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Luísa de Nazaré Ferreira Mobilidade poética na Grécia antiga Uma leitura da obra de Simónides IMPRENSA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRA COIMBRA UNIVERSITY PRESS

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Lusa de Nazar Ferreira

Mobilidade potica na Grcia antigaUma leitura da obra de Simnides

IMPRENSA DA UNIVERSIDADE DE COIMBRACOIMBRA UNIVERSITY PRESS

OBRA PUBLICADA COM A COORDENAO CIENTFICA

Ttulo Mobilidade potica na Grcia antiga: uma leitura da obra de SimnidesAutora Lusa de Nazar Ferreira

Srie Hvmanitas Svpplementvm

Coordenador Cientfico do plano de edio: Maria do Cu Fialho

Conselho EditorialJos Ribeiro FerreiraMaria de Ftima Silva

Director Tcnico: Delfim Leo

Francisco de Oliveira Nair Castro Soares

EdioImprensa da Universidade de CoimbraURL: http://www.uc.pt/imprensa_ucEmail: [email protected] online: http://livrariadaimprensa.uc.pt

Coordenao editorialImprensa da Universidade de Coimbra

Concepo grfica & PaginaoRodolfo Lopes & Nelson Ferreira

Pr-ImpressoImprensa da Universidade de Coimbra

Impresso e Acabamento Simes & Linhares

ISBN9789897210310

ISBN Digital9789897210327

Depsito LegaL353373/13

1 eDio: IUC 2013

Junho 2013. Imprensa da Universidade de Coimbra Classica Digitalia Vniversitatis Conimbrigensis (http://classicadigitalia.uc.pt)Centro de Estudos Clssicos e Humansticos da Universidade de Coimbra

Reservados todos os direitos. Nos termos legais fica expressamente proibida a reproduo total ou parcial por qualquer meio, em papel ou em edio electrnica, sem autorizao expressa dos titulares dos direitos. desde j excepcionada a utilizao em circuitos acadmicos fechados para apoio a leccionao ou extenso cultural por via de e-learning.

Todos os volumes desta srie so sujeitos a arbitragem cientfica independente.

Obra realizada no mbito das actividades da UI&DCentro de Estudos Clssicos e Humansticos

5

Sumrio

Prefcio 9

Nota preliminar 12

Introduo A tradio dos aedos e dos rapsodos

I. Mobilidade potica no mundo homrico 15II. O testemunho de Hesodo (Op. 650-662) 27III. O aedo de Quios do Hino Homrico a Apolo (vv. 165-176) 33IV. O Certamen Homeri et Hesiodi 41V. A tradio dos rapsodos 49

Parte I Dados preliminares

I. As festas pblicas e a poltica cultural dos tiranos 63II. As condies de mobilidade, o acompanhamento musical e a execuo coral 97

Parte II O espao de mobilidade de Simnides

I. Dados biogrficos 115II. A mobilidade de Simnides 121

II.1. As festas pblicas 1241.1. A composio e execuo de hinos 1241.2. A composio e execuo de odes de vitria 1261.3. As vitrias nas competies de ditirambos 131

II.2. Os patronos 1362.1. Da Grcia Central e Insular 136

a) Em Atenas durante a tirania 136b) Os patronos da Eubeia 141c) Simnides, cantor nacional das Guerras Medo-Persas 143d) O testemunho do corpus epigramtico 151e) Os Oligtidas de Corinto 155

2.2. Da Tesslia 156a) As famlias aristocrticas 156b) Epincio para os filhos de Ecio 164

2.3. Da Magna Grcia 164a) Os tiranos da Siclia 164b) Mlon e Astilo de Crotona 172

III. A criao de um clssico: os motivos biogrficos da lenda de Simnides 173III.1. Um poeta ganancioso ou a profissionalizao do ofcio potico? 174

6

III.2. O cultor da memria 179III.3. Simnides, poeta sbio ou proto-sofista? 183

Parte III Fragmenta selecta: uma leitura da obra de Simnides

I. O canto em honra dos homens 189I.1. Reflexes sobre a condio humana 191

Fr. 520 191Fr. 521 193Fr. 522 195Fr. 523 196Fr. 526 197Fr. 527 198Fr. 541 199Fr. 542 203Fr. 579 216Fr. 581 218Fr. 584 220Fr. eleg. 19 221Fr. eleg. 20 224Fr. eleg. 21 228Fr. eleg. 22 231

I.2. O elogio de um esforo individual: a glria nas competies desportivas 239Fr. 506 239Fr. 507 241Fr. 509 246Fr. 511 249Fr. 515 252

I.3. O elogio de um esforo colectivo: a glria nas lutas contra os Persas 255Epigr. XVIII 255Epigr. XIX 2563.1. Maratona 257

Epigr. V 257Epigr. XX (b) 259Epigr. XXI 260

3.2. Termpilas 262Fr. 531 262Epigr. VI 267Epigr. VII 270Epigr. XXII (a) et (b) 270Epigr. XXIII 273

3.3. Artemsio 274Epigr. XXIV 274

3.4. Salamina 275Epigr. XIX (a) 276Epigr. XI 277Epigr. XII 279Epigr. XIII 280

7

Epigr. X 281Epigr. XIV 283

3.5. Plateias 285Epigr. VIII 285Epigr. IX 286Epigr. XV 287Epigr. XVI 288Epigr. XVII (a) et (b) 290Epigr. XX (a) 292Fr. eleg. 10 294Fr. eleg. 11 295Fr. eleg. 13 304Fr. eleg. 14 305Fr. eleg. 15 306Fr. eleg. 16 307

II. O mito: deuses e heris na obra de Simnides 315Fr. 575 318Fr. 577 323Fr. 555 326Fr. 543 331Fr. 553 338Fr. 545 340Fr. 567 341Fr. 595 342Fr. 550 344Fr. 551 346Fr. 559 347Fr. 572 347Fr. 564 350

III. A presena da natureza 353Fr. 508 356Fr. 586 362Fr. 597 363Fr. 593 364

Concluses 367

Bibliografia I. Edies, tradues e comentrios 379II. Estudos 387

ndicesndice de fontes antigas 407ndice de autores modernos 441ndice geral 453ndice de termos gregos 467

8

9

Prefcio

Celebram-se no presente ano de 2012 duas dcadas da publicao do P.Oxy. 3965, que veio confirmar a reputao de Simnides como intrprete notvel da resistncia helnica nas lutas contra os Persas. Desde esse ano de 1992, o Novo Simnides, como de imediato passaram a ser designados os fragmentos papirolgicos ento revelados, nos quais a batalha de Plateias parece ocupar lugar de relevo, tornou-se objecto das leituras mais distintas e interessantes. O estudo que agora se publica graas ao incentivo generoso de amigos, de colegas, dos meus mestres, da Coordenadora Cientfica do Centro de Estudos Clssicos e Humansticos, Professora Doutora Maria do Cu Fialho, e do Director da Classica Digitalia, Professor Doutor Delfim Ferreira Leo fruto da investigao realizada durante uma boa parte deste perodo cronolgico e corresponde, com pequenas alteraes, dissertao de doutoramento apresentada Universidade de Coimbra em Novembro de 2005.

