luiz murta: 80 anos

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De 0 a 80 em 66 páginas Oito décadas de memórias do Ten. Luiz Murta livro 12/14/04 14:40 Page 1

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Livro com histórias dos 80 anos de Luiz Antero Murta

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De 0 a 80 em 66 páginasOito décadas de memórias do Ten. Luiz Murta

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De 0 a 80 em 66 páginasOito décadas de memórias do Ten. Luiz Murta

Gerson Murta

Gino Murta

Gustavo Murta

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Gerson, Gino, Gustavo.De 0 a 80 em 66 páginas

Oito décadas de memórias do Ten. Luiz Murta.Belo Horizonte, 2005.

Catálogo sistemático1. Biografia. / Militarismo.

Projeto gráfico e diagramaçãoRodrigo Romaneli

Gustavo Radicchi MurtaBiografias e ghostwritings

Rua Vereador Orlando Bonfim, 168, PlanaltoBelo Horizonte – MG – 31.720-490

[email protected] (31) 3494-1310

(31) 9117-245

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Um livro sobre a vida de uma pessoa é como uma gota d’água, se compara-do ao oceano do conjunto e da intensidade dos acontecimentos que lhe permearama existência. Mas o importante é que quem provar dessa água – o leitor – reconheçaque ela veio daquele oceano que existe e que se procurou espelhar. E quem ler aspáginas desta publicação e conhecer Luiz Antero Murta há de reconhecer nelas asubstância vital do oceano de acontecimentos que permearam a existência dele atéentão.

Os fatos relatados a seguir são fragmentos de experiências riquíssimas, faís-cas de histórias luminosas que, agrupadas, formam um panorama do brilho da vidadela até um determinado momento. Assim, esse cenário pode ajudar a quem o lê afazer uma idéia, muito próxima da realidade, das experiências mágicas que só essapessoa conhece de verdade.

Por mais livros que se escrevessem, jamais se conseguiria esgotar empalavras a existência de uma pessoa – ainda mais quando ela completa oito décadasde vida. Este é como se fosse um mapa e cada acontecimento, uma parada em umtrajeto muitas vezes penoso, mas muitas vezes mágico.

* * *

Pai,

Queríamos muito lhe fazer esta surpresa. Este livro é o presente de seus qua-tro filhos, que te amam muito, pelos seus 80 janeiros. As próximas linhas trazem fra-ses muito, muito próximas da transcrição das fitas, que é um jeito que achamos deretratar melhor alguns fatos de sua vida, preservando o seu jeito de contar histórias.Fomos fiéis às gravações para retratar, com a maior naturalidade e desembaraçopossíveis, seu percurso de vencedor. De superação de desventuras. De um homemque jamais conheceu a preguiça nem viu qualquer espécie de desistência.

Sempre comentamos – assim como o fazem várias pessoas que conhece-mos – que o senhor está muito fortão, inteirão, saudável e bem-disposto, graças aDeus. Cuida da piscina da casa e de alguns pares de passarinhos – seu hobbyfavorito – com zelo incrível. Até corre e carrega peso se for preciso e anda com pos-tura impecavelmente ereta, como se contasse vinte ou trinta anos de idade a menos.Que muitos anos de vida venham, pai. E outros 80, por que não? Feliz aniversário,oitentão!

Gerson, Gino e Gustavo.

Belo Horizonte, segunda-feira, 03 de janeiro de 2005.

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Às inesquecíveis Maria e Girselle, nossa mãe e irmã, respectivamente. Saudades sem fim.

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Meus avós

O camarada e a “duja-na-queda”

Meu pai e meu tio (José Murta Sobrinho e Carlindo Januário Murta, respecti-vamente) contavam que o pai deles era muito legal, pois dele nunca levaram sequerum beliscão (algo bastante raro para a época e que fazia jus ao nome “João doEspírito Santo”). A mãe e a avó deles, por suas vezes, batiam bastante, por elas e porele (veja anexo 1).

Só que um dia foi tanta a pressão delas, para que ele desse uns cascudosnos meninos, que ele concordou e levou papai e tio Carlindo para um quarto, tran-cando a porta. Mas os enrolou em um colchão, dizendo para gritarem cada vez mais,e começou a bater com o correão na espuma. Quando os meninos já estavam quaseroucos de tanto berro, as mulheres acharam que estava demais e arrombaram aporta. Acharam que meu avô, que nunca tinha batido nos filhos, tinha de excedido.E o viram ainda batendo no colchão, com os meninos rindo e gritando ao mesmotempo. Foi aquela desmoralização. Coitado do João do Espírito Santo!

O casamento desses meus avós foi em 1895. Ela era ainda menina, 13 ou 14anos. O casamento era assim. O pessoal chegou e falou que ela ia casar com o SeuJoão. Imagine como era a inocência das pessoas: ela achou que casar era o que elavia dos pais, ele saindo pra trabalhar, ela cuidando da casa, lavando, passando, umchamando o outro de senhor e senhora. Ela achou que era isso.

Depois do casamento simples, foram embora. Mas na noite de núpcias, elaviu o marido nu e achou aquilo o maior absurdo. Do jeito que estava, de camisola, elasaiu correndo para a casa dos pais, que moravam perto. Foi uma luta para convencê-la que era aquilo mesmo. Mas a inocência continuou. Ela começou, algum tempodepois, a sentir algumas coisas estranhas, queixando-se à mãe de que a comida nãoparava no estômago, vivia fazendo vômitos. No meu tempo já era assim, filho tinhamedo de perguntar as coisas para pai e mãe, imagina bem antes. Aí a mãe dela disseque aquilo tudo era porque ela ia ter um filho. Ela não sabia por onde o menino ia saire continuou enrolada mesmo quando a mãe explicou.

Absurdo: sutiãs na vitrineA minha avó, certa vez, voltando do trabalho, chegou em casa revoltada,

revoltadíssima. Ela tinha visto, na vitrine de uma loja do centro da cidade (BH), umbusto feminino (sem cabeça e braços) com um sutiã, expondo uma peça dessas.Achou aquilo um absurdo. Isso, na década de 40. Coitada! Se ela estivesse vivendohoje, no século XXI, o escândalo seria terrível, porque hoje a situação é de verdadeiracalamidade. Muitas mulheres estão andando, verdadeiramente, semi-nuas. Imaginao que Dona Jovita sentiria...

Lembro-me de outras palavras engraçadas de minha avó. O primeiro vigáriodo bairro da Concórdia, onde residíamos, chamava-se Padre Pedro. Era mil novecen-tos e trinta e poucos. Uma vez ele foi convidado para fazer uma viagem à Roma.Então, ele já tinha viajado, e estava aquela discussão lá, entre nós e outros vizinhos,

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se o pároco tinha ido ou não direto de Belo Horizonte para o Vaticano. E vovó pôs fim à discussão: “Não teimem, Padre Pedro foi pro Gio!”, repreen-

deu Dona Jovita. “Agora, do Gio ele vai jeto pra Joma!” É que ela tinha dificuldade depronunciar o “R”. As palavras com essa letra, ele dizia como se fosse com “J” ou “G”.“Não teimem, Padre Pedro foi pro Rio (de Janeiro)!”, traduzindo a fala dela. “Agora,do Rio ele vai reto pra Roma!”

Em 1969, minha avó Jovita morreu. Senti bastante, porque era a única avóque conheci. Nos últimos anos, no asilo, na rua Pirapetinga na Serra, ela alternavamomentos de lucidez e momentos em que perdia a memória. Às vezes perguntavaquem eu era e com quem tinha me casado. Um dia, quando fui para uma visita,lamentou que eu não tivesse chegado mais cedo. “Ô, rapaz, seu pai acabou de sair”,disse ela. Depois dizia que ele iria dar uma passada por lá. “Não vai embora aindanão, porque se seu pai souber que você esteve aqui e não pegou você aqui vai ficarcom um pesar danado”, pedia minha avó. Só que o meu pai, filho dela, tinha morri-do bem antes daquilo, coitada.

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Meus pais e irmãos

Futebol e taioba: palavras proibidas

Falando de outra cidade religiosa, meus pais, assim como eu sou, eram na-turais de Mariana, a 1ª capital de Minas Gerais. Começaram o namoro desde crian-cinhas mesmo, ainda na escola primária (1ª à 4ª série). Eles moravam na mesma rua,uma casa em frente à outra. Iam para a escola e voltavam juntos. Meu pai nunca teveoutra namorada. Minha mãe nunca teve outro namorado. E se casaram lá mesmo, emMariana. Nos transferimos para Belo Horizonte em 1926, quando eu contava um anode idade.

Fomos sete irmãos, mas somente quatro escaparam – antigamente, a taxa demortalidade infantil era muito alta. A 1ª, Iolanda, que eu não conheci e era a maisvelha – nasceu antes de Dilico – e dois outros, que nasceram depois de mim, já nacapital: Justino Guadalupe e José Clemente. Ambos antes de minhas outras irmãs,Jaci (em 1931) e Lourdinha (1934).

Naquele tempo tinham, em Minas, o costume de colocar o segundo nome dacriança de acordo com o santo do dia. É por isso que tenho o Antero no nome, nasci

em 3 de janeiro, dia desse santo,padroeiro dos bibliotecários (coincidên-cia: Luiz hoje é o responsável voluntáriopela biblioteca da AssociaçãoBeneficente dos Militares das ForçasArmadas – Abemifa, de onde é sócio-fundador). Mas era dia de SantaGenoveva, também. Teria esse segundonome se fosse mulher. Por causa daque-la tradição, Dilico tem o Martinho nonome.

Engraçado, ele e Lourdinha têm osolhos muito azuis – puxaram minha avómaterna, Ana Zeferina, filha de por-tugueses – mas a cor dos olhos deminha irmã caçula sempre foi a mesma.A dos de Dilico, não. Foi mudando como tempo. De pequeno, tinha o apelido deolho-de-gato: era um verde-água-do-mar, claro mesmo. Depois foi ficandoescuro, como um veludo de mesa desinuca. Aí foi clareando para um azulbem claro, quase cinza. Quando virouadulto, ficou um azul forte, já em BeloHorizonte.

Luiz (E) e Dilico, com os pais, Seu Juquitae D. Eliza

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A canecadaPoucos meses antes da mudança para a capital, eu ainda não andava e a

minha mãe lavava as vasilhas, as louças, em uma bica d’água. Ela me punha senta-do, com algumas batatinhas fritas e alguns bagos de feijão cozido (que eu gostavamuito) em um cuité ao meu alcance, para eu ir comendo (e me distraindo) enquantoela trabalhava. Meu irmão, Dilico (Jandir), três anos mais velho que eu, ia pondo asvasilhas já lavadas para secar.

E ele viu que os franguinhos que minha mãe criava estavam comendo aminha comida. Para espantá-los, ele pegou um caneco (uma lata de azeite abertacom uma asa colocada do lado) que ia colocar para secar e atirou na direção dasaves. Mas ele acertou mesmo foi a minha testa, fazendo um grande rombo. Eu nuncatinha visto sangue. Tenho e cicatriz funda aqui até hoje, marcando a fronte.

Daquela época, pouco antes de nos mudarmos para a Capital, eu me lembroperfeitamente dos acontecimentos. Meu pai (da então Guarda Civil) chegava do tra-balho e ia logo me carregando e meu irmão levava uma toalha e sabão para papai sebanhar no ribeirão próximo de casa.Ele me deixava sentado (ainda nãosabia andar, aliás, demorei a aprender)e meu irmão depois já trazia de volta atoalha usada e eu voltava pra dentrode casa nos braços do meu pai. Melembro disso perfeitamente.

Dois anos depois disso, jáaqui em Belo Horizonte, nasceu meuirmão José Clemente, que faleceu, edois anos depois, nasceu Justino, queinfelizmente também veio a falecer.Lembro-me com perfeição também dosepultamento deles. O transporte doscorpos era feito por carruagens, nãoera em viatura automotora, não. Paracrianças, eram pintadas de azul ebranco, com dois cavalinhos brancos.Nós morávamos no alto do (bairro)Colégio Batista e eu lembro muito bemda chegada delas.

O coiceAinda residindo nesse bairro,

tinha um comerciante, que tambémtinha muitos quartinhos para alugar,chamado José Cirilo Guedes, apelida-do de Seu Juquinha Guedes. Tinhatambém um senhor chamado Bernar- Luiz e Dilico (D).

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do, que cuidava da caixa d’água ali do alto (do Colégio Batista). E, montado em umabestinha, ele (Seu Juquinha) vinha a uma vendinha toda noite, tomar a sua pinguin-ha. E amarrava o animalzinho, muito mansinho, ali na porta.

Certa noite, meu irmão Dilico vinha brincando. O pneu que ele vinha rodan-do soltou da mão e bateu na bestinha. Ela se assustou e deu um coice, acertandoDilico. Abriu uma brecha na cabeça dele (ô gente que machucava a cabeça, era,canecada, era coice que tomava...). E o pessoal naquela época, os vizinhos, cada umvinha com uma receita de cura. Uns com ervas como gervão ou assa-peixe, outroscom bálsamo, para pôr na ferida, junto com sal.

“Não, pra estancar o sangue, o bom pra isso é picumã”, sugeriu uma senho-ra (um método pouco científico, com menos assepsia ainda). Picumã eram aquelasteias pretas de aranha, que escureciam com a fumaça, porque ficavam em cima dofogão à lenha. E encheram aquela cratera na cabeça de Dilico com o tal do picumã.Bom, acabou resolvendo, porque hoje ele também só tem a cicatriz. Não teve pro-blemas maiores, não.

Para esse, para minhas irmãs e para mim, meus pais deixaram exemplos deausteridade, de trabalho, de honestidade. Eram, no entanto, muito rigorosos, muitodisciplinadores. Meu pai, ele fez carreira na Guarda Civil, chegou a ser fiscal de turma,depois de ser guarda e fiscal rondante, comissionado a um cargo elevado. Só não foipromovido mais porque não tinha vaga. Mas ganhava como um cargo superior a fis-cal de turma.

Por exemplo, ele detestava futebol. Não deixava a gente jogar e nem assis-tir. A gente tinha que jogar escondido, aproveitando as horas em que ele estava tra-balhando. Já tínhamos mudado do alto do Colégio Batista para a rua Jundiaí, esquinade Pitangui, nas imediações de rua Formiga e rua Angico, onde hoje é bairro SãoCristóvão. Mas nós íamos longe. Voltávamos (Dilico e eu) para fazer as compras lá noSeu Juquinha Guedes. As compras, muito pesadas, a gente punha num balaio e ocolocava na cabeça.

Ali estava bom. Mas até chegar em casa, o peso parece que ia aumentando,o pescoço ia doendo. A gente não podia parar e descer o balaio, porque ele caia.Como tinha muito pedregulho no chão e a gente andava descalço, tropeçava, porquenão dava direito para olhar para baixo. Chegava em casa com os dedos arrebenta-dos, sangrando, suados, cansados. “Isso é o fôôtibol!”, censurava meu pai. “É o raio(com muita ênfase no “R”, mas não trocando-o por “G” ou “J”, com a mãe dele) dofôôtibol!”. Só rindo!

E ele, apesar de não gostar de fôôtibol, fez parte da primeira Diretoria de umclube que existe até hoje, o Pitangui Esporte Clube. O campo dele ficava onde tinhasido uma pedreira, perto da rua Diamantina. E a gente não podia assistir nem aosjogos do time dele, nem aos do Vila Concórdia, outro time de várzea lá de perto.

