentes geograficamente marginais dos povos que sobreviveram

a dizimacao ocorrida nas varzeas durante a conquista europela" (id.1992: 57; ver tambim id. 199113: 130), tendo involuido ate urn nivelanterior ao da formacao das chefaturas agricolas, ao passarem a ocu-

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par o ambiente improdutivo da terra firme. Seria preciso assim, con-clui ela, evitar a "projecao etnogrifica" (id. 1989) praticada poraquela antropologia ecolOgica que toma a simplicidade regressivada situacao indigena presente como representativa de limites inexo-ravels da natureza amazOnica.

As pesquisas de Roosevelt deram grande impeto a arqueologiasul-americana; sua visa° das chefaturas amazOnicas do pre-histori-co tardio é a mais sofisticada de que dispomos ate o momento, e temencontrado acolhida mesmo entre antropOlogos distantes do con-texto te6rico em que ela foi produzida.5 Mas a aurora nao foi a pri-meira a romper a continuidade entre as abordagens adaptacionistas,que conferem ao ambiente fisico um valor causal na interpretacaodas formas socials amazOnicas, e a ideologia naturalizante que, des-de o seculo xvi, fez dos habitantes do Novo Mundo, em particularos amerindios da floresta tropical, o tipo por excelencia do `Homern

Natural', incapacitado de atingir a autonomia civilizacional por suasujeicao a uma natureza hostil e limitante (Descola 1985). 0 grandeDonald Lathrap ja havia proposto a Amaz6nia como berco de so-ciedades complexas e foco de difuslo cultural, e formulado o argu-ment° contra a "projecao etnografica" (1968, 1970). Robert Car-neiro (ver 1995, para uma recapitulacao) ja havia desmentidoMeggers no que respeita as limitacaes pedolOgicas da Amazonia,e proposto uma influente teoria sobre a emergincia da centraliza-cao politica, adaptada e utilizada, alias, por Roosevelt. E, ja em1952, Levi-Strauss mencionava os "centros de civilizacio" amaz6-nicos e sugeria o "falso arcaismo" de vfirios povos atuais (1952a; vertambem id. 1993). Como observa Carneiro, Roosevelt comete naopoucos anacronismos interessados, ao tomar o modelo Steward-Meggers como se houvesse persistido, de fato, intacto ate hoje.

5. Cf. p. ex. S. Hugh-Jones 1993 e Rivlire 1995, que aludem as tcses de Rooseveltsobre a varzea, para sugerir que as hierarquias clinicas do Noroeste amazOnicoteriam tido, no passado, uma significacio socioecon6mica muito mais marcada.

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As teses de Roosevelt, ademais, apresentam alguns aspectosproblerniticos. 0 papel central concedido em Parmana (Roosevelt198o) ao argumento da mutacao tecnolOgica e ao cultivo do milhona evolucao das chefaturas desaparece em seu trabalho posterior so-bre Mar* (id. 1991a), o qual se ye, corn isso, privado de qualquerhipOtese causal especifica. Esta e exatamente a fraqueza que ela ha-via criticado, dez anos antes, em varios outros autores. Ao insistirem urn contraste generic° entre a varzea e a terra firme como deter-minante da evolucao cultural da Amazónia (id. 1980, 1992), o mo-delo se mostra tambem em atraso, diante da visa() mais diferenciadae menos miserabilista da terra firme a que aludimos acima, e, nessesentido, a urn exempla do determinismo ecolOgico tradicional. Eleparece, as vezes, supor que o mei° interfluvial era desabitado antesda invasio europeia (Carneiro 1995), o que é mais que improvivel,ou entao, que todos os grupos que porventura all viviam ou vivemseriam marginais alijados do paraiso aluvial como se houvesse urntropismo irresistivel de toda sociedade, seja qual for seu regime deproducao e reproducao sociais, em direcao a areas abstratamentemais ferteis. 0 modelo, por fim, essencializa a distincio entre as che-faturas riparias (que a autora compara ao Vale do Indus, as cidades-estado minOicas e micenicas, ou aos Ashanti — ver Roosevelt 1992)e os sistemas sociais da terra firme, antigos ou contemporaneos. Se-ria mais avisado, considerando-se o substrata cultural comum a to-da a AmazOnia, imaginar uma dinamica de tipo gumsa/gumlao(Leach 1954; ver Santos 1993: 226, para essa analogia na AmazOniaatual), sujeita a contracOes e expansOes conjunturais, articulando po-pulaceres da varzea e da terra firme em sistemas regionals ecolOgicae sociopoliticamente heterogeneos.

6. Por outro lado, conhecem-se economias da terra firme baseadas no cultivo domilho, mas neste caso, curiosamente, parece tratar-se antes de urn indicio de "re-gressio agricola" que de avanco tecnolOgico (cf. Balite 1992).

A presenca de desenvolvimentos 'complexos' alhures que navarzea, baseados na horticultura de mandioca, comeca a ser corn-provada arqueologicamente (Heckenberger 1996).6 Se isto fortale-ce, sem dtivida, a imagem de uma ArnazOnia pre-colombiana so-ciopoliticamente diferente da atual, vem entretanto minimizar ocontraste entre varzea e terra firme, e desmentir qualquer causali-dade ecolOgica direta. Parece cada vez mais claro que a emergen-cia e persistencia de estruturas sociais 'simples' ou 'complexas' —valham o que valerem estas caracterizacOes, que evocam o velhoevolucionismo social — nao pode ser explicada por fatores ambien-tais tornados em abstracio de dinamicas histOricas e interactles so-cietirias de larga escala, bem como de processos de decisao politi-ca guiados por sistemas de valores que respondem a bem mais quea desafios ou problemas ambientais definidos de maneira extrinse-ca e objetivista.

Quanto aos ataques a "projecao etnagrafica", observe-se queRoosevelt faz urn use abundante e hastante ingenuo — de analo-gias etnogrificas em suas prOprias reconstrucOes, socorrendo-se daliteratura contemporinea para propor, por exempla, que a socieda-de marajoara era alga prOximo a urn "matriarcado" (199r a), o quepode ser ideologicamente agradavel, mas a (pace Whitehead 1995)teoricamente problematic° e etnologicamente improvivel.

Antropologia social

A contribuicao principal da antropologia dos povos contempora-neos deu-se na area da organizacao social, que a tratada de modomuito sumario na tradicao tipolOgica derivada do Handbook. Ste-ward (1948; Steward & Faron 1959) atribuia a descendencia unili-near urn papel de destaque, vendo a AmazOnia ocupada por aldeiasmono- ou multilinhageiras. Levi-Strauss (1967a), par seu turno, naopodia dizer grande coisa sabre os sistemas de parentesco sul-ameri-

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canos, no livro que fundou a teoria da troca matrimonial; muito malconhecidos a epoca, estes the apresentavam antes enigmas que solu-gOes (id. 1952a, b, 19;6c). A partir de meados dos anos 7o, a etno-grafia entao ji acumulada suscitou uma avaliacio dos paradigmasda descendencia e da alianca no contexto sul-americano (OveringKaplan forg.1 1977; Murphy 1979). 0 reestudo das sociedades cen-tro-brasileiras, em particular, infirmou ou qualificou as descricOesanteriores em termos de grupos de descendência, e, ao mesmo tem-po, minimizou as implicacOes matrimoniais dos dualismos onipre-sentes nessas sociedades: a uxorilocalidade substituiu a descenden-cia como principio explicativo, e os diversos sistemas de metadesforam vistos como regulando transacOes principalmente onomisti-cas e cerimoniais (Maybury-Lewis forg.1 1979). Na Guiana, PeterRiviere (1969) e Joanna Overing (1975) identificaram uma combi-flack, entre alianca simetrica, endogamia local e parentesco cogni-tico que se revelou muito difundida na AmazOnia; a alianca simitri-ca foi mesmo proposta como traco invariante da organizacio socialda regilo (Riviire 1973). Lancando mio da teoria de Dumont sobreos sistemas dravidianos, Overing dissociou, corn grande sucessoanalitico, a alianca matrimonial de todo construto de descendencia edo paradigma de sociedade segmentar. Os desenvolvimentos poste-riores neste campo (ver Riviire 1993) foram marcados pela explo-raga° dos codigos culturais que faziam as vexes de principios orga-nizatOrios das sociedades amazOnicas (Seeger, DaMatta & Viveirosde Castro 1979; Overing Kaplan 1981), por sinteses comparativeslocais e regionais (Arhem 1981a; Riviere 1984; Flornborg 1988), portentativas de precisar as caracteristicas formals e as implicacOes so-ciolOgicas dos regimes de alianca amazOnicos (Taylor 1983,1989;Viveiros de Castro 1993a; Viveiros de Castro & Fausto 1993; Hen-ley 1996), e pela exploracao de novas categories te6ricas capazes desubstituir a nocào de descendencia para sociedades segmentares co-mo os povos Je e Tukano (Lea 1992,1995; S. Hugh-Jones 1993, 1995).

