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Entrevista realizada pelo aluno Constantino Quarezemin Neto Transcrição de entrevista: trabalho de seminário de pesquisa em ensino Entrevistador: Bom, professor. O primeiro exercício de memória que a gente quer buscar é sobre família e vida escolar. Eu queria perguntar pro senhor como foi a sua formação escolar, o que o senhor se recorda. Queria que o senhor dissesse um pouco sobre a sua formação escolar. Entrevistado: Nossa, minha formação escolar foi muita heterogenia. Assim, porque na verdade eu sou deu ma família de imigrantes né. Eu sou filho de taiwaneses, e daí tipo assim, lá eles tem muito essa coisa de valorização da educação, então meus pais apesar de não terem dinheiro no começo quando eles vieram pro Brasil, desde o começo eles já me botaram em escola particular, e seguiram os conselhos de alguns amigos que eles tinham aqui de que “Ah, colégios religiosos são mais rígidos, são mais eficientes” e eles me botaram num colégio religioso que na verdade; que na verdade eu sou natural de Coritiba né; eles me botaram num colégio religioso que se chamava Nossa Senhora do Sion. Que daí tinha lá uma freira, que era a tal da Sacristina, que era o terror, assim, o pavor, o pandemônio né. Que daí ela gritava, então tipo, na verdade quando eu era pequeno eu tive uma educação infantil bem assim... traumática. Porque as professoras tinham autorização pra dar palmada e essas coisas, então, e tinham uma coisas assim sem nenhum... é... digamos assim... muito mais a ver com a sociedade violenta dos anos 70 do que propriamente com educação religiosa né, porque daí por exemplo assim, a cena como era aquela professora berrando de saltar a veia, roxa né, berrando pra uma criança de 4 ou 5 anos né, sabe, ameaçando de palmada e castigos. Eu lembro que uma vez, bom, todo mundo levava liçãozinha pra casa né, levava o caderninho com a lição pra casa que era um papelzinho com um clipes assim, dentro do seu caderno. E daí no dia seguinte tinha que voltar com a lição feita, com o papel e o clipes né, porque o colégio não queria gastar com clipes, e eu vivia perdendo o clipes. E daí o que acontece, numa época a professora entrou num

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Entrevista realizada pelo aluno Constantino Quarezemin Neto

Transcrição de entrevista: trabalho de seminário de pesquisa em ensino

Entrevistador: Bom, professor. O primeiro exercício de memória que a gente quer buscar é sobre família e vida escolar. Eu queria perguntar pro senhor como foi a sua formação escolar, o que o senhor se recorda. Queria que o senhor dissesse um pouco sobre a sua formação escolar.

Entrevistado: Nossa, minha formação escolar foi muita heterogenia. Assim, porque na verdade eu sou deu ma família de imigrantes né. Eu sou filho de taiwaneses, e daí tipo assim, lá eles tem muito essa coisa de valorização da educação, então meus pais apesar de não terem dinheiro no começo quando eles vieram pro Brasil, desde o começo eles já me botaram em escola particular, e seguiram os conselhos de alguns amigos que eles tinham aqui de que “Ah, colégios religiosos são mais rígidos, são mais eficientes” e eles me botaram num colégio religioso que na verdade; que na verdade eu sou natural de Coritiba né; eles me botaram num colégio religioso que se chamava Nossa Senhora do Sion. Que daí tinha lá uma freira, que era a tal da Sacristina, que era o terror, assim, o pavor, o pandemônio né. Que daí ela gritava, então tipo, na verdade quando eu era pequeno eu tive uma educação infantil bem assim... traumática. Porque as professoras tinham autorização pra dar palmada e essas coisas, então, e tinham uma coisas assim sem nenhum... é... digamos assim... muito mais a ver com a sociedade violenta dos anos 70 do que propriamente com educação religiosa né, porque daí por exemplo assim, a cena como era aquela professora berrando de saltar a veia, roxa né, berrando pra uma criança de 4 ou 5 anos né, sabe, ameaçando de palmada e castigos. Eu lembro que uma vez, bom, todo mundo levava liçãozinha pra casa né, levava o caderninho com a lição pra casa que era um papelzinho com um clipes assim, dentro do seu caderno. E daí no dia seguinte tinha que voltar com a lição feita, com o papel e o clipes né, porque o colégio não queria gastar com clipes, e eu vivia perdendo o clipes. E daí o que acontece, numa época a professora entrou num surto e me expulsou de sala, e eu não podia voltar enquanto não voltasse com um clipes. Por três dias a bibliotecária me ajudou, por três vezes né, a bibliotecária me ajudou, né, me dando clipes. Mas toda vez que eu fazia a lição o clipes sumia, não sei o que acontece né. Até que um dia ela me expulsou, a bibliotecária não tinha mais clipes e eu fiquei zanzando o resto da manhã, pelo pátio do colégio pra ver se eu não achava um clipes no chão. E daí elas faziam coisas do tipo, por exemplo, colocar aquele painel no quadro, assim, com carneirinhos com o nome de cada aluno, aí a medida que o aluno vai melhorando seu desempenho o carneirinho vai subindo o morro, e o meu carneirinho tava sempre nas trevas ali, sabe, sempre no inferno (risadas). Daí tipo assim, aquele lance da professora te chamar o aluno de burro, de estúpido, de... enfim. Sabe, era terrorismo, a gente tinha medo assim, porque elas usavam força física. Elas seguravam pelo braço, jogavam na sala assim, um lance punk. Até a bibliotecária gritava, imagina. E o lance assim na educação infantil mesmo, graças a Deus isso são águas passadas. Depois eu fui pro Dom Bosco (pigarro). O Dom Bosco e apesar de ser um ensino leigo assim, ele foi fundado por militares né. Então foi um ensino bastante rígido assim. Por exemplo, até a quinta sexta série a gente tinha que esperar o professor em pé do lado da carteira, só que mesmo assim né, o lance já era um pouco mais bagunçado, a galera já fazia uma zoninha mais assim. Então (pausa), basicamente assim, o meu histórico de estudo foi mais (pausa), digamos assim, mais tradicionalista em relação a tudo isso que eu trabalho hoje. Eu ainda sou da época e

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quem por exemplo assim, fazer terceirão era uma coisa que é pra passar no vestibular, a conclusão do ensino médio é entrar na universidade, então por exemplo, chegava o terceirão, aquela paranóia, todo mundo estudando, sabe, a pressão dos pais pra escolher uma carreira. Então, basicamente a minha educação, ela, principalmente eu não considero ela igual à que aconteceu com os meus colegas da época basicamente por eu ser filho de imigrantes né. Então o que eu senti, além da questão “educação”, também foi a questão do choque cultural né, do que acontecia dentro daminha casa e o que acontecia fora e os referenciais do quê que é certo, do quê que é errado, isso meio que deu um parafuso assim, deu pra dar uma paranóia legal, sabe, deu pra dar uma confundida. Então é esse o meu histórico, não sei o que mais você quer saber da minha vida escolar?

Entrevistador: Com relação ainda com sua vida escolar, com relação ao ensino de história. Você guarda alguma recordação, uma lembrança específica de aula de história ou ensino e trabalhos?