“Olha o pastel”Jogar e assistir não podia, mas vender as coisas para a torcida podia. Como

a coisa em casa estava muito apertada, minha mãe fazia uns pastéis para a gentevender na várzea. Certo dia o time do nosso bairro, o Vila Concórdia, foi jogar com o

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Imperial, no Alto do Colégio Batista (para onde eu fui), enquanto outros times estavamjogando no campo do Concórdia (para onde foi Dilico).

À certa altura, eu já tinha vendido todos os pastéis e tinha os bolsos cheiosde moedas. Já podia ser só torcedor. Então, o Concórdia fez mais um gol bonito, eucomecei a pular, comecei a pular, e nem vi que as moedas caíram do bolso. Depoisque terminou o jogo, eu vim para casa alegre – o meu time tinha vencido fora de casa– rodando o balaio, todo tranqüilo.

Falei que tinha vendido tudo, mas, na hora de prestar contas, tinha só umameia dúzia de moedas nos bolsos. Eu disse que não sabia, que estava ali. E tive quecontar a verdade, que tinha ficado para assistir ao resto do jogo, tinha pulado paracomemorar um gol e o dinheiro só podia ter caído assim. Mas na hora que acabei devender eu tinha que ter vindo embora. Não podia nem assistir. Resultado: levei umasurra tremenda. Mas valeu a pena porque assisti a um pouquinho do futebol.

Outro motivo para surra era falar palavrão, pois fomos criados com muitaausteridade. Não tinha brincadeira, não. Tinha um casal de italianos, donos de umahorta muito grande. Cada dia a minha mãe mandava ir lá comprar verdura. Às vezes,comprava repolho, às vezes, couve. Mas naquele dia ela queria fazer outra verdura:taioba. Então, me mandou ir comprar, mas com a recomendação. “Luizinho, vá, masnão fala taioba, não, porque isso é palavrão”, aconselhou minha mãe. “Chega lá e falaque você quer um maço de taiá”. Bom, eu obedeci. Cheguei lá, fiz o pedido, mas ositalianos não sabiam o que era taiá. Eu tive que apontar: é aquilo lá que eu quero. Ositalianos riram. “Isso é taioba, menino”, disseram.

O pescadorSão umas coisas que a gente lembra da infância. Outras de que me lembro

muito bem: os casos que contava o meu tio Francisco Alves de Almeida, o ChicoCapeta, o homem mais mentiroso do mundo. Ele era o irmão mais velho de minhamãe. Era um indivíduo que não parava. Era andarilho. Nasceu em Mariana (MG), masresidia na cidade de São Paulo. Ele viajava muito e se fixou lá ainda rapazinho. Mas,periodicamente, quando ficava em dificuldades financeiras, ele corria para a nossacasa, em Belo Horizonte. Mas quando arrumava uns serviços pra fazer, ele fazia umaseconomias e voltava para São Paulo.

Ele era muito papudo. Quem o escutasse falar, muitas vezes poderia pensarque ele era um alto-engenheiro, a não ser pelas muitas coisas erradas que dispara-va. Ele era semi-analfabeto, teve poucas oportunidades de estudar. Falava que nóstínhamos que conhecer a capital paulista de qualquer jeito. O qualquer jeito era enfa-tizado pelo fato de Belo Horizonte ser, na época, uma cidade-menina mesmo (nadécada de 30, a capital mineira contava apenas com cerca de 40 anos de existência– em 2005, a capital mineira completa seus 108 anos, com cerca de dois milhões e200 mil habitantes).

Chico Capeta vivia falando o nome de um dos maiores empresários paulistasda época. Ele falava que lá se entrava em uma rua, estava lá escrito Matarazzo S.A.Tomava uma avenida e lia Matarazzo S.A. Chegava numa praça e lá estava MatarazzoS.A. “E vocês sabem o que quer dizer S.A.?”, nos perguntava. A gente não sabia.

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Nem ele. “S.A. quer dizer sociedade anômica”, completava meu tio. Alguns aviões em São Paulo, se acordo com Chico Capeta, tinham asas

enormes. E comparava: elas iam como se fosse do bairro da Concórdia (Zona Lestede BH) a Nova Lima (cidade ao Sul da Região Metropolitana). Nem menino conseguiaacreditar. Na hora do aperto, ele sempre corria para Belo Horizonte – a roça, comoele falava, carregando na pronúncia do “R” – e para a minha casa. Mas, depois queo negócio desmoronou lá em casa, com a separação do meu pai e depois com adoença da minha mãe, ele nunca mais apareceu. Tem muita gente ingrata mesmo. Dáraiva.

Brigas fraternaisE por falar em raiva, eu e Dilico brigávamos muito quando pequenos. O pau

quebrava mesmo. Hoje, não, nos damos muito, muito bem. Mas naquele tempo odanado tinha a mania de me passar a perna. Naquelas ocasiões, minha mãe puxavaa orelha dele, chamava-o de Alfredo – irmão dela, meu tio, com fama ter adquiridomuitos imóveis em Mariana usando esperteza pura.

A gente ia longe pegar, com uma peneira em lagoas, piabas, lambarizinhos.Eu é que ia nos lugares mais fundos, porque ele tinha um medo danado de água. Masna hora de dividir os peixes nos dois aquários, ele sempre separava os maiores parasi. Um dia, então, eu esperei ele ir para a escola eu peguei um canivetinho dele – quetinha forma de peixe – e arranquei os olhos dos peixes.

Quando ele chegou, encontrou os peixes todos boiando. “Ai, mamãe, vemver o que o Luiz fez com os meus peixes. Minha mãe veio ver. “Foi tu, mardito dosinfernos?”, perguntou-me ela. “Por isso que eu vi os bichinhos esbraforidos, batendono vidro”. Puxa, que couro eu levei! Surra de ripa. Quando ela cansou da madeira,pegou uns fios encapados com tecidos. Pegou uns retalhos daqueles, dobrou emdois e bateu nas minhas pernas. Nem pude ir à escola naquele dia. Sinto dor até hoje.

De outra vez, mandei nele uma tesoura aberta. Ela foi rodando e pimba! Umaponta ficou fincada nas costelas dele. Parecia até vingança pela canecada que ele medeu. Mas não foi, não.

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Os Radicchi

O jeitão italiano de minha 2ª família

Os avós de minha esposa eram italianos de Cocenza, na Calábria (Sul daItália). No início do século passado, vieram trabalhar na lavoura brasileira (veja anexo1). Mas, como havia crise de maquinistas na época para maria-fumaça, puseramAntônio Radicchi como maquinista, profissão que ele exercia na Velha Bota. Aprimeira viagem que ele fez era BH-Ponte Nova. Mas, na passagem para Mariana, otrem passava na beirada do abismo, uma viagem muito perigosa. Antônio ficou apa-vorado. Chegando ao destino, a calabrês afirmou categoricamente que não voltariapor aqueles trilhos nem guiando a máquina nem como passageiro.

O filho dele, o meu sogro, Seu Amadeu, eu conheci muito pouco, só decumprimentar. Quando Maria e eu oficializamos o namoro, o primeiro encontro – namissa das 9h na igrejinha de Nª Sª das Graças, na Concórdia – ele faleceu. Ela e eumorávamos no mesmo bairro, íamos juntos no ônibus – ela para o trabalho numescritório, eu para o quartel. Nos encontramos naquela manhã de domingo e eu fiqueide ir à casa dela à noite. Mas quando Maria chegou em casa, o pai tinha morrido, deinfarto, dormindo – o mesmo veio a acontecer com ela 48 anos depois.

Gustavo (de mãos dadas com a mãe), Luiz, Gino, Gerson (fundo) e Girselle (de braçodado com a avó, D. Esther), com parte da família Radicchi.

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Era um homem muito, muito trabalhador.Só morreu em casa porque era domingo. Se nãofosse, teria morrido no trabalho, na Serraria SouzaPinto. Ele era um pai bravo, tudo indica que simpa-tizou comigo. Fiquei sabendo por vizinhos que elefaria muito gosto no namoro. Até estimulava a filha.“O rapaz é sargento da Aeronáutica, Maria”, disseSeu Amadeu. “Fiquei sabendo que ele quer umcompromisso sério”.

Lembro-me de alguns casos engraçadosque Maria contava do pai dela. Na tradicional Missado Galo, no Natal, a família Radicchi ia à igreja,menos ele, que ficava esperando em casa. Certavez, a ceia já estava preparada à moda italiana,com destaque para o salame Perrela e para o vinhotinto Barbera. Mas quando a esposa e os filhosvoltaram da igreja, acharam só um toquinho, umrabicó de mortadela amarrado com barbante, e alguns dedos de vinho no garrafão.O resto da família reclamou que ele tinha bebido quase tudo e que o salame tinha idotodo embora. “Vocês demoraram muito”, argumentou Seu Amadeu. “Ficaram comen-do galo lá na missa, eu fiquei comendo meu salame aqui”.

O cruzeirense dos cruzeirensesEle era um palestrino (torcedor do Palestra Itália de Minas, hoje Cruzeiro)

doente. Quando o time batia, ele dava dinheiro para os filhos irem ao cinema e fica-va mais permissivo. “Hoje pode chegar um pouco mais tarde”, avisava, com cama-radagem. Por outro lado, quando o Palestra perdia, ele segurava os bolsos. “Como oPalestra apanhou, ninguém sai de casa hoje”. Então, os filhos ficaram palestrinos – edepois, cruzeirenses – também doentes. “Cruzeiro é bom até no bolso”, brincava,referindo-se à então moeda do país.

Teve uma vez que o time de origem italiana foi jogar contra o Vila Nova, emNova Lima (MG). Seu Amadeu foi ao Alçapão do Bonfim, com a bengala que sempreusava, não por necessidade, mas, sim, por elegância. E a bengala sumiu. Anosdepois, um amigo dele foi almoçar na casa de Seu Amadeu e, lembrando de muitoscasos, comentou o dia em que o palestrino quebrou a bengala na torcida vilanovense.“Ah, Amadeu, então é por isso que a bengala sumiu, né?”, perguntou D. Esther, mu-lher dele. Ela dava falta da bengala e ele falava que não sabia onde o objeto estava,que devia ter esquecido em algum lugar.

Assim, era muito brincalhão, o Seu Amadeu. Às vezes as irmãs dele estavamcozinhando e ele chegava e desamarrava o laço do avental delas sem que vissem. Opano caía e elas só viam minutos depois, saindo desesperadas para procurar,enquanto ele gargalhava, satisfeito.

Todas as três filhas dele (Maria, Célia e Ivone) eram muito bonitas. Assim,sempre chegava um gaiato conhecido chamando Seu Amadeu de sogro. “É, eu tenho

Maria.

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mesmo aqui uma panela boa pra cozinharmacaco”, respondia ele, conciliando muitobem uma ponta de ciúme com bom humor.

Isso ele também fazia para justificaro porquê de não deixar as filhas dormiremna casa de primos, quando iam a algumbaile. D. Esther insistia, dizia que era acasa de um dos irmãos dele ou dela, queelas iam dormir com as primas, mas ohomem ficava irredutível. “Vão dormir comas primas, mas lá não tem só primas, não,tem primos também”, justificava. “Nãogosto de ruça-ruça nem com primo nemcom padre”. Uma vez umas senhorasforam pedir para as meninas dele seremFilhas de Maria, na igreja. “Não, elas já sãofilhas de Esther, obrigado”, despachou.

O filho de italianos era diabético ehipertenso, mas, cabeça-dura, recusava-se a fazer regimes. Chegava a comer meiadúzia de ovos de uma vez. “Não mandeininguém colocar açúcar no meu sangue”,dava de ombros, quando alguém o cen-surava. “Quem pôs que tire”. E quando

uma das filhas começava a cantar, acompanhando uma canção no rádio, ele mostra-va sua insatisfação. “Ô coitada, ela está querendo cantar e o rádio está atrapalhan-do”, dizia. “Espera aí que eu desligo”.

Já D.Esther era menos brincalhona. Um casoengraçado é o dos abacates. Ela era louca com fru-tas. As favoritas, ela comia várias de cada vez. Enuma noite ela mandou nada menos que três aba-cates compridos inteiros. Dois de meus filhos,Gerson e Gino, resolveram brincar com ela.Começaram a falar, fingindo que falavam sério, quecomer muita comida pesada à noite pode fazer muitomal à saúde e que tinha gente que até perdia a vidacom isso. E D.Esther, que dormia por volta de 21h30– provavelmente lembrando que abacate tem muitagordura – ficou com os olhos abertos até, 23h,23h30, meia-noite...

Maria.

Gustavo.

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Infância

Brincadeiras de gente simples

Nós éramos muito pobres e tínhamos que fazer uso de nossa imaginaçãopara fazermos nossos próprios brinquedos, as próprias recreações. Uma delas eraum pneu de caminhão. Um sentava dentro dele e se encolhia todo ali e o outro iarodando o pneu. Nós morávamos numa rua em declive e tinha um platô e nós ficáva-mos rodando (literalmente) por ali.

Um dia, depois que eu já havia rodado Dilico bastante, chegou a minha vez.Mas Dilico perdeu o controle do pneu, que desceu à toda a rua Jundiaí, atravessou arua Pitangui. E eu, sem parar, gritando para ele parar, ele que já tinha ficado para trás.O pneu já estava quicando e voando. Tinha um terreno baldio com um grandedeclive, onde o pessoal jogava lixo, louças e garrafas quebradas, tudo ali. E aPrefeitura estava fazendo um aterramento. Foi a minha sorte. O pneu bateu ali eamorteceu (hoje daria até manchete para campanha política para reeleição municipal:“Obra da Prefeitura salva menino”).

Nas férias escolares, a diversão era soltar papagaio e correr atrás de um quearrebentasse a linha, como nas festas juninas a gente corria atrás de balões. E nissoa gente ia longe. Muitas vezes fomos da Concórdia até (o bairro de) Carlos Prates,atravessando a Pedreira Prado Lopes e o Santo André. E muitas vezes, por isso, agente saía de dia e voltava já de noite. E aí era um couro mesmo, porque a permis-são para brincar era ali só nas imediações da casa. Os pais mandavam nos chamar,para nos recolher, e não sabiam da gente, ninguém dava notícia. E a gente dormiacom o lombo quente mesmo.

Já o nosso lazer domingueiro consistia em fazer pescarias e pequenascaçadas pela região do Ribeirão do Onça e pelos riachos nas imediações de BeloHorizonte, pelo bairro São Gabriel – que se chamava Gorduras. Para isso, tínhamosque atravessar um pasto enorme (de uma fazenda), que hoje é o belo bairro daCidade Nova (o pasto era dos Silveira, bisavós da moça que viria a ser minha nora,Consuelo, esposa de Gino, meu filho). Passávamos o dia pescando e caçando pás-saros de pequeno porte e coelhos, quando eu era menino.

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Infância roubada

Me virando aos 14 anos

Tive uma infância muito dura, uma adolescência pior ainda, que se acentuoumais com o falecimento de minha mãe, em 1939, quando eu contava apenas 14 anosde idade. Foi muito difícil, porque meu pai se amasiou com uma mulher que não meaceitou. Minhas duas irmãs menores, sim, mas eu não. Aí tive que começar aenfrentar a vida sozinho.