Por muito tempo, os etnologos tenderam a tomar a aldeia ou

comunidade local como sua unidade de anilise mais abrangente. Anecessidade de descrever sociedades praticamente desconhecidasimpels, a principio, tal limitacao, isso quando ela nao foi o simplesresultado de uma situacao objetiva: varios dos povos indigenas con-temporaneos esti° reduzidos a uma so aldeia. Em outros casos, a vi-sa° da comunidade local como urn microcosmo representativo daestrutura social do povo estudado parece ter-se devido a ulna ade-sio demasiado estreita as ideologias nativas, ou foi o resultado de

uma posicio teOrico-filosOfica explicita (Clastres 1974, 1977).Progressivamente, contudo, passou-se a destacar a importanciade redes supralocais de comercio e alianca politico-matrimonial, e aadotar uma perspectiva mais centrada nos sistemas regionais que emseus componentes (ver Colson 1983-84c, 1985 para a Guiana; parao Vaupes, C. Hugh-Jones 1979 e Jackson 1976, 1983; para o AltoXingu, Menget 1978, 1993c e Bastos 1983; para os povos Pano, Erik-son 1993b; para os Aruaque sub-andinos, Renard-Casevitz 1993).A imagem politica associada ao miserabilismo ecolOgico do Hand-

book e ao voluntarism° filosOfico de Clastres tambem foi submetidaa uma critics severa (Descola 1988b).

Podem-se encontrar tres estilos analiticos principais, nos estu-dos contemporineos das sociedades amaz6nicas. Esta classificacao

indica apenas infases teOricas dentro de um campo tematico larga-mente compartilhado, e varios etnOlogos (inclusive alguns dos abai-xo citados) as combinam ou empregam alternativamente. A primei-ra orientacio é o que eu chamaria de economia politica do controle,desenvolvida nos trabalhos de Terence Turner (1979a, b, 1984) e Pe-ter Riviêre (1984, 1987), bastante influenciada pela distincio estru-tural-funcionalista entre os `dominios' domestic° e politico-jural.Os etnOlogos do Brasil Central (ver Maybury-Lewis jorg.] 1979)recusaram, corn efeito, a pertinencia etnografica do conceito de descendencia, mas mantiveram o substrato analitico essencial do mo-del° fortesiano, atribuindo a instituiceies comunais como as metadese as classes de idade a funcao de media*, entre os dominios domes-

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tico e pill:slim' A isto, Turner acrescentou o controle uxorilocal doshomens mais velhos sobre os mais jovens atraves das mulheres, de-terminando a relacio sogro-genro como o motor estrutural das so-ciedades centro-brasileiras e elaborando uma teoria sofisticada, deinspirasao marxista, sobre a dialetica recursiva que gera e articulahierarquicamente os dominios ptiblico e domestic°. Riviere, por seuturno, generalizou o modelo, ao propor (em oposisao is teorias dosfatores limitantes) que o recurso crucialmente escasso na A.mazOniaé o trabalho humano, o que geraria uma `economia politica de pes-soas' fundada na distribuisao e controle das mulheres; a partir dal,o autos procurou explicar as variacOes morfolOgicas presentes nasterras baixas amazOnicas atraves de urn exame da correlasao entreos modos de gestao dos recursos humanos e a presenca ou ausenciade instituisOes supradomesticas.

A segunda orientasao é a economia moral da intimidade presen-te na obra recente de Overing e de seus ex-alunos (Overing 1991,1992, 1993a, b; Renshaw 1986; Gow 1989, 1991a; McCallum 1989;Santos 1991; Belaunde 1992). Influenciada pela critica feministaoposisào piblico/domistico (em alguns casos, especialmente pelasideias de Marilyn Strathern), essa vertente é responsive' por contri-buisOes decisivas a nossa compreens5o da filosofia social e da priti-ca da sociabilidade cotidiana na AmazOnia indfgena. Os trabalhosdo grupo enfatizam a complementaridade igualitiria entre os *e-ras e o cariter intimo da economia nativa, recusando uma sociolo-gic da escassez objetiva (natural ou social) em favor de uma feno-menologia d.o desejo como demanda intersubjetiva (Gow 1989). Essaorientasào tende a valorizar as relacOes internas ao grupo local — de-finidas pelo cornpartilhamento e solicitude entre parentes — em re-

7. Constate-se, alem disso, a grande innuendo do terra do "cid() de desenvolvi-mento do grupo domestico", e em particular do celebre artigo de Leach (1958) so-bre o parentesco trobriandes, na interpretacão do sistema de parentesco je elabo-rada por esse grupo de pesquisadores.

lativo detrimento das relasOes interlocais, concebidas, nas ideolo-gias nativas, como definidas por uma reciprocidade sempre a beirada violencia predatOria, a qual marca tambern as relasties entre hu-manos e nao-humanos. Pode-se dizer que o estilo da economia mo-ral da intimidade valoriza teoricamente a produsao sobre a troca, aspriticas de mutualidade sobre as estruturas de reciprocidade, e a id-ea da consanguinidade sobre a simbOlica da afinidade. Apesar de suarejeisao a nosao de sociedade como totalidade a priori dotada de umaracionalidade estrutural transcendente, este estilo, em sua visa° es-sencialmente moral da socialidade, nao deixa de ter analogias curio-sas corn a concepsao fortesiana da Amity (Fortes r969, 1983), of oucorn a celebre etnodefinicao schneideriana do parentesco cunt° "so-lidariedade difusa e persistente" (Schneider 1968). Pot fim, a criticacerrada a oposisao palico/domestico feita pela economia moral daintimidade traduziu-se, nao poucas vezes, em uma redusao da so-ciedade ao nivel domestic°, e em uma assimilasio indevida da no-Sao de socialidade a de sociabilidade.

A terceira vertente é a que chamo (em causa prOpria) de econo-mia simbd ilea da alteridade; ela e representada por etnOlogos de ins-pirasao estruturalista (p.ex. Albert 1985; Menget 1985; Viveiros deCastro 1986a; Erikson 1986; Descola 1986, 1993; Keifenheim 1992;Vilna 1992; Taylor 1993a). Esta vertente produziu anilises de siste-mas multicomunitirios complexos como o dos Yanomami (Albert1985) ou dos jivaro (Descola 1982; Taylor 1985), anilises que, aooperarem corn uma distincao entre as redes endogamicas locals e asestruturas politico-rituals de articulasao interlocal, nao deixam deser uma versa() amazOnica da concepslo bidimensional da estrururasocial presente na etnologia centro-brasileira.s Mas a inspiracao dogrupo é claramente levi-straussiana. Interessados nas interrelasiiesentre as sociologias e as cosmologias nativas, estes pesquisadores

8. As semelhancas entre os modelos bidimensionais da estrutura social avancadospelos etndlogos do Brasil Central e da AmazOnia nao devem ser exageradas; no >

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concentraram-se nos processos de troca simbOlica (guerra e caniba-lismo, caca, xamanismo, rituals funerarios) que, ao atravessarem fron-teiras sociopoliticas, cosmolOgicas e ontol6gicas, desempenham umpapel constitutivo na definicio das identidades coletivas. Isso de-sembocou em uma critica da nocao de Sociedade como memada fe-chada e auto-subsistence, contraposta ji a memadas analogas que theserviriam de espelho sociolOgico (Viveiros de Castro 1986a, 1993a),ji a ulna Natureza corn funclo de Outro transcendente (Descola1996) duas imagens conspicuas na etnografia regional. Esta ver-tente explorou os significados multiples da categoria da afinidadenas culturas amazOnicas (tema que aparece tarnbem em autores co-mo Riviire ou Overing, mas de forma emicamente negativa) suge-rindo seu valor de operador sociocosmolOgico central (Viveiros deCastro 1993a), e buscando determinar a tendo entre identidade e al-teridade que estaria na base dos regimes sociopoliticos amazemicos.

A tentativa mais sistematica de confrontacio entre as perspec-tivas ecolOgicas e sociolOgicas sobre a relacio entre natureza e so-ciedade na Amaz6nia deve-se a um representante desta ultima cor-rente, Philippe Descola. Em seus estudos minuciosos sobre a ecologiae a economia dos Jivaro Achuar (Descola 1986, 1994a), povo quenio pode ser considerado como um sobrevivente regressivo da con-quista europeia, o autor refutou varias teses caras ao determinismoecolOgico. Ele demonstrou, por um lado, que a diferenca entre os po-tenciais produtivos dos meios ripario e interfluvial ocupados pelosAchuar nao é relevante econOmica ou politicamente, e, por outro la-do, que certos limites socioculturais a duracão do esforco de traba-lho, bem como as formas gerais da organizacão social e as concep-cOes das relacOes corn o mundo natural, levam a uma homeostasedas forcas produtivas em urn nivel ‘baixo' de opernia, suficiente en-

> primeiro caso, ha uma preocupacio tnarcada corn a totalizacio que nio se en-

contra no segundo. Ademais, o lugar e a funclo da alteridade nas topologias so-

ciais amazOnicas e centro-brasileiras parecem ser muito diferentes.

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tretanto para manter o grupo em condicOes nutricionalmente luxuo-sas. Em outros textos, Descola desenvolveu urn modelo geral de"ecologia simbOlica" que procura dessubstantivizar a oposicio en-tre natureza e cultura, diferenciando-a em modos pratico-cognitivosdistintos conforme os regimes sociais em que se acha imersa (id. 1992,1996). 0 autor contrastou, em particular, o modo "naturalista" ca-racteristico da tradicio Ocidental (onde vigora uma relacio metoni-mica e natural entre natureza e sociedade), o modo "totemico" pri-vilegiado pelo estruturalismo classic° (onde a relacito é puramentediferencial e metafOrica), e o modo "animico" que vigoraria nas cul-turas amazOnicas (onde a relnio natureza/cultura e metonimica esocial). A nocio de urn "modo animico" permitiria elucidar algunsproblemas etnolOgicos tradicionais, como a ausencia de domestica-cio animal na AmazOnia (id. 1994b).' A teoria de Descola dialogacorn as ideias de Bruno Latour (1991), e nab deixa de ter certas ana-logias corn os trabalhos de Tim Ingold (p.ex. 1986, 1992), dois auto-res cuja presenca no contexto teOrico da etnologia amaz6nica ape-nas comeca a se fazer sentir, e que oferecem alternativas interessantesa desgastada antinomia entre abordagens naturalistas e culturalistas,que marcou a etnologia amazOnica por tanto tempo.