Ao longo de vrios anos procurei cumprir um sonho antigo de estudar com rigor e persistncia a lrica grega do perodo arcaico. A eleio de Simnides como figura central deste trabalho devo-a ao Professor Doutor Jos Ribeiro Ferreira, meu orientador pedaggico de vrias edies da cadeira de Literatura Grega. A Professora Doutora Maria Helena da Rocha Pereira, que aceitou orientar este estudo e o acompanhou at sua concluso, sugeriu a segunda linha de pesquisa: enquadrar o caso particular de um poeta de fama excepcional, e do qual haviam sido publicados recentemente fragmentos papirolgicos, numa situao geral e pouco estudada, a mobilidade dos lricos arcaicos.

A mobilidade potica no um fenmeno exclusivo da poca Arcaica nem tipicamente grego, mas inscreve-se numa tradio enraizada na prpria

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maneira de ser do povo grego. Assim, no captulo de introduo comento os testemunhos literrios mais antigos sobre a existncia de poetas itinerantes, os Poemas Homricos e a obra de Hesodo, que nos permitem caracterizar a actuao dos aedos, mas alarguei esse estudo tradio dos rapsodos, que fizeram da mobilidade um modo de vida e continuavam activos no tempo de Xenofonte e Plato.

O plano da investigao previa o estudo da mobilidade dos lricos arcaicos sob duas vertentes: o exame das motivaes principais desta prtica e das condies em que se efectuava. Desta pesquisa resultou a primeira parte da dissertao. Em termos gerais, constitui uma reflexo sobre as condies de trabalho dos antecessores e contemporneos de Simnides. No entanto, dada a escassez de fontes ou a falta de fidedignidade de algumas delas, tenho conscincia de que constitui apenas uma descrio aproximada dessa realidade.

Por razes metodolgicas, pareceu-me conveniente comentar parte a documentao respeitante a Simnides, sendo o objectivo fundamental da investigao o estudo dos seus fragmentos principais, mas tendo em considerao as possveis circunstncias em que comps e apresentou as suas obras, bem como os contactos que estabeleceu ao longo da sua vida. Assim, na segunda parte, depois do exame breve dos dados biogrficos, comento os elementos, recolhidos dos testemunhos e dos fragmentos, que nos permitem esboar o espao de mobilidade de Simnides, tendo em vista dois aspectos principais: as ocasies de execuo da sua obra, designadamente as festas pblicas, e as pessoas que celebrou ou com as quais contactou por razes profissionais. O ltimo captulo desta parte dedicado s histrias sobre o carcter do poeta, transmitidas pela tradio pseudo-biogrfica, fruto talvez de leituras errneas da sua obra, mas que so tambm um testemunho da admirao que a figura de Simnides continuou a despertar muito tempo depois da sua morte.

O facto de no conhecermos, na maior parte das vezes, o subgnero dos fragmentos que nos chegaram ditou a opo, que segui na terceira parte, de um comentrio organizado segundo os temas privilegiados no corpus de Simnides, que compreende fragmentos lricos, elegacos e epigramas.

Embora tenha consultado numerosos estudos, ser justo dizer que esta investigao muito deve aos trabalhos de C. M. Bowra, W. Burkert, D. A. Campbell, D. E. Gerber, J. H. Molyneux, D. L. Page, P. J. Parsons, O. Poltera, M. L. West, bem como aos dos meus mestres e colegas. Por outro lado, esta exposio fundamenta-se em muitas fontes antigas, designadamente nos testimonia que D. A. Campbell compilou para a segunda edio Loeb Classical Library da lrica grega do perodo arcaico. Uma vez que nas ltimas dcadas temos assistido publicao em Portugal de tradues de qualidade dos autores gregos e latinos, algumas delas premiadas, e sendo esta tarefa to exigente,

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pareceu-me mais correcto citar essas verses. As tradues dos fragmentos de Simnides so da minha autoria.

Como foi dito acima, no decurso desta investigao contei com o apoio de muitas pessoas e entidades. Reitero, por isso, o meu agradecimento sincero aos Mestres que orientaram este estudo, a Professora Doutora Maria Helena da Rocha Pereira e o Professor Doutor Jos Ribeiro Ferreira, aos meus familiares, amigos, colegas e funcionrios do Instituto de Estudos Clssicos, do Centro de Estudos Clssicos e Humansticos e da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, aos meus alunos de Literatura Grega e demais cadeiras, bem como ao Dr. Nelson Ferreira, que acolheu com dedicada pacincia a tarefa ingrata de formatar este estudo. Escusado ser dizer que qualquer incorreco da minha inteira responsabilidade. Agradeo igualmente o apoio financeiro concedido pela Fundao Calouste Gulbenkian, sob a forma de trs bolsas de curta durao, que durante o perodo de pesquisa aliviou as despesas de deslocao s bibliotecas da Sorbonne e da Universidade de Caen.

Estou grata a todos. Bem hajam.

Coimbra, 31 de Julho de 2012Lusa de Nazar Ferreira

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Nota preliminar

Entendemos por corpus de Simnides o conjunto de composies lricas e elegacas (poemas e epigramas) considerado nas edies organizadas por D. L. Page, M. L. West e D. A. Campbell. Os fragmentos lricos (fr.) so identificados pela numerao contnua de Poetae Melici Graeci, que Campbell adoptou na sua edio. Para os elegacos (fr. eleg.), seguimos a estabelecida na segunda edio do vol. II de Iambi et Elegi Graeci ante Alexandrum cantati, e para os epigramas (epigr.) a de Further Greek Epigrams. Os testemunhos (test.) relativos aos poetas mlicos so os que figuram em Greek Lyric, de D. A. Campbell.

Na citao de autores gregos, seguimos, quase sempre, as abreviaturas de H. G. Liddell-R. Scott-H. Stuart Jones (edd.), A Greek-English Lexicon (Oxford 91996 = LSJ). Para os autores latinos, as de P. G. W. Glare (ed.), Oxford Latin Dictionary (Oxford 1982). As publicaes peridicas so identificadas pelas siglas de LAnne Philologique. Alm das indicadas na bibliografia final, ocorrem tambm as seguintes:

Chantraine (P.): Dictionnaire tymologique de la Langue Grecque. Histoire des Mots (Paris 2009).

LIMC: Lexicon Iconographicum Mythologiae Classicae (Zrich-Mnchen 1981-1997).

OCD: S. Hornblower, A. Spawforth (edd.), The Oxford Classical Dictionary. Third edition revised (Oxford 32003).

P. Oxy.: Oxyrhynchus Papyri (London 1898-).

Ao longo da exposio, as edies, tradues, comentrios e estudos citados na bibliografia final so identificados pelo apelido do autor e ano de publicao. Alm dessas obras, indicam-se nas notas, por extenso, outros ttulos que foram consultados pontualmente ou constituem, para este trabalho, bibliografia de carcter complementar. Justifica-se assim a existncia de um ndice de autores modernos.

No adoptmos o itlico nas palavras e expresses latinas correntes, como vide, ad loc., in, supra, infra., que foi mantido nos termos gregos transliterados (e.g. arete).

Nas referncias cronolgicas seguimos E. J. Bickerman, Chronology of the Ancient World (London 1968). Salvo indicao em contrrio, as datas so anteriores a Jesus Cristo.

13

Introduo

A tradio dos aedos e dos rapsodos

14

15

Introduo A tradio dos aedos e dos rapsodos

I. Mobilidade potica no mundo homrico

A actividade dos cantores profissionais no ocupa na Ilada o lugar de destaque que lhe confere a Odisseia. Nesta podemos apreender, em traos gerais, os contornos da actuao dos aedos que se apresentam nos palcios de Ulisses, de Alcnoo, de Agammnon e de Menelau, mas aquela que nos d conta de uma grande variedade de formas poticas. Embora nada indique que sejam literrias, sugerem a existncia de manifestaes de carcter poticomusical em tempos muito remotos.