Entrevistado: Sim, terríveis! Eu reprovei em história na quinta série, né, quando eu estudava nesse colégio de freiras. Pra mim a história era o que, a história era algo puramente braçal, estudo era uma coisa braçal né. É uma coisa que a gente entende até hoje, é uma coisa que, por exemplo, eu tento quebrar. Uma coisa assim ó, quando tu entrar em sala de aula ,daqui a (pausa), um ano, vai ser em breve né, que tu vai entrar em sala de aula como profissional já. Uma coisa que tu vai perceber e eu espero que uma coisa que você não reproduza também, mas é uma coisa que 99% dos professores fazem, e eu nem culpo eles por isso porque é uma cultura, uma cultura que o Brasil desenvolveu, de entender que estudar (pausa), o bom estudante é aquele que se esforça. Mas eu sempre falo pros alunos que se eu quisesse que vocês se esforçassem eu sentava aqui e mandava que vocês fizessem cinqüenta flexões enquanto eu ia dormir! Todo mundo acha que estudo é esforço e esse esforço ele demanda recompensa, e eu não sei se isso é uma herança da sociedade escravista, de onde vem isso daí. Mas que todo mundo que esforça tem direito a uma recompensa, então tem aquela aluna que se senta na frente, que você manda “faça tal trabalho”, ela pega vai lá e faz. E basicamente, a gente tem também aquele vagabundo, o povo que senta lá no fundão lá, que ta sempre dormindo, que “panãnã panãnã”. Então basicamente, todos nós, inclusive professores (pausa), as alunas aplicadas, os alunos não aplicados, todos nós esquecemos o maior referencial do ensino, que é o quê? A assimilação da ciência. O que é a ciência? Pra quê que serve a ciência? A ciência é a explicação do mundo. Eu estudo pra entender o mundo. E basicamente isso é uma coisa assim, que em muitas salas de aula em que eu entro, eles estranham isso. Porque basicamente eu acho que desde aminha geração, “entendeu?”, eu quando eu era moleque, eu também passava por isso assim, basicamente eu não entendia pra quê que serviam as coisas, saca? Então tudo era, Mesopotâmia, Egito, faz uma maquete, enfim, faz uma esfinge com papel maxê, fica se matando de fazer desenho, colorir desenho e aí ninguém te explica pra quê que serve aquilo, saca? E a gente passa a vida inteira aprendendo que estudar é se esforçar, e quando tu te esforça a professora gosta de ti, isso faz a sua cabeça, você ganha uma nota boa e não apanha da mãe, porque naquela época a gente apanhava da mãe. Eu quando cheguei com o boletim com quatro recuperações ela quebrou uma régua de cinqüenta centímetros assim, em 30 pedaços né, na minha mão assim, ficou tudo marcado. Mas enfim, até hoje nós temos esse preconceito de que a ciência, ela se estuda só pelo esforço e não pela assimilação, e não pela sua funcionalidade ou explicação do universo né, e nós temos esse problema seriíssimo, quando, por exemplo, chega o aluno do

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terceirão e a gente vê, por exemplo, um diagnóstico, por exemplo, eu coordeno um pré-vestibular né, eu coordeno um pré-vestibular pra alunos de baixa renda, que é um dos projetos lá do Padre Wilson. E daí o que acontece, muitos desses alunos vêm sem a mínima noção do que eles querem fazer no vestibular, e não só eles assim, todos os alunos de terceirão em geral, ou eles lá do pré-vestibular que são mais velhinhos. E basicamente, quando tu pergunta eles ficam pensando assim, “vou fazer tal curso porque tal curso tem tal profissão, eu gosto de tal profissão”, “vou fazer tal coisa porque tal coisa ta precisando de gente no mercado”, ou seja, as pessoas só pensam na vida enquanto esforço, elas pensam na vida enquanto trabalhadores desde a maneira que eles estão estudando até a maneira como eles vão se lançar no mercado de trabalho, tudo é só pra trabalhar em torno de recompensa, todos eles estão pensando em fazer um curso porque “ah, porque tal curso te permite fazer um concurso público” né, ou seja, o cara já se prepara na sua formação que é financiada pelo contribuinte, porque é uma universidade pública, já pensando em ser mais um parasita do Estado, entendeu? Porque basicamente todo mundo que fala em fazer concurso público ta pensando em estabilidade, a última coisa que se pensa não só na educação, mas em qualquer outro ramo público é de se fazer algo bem feito e em compreender as coisas “quero fazer porque eu quero entender como funcionam os seres humanos”, e não é um problema só do meu passado escolar, mas é um problema de que a grande maioria dos professores, sem querer dar nome aos bois ou querer falar mal de qualquer colega, mas a maioria dos meus colegas e não só da história também entendem as coisas dessa forma. Sabe, que a assimilação da matéria é um questão de esforço. Ponto, saca? E de repente assim, o aluno terminou de assistir uma aula sobre raios catódicos e olha pra essa lâmpada aqui, essa lâmpada fria e não faz a mínima idéia do que está acontecendo. Ele termina de assistir uma aula de eletricidade e não sabe por quê que os ventiladores giram! Saca? Assim como ele estuda história durante toda vida e ele não sabe por quê que as pessoas fazem o que elas fazem! Saca? Por quê que as pessoas pensam do jeito que pensam né? E ele não consegue olhar pra nossa sociedade ou pra nossa sala de aula, e não consegue ver essa sala de aula como uma construção do iluminismo por exemplo. Saca? A própria disposição das carteiras né, por quê que elas estão alinhas e a questão de por quê que eu tenho um professor de história e outro de matemática, e ele não consegue associar nada com isso, entendeu? Por quê que entra um e sai outro? Saca? Por que bateu o sinal e todo mundo entra? Bateu de novo e todo mundo sai? E ele não consegue ver a revolução industrial nisso. Saca? Então, tipo, “cara, pra quê que você estuda revolução industrial então?”. Então, a minha grande dúvida, a minha grande crise é essa “por quê que eu estou estudando tudo isso cara?”. E daí o meu passado em relação a isso era assim também, só ia bem nas matérias que me traziam algum tipo de... sei lá, prazer assim, porque era curioso, tipo a geografia que eu achava divertido e tal, mas pra mim nunca serviu pra até que um belo dia quando eu fui fazer terceiro eu conheci uns caras muito legais, que foram meus professores de cursinho, e daí eles tinham o curso particular, que daí era só por matérias né, e daí eu fui fazer curso com eles e eles começaram a me explicar por fora, “aquilo funciona assim, aquilo funciona assado” e eu “Cara! É assim cara? Ãhnn” entendeu? As coisas funcionam! E é basicamente isso o grande desafio, acho, nosso né cara, as coisas funcionam! É idiota eu falar isso né, mas as coisas funcionam e é uma coisa que simplesmente... isso é grego pra mulecada e eu tenho a grande tristeza de dizer que também é pra grande maioria dos profissionais que atuam. Os professores, eles não sabem pra quê que funciona aquilo que eles estão ensinando. Ele não sabe se ele vai usar aquilo pra transformar o mundo ou se é pra simplesmente conhecer a verdade, se é que ela existe né? Pura e simples, ou pra que raio serve aquilo cara? Ele simplesmente ensina porque é um emprego né. E é legal porque ele quer

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transformar o Brasil, por isso ele virou professor, mas ele também não sabe em profundidade como é que se faz isso, ta, porque ele também não sabe pra quê que serve a matéria dele, esse é o problema. Então durante toda minha vida, minha vida escolar foi isso, eu não conseguia entender pra quê que servia mas coisas e por isso era um saco, era só por esforço. Aí depois, por causa da ação desses professores, e foi só no terceirão que isso aconteceu, eu passei a criar paixão pela história e quando eu entrei na universidade, aos pouquinhos eu fui entendendo as outras matérias, eu fui entendendo o que é uma reação química, por exemplo. Saca? A partir de quando eu estava estudando história, ecologia caiu a ficha de tudo aquilo que eu tinha estudado no ensino médio de química. Saca? Quando o cara tava discutindo a questão da concorrência entre as espécies. Eu sei lá por que caiu um raio a minha cabeça entendeu? Aquele negócio de passar numerozinho, átomos de um lado pro outro, tudo aquilo começou a fazer sentido pra mim cara. E hoje por exemplo assim, eu adoro todas as ciências, eu leio tudo desde biologia até, às vezes eu pego livro de química e fico lendo em casa, livro de física fico lendo em casa. Porque basicamente cara, todas as ciências são legais, e eu acho que assim, o grande problema cara foi que, não se soube com apresentar isso pro alunos né. E eu não sei se o seu professor vai insinuar isso, mas eu acho que até hoje não se sabe como fazer isso. Saca? Nós não achamos um denominador comum que mostre pro homem comum, pras pessoas comuns, os nossos alunos, pra quê que serve aquilo que eles estão estudando. Algo tem de errado nisso tudo né. Saca? De muito errado. Por quê que eu vou fazer um esforço por algo que eu não sei pra quê que funciona? E no fim o que aconteceu comigo é o que acontece com os alunos, isso aqui não passa de uma via crucis, onde eu vejo quem consegue arrastar a cruz mais longe, sofrer um pouquinho mais né, ta, porque o cara sofreu mais então eu vou recompensá-lo né, muito cristão isso na verdade né. Aí por isso eu vou recompensá-lo e aquele que não sofreu porque dormiu, eu vou penalizá-lo, eu vou reprovar ele. E o ensino é isso né, quem é o campeão do sofrimento, isso é o ensino brasileiro hoje né. Saca? Entende? Enfim, não sei se eu respondi.