Histeria

A hist6ria dos povos amazemicos a uma area em forte expansio (Whi-tehead 1993b). Isso reflete uma tendencia teOrica geral, mas tam-bem, mais proximamente, o 'exame de consciencia' provocado peloquinto centenario da invaao da America. Os historiadores profis-sionais comecaram a se voltar para o tema; os etnOlogos deixararn

9. Scbre a questlo das relacOes corn o mundo animal na AmazOnia, deve-se con-sultar tambem o importante trabalho de Erikson 1984. Sobre a critica a leitura 'to-temizante ' das sociocosmologias amazOnicas, cf. tambim Viveiros de Castro 1986a.

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de se contentar corn referencias a fontes secundirias, debrucando-se sobre materials de arquivo na verdade bastante ricos. 0 conheci-mento etnogrifico tem sido, por sua vez, aplicado sobre as fonteshistOricas, facultando hipOteses capazes de dar consistencia a infor-ma tiles freqiientemente vagas e contradit6rias. Uma das conseqiien-cias disto é a revalorizacao do contecido emografico das fontes anti-gas (Forsyth 1983, 1985; Combes 1992; Viveiros de Castro 1993b;Whitehead 1995), e o recuo da tendencia hipercriticista a interpre-ti-las como mero registro dos preconceitos e interesses europeus. Ainterdigitacio da antropologia e da histOria tern beneficiado princi-palmente a regiao do escudo da Guiana (Grenand 1982; Whitehead1988, 1993a, 1994; Farage 1992; Dreyfus 1993a; Arvelo-Jimenez &Biord 1994) e a zona pre-andina (Renard-Casevitz 1992; Renard-Casevitz et al. 1986; Santos 1988, 1993; Combes & Saignes 1991;Taylor 1992), mas outras areas comecam a ser bem estudadas, co-mo o noroeste amazOnico (Wright 1990, 1992) e o Brasil Central(Verswijver 1992; Turner 1992), isso para nao falarmos dos povosque ha muito sao objeto de interesse histOrico, como os Guarani.

A linha de estudos sobre a tradicao oral tern produzido algunstrabalhos sobre etnohistOria em sentido estrito (Hill & Wright 1988;Franchetto 1993; Hendricks 1993; Basso 1995) que demonstram a im-portância de uma consciencia propriarnente histOrica nas culturasamazOnicas, problematizando a imagem tradicional que tende a sub-mergir a rnemOria indigena no mundo intemporal do mito. As rela-caes entre mito e histOria, entretanto, tem sido analisadas quase ex-clusivamente no quadro da experikcia indigena da situacao colonial(Hill [org.] 1988); suas implicacOes para a histOria cultural mais amplados povos amazOnicos ainda nao foram adequadamente exploradas.

A `virada histOrica' da etnologia regional levou a generaliza-cab do interesse pela interacio entre as sociedades indigenas e as es-truturas sociopoliticas ocidentais. Ha muito privilegiado por algumastradivies teOricas nacionais (Ramos 199o), esse tema encontra-se,hoje, alcado a ribalta metropolitana, por uma antropologia que se

estima mergulhada em profunda crise pOs-colonial. Tal mudanca derumo analitico reflete, no caso da AmazOnia, transformacties hist&ricas objetivas: a incorporacao macisa da regiao a economia mun-dial, a partir dos anos 70, ilia se traduziu na extincao ou assimila-cao generalizada dos povos nativos, como se antecipava; ao contrario,eles esti() em crescimento demografico, tem mantido sua distintivi-dade sociocultural, e emergiram como atores politicos importantesnos cenirios nacional e internacional.

A resposta da antropologia a este processo foi uma bem-vindadissolucio da divisao tradicional do trabalho entre os especialistasem sociedades `puras' e aqueles em sociedades 'aculturadas'. Come-ca-se a escapar da antinomia entre uma concepcao das sociedadesindigenas como atualizacaes mecanicas de principios estruturaisatemporais, o que nos obrigava a reconhecer que a transformacaoera algo teoricamente inexplicivel, e uma concepcao da mudancasocial como resultado inexoravel de determinacaes externas as so-ciedades indigenas, o que simplesmente substituia a transcendenciaestrutural intrinseca por uma transcendencia histOrica extrinseca,resultando em uma imagem ainda mais mecanica, se possivel, dassociedades nativas. A emergencia de abordagens que consideramconjuntamente as dinamicas locals e globais responsiveis pela traje-tOria dos povos indigenas associa, entao, a uma antropologia atentaa subjetividade histOrica das sociedades, uma atitude decididamentepresentista, ao passo que a divisio do trabalho acima referida eradominada, ao contrario, por perspectivas igualmente ahistOricas, is-to é, por uma ideia das sociedades indigenas coma entidades passi-vas ou reativas, e por uma orientacao para longe do presence: sejapara urn passado de plenitude adaptativa, seja para urn futuro de de-sagregacio e anomia. Exemplos desta nova capacidade de articularcosmologia e hist6ria, etnicidade e ritual, economia politica e anali-se simbOlica sao os trabalhos de Turner (1988, 1991a, 1992, 1993),Albert (1988, 1993), Gow (1991a, 1994), Gallois (1987-89, 1993),

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Brown e Fernandez (Brown 1991, 1993; Brown & Fernandez 1991)

e Taussig (1987), entre muitos outros.

Outro fator responsivel pela supernio da antinomia foi a pro-gressiva conviccao de que as sociedades tomadas como exemplaresde uma condicao pristina ao serem recentemente lcontatadas' pelo

Estado nacional deviam aspectos fundamentals de sua demografia,morfologia, economia e ideologia a uma longa histOria de internio

direta e indireta corn a fronteira colonial (Turner 1992; Whitehead1993a). 0 mesmo se diga do sentido e intensidade de praticas vistascomo manifestacio de adaptasties ambientais originarias, ou de prin-cipios socioculturais imanentes, como a guerra (Ferguson 199o, 1995)ou uma economia de cap e coleta (Balee 1992). For outro /ado, enao menos importante, uma considernao teoricamente sofisticada

de povos a primeira vista irremediavelmente caculturados' tern de-

monstrado que eles administram e mantem sua reflexividade socio-cultural recorrendo a estrategias politicas e categorias cosmolOgicasexatamente semelhantes as descritas pelos etnOlogos de sociedades

`tradicionais' (Gow 1991a).

Conchal:4s

Quais as irnplicnOes teOricas e ideolOgicas dessa nova imagem daAmazOnia, que faz dela uma regiao originalmente populosa, cornurns ecologia fortemente marcada pela intervencao humana, e deperfil sociopolitico 'complexo' obrigando-nos a concluir que o im-

pacto da invasio e colonizacao europiias foi ainda mais destrutivoque o tradicionalmente admitido? Aceito praticamente todos os seuselementos; mas confesso, tambern, urn certo desconforto diante daenfase excessiva na distancia entre as sociedades contemporineas eantigas. A reavalinão `para cima' do impacto da conquista parece-me perfeitamente justa; mas a conseqiiente maior vitimiznio daspopulacOes indigenas pode caucionar uma visa° degeneracionista

dos grupos atuais, que lhes nega qualquer capacidade de autodeter-minnao histOrica, e, ro limite, pode desembocar na absurda con-clusao (que nenhum de nos subscreveria, mas aos indios nao faltaminimigos poderosos) de que as sociedades contemporaneas, sendonao-representativas da plenitude original, sac, descartiveis, isto é,podem ser assimiladas a sociedade nacional sem maiores perdas pa-ra a humanidade. Se a projecio etnogrifica tern certamente seus pe-rigos, nao se pode desprezar o risco inverso, o de uma 'perversao ar-queolOgica', sobretudo em urn momento em que os povos nativosvem utilizando sua lignao histOrica corn o passado para justificarsua presensa na cena politica mundial, e assim assegurar seu futuro.

Creio, tambem, que a preciso muito cuidado antes de se atri-buir qualquer aspecto problematic° das sociedades amerindias — viade regra, algo de dificil reducao a explicnOes adaptativas, ou algopoliticamente incorreto segundo os cfinones atuais, como a guerraou o canibalismo aos efeitos avassaladores do Ocidente9. Apesarde seu radicalismo bem-intencionado, esse tipo de explic.nao termi-na por ver os povos indigenas como joguetes da 16gica onipotentedo Estado ado Capital, como des o seriam, por outro lado, da ra-zao ecolOgica ou sociobiolOgica: presos entre a HistOria europela(ou mundial) e a Natureza a.mericana (ou humana), as sociedadesnativas se veem, corn isso, reduzidas a puros reflexos de uma con-tingencia ou de uma necessidade igualmente extrinsecas. E preciso,taivez, recordar que a histOria destes povos nao comecou em 1492(em muitos casos, bem ao contririo, ela terminou all), assim comonao. foi somente a partir daquela data que os indios passaram de umaadaptacao a natureza a uma adaptacio da natureza mesmo que osefeitos da intervencao humana sobre o ambiente amazOnico tenhammudado dramaticamente de escala, e sobretudo de direcio (emgar de estimulando, destruindo a biodiversidade; ver Balie 1993b)corn a implantnao das soberanias estatais. Sobretudo, nao se pode

9. Ver p. 246 supra.

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raciocinar como se, ate aquele momenta, a AtnazOnia indigena fos-se o palco de uma trajetOria evolutiva exclusivamente determinadapela internao entre tecnologia, populacao e ambiente, internao`natural' depois truncada pela irrup* da `hist6ria'.