A primeira a ser referida o pan () que os Aqueus entoam em coro para aplacar a ira de Apolo (1. 472473). A importncia destes versos reside na estreita ligao que se estabelece entre o canto (, v. 473), a dana e a msica, sugerida pelo emprego dos termos (v. 472) e (v. 474), que designam um canto acompanhado de dana e, eventualmente, de msica1. Por outro lado, o segundo hemistquio do v. 474 centrase na funo do canto em geral: o deleite do ouvinte ( , e ele deleitava o seu esprito ao ouvilos). Neste caso, estamos perante uma execuo coral que tem em vista um deus (v. 472) identificado pelo seu epteto (, o archeiro, v. 474). Em 22. 391392 os Aqueus entoam um pan para celebrarem a morte de Heitor, mas neste contexto de morte no h referncias a Apolo2.

A descrio do escudo de Aquiles forjado por Hefestos, que ocupa a ltima parte do canto XVIII (vv. 478608), rica em momentos poticos e musicais. O primeiro evoca os festejos de casamento (vv. 491496), durante os quais se entoava o canto do himeneu ( , um grande himeneu elevavase at aos cus, v. 493), e que incluam, alm do canto, a dana ( , os jovens danarinos rodopiavam, v. 494) e a msica ( , flautas e ctaras faziam ouvir os seus sonidos, v. 495). O trabalho de Hefestos to hbil que permite vislumbrar os efeitos que tais festejos provocam nos que a eles assistiam: | ( e as mulheres/ olhavam embevecidas, detendose cada uma nas entradas de suas casas, vv.495496).

1 Cf. LSJ, s.v. . Vide Willcock 1978: 195, Kirk 1985: 103. Na traduo dos passos da Ilada seguimos, em geral, a edio crtica de Van Thiel 1996.

2 Tratase, provavelmente, como julga Richardson 1993: 146, de um canto pela vitria sobre o inimigo, e no h razo que nos obrigue a supor que era dirigido a Apolo, sendo o deus um dos aliados dos Troianos. Para a etimologia do termo, vide Chantraine, s.v. . Sobre a ligao do pan ao culto de Apolo, cf. Burkert 1993 [1977]: 288. Vide, em especial, Ian Rutherford, The : A Survey of the Genre, in Rutherford 2001b: 3136.

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Mobilidade potica na Grcia antiga: uma leitura da obra de Simnides

Os dois momentos descritivos seguintes transportamnos para o ambiente do trabalho no campo. Se no primeiro o deleite dos pastores que tocam a flauta se torna fatal, porque os distrai e impede de preverem a emboscada de que so vtimas ( , deleitados com a flauta; no pressentiram a emboscada, v. 526), no segundo assistimos a uma cena pacfica, na qual se destaca uma criana que toca a ctara e entoa a cano de Lino ( , v. 570)3, enquanto os vindimadores danam, cantam e gritam (vv. 569572).

dana, que ocupa a penltima camada do escudo, dedica o poeta dezassete versos desta ekphrasis (vv. 590606). Na parte final, detmse na atitude da multido, que contempla os bailarinos com deleite (, v. 604).

Estas cenas retratam manifestaes de carcter pblico ou colectivo. A execuo potica era tambm praticada em ambientes ntimos, como testemunha o passo conhecido do canto IX (vv. 185191), no qual o poeta descreve a dedicao de Aquiles aos prazeres do canto e da msica, enquanto est afastado das lides guerreiras. Tal como nos exemplos anteriores, o poeta sublinha os seus efeitos sobre os humanos ( , encontraramno a deleitar o esprito com a ctara melodiosa, v. 186; , com ela deleitava o seu corao, v. 189). De salientar ainda que, embora Aquiles seja um amador, o assunto do seu canto, (as aces gloriosas dos homens, v. 189), integra o repertrio dos profissionais que actuam nos palcios da Odisseia (cf. 8. 73), pelo que temos aqui um dos exemplos da conexo profunda que liga o heri homrico e o cantor pico, como demonstrou bem Frederico Loureno4.

3 Depreendese destes versos que era um cntico popular entoado na poca das vindimas. A crer no escoliasta e nos versos que cita em abono da sua explicao (schol. B Hom. Il. 18. 570, IV. 558 Erbse = fr. 880 PMG), era tambm um lamento fnebre pela morte de Lino, figura mtica ligada msica e similar a Adnis (cf. Sapph. fr. 140 (b) LP). Segundo o fr. 305 MW de Hesodo, era filho da Musa Urnia. Apolo matouo, porque se vangloriava de cantar to bem como o deus (cf. Paus. 9. 29. 67). No passo homrico, a meno dos gritos dos jovens vindimadores pode ser uma aluso ao grito ritual , que se ouvia durante a execuo deste cntico (cf. Pind. Thren. 3. 6 = fr. 128c Ma.). No obstante o carcter fnebre, o fragmento de Hesodo indicia que era adequado a ocasies festivas. Segundo Herdoto, era comum na Fencia, em Chipre e no Egipto (2. 79). Os estudiosos modernos, de facto, identificam diversas afinidades com cnticos populares orientais. Cf. Farnell 1921: 2332, Burkert 1983: 108, Willcock 1984: 272, Lambin 1992: 143148; West 1992b: 2829, 4546, 388; H. J. Rose, E. Krummen, OCD, s.v. Linus.

4 Vide Aedo e heri, in Loureno 2004: 96100. O aedo versa no seu canto temas tradicionais e outros inspirados num passado recente: as faanhas dos homens e dos deuses, como os amores de Ares e Afrodite e o estratagema do cavalo de madeira (Od. 1. 338, 8.266366, 8. 492521), mas tambm as penas da Humanidade, como o regresso infeliz dos Aqueus e a querela de Ulisses e Aquiles (cf. Il. 6. 357358; Od. 1. 326327, 8. 7583). Para um exame da diversidade do canto do aedo, vide Hainsworth 1993: 3839, Pizzocaro 1999.

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Introduo A tradio dos aedos e dos rapsodos

Por conseguinte, se a Ilada parece dar pouca visibilidade aos aedos, em benefcio notrio das figuras hericas, h pelo menos um acontecimento que no dispensa a sua presena: as cerimnias fnebres em honra de Heitor. Aps os lamentos de Andrmaca, de Hcuba e de Helena, o corpo do filho de Pramo transportado para os seus aposentos e colocado no leito (24. 719722):

, , , , .

Trouxeramno para os seus magnficos aposentos, depoisdeitaramno num leito com relevos e junto dele sentaramse os aedosque aos trenos deram incio: um canto lamentosoentoavam, enquanto gemiam as mulheres.

Destaquese que nesta cerimnia o canto fnebre oficial, que contrasta com o gemido das mulheres ( ), j recebe a designao de , treno (vv. 721, 722), e a sua execuo confiada a um grupo de aedos profissionais. Podemos supor que os termos e sejam aqui empregues sobretudo para sublinhar a solenidade do canto fnebre, pois as figuras referidas neste passo da Ilada no se assemelham aos cantores picos evocados na Odisseia que, de resto, apenas retrata a actuao a solo do aedo. Correspondem antes, como observou Colin MacLeod, a carpideiros profissionais (hired mourners)5, e o seu canto no versa sobre os nem tem a funo de deleitar quem os escuta.