Por não aceitar que a mulher do meu pai espancasse as minhas duas irmãspequenas, com ela fazia quase todos os dias, eu saí de casa por duas vezes. Naprimeira, eu fui morar na Pedreira Prado Lopes. Aluguei um cubículo, um comodo-zinho pra dormir feito de tábua de compensado e papelão, porque eu não tinha co-ragem de dormir na rua, na via pública, debaixo de marquise ou em banco de jardim.Então, o dinheiro que eu ganhava capinando quintal, encerando o piso de casas –naquele tempo não tinha enceradeira elétrica, era com escovão – eu pagava ali pradormir. Mas daquela primeira vez meu pai me localizou e me levou de volta pra casa. Da segunda vez, também foi porque a mu-lher estava batendo nas meninas. Então fuiintervir, mas ela passou a mão em um por-rete e disse que faria o mesmo comigo.“Não, comigo a senhora não faz isso, não”,eu disse.

E tentei sair para a rua, mas ela foiatrás de mim, no meu encalço. Eu falei comela para parar (de vir atrás) porque eu nãoiria aceitar ser espancado. Ela não meescutou. Bom, tinha um monte de tijolosamontoados. Eu então peguei um. “Se asenhora der mais um passo, eu vou lhe ati-rar esse tijolo”, adverti. Aí ela escutou.“Joga, se você é homem”, desafiou amadrasta, dando as costas como alvo. E eujoguei. Atingi um dos rins. Ela desmontou.Tive que sair sem saber para onde ir.

Mas como eu trabalhava para oadvogado Dr. Hugo Pinheiro Soares, eupensei “vou pra lá passar a noite” – eu tinhaa chave, eu que abria e fechava o escritório.Mas, por coincidência, meu patrão tinha idoao cinema – não me lembro se foi o CineGlória, mais chique e próximo à Praça Sete,ou se foi ao Avenida, mais à frente umpouquinho, também na Afonso Pena, para Luiz (E) e oamigo Hernani.

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quem vem da Rodoviária. Tinha ido com a esposa dele, D. Neide Martins Soares, etambém com o sócio dele, Dr. Vicente de Paula Santos.

Quando terminou a projeção, eles resolveram passar no escritório para pegaruns documentos. E quando abriram a porta, ficaram muito surpresos ao me veremdormindo. Eu estava de costas para a porta, no sofá, fingindo que estava dormindo,porque tinha escutado as vozes chegando. Fizeram alguns segundos de silêncio, queforam quebrados pelo Dr. Vicente. “Que sujeitinho ordinário, hein?”, disse o advoga-do sócio de meu chefe. Mas este o repreendeu imediatamente. “Não, espera lá, nãopense assim, não, eu conheço o Luiz melhor que você”, defendeu-me Dr. Hugo.“Amanhã eu converso com ele para saber o porquê de ele dormir aqui”.

No dia seguinte, Dr. Hugo quis saber o motivo de eu ter passado a noite lá.Eu contei o caso da tijolada certeira. “Então está bem, você não tem mais ambientepara ficar lá”, disse meu patrão. “Eu vou lá na Guarda Civil pedir ao seu pai para queele permita, você mora lá em casa”. Eles eram um casal sem filhos e me acolherame eu passei três anos muito bem abrigado, um grande amparo. Devo isso a eles, essaacolhida tão generosa, tão humana.

RespeitoE por falar em humanidade, hoje, quando eu contemplo essa sociedade tão

agressiva, essa insegurança em que nós vivemos, pessoas sendo assaltadas emplena luz do dia, me assombro. Hoje carros são roubados, mesmo tendo sofisticadossistemas de segurança. Naquele tempo (década de 40), não. Os automóveis não ti-nham nem chave nem fechadura, era apenas a maçaneta. D. Hugo tinha um modelode Chevrolet apelidado pelo povo de guarda-louças, porque era quadradinho.

O pessoal respeitava tanto que o carro ficava aberto, estacionado em plenaavenida Afonso Pena, embaixo das árvores ficus que iam da Praça Sete até aTiradentes. Dr. Hugo ia ao Fórum pela manhã e a gente tinha um combinado: às 11h,se ele não tivesse passado no escritório, eu já podia descer, que a gente ia pra casaalmoçar. E, quando eu chegava primeiro ao carro, encontrava-o aberto, muitas vezescom livros de direito dentro, guarda-chuva, compras. Ficava tudo ali, ninguém mexia.Hoje não se pode deixar. Levam até o carro. De maneira que piorou muito essaquestão de segurança em Belo Horizonte. Naquele tempo, ninguém tinha coragemsequer de passar o dedo, escrevendo em um carro empoeirado. As pessoas tinhammedo não era de polícia, não. Era de o dono chegar e chamar a atenção.

Naqueles três anos que eu morei com aquela caridosa família, uma das boascoisas era que eu tinha condição de assistir ao futebol. E não mais em campos devárzea, mas em gramados profissionais. Por sorte, Dr. Hugo – ao contrário de meupai – gostava do esporte, torcia para o América (que tinha a camisa vermelha e nãopreta e verde como hoje) e não perdia jogos desse time. Mas tinha um probleminha:eu era (e sou) atleticano. Quando era América e Atlético (no campo do América, ondehoje é o hipermercado Extra, em Santa Efigênia) e este meu time fazia um gol, eu meesquecia de que ele era americano e estávamos na arquibancada da torcida verme-lha e vibrava muito. Quando eu assustava, estava o Dr. Hugo me olhando com unsolho brancos, censurando-me.

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Mas antes de trabalhar com Dr. Hugo, na minha infância, fiz vários trabalhos,como entrega de marmitas a operários, auxiliar de açougueiro, entregador de ternosde uma tinturaria. Eu fiquei conhecendo o Sr. Oscar Nicolai, dono de uma livraria naavenida Afonso Pena. Ele estava pretendendo comprar uma casa que eu conhecia,que ficava perto de onde eu morava, e me pediu algumas informações sobre a cons-trução. E então ele me perguntou se eu não gostaria de estudar. “Gostaria, mas nãotenho condições, não tenho nem emprego”, respondi. Foi então que ele me apresen-tou ao Dr. Hugo, que precisava de um ajudante.

Mas nos meus empregos civis, como o dinheiro era muito curto, não tinhamuita condição de namorar. Eu também não era um freqüentador tão assíduo daZona Boêmia. Naquela década de 40, essa região era muito tumultuada por dois per-sonagens: uma mulher, chamada Maria-Tomba-Homem, e um travesti, o Cintura-Fina. Eram criadores de caso e muitas vezes eram necessárias duas composições derádio-patrulha para subjugá-los. Os dois eram bastante violentos, bastante difíceis deserem dominados.

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Militarismo

Amor febril pelo Brasil

Depois de trabalhar com Dr. Hugo, eu fazia as entregas menores, de bicicle-ta, trabalhando para um armazém-atacadista – meu último emprego civil – chamadoSoares e Cia. Ltda. Eu fui o primeiro e depois entraram dois outros ciclistas, para aju-dar. Depois disso, me alistei na Força Aérea, fui incorporado na então Base Aérea deBelo Horizonte (hoje CIAAR), onde fiz carreira. Mas também sou muito identificadocom o Exército Brasileiro, onde fiz três cursos, na área da Infantaria. A minha incor-poração foi no dia 1º de julho de 1944, dia em que a unidade estava comemorandoseu 8º aniversário. Eu já tinha me alistado no Exército no ano anterior. Antes da minhaconvocação para o Exército foi aberto o voluntariado para a Base Aérea.

Naquela época, as instalações eram bastante precárias, consistindo apenasnos hangares, com alojamentos em suas laterais para os soldados antigos, sargen-tos, e também enfermaria, refeitórios. Mas para nós, recrutas daquele ano, foi cedi-do um hangar destinado ao Aeroclube de Belo Horizonte – que funcionava lá naPampulha e tinha sido transferido para o Progresso. Como era inverno, nós sofremosbastante com o frio em um lugar muito amplo, com o telhado muito elevado e semforro.

Mas isso contrastava comas disputas acaloradas nosesportes que praticava noshorários de educação física, naBase (Aérea). Eram dois esportesque eu pra-ticava mais: vôlei efutebol. Eu era levantador e ponta-direita, respectivamente. E fomospioneiros em muita coisa. Aquelesaque que um jogador aqui doBrasil dava, mandando a bola lápra cima (o Jornada nas Estrelas,do Bernard), um colega – o 1º sar-gento - mecânico - de - vôo NiloGiorni – já fazia na década de 50.Ninguém pegava aquilo, vindodaquela altura: espirrava, ia prafora. E olha que naquele tempo sepodia amortecer a bola com asmãos – eu usava isso, era umarecepção extraordinária, pra rece-ber cortada era comigo.

E no futebol, muitos anos Luiz com uniforme de gala da FAB.

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depois, o Yustrick apareceu comaquele negócio da cavadinha(avançar pela ponta direita edepois em direção à meta). Masmuito antes eu já fazia isso, porinstinto. É tanto que eu poderia tersido o maior goleador, mas euachava que a minha função eracorrer e dar condição aos ata-cantes de fa-zerem os gols. Comoeu corria muito e nem os compa-nheiros de ataque nem os adver-sários conseguiam me acompa-nhar, eu ficava esperando. OYustrick, portanto, apenas oficiali-zou a cavadinha, mas eu já faziaaquilo há muito tempo.

As surpresas do BrigadeiroAinda sobre os tempos de Base Aérea da Pampulha, presenciei episódios

memoráveis. Alguns dos mais marcantes foram as visitas-surpresa do brigadeiroEduardo Gomes à minha unidade, em Belo Horizonte. Ele chegava sozinho com oavião C-47, sem co-piloto, sem mecânico.

E era um Deus-nos-acuda, porque ele dispensava formalidades, dispensavatudo, chegava quase na hora do almoço. O comandante o convidava para ir aorefeitório dos oficiais, mas o brigadeiro sempre recusava. E entrava na fila dos solda-dos, pegava a bandeja e ia comer junto com eles, acompanhado pelo comandante epor vários oficiais. Não admitia nem ser servido à mesa por um taifeiro. Queria vercomo estava o rancho dos homens e normalmente entrava na fila de novo, repetia arefeição, bom-garfo que era. Certa vez, elogiou a comida, mas fez uma crítica. “Sólamento que aqui, nesta unidade, em Minas Gerais, terra da banana e do leite, nãotenha nenhum dos dois na mesa dos soldados”. Depois disso, a gente até cansavade tomar leite e comer banana na hora das refeições. Devia ser medo do homemvoltar e ter que fazer a mesma crítica.

Já a minha atividade como sargento de infantaria era muito dura, porque euera monitor: dava instrução para duas turmas de recrutas, dois cursos de cabo e umcurso de sargento. Isso anualmente e sem prejuízo da escala de serviço interna e aexterna (patrulha mista). Lembro-me que em certo ano, a Aeronáutica incorporou umgrande número de soldados, não só para a própria Base Aérea, mas como tambémpara Lagoa Santa, para a Escola Preparatória de Cadetes do Ar, de Barbacena, e oQG da 3ª Zona Aérea. Vieram alguns sargentos dessas unidades e o comandanteainda solicitou ao 12RI (12º Regimento de Infantaria) que cedesse alguns sargentostambém para nos ajudar na instrução.

E numa daquelas noites – era uma sexta-feira – em um alojamento superlota-

Luiz (D) e companheiros em acampamento militar em BH.

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do, os soldados simplesmente decidiram não dormir: resolveram fazer uma badernageneralizada. Eu fui solicitado várias vezes para comparecer lá e, como era o meusetor, eu não quis pedir a intervenção do oficial de dia, porque depois que ele fosselá, eles não fariam mais coisa alguma: o problema era comigo. Queriam desmoralizaro sargento.

Como eles só interrompiam por alguns instantes, mas não me atendiam, con-tinuando a bagunça, e como no dia seguinte – sábado – seria dia de limpeza geral noquartel, eu resolvi comunicar minha decisão. “Já que vocês não querem dormir,vamos antecipar a faxina”, disse eu. Então, forneci material de limpeza e pus todomundo para trabalhar do lado de fora do alojamento. A Base amanheceu varridinha.E, logo depois, todos os baderneiros foram punidos pelo então Comandante,Tenente-Coronel Sindímio Teixeira Pereira.

Exército e copaOs três cursos que tive oportunidade de fazer no Exército Brasileiro, todos

eles foram com muita dificuldade, porque eu tinha pouco tempo para estudar. Masconsegui fazer, com êxito, todos. O último deles, em 1950, foi feito no CPOR de BeloHorizonte, ainda lá no Barro Preto (antes de se mudar para a Pampulha), onde foramas instalações do 3º Batalhão, que tinha sido desativado.

Eu tinha que fazer o curso, estava em vésperas de provas finais, quandohouve a primeira copa do mundo no Brasil. Foi quando teve o único jogo realizadoem Belo Horizonte: Inglaterra e Estados Unidos, em pleno domingo. Para a surpresade todos (em linguagem futebolística se diz zebra), os Estados Unidos venceram o

Luiz (o 4º, da esquerda para a direita) entre amigos da Abemifa.

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país-inventor do futebol por 1 a 0. Ah, e eu não pude comparecer àquele jogo! Euestava com deficiência em algumas matérias e aproveitei aquele domingo para estu-dar. Foi assim que eu consegui fazer o Curso de Aperfeiçoamento de Sargentos – queme deu o direito de passar à inatividade como oficial, como 2º Tenente.

Mas fui de sorte. Um militar normalmente é transferido com muito freqüência.Fui transferido apenas duas vezes, ambas para a cidade do Rio de Janeiro. Eu já eranoivo e tinha sido designado para prestar serviço na criação do Centro de InstruçãoMilitar, O CIM dos Afonsos, que estava em fase de organização.

Da primeira vez que fui transferido eu era recém-casado. Minha esposaengravidou logo após o casamento e apesar de o Rio de Janeiro dispor de muitoshospitais (do Galeão, Central, dos Afonsos e o Santa Cruz), eu preferi que ela viessepara Belo Horizonte quando estivesse aproximando dos dias do parto, para ser assis-tida no Hospital São Francisco de Assis, que ficava próximo da casa da mãe dela edos irmãos. Achei mais prudente. Mas infelizmente o primeiro filho não sobreviveu.Foi um parto muito difícil, de fórceps, e ele não resistiu.

Naquele período em que ela veio para Beagá, eu continuei residindo no Rioem uma pensão de um casal de portugueses, que ficava em Marechal Hermes, próxi-ma ao quartel e, por isso, hospedava vários militares. Era um pessoal sem filhos, jáidoso, que tratava os hóspedes como filhos. Eu me lembro que aos domingos, quan-do a gente ia ao Maracanã assistir a uma partida, a portuguesa D. Glória preparava

um tanto de sanduíches para nós.“Para vocês não ficarem comendo por-caria em campo de futebol”, justificavaela. Tenho esta grata lembrança.

Anos depois, com a desativaçãodesse centro, eu fui transferido de voltapara Belo Horizonte. Fui o único. Unscolegas meus foram para São José dosCampos, outros para a Escola daAeronáutica, outros para a EscolaPreparatória de Cadetes, deBarbacena. Antes de eu ir para o Riopela primeira vez, eu residi naPampulha, no bairro (então Vila) SãoFrancisco. Meu pai, minha avó Jovita,minhas duas irmãs (uma seis anosmais nova e outra, nove) e eu moráva-mos em uma casa com terreno grande.Meu pai cuidava de várias árvoresfrutíferas. De lá saí para me casar.

Luiz no Centro de BH.

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O casamento

A pessoa certa na hora certa

O meu namoro, noivado e casamento foram em um curto período, dois anos.No noivado, fui pedir a mão de Maria à D. Esther. Já estava mais ou menos previstoa irmandade da minha futura sogra ir lá. Eles estavam arrumando as coisas lá. Euainda estava pensando como ia começar a falar, quando D. Esther chegou, ficouparada e me encorajou, dizendo que já tinha feito tudo. Como quem dissesse “soutoda ouvidos”.