Nao rests nenhuma chivida que a virzea abrigava, a epoca dainvasao, populacoes bastante densas; que esta regiao é mais propiciaa cultura de cereais e leguminosas; e que as sociedades dali mostra-vam maior centralizacao politica e especializnao econOtnica que osgrupos contemporaneos. E praticamente certo, ainda, que algunsdos grupos atuais sejam descendentes dos povos da virzea, tendofugido das doencas, missionirios e cnadores de escravos internan-do-se nas matas intertluviais. Esti claro, por fim, que virias das (ra-ras) sociedades cnadoras-coletoras contemporaneas foram fat-9a-das a abandonar a agricultura devido a pressties diretas ou indiretasda conquista (Bal.& 1995), e e igualmente correto argumentar queatividades como a guerra aumentaram de intensidade, ou mudaramde sentido, como efeito da invasào europeia (Turner 1992). Mas, senao se pode mais tomar a AmazOnia como cenario dominado exclu-sivamente por pequenas aldeias de cacadores-horticultoras /aliti-rios, tampouco se deve exagerar pelo outro lado, atribuindo umacondi* vestigial, degenerativa e marginal aos povos da terra fir-me. Importa observar, sobretudo, que fenOmenos como a 'regres-sao agricola', ou, mais geralmente, os modos de vida indigenas atuais,nab sac) urn evento evolucionirio, mas o fruto de urn conjunto deescolhas politicas (Rival 1998a), de dee:saes hist6ricas de recusa aassimilacao pelos brancos, escolhas e decisOes que privilegiaramcertos valores (p. ex., a autonomia) em detrimento de outros (p. ex.,o acesso as mercadorias).

Hi, por fim, urn problema intrigante corn a nova visa° de umaAmazOnia dominada por chefaturas agricolas. As evidencias etno-grificas convergem no sugerir: [1] a enorme importancia ideolOgicaconferida a caca nas cosmologias indigenas contemporineas, e issomesmo no caso das sociedades entusiasticamente horticultoras, nu-

merosas na regiao; [2] a generalidade de uma cancel)* das rela-cOes corn a natureza que privilegia as internaes socials e simbOlicascom o mundo animal, e na qual o xamanismo é uma instituicao cen-tral — as semelhancas, quanto a isso, entre as culturas amazOnicas eos povos cacadores da America do Norte e alhures sac. notiveis (Des-cola 1996); [3] a difusao de uma ideologia da prednao ontolOgicacoma regime de constituicao das identidades coletivas (Viveiros deCastro 1993a). Tudo isso parece casar alga mal corn os regimes idea-lOgicos associados a agricultura e/ou a centraliza* politica em ou-tras partes do mundo; e e dificil imaginar que se trate apenas de urnatavismo cognitivo manifestado por sociedades em 'regressao'. Nes-se caso, em Lugar de se avaliar as culturas contemporaneas a partirde um pada() definido pela agricultura intensiva e a centraliza*politica do passado pre-colombiano, talvez seja necessirio repensaras bases culturais e as expressOes sociopoliticas efetivas destas che-faturas antigas a Luz de urn horizonte ainda atual. Alêm disco, se acei-tarmos (cotno é o caso aqui) que o estado de homeostase produtivaevidenciado par Descola para as Achuar é intrinseco a esta socieda-de, nada devendo a qualquer involucao adaptativa pigs-colombiana,e se atentarmos para o quanto ele é semelhante ao que se constataem virias outras sociedades contemporaneas, isso nos obriga a rea-brir a discussao sobre qual foi o tipo, exatamente, de mutnio extra-tecnolOgica que teria levado a emergencia das sociedades da virzea.

Quanta as esperancas de uma "nova sintese" teOrica, o autorse confessa um tantinho cetico. Em que pose a auspiciosa aproxima-cao entre pesquisadores egressos de tradicOes antagOnicas — agoraunidos no desiderata muito atual de transcender as antinomias clis-sicas entre natureza e cultura, histOria e estrutura, economia politi-ca da mudanca e anilise de mOnadas em equilibria cosmolOgico,mentalismo e materialismo etc. —, a dificil nao notar a persistenciade posturas caracteristicas de fases anteriores da disciplina. Assim,por exempla, as teorias do `manejo de recursos' nao deixam de ser,elas prOprias, adaptac8es do panto de vista adaptacionista a um am-

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biente intelectual que favorece os conceitos de hist6ria e de cultura;a critica de Roosevelt (1991b) ao determinismo ecolOgico de Meg-gers nio faz muito mais que transformar fatores inibidores em fato-res estimulantes, mantendo a mesma concepcio reativa das socieda-des indigenas; e as teses de Descola sobre as autolimitacOes histOricasde um regime "animico" ou sobre a homeostase jivaro talvez nãosejam, finalmente, tao distances assim do deslocamento levi-straus-siano do par natureza/sociedade para o piano das cosmologias in-digenas e das ideias do mesmo Levi-Strauss, ou de Clastres, sobre acontensio estrutural que manteve as sociedades amazOnicas lungedo produtivismo, do despotismo e do progressivismo. Talvez sejarealmente este o caso; mas não estou certo de que tal conclusio se-ria epistemologicamente pessimista. Pois é provivel que as perspec-tivas autopoieticas e alopoieticas (Varela 1979) sobre a dicotomianatureza/sociedade sejam descricaes alternativas que se implicammutuamente, e portanto, que qualquer sintese deva comecar por re-conhecer sua necessiria complementaridade.

Capitulo 7

PERSPECTIVISMO E MULTINATURALISMO

NA AMERICA INDIGENA

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Perspectivismo e multinaturalismona America incligena

A relatividade do espaco e do tempo tem sido imagina-da como se dependesse da escolka de um observador.

perfeitamente legitimo incluir o observador, se elefacilita as explicacjes. Masi do corpo do observador

uIprecisarnos, nil° de sua mente.A.N. Whitehead

Assim, a reciprocidade de perspectivas que vi como acaracteris' tica prOpria do pen.samento milky pode ret-vindicar urn dominio de aplicacao muito mas vasto.

C. Levi-Strauss

Introduciol

O terra deste ensaio a aquele aspecto do pensamento amerindio quemanifesta sua "qualidade perspectiva" (Arhem 1993) ou "relativi-dade perspectiva" (Gray 1996): trata-se da concepcio, comum a mui-tos povos do continente, segundo a qual o mundo e habitado por di-ferentes especies de sujeitos ou pessoas, humanas e não-humanas,que o apreendem segundo pontos de vista distintos. Os pressupos-lifFionseqiiéncias dessa ideia sao irredutiveis (como mostrouLima 095: 42-38) ao nosso conceito corrente de relativismo, quea primeira vista parecem evocar. Eles se dispOem, a bem dizer, demodo exatamente ortogonal a oposica'o entre relativismo e uni-.

r. As piginas que seguem tem sua origem em urn diilogo corn Tinia Stolze Lima.A primeira versa() do principal dos artigos aqui refundidos (Viveiros de Castro >

Brincando corn o fot6grafo (Ipixuna, 1981) 347

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versalismo. Tat resistencia do perspectivismo amerindio aos termosde nossos debates epistemolegicos poe sob suspeita a robustez e atransportabilidade das partiseies ontolOgicas que os alimentam.Em particular, como muitos antropOlogos ji concluiram (emborapor outros motivos), a distinciio classica entre Natureza.e_ Culturanio pode ser utilizada para descrever dimensOes ou dominios inter7nos a cosmologias nio-ocidentais sem passar antes por uma criticaetnolOgica rigorosa.

Tal critica, no caso presente, exige a dissociacio e redistribui-cio dos predicados subsumidos nas duos seriesiaradigmatkcas quetradicionalmente se opOem sob os rOtulos de Natureza e_Cultura:universal e particular, objetivo e subjetivo, fisico e moral, fato e va-lor, dado e construido, necessidade e espontaneidade, imanencia e

.0.M.M.•••

transcendencia, corpo e espirito, animalidade e humanidade, e ou-. tros tantos. Esse reembaralhamento das cartas conceituais leva-mea sugerir o termo multinaturalismo para assinalar um dos tracoscontrastivos do pensamento amerindio em rekclio as cosmolow"—gias-_

> 1996c) foi escrita e publicada sincronicamente ao estudo de TAnia sobre o pers-pectivismo juruna, a que remeto o leitor (Lima 1996). 0 ensaio de Latour (1991)sobre a nocao de modernidade foi uma fonte indireta, mu decisiva, de inspirailopara essa primeira versa°. Meses depois de ver publicado o artigo de 1996, li umvelho texto de Fritz Krause (1934 referido em Boelscher 1989: 212 n. to) onde en-

•••• •

contrei ideas curiosamente convergentes corn algumas das aqui expostas; elas se-r8° discutidas em outra oportunidade. A real convergencia ignorada no artigo de1996, entretanto, a com a teoria desenvolvida por Roy Wagner em The invention of

culture, livro que eu lera quinze anos antes (em 1981, anode sua segunda ediclo)

mu apagara de todo da mem6ria, certamente por estar ele acima de minha capaci-dade de compreensão. Ao rell-lo, em 1998, percebi que assimilara alguma coisa,afinal, visto haver reinventado certos passos cruciais do argumento de Wagner (is-

to ficari mais claro no cap. 8 infra). Peter Gow, Aparecida Vilna, Philippe Des-

cola e Michael Houseman contribufram, como sempre, com sugestaes e contend-

rios, em virios estagios da elaboracio do texto. Por fim, os desenvolvimentos emcurso das teses aqui expostas (Viveiros de Castro zoos) devem Is luzes de Bruno

Latour e de Marilyn Strathern muito mais do que a possivel registrar, por ora.