Merece ainda a nossa ateno um momento do Catlogo das naus do canto II, no qual o poeta enumera as tropas de Nestor (ou contingente de Pilos), que incluem aliados vindos das regies da lide e da Messnia. A referncia a Drion suscita a evocao do castigo do poeta Tmiris (vv. 591600):

, , , , 595 ,

5 MacLeod 1982: 148. Agradecemos a Frederico Loureno a chamada de ateno para este comentrio, bem como a interpretao global do passo. Recordese que no canto XXIV da Odisseia, quando as Musas executam o treno pela morte de Aquiles fazemno vez, alternando entre si ( | , vv. 6061).

18

Mobilidade potica na Grcia antiga: uma leitura da obra de Simnides

, . 600

Os que viviam em Pilos e na agradvel Arene,em Trio, onde passa o Alfeu, na boa pi,na Ciparssia, e os que habitavam Anfigenia,Ptleo, Helos e Drion, onde as Musasencontraram Tmiris da Trcia e puseram fim ao seu canto, 595quando vinha da Eclia, de junto de urito Ecaliense,pois ameaava em voz alta obter a vitria, ainda que fossem as prpriasMusas a cantar, as filhas de Zeus portador da gide.E elas, iradas, mutilaramno, do cantodivino o privaram e fizeramno esquecer a arte da ctara. 600

Este episdio um caso tpico de hybris castigada pelos deuses, pois Tmiris, oriundo da Trcia como Orfeu, vangloriavase de ser mais excelente do que as prprias filhas de Zeus, constituindo tambm um exemplo oposto aos relatos da investidura potica de Hesodo e Arquloco, que tiveram ambos encontros auspiciosos com as patronas da poesia6. Sobre este tema, Sfocles comps o drama perdido Tmiras, no qual apresentava em cena o castigo das Musas: a cegueira. O passo homrico diverge neste pormenor, pois o poeta impedido de exercer a sua arte, o que no aconteceria necessariamente se perdesse a viso7.

O passo homrico no est isento de alguma dificuldade, gerada sobretudo pela geografia imprecisa da Ilada (cf. Kirk 1985: 216). Importa salientar que

6 Hes. Th. 2234; Archil. test. 3 Gerber (Mnesiepis inscriptio, SEG 15. 517, col. II). Cf. a clebre representao de um pastor e seis musas numa pxide tica de figuras vermelhas sobre fundo branco, preservada em Boston (Museum of Fine Arts 98.887, c. 460450). Willcock 1978: 210 menciona outros exemplos, evocados na Ilada, de mortais castigados pela sua hybris: Licurgo (6. 130140), Belerofonte (6. 200202) e Nobe (24. 602609). Vide a leitura do passo homrico por Wilson 2009: 5659, que interpreta o antagonismo que ope Tmiris s Musas como uma representao of this clash between two musical traditions that expressed ultimately in the different generic performancestypes of hexameter epic and kitharodic lyric. (p. 58).

7 Willcock 1978: 210 observa que significa propriamente estropiado, incapacitado (cf. LSJ, s.v.), mas neste passo tradicionalmente interpretado como cego. Para uma opinio divergente, cf. Kirk 1985: 217. A perda da viso de Tmiris mencionada no fr. 65 MW de Hesodo e em fontes posteriores (e.g. Eur. Rh. 921925, Apollod. 1. 3. 3, Paus. 4. 33. 3). Sobre a tragdia perdida de Sfocles (TrGF IV F 236245) e a representao do castigo, vide Akiko Kiso, The Lost Sophocles (New York 1984) 2, 10, 53 (com indicaes bibliogrficas). O mito de Tmiris teve alguma representao nas artes plsticas da poca Clssica, talvez por influncia do teatro (cf. Kiso, ibidem, p. 127 n. 4). Cf. Anne Nercessian, LIMC VII. 1, s.v. Thamyris, Thamyras (Mnchen 1994) 902904, VII. 2: 615616. Vide ainda a discusso do tratamento dramtico e iconogrfico de Tmiris por Wilson 2009: 5979.

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Introduo A tradio dos aedos e dos rapsodos

Tmiris se encontra com as Musas em Drion da Messnia8, quando vinha da Eclia, situada na Tesslia, o que pressupe a realizao de uma longa viagem. No comentrio a este passo, Kirk observa que em Homero no surgem referncias aos poetas itinerantes (wandering singers). Tmiris no parece ter, de facto, esse estatuto, pois o segundo hemistquio do v. 596 especifica que ia a caminho do Peloponeso, depois de ter beneficiado da hospitalidade de urito, rei da Eclia (cf. Il. 2. 730), pormenor que o aproxima dos aedos da Odisseia. Por outro lado, os vv. 597598 sugerem um confronto num concurso potico9. No entanto, de concreto apenas sabemos que Tmiris era um cantor excepcional, que dominava igualmente a arte da ctara. O texto no precisa se era um aedo (apesar de , canto, nos vv. 595, 59910), habituado a deslocarse de corte em corte e a participar em concursos poticos, mas tambm no exclui completamente estas hipteses. Por conseguinte, em nossa opinio, este passo contm a nica referncia da Ilada mobilidade potica no mundo homrico, embora no nos oferea uma caracterizao precisa da actuao de Tmiris.

A Odisseia transmitiunos um dos testemunhos mais antigos sobre a existncia de profissionais itinerantes que viajavam pela Grcia e asseguravam o seu sustento com a prestao de servios. Num passo conhecido do canto XVII, Eumeu acompanha Ulisses at ao palcio sem o reconhecer e Antnoo acusao de ter levado para o banquete um mendigo com o fim nico de perturbar o bemestar dos pretendentes. Indignado, o servo leal observa que s faz sentido acolher um profissional de fora se ele for til comunidade (vv. 380387):

, 380, , , ;

8 Esta parece ser a verso mais difundida. Hesodo, fr. 65 MW, situa o encontro na plancie de Dtion (), ou seja, na Tesslia, o que Kirk 1985: 216 considera mais verosmil do que um encontro no sudoeste do Peloponeso. Cf. Wilson 2009: 4752.

9 As verses posteriores deste mito (e.g. Eur. Rh. 921925, Apollod. 1. 3. 3, Paus. 10. 7. 2, Ps. Plu. de Mus. 3. 1132b) mencionam concretamente a participao de Tmiris num concurso potico, no qual tem de enfrentar as Musas, um dado que o texto homrico, em nossa opinio, apenas sugere.

10 Tratase da primeira ocorrncia da palavra , tambm presente num discurso de Polidamante a Heitor no canto XIII (v. 731), no qual evoca a ddiva divina da dana, da msica e do canto. Muitos editores consideram o verso esprio, pois est ausente de um papiro e de vrios manuscritos. Para Willcock 1984: 222, It certainly seems out of place. Na opinio de Janko 1992: 138, tratase de uma interpolao rapsdica. Van Thiel, porm, considera o verso autntico. A outra palavra da famlia de (Il. 6. 358), que Helena emprega quando reflecte sobre os infortnios que inspiram o canto do aedo.

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Mobilidade potica na Grcia antiga: uma leitura da obra de Simnides

, , . 385 .