Ainda solteiro, eu já tinha ido prestar serviços no Rio. Mas, uma vez que euestava lá, acabei sendo transferido em definitivo, como todos os que lá estavam namesma situação. Eu cheguei e falei: “Olha, eu fui por quatro meses para prestar

Luiz e Maria recém-casados.

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serviço, mas agora estou é transferido mesmo”. Então antecipamos o casamento,que estava previsto para o ano seguinte (1954).

O casamento foi no dia 20 de janeiro de 1953 (aniversário do Ministério daAeronáutica e dia de São Sebastião, Padroeiro do Rio de Janeiro, onde estávamosindo morar em pouco mais de uma semana), na Igreja de Nossa Senhora das Graças,na Concórdia, em Belo Horizonte. Meus padrinhos de casamento foram o Dr. HugoPinheiro Soares, meu antigo chefe, e sua esposa, Dona Neide Martins Soares. Eu jáestava com eles e com o padre lá na frente. Ela ficou me orientando, porque eu nãosabia direito o que tinha que fazer – hoje é diferente, se fazem uns preparativos, temum ensaio na igreja, mas naquele tempo, não.

Aí tocou a Marcha Nupcial, a noiva veio entrando com o ex-patrão dela, oSeu Láu (Ladislaw Sales). À proporção que a noiva foi se aproximando, eu fiquei semsaber o que fazer. “E agora, Dona Neide?”, perguntei eu. Ela respondeu com rapidez.“Quando ela se aproximar mais um pouco ali, você avança, cumprimenta quem estátrazendo a noiva, a recebe com um beijo na testa ou na face”, disse minha madrinhade casamento.

FotosDepois do casamento, fomos para a casa da mãe da noiva, que ficava a pou-

cas quadras da igreja. A gente já tinha tirado algumas fotos normais com um fotó-grafo. Mas Maria fez questão que a gente fosse tirar uma foto melhor. Fomos então

ao Foto Enzo, que era um dos melhores fotó-grafos daquela época, em Belo Horizonte.

Mas, no caminho para o foto, furou um pneudo carro e nós tivemos que chamar um táxi paraconseguir chegar ao Enzo. Ficava ali na ondehoje é uma (sapataria) Elmo, na esquina de SãoPaulo, Afonso Pena e Tupinambás. A entradaficava na Afonso Pena. Era um sobrado, ondetiramos a foto oficial do casamento, que está naparede do meu quarto. O táxi ficou nos esperan-do – em 1953 não tinha taxímetro, a gente com-binava a corrida com o motorista. Então, volta-mos nele para a casa de minha sogra, onde jáestavam alguns convidados, entre vizinhos eamigos, para uma recepçãozinha.

Depois disso, saímos, fomos para o HotelMacedo (que, antes, já tinha se chamadoGontijo, na rua Rio de Janeiro – onde ficava aentrada – esquina com rua dos Tupinambás).Ficamos lá por uns oito dias – período delicença a que eu tinha direito pela Aeronáutica,por me casar, o que era chamado gala – e,então, seguimos para o Rio, de trem maria-Maria.

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fumaça, já que eu tambémtinha direito às passagens, porestar sendo transferido. Mas,pela janela, algo caiu em umdos olhos de Maria e o ficouirritando até o Rio. Lá, fomoslogo ao médico para ver aquilo:era um pequeno pedaço depedra de carvão alojado nasuperfície do globo ocular dela.

Fomos dividir umaresidência – no Rio de Janeiro,no bairro Bento Ribeiro – com afamília de um dos primos deMaria, Walter Radicchi. Erauma grande casa, com quatroquartos. Eu já o conhecia hátempos: fomos incorporadosjuntos, como recrutas, fizemoscurso de Cabo também juntos,no 10º RI (Regimento deInfantaria).

No ano seguinte, fuifazer um curso de Sargento noExército e ele estava sepreparando para ir para Guara-tinguetá, fazer esse curso porlá. Bom, meu irmão, Dilico,marceneiro de mão cheia, éque estava fazendo nossosmóveis todos. Falamos com eleque, como dividiríamos umacasa grande com Walter e a família dele, só iríamos precisar de móveis de quarto eque o resto ele podia ir fazendo devagar. Então despachamos a cama de casal e umguarda-roupa.

Maria, logo após o casamento.

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Meus filhos

“Nunca me deram trabalho”

Um episódio nada fácilMaria ficou grávida ainda em 1953. Quando estava perto da criança nascer,

no final de dezembro, achamos melhor ela vir para Belo Horizonte, para perto doscuidados da mãe dela. Eu permaneci no Rio, não podia deixar minha unidade. Nesseperíodo, fiquei residindo na pensão do casal de portugueses, que já citei.

Às vezes eu e mais três amigos militares estávamos de folga, a gente ficavapor lá tomando uma cervejinha. E em um daqueles dias, na passagem do ano, ànoite, pouco antes de dormir, alguém disse: “Eh, nasceu!”. Tinha chegado um telegra-ma de Belo Horizonte. Fui todo alegre para receber a correspondência, que abri láainda no portão da pensão. Mas, em vez de chegar alegre de volta onde meus cole-gas estavam, cheguei com o rosto transtornado.

“E aí?”, um deles perguntou. “Infelizmente houve um acidente de parto, quefoi muito difícil, por fórceps”, respondi. A criança não tinha escapado, teve poucosminutos de vida depois do parto. Foi uma decepção tremenda, porque a gente ficanaquela expectativa, primeiro filho. Foi uma experiência bem dura. Lacônico, o textodo telegrama, enviado por meu cunhado Oswaldo, dizia: “Criança nasceu. Nãosobreviveu. Maria passando bem”.

Gerson, Gino e Girselle.

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Isso era num domingo. No dia seguinte, eu tinhaque ir para o expediente no quartel. Mas pedi a umamigo, o Faria, para comunicar ao meu Comandante deCompanhia de Agrupamento, Capitão Júlio, que eu iaver a esposa em Minas. Mas ele estava de férias. Estavarespondendo por ele o Capitão Ney Noronha, um cama-rada bem duro. Faria contou a história do telegrama,mas o capitão não concordou com a minha ida. É quemilitar não pode se ausentar da guarnição sem serautorizado.

Só que eu já tinha vindo para Belo Horizonte,onde fiquei um ou dois dias. Dona Esther, minha sogra,era muito corajosa para discutir, por exemplo, mas paraemergências assim, não. No hospital, quem ficou comminha esposa foi Dona Geralda, uma vizinha. Quandoeu cheguei, ela, que assistiu a tudo, me contou que oparto foi muito difícil mesmo e que era para eu agrade-cer a Deus porque era para eu ter perdido a esposa também. “Não perdeu porqueMaria é uma mulher muito forte”, afirmou Dona Geralda. “Desculpa, Luiz, desculpa”,me pediu Maria, ao me ver, coitada! “Minha filha, não foi sua culpa!”, respondi.

Quando voltei ao Rio, com o telegrama, o oficial não queria saber. “Negativo”,disse o Capitão Noronha. “Você não podia fazer mais nada lá”. E queria, de qualquerjeito, me dar uma punição. “Eu sei que errei, me ausentei sem permissão, mas foi porum motivo de força maior, que o senhor não está aceitando”, eu disse. “O senhor,Capitão, o que faria na minha situação?” Então ele não conseguiu responder. “Tábom, Sargento, tá bom”, acabou concordando.

Outra mulher que tivesse passado por isso, talvez, nunca mais ia querer terfilho, ou adotar, ou então já ia querer cesariana para o próximo parto. Mas ela, não.Fez questão logo de ficar grávida novamente. Nossa filha nasceu menos de dois anosdepois.

Uma gracinha de meninaGirselle nasceu no dia 6 de outubro de 1955 e ficou sendo nossa primogêni-

ta. O parto foi normal, foi tudo muito bem e eu me senti muito bem recompensadopela decepção da não-sobrevivência de meu primeiro filho. Quando a enfermeira alevou para o quarto, saiu do bloco cirúrgico e a deixou arrumadinha na cama, aí eutive autorização para entrar. Ela estava com o cabelinho parecendo uma folhinha decoqueiro, molhadinho para a frente, tinham pingado um remédio vermelho nos olhosdela, que estava escorrendo nos cantinhos. E ela me acompanhava com os olhinhos.Eu me lembro que minhas duas irmãs nasceram com os olhos colados – aquilo leva-va muitos dias, talvez até uma semana, para descolar. Mas Girselle, recém-nascida,estava me acompanhando com os olhinhos. “Que coisa, já nasce esperta, mesmo”,admirei. Acho que era ela pensando “quem será esse bicho aí?”

Era “Giselle” ou “Gisselle” (sem o “R”). Maria leu em uma revista. Eu tinha

Gustavo.

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deixado a critério dela escolher.“Já tenho um nome para anossa filha”, anunciou minhaesposa. Eu perguntei qual era.“Girselle”, ela respondeu. E nodia de registrar no cartório, oescrivão, Wilson Batista, nãoqueria registrar, não. “Mas quenome é esse, de onde é quevocê tirou esse nome?”,atreveu-se a perguntar. “Não éum nome comum”. Então eusoletrei “G-I-R-S-E-L-L-E”.Como ele estava relutante, ble-fei. “Me admira o senhor nãoconhecer um nome francês tãofamoso, puxa, tá fazendo essemistério todo, parece que eu

inventei”. Ele me olhou – era vesgo – e registrou. “Ah, vá lá”, disse ele. O Dr. Hugoachava uma graça quando eu contava isso, porque ele era amigo desse WilsonBatista.

Chegou até a ficar com calos nas mãozinhas de tanto andar no chiqueirinho.Quando eu chegava do trabalho, abria o portãozinho e ela me via, nossa! Ela só fal-tava voar do chiqueirinho. Nossa, que alegria! Coitadinha! Naquela época, moráva-mos no nº 1.011 da rua Jataí, em frente à casa da minha sogra (nº 1.034).

Quando morávamos no Rio pela segunda vez, estava na moda aquela músi-ca eu vou pra Maracangalha, eu vou, eu vou com chapéu de palha eu vou. Se Análianão quiser ir eu vou só. E ela, pequenininha, cantava: “Ô fô pra Maracangalha, ô fô.Ô fô com chapéu de palha, ô fô. Se Anália não quiser ir, ô fô só, ô fô só. Ô fô semAnália, mas ô fô”. Era uma gracinha a Girselle!

Quando era pequenininha, Girselle tinha muito cuidado com o irmãozinhoque ganhou, o Gerson. Mas ele, brincando, caía muito, estava sempre se esfolando.E, naquele tempo, a primeira coisa que a gente fazia para não inflamar o machucadoera vir com o Merthiolate, para passar no local, o que ardia para danar, queimavamesmo. “Coitado, ele vai p... fogo”, eu dizia para Maria. Girselle me viu falando aqui-lo uma ou duas vezes e, então, sempre que ela via a gente com o vidrinho deMerthiolate vermelho na mão – hoje tem o incolor, mas não naquele tempo –, quan-do o Gerson caía e vinha chorando, minha menininha dizia “Ih, vai fidá fogo!”

Ela era muito boazinha, muito mansinha, mas muito ativa. Era uma filha deouro, nunca me deu trabalho na escola nem em lugar algum. Aliás, filho nenhum. Sócomparecíamos à escola nas reuniões normais, nunca por indisciplina ou falta deaproveitamento nos estudos. Mas Ninguém tirava farinha com os irmãos, não. Doisanos mais velha que o Gerson e cinco que o Gino, ela defendia, mesmo. Era o anjoda guarda deles, defensora. Tomava partido, avançava, era cada merenderada!

Luiz e Maria com os filhos Girselle, Gerson e Gino,em Guarapari, ES.

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Quando ela fez 15 anos, em 1970, nós demos uma festinha muito boa, muitobonita lá em casa. Na época, as folhas do coqueiro da frente de casa ainda estavamsaindo do chão, não tinha tronco ainda. E Girselle foi sempre uma boa filha, que sabiaescolher as companhias, como as filhas do Sr. Oscar, Elaine e Adriana. Era sempremuito amorosa e ajuizada, a minha filha. Uma boa menina.

O coração de ouroCom dois anos e pouco de idade, Girselle recebeu um irmãozinho. Gerson foi

o primeiro menino que nasceu na recém-inaugurada Vila dos Sargentos da ForçaAérea (em frente ao Aeroporto da Pampulha), a Vila Cabangu – em homenagem àregião que Santos Dumont nasceu, perto de Palmira, hoje cidade mineira que leva onome do Pai da Aviação.

O nascimento dele foi em um domingo de carnaval, 3 de março de 1957. Eu,como sócio do Clube dos Sub-Oficiais e Sargentos da Aeronáutica, tinha direito àhospitalização de minha mulher no Hospital Samaritano, onde Girselle nasceu. A guiajá estava pronta há um ou dois dias, mas Maria quis deixar para ir na última hora.Quando era quase meia-noite, ela começou a sentir as dores do parto. Para telefonare pedir um táxi lá da cidade, eu teria que ir à Base Aérea. Mas, como faria? Até o táxichegar à Pampulha...

O jeito era pedir ao Oficial de Dia, que era o Tenente Coragem. Cheguei lá, àportaria da Base, tive um problema. Naquele tempo, sargentos, cabos e soldadosnão podiam chegar à paisana nem à porta do quartel. Aquilo era privilégio só de ofi-ciais. Eu cheguei ao portão das armas e disse à sentinela que estava precisando falarcom o Oficial de Dia. Pedi para ele pegar aextensão da guarita e ligar. O tenente memandou entrar, mas eu disse que estava àpaisana. Ele mandou me dizer que ele esta-va me autorizando a entrar, para conversarpessoalmente com ele.

Quando cheguei lá, ele estava como adjunto dele, Sargento René Bernedetti.Eu disse a ele que minha esposa estava emtrabalho de parto e eu precisava de umaviatura para levá-la ao hospital, porque nãotinha ônibus nem táxi àquela hora na regiãodo aeroporto (da Pampulha). O tenente medisse que estava proibida a saída deambulância, o comandante tinha recomen-dado, o carro de sair até para a mãe dele.Tudo porque certa vez, bem quando aambulância tinha saído, um avião fez umpouso de emergência, pois não conseguiabaixar o trem-de-pouso. Ninguém se feriugravemente. Mas a ambulância tinha saído

Gerson, Gino, Sérgio, Simone eGirselle, no Pq. Municipal (BH)

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para outra coisa. Então, como a ambulância estava impossi-

bilitada de sair, o Tenente Coragem me ofereceutrês outras viaturas: um dos jipes – muito rústi-co para a situação –, a caminhonete dos oficiais– confortável, mas muito alta para uma mulherem trabalho de parto entrar - ou um furgão, quefoi a minha escolha. O motorista seria o CaboExpedito Lopes.

Mas esse veículo, quando estava na subidada Antônio Carlos, pouco pra cima de onde hojeé o Corpo de Bombeiros – não era asfalto, eracalçamento pé-de-moleque – caiu uma peça do

carro. Continuamos e felizmente conseguimos chegar à região da Lagoinha, aoHospital Samaritano. Correu tudo bem. Ele teve que ficar um pouco na estufa, porquepassou um pouquinho da hora de nascer, mas ficou tudo bem. “Ah, nasceu empeli-cado, é gente de muita sorte”, disse uma enfermeira. “Na vida, tudo vai dar certo praele”.