`multiculturalistas' modernas. Enquanto estas se apOiam nacacao mutua entre unicidade da natureza e multiplicidade das cultu-..ras - a primeira garantida pela universalidade objetiva dos corpos eda substancia, a segunda gerada pela particularidade subjetiva dosespiritos e do significado 2 -, a concepcio amerindia suporia, aocontrario, uma unidade do esp. frito e uma diversidade dos corpos.A cultura ou o sujeito seriam aqui a forma do universal; a naturezaou o objeto, a forma do particular.

Essa inversio, talvez demasiado simetrica para ser mais que es-peculativa, deve-se desdobrar em uma interpretacio fenomenologi-camente rica das nocOes cosmolOgicas amerindias, capaz de deter-minar as condicaes de constituicio dos contextos que se poderiamchamar `natureza' e `cultura'. Recombinar, portanto, para em segui-da dessubstancializar, pois as categorias de Natureza e Cultura, nopensam-e-niCaMerindio, nio so nio subsumem os mesmos conteit-dos, como nao possuern o mesmo estatuto de seus analogos ociden-tais; elas nao assinalam regiOes do ser, mas antes configuracOes. -relacionais, perspectivas =Weis, em suma poptos de vista.

Como esti claro, penso que a distincio natureza/cultura deveser criticada, mas nio para concluir que tal coisa nit) existe (ja hacoisas demais que nao existem). 0 "valor sobretudo metodo14gico"que Levi-Strauss (1962b: 327) veio a the atribuir sera, aqui, enten-dido como valor sobretudo comparativo. A florescente inchistria dacritica ao caster ocidentalizante de todo dualismo tern advogado oabandon de nossa heranca intelectual dicottimica; o problema é bemreal, mas as contrapropostas etnologicamente motivadas tern-se re-sumido, ate agora, a desideratos p6s-binirios antes verbais que pro-priamente conceituais. Prefiro, enquanto espero, perspectivizar nos-

2. "Tal e a 16gica de um discurso, comumente conhecido como 'ocidentar, cujofundamento ontol6gico reside em uma separactio dos dominios subjetivo e objeti-

vo, o primeiro concebido como o mundo interior da mente e do significado, o Se-gundo, o mundo exterior da materia e da substancia" (Ingold 199 316).

349348

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sos contrastes, contrastando-os corn as distincOes efetivamente ope-rantes nas cosmologias amerindias.

Perspectivism.o

0 estimulo inicial para esta reflexao foram as numerosas referen-cias, na etnografia amaz6nica, a uma concepcao indigena segun-

. • do a qual a modo como os seres humanos veem os animais e ou-.tras subjetividades que povoam o universo deuses, espiritos,mortos, habitantes de outros niveis cOsmicos, plantas, fenOmenosmeteorolOgicos, acidentes geograficos, objetos e at tefatos —, a pro,fundamente diferente do modo como esses seres veem Os humanose se veem a si mesmos.

Tipicamente, os humanos, em condicOes normals, veem os hu-manos como humanos e os animais como animals; quanta aos espi-ritos, ver estes seres usualmente invisiveis é urn signo seguro de queas icondicOes' nao sao normais. Os animais predadores e os espiri-tos, entretanto, veem os humanos como animais de presa, ao passoque os animais de presa veem os humanos como espiritos ou comaanimais predadores: "0 ser humano se ve a si mesmo coma tal. A

lua, a serpente, o jaguar e a mae da variola o veem, contudo, comaurn tapir ou um pecari, que des matam", anota Baer (1994: 224) so-bre os Machiguenga. Vendo-nos como nao-humanos, 6 a si mesmos.que os animais e espiritos veem como humanos. Eles se apreendemcomo, ou se tornam, antropomorfos quando esti° em suas prOpriascasas ou aldeias, e experimentam seus prOprios habitos e caracteris-ticas sob a especie da cultura: veem seu alimento coma alimento hu-mano (os jaguares veem o sangue como cauim, os mortos veem osgrilos como peixes, os urubus veem os venires da came podre co-ma peixe assado etc.), seus atributos corporais (pelagem, plurnas,garras, bicos etc.) como adornos ou instrumentos culturais, seu sis-tema social como organizado identicamente as instituicOes humanas

(corn chefes, xamas, ritos, regras de casamento etc.). Esse ' yen co-mo' refere-se literalmente a(perceptos; e nao analogicamente a con-ceitos,.ainda que, em alguns casos, a enfasiseja mais no aspecto ca-tegorial que sensorial do fen6meno; de qualquer modo, os xamas,mestres do esquematismo cOsmico (Taussig R es --( el dice19_7: 4_2 .33,dos a comunicar e administrar as perspectivas cruzadas, estao sem-pre al para tornar sensiveis os conceitos ou inteligiveis as intuicaes.

Em suma, os animais sao gente, ou se veem como pessoas. Talconcepcio esta quas--e-simpre associada a ideia de que a forma ma-nifesta de cada especie e urn envoltOrio (uma `roupa') a esconderuma formi iriterna humana, normalmente visivel apenas aos olhos_da prOpria especie ou de certos seres transespecificos, como os xa-mas. ; Essa forma interna é o espirito do animal: uma intencionali-dade ou subjetividade formalmente identica a consciencia humana,materializivel, digamos ass m, em urn esquema corporal humanooculto sob a mascara animal. Teriamos entao, a primeira vista, umadistincao entre uma essencia antropomorfa de tipo espiritual, co-mum aos seres animados, e uma aparencia corporal variavel, carac-teristica de cads especie, mas que nao seria um atributo fixo, e sim. _uma roupa trocavel e descartivel. A nocao de `roupa' 6, corn efeito,uma das expresso es privilegiadas da metamorfise espiritos, mortose xamas que assumem formas animais, bichos que viram outros bi-chos, humanos que sac, inadvertidamente mudados em animaisprocesso onipresente no "mundo altamente transformacional" (Ri-viere 1994) proposto pelas culturas amaz6nicas.4

Essas cancel:0es sao consignadas em virias etnografias sul-americanas, mas foram, via de regra, objeto de registros sucintos, eparecem ser muito desigualmente elaboradas pelas cosmologias em

Quando estio reunidos em suas aldeias na mata, p. ex., os animals despem asroupas e assumem sua figura humana. Em outros casos, a roupa seria como quetransparente aos olhos da prOpria espicie e dos xamas humanes.

A norrio de `roupas corporal foi registrada, entre outros, para os Makuna (Arhem>

350 3S1

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pauta.5 Elas se acham tambern, e all corn urn valor talvez ainda mais

pregnante, nas culturas da zona setentrional da America do None e

da Asia, e mais raramente entre alguns cacadores-coletores tropicais

de outros continentes.6 Na America do Sul, as sociedades do noroeste

amaz6nico mostram os desenvolvimentos mais completos (ver Arhem

1993 e 1996, em quem a caracterizacio que precede foi largamente

inspirada; Reichel-Dolmatoff 1985; S. Hugh-Jones 1996a). Mas

as etnografias de Vilna (1992) sobre o canibalismo wari' e de Lima

(1995) sobre a epistemologia juruna que trazem as contribuicaes mais

diretamente afins ao presente trabalho, por ligarem a questio dostos de vista nio-humanos e da natureza relacional das categprias cos,

molOgicas ao quadro mais amplo das manifestacOes de uma econo7

mia geral da alteridade (Viveiros de Castro 1993a, 1996a).7

> 1993), OS Yagua (Chaumeil 1983: 125-27), os Piro (Gow com.pess.), os Trio

(Riviire 1994) on OS Ako-Xinguanos (Gregor 1 977: 322; Viveiros de Castro 1977:

182). Ela a provavelmente panamericana, tendo urn grande rendimento, p. ex.,na cosmologia kwakiutl (Goldman 1975: 62-63, t24-25,18.2-86,227-28).

CL, para alguns exemplos: Baer 1994: 102, 119-224 (Machiguenga); Grenand

1980: 42 (Wayipi); Jara 1996: 68-73 (Akuriy6); Osborn 199o: 151 (trwa); Vivei-

ros de Castro 1992a: 68 (A.raweti); Weiss 1969: 158 (Campa).Cf., p. ex., Saladin d'Anglure 199o, Fienup-Riordan 1994 (Esquim6); Nelson

1983, McDonnell 1984 (Koyukon, Kaska); Tanner 1979, Scott 1989, Brightman

1993 (Cree); Hallowell 196o (Ojibwa); Goldman 1975 (Kwakiutl); Guedon 1984(Tsimshian); Boelscher 1989 (Haida). Para a Siberia, cf. Hamayon 1990. Cf., en-

firn, Howell 1984, 1996 e Karim 1981, para os Chewong e Ma'Betisik da Malfisia.

0 estudo de Howell 1984 foi um dos primeiros a se demorar sobre o tema. Con-

cepOes semelhantes tambim foram registradas em uma cosmologia melanesia,

a dos Kaluli (Schieftlin 1976: cap. 5).