Foi ento, porqueiro Eumeu, que lhe deste esta resposta: 380Antnoo, apesar de seres nobre, no so belas as tuas palavras.Quem que vai ele prprio chamar outro, um estrangeiro,de outra terra, a no ser que se trate de um demiurgo:um vidente, um mdico, um carpinteiro de madeira,ou um aedo divino, que com o seu canto nos deleita? 385Estes homens so sempre convidados na terra ilimitada.Agora um mendigo ningum convidaria como despesapara si prprio. ()11

No comentrio a estes versos, Joseph Russo observa que se trata do primeiro testemunho sobre os e outros artesos como profissionais assalariados e sublinha a valorizao atribuda ao ofcio de aedo, cuja meno ocupa um verso inteiro12. O destaque reforado pelo epteto e justificase pelo estatuto elevado que o cantor ocupa neste poema. A estes profissionais recrutados no exterior pela utilidade do seu trabalho d Eumeu o nome de . Atendendo ao contexto e ao sentido etimolgico da palavra (os que trabalham para o povo)13, estas pessoas prestavam servios em comunidades diversas e deslocavamse conforme as solicitaes. Alm das que aqui so referidas, Penlope acrescenta o arauto (19. 135), que ocupa igualmente um lugar de mrito na hierarquia social do mundo homrico.

As palavras de Eumeu deixam perceber que a mobilidade destes profissionais se justifica pelo dom ou habilidade invulgar que possuem, que os torna distintos e procurados por toda a terra. notria a sua importncia na sociedade homrica14, mas os testemunhos que nos chegaram sobre o sbio

11 Nas citaes da Odisseia transcrevemos a traduo de Loureno 2003, que segue as edies crticas de T. W. Allen (19171919) e P. von der Mhll (1962).

12 In Russo et alii 1992: 3839.13 Posteriormente, o termo aplicavase, na tica, a qualquer homem que

exercesse uma profisso manual, embora o arteso fosse especificamente chamado . Noutros locais da Grcia, como em Esparta, designava os magistrados mais importantes. Cf. Chantraine, s.v. ; LSJ, s.v. ; K. Murakawa, Demiurgos, Historia 6 (1957) 385415.

14 O vidente aquele que conhece tudo, dizse nos vv. 384385 do canto I da Ilada, e o mais famoso deste poema Calcas, que toma a palavra no v. 93 (cf. 13. 70). No v. 663 do canto XIII surge uma breve referncia ao adivinho corntio Poliido. Um dos mais clebres dos vrios adivinhos da Odisseia Tirsias de Tebas, mencionado pela primeira vez no canto X. Conserva as suas capacidades mesmo morto (vv. 492495) e responde s interrogaes de Ulisses (11. 90151). Alm dele, aparecem Haliterses de taca, Teoclmeno, Tlemo, Anfiarau e Polifido.

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Introduo A tradio dos aedos e dos rapsodos

Epimnides de Festos (Creta), o mdico Democedes de Crotona e os muitos artistas gregos provam que na poca Arcaica e nas seguintes a mobilidade continuou a ser uma prtica comum a vrios ofcios15.

A resposta dada a Antnoo sublinha trs aspectos da actuao do aedo: a ligao estreita com o divino, o deleite do seu canto (17. 385) e a mobilidade como condio essencial da sua arte (v. 386). O primeiro atestado pelo uso de frmulas do tipo , que caracteriza a voz de Tmiris (Il. 2. 599600), , que Eumeu emprega (v. 385), muito prxima de (Od. 1. 328, 8. 498). Mas o carcter divino do canto e o deleite que suscita revelamse inseparveis. Esta ideia est bem presente num momento do canto VIII da Odisseia, quando Alcnoo ordena que se prepare um banquete em honra de Ulisses com a presena do aedo Demdoco (vv. 4345):

. , , .

Que ningum se recuse! E chamai ainda o divino aedo,Demdoco, pois a ele concedeu o deus o apangio de nosdeleitar, quando aquilo canta que lhe inspira o corao.

Dizse no canto XI da Ilada que um mdico vale por muitos homens (v. 514), mas no Catlogo das naus que o poeta refere pela primeira vez os dois hbeis mdicos dos Aqueus: os irmos Macon e Podalrio, filhos de Asclpios e comandantes dos povos da Eclia (2. 730732). Mencionados em conjunto mais do que uma vez (cf. 11. 833, 16. 28), sobretudo Macon que vemos em aco, a socorrer Menelau no canto IV (vv. 189219) e no canto XI, quando Idomeneu ferido (vv. 511518). Tal como Eumeu afirma, os Poemas Homricos destacam em especial o trabalho dos carpinteiros, responsveis pela construo dos barcos (e.g. Il. 5. 6163, Od. 5. 249250) e das habitaes (e.g. Il. 6. 313315, Od. 17. 340341). Por vezes, o artfice nomeado, como no canto XIX da Odisseia, onde se diz que a cadeira de Penlope, com incrustaes de marfim e prata, fora realizada pelo arteso Icmlio (vv. 5557).

15 Sobre Epimnides, cf. Plu. Sol. 12. 712, que o inclui no grupo dos Sete Sbios, no lugar de Periandro de Corinto (12. 7), e D.L. 1. 109115. As aventuras de Democedes so narradas por Herdoto (3. 125, 129137). A mobilidade dos videntes examinada por Walter Burkert, Itinerant Diviners and Magicians: A Neglected Element in Cultural Contacts, in R. Hgg (ed.), The Greek Renaissance of the Eighth Century BC: Tradition and Innovation (Stockholm 1983) 115120. Sobre Epimnides, vide Dodds 1951, cap. V. A integrao da histria de Democedes na estrutura das Histrias tratada por D. Asheri, Erodoto. Le Storie. Vol. III. Libro III (Milano 1990) 341342, com indicaes bibliogrficas. Sobre a mobilidade e repartio dos artfices, vide A. Burford, Craftsmen in Greek and Roman Society (London 1972) 6267, e Crafts and Craftsmen, in Michael Grant & Rachel Kitzinger (edd.), Civilization of the Ancient Mediterranean. Greece and Rome. I (New York 1988) 367388, esp. 382383. Sobre o seu estatuto social, vide Rocha Pereira 1997b. Para um estudo da mobilidade profissional na Grcia antiga, vide Baslez 1984: 5054, Andr et Baslez 1993: 207246. No que respeita mobilidade dos poetas, vide a introduo de Hunter and Rutherford 2009: 122.

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Mobilidade potica na Grcia antiga: uma leitura da obra de Simnides

O sentido da frmula , semanticamente equivalente a , explicitado no verso seguinte: o canto do poeta de origem divina e tem a funo de deleitar, pormenor sublinhado pela colocao do verbo no incio do verso. Como vimos, tambm na Ilada o canto, a dana e a msica permitem atingir um estado de doce deleite, quer o ouvinte seja um ser divino (1. 474) quer seja humano (9. 186, 189; 18. 495496, 526, 604). O verbo empregue geralmente , o mesmo que encontramos no promio da Teogonia de Hesodo (vv. 37, 51).

O prprio Alcnoo reconhece que a arte do aedo no depende apenas da vontade dos deuses, pois o poeta canta conforme a sua disposio, como nota tambm Telmaco, num clebre dilogo com a me (Od. 1. 346347):

, ;

Minha me, porque razo levas a mal que o fiel aedonos deleite de acordo com a sua inspirao?

Demdoco amado pela Musa, que lhe concedeu o doce canto e a inspirao para celebrar as glrias dos homens, diz o poeta (8. 6364, 73). Como os helenistas sublinham, este dom no a inspirao sublime, ideia que no parece ocorrer antes do sc. V, mas o conhecimento do grande repertrio de lendas (cf. Hainsworth 1988: 350)16. esta ddiva ou instruo divina que, no entender de Ulisses, justifica a distino de Demdoco (cf. 8. 479481, 487490, 496499, vide infra, p. 24).