Entrevistador: Respondeu sim professor, e justamente sobre professores, na sua vida escolar teve um professor de história de te marcou muito positiva ou negativamente?

Entrevistado: Teve, teve. E teve alguns, e a partir do terceirão, que daí eu fiz terceirão conheci um, esse foi o que despertou. Claro, hoje ele tem, hoje se eu for analisá-lo posso achar um milhão de deficiências teóricas nele, só que basicamente duas coisas funcionaram nele né, pra mim, um foi o carisma, que é o lance do paternalismo, professor falar as coisas com o aluno, dar atenção, que é a coisa que os professores da minha época pelo menos não conseguiam fazer, eles não tinha essa relação com o aluno né, e ele foi um cara que escutava, que discutia e... pra minha geração né, a sensação de que o professor ta dando trela praquilo que você pensa, isso era o máximo cara, tu pega o cara super inteligente que ta ouvindo o que tu ta falando e ele usa aquilo que tu falou pra gerar uma argumentação, e pro aluno isso é “pô cara, sou útil” isso é tipo assim, uma coisa inédita, pra minha geração isso não acontecia. E a segunda, ele explicava as coisas só que, boa parte das coisas que ele explicava eu não entendia, porque ele era um cara que tinha uma metodologia que eu hoje absolutamente não usaria também, mas ele explicava as coisas e algumas coisas que ele explicou fez sentido pra mim. Então foi basicamente isso que despertou sabe, tipo assim, pô história funciona, ele foi o primeiro que mostrou pra mim que a história funciona, dentro das limitações dele. Porque daí a partir dele eu comecei a conhecer outros, melhores do que ele e falei “Nossa cara!” e aí

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foi que o negócio foi entrando cada vez mais, até eu entrar na universidade e ver que ao tem nada a ver com aquilo que eu pensava né.

Entrevistador: Foi esse professor que digamos, que despertou uma paixão sua pela história, uma vontade de fazer o curso e antes disso o senhor não tinha nenhuma vocação pelo curso de história?

Entrevistado: Não, absolutamente nenhuma, absolutamente nenhuma. A minha primeira... quando eu era mais novo eu imaginava que faria algum curso de engenharia, seguindo os passos da família. Saca? Aí com o passar do tempo eu comecei a pensar coisas diferentes, a gente vai adolescendo né, começa a virar a ovelha negra, eu filho caçula ainda e tal. E aí comecei a ter curiosidade de pensar outras coisas, que é assim o que eu sinto falta nessa geração de hoje sabe, esse lance da curiosidade, de querer ver como as coisas são, de querer fuçar, nem que seja só pelo fato de ser diferente ou pelo fato de se fazer do contra. Entendeu? Saca? E hoje em dia cara, sei lá, na minha visão, isso pode ser uma visão meio geração setenta, aquela coisa saudosista né Porque hoje em dia parece que a rebeldia é só tu passar uma meleca no cabelo, colar do lado do seu rosto e ficar dando bitoca num cara do mesmo sexo entendeu? Na frente do shopping saca? Isso é o máximo que eles conseguem fazer, quando na minha época a gente tomava bica de PM, a gente ia marchar com Sem-terra, quer dizer, existia uma espécie de projeto coletivo né, em andamento, e a rebeldia era isso assim, se bem que naquela época a gente tinha os referenciais né, de “quero ser contra a ordem, vou ser marxista” né, esse era o foco né, mas hoje em dia o que eu sinto, assim, é uma grande falta de curiosidade nos jovens. Basicamente porque ele não tem... eu acho que o jovem hoje não tem estrutura pra despertar essa curiosidade, ele não tem porque de se perguntar das coisas né, a vida ta muito fácil cara, ele vai no supermercado compra o que ele quer entendeu? A mesada deles aí é equiparável ao nosso salário cara, então, de alguns né, por exemplo, dessas sedes particulares aí em questão. Ou até mesmo ,por exemplo, sei lá, até os de baixa renda também, o cara vai na internet, acessa o que quer, o cara pega o menu de um celular ele não precisa entender o menu, como é que funciona entendeu? O cara troca o celular, financia, compra moto. Entendeu? Então hoje os tempos estão diferentes assim, o homem está... se deseducando né, e a gente tem essa crença assim, de que os alunos estão emburrecendo ano após ano, e eu sei lá. Pra mim isso não é um crença ta? Não é nem questão de estar querendo assimilar essa ou áqüea cultura, mas o fato é assim, a capacidade de raciocínio dos alunos parece que a cada ano está menos complexa, ela consegue fazer menos degraus assim, de raciocínio né. Basicamente pra mim isso é um reflexo da vida que eles têm hoje né, que é uma vida simplificada, ao mesmo tempo em que ela tem muita informação, porque ele é um aluno muito ativo né, de vários estímulos ao mesmo tempo, são estímulos desconectados, eles não exigem um processo de... entende? Um processo de....de... de cognição né, um processo de várias etapas assim.

Entrevistador: O senhor sente dificuldade de enxergar nos seus alunos a capacidade de fazer uma abstração?

Entrevistado: Total. Assim ó, eu fui um aluno imprestável no ensino médio, ta? Eu não estudava, do primeiro ao segundo ano eu não estudava, quase reprovei várias vezes em química o primeiro e segundo ano, no terceirão. Mas por exemplo toda vez que eu ia fazer alguma coisa idiota, a gente montava um plano mirabolante cara! Saca? Tipo, a gente ia na farmácia porque a gente sabia que tal remédio tinha um cheiro terrível, a