Um dia, eu o levei para passear no Parque Municipal, mas ele não queriaandar de mão dada comigo, não. E em uma daquelas, que ele soltou da mão, euescondi atrás de uma árvore, uma jaqueira, e ele foi embora, andando na frente,admirando tudo, admirando as coisas. Depois, quando Gerson deu pela minha falta,ele ficou apavorado, coitado. “Cadê papai?”, ele perguntou a um senhor que estavaperto. “Mas quem é seu pai?”, perguntou devolta o homem. Aí ele começou a chorar, eu saíde trás da árvore e fui lá. Ele não quis maissoltar a minha mão.

De menino, o Gerson era patola. OMiguel (filho de Gerson e Júnia, com um anode idade em 2004) vai ser tipo ele. Ele semprefoi um bom garfo, sempre teve bom apetite.Então, a mãe punha comida pra ele e logo naprimeira garfada, quando ele achava bom, eledizia “Hum, vou querer mais”, sem saber se iadar conta do que estava no prato.

E por falar nisso, teve o caso dosorvete. Todos os três (Girselle, Gerson e Gino)tinham problemas de (inflamação de) amídalas.Os médicos resolveram operar os três nomesmo dia, poxa! A gente falava com o Gersonque quando ele operasse poderia tomar muitosorvete (o que é bom para cicatrização e paranão inflamar), que ele adorava. Ele estavanuma farra, doido pra chegar o dia de operar.

Gerson, Gino e Girselle.

Maria e Gerson, em Washington,EUA.

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Mas no pós-operatório, quando ele tomou a primeira pazinha, doeu muito e eleempurrou o sorvete pra lá.

Foi difícil, os três operados das amídalas, convalescendo, pegaram sarampoe logo depois, catapora. Eles ficaram magrinhos que só vendo, os meninos. “Eu ficocom uma pena, vocêch vêm de Minach com och meninoch coradoch e daí a pouqui-nho elech ficam magrinhoch e descoradoch como och nossoch daqui”, falava a car-ioca Dona Isaurinha – mulher do sargento Ubaldo e que ficou muito amiga de Maria,depois que mudamos da Rua 28 para a 98, no Rio.

Chegou a ocasião do meu Gerson ir para a escola, quando tinha sete anos.E ele estava doido pra ir pra escola, que ficava quase em frente. Como ficava muitoperto, deixamos para levar a merenda quando fosse chegando a hora do recreio.Mas, quando chegou a hora do recreio e a merenda não tinha chegado, a primeiracoisa que ele pensou foi subir na grade. “Minha m-e-r-e-n-d-a, minha m-e-r-e-n-d-a!”, gritou, com um vozeirão.

De pequeno, vivia dizendo que não gostava de velho. Ele devia achar muitofeio. Um dia, a minha sogra, a avó dele, Dona Esther, estava perto quando ele falou.

Gustavo, Girselle, Gino e Gerson, em 1987.

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“Uai, quer dizer que você não gosta dasua avó?”, perguntou ela. Gersontitubeou um pouco e disse: “Não, eunão gosto é de velho dos outros”. Equando o pessoal perguntava o queele ia fazer quando crescesse, elerespondia: “Vou estudar na FaculdadeMental”. Ele tinha umas tiradas muitointeressantes. Hoje ele é cinegrafista.

Ele sempre foi muito prestativo Setinha alguém precisando de algumacoisa e ele pudesse, já estava lá. Umavez teve um incêndio em uma loja demóveis na avenida Antônio Carlos. Eleestava voltando pra casa e viu.Quando chegou em casa para deixarumas coisas, pegou a moto e foi pralá. Gerson tem um instinto de aventu-ra muito grande. Morou quase trêsanos nos Estados Unidos e mais três

em Portugal, onde aprendeu o ofício de cinegrafista, que exerce até hoje e é a paixãoprofissional dele.

Lá em Portugal, presenciou vários casos engraçados. Tinha um português,onde ele estava trabalhando, que disse para ele escutar: “eu não gochto debrasiláiros”. E o Gerson, no maior bom humor e saindo-se muito bem, contra-atacou.“Eu também não, eu gosto é de brasileiras”, respondeu ele. O cara riu e elesacabaram amigos. É jogo-de-cintura. Outra vez, ele estava contando umas piadaspara uns portugueses, contou aquela do urubu tem pena no pé. Eles riram, riram, mastinham uma dúvida. “Mas o que vem a ser urubu?”, perguntaram. Aí quem riu foi oGerson. “Urubu é abutre”, explicou. E riram todos juntos.

O Gerson tem o gênio muito bom. Quando é preciso ele explode, mas é sónaquele momento. Depois que passou ele não guarda rancor, não alimenta sentimen-tos de vingança, de retaliação. Outra característica dele é o desprendimento, não temaquele apego às coisas materiais. É igual ao tio materno dele, Antônio Radicchi, oTunim, que podia ter R$ 1. Se alguém pedisse, dissesse que estava apertado, elesoltava aquele R$ 1 e ficava sem nada. Tem um coração de ouro, o Gerson. É muitoamigo e amoroso também.

A aplicação em pessoaO nascimento do Gino, meu terceiro filho, foi numa noite muito fria, 21 de

junho de 1960, no Hospital da Aeronáutica, em Lagoa Santa (MG). Daquela vez, eunão fiz a vontade da mulher, de deixar para a última hora. Fomos mais cedo. Eramumas 10h da noite e ele nasceu de madrugada. Naquele ano, a Base (Aérea, hojeCIAAR) não tinha só uma ambulância, tinha três. E nós em uma delas, pela Estrada

Girselle.

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Velha de Lagoa Santa. Mas, pesar de termos saído cedo, os trabalhos de parto foram se acentuan-

do na viagem (cerca de 30km). Chegamos e a enfermeira que estava de serviço (elaestava grávida também, uns três dias depois ela teve gêmeos) percebeu que já esta-va bem adiantado, já tinha bastante dilatação. “Olha, o Dr. Mauro (obstetra) está naVárzea (bairro afastado da cidade) e não vai dar tempo de chamá-lo”, disse a moça.“Nós mesmos vamos ter que fazer o parto, o senhor me ajuda?”. Eu disse que sim,claro. Então, o Gino foi o único filho que eu vi e ajudei a nascer. E eu achei engraça-do foi que ele, antes de chorar, deu três espirros. Era uma madrugada muito friamesmo.

A enfermeira cortou o umbigo com aquela tesoura de pressão, ajeitou a cri-ança e foi cuidar da mãe. Eu, então, a chamei, falei que estava achando o saco domenino muito grande e roxo, não sabia que a criança do sexo masculino nascia coma bolsa escrotal inchada. “É assim mesmo”, tranqüilizou-me ela. “Nesta vida, a gentejá chega de saco cheio”.

O Gino chorando, eu percebi que a língua dele era presa e formava o dese-nho de um coração. O freio não começava embaixo, mas sim na ponta da língua. Eupodia ter falado, cortava ali naquela mesma noite. Mas eu pensei que fosse assimmesmo, depois chegava no normal. No Rio, quando ele já tinha mais de um ano, éque o Dr. Aldo Mirando o operou. Mas até quase adolescente, ele ainda falava com alíngua meio presa, ao contrário de hoje, quando ele fala com desembaraço.

Quando ele era bem pequeno, fui transferido e nos mudamos para o Rio.Moramos a 200m da praia de São Bento, na Ilha do Governador. E quando eu já tinhapassado para a inatividade militar e já estava aguardando a oficialização disso (1964),a gente ia muito pescar, Gino, Gerson e eu. Um dia não estávamos conseguindopescar quase nada, fomos longe. Equando já estávamos voltando, jáquerendo escurecer, a maré já estavasubindo e não percebi. Tinha umaponte desmoronada, que avançavapara dentro do mar. Nós fomos lá eestava dando muito peixe, muitacocoroca, justamente porque a maréjá estava subindo. A gente já estavacom a sacola cheia de peixe.

Maria estava preocupada porcausa da nossa demora, estava aflitalá com os vizinhos. Iam à praia infor-mar, perguntar por um senhor e doismeninos. Mas ninguém tinha nosvisto. Saímos pouco depois doalmoço e só fomos chegar em casa lápelas 9h da noite.

De longe, um pescador – que Girselle, em show do ídolo, Fábio Jr.

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estava saindo de tardinha para passara noite inteira pescando camarão –nos viu lá e viu que a maré estavasubindo e a gente não estavapercebendo. Aí ele veio com o barco amotor dele e mandou a gente entrar.Mas eu quis pegar as varas de pescar,os chinelos e os peixes. “Não, entremque não dá tempo, não”, disse ele. Efoi a conta de a gente entrar: a marésubiu de vez e cobriu tudo aquilo. FoiDeus mesmo que mandou aquelepescador lá naquela hora!

Uma vez, houve um concurso deperguntas e respostas que a RádioGuarani promoveu, pela televisão. Oapresentador era o BernardoGrimberg, que era da arma deInfantaria, quando fiz o curso de sar-

gento no CPOR. E o Gino quase ganhou, ficou em segundo lugar. Nós ficávamos emcasa reunidos, esperando torcendo, vendo pela televisão. Ele errou uma ou duasquestões e por isso não levou o prêmio, um autorama. Mas Maria disse que ele ficariafrustrado e ele já estava fazendo jus. Saiu e comprou um autorama para ele e para oGerson.

Mas antes disso tudo, na Praça 12, o Gino ganhou 1º lugar em um concursode rei, competindo com várias crianças, na Escola Chapeuzinho Vermelho. Ele temguardado, em casa, o retrato dessa ocasião – muito bem guardado, diz ele, que épara ninguém ver. Foi também naquele bairro que ele, brincando de atirar na cidade,tomou um tiro, caiu, fingiu que morreu e dormiu de verdade. Todo mundo o procuran-do e ele foi aparecer só depois. Embaixo do nosso apartamento ficava uma fábricade calçados – onde mandamos fazer o sapato de veludo de quando Gino foi o Rei doJardim da Infância, vestido de Dartagnan.

Quando ele e o irmão já eram maiorzinhos, resolvemos matricular os dois naacademia de judô do Edson Izoni, a Lutadores Unidos, onde eles foram muito bem-sucedidos, chegando à faixa laranja. Uma das quedas mais difíceis do judô é o chi-matá (quando se passa a panturrilha pegando a parte interna da coxa do adversário,jogando-o por cima do corpo). Eram vários tatames e o Izoni pôs o Gino para treinaresse golpe. Eu estava conversando com algumas pessoas que iam assistir, quandoo professor me chamou. “Seu Luiz, vem cá, vem ver como o Gino está aplicando bemo chimatá”. E quando eu cheguei, ele estava aplicando bem mesmo, dando umasquedas bonitas.

Eu me lembro que uma vez o Izoni pediu que o Gino ficasse fazendo umaquecimento, para um determinado tipo de queda que ele ia aprender e exigia umpreparo melhor. Então, o professor, muito atarefado, foi orientar outros alunos, super-

Luiz (E), Gino, Maria e Gerson (1998).

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visionar algumas coisas e recepcionar quem estava indo se inscrever na academia. Ese esqueceu do aquecimento. “Gino, meu filho, você ainda está aí, coitado!”, disseIzoni. E o menino lá, já há umas duas horas, suando, mas sem parar com a determi-nação dada pelo professor. Foi até dispensado do restante da aula, estava estafado.

Ele gostava muito de jogar umas peladas com a turma: o Gerson, os meni-nos da Dona Nicinha, com o Sílvio da Dona Rosa e com aquele que tinha o apelidode Boca Branca. Até esquecia da hora do almoço, a gente tinha que chamar. E àsvezes jogava também à tarde, depois que fazia os deveres da escola. Numa daque-las, quebrou o dedo mínimo de um dos pés, um dedo que é enguiçado até hoje. Énós levamos ao hospital, mas acho que o ortopedista que o atendeu – pelo plano dasaúde Saber, acho que foi o pioneiro aqui, na Previdência, atrás do Parque Municipal– não fez o trabalho direito e volta e meia o dedo quebra de novo ou sai do lugar.

O Gino gostava muito também de fazer papagaios. Eu ensinava o pouco queaprendi, mas nunca fui muito habilidoso, não, ao contrário do meu irmão, Dilico – queinventava sempre umas modificações, eu fazia aqueles mais simples mesmo. Masdepois o Gino, pela cabeça dele mesmo, foi aperfeiçoando, inovando alguma coisa,com bastante imaginação, uns papagaios bem feitinhos.

Já falando da escola, eu levava os quadro (meus três na época, mais minhasobrinha Simone) para o Ângelo Roncali, na avenida Assis Chateaubriand, naFloresta. Como era muito longe (cerca de 15km), eu ficava por lá, esperando a aulaacabar. Eu ficava lendo, escutando música ou batendo papo com o Toné, dono deuma loja de baterias de automóveis ali perto, que tinha sido meu soldado na Base. Eo Gino, era muito estudioso, gostava muito de ler e, adolescente, estava sempremuito bem-informado para a idade dele. E o Dr. Hugo adorava bater papo com ele,admirava essas características dele, que estava sempre atualizado com os assuntos.O Gino sempre foi muito aplicado, muito compenetrado.

Gustavo e Gino (D) com Luiz, no Dia dos Pais, 2004.

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Desde pequeno, leva tudo em quanto é tarefa a sério. O vejo muito dinâmi-co, muito empreendedor, muito competente, muito bem-intencionado. Economista,ele se saiu muito bem na área da publicidade, trabalhando em quase todas as agên-cias de Belo Horizonte. E também no jornal Estado de Minas, onde foi superinten-dente de Publicidade. Como filho, como os outros, é muito dedicado, amigo eamoroso.

O raspa-do-tachoMeu último filho, o caçula, a raspa-do-tacho, o Gustavo, nasceu também no

Hospital da Aeronáutica, em Lagoa Santa (MG), no dia 28 de fevereiro de 1973. Foi oúnico que nasceu de cesariana. Devido à idade da minha mulher (39 anos), o médi-co achou melhor fazer a cesariana. E eles lá em casa ficaram naquela expectativa –naquele tempo não tinha esse negócio de ultra-som, para ficar sabendo o sexo doneném. A Girselle queria uma menina. Gerson e Gino, um menino. Quando chegueide Lagoa Santa – estavam todos reunidos, esperando, a Girselle com a prima, aSimone, e os meninos – não sei o porquê, elas perguntam: “É menino, né?”. Eu disseque era. Parece que elas já, por intuição, estavam sabendo.

A concepção dele foi uma surpresa geral. É tanto que, quando Maria me con-tou que estava grávida – ela disse “Luiz, eu tenho uma coisa pra te contar, eu tôgorda” – eu me espantei e disse: “Não brinca?”. Já tinha passado tanto tempo desdeo Gino, a gente não evitava e não vinha mais filho, eu pensei que já tinha encerrado.O engraçado foi que Girselle, já mocinha, com 16 anos, deu uma sermão em Maria.O Gino tinha 11 anos e o Gerson, 14. “Eu não acredito, mãe, a senhora grávida, nessaidade?”, indignou-se minha filha – e ela parecia mesmo não acreditar. “Ih, o que é quetem?”, respondeu Maria. Mas Girselle era louca com o Gustavo, que a gente chama-va de Gugu.

Uma coisa interessante é que parece que Maria pagou língua. A minha cu-nhada Ruth, mulher de Dilico, tinha ficado grávida (de uma menina, a Moabi) tambémem idade madura, alguns meses antes. “Ô Ruth, vai tomar vergonha na cara”, disseMaria. “Uma mulher dessa idade, já na hora de pendurar as chuteiras, esperandomenino outra vez?”. E pouco tempo depois, ela ficou esperando o Gustavo. “Pois é,a língua fala, a língua paga, né?”, riu a Ruth.