No canto XI, Alcnoo admirase com a habilidade () com que o seu hspede relata as suas desventuras, e comparao a um aedo (vv.368369). Esta admirao sobressai tambm num smile, por meio do qual Eumeu estabelece um paralelo entre os efeitos agradveis sentidos pelo pblico de um aedo e os que ele sentiu, quando escutou Ulisses (17. 518521):

, , , .

Ouvilo olhar para um aedo, que para os mortais cantapalavras cheias de saudade, que os deuses lhe ensinaram,

16 Ccero, ao reflectir sobre a inspirao potica (de Orat. 2. 46. 194, Div. 1. 37. 80), evoca Demcrito (cf. frr. 17 e 18 DK) e Plato (cf. Phdr. 245a). Cf. Dodds 1951: 8082, Murray 1996: 612 e n. seguinte.

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Introduo A tradio dos aedos e dos rapsodos

e todos desejam ardentemente ouvilo, cada vez que canta assim o estrangeiro me enfeitiou, sentado no meu casebre.

Mais uma vez, evidente a associao entre a origem divina do canto e o prazer que ele proporciona. Do mesmo modo, quando Fmio, no canto XXII, suplica a Ulisses que poupe a sua vida, declara (vv. 344349):

, . , , . , . ()

Peote de joelhos, Ulisses, que me respeites e te apiedes de mim.Para ti prprio vir a desventura, se matares o aedo:eu mesmo, que canto para os deuses e para os homens.Sou autodidacta e um deus me ps no esprito cantosde todos os gneros: sou a pessoa certa para cantar ao teu lado,como se fosses um deus. Por isso, no desejes degolarme. ()

Se a afirmao inicial do v. 347 sublinha a capacidade de aprendizagem e a habilidade do aedo, a segunda proclama essa autoridade divina que faz dele um ser to especial e distinto17. Demovido por Telmaco (cf. vv. 354360), o rei de taca poupa a vida ao arauto Mdon e a Fmio. O epteto que Ulisses ento emprega, (v. 376), com o qual se relaciona o nome do aedo, pode ser uma aluso sua fama (muito famoso) ou variedade do seu repertrio (de muitos cantos, cf. vv. 347348).

Em geral, o canto do aedo deleita ou encanta os mortais (cf. Od. 1. 337), e agrada em especial quando soa a novidade, afirma Telmaco (1. 351352). Tanto os convivas da boda dos filhos de Menelau (4. 17), como os que assistem ao banquete de despedida oferecido a Ulisses, no palcio de Alcnoo (13. 27), se deleitam () com o canto do aedo. Parece mesmo que s ele tem o poder de domar os nimos exaltados dos pretendentes, que o escutam sentados e em silncio (1. 325326, 339340). Por isso, quando Penlope, no canto I, regressa aos aposentos e os pretendentes vociferam, na sua insolncia desmedida (1. 368), Telmaco prope, para os acalmar, que escutem antes o

17 Para uma anlise destes versos e do sentido do termo , vide M. FernndezGaliano in Russo et alii 1992: 279281; P. Murray, Poetic Inspiration in Early Greece, JHS 91 (1981) 87100; Dawe 1993: 799; P. Hummel, tre ou apprendre: de lhomrique au pindarique , Glotta 75 (1999) 3649; Pizzocaro 1999: 1725; J. Assal, Phmios autodidaktos, RPh 75. 1 (2002) 721. Cf. infra, p. 57 n. 86.

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Mobilidade potica na Grcia antiga: uma leitura da obra de Simnides

cantor divino, cuja voz na verdade dos deuses se assemelha (1.371 = 9. 4). No de espantar que protestem com veemncia, quando Fmio termina o seu canto (cf. 17. 358360). No v. 330 do canto XXII, o poeta menciona o seu patronmico, , o filho de Terpades, um nome falante, que sugere a noo de deleite.

Ulisses diz a Alcnoo que escutar o aedo durante o banquete constitui uma condio essencial da felicidade humana (9. 111), mas no menos verdade que o canto potico, dado o seu grande poder evocativo, pode causar reaces diferentes nos seus ouvintes. Se para Penlope muitas vezes fonte de uma amargura difcil de suportar, pela saudade que lhe traz memria o canto triste do regresso dos guerreiros (1. 340342), em Ulisses suscita as lgrimas, enquanto nos restantes convivas do banquete de Alcnoo apenas provoca deleite (8. 8692), por no terem presenciado os acontecimentos que so objecto de canto18.

Esta breve anlise confirma que Eumeu tinha razo em sublinhar a condio divina do aedo e o deleite do seu canto (17. 385). Restanos verificar se encontramos na Odisseia provas da sua mobilidade.

Os passos referidos mostram que os aedos deste poema so figuras respeitadas e admiradas. Fmio caracterizado com o epteto (clebre, 1. 325), Demdoco honrado pelo povo ( , 8. 472; cf. 13. 28), qualidades j sugeridas pelos seus nomes falantes (cf. supra ). As seguintes palavras de Ulisses so tambm muito explcitas (8. 479481):

, , .

Pois entre todos os homens que esto na terra, os aedos granjeiam honra e reverncia: a eles ensinou a Musao canto porque estima as tribos dos aedos.

So tambm figuras em quem se deposita confiana, o que explica o uso da frmula (leal, pronto a servir), tanto a respeito de Fmio (1. 346), como de Demdoco (8. 62). A melhor ilustrao desta qualidade aquele curioso momento do canto III (vv. 262272), no qual se evoca a seduo de Clitemnestra, que Agammnon havia confiado zelosamente guarda (, v. 268) de um aedo. Ter sido, por certo, a confiana que nele depositava que presidiu deciso do Atrida, e para seduzir a rainha Egisto teve primeiro de desterrar o fiel cantor19.

18 Sobre a matria de canto do aedo, vide supra, n. 4.19 Tratase da referncia mais antiga a este episdio, que traa um retrato de Clitemnestra

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Introduo A tradio dos aedos e dos rapsodos

Este passo sugere tambm que os aedos no beneficiam das mesmas condies de trabalho, que so particularmente adversas no caso de Fmio. O poeta sublinha vrias vezes que o aedo de taca canta para os pretendentes forado (1. 154, 22. 331). Este um dos argumentos aduzidos quando suplica a Ulisses que lhe poupe a vida (22. 350353):

, , , .

Telmaco, o teu filho amado, te dar testemunho disto:que no foi por minha vontade que vim para a tua casa,com teno de cantar para os pretendentes aps o jantar;mas eles, mais fortes e numerosos, me trouxeram fora.

Na opinio de Heubeck 1988: 96, os vv. 153154 do canto I e os que acima citmos indicam que Fmio no se encontra entre os pretendentes, mas quando, no canto XVI, Telmaco enumera ao pai os homens que habitam no palcio, menciona o arauto Mdon e o aedo divino (v. 252). Portanto, o aedo pode residir no palcio (ser provavelmente a situao do de Agammnon e de Clitemnestra), mas possvel que s o fizesse quando era chamado pelos pretendentes, contra a sua vontade. O seu afastamento parece ser motivado apenas pela perturbao que assola o palcio de Ulisses.