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gente calculava onde que a gente ia deixar aquilo ali, entendeu? E por exemplo assim, “fulano tem uma chácara, vamos até a chácara do cara, fazer... guerra de cocô de vaca” entendeu? Enquanto isso outro fulano está pescando porque a gente vai pegar esse peixe e jogar em cima da lousa, entendeu? Sabe, tipo era um lance de longuíssimo prazo. Hoje em dia os alunos cara, vão fazer uma capetagem, a capetagem pra ele é ficar furando parede, olhando pra sua cara, tu chama a atenção dele e ele não sabe que ta fazendo algo de errado. Sabe, parece que ele não tem oportunidade de fazer um raciocínio complexo né, porque a vida dele foi simplificada, parece. Aí eu tenho a sensação de que a vida dos nossos adolescentes foi simplificada, os pais não explicam mais nada, eles não colocam... eles não têm desafios, eles não têm um pai opressor, um colégio opressor pra ter que desenvolver artimanhas né, pra conseguir sair daquela... saca? O colégio tem várias formas pra tentar podar a liberdade do aluno e o aluno vai tentar, entendeu cara? Escapar daquela prisão pra tentar fazer sua capetagem e hoje não tem mais isso cara. Saca? Hoje o aluno destrói a sala e tem professor que dá risada cara, porque tem medo de perder o emprego. Sabe, então não existe mais nada assim de... de complexo na vida desses meninos né, e isso é o problema. Por isso que eu te falo assim, no começo do nosso papo, eu não to preocupado na verdade assim, em ensinar, essa ou aquela verdade. Sabe? Eu não tenho essa... muito se pensa na história assim, desenvolveu-se este pensamento, nós temos que superar o pensamente anterior. Não estou tão preocupado em de repente cara que... o Tiradentes apareceu com cara de Jesus no livro. É errado? É errado cara. Tem que tirar? Tem que tirar, mas não é esse o foco pra mim, saca? Eu estou muito mais preocupado em se eu estou conseguindo desenvolver nesse aluno uma capacidade de complexificar o seu raciocínio. Porque eu acho profundamente no meu coração que ele conhecer Tiradentes a fundo, não vai melhorar em nada a vida dele cara! Saca? Tem certos conhecimentos que a gente é obrigado a ensinar hoje aqui no currículo, que não melhoram em nada ávida do cara! O cara tem que saber o que é uma bomba atômica, o quê que foi a Guerra Fria, certo? Mas o cara não precisa saber que no período regencial eu tive duas regências trinas e duas unas, e que um dos fulanos se chamava Padre Feijó e outro se chamava Araújo Lima. Isso melhora em quê a sua vida cara? A minha vida, entendeu? Entende? Agora precisa saber que no período regencial eu tinha, por exemplo, o domínio das elites brasileiras, e o quê que os caras fizeram com o Ato Adicional de 1834, isso sim. Pra entender por que a América Portuguesa permaneceu unificada e a América Espanhola não. Aí sim, é com as coisas funcionam, saca? E é basicamente é essa a dificuldade desses jovens hoje, eles olha pro mundo e não entendem como o mundo funciona, né? Eles não sabem nem por que eles existem na verdade, ele não sabe por quê que o pai dele é o pai, por quê que mãe dele é a mãe, o quê que cada um faz, ele não sabe por quê que ele vem pro colégio, e daí a explicação é sempre aquela “eu quero ser alguém na vida”. Ser alguém na vida é o que? Fazer um curso universitário, ganhar um diploma, saca? E arrumar um emprego com uma boa remuneração, ponto. “Ah, o cara virou funcionário público”, de onde está vindo essa verba cara? Ele nem sequer quer saber, ta? E ele mesmo reclama dos impostos, o cara vira funcionário púbico, ganha um puta de um salário, entendeu? E ele mesmo reclama da carga tributária, sendo que... entendeu? Enfim, isso é outra discussão. Então basicamente é isso assim. É... o que mais você quer saber?

Entrevistador: Agora sobre formação profissional inicial, o que você pode dizer sobra sua vida acadêmica? Como foi a sua experiência na universidade?

Entrevistado: A minha experiência na universidade, ela foi muito boa, adorei. Com a exceção de que, eu era muito jovem pra entender a utilidade daquilo, eu acho que todos

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os meus colegas passaram por aquilo também, saca? Porque daí eu estudava várias coisas, por exemplo, tem várias coisas difíceis de engolir no curso de história, né? A teoria, por exemplo, as escolas históricas, aquilo ali desce bem atravessado. Mas depois que eu terminei e comecei a dar aula, eu comecei a enxergara importância daquilo, né? Então muita coisa das matérias que eu fiz na universidade eu aproveitei mal, meio que passei na tampa, fiz a prova só por passar, e basicamente porque eu era um pouco novo demais pra entender a função daquilo, saca? Porque o negócio era bem mais complexo do que eu pensava que era, né? Mas a minha formação, enquanto formação de raciocínio histórico, eu não tiraria nada, achei ela muito proveitosa. A formação enquanto licenciatura, é discutível, bem discutível, bota um B maiusculosíssimo na frente. Porque a gente aprendeu várias coisas, estrutura e funcionamento, primeiro e segundo grau, que se chamava primeiro e segundo grau né, hoje se chama ensino médio, e tipo, psicologia etc. e tal, didática. E o que eu tenho pra te falar é que eu não me lembro absolutamente nada das aulas que eu tive de didática, e eu fui aprovado com 8, sei lá, uma nota bacana do gênero, psicologia da educação, eu não me lembro absolutamente nada, eu mal me lembro da cara do meu professor. E basicamente porque eu não entendia pra quê servia aquilo ali na época em que eu estava cursando, eu fui fazer estágio e também não serviu pra nada, e depois eu saí e também não me serviu pra nada. Então na verdade assim, ta faltando ligar os pontinhos na verdade, né? De repente assim, porque basicamente toda a experiência de sala de aula que eu tive, eu posso dizer que noventa e tantos por cento eu aprendi na estrada, saca? Eu aprendi na estrada. Mas de qualquer forma assim, eu não poderia fazer o que eu estou não fazendo se eu não tivesse tido a formação que eu tive, eu não poderia pensar as coisas que eu penso se eu não tivesse tido a formação que eu tive. Agora assim, só retomando essa parte da pedagogia, eu achei assim, discuti várias coisas, construtivismo, Freyre, pô é interessante é bacana, ver o que as pessoas tão pensando dentro de um contexto histórico, mas na hora de aplicar isso aqui é complicado, é bem complicado aplicar isso. Porque essas teorias são desenhadas num outro sistema né cara, num outro esquema. Quando a gente sai da faculdade a gente tem todo um esquema sócio-econômico que a gente tem que cumprir né cara, você tem patrão, você tem uma estrutura né, você tem um horário, você tem perfis de aluno, entendeu cara? Então não é bem assim, a realidade vai se redesenhar dia após dia cara. Não é... tu via da aula aqui no EIC cara, tu via dar aula, sei lá, no Saco dos Limões, se é estadual, se não é, se é particular, se não é, e se é particular aqui no Centro é uma coisa, lá no Centro Velho é outra coisa, lá na Palhoça é outra coisa, entendeu? Então a tua experiência em sala de aula é uma coisa que se redesenha dia após dia, e boa parte daquilo que eu aprendi nas aulas de pedagogia tenho que te confessar que não teve grandes funcionalidades. Porque hoje, como professor, eu passo alguma coisa perto de 70% do meu tempo fazendo serviços burocráticos, escrevendo prova, corrigindo prova, e eu estou há quinze anos tentando encontrar uma forma de acelerar isso daí, esse processo. Mas não adianta, enquanto a gente mexe com colégio cara, tu pensa assim ó, é só tu fazer um raciocínio aritmético cara, tem esse moleque escrevendo aqui ó, tudo bem ele é mais rápido que escrever, mas é ele vezes tudo isso aqui ó, Estão todos produzindo um texto simultâneo e tu vai ter que ler todos cara, um por um. Enquanto estão todos escrevendo ao mesmo tempo, daí tu pula pra outra sala é isso de novo cara, é um lance exponencial entendeu? Então, hoje em dia a gente tem esse grande problema que é o mercado né, essa competitividade de mercado faz com que muitas essas queiram oferecer mais serviços pro consumidor né. Então o gente, por exemplo, tem gincana, tem simulado, tem não sei o quê, não sei o quê, não sei o quê... Então basicamente, a vida de um professor, a maior parte dela é ocupada como burocrata, saca? Todos os colégios estão tentado cada vez mais

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complexificar seu processo avaliativo, fazendo prova 1, prova 2, simulado, trabalho 1, trabalho 2, daí prova 1 tem peso tanto, prova 2 tem peso tanto, participação tem peso tanto, enfim, fica aquela forma matemática diabólica, que a gente tem que dar conta de resolver aquilo aluno por aluno, né? E eu tenho que te dizer assim cara, a eficácia disso é zero, a única coisa que eles conseguiram fazer com isso, eu não sei quem foi que a pareceu com isso, se foi o pessoal da pedagogia que inventou, ou se foi o próprio mercado que exigiu que se desse a entender que eles estão complexificando as avaliações, como se isso fosse um serviço amais, que valesse a pena pagar a mensalidade, mas só sei que isso só serviu pra infernizar a nossa vida, ta? Isso só serviu pra piorar nossa rotina. Então na verdade assim, hoje em dia a grande crise dos professores é que o tempo em que ele deveria estar estudando ele ta corrigindo prova, ta escrevendo prova, ele ta baixando nota na internet, tentado lidar com essa forma diabólica, essa forma monstruosa desse sistema de avaliação que tem eficácia zero ta, não serve pra nada. Esse que é o nosso problema maior, ta? Enfim, olha se eu começar a falar demais tu me corta ta?