No dia do nascimento, tinha um casal lá no hospital com uma filha internada.A senhora ficou sabendo que estava pra nascer um filho meu ali e ficou no aparta-mento comigo conversando e na maio expectativa. Nós ficávamos sempre olhandolá para o final do corredor, para o Bloco Cirúrgico, de onde a enfermeira saiu, com orecém-nascido nos braços.

“O senhor não se importa de eu ver primeiro, não?”, perguntou a senhora.Como eu disse que não, ela saiu correndo para ver. Depois, quando ele estava na es-tufa, eu achei engraçado o tamanho da mão. “Puxa, parece mão de goleiro, parece amão do Kafunga!”, eu disse. E ele estava com a ponta do paninho dentro da boca,sugando. “O bicho já nasceu com fome mesmo!”, comentei.

Em casa, tínhamos muitas árvores frutíferas, muitas laranjeiras, abacateiros,e muitos pés de amora, de que o Gustavo gostava demais. Uma vez, ele tinha pouco

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mais de um ano e procuramos por ele, mas não o estávamos encontrando. Fomosachar embaixo de um pé de amora, com a boca pretinha e a fralda roxinha, porqueele tinha sentado em cima das amoras que tinham caído no chão.

Quando o Gustavo estava com dois anos, nós fomos morar no Anchieta,onde ficamos uns dois anos. Toda manhã eu saía com ele para passear ali pelos bair-ros Cruzeiro, Anchieta, Carmo-Sion. A gente ia andando devagarinho. Tinha umalagoa ali no Carmo Sion, onde a gente ficava jogando miolo de pão para uns lam-barizinhos e uma piabinhas. E também lembro que tinha uma caixa-d’água noCruzeiro, com uns pés de mamona ao lado. A gente apanhava e ficava jogando asbolinhas em uma rampa grande ali ao lado, vendo as mamonas quicando até caíremlá embaixo. Era muito divertido.

Ele fez o 1º período no Arnaldinum (no Anchieta). Já o 2º foi no ColégioLoyola Pampulha, no Planalto, onde fez também o pré-primário e a 2ª série (a 1ª elefez no Colégio Tito Fulgêncio, no ano em que moramos na Renascença). No finaldessa série, o Colégio Loyola Pampulha virou um seminário, chamando-se InstitutoSanto Inácio (ISI). Construíram ao lado dele o Colégio Arquidiocesano, onde oGustavo estudou da 3ª série até o final do 2º grau. Sempre foi bom aluno, não pre-cisava mandar estudar. Hoje é jornalista.

Tinha umas brincadeiras engraçadas com os animais de estimação. O Sérgio– um primo, irmão da Simone, Samira e Samuel – ficava encarnando nele porque oviu uma vez, aos seis anos, esticando o gato, pegando no rabo e no pescoço,enquanto exigia: “Mia, gato, mia!”. Também brincava de rodeio com a pretinha, suacachorrinha pequenez. Corria atrás dela na terra, dava uma rasteira – levantando umpoeirão danado – amarrava as quatro patas juntas, com uma corda de pular, e levan-tava os braços.

Ele gostava muito daqueles seriados japoneses de super-heróis, principal-mente o Ultraman e o Ultraseven. Um homem se transformava em Ultraman tirandoum bastãozinho do bolso e o levantava, virando um gigante, para enfrentar o mons-tro. Então, no chuveiro, o Gustavo agachava, pegava o vidrinho de condicionador, eesticava o braço para o alto, enquanto ficava em pé de uma vez – para ter a sensaçãodo Ultraman virando um gigante.

Em 1981, o Gerson morava nos Estados Unidos, em Washington, e a mãedele foi lá visitá-lo e ficou três meses. Em casa, o Gustavo era o responsável poraguar a horta e as plantas. Eu era religioso (veja anexo 2) e saía para fazer trabalhosmissionários, estudos bíblicos, nos bairros adjacentes ao nosso Santo Inácio (hojePlanalto). O Gustavo, com oito anos de idade, me ajudava muito a encontrar as pas-sagens bíblicas, já que as pessoas de pouca instrução tinham muita dificuldade deencontrá-las. Ele foi de muita valia porque as encontrava fácil.

Lembro-me de um caso daquela época. O Gustavo se interessava muito porhoróscopo, que o Jornal Hoje apresentava diariamente na televisão. Naquela época,o Gustavo era o responsável por molhar a horta e as plantas todas as manhãs. E eleestava de férias no meio do ano, passando uns dias na casa da Girselle. E quando avoz da apresentadora anunciava um, ele dizia quem da família era daquele signo.Quando aparecia “Capricórnio”, ele falava: “papai”. “Áries”, ele soltava: “mamãe”. E

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assim ia: Câncer/“Gino”; Peixes/“eu e Gerson”; Sagitário/“Tio Dilico”. E chegou num ponto que a minha filha se aborreceu. “Ô, Gugu, pára com isso

aí, deixa só a mulher falar”, disse ela. Aí ele se encolheu e ficou calado. Mas quandochegou a vez de libra, ele, calado, dando um sorrizinho amarelo, olhou para trás, paraa Girselle – libriana, nascida em outubro - como quem diz “é o seu, né?”. Aí ela nãoagüentou, caiu na risada e o abraçou.

Gustavo sempre gostou muito de praticar esportes. No futebol, era goleiro. Etinha também o vôlei – este ele joga até hoje, como meio-de-rede. Ele e os compa-nheiros armavam a rede na rua, que tinha pouco movimento de carros.

Eu o vejo Gustavo também como um bom filho, amigo, amoroso comigo ecom os irmãos, muito estudioso. Sempre escolheu bem suas amizades. É um homemde bem, uma pessoa temente a Deus e que pauta a sua vida no temor ao Senhor, queé o princípio da sabedoria.

* * *

Todos os meus filhos têm muito bom caráter. Nenhum me deu trabalho.Nunca fui chamado a colégio algum por problema de indisciplina. São todosamorosos, companheiros, amigos. Graças a Deus, eu tive a ventura de só ter filhosextraordinários.

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Moradias

Zona urbana e zona rural

A vida em apartamentosQuando Humberto casou, ele fez um puxado lá atrás da casa, na rua Jataí.

Célia morava na casa da frente. Quando nós compramos essa casa da Dona Esthere fomos morar lá, Célia foi morar lá no fundo. Depois nos desentendemos com elese eu, Maria e os meninos fomos morar na Praça 12. Era a época daquela música doJair Rodrigues “deixe que digam, que pensem, que falem... batendo um papo gos-toso com alguém”.

De lá, fomos para o apartamento de Dona Esperança, onde moramos maisou menos um ano. Era um prédio. O apartamento 101, no terraço. Por isso, brincoque já moramos em uma cobertura. o nosso, era todo independente tinha uma cober-tura onde os meninos brincavam.

E tinha uma vista belíssima da cidade, do Centro de BH. Maria encerava aescada e os meninos ficavam brincando, escorregando nela, descendo sentados,quicando até chegar no chão e rasgar o short. Isso era porque o sol começava a baterforte no pátio e na escada dava sombra, era coberta.

Tinha uma comunicação, uma espécie de ponte, do nosso para o outro ter-raço. Um menino que morava ao lado – acho que se chamava Edmundo – naqueleoutro apartamento, uma vez deu uma sugestão de brincadeira para o Gino e oGerson: ir jogando tijolos e garrafas, que estavam ajuntados no terraço, lá embaixo,no pátio – que parecia daquele seriado Chaves. Eles jogaram todos. E aí tem umahistória que o Gino conta: Gersonlevou uma surra e o Gino, não,porque eu o devo ter visto rezan-do, no quarto, para não apanhar.

De lá, mudamos para oSanto Inácio – hoje, Planalto –para a casa onde moro hoje como Gustavo. Moramos também noAnchieta de 1975 a 1978, na ruaLuiz Signorelli, esquina comVitório Marçola. Em 1980moramos na Renascença, na ruaTapira. Ambas as vezes moramosem apartamento. Resolvi moraruns tempos assim para os filhosficarem mais perto da escola eGirselle, da faculdade. Fazia letrasna Fafich, da Federal, que ainda

Luiz, na casa do Santo Inácio.

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era no Santo Antônio, na rua Carangola. A história da nossa vida nesses apartamentos perto da agitação do Centro

da cidade contrasta com a calma da nossa casa no Santo Inácio, com três lotes ecerca de mil metros quadrados. Uma verdadeira chácara a 15 km da Praça Sete(ponto mais central de BH).

A fazendinha do Santo InácioA casa era do Zé Denuci, um homem muito trabalhador, que tinha uma

empresa de pintar edifícios. A família dele não queria morar longe, no Santo Inácio,queria ir só no final de semana, fazer churrasco. Um dia ele chegou e a família já tinhamudado. Então ele resolveu vender – Humberto, meu cunhado, me deu essa dica –nós fomos ver a casa, gostamos e compramos.

Para lá mudamos em 2 de janeiro de 1967, um dia de calor e umidadetremendos. A região era úmida, com brejos e muitas árvores. Quando nos deu fome,Maria foi à venda do Josué – uma mercearia como as do interior, balcão de vidro, ven-dia fatias de queijo, banana na unidade – comprar pão, fez uns sanduíches. Os meni-nos já ficaram amigos do cachorro que tinha na casa, o Tiu. Gerson e Gino adoraram,era quintal grande. Girselle, nem tanto, já era mocinha, tinha 12 anos. O Tibiriçá fez amudança, o Jonas, que trabalhava para ele, veio dirigindo. Já era quase noite quan-do acabaram de descarregar. E o Gerson e o Gino subiram no caminhão e ficaramlutando telequete.

No dia seguinte, meu aniversário, já amanhecemos arrancando mandioca eamendoim, no quintal. Tinha também cajueiro, pé de mexerica, 18 de laranjas de en-xerto, de muitas variedades, dois abacateiros. Tinha também banana-ouro, morangosnos canteiros, amora, ameixa,siriguela. O pé de laranja-serra-d’água ficava exatamenteembaixo da janela de onde hoje éo quarto do Gustavo. Tinha asinstalações vazias, uma criaçãode porco. Chegamos a ter atéuma cabrita, que compramos láonde hoje é o bairro vizinho doFloramar. Como eram três lotesjuntos – quase mil metros quadra-dos –cercados com arame farpa-do – não tinha muro, não – o pes-soal de fora (vizinhos e passantes)chamava nossa casa deFazendinha.

Na nossa rua (então ruaSete, atual Vereador OrlandoBonfim) só tinha umas quatro Luiz em Guarapari, ES.

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casas: a nossa, a do Seu Zequinha e Dona Rosa, ada Dona Neiva, a casa do Seu Oscar – pai do Wilson– na esquina com rua Dez – que depois ele trocou acasa com a do Seu Juca – além do alicerce da casado Seu Aires. Na rua não tinha luz. Na avenida(Carlos Guedes) tinha a casa do Edgard. Ele erabaiano, mas cruzeirense doente, e muito animado,fazia umas gincanas. Na época de festa junina punhauns bambus na avenida.

Depois, Célia mudou para lá também, para arua Dez, exatamente onde terminava a nossa rua. Osmeninos iam muito lá. Passavam pela casa do SeuOscar e sempre cumprimentavam a Dona Julieta,mulher dele. Ela achava bacana isso, porque osmeninos daquela época geralmente passavam dire-to – no meu tempo de menino, por exemplo, a gentetinha medo dos mais velhos. Bastava eles fecharema cara pra gente, tinha um respeito danado. Elaachava muita consideração e os meninos gostavamdela mesmo. Aí toda vez que eles falavam oi ela dava uma garrafinha de guaraná praeles. Eles punham a garrafa pra gelar e faziam um furinho na tampinha de ferro comum prego, para demorar bastante a acabar.

A casa era cercada com arame farpado em estacas de eucalipto. A porteira,de bambu. Ela tinha duas forquilhas, como um bodoque. Um bambu em cima, outroem baixo. A gente sabia que tinha gente chegando quando escutava o barulho dobambu batendo no chão. Às vezes, acordávamos e tinha bois e vacas, que forçavama porteira, pastando no quintal.

Fiz o muro Alguns anos depois e em seguida um galinheiro. A produção deovos era grande. Comíamos muito ovo nas refeições e ainda uma gemada, feita comleite fervendo, antes de dormir ou quando estava ameaçando ter uma gripe. A gentetinha um cardápio diferente. Tomávamos muito iogurte natural, que eu fazia – e aindafaço – a partir de uma muda que eu comprava. E tinha também melado (de cana) quea gente jogava por cima de cará cozido ou de mandioca. Pão integral, por exemplo,a gente comia bastante e poucas pessoas da vizinhança sabiam o que era aquilo.

Comunidade solidáriaO bairro era uma verdadeira cidade do interior. Tinha a Vaquinha, uma cam-

inhonete com um tanque de leite. Com uma garrafa eles mediam um litro e vendiam– cada um tinha que levar sua leiteira. Ficava aquela fila de gente com pijama deflanela e leiteira na mão. E por falar em pijama de flanela, uma coisa que não possoesquecer é a minha luta contra as formigas. Era uma coisa terrível. Na época, falava-se muito a frase: Ou o Brasil acaba com a saúva ou a saúva acaba com o Brasil. Hojevocê quase não vê mais esse tipo de formiga. Mas, quando era tarde da noite – quan-do não era tarde, de vez em quando os meninos iam comigo, de pijama de flanela –

Luiz e Maria, com os filhosGirselle e Gerson, emSantos, SP

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eu saía com uma lanterna e umabomba de inseticida.

Era tanto o silêncio que agente desligava a televisão eescutava os insetos cortandofolhas de uma roseira, de umalaranjeira. É um bicho danado deorganizado. Tem as encar-regadas só de cortar. No chão,tem as que ficam cortando asfolhas em pedaços para as car-regadoras levarem. Aí ficavaaquele fluxo de formigas levandofolhas e as que voltavam parapegar mais. Elas marcavam umtrilho no meio do cascalho, detanta formiga que era. Eu iaseguindo até chegar aoformigueiro-mestre. Ia longeandando. Então, enfiava amangueira de veneno nos bura-cos dos montes, bombeava edepois socava a entrada com

pedra. Com isso, o formicida, preso, gerava um gás lá dentro. No outro dia a gentevoltava lá e estava aquele panelão vazio, sem uma formiga. Era muito mato em volta.A gente convivia também com muita lagartixa, calango, sapo, barbeiro.

Mas, voltando ao assunto do bairro, era uma convivência quase comunitária,apesar das distâncias (cerca de 15 km do Centro). Também por causa das dificul-dades, as pessoas eram muito unidas. Todo mundo tinha cisterna. A minha ficava nomeio de uma plantação de maracujá – daquele doce, de comer de colher – ficavasempre fresquinha. Eu era um dos poucos que tinha cisterna com bomba – que eraaté sinal de status. E faltava luz demais. Aí, era na manivela. Eu fornecia luz, cedia,para muita gente, para o Seu Zequinha, para Célia. Não cobrava, não. Era uma quan-tidade de gato, gato pra todo mundo, a central era aqui! Mas a companhia energéti-ca parecia não se importar, porque, naquele tempo, ela não tinha condição de aten-der a todos os pedidos, demorava demais.

Como nossa casa era uma das poucas que tinha luz, era uma das poucasque tinha televisão. E os meninos sempre gostaram muito de ficar assistindo. Gino eGirselle ficavam brigando, cada um querendo assistir a um canal. Para o Gerson,estava tudo bem. Qualquer paixão o divertia. E quando eles iam pedir a minha opiniãoe era a favor do programa que minha filha queria, estava tudo bem para ela. Masquando eu decidia pelo canal que o Gino queria, ela dava o grito. “Ninguém meentende nesta casa!”, dizia ela, adolescente. Ou então “É o que o caçula quer, ocaçulinha” (ainda não tinha o Gustavo).