O ambiente pacfico da casa de Alcnoo torna as condies de actuao de Demdoco bastante diferentes. notrio, porm, que apenas se exibe quando chamado a fazlo. Acolhe de boa vontade os desejos dos convivas, como Ulisses, que lhe pede que cante sobre o cavalo de madeira (8. 485498), mas tem de cumprir as ordens do rei, quando lhe ordena que cesse o seu canto (8.536543). O seu estatuto social equiparado ao do arauto, que o auxilia no exerccio da sua arte. Quando no canto I coloca a ctara nas mos de Fmio (vv. 153154) no significa, como notou Heubeck (ibidem), que o aedo seja cego. Sendo uma extenso da autoridade, o gesto do arauto pode ser entendido

bastante distante do tradicional (cf. vv. 265266). A tarefa do aedo intrigou os comentadores antigos (cf. S. West 1988: 176177). Um epigrama de Antpatro de Sdon sobre a morte de bico evoca a m aco de Egisto e inspirase provavelmente no passo da Odisseia (AP 7. 745 = epigr. XIX GowPage, Ibyc. test. 5, cf. infra, p. 102). Para um comentrio aos versos homricos, vide D.Page, The Mystery of the Minstrel at the Court of Agamemnon, in Studi Classici in onore di Quintino Cataudella I (Catania 1972) 127131; Stephen P. Scully, The Bard as the Custodian of Homeric Society: Odyssey 3, 263272, QUCC 8 (1981) 6783; . Andersen, Agamemnons Singer (Od. 3. 262272), SO 67 (1992) 526; Luigi Belloni, Laedo del re (Od. III. 262272), Athenaeum 90.1 (2002) 95109.

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Mobilidade potica na Grcia antiga: uma leitura da obra de Simnides

como uma indicao da ordem para cantar. R. D. Dawe (1993: 58), no extenso comentrio que dedica Odisseia, prope uma interpretao mais plausvel, segundo a qual o modelo de aedo para o poeta Demdoco, pelo que pode ter ocorrido neste passo uma transposio para Fmio da sua cegueira. De facto, a deficincia visual do aedo dos Feaces segura (8. 6364)20 e Alcnoo tem de dizer ao arauto que o v buscar, para animar o banquete de recepo a Ulisses (8. 4347). por ele conduzido (8. 62) e levado para o exterior, quando o rei assim decide (vv. 105108). No chegamos, contudo, a saber se o aedo habita ou no no palcio.

Em concluso, as vrias cenas que na Odisseia permitem reconstituir as condies de actuao destes profissionais no nos fornecem elementos suficientes para confirmar a sua mobilidade. Sublinhese, todavia, que os aedos retratados no poema frequentam os palcios de pessoas importantes, que tinham meios para os sustentar durante muito tempo. Em nossa opinio, as palavras de Eumeu sobre a deslocao destas figuras podem reflectir uma prtica do tempo do poeta, mas no se ajustam com exactido realidade descrita na Odisseia. Parece certo, porm, que nem Demdoco nem Fmio residem no espao onde executam a sua arte e ambos tm de ser chamados para actuar, voluntariamente ou fora.

Os estudiosos mostramse cpticos quanto historicidade destas personagens (cf. Heubeck 1988: 96, Hainsworth 1988: 349350), embora se pressuponha a existncia de uma longa tradio poticomusical oral. No h, porm, testemunhos sobre as condies em que os bardos desenvolviam o seu trabalho. A partir da poca Clssica, pelo menos, estava bem divulgada uma tradio, baseada na Odisseia, segundo a qual Fmio e Demdoco tinham de facto existido. Scrates, no on de Plato, menciona o primeiro como o rapsodo de taca, depois de referir outros poetas mticos, designadamente Olimpo, Tmiris e Orfeu (533bc). Este tipo de notcia encontrou grande receptividade numa obra como o De Musica, do PseudoPlutarco (3. 1132bc), que atribui ao msico antigo Demdoco de Corcira As bodas de Afrodite e Hefestos e um Saque de Tria (cf. Od. 8. 266366, 499520), e a Fmio de taca um Regresso dos heris que deixaram Tria com Agammnon (cf. Od. 1. 325327).

20 Sobre a cegueira do poeta na tradio pseudobiogrfica, vide infra, p. 44 n. 62.

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Introduo A tradio dos aedos e dos rapsodos

II. O testemunho de Hesodo (Op. 650-662)

A presena de dados autobiogrficos na Teogonia e nos Trabalhos e Dias estabelece um contraste notvel com os Poemas Homricos21. O seu presumvel autor apresentase na primeira obra: era um simples pastor que um dia encontrou as Musas, que lhe ensinaram um canto maravilhoso (vv. 2223). Na segunda, diz que filho de um homem que viera de Cime, da cidade elica situada na costa asitica, um pouco ao sul de Lesbos, e se instalara em Ascra, junto do monte Hlicon, na Becia (vv. 633640). Recorda tambm um momento importante da sua carreira (vv. 650662):

, 650 , . 655 . , . 660 .

que eu jamais embarquei no vasto mar, 650a no ser at Eubeia, ido de ulis, onde outroraos Aqueus esperaram que passasse uma grave tormenta, quando levaram

21 Sublinhese que tem gerado grande controvrsia a fidedignidade dos dados autobiogrficos que ocorrem na poesia de Hesodo. R. Lamberton, Hesiod (New Haven 1988), no lhes atribui valor histrico, defendendo que so fruto de uma tradio que , em si mesma, uma criao mitolgica. Em seu entender, o poeta deve ser considerado as collective expression rather than original talent. (pp. 2223); We must perceive Hesiod as a mask for many anonymous voices, all trained, and trained well, over generations to sound the same, to speak with the same identity and to pass on the same traditions. (p. 35). Esta posio, que nos parece extrema e se ope, em vrios aspectos, s teses de P. Walcot (1966) e de M. L. West (1966, 1978), no nos deve impedir de aceitarmos este testemunho, quer ele seja reflexo de uma experincia pessoal ou, como defende Lamberton, fruto de uma tradio. Para uma posio contrria, vide a nota de R. M. Cook, Hesiods Father, JHS 109 (1989) 170171. Notese que Walcot 1966: 109 situa o floruit do poeta em 730705, com base nos dados biogrficos fornecidos pela sua obra.

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Mobilidade potica na Grcia antiga: uma leitura da obra de Simnides

grande massa de povo da sagrada Hlade para Tria de lindas mulheres.A que eu atravessei para Clcis, a caminho dos jogos do valente Anfidamante; haviam os filhos do magnnimo heri 655proposto muitos prmios. A posso dizer que venci,cantando um hino. Tive uma trpode com duas asas,que dediquei s Musas do Hlicon,no lugar onde me ensinaram primeiro o canto harmonioso.Tal a minha experincia das naus de muitas cavilhas. 660Mas dirteei mesma o pensamento de Zeus detentor da gide. que as Musas ensinaramme um canto maravilhoso.22

Nos Poemas Homricos somente o episdio de Tmiris parece aludir participao dos aedos em concursos poticos, mas a sua interpretao est longe de ser segura, como vimos. Um passo de Trabalhos e Dias, porm, indica que a competio fazia parte da vida destes profissionais no tempo de Hesodo (vv. 2526):

, .

O oleiro tem inveja ao oleiro, o carpinteiro ao carpinteiro,o mendigo ao mendigo, o aedo ao aedo.