Entrevistador: Não, mas intenção é essa mesmo.

Entrevistado: Ah, então ta.

Entrevistador: Tu tinhas falado que na tua época de juventude se levava bica de PM e se marchava com Sem-terra. Dentro da tua vida universitária, como era o movimento estudantil? Se ele era atuante, qual era a atuação dele? Você estudava em Coritiba, é isso?

Entrevistado: Estudava em Coritiba, Federal do Paraná. Ah o movimento estudantil era uma coisa... era engajado ta? Mas pra variar é aquele engajamento que só acontece nas primeiras fases ta. Ele morre a partir do terceiro ano em diante, as pessoas preferem não se envolver. Basicamente o movimento estudantil na minha época era um ótimo canal de escape pro voluntarismo, entendeu? Da juventude, aquela necessidade, aquela energia, aquela caloria que ele tem pra queimar, de querer se organizar etc. e tal. Das reivindicações acadêmicas que nós tínhamos perante o departamento, pouquíssimas foram realizadas pelo movimento estudantil, ta? Na prática nós não tínhamos poder pra isso. E basicamente assim, teve muito mais o papel de sociabilidade do que propriamente papel político, ta? Porque o papel político... ah... enfim né, o quê que nós sabíamos de política naquela época né? Esse é que é o problema e a gente vê que boa parte das nossas reivindicações naquela época... não procediam cara, entendeu? É delírio cara, saca? Jovem, ele precisa protestar contra alguma coisa. Enfim, na minha época já não... nós tínhamos isso assim, nessa nossa energia a gente tentava se enfiar em tudo que era movimento. Pra tentar fazer alguma diferença né, naquela época assim um comício presidencial era coisa pra entre cinco, quinze, vinte mil pessoas. Hoje em dia nem existe isso mais né, nem se faz mais isso direito né. Saca? Então tudo que era manifestação artística, só o fato de um cara pegar um violão e tocar um Chico Buarque já juntava uma galera em volta, sabe? Existia essa crença, essa ideologia em de que, porra, vamos procurar algo mais cultural, algo mais... saca? Tipo, eu sou oriental por exemplo, mas pô, “vamos procurar as raízes do Brasil!” e vários outros colegas maus que eram orientais também, “vamos lá pesquisar sobre o Nordeste, escutar forró”, existia uma vontade de querer desossar acultura brasileira, de querer achar uma direção daquilo que é válido, sabe? A gente tentava achar algo que se pudesse chamar de válido, assim... legítimo né e que deveria ser... a gente tava querendo salvar o Brasil no caso né,

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da perdição assim. A gente tinha os... os nossos referenciais né, mas não que isso... não que isso tivesse uma... como é que se diz?... um objetivo palpável assim, saca? Era um lance mais romântico né, mas era divertido.

Entrevistador: E dentro da universidade você já sentiu desde o início a vontade de seguir o magistério? Você pensou em alguma outra carreira?

Entrevistado: Não, não. Na verdade quando eu entrei na universidade já na segunda fase eu já tinha alguns colegas que davam aula, o perfil de estudante de ciências humanas é rebelde, de um cara geralmente rebelde, que tem alguma confusão com a família, essas coisas assim. Desde que eu estava na universidade eu já tinha saído de casa, e daí eu precisava... eu precisava me sustentar né. Aí nisso lá dentro da universidade tinha uma bolsa trabalho, mas daí o salário era muito baixo né, a bolsa era muito pequena. E daí o que acontece, eu tinha alguns amigos que davam aula, uma coisa bem início de carreira assim, cidade metropolitana né, tipo, região de periculosidade, essas coisas assim. Eu fui, trabalhei quatro anos nisso. Eu dei aula em colégio estadual, municipal e coisas assim que... dei aula pra alunos que te ameaçavam de morte, saca? Meninas que estavam sem calcinha, iam de minissaia e aí abriam a perna pra você, só pra ver a tua reação no quadro, essas coisas. E na verdade foi o melhor estágio que eu passei na vida, eu acho que todo professor deve passar por isso, ta? Constantino. Eu acho interessante assim, porque tu... quando a gente entra em sala de aula a gente tem que aprender a lidar com variadas situações e é somente cometendo erros que tu vai aprender. Porque, por exemplo, na universidade eu aprendi... eu tive uma professora extraordinária de estágio né, que ela era historiadora, além de esta na pedagogia ela era historiadora. Então nesse sentido assim, foi proveitoso ela me mostrar como é que funcionaria num mundo ideal, um sistema de preparação de aula, de pesquisa e montagem de aula. Só que é aquele esquema assim né, a gente demorou seis meses pra montar uma aula de quarenta minutos, com retroprojetor, tirar as transparências, porque naquela época não tinha ainda o data show, saca? E daí, basicamente assim, o legal foi isso, porque daí a gente se meteu a dar aula, a gente começou a ter uma noção do que era tu calcular o tempo da aula, o tempo de sala de aula, o que tu faz em determinadas situações, o que tu não deve fazer em determinadas situações, né? Eu aprendi que eu não devo jogar carteira na parede (risos), pra conter os alunos. Porque eles te botam numas situações, que é a fogueira máxima, saca? Que é a sua prova de fogo. Você quer ser um professor decente? Tu quer, de repente, educar as gerações do futuro? Tu precisa aprender a lidar com esse tipo de situação. Me jogavam numa sala, com oitenta alunos de quinta série, todos eles com problemas financeiros em casa, né? Aí ficavam aqueles oitenta alunos, faltava outro professor, tu tinha que ficar três aulas faixa, entendeu? Com oitenta alunos! Que não têm o que comer em casa! Então imagina cara, o zoológico que é! Então não tem assim... são alunos que não têm o mínimo referencial de respeito, de educação, de nada. O guri taca coisa em você, cospe em você e acha que ta sendo gente boa contigo, né. Aí algumas situações de noite, por exemplo, que o guri te manda um bilhetinho assim “quero te matar” sabe? O aluno que te adora enche a cara e tenta destruir o seu carro, saca? E ele te adora entendeu? Tipo, é esse tipo de situação que nós não conhecemos assim, que viemos de classe média, a gente não conhece esse cotidiano, né. E é importante tu lidar com esse tipo de situação pra depois tu lidar com outras situações, porque daí tu já chega mais calejadão, saca? É porque sala de aula cara... não dá, sala de aula é relações públicas, tu lida com pessoas. Tu não ta lidando diretamente com história, tu ta lidando com gente cara, saca? Esse que é o foco , né. Então o que aconteceu é que daí eu entrei na profissão meio que por falta de escolha no

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começo, e depois as perguntas foram aparecendo né, saca? Daí a tentava de responder essas perguntas persiste até hoje, há quinze anos né. Saca? Tipo, como eu resolvo essa situação? Aquela situação? E por aí vai, até a própria carreira engoliu o tempo que eu usaria pra fazer um mestrado se foi né, tentei entrar três vezes já, as três vezes eu tive que largar a idéia por causa do trabalho assim, porque não deu tempo né. Basicamente por quê? Porque eu passo setenta por cento do meu tempo... escrevendo prova! Entendeu cara? E eu acho um absurdo isso! Mas enfim né...

Entrevistador: É a discussão do problema insolúvel das avaliações né?