Luiz.

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A plantação de galinhas e os frangos do goleiroCerto dia, eu tive que sair com Maria para resolver uns problemas. Girselle

também não ficaria em casa. Como estaríamos a tarde toda fora, recomendei muitoa Gerson e Gino. “Olha, os frangos estão todos soltos e você tomem conta deles aí”,disse eu. E saímos. Os dois ficaram assistindo à Sessão da Tarde, fazendo uns lan-ches e se esqueceram de olhar as aves. Se esqueceram também que King, umcachorro bravo que tínhamos, estava solto.

Numa certa hora eles se lembraram da minha recomendação, foram corren-do ao quintal, para ver se estava tudo bem. Não estava. Os frangos haviam desapare-cido. Eles ficaram aflitos. O que será que tinha acontecido? E procura daqui, procu-ra dali, descobriram. Começaram a ver pares de pés para cima, enterrados nos can-teiros. Uma verdadeira plantação de frangos. O danado do cachorro tinha matado umpor um e enterrado todos.

Quando chegamos e eu soube da história, fiquei com tanta raiva que bati noKing com a vasilha de alumínio em que ele comia. Ele até sangrou. Deu vontade deter outro cachorro bonzinho como o Tiu era. Esse, coitado, foi atropelado na aveni-da, perto de casa. Quem atropelou foi o Piloto, que tinha um depósito de construçãono bairro. Ele ficou com tanta pena dos meninos que deu esse King para eles. As pes-soas no bairro era assim. Uns se preocupavam mais com os outros.

A comunidade era unida para assistir a jogos de futebol de várzea também.Uma vez teve a célebre partida de Casados contra Solteiros. A torcida em volta docampo e apinhada no barranco que servia de arquibancada. Tudo lotado. O Seu

Em pé: Renata, Luiz, Gerson (com Miguel no colo), Gustavo e Júnia; agachados:Lucas e Gino.

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Gílson – que trabalhava consertando máquinas de lavar roupa – era o goleiro do timede casados. Foi uma piada, porque ele jogou bastante calibrado, já tinha tomadoumas boas biritas. Sabe-se lá quantas bolas ele estava enxergando – se é que esta-va. Era só chutar nele que era gol. E ele no meu time.

Lembro que o Seu Nilo – que ainda era chamado só de Nilo – era um dosbeques da equipe dos solteiros. Estava 3 a 3 e eu acabei fazendo o gol da vitória parao time dos cônjuges. Acho que, no meio de alguns Luizes Murta, o Seu Gilson con-seguiu me localizar, porque ele pulou, me abraçando, na maior comemoração. Eledeve ter mirado no Luiz do meio. Mas antes disso, o outro beque do time deles medeu uma traulitada, quando eu avançava pela lateral, que eu saí capotando para forado campo. Mas levantei inteiro para continuar a jogar. Vencemos. Foi uma festa.

No mesmo ano que mudamos, matriculamos o Gino e o Gerson na escola,no Colégio Solar – que era um espaço que um centro espírita emprestou para oGoverno fazer funcionar uma escola – na Rua São Miguel. A 4ª série do Gerson e a2ª do Gino, no ano seguinte (1968), no Colégio Três Poderes, na avenida Portugal.Girselle tinha feito o primário na escola Ana Cintra e já estava indo estudar no ColégioBelo Horizonte (onde mais tarde seria o Prédio da Fafi-BH), na Antônio Carlos.

Tempos mais tarde, o telefone chegou lá em casa. Reconheço a utilidade doaparelho, mas eu mesmo não gosto de telefonar. Mas lá em casa foi aquela farra.Maria, primeiro, ligando para as amigas e os parentes dela. Depois Girselle, Gerson eGino. Cada um queria ser o primeiro a ligar para os amigos, dando o número do tele-fone. Pouco depois, compramos um gravador. Foi outra farra, eles gravando a voz,falando, cantando e tocando violão.

Alguns anos depois, compramos nosso primeiro carro, um Fuscão ano 1970verde-escuro. Era equipado, tinha cano de descarga largo, roda de magnésio, pneuslargos Godrich, que não eram radicais, mas já tinham aço nas beiradas. Gostavadaquele carro. Viajamos bastante nele para Guarapari.

Lucas (D), Gino, Luiz, Gerson, Roberto e Gustavo, no dia que o Cruzeiro foicampeão Brasileiro, em 2004.

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Viagens para o litoral

“Fantasmas” à beira-mar

A primeira vez que fomos a Guarapari estava um tempo chuvoso. A viagemera cansativa. A gente tinha que ir daqui a um determinado ponto e pegar o (trem)Vitória-Minas. Tínhamos que dormir em Vitória, não tinha condução para Guarapari.Tinha que arranjar um caminhão para levar o pessoal lá para a praia da IgrejaAdventista. E a baldeação de um trem para o outro foi feita em um lugar horrível, umlamaçal tremendo. Ficamos com lama até o joelho, um transtorno danado. As cri-anças ainda se acomodaram nos bancos da rodoviária, mas nós ficamos sem dormirmesmo.

De manhã, em Vitória, eu saí para arranjar um caminhão. O motorista do queconsegui estava com o braço engessado. E ao passarmos na barreira, um sargentocaxias lá encrencou, por causa do gesso e das pessoas viajando em um caminhãoaberto. Eu tive que me identificar como Tenente da Força Aérea e conversar bastantecom ele, para nos liberar. Quando chegamos – era sábado, dia de culto – não tinhaninguém para pregar. Eu, cansado de viagem, mal-dormido, tomei um banho e tiveque ir pregar, porque as ovelhinhas queriam alimento (veja anexo 2).

Nós alugamos as duas casas – isoladas das cabines, simples – que eramgeralmente para pastores. Mas como reservamos com muita antecedência, con-seguimos esses lugares melhores. E toda noite a gente ficava batendo papo com aspessoas que alugaram a outra casa. Numa delas eu e uns colegas tivemos uma idéia:passar um susto no pessoal todo. Eu ficaria contando casos de medo, de almas deoutro mundo – coisa em que os adventistas não acreditam – e os outros completari-am o plano.

Eu estava lá contando os casos de Mariana, como o do sacristão que, daentrada da igreja, acendiaas velas do altar, esticandoo braço. À certa hora,interrompi uma dashistórias. “Eu to vendo unsvultos brancos ali”, eudisse. “Será fantasma?”.Uma das mulheres seespantou. “Que é isso,Seu Murta!” Dois homensestavam vindo cobertoscom lençóis e com velas

Gino (D), Girselle, Maria,Luiz (com Gustavo no colo)e Gerson.

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acesas na altura do rosto. Aícomeçou aquela gritaria, aquela cor-reria. Maria, que não sabia de nada,pegou o filho que estava perto, oGino, correu pra dentro de casa, colo-cou o menino no chão, jogou umcolchão por cima dele e deitou emcima, para protegê-lo. E o Gino sementender coisa alguma, porque elenão tinha vistos os fantasmas, só acorreria.

A praia de lá era boa. Eu gostava muito de nadar, ia para o fundo mesmo. Ianadando o meu nado particular de costas, não esse de competição, mas uma espé-cie de nado de peito invertido. E só voltava quando via que as pessoas na areiaestavam pequenininhas. Era um perigo ter uma cãibra ou um desmaio. Como ia con-tinuar nadando? É muita loucura que a gente faz quando é mais novo. Hoje eu nãofaço uma coisa dessas. Mas já atravessei a lagoa da Pampulha a nado, para ganharum maço de cigarro. E já escalei uma chaminé altíssima em Lagoa Santa, onde fuiatacado por marimbondos e tive que agüentar e descer devagar, para não cair.

BuenaMais de 10 anos depois disso, fui, com Maria e Gustavo, passar uns dias na

casa de Seu Oscar, na praia Porto das Gaivotas, na região de Buena, no norte doestado do Rio de Janeiro. Fica a 620km de BH, a 15km de São Francisco e a 10kmde Guaxindiba. Tudo ali é distrito de São João da Barra. O Alfeu Farias é que desco-briu aquilo, que era um pasto pertinho da praia. O fazendeiro lá, o Têmis, resolveulotear.

Alfeu comprou um lote lá e falou com o Seu Oscar, que também comprou econstruiu. Gostamos de lá e compramos uma casa de Lizandro Victoria, que só cons-

Luiz em Santos, SP.

Luiz e Maria, em Mariana, MG.

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truiu lá para investir. Só mandei fazer as varandas, da frente e do fundo. Por três anosficamos com aquela casa, indo todos os meses de janeiro e julho. Vendi por CZ$ 65mil – eu queria CZ$ 70 mil, mas ele chorou e acabou comprando à vista, sem nem irlá pra ver – para fazer uma reforma completa na casa do Planalto.

Luiz, Júnia (com Miguel no colo), Gerson, Gino, Lucas, Consuelo e Renata.

Luiz e o cachimbo (1997).

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Mesmo vindo muita algacom a maré, principalmente demanhã cedo, praia era boa. Mas aágua era da cor de água de vidrode azeitona, porque o Rio Paraíbado Sul desemboca lá perto. Só vi aágua azulzinha lá um dia. Mas 7kmdepois, tinha a Praia do Casarão.Essa sim não tinha a influência dorio, a água é clarinha e rasinha:você vai longe, andando parapegar jacaré com a prancha de iso-por, com a água na altura da cintu-ra. Foi um tempo bom.

* * *Eu fiquei viúvo em 1998. Depois de 45anos e meio de casamento, minhaesposa, Maria, faleceu dormindo, víti-ma de um ataque cardíaco fulminante,apenas três anos depois de minhaamada filha Girselle. Ela foi uma com-panheira e tanto, a mãe dos meus fi-lhos, o meu braço direito, a pessoacerta na hora certa, que Deus colocouna minha vida. Hoje tenho outra com-panheira – que também se chamaMaria. Espero terminar meus dias aolado dela, com quem também soumuito feliz.

* * *

Tive uma infância difícil, muito dura, euma adolescência mais ainda. Hoje, ape-sar dos transtornos próprios da 3ª idade,me sinto mais feliz, tranqüilo e realizadoque quando era novo. O tempo mais felizque eu estou tendo é na velhice. É quan-do estou tendo a oportunidade deaproveitar mais a vida.

Luiz e Maria com o neto Lucas.

Luiz em Natal, RN.

Maria carrega a neta Renata.

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Brasão dafamília Murta

Família de origem espanho-la que passou a Portugal na

pessoa de Heraldo Murta. Senhordas Terras de Murta e da quinta do

mesmo nome, teve seus descendentes servindo as casas reais de Portugal. Entre osilustres se-nhores, destacou-se Pedro de Alcântara Murta, Par do Reino, 1º Conde eDuque. Teve seu brasão de armas concedido por Dom Pedro I, rei de Portugal, comdireito a sucessão dos herdeiros.

Murta (myrtus communis, myrto ou myrtle) – árvore arbustiva e ornamental,de sementes vermelhas e floração muito branca e perfumada, com cheiro semelhanteao que recende da planta dama-da-noite. Indicada para ser plantada sob fiação. Écitada no Santo Livro (Isaías 41:19): “Plantarei no deserto o cedro, a árvore da sita ea murta e a oliveira”.

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Anexos

Anexo 1

Genealogias

Luiz Antero Murta – 2005 Bisavós paternos: Teotônio Madureira Murta e Emília Orozimba de Carvalho Gama; Avós Paternos: João do Espírito Santo Murta e Jovita Nascimento Rocha Murta;Avós Maternos: José Alves de Almeida e Ana Zeferina dos Santos; Pais: José Murta Sobrinho (Seu Candinho) e Elisa Alves de Almeida Murta; Irmãos: Jandir Martinho Murta; Jacy Geralda Murta e Maria de Lourdes Murta. (Outrostrês irmãos – Iolanda Murta, Justino Guadalupe Murta e José Clemente Murta – fale-ceram ainda recém-nascidos).Esposa: Maria Radicchi (Murta).Filhos: Girselle Radicchi Murta; Gerson Amadeu Murta; Gino Luiz Murta; GustavoCésar Radicchi Murta. Noras: Consuelo de Araújo Marques; Júnia Gomes Chaves; Elaine Souza Dantas; Netos: Renata Marques Murta; Lucas Marques Murta; Miguel Chaves Murta.

Maria Radicchi (Murta)Avós paternos (italianos): Antônio Radicchi e Palmira Radicchi.

Avós maternos: João Albino de Morais e Ismênia de Morais. Pais: Amadeu Radicchi e Esther Augusta de Morais Radicchi. Irmãos: Ivone Radicchi; Antônio Radicchi; Humberto Radicchi; Oswaldo Radicchi eCélia Radicchi de Oliveira. Tios: Licurgo Radicchi; Catharina Radicchi; Ema Radicchi (italianos);Marido: Luiz Antero Murta. Filhos: Girselle Radicchi Murta; Gerson Amadeu Murta; Gino Luiz Murta; GustavoCésar Radicchi Murta. Noras: Consuelo de Araújo Marques; Júnia Gomes Chaves; Elaine Souza Dantas; Netos: Renata Marques Murta; Lucas Marques Murta; Miguel Chaves Murta.

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Anexo 2

Meu vôo para a liberdade

Luiz Antero MurtaA maior parte da minha infância e toda a minha juventude passei sem religião,

que para mim era algo que não me interessava, atraía e empolgava. Não obstante,aos 31 anos de idade, depois de escapar de arapucas armadas pelos batistas,metodistas e testemunhas de Jeová, respectivamente, decidi me envolver e compro-meter com o Adventismo do 7º Dia, por intermédio do seu programa radiofônico

A Voz da Profecia e dos seus cursos bíblicos por correspondência. Passei 26anos como um zeloso, fiel e compenetrado membro da Igreja Adventista do 7º Dia,na esperança de lá encontrar integridade, seriedade, sinceridade, justiça e lealdade,amor, temor a Deus, amor ao próximo e respeito à minha boa fé.

Mas eu me decepcionei! E como me decepcionei, pois descobri que oAdventismo do 7º Dia, em particular, e os demais sistemas religiosos, as demaisreligiões convencionais em geral, não passam de antros de bandalheiras e escolas defanatismo, tapeação e hipocrisia, que garantem a sua sobrevivência, o seu cresci-mento, a sua prosperidade e o seu poderio através do massacre dos seus incautos eindefesos adeptos, pela escravidão psicológica e teológica, pelo medo, pelo senti-mento de culpa e pelo engano que incutem nos mesmos, o que não tem nada a vercom Deus, que, sendo um Pai de infinito amor, deseja a plena liberdade e felicidadedos seus filhos.

Cumpre-me esclarecer que sou um homem muito tolerante, porém nãoignoro que há um limite além do qual a tolerância deixa de ser uma virtude. Assim, omeu afastamento (da igreja) não foi motivado tanto pelas fraudes, malabarismosteológicos, trampolinagens exegéticas, demagogia, propaganda enganosa e falca-truas que, durante 26 anos, eu testemunhei no âmbito do Adventismo do 7º Dia. Nempelas incontáveis bandalheiras e patifarias que por tanto tempo eu vi se repetiremimpunemente no ministério adventista, que, com sacrifício, eu ajudei a remunerar eassalariar.