O autor de Trabalhos e Dias proclama uma grande experincia de vida, luz da qual se sente no direito e no dever de proferir conselhos prticos, e de exortar o destinatrio da sua obra (apresentado como Perses, seu irmo) a adoptar um comportamento justo. Os vv. 650662 surgem em tom de desculpa por, no domnio da navegao, que o poeta considera em geral uma actividade arriscada, os seus conhecimentos serem muito escassos (cf. vv. 648649). Se a experincia das naus de muitas cavilhas se limita, como ele diz, ao trajecto entre o porto de ulis e o de Clcis, isso poder significar que nasceu e cresceu na Becia (cf. West 1978: 30), e que a sua vida profissional se limitou ao territrio da Grcia Continental. O poeta no revela as razes que o impediram de repetir a experincia ou de efectuar outras viagens atravs do vasto mar. Tendo em conta o contexto da evocao, supomos que no ter sido uma viagem agradvel. A travessia do estreito de Euripo relativamente curta, mas arriscada, e para chegar ao porto de ulis, desde a sua terra natal, teve ainda de percorrer uma distncia significativa. Se considerarmos a hiptese de esse percurso terrestre ter sido difcil, j temos mais do que um motivo para justificar

22 Nas citaes de Hesodo transcrevemos a traduo de M. H. Rocha Pereira (2009: 108, 114115) e seguimos a edio crtica de West 1978.

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Introduo A tradio dos aedos e dos rapsodos

a pouca experincia do poeta em relao a esta matria. No entanto, sobre as suas viagens por terra tambm nada nos diz, embora seja pouco plausvel que nunca tenha sado da sua regio23. Os vv. 651653 denunciam que conhecia a tradio potica da expedio grega contra Tria24, mas no cremos que se trate de uma aluso intencional pica homrica (cf. Il. 2. 303304), como propem alguns investigadores25.

Hesodo revela uma conscincia muito clara do valor didctico da sua poesia, da qual se serve como meio de transmisso dos seus conselhos, que tm em vista um horizonte poltico e social. No entanto, raramente se refere, como nestes versos, s ocasies que proporcionavam a sua execuo pblica. Tambm no explicita em que momento da vida se deslocou Eubeia, a fim de participar num concurso potico, por ocasio dos jogos fnebres em honra de Anfidamante (vv. 654656). Os eptetos que caracterizam o heri (, valente26, , magnnimo) sugerem ter sido um guerreiro nobre. Segundo Plutarco, havia perdido a vida na Guerra Lelantina27. O terminus ante quem deste conflito, que ops Clcis e Ertria pela disputa da plancie de Lelanto, foi determinado pelas escavaes arqueolgicas, que mostraram que o lugar foi destrudo e no mais ocupado um pouco antes de 70028.

West 1978: 32 observa que o poeta teria participado nessa cerimnia porque, partida, tinha algumas garantias de que podia vencer. Sendo assim, j teria alguma experincia. Se o hino com o qual obteve a vitria foi a Teogonia ou

23 Cf. West 1966: 46, 1978: 3032. O helenista salienta o alcance do conhecimento geogrfico de Hesodo, chamando a ateno para o catlogo dos rios de Th. 337345 (1966: 41) e observa, a propsito da forma calcdica , que no h razo nenhuma para supor que a excurso de Hesodo foi um caso isolado de trfego rapsdico entre a Eubeia e o continente (ibidem, p. 90). Cf. infra, n. 32.

24 Sobre a formao potica de Hesodo, vide as hipteses apresentadas por West 1978: 3132.

25 E.g. M. Ralph Rosen, Poetry and Sailing in Hesiods Works and Days, ClAnt 9 (1990) 99113. Este investigador retoma uma sugesto de G. Nagy (cf. p. 100 n. 3) e defende que os vv. 650662 no devem ser interpretados literalmente, mas como uma metfora que permite ao poeta comentar a natureza da sua prpria poesia. Na base desta tese est a convico de que os vv. 651653 aludem poesia homrica, da qual Hesodo procura distanciarse.

26 Tendo em conta a dupla significao do epteto, h que atender ao contexto em que ocorre. Em Il. 2. 23, aplicado a Atreu, tem certamente o sentido de bravo, valoroso. Em 11. 482, a atribuio a Ulisses sugere antes sbio, prudente. Como observa West 1978: 320, o sentido no texto de Hesodo parece ser o primeiro.

27 Sept. sap. conv. 10. 153f. Segundo o schol. Op. 654 (= Plu. fr. 84 Sandbach), Anfidamante morreu no confronto com os Ertrios numa batalha naval, mas este dado difcil de conciliar com a informao de Aristteles de que se tratou de uma guerra de cavalaria (Pol. 1289b3639). No Certamen Homeri et Hesiodi dizse que era um rei da Eubeia (64 Allen = 6 W, cf. infra). Cf. West 1966: 4344.

28 Dados recolhidos em J. P. Barron and P. E. Easterling, Hesiod, in Easterling and Knox 1985: 93. Outras referncias mesma guerra ocorrem em Hdt. 5. 99, Thuc. 1. 15. 3, Str. 10. 1. 12, Plu. Amatorius 760ef.

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Mobilidade potica na Grcia antiga: uma leitura da obra de Simnides

uma verso desse poema, como pensa o mesmo helenista29, no podemos saber, mas esta hiptese plausvel, visto que o poeta afirma ter dedicado o prmio s Musas do Hlicon, cuja epifania recordada na abertura daquele poema (vv. 2234). West 1978: 321 observa que a palavra is not yet specialized in the sense hymn but may be used equally of narrative and didactic poetry. Todavia, este termo tem um emprego muito restrito na poesia mais antiga. Na nica ocorrncia homrica (Od. 8. 429) complemento de uma palavra que designa o canto do aedo ( ). No aparece no promio da Teogonia (vv. 1115), mas o verbo empregue sete vezes para nomear a aco de celebrar, louvar as divindades30. Assim, de supor que o hino com que Hesodo se apresentou em Clcis se aproximaria muito mais daquele poema, do seu promio ou dos Hinos Homricos, do que dos , sobre os quais versa habitualmente o cantor homrico.

Finalmente, diz o poeta que teve como prmio uma trpode com duas asas. O segundo hemistquio do v. 657 tem uma estrutura formular semelhante ao v. 513 do canto XXIII da Ilada: nos jogos fnebres em honra de Ptroclo, Diomedes, vencedor na corrida de carros, ganha uma cativa e uma trpode do mesmo tipo ( )31. Segundo Pausnias, quando o auleta Equmbroto da Arcdia venceu no festival ptico de 586 foi premiado com uma trpode de bronze (10. 7. 46, cit. infra). Mas a remodelao das competies que se seguiu alterou a natureza dos prmios (vide infra, p. 85). Portanto, parece certo que este objecto monumental foi uma das gratificaes mais antigas e habituais, quer dos agones atlticos quer dos musicais (cf. Morgan 1990: 207)32.

29 West 1966: 4445 (cf. 1978: 32, 321). A hiptese foi sugerida pela primeira vez por H. T. WadeGery, Hesiod, Phoenix 3.3 (1949) 87 = Essays in Greek History (Oxford 1958) 8.

30 Cf. Hes. Th. 11, 33, 37, 48, 51, 70 e 101. As ocorrncias mais antigas do termo encontramse nos Hinos Homricos (3. 161, 5. 293), em lcman (fr. 27. 3 P), em Simnides (fr. 519, fr. 78), na obra de Pndaro e na de Baqulides. Sobre o sentido e especializao desta palavra, vide R. C. T. Parker, in OCD, s.v. hymns