Entrevistado: É, então. Na verdade ele seria solúvel, mas eu acho que não tenha tanta gente querendo resolver assim não, saca? Eu acho que eu teria condições de resolver, o problema é... alguém me dar ouvidos né, em relação a isso e os professores adotarem isso também né, e os donos de colégio e os diretores né, etc. etc. etc. E os políticos e assim vai, enfim.

Entrevistador: Dentro da universidade, você teve alguma linha de pesquisa, ou algo que te motivou no teu TCC, ou foi uma coisa que você decidiu no final?

Entrevistado: é, meu TCC foi motivado por duas coisas, a bolsa de monitoria que eu fiz para a disciplina de História Moderna II. Que daí era sobre a... eu comecei a transcrever documentos de divórcio né, do século XVII. Que daí eram arquivos não catalogado que estavam na Cúria Metropolitana de São Paulo. Aí minha orientadora conseguiu recuperar aquilo, e daí eu comecei a transcrever, eu tive que estudar palitografia e tudo, pra entender o que estava escrito ali né, por causa da letra, dos termos, das abreviações e tudo. Aí eu ficava transcrevendo e a gente achou um documento muito legal, que daí foi o documento da filha de um dos colonizadores do oeste paranaense né, do norte paranaense, que daí ela teria sido a primeira pessoa a constituir um divórcio amigável em toda a capitania de São Paulo, e daí a gente achou esse documento e eu comecei a mexer. Mas durante toda a minha graduação, por afinidades pessoais pelos professores eu caí muito mais pra história da escravidão né, e também pra história da família, alguma coisa assim nesse sentido, que eu acabei mexendo com a história do casamento e da escravidão. Que é mito legal, bem bacana até o momento em que você entra numa sala de aula, eles estão olhando pra sua cara e você tem que dar aula sobre o Egito Antigo, saca? Então na verdade esse é que é o problema né, eu passei metade do meu tempo na universidade estudando isso, escravidão, história da família, pesquisando esses caras e caí de pára-quedas tendo que ensinar sobre Egito Antigo cara, sobre a Mesopotâmia. Sendo que quando eu pisei em sala de aula o quê que eu sabia sobres esses assuntos? A mesma coisa que eu sabia quando estudava na quinta série, nada! Certo? Então o que aconteceu, eu tive que pesquisar, e é uma realidade que nenhum professor admite, mas que todos fazem, que é, de novo, pegar o livro didático, estudar o livro didático. E no começo assim é o osso porque tem aquele monte de preconceitos, porque a gente fica “ah, tal autor é picareta, porque ele tem um referencial teórico que na verdade não existe, o cara copia e cola das obras dos outros etc.”. Mas enfim cara, qual é a sua fonte histórica? Saca? Você tem quarenta aulas pra dar por semana, uma é sobre Egito, outra é sobre feudalismo, outra sobre as navegações etc. e tal. Você vai pesquisar? Bibliografia sobre aquilo? Entendeu? Você vai pegar um livro de egiptólogo pra preparar uma aula de Egito pra sua quinta série cara? Enfim, tu vai ficar um mês preparando uma aula de quarenta minutos? Sendo que você tem dez, doze, quinze aulas por dia. Isso é impraticável. O que todo mundo faz? O que todo mundo usa? Livro

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didático, a gente pega a própria apostila, estuda a apostila e reproduz aquilo né. O que acontece, eu sempre tento complementar com leituras a mais, eu tento fazer pesquisa na internet eu leio periódicos os tempo todo, hoje o meu foco são os periódicos né. Eu assino revistas de história e fico o tempo todo lendo reportagens rápidas, e assim tu consegue com o passar do tempo, consegue acumular uma erudição maior sobre as coisas, mas na prática aquilo que a minha professora queria que eu fizesse no estágio, na prática, na vida real é absolutamente impraticável, saca? Eu ia ter quantas turmas na minha vida? Uma! Não dá cara, não dá. Que é... voltando à discussão da dicotomia entre a universidade e a escola, a universidade não te ensina como você vai dar quarenta horas/aula por semana cara. Porque basicamente a nossa formação ali dentro é uma formação para nós sermos historiadores, sobre um assunto. Num mundo onde tudo é focado né, certo? Então esse é o grande problema cara, a sala de aula é um universo absolutamente diferente do que acontece na academia, saca? Aí o que acontece, muitas vezes nessa do professor ter que se virar ele dá aula sobre assuntos que ele não domina. A grande maioria dos professores faz isso. Dão aula sobre assuntos que eles não dominam. Eu domino mais ou menos o que? A escravidão e a história da família. E o resto de todo meu conhecimento vem do que? Vem de periódicos, vem de livros didáticos e um ou outra literatura que eu tive tempo na minha vida pra ler né, de livro acadêmico mesmo.

Entevistador: Então já entrando na vida profissional. O que você tem a dizer sobre a sua experiência profissional? Experiências antes de chegar aqui no EIC, como chegou quando chegou, como foram esses seus quinze anos de magistério?

Entrevistado: Nossa... cara, foram épocas... Como foram em que sentido assim? Tu quer uma biografia completa?

Entrevistador: Não completa, mas o que te marca mais na sua memória.

Entrevistado: Ok. Então assim ó, no começo... O primeiro lugar que eu trabalhei foi um lugar chamado Vila São Gabriel, no subúrbio de... ele é subúrbio da região metropolitana de Coritiba, ta? Então é uma vila que fica perto de uma cidade pequena que fica na região metropolitana de Coritiba. É uma vila... violentíssima assim né. Eu pegava ônibus, descia lá de noite na sala de aula, saí mais tarde ainda e ia embora. E era assim, uma trajetória que levava praticamente uma hora pouco de ônibus né. E daí que assim, era um lugar em que eu estava substituindo um professor que tinha sido linchado em sala de aula. E naquela época a gente é jovem né, tipo, voluntarista, então não dá nada, vamos ver qual é que é. E daí eu fui lá, o professor era daqueles que chutava carteira, humilhava aluno, dava de dedo... um belo dia vinte carinhas pularam o muro do colégio e... zoaram o cara inteiro na frente dos alunos, teve facada, garrafada no braço e tudo. Aí o cara foi hospitalizado e tal, e aí assim, todo dia no colégio tinha PM, todo dia viatura fazendo ronda direto, às vezes tinha aluna chorando aí tu chegava “O querida, por que tais chorando? Não chora não. O que aconteceu?” aí a guria começa a falar que “ontem mataram minha irmã que estava grávida, mais o meu cunhado e não sei o que...” saca? É uma coisa que fazia parte assim do dia-a-dia deles, esse tipo de coisa né. Toda vez que dava confusão, o diretor saía correndo pra sala dela e passava a chave, ficava trancado sozinho ali. Não queria nem saber, os alunos se quebrando ali. Então na verdade assim, essa foi minha primeira experiência de aula. E foi um lance assim, não me intimidei, insisti, fiquei com aquele salário ridículo, na época a gente ganhava salário em cheques assim ainda, que a gente tinha que ir no postinho do banco pegar o