7. Cf. caps. 2 e 4, supra. As noct3es de perspectiva e panto de vista tern urn papel

decisivo em textos que escrevi anteriormente, mas seu foco de aplicacao era ali,

principalmente, a dinimica intra-humana, em particular a canibalismo tupi, e seu

significado quase sempre analitico e abstrato (Viveiros de Castro 1992a: 248-51,

256-59; I 996a [cap. 4 supraD. Os estudos de Vilna e, sobretudo, ode Lima mostra-

ram-me que era possivei generalizar essas nocaes. (N.B. A mencio a flock de >

352

Alguns esclarecimentos iniciais sao necessarios. Em primeirolugar, o perspectivismo raramente se aplica em extend° a todos os

animais (alem de englobar outros seres); ele parece incidir mais fre-qiientemente sobre especies como os grandes predadores e carnicei-ros, tais o jaguar, a sucuri, os urubus ou a harpia, bem como sobre

as presas tipicas dos humanos, tais o pecan, os macacos, os peixes,os veados ou a anta. Pois uma das dimens8es basicas, talvez mesmoa dimensio constitutiva, das inversOes perspectivas diz respeito aosestatutos relativos e relacianais_de.pre.dador.e.presa.! A ontologiaamazOnica da predacio é urn contexto pragmatico e te6rico altamen-te propicio ao perspectivismo.

Em segundo lugar, a 'personitude' e a 'perspectividade' — a ca-pacidade de ocupar urn ponto de vista,— sio uma questio de grau ede situacio, mais que propriedades diacriticas fixas desta ou daque-.la especie. Alguns nio-humanos atualizam essas potencialidades demodo mais completo que outros; certos deles, alias, manifestam-nascorn uma intensidade superior a de nossa prOpria especie, e, nestesentido, sio 'mais pessoas' que os humanos (Hallowell 196o: 69).Alem disso, a questa° possui uma qualidade a posteriori essencial. Apossibilidade de que urn ser ate end° insignificante revele-se comourn agente prosopom6rfico capaz de afetar os negOcios humanos es-

ti sempre aberta; a experiencia pessoal, prOpria ou alheia, é mais de-cisiva que qualquer dogma cosmolOgico substantivo.

Nem sempre e o caso, alem disso, que almas ou subjetividades

sejam atribuidas aos representantes individuais, empiricos, das es-pecies vivas; ha exemplos de cosmologias que negam a todos os ani-

mais pOs-miticos a capacidade de consciencia, ou algum outro pre-

> perspectiva nas linhas finais do cap. I do presente livro nao constava das ver-slies originais dos artigos all fundidos).

8. Cf. Renard-Casevitz 1991: ro-11,29-31; Vilaca 1992: 49-51; Arhem 1993:11-12;Howell 1996: 133.

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\r

dicado espiritual. 9 Entretanto, a nocão de espiritos`donos' dos ani-

mais (`Mies da cage, `Mestres dos queixadas' etc.) 6, como se sabe,

de enorme clifusio no continence. Esses espiritos-mestres, invariavel-mente dotados de uma intencionalidade analoga a humana, funcio-nam coma hipOstases das especies animais a que esti° associados,

criando urn campo intersubjetivo humano-animal mesmo ali onde

os animals empiricos nio sio espiritualizados. Acrescente-se que adistincao entre os animais vistas sob seu aspecto-alma e os espiritos-mestres das especies nem sempre 6 clara ou pertinente (Alexiades1999: 194); de resto, a sempre possivel que aquilo que, ao toparmoscorn ele na mata, parecia ser apenas urn bicho, revele-se coma o dis-farce de urn espirito de natureza completamente diferente.

Recordemos, por fim e sobretudo, que, se ha uma noc5o vir-..

tualmente universal no pensamento amerindio, a aquela de um esta-

1.\. do originario de indiferenciaclo entre as humanos e os animais, des-

crito pela mitologia:•

to que é um mitol — Se voce perguntasse a um Indio americano, émuito provcivel que etc respondesse: é uma histeria do tempo em queos homens e os animals ainda nao se distinguiam. Etta definicao meparece rnuito projunela (Levi-Strauss & Eribon 1988: 193).

As narrativas miticas az) povoadas de seres cuja forma, name e corn-portamento misturam inextricavelmente atributos humanos e nao-humanos, em um contexto comum de intercomunicabilidade identi-co ao que define o mundo intra-humano atual. 0 perspectivismoamerindio conhece ent5o no mito um lugar, geometric° por assimdizer, onde a diferenca entre os pontos de vista é ao mesmo tempoanulada e exacerbada. Nesse discurso absoluto, cada especie de seraparece aos outros seres como aparece para si mesma — como hu-

9. Overing 1985: 2.49--ss; £986: 245-46; Viveiros de Castro 1992a: 73-74; Baer 1994: 89.

354

Cc'alias, 6 afirmado por algumas culturas amazemicas (Guss 1989: 52). A Co.6

(Discurso sem sujeito, disse Levi-Strauss do mito (1964: 19); discur-so 's6 sujeito', poderiamo almente dizer, delta vez falando naoda enunciacto—darscurso, mas. de seu enunciado. Ponto de fuga 0,- -universal do perspectivismo, o mito fala de urn estado do ser ondeos corpos e os nomei; as almas e as acmes, o eu e a outro se inter-

_ penetram, mergulhados em urn mesmo meio pre-subjetivo e pre-objetivo. cujo fim, justamente, a mitologia se propoe a contar.

Tal fim — tambem no sentido de finalidade 6, coma sabemos,aquela diferenciacio entre cultura e natureza analisada na monumen-tal tetralogia de Levi-Strauss 1966, 1967,1970. Este processo,potem, e o ponto foi relativamente pouco notado, nlo fala de uma di-ferenciacio do human a partir do animal, como e o caso em nossamitologia evolucionista moderna. A condicao original comum aos hu-manos e animais nao i a animalidade, mas a humanidade. A grande

mitica mostra memos a cultura se distinguindo da natureza quea natureza se afastando da cultura: as mitos contam como os animalsperderam os atributos herdados ou mantidos pelos humanos (Levi-Strauss 1985: 14, 19o; Brightman 1993: 40, 160). Os humanos sao aque-les que continuaram iguais a si mesmos: os animais sao ex-humanos,e nao os humanos ex-animais

to. A noceio de que o sujeito — os homens, as indios, meu grupo que distingue eo termo historicamente estivel da distincio entre o e o 'outro' — os animais,os brancos, os outros indios — aparece tanto no caso da diferenciasio interespeci-fica quanto no da separacSo intra-especifica, como se pork ver nos diferentes mi-tos ametindios de origem dos Brancos (cf., p. ex., DaMatta 1970,1973; S. Hugh-Jones 1988; Levi-Strauss 1991; cf. tambem cap. 3 supra, e Viveiros de Castro moo).Os outros foram o que somos, e nso, como para nos, s8o o que fomos. E assim sepercebe quit) pertinente pode ser a nocao de "sociedades frias": a hist6ria existesim, mas a algo que s6 acontece aos outros, ou por causa deles.

mane e entretanto age coma se ja manifestando Ala natureza dis-tintiva e definitive de animal, planta ou espirito. De certa forma,todos os personagens que povoam a mitologia sio xam5s, o que

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Em algumas etnografias amazOnicas, encontra-se claramenteformulada a ideia de que a humanidade é a materia do plenum pri-mordial, ou a forma originiria de virtualmente tudo, nao apenas dosanimals:

A mitologia dos Campa e, em larga medida, a histhria de como, um aum, os Campa primordiais foram irreversivelmente transformados notprimeiros representantes de varias espicies de animals e plantas, bemcoma de corps celestes ou de acidentes geogrdficos. [...] 4 desenvolvi- •mento do universo, portanto, foi urn process° de diversificafdo, .e a lus

manidade i a subsuincia primeva a partir da qua! emergiram muitas,sendo todas as categorias de seres e coisas no universo; os Campa de ho-je sdo os descendentes dos Campa ancestrais que escaparam d transfar-macdo (Weiss 1971: 169-70).

Assim, se nossa antropologia popular ye a humanidade como ergui-da sobre alicerces animals, normalmente ocultos pela cultura — ten,do outrora sido 'completamente' animals, permanecemos, `no fun-do', animals o pensamento indigena conclui ao contririo que,tendo outrora sido humans, os animals e outros seres do cosmoscontinuam a ser humans, rnesmo que de modo nao-evidente.

Em suma, para os amerindios "0 referencial co/num-a iodos osseres da natureia nao e o homem enquanto especie, mas a hurnaLIEdade enquanto condicao" (Descola 1986: Izo). Esta distincao entrea especie e a condi* humanas deve ser sublinhada." Ela tern umaconexao evidente corn a ideia das roupas animals a esconder uma`essencia' humano-espiritual comum, e corn o problema do sentidogeral do perspectivismo.

A distincão a analoga as de Wagner (1981:133) ou Ingold (1994), entre a hu-

manidade como especie (ou humankind e como ideal moral (ou humani0.

Xamanismo

0 perspectivismo amerindio esta associado a duas caracteristicas re-correntes na AmazOnia: a valorizacio simb6lica da caca, e a impor-tancia do xamanismo. 0 No que respeita a caca, sublinhe-se que setrata de uma ressonfincia simb6lica, nao de uma dependencia eco16-gica: horticultores aplicados como os Tukano ou os Juruna — quealem disso sio principalmente pescadores — nao diferem muito dosgrandes cacadores do Canada e Alasca, quanto ao peso cosmolOgi-co conferido a predacao animal (venatOria ou halieutica), a subjeti-vacio espiritual dos animals, e a teoria de que o universo é povoadode intencionalidades extra-humanas dotadas de perspectivas pro-prias." Nesse sentido, a espiritualizacao das plantas, meteoros e ar-tefatos talvez pudesse ser vista como secundiria ou derivada dianteda espirittialiliWdOs animals: o animal parece ser o protOtipo ex-.tra-humano do Outro, mantendo uma relacao privilegiada corn ou-tras figuras prototipicis da alteridade, como Os afins."