Isso eu tolerei com relativa facilidade. O meu afastamento definitivo,irrevogável e irreversível deveu-se principalmente ao seguinte fato: Nosso Senhordisse que “Deus é Espírito e importa que os seus adoradores O adorem em espíritoe em verdade” (S. João 4: 24) ; “E conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”(S. João 8: 32); “Se pois o Filho vos libertar, verdadeiramente sereis livres” (S. João8:36).

Pois bem, atentando com sinceridade e seriedade para essas solenes ver-dades ensinadas pelo Mestre, eu constatei, estarrecido, que durante o meu longoperíodo de vivência, envolvimento e comprometimento com o sistema – a organiza-ção, a empresa multinacional Adventista do 7º Dia – eu não adorei a Deus em espíri-to e em verdade, pois não conheci a verdade. E, por conseguinte, não permiti queCristo me libertasse, não passando, portanto, de um mero escravo, duplamente

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escravo: escravo de mim mesmo e escravo de um sistema desumano, que de religiãosó tem o rótulo.

Então, em desespero, eu clamei a Deus por socorro e Ele, na sua infinita bon-dade de Pai, me socorreu, me abriu os olhos e me ajudou a tomar a grande, impor-tante e sábia decisão de permitir que Cristo me libertasse de uma porção de coisas,dentre as quais a hipnose coletiva, a lavagem cerebral, a compulsão e o condiciona-mento a que por mais de um quarto de século eu estive submetido.

Afastei-me do mundo religioso convencional, em geral, e do Adventismo do7º Dia, em particular, mas não fiquei inativo na minha religiosidade, espiritualidade,experiência cristã e relacionamento com Deus. Pelo contrário, estou ativamenteempenhado em desaprender equívocos, erros, enganos e inverdades que por tantosanos me foram impingidos como verdade presente. Por isso hoje, no verdadeiro sen-tido, eu creio no Senhor Jesus Cristo como meu Salvador pessoal, amo a Deus Paicom entendimento e ao meu próximo como a mim mesmo: sem preconceitos. Tenhobom caráter, mente equilibrada, vivo em paz, harmonia, comunhão e sintonia comDeus, com os mestres invisíveis das hostes celestiais, comigo mesmo, com os meussemelhantes, com a natureza e com o estupendo, fantástico, maravilhoso e infinitouniverso cósmico. Sou feliz e próspero em todos os sentidos e sob todos os aspetos. Na graça e poder do Altíssimo e grande “EU SOU”, portanto, sinto-me um novohomem, que, por ter agora a mente livre, una e descondicionada, encontra assoluções e vitórias. Na força da ação e pensamento positivos, eu sou livre, indepen-dente, lúcido, esclarecido e moderado. Tenho a alegria de viver, uma riqueza queninguém pode me tirar, domino as tensões, supero os obstáculos, revezes e dificul-dades, sendo, assim, bem-sucedido nos meus empreendimentos. Cultivo as virtudese sou profundamente religioso, pois pratico a profunda e autêntica religião interior, aque Cristo praticou quando esteve aqui neste mundo e que consiste em:

• Ter por templo o Universo; • por imagem, Deus; • por altar, a consciência; • por lei, o amor; • por santuário, o cerne da alma, o mais íntimo, sensível e profundo recôndito do ser,que é o lugar onde Deus mais gosta de estar.

Sinto a presença Dele em todas as circunstâncias, nada me pode abalar,porque a minha mente repele e rechaça tudo o que é negativo. Prossigo imperturbá-vel apesar da agressividade do mundo e da hostilidade das pessoas que aindavagam nas trevas. Esforço-me em perdoar e repelir da minha mente as ofensas rece-bidas. Livrei-me dos preconceitos, do racismo religioso, da charlatanice teológica edas algemas mentais e psicológicas com que as religiões tradicionais prendem eescravizam os incautos. Emprego o meu novo estado espiritual para o bem de todos,sem exceção, e procuro cumprir a missão que me cabe dentro do Plano Cósmico deDeus.

Quem, pela graça divina, alcançou tais condição, estatura, ideal e padrão

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espirituais não precisa pertencer a denominação religiosa alguma ou permanecerescravizado a qualquer sistema religioso. Hoje me alegro quando encontro pessoasverdadeiramente salvas pelo sangue do Cordeiro de Deus, com as quais me congra-tulo e afirmo que fui e sou muito feliz e lúcido por abandonar o Adventismo do 7º Dia.E por compreender que seria inútil e inócuo ingressar em qualquer outra teologiainteresseira, pois tenho aprendido que há patamares espirituais nos quais se situamas pessoas. Cada um de nós está no lugar certo e merecido.

Por isso, não lamento meus anos de Adventismo. Eles me foram necessários,de certo modo. Por caminhos que só Deus sabe e conhece, eles me prepararam parauma nova e futura tomada de consciência. Os meus 26 anos de escravidão adven-tista deram-me, por caminhos aparentemente tortuosos, a coragem e a decisão deaceitar a liberdade que Cristo oferece. Louvo e bendigo a Deus Pai por isso e sinto-me no dever de aconselhar aos sinceros a fazerem de suas vidas uma constanteaceitação e permitirem que o “Assim seja” de Deus faça parte de suas vidas.

Depois de me libertar de uma, participar agora de qualquer outra teologiainteresseira seria para mim o pior dos retrocessos. É o que Deus tem trazido à minhacompreensão, que, aflorando em minha mente, não me permite mais continuar com-pactuando com a escravidão, os erros e desatinos dessas teologias. Compreendosomente agora que todas essas religiões e seitas que formam o cipoal religioso atualnão estão anunciando o Evangelho do Reino, o Evangelho de Jesus, mas, sim, umEvangelho sobre o Reino, um evangelho sobre Jesus, coisa bem diferente.

Não há, portanto, necessidade de qualquer tipo de filiação religiosa, a não serpara aqueles que não conseguem sobreviver se não estiverem agrupados ou atrela-dos a essas empresas multinacionais da fé, rejeitando, assim, a libertação total ofer-ecida pelo Senhor Jesus Cristo.

Durante os 26 anos em que estive hipnotizado pelo Adventismo do 7º Dia,não me foi possível compreender com clareza o plano de Deus, assim como muitaspassagens bíblicas, como, por exemplo “Aquele que perseverar até o fim, esse serásalvo” (Mateus 24:13). Hoje compreendo que aquele que perseverar até o fim de suavida, aquele que mantiver acesa a tocha do amor, aquele que souber conservar a luz,a nova luz que a cada instante recebe, esse será salvo. Na realidade, já está salvo,porque a salvação é um estado d’alma e não a chegada a um lugar geográfico qual-quer.

Só depois de minha libertação é que me foi possível afirmar, com toda con-vicção, que a Bíblia é uma fonte inesgotável de sabedoria e que as palavras de Cristosão muito significativas, pois com uma só frase Ele diz tanto que nem semprepodemos alcançar todos os seus significados. Antes eu o fazia, mas como papagaio– por ouvir dizer. Hoje afirmo por experiência própria. Deus tem me mostrado que, nofundo, não é grande a diferença entre adventistas e evangélicos, visto serem todoseles alarmistas, preconceituosos e intolerantes.

Por causa de minha feliz decisão de sair da prisão fúnebre, livrar-me do “laçodo passarinheiro” e ter a mente livre para pensar, eu perdi os “amigos” adventistas,que, na realidade, não eram amigos. Mas Deus está colocando outros, verdadeiros,no lugar dos que eram falsos.

Belo Horizonte, quinta-feira, 13 de maio de 1982.

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Anexo 3

Músicas favoritas

Hey JudeThe Beatles

Hey JudeDon't make it badTake a sad song and make it betterRemember to let her into your heartThen you can start to make it better

Hey JudeDon't be afraidYou were made to go out and get herThe minute you let her under your skinThen you'll begin to make it better

And anytime you feel the painHey Jude refrainDon't carry the world upon your shouldersFor well you know that it's a foolWho plays it coolWhile making his world a little colderLa Na Na Na Na Na Na Na Na

Hey Jude Don't let me downYou have found her Now go and get herRemember to let her into your heartThen you can start to make it betterSo let it out and let it inHey Jude beginYou're waiting for someone to performwithAnd don't you know that it's just youHey Jude you doThe movement you need is on yourshoulders

La Na Na Na Na Na Na Na Na yeah

Hey JudeDon't make it bad Take a sad song and make it betterRemember to let her under your skinThen you begin to make it better, better,better, better, better, better, better(Na Na Na Na Na Na Na Na Na Hey Jude) X 18

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Hino dos Aviadores BrasileirosLetra: Cap Armando Serra de Menezes

Música: Cap João Nascimento

Vamos, filhos altivos dos ares,Nosso vôo ousado alçar;Sobre campos, cidades e maresVamos nuvens e céus enfrentar. D'astro rei desafiamos os cimosBandeirantes audazes do azul;Às estrelas de noite subimosPara orar ao Cruzeiro do Sul. Contato, companheiros!Ao vento sobranceirosLancemos o roncarDa hélice a girar. (2x) Mas se explode o corisco no espaçoOu a metralha na guerra rugir;Cavaleiros do século do açoNão nos faz o perigo fugir. Não importa a tocaia da mortePois que a pátria dos céus o altar;Sempre erguemos de ânimo forteO holocausto da vida a voar. Contato, companheiros!Ao vento sobranceirosLancemos o roncar

Da hélice a girar. (2x)

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Canção do ExércitoLetra: Ten. Cel. Alberto Augusto

MartinsMúsica: T. de Magalhães

Nós somos da Pátria a guarda,Fiéis soldados,Por ela amados.Nas cores de nossa fardaRebrilha a glória,Fulge a vitória.

Em nosso valor se encerraToda a esperançaQue um povo alcança.Quando altiva for a TerraRebrilha a glória,Fulge a vitória.

A paz queremos com fervor,A guerra só nos causa dor.Porém, se a Pátria amadaFor um dia ultrajadaLutaremos sem temor. (2x)

Como é sublimeSaber amar,Com a alma adorarA terra onde se nasce!Amor febril, pelo BrasilNo coração, nosso que passe.

E quando a nação querida,Frente ao inimigo,Correr perigo,Se dermos por ela a vidaRebrilha a glória,Fulge a vitória.

Assim ao Brasil faremosOferta igualDe amor filial.E a ti, Pátria, salvaremos!

Rebrilha a glória,Fulge a vitória.

A paz queremos com fervor,A guerra só nos causa dor.Porém, se a Pátria amadaFor um dia ultrajadaLutaremos sem temor. (2x)

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Canção do ExpedicionárioLetra: Guilherme de Almeida

Música: Spartaco Rossi

Você sabe de onde eu venho?Venho do morro do engenho, Das selvas, dos cafezais,Da boa terra do coco,Da choupana onde um é pouco,Dois é bom, três é demais. Venho das praias sedosas,Das montanhas alterosas,Dos pampas, do seringal,Das margens crespas dos rios,Dos verdes mares bravios,Da minha terra natal.Por mais terras que eu percorra,Não permita Deus que eu morra,Sem que volte para lá;Sem que leve por divisaEsse 'V' que simbolizaA vitória que virá:Nossa vitória final,Que é a mira do meu fuzil,A ração do meu bornal,A água do meu cantil,As asas do meu ideal,A glória do meu Brasil.Eu venho da minha terra,Da casa branca da serraE do luar do meu sertãoVenho da minha MariaCujo nome principiaNa palma da minha mãoBraços mornos de MoemaLábios de mel de IracemaEstendidos para mimÓ minha terra queridaDa senhora AparecidaE do Senhor do Bonfim!Por mais terras que eu percorra,Não permita Deus que eu morra,Sem que volte para lá;Sem que leve por divisa

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Esse 'V' que simbolizaA vitória que virá:Nossa vitória final,Que é a mira do meu fuzil,A ração do meu bornal,A água do meu cantil,As asas do meu ideal,A glória do meu Brasil.

Você sabe de onde eu venho?É de uma Pátria que eu tenhoNo bojo do meu violão;Que de viver em meu peitoFoi até tomando jeitoDe um enorme coração.Deixei lá atrás meu terreiroMeu limão, meu limoeiro,Meu pé de jacarandá,Minha casa pequeninaLá no alto da colina,Onde canta o sabiá.

Por mais terras que eu percorra,Não permita Deus que eu morra,Sem que volte para lá;Sem que leve por divisaEsse 'V' que simbolizaA vitória que virá:Nossa vitória final,Que é a mira do meu fuzil,A ração do meu bornal,A água do meu cantil,As asas do meu ideal,A glória do meu Brasil.

Venho do além desse monteQue ainda azula ó horizonte,Onde nosso amor nasceu;Do rancho que tinha ao lado Um coqueiro que, coitado,De saudade já morreu.Venho do verde mais belo,Do mais dourado amarelo,Do azul mais cheio de luz,

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Cheio de estrelas prateadasQue se ajoelham deslumbradas,

Fazendo o sinal-da-cruz!Por mais terras que eu percorra,Não permita Deus que eu morra,Sem que volte para lá;Sem que leve por divisaEsse 'V' que simbolizaA vitória que virá:Nossa vitória final,Que é a mira do meu fuzil,A ração do meu bornal,A água do meu cantil,As asas do meu ideal,A glória do meu Brasil.

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Canção da InfantariaLetra: Hildo Rangel

Música: Thiers Cardoso

Nós somos estes infantesCujos peitos amantes,Nunca temem lutar.Vivemos, morremos,Para o Brasil nós consagrar! Nós, peitos nunca vencidos,De valor desmedidos,No fragor da disputa:Mostremos que em nossa pátria temos,Valor imenso no intenso da luta!

És a nobre Infantaria,Das armas a rainha,Por ti daria a vida minha!E a glória prometida,Nos campos de batalha,Está contigo, ante o inimigo,Pelo fogo da metralha!És a eterna majestade,Das linhas combatentesÉs a entidade dos mais valentes.Quando o toque da vitóriaMarcar nossa alegria,Eu cantarei, eu gritarei:"És a nobre Infantaria!"

Brasil, te darei com amor,Toda seiva e vigor,Que em meu peito se encerra.Fuzil! Servil!Meu nobre amigo para guerra!Ó meu amado pendão,Sagrado pavilhão, Que a glória conduz,Com luz, sublime, amor se exprimeSe do alto me falas,Todo roto por balas!És a nobre Infantaria,Das armas a rainha,

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Por ti daria a vida minha!E a glória prometida,Nos campos de batalha,Está contigo, ante o inimigo,Pelo fogo da metralha!És a eterna majestade,Das linhas combatentesÉs a entidade dos mais valentes.Quando o toque da vitóriaMarcar nossa alegria,Eu cantarei, eu gritarei:"És a nobre Infantaria!"

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Anexo 4

Elogios militares

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Elogios militares

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Elogios militares

“Sempre apregoei por todos os cantos, destacando as quatro pilastras-mes-tra da Abemifa (Associação Beneficente dos Militares das Forças Armadas): oPresidente; O cel. Edigênio (sempre presente em qualquer circunstância e, mesmonão sendo tesoureiro, diariamente acompanhou de perto a situação financeira); oCap. Joel (pau pra toda obra), tesoureiro e secretário e o Tem. Murta, na biblioteca (oincansável). (...) Como sempre me expresso sobre as quatro Colunas-mestra, lá vemo Tem. Murta (FAB), a 5ª vez na biblioteca. Um braço direito que, com afeição.Assiduidade e interesse, trouxe a biblioteca organizada, em dia, melhorando-a,chegando mesmo a nos comover”.

Cap. Vicente Brandão Macedo.Ex-presidente da Abemifa/2002-2004.

Jornal informativo da entidade. Julho/agosto de 2004.

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