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cheque né, no banco do estado pegar o cheque. E daí teve uma vez que eu fui sacar o salário, que era uma coisa deprimente assim, eu comecei trabalhando cara a se não me engano, dois reais hora/aula, em noventa e cinco, por aí. E daí o que acontece, fui sacar meu salário lá o cara chegou “olha tem um cheque teu que ficou aqui” que era o adicional noturno né, eu não tinha a mínima noção dos meus direitos trabalhistas, peguei meu adicional noturno,era um cheque de três meses atrás com a marca de um sapato em cima, saca? Tipo alguém deixou cair, passaram por cima, chutaram pra debaixo balcão e deixaram pra três meses depois me pagar. Então o que eu senti foi um absoluto descaso do Estado, o troço é morto assim. Os professores, eles vivem como se fosse ratos, parecem um monte de ratos de laboratório assim, tipo, eles são todos assustados assim, o tempo todo. E eles estão ali funcionando em piloto automático, porque eles precisam trabalhar pra fazer a renda, eles não têm outra perspectiva de vida, estão acostumados com aquela rotina e é aquilo, eles não têm a capacidade de criar nada além daquilo, de inventar uma aula mais isso ou mais aquilo, tentar lutar por algum ideal, eles não têm ideais... entendeu? Eles estão esperando a morte ali, com medo do diretor, com medo disso, com medo do aluno. Sala dos professores só se fala mal de aluno “fulano fez isso, fulano quebrou aquilo” e ele não agüenta mais né, ou seja, o ensino público pra mim, a memória que eu tenho é de um intenso stress emocional assim... são pessoas que... são existencialmente mal resolvidos, eles são sem perspectiva e estão sempre estressados, o tempo todo pensando em aposentadoria, férias e salário. Não existe outra coisa no horizonte dessas pessoas. Aprendizado... o que é isso? O que é aprendizado? Isso é a última coisa que se discute. Aí depois o que acontece, de lá depois eu comecei aos pouquinhos comecei a entrar em algumas redes particulares, comecei a trabalhar com alguns pré-vestibulares menores, o SESC tinha começado pré-vestibular, eu entrei... comecei a entrar também no ensino de colégio particular, e daí já foi mais tranqüilo né. E daí o que aconteceu, em 2000 quando eu me formei, um dos meus ex-professores que era muito meu amigo e era um dos chefes do Positivo né, um dos chefes de departamento do Positivo, e daí já prontamente ele me contratou. Aí aquela idéia né, saí de um universo né, da lama pro topo da pirâmide né, pra maior rede de educação da América Latina na época, que era o Positivo né. Aí o que aconteceu, cheguei num lugar, num colégio onde tinha piscina aquecida, entendeu cara? Aí primeira coisa quando assinaram o meu contrato, me levaram pra uma sala, me encheram de calça social, camisa com bordado do colégio, quarenta jalecos. Foram jogando tudo em cima do meu ombro assim, aí disseram “tu só nos desculpa porque tu vai ter que comprar o sapato, nós não temos sapatos” (risos). Aí o que acontece, eu achava que “agora beleza, minha carreira vai começar”. Em duas coisas eu esbarrei, redes grandes exploram predatoriamente seus empregados, ta? O meu salário não era bom e principalmente o tratamento do funcionário, péssimo! Lá você sai de um inferno que é o ensino público e entra num outro inferno que é o inferno do capitalismo selvagem, onde lá eu dei aula pra filhos de promotores de justiça, filhos de desembargadores, de juízes. E daí o problema é o seguinte, a menina discordava de ti na correção de uma questão, que tava faltando um ponto que ela achava que tu tinha que dar, e ela ao invés de conversar contigo ela acionava um advogado, saca? Era assim que funcionava. E eram guris assim, que se tu mandasse ficar quietos eles tacavam o tênis em você. Eu vi cenas que... por exemplo, uma loirinha, um menina loirinha de jaquetinha da Hello Kitty cor de rosa, que se deu ao trabalho de tirar o tênis e arremessar na cara da colega entendeu? E são filhos de juízes! Hoje tu chega na porta da sala dos professores e vê uma menina de segundo ano, sabe? De top, sabe? Aí dando beijinho na cara do professor dizendo “ai professor, monta um trabalho pra gente recuperar minha nota” aí o professor cheio de marca de batom na cara... quer dizer, são dois universos absolutamente diferentes. Eu

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fui demitido do Positivo quatro vezes, porque ele me demitiam de uma sede aí o coordenador... todos coordenadores brigavam entre si, falava “o cara, tu demitiu o meu pupilo” e contratava de volta, aí chegava “o brother, preciso da tua vaga pra contratar alguém de novo” daí eu era demitido e contratado em outra sede. Aí enfim, nisso fui trabalhar em outros lugares também, mas dentro do Positivo uma pressão psicológica absurda assim, daí o chefe, que não vai com a sua cara porque sabe que você veio de...de outra linhagem assim, de outro coordenador que te indicou pra sede dele, ele faz o possível pra tornar a sua vida um inferno. Todo dia que termina a aula ele te deixa em reunião até a uma da tarde, tenta achar alguma coisa de errado que tu fez ou se algum aluno falou qualquer coisa, então na verdade é uma pressão psicológica violenta. Eu tinha por bimestre, duas baterias de mil e quatrocentas provas pra corrigir, só ali no Positivo, saca? Duas baterias de mil e quatrocentas provas discursivas! Pra corrigir. Então chegava, depois de três meses de aula assim, eu ficava tremendo cara, o café não parava dentro da xícara! Eu não conseguia tomar o café, saca? De tamanha que era a pressão. E lá dentro do Positivo eu passei pela experiência mais filosoficamente interessante da minha vida profissional cara, que lá dentro quando eu tava trabalhando já no médio do Positivo, eu entrei numa sala de aula, porque eu iria começar numa sede diferente né, numa outra sede. Aí eu entrei na sala de aula e encontrei uma professora de química minha do primeiro ano do ensino médio, do Dom Bosco ainda. E alguns professores do cursinho também estavam lá, fiz cursinho no Dom Bosco, alguns já estavam trabalhando no Positivo. Mas essa professora foi um lance assim cara, ficou gravado na memória, entendeu? Porque eu lembro que, eu no primeiro ano do ensino médio não aprendi porra nenhuma de química! Ops, desculpa aí o palavrão, foi mal (risos). Eu não aprendi nada de química! Eu tinha que fazer aula particular, fui até a recuperação final e fui aprovado com cinco assim, no limite. E eu lembro que eu sentia muita raiva disso, por não entender a química, né. E pela professora ser muito ruim! Eu lembro que eu jogava giz nela. E hoje eu entendo que muitas coisas que o aluno faz é reativo na verdade, não é só a má educação, ele está insatisfeito com alguma coisa, entre elas o seu tempo perdido né cara, de ficar sentado num lugar sem saber pra quê que serve tudo aquilo, né. E daí o que acontece, eu lembro que eu jogava giz nela, eu odiava ela, fazia caricatura dela... zoando ela. Aí o que acontece, encontrei, cheguei na sala dos professores e ela sentada assim na mesa da sala dos professores olhando pro vazio assim ó... saca? Aí eu cheguei “o professora, tudo bem? Tu me deu aula em tal lugar e etc.” e ela me olhou “ah é?” com aquela cara de vazio, sabe? Tipo, pessoas sem alma assim cara (risos), saca? Ela me falou “ah é?... tudo bem né?”, nem pra perguntar sobre o que eu estava dando aula, o quê que eu tava fazendo ali, sabe? Conversamos qualquer coisinha, e ela “bom te ver também...”, e voltou pra mesa na mesma posição, olhando pro vazio, olhando pro chão, saca? Tipo, ou seja, ela estava funcionando em piloto automático desde aquela época. E depois eu comecei a prestar atenção assim em muitos professores que estão espalhados por aí, eles estão simplesmente esperando a morte cara. Talvez até tenham começado com algum ideal sabe, mas esse ideal se perdeu no meio do caminho, e de repente o cara se viu fazendo aquilo, não sabia fazer mais nada na vida e o troço virou um emprego cara, um emprego que paga mal e de um profundo stress psicológico, de você encontrar por dia quatrocentas pessoas que te odeiam cara, e tu encontrar todas elas, todo dia e saber que ta todo mundo falando mal de ti e não tem ninguém escutando o que tu ta falando, imagina cara. Foi aí que eu entendi a profundidade dessa profissão. E daí, continuando, encontrei ela lá, depois eu fui pro Posiville, lá em Joinville né, eles me contrataram, daí eu trabalhava em Coritiba e Joinville né. Só que assim, sempre na base da pirâmide né, porque lá tem os deuses que ficam no topo da pirâmide que são os caras que dão aula pra pré-vestibular, terceirão e