Ideologia de cacadores, esta é tambem e sobretudo uma ideolo-gia de xamas. A tuna° de que os nao-humanos atuais possuetn um la-do prosopom6rfico invisivel é um pressuposto fundamental de viriasdimenseies da pritica indigena; mas ela vem ao primeiro piano em umcontexto particular, o xamanismo. 0 xamanismo amazOnico pode ser

A relacao entre o xamanismo e a caca a uma questa() classica. Cf. Chaumeil1983: 231-32 e Crocker 1985: 17-25,

A importancia da relacao venatOrio-xamanistica corn o mundo animal, em

sociedades cuja economia 6 baseada na horticultura e na pesca mais que na ca-ca, suscita problemas interessantes para a histOtia cultural da AmazOnia (Viveirosde Castro 1996b— cf. cap. 6 supra).14. Cf. Erikson 1984: 110-12; Descola 1986: 317-30; Arhem 1996. Registre-se, en-

tretanto, que nas culturas da AmazOnia ocidental, em especial naquelas que fazemuse de alucinOgenos, a personificacio das plantas parece ser ao menos tao salientequanto a dos animais, e que, em areas como o Alto Xingu, a espiritualizacao dosartefatos desempenha urn grande papel cosmolOgico.

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definido como a habilidade manifesta por certos individuos de cruzardeliberadamente as barreiras corporals e adotar a perspectiva de sub-jetividades alo-especificas, de modo a administrar as relacOes entreestas e os humanos. Venda os seres nao-humans corno estes se véem(como humans), os xamas sio capazes de assumir o papel de inter-locutores ativos no dialog° transespecifico; sobretudo, des sao capa-zes de voltar para contar a histhria, algo que os leigos dificilmente po-dem fa.zer. 0 encontro ou o intercambio de perspectivasi urn processoperigoso, e uma arte politica — uma diplomacia. Se o "multiculturalis-mo' ocidental e o relativismo como politica ptiblica, o perspectivismoxamanico amerindio é o multinaturalismo como politica cOsmica.

0 xamanismo a um modo de agir que implica um modo de co-nhecer, ou antes, um ecru) ideal de conhecimento. Tal ideal é, sob\tidos aspectos, o oposto polar da epistemologia objetivista favore-cida pela modernidade ocidental. Nesta Ultima, a categoria do obje-to fornece o telos: conhecer a objetivar; é poder distinguir no objetoo que the a intrinseco do que pertence ao sujeito cognoscente, e que,como tal, foi indevida e/ou inevitavelmente projetado no objeto.Conhecer, assim, e dessubjetivar, explicitar a parte do sujeito pre-sente no objeto, de modo a reduzi-la a urn minima ideal. Os sujei-tos, tanto quanta os objetos, sio vistos como resultantes de proces-sos de objetivacio: o sujeito se constitui ou reconhece a si mesmonos objetos que produz, e se conhece objetivamente quando conse-gue se ver `de fora', como um 'isso'. Nosso jogo epistemolOgicose chama objetivacio; o que nit) foi objetivado permanece irreal eabstrato. A forma do Outro ago*.

0 xamanismo amerindio parece guiado pelo ideal inverso. Co-nhecer a personificar, tomar o ponto de vista daquilo que deve serconhecido daquilo, ou antes, daquele; pois o conhecimento xami-nico visa urn 'algo' que é um 'alguem i , urn outro sujeito ou agente.A forma do Outro é a pessoa.is

15. Observo que esse modo de exprimir o contraste nio é apenas semelhante a >

Para usar um vocabulario em yoga, eu diria que a personifica-cao ou subjetivacão xamanicas refletem uma propensio a universali-zar a "atitude intencional" destacada por Dennett (1978) e outros fi-16sofos modernos da mente (on filOsofos da mente moderna). Sendomais preciso — vista que os indios sa'o perfeitamente capazes de ado-tar as atitudes "fisica" e "funcional" (op.cit.) em sua vida cotidianadiria que estamos diante de urn ideal epistemolOgico que, longe debuscar reduzir a `intencionalidade ambiente' a zero a fim de atingiruma representacio absolutamente objetiva do mundo, toma a decisiooposta: o conhecimento verdadeiro visa a revelacio de urn maximade intencionalidade, por via de urn processo de "abducao de agenda"(Gell 1998) sistemitico e deliberado. Eu disse acima que o xamanis-mo era uma artepok'fica. 0 que estou dizendo, agora, é que ele a umaarte politics.'" Pois a boa interpretacio xamanica é aquela que conse-gue ver calla evento como sendo, em verdade, uma acao, uma expres-sâo de estados ou predicados intencionais de algum agente (id. ibid.:z6-t8). 0 sucesso interpretativo é diretamente proportional a ordemde intencionalidiai que se consegue atribuir ao objeto ou noema."Um ente ou urn estado de coisas que nao se presta a subjetivacio, ou

> celebre oposicao entre `dom. e `mercadoria'. Entendo que se trata do mesmo con-traste, formulado enn termos nio-economicistas: "se, em urns economia mercan-til, as coisas e as pessoas assumem a forma social da coisa, entio em uma econo-

mia do dom elas assumem a forma social da pessoa" (Strathern 1988: 134; cf.

Gregory 1982: 41).t6. A definicao teOrico-antropolUgica da 'arm' como envolvendo o processo deabduclo de ag'incia esti magistralmente exposta por Alfred Gell em Art and agency

(1998).17. Estou me referindo aqui ao conceito de Dennett sobre a n-ordinalidade dos sis-temas intencionais. Um sistema intencional de segunda ordem é aquele onde o

observador atribui nio apenas crencas, desejos e outras intencOes ao objeto (pri-meira ordem), mas tarribêm crencas etc. a respeita de outras crencas etc. A test cog-

nitivista mais aceita sustenta que apenas o Ramo sapiens exibe intencionalidade de

ordem igual ou superior a dois. Observe-se que meu principio xamanistico >

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seja, a determinacio de sua relaclo social corn aquele que conhece, 6xamanisticamente insignificante — a um residuo epistemico, um 'fatorimpessoal' resistente ao conhecimento precise. Nossa epistemologiaobjetivista, escusado dizer, toma o rumo oposto: ela considera a ati-tude intencional do senso-comum como uma mera fleck) cOmoda, al-go que adotamos quando o comportamento do objeto-alvo a compli-

cado demais para ser decomposto em processes fisicos elementares.Uma explicacão cientifica exaustiva do mundo deve poder reduzir to-da gib a uma cadeia de eventos causais, e estes a interact es material-mente densas (nada de facia' a distancia).

Em suma, se no mundo naturalista da modernidade urn sujeitoé urn objeto insuficientemente analisado, a convencio interpretativaamerindia segue o principio inverso: urn objeto um sujeito

...PIP ••• • ....I., 0•n•••n• • 41••••••.*

pletamente interpretado. Aqui, 6 precise saber personificar, porque.O.P. • . . •

6Esciso personificar para saber. 0 objeto da interpretacio e a con-tra-interpretacio do objeto." Pois este deve, ou ser expandido ateatingir sua forma intencional plena de espirito, de animal em suaface humana ou, no minimo, ter sua relasio corn um sujeito de-

> de labducao de um maxima de agincia' vai de encontro, evidentemente, aos dog-mas da psicologia fisicalista: "Os psicOlogos tim freqiientemente recorrido ao prin-cipio conhecido pelo nome de 'canon de parcim6nia de Lloyd Morgan', que podeser visto como urn caso particular da navalha de Occam. Esse principio reza quese deve atribuir a um organismo o minim° de inteligencia, ou consciincia, ou ra-cionalidade suficientes para dar coma de seu comportamento" (Dennett op.cit.:274). Com efeito, o chocalho do xama a um instrumento de tipo inteirainente di-ferente da navalha de Occam; esta pode servir para escrever artigos de lOgica, masnio é muito boa, p. ex., para recuperar almas perdidas.:8. Como observa Marilyn Strathern, a prop6sito de um regime epistemolOgicosemelhante ao amerindio: 71E....sta] convenciorequer que os objetos de interprets-;ao — humanos ou nio — sejarn entendidos como outras pessoas; corn efeito, o pr6-

..prio ato de interpretacio pressup6e a persoiiitudclperiii sendo interpretado. 0 que se encontra, assim, ao se fazer interpretasOes, são sem-pre contra-interpretacOes..." (1999: 2)9).

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monstrada, isto 6, ser determinado como algo que existe "na vizi-nhanca" de um agente (Gell op.cit.). No que respeita a esta segundaopcio, a ideia de que os agentes nio-humans percebem-se a si mes-mos e a seu comportamento sob a forma da cultura humana desem-penha urn papel crucial. A traducio da 'cultura' para os mundos das• - .•subjetividades extra-humanas tem como corolirio a redefinicio devarios eventos e objetos como sendo indices a partir dos••••• .

Ataisaajemia social pode ser abduzida. 0 caso mais comum 6 atransformacio de algo que, para os humans, 6 um mero fato bruto,em urn artefato ou comportamento altamente civilizados, do pontode vista de outra especie: o que chamamos `sangue' 6 a `cerveja' dojaguar, o que temos per urn barreiro lamacento, as antas tern por umagrande casa ceremonial, e assim por diante. Os artefatos possuemesta ontologia interessantemente ambigua: sio objetos, mas apon-tarn necessariamente para urn sujeito, pois sio como vies congela-das, encarnasbes materiais de uma intencionalidade não-material(Gell 1998: 16-18, 67). E assim, ourAuf,_ J.Eharnam de inatureza' po-de bem sera `cultura' dos outros. Eis ai uma lick) que a antropolo-gia poderia aproveitar."

Animism° NA- 17 %, try!) 341

0 leitor tera advertido que meu Iperspectivismo' evoca a !loci° de`animismo', recentemente recuperada por Deicola (1992, 1996) pa-ra designar um niodo de articulacao das series natural e social queseria o simetrico e inverso do totemismo. Afirmando que toda con-ceitualizacio dos nio-humanos a sempre referida ao dominio social,Descola distingue tees modos de "objetivacio da natureza": o tote-misms once as diferencas entre as especies naturais sio utilizadaspara organizar logicamente a ordem interna a sociedade, isto 6, on-

19. Wagner (1981) foi um dos poucos que soube faze-lo.

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de a relacio entre natureza e cultura é de tipo meta(ric© e marcadapela descontinuidade intra- e inter-serial; o animism°, onde as "ca-tegorias elementares da vida social" organizam as relac8es entre oshurnanos e as especies naturais, definindo assim uma continuidadede tipo sociomOrfico entre natureza e cultura, fundada na atribui-cao de "disposicoes humanas e caracteristicas sociais aos seres natu-rais" (id. 1996: 87-88); e o naturalism°, tipico das cosmoloplasosi- _.dentais que sup8e uma dualidade ontolOgica entre natureza, dominioda necessidade, e cultura, dominio da espontaneidade, regiOes sepa-radas por uma descontinuidade metonlmica. 0 "modo animico" se-ria caracteristico das sociedades onde o animal é "foco estrategicode objetivacio da natureza e de sua socializacio" (id. 1992: rI5), co-mo na America indigena, reinando soberano naquelas morfologiassociais desprovidas de segmentacio interna elaborada. Mas ele po-de se apresentar em coexisténcia ou cornbinacio corn o totemismo,ali onde tais segmentacOes existem, como no casocifororo e seudualism° aroe bope (Crocker 1985).

A teoria de Descola é mais um exemplo da insatisfacao generaliza-da corn a enfase unilateral na metifora, no totemismo e na to ica

-classificataria que marcaria a imagem levi-straussiana do pensa-_mento selvagem. Tal insatisfacio suscitouvirias tentativas recen-tes de exploracio da face oculta da lua estruturalista, que buscavamresgatar o sentido radical de conceitos como "participacio" ou "ani-mismo", afastados pelo intelectualismo de Levi-Strauss." Nio obs-

20. Para ficarmos no ambito americanista, recordem-se, entre outros: a reCusa dovilegio da metifora por Overing (1985), em favor de um literalism° relativista

que parece se apoiar na nocio de crenca; a teoria da sinedoque dialitica como an-terior e superior a anal-41i metafOrica, proposta por Turner (t991b), autor que,como outros especialistas (Seeger 1981; Crocker 1985), tern procurado contestaras interpretacOes do dualismo natureza/cultura dos Je e Bororo em termos de umaoposicao estatica, privativa e discreta; a conceito de "dualismo triadic° dual" ou >

tante, esti claro que muitos das proposicetes de Descola (como eleseria o primeiro a admitir) ji esti° presentee na obra desse autor.Assim, as "categorias elementares de estruturasio da vida social"que organizariam as relavIes entre humanos e nao-humans do es-sencialmente, nos casos amazOnicos discutidos por Descola, as ca-tegorias de parentesco, e em particular as categorias da consangtili-nidade e da afinidade. Ora, em pensamento seivagem le-se aobservacio que ji citei alhures (cap. 2 supra):

Entre as populacaes onde as classificafaes totimicas e as especia-lizacaes funcionais rim um rerulimento muito rcdurido, isto quart-do nao estao completamente ausentes, as trocas matrimonial: po-dem fornecer um modelo diretamente aplicdvel a mediacao danatureta e da cultura (Levi-Strauss 1962b: 170).

Isso a uma prefiguracio concisa do que muitos emOgrafos vierama escrever, mais tarde, sobre o papel da afinidade como operadorcosmolOgico na AmazOnia. Ao sugerir, outrossim, a distribuiciocomplementar desse modelo de troca entre natureza e cultura e dossistemas totemicos, Levi-Strauss parece estar visando algo muitosemelhante ao modelo animico aqui discutido. Outra convergen-cia: Descola menciona os Bororo como exemplo de coexistencia en-tre animismo e totemismo; mas poderia ter citado tambem o casodos Ojibwa, onde a coabitacio dos sistemas totem e manido (Levi-Strauss 1962a: 25-33), que serviu de matriz para a oposicio geral

> de "dualismo dinamico" de Peter Roe (t99o), que o autor estima ser uma carac-teristica distintiva da arte e do pensamento amazOnicos (o que certamente seriaabonado por Levi-Strauss: cf. cap. 8 infra); ou a retommjave fiz (Viveiros deCastro 1992a) do contraste entre totemismo e sacrificio a luz do conceito deleu-ziano de devir, que procura dar coma da centralidade dos processor de predacaoontolOgica nas cosmologias tupi, bem como do miter diretamente social (e naoespecularmente clasifficatOrio) da interacao das ordens humana e extra-humanas.

2% Para uma discussio conjunti dos pares totemismo/sacrificio e aroel bpe, cf.

Viveiros de Castro 1991: 88, 9 t n. t 1.

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entre totemismo e sacrificio (id. 1962b: 29S-302), pode ser direta-mente interpretada no quadro da distincio totemismaanimismo.21

Vou concentrar meu comentirio no contraste entre animismo e na-turalism°, pois ele 6 urn born ponto de partida para a apreendo da di:ferenca caracteristica do perspectivismo amerindio. Tomo o contras-te em sentido ligeiramente diferente do original, pois penso que adescricão do naturalism° ntoclernoexclusivamente em termos de"dualism° onto16 .a.lz° incompleta,. Quanto ao totem ismo, eleme parece um fenenneno heterogineo, antes classificatOrio que onto-_ ._. lOgico: nio 6 um sistema de relaciks entre natureza e cultura comoos outros dois modos, mas de correlac5es puramente logical

Fiquemosssim, por ora, com o animismo e o naturalism°.0 animigno3ode ser definido como uma ontologia que pos-

tula o caster social das relacOes entre as series humana e nio-hu-.. • .mana: o intervalo entre natureza e sociedade 6 ele prOprio social. 0naturalism° esti fundado no axioma inverso: as relitc8es entre so-ciedade e natureza sao elas prOprias naturals. Cain efeito, setici. .do animico a distinclo naiiireza/cultura a interim ao mundo social,pois humanos e animals acham-se imersos no mesmo meio sock,-cOsmico (e neste sentido a natureza 6 parte de uma socialidade en-_

globante), na ontologia naturalista a mesma distinclo é interna na-tureza (e neste sentido a sociedade humana 6 um feria/nen° naturalentre outros). 0 animismo tem a sociedade como polo rao-marca-do, o naturalism°, a natureza: esses p6los funcionam respectiva econtrastivamente como a dimensao do universal* cadapodo. Ani-mism° e naturalism sio, portanto, estruturas assimetricas e meto-nimicas (o que os distingue do totemismo, estrutura metafOrica e

22. Digo que essas estruturas sao assimetricas porque, no caso do naturalistexempin, a nosio de natureza nao necessita da nocao de cultura para ser definida,_mas a reciproca nio 6 verdidena. Em outras palavras, em nossa ontologia a >

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Em nossa ontologia naturalista, a interface sociedade/nature- 1"za 6 natural: os humanos sao organismos como os outros, corpos-objetos em interaslo `ecolOgica' com outros corpos e forcas, todosregulados pelas leis necessirias da biologia e da fisica; as `forcas pro-dutivas' aplicam as forcas naturals. RelacOes sociais, isto 6, relacOescontratuais ou instituidas entre sujeitos, so podem existir no interiorda sociedade humana. Mas, e este 6 o problema do naturalismo —qui° `nio-naturals' s5o essas relaclies? Dada a universalidade da na-tureza, o estatuto do mundo humano e social 6 profundamente ins-tivel, e, como mostra nossa tradicao, perpetuamente oscilante entreomonismo naturalista (de que a sociobiologia ou a psicologia evo-lucioniria sao dois dos avatares atuais) e o dualismo ontolcgi na-tureza/cultura (de que o culturalisrno ou a antropologia simbOlicasio algumas das expressOes contemporineas). 23 A afirmacio desteUltimo dualism° e seus correlatos (corpo/mente, razio pura/raziopritica etc.), prim, s6 faz reforcar o miter de referencial ultimoda nocao de Natureza, ao se revelar descendente em linha direta daoposicio teolOgica entre esta e a noc5o de Sobrenatureza deetimologia transparente. Pois a Cultura e o nome modern do Es-

recorde-se a distincio entre as Naturivissenschafien e as Geis-

teswissenrcha—un , ou pelo menos o nome do compromisso incertoentre a Natureza e a Graca. Do lado do animismo, seriamos tenta-dos a dizer que a instabilidade esta no p6lo oposto: o problema aqui

> interface natureza/sociedade é natural porque a distincio ela prOpria 6 vista co-

mo construida, e assim, subrdinada (cf. Searle 1995:227: "Nio po-

deria haver uma °pica° entre cultura e biologia, porque se houvesse, a biologia

ganharia sempre"). Nas ontologias amerindias, ao contririo, a dita interface 6 so-

cial porque a distincio é vista como 'natural', i.e, dada. Aqui, e a categoria da na-

tureza que exige a definicao previa da cultura. (Para o contraste entre o `dado' e o

`inato', cf. Wagner 1981, e sua aphcacio no cap. 8 infra.)23. Cf. Strathern 1980 e Latour 1991, para essa instabilidade; em Malik 2000 acha-

uma boa exposicio popular da tend° entre monismo e dualism na consciencia

moderna.

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eqiiipolente).22