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essas coisas né, que daí tem aqueles salários milionários, um salário mínimo hora/aula. Professor do Positivo ganha um salário mínimo hora/aula cara! Tu bota fé nisso? Quinhentos paus cara! Pra ficar quarenta minutos, pra fazer a mesma coisa que ele faz há vinte anos, dar a mesma aula que ele dá há vinte anos. Aí tipo, a gente da base da pirâmide era tratado igual a escravos. Os meus colegas ficavam falando que eles iam fazer um protesto, exigir vale-ereção da direção. Porque estavam todos divorciando cara, as mulheres estavam todas chutando seus maridos, porque os caras estavam tão estressados que... entendeu? Eles não estavam mais trepando (risadas), eles não estavam mais trepando cara, falavam que iam pedir vale-ereção pro chefe (risadas) né, porque os caras estavam todos ficando loucos, e eu também né, enfim. Aí o que acontece, daí eu fui pro Posiville né, comecei a iniciar uma tentativa de mestrado aqui na história né, ia fazer na parte de escravidão também com a Beatriz né. E daí eu comecei só que o pessoal lá me desligou lá de Coritiba, daí resolvi mudar pra cá de vez. E daí aqui comecei a pegar aula e tentar estudar junto, pegar aula e estudar junto, pegar aula e estudar junto, fiz duas matérias como aluno especial pra tentar adiantar as coisas, as enfim, não adiantou nada. Porque daí desde então eu estou com tanta aula que eu não consigo mais trabalhar. E daí eu passei pelo Colégio Solução, que é onde eu estou há mais tempo, desde 2003, aí depois... enfim já passei por alguns lugares, dei aula no cursinho do SESC, trabalhei numa rede picaretíssima chamada Aprove, que deu um calote generalizado nos professores, entrei pro Decisão, que agora se chama COC... to aqui (EIC), enfim cara, eu passei por muitos colégios já, se for somar tudo... Aí aqui na ilha assim, são outros desafios, é um outro público, um outro perfil de pessoas, mas enfim. Foi basicamente... quando eu estive aqui, que eu senti uma mudança muito forte de perfil do aluno de Florianópolis, pro aluno de Coritiba, pro aluno de Joinville. Aqui é um aluno mais... despropositado, ele é menos acostumado a uma rotina de trabalho né, e é um aluno muito mais afetivo... basicamente é o perfil das pessoas daqui, elas são mais diretas, mais simples e podem ser mais afetivas ou agressivas, elas são mais imediatas assim, né... e são menos complexas digamos, elas são mais... não sei achar o termo... como eu diria.... são mais barrocas assim, sei lá, enfim. Então uma das coisas que me fez pensar bastante lidando comeste tipo de aluno foi em como conseguir conquistar este tipo de aluno, porque é o tipo de aluno que tu manda abrir a apostila e ele não vai abrir a apostila, entendeu? Saca? É diferente do aluno de Joinville, a primeira vez que eu fui pra Joinville, eu tava acostumado com o Positivo de Coritiba, cheguei em Joinville... todos filhos de alemão né. Cheguei assim ó “tem um texto tal na página tal, abram lá, leiam que agente vai discutir”, todo mundo “páparapá” abriu e começou a ler, eu falei “fecha... guarda, faz de novo... abre...”. Caraca (risos)! Que é isso cara? Enfim né, eu achei que eles estavam me zoando cara (risos)! Não é possível! Eu tinha acabado de chegar, eu não conhecia a turma, enfim. E eles me obedeceram cara, aí cheguei aqui também aquela história... aluno que acha normal levantar e sair andando na sala, no meio da aula, tu ta dando aula e fulano fala mais alto que você e achando que isso é normal, saca? Então eu tive que reaprender a dar aula aqui pra dar aula pra esse tipo de perfil do aluno daqui né, de Florianópolis. Não é tanto o caso do EIC, o EIC é ensino religioso, é um aluno mais parecido com o aluno de Joinville, por exemplo. É um aluno mais disciplinado, é um aluno mais produtivo né. Ma nas outras redes já não, aí já pega bem o perfil do aluno de Florianópolis, assim, são salas barulhentas, são salas... os alunos são cronicamente hiperativos,eles têm essa dificuldade de fazer uma atividade e concentrar nela, que é bem sério assim, isso é uma genérica na cidade toda né. É porque aqui, pro cara matricular o filho dele pra estudar no EIC ele tem que ser de uma família mais regrada né, tem o ensino religioso então o pai tem que estar consciente do que é isso, pro cara botar o filho aqui. E aí eu vou te falar, aqui, lembra aquele nosso papo que

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a gente tava falando no começo? Aqui dá pra sentir essa dicotomia que eu tava te falando assim, do quê que é essa juventude sem desafios né, saca? Porque aqui, por exemplo, todo mundo tem medo da Gorete, que entra braba, tem medo da Irmã Dilma, sabe? Tipo assim, só que cara, ao mesmo tempo em que esse aluno tem esse tipo de medo a disciplinalização etc. e tal, ele é um aluno muito mais produtivo cara, aqui os alunos são muito mais produtivos, onde pelo menos ele pensa nas coisas. Porque é um aluno que tem... apesar de ter essa educação tradicionalista etc. e tal, eles são alunos que têm a capacidade de aprofundamento, na complexidade do seu raciocínio. Muitas vezes aqui os alunos do terceirão para ali na sala dos professores e perguntam “professor, o que você da religião?”, é o tipo de pergunta que não se escuta em outros lugares, porque os alunos não pensam, eles sequer pensam nisso, ele quer saber onde ele vai estar nos próximos dez minutos, o raciocínio dele não ultrapassa dez minutos. É que tem todo esse problema existencial até talvez por causa de um sistema mais tradicionalista... “opressivo” com mil aspas em cima é óbvio, talvez seja um sistema que exija mais do aluno a busca por alternativas né, de reflexão mais complexa sobre as coisas né. Aí enfim, resumo, aí que minha vida profissional aqui, dando aula, preparo provas, provas e provas e corrijo provas e prova e meu aprimoramento intelectual é quando antes de dormir eu pego uma revista e leio, ligo a TV e tento achar algum canal com algum documentário interessante, né. Mas é isso, a minha atualização fica restrita a esses poucos minutos por dia, porque na verdade assim, eu não sou exatamente um professor de história, isso é meu hobby, o que eu faço em sala de aula, isso é meu hobby, a minha profissão é: burocrata, saca? Eu sou um burocrata, eu sou um cara que lida com papel e números o dia inteiro, saca? Todos os dias... to tentando achar alguma forma de me livrar disso mas por enquanto não está sendo fácil, há quinze anos né.

Entrevistador: Aqui no EIC e nos outros colégios em que você dá aulas, você sente influência do Projeto Político Pedagógico do colégio na sua aula?

Entrevistado: Projeto Político Pedagógico de cada colégio?

Entrevistador: É.

Entrevistado: Ah... não. Não sinto absolutamente, queres que eu seja bem sincero né?

Entrevistador: Por favor.

Entrevistado: É mesmo porque eu sou um cara que não consigo mentir. Absolutamente nenhuma influência! Eu sinto influência do perfil do colégio, mas não que esse perfil esteja retratado no... projeto pedagógico. Tem o perfil do colégio e esse perfil corresponde a quem está chefiando o colégio, ele tem o perfil do diretor, não um perfil pedagógico. Cada escola tem um regulamento, claro. A forma como vai... todos estão preocupados em ah... tipo... mandar aluno pra fora, sistema de cálculo de avaliação, essas coisas assim. Mas que o projeto pedagógico vá definir alguma característica desse aluno não, o que define é a característica da chefia e da equipe de professores, isso sim, isso eu sinto bastante. Saca? É só isso na verdade né.

Entrevistador: Então é isso professor, nossa entrevista termina aqui. Muito obrigado por conceder seu tempo e suas memórias.

Entrevistado: De nada cara, espero tenha ajudado em alguma coisa.

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Entrevistador: Com certeza ajudou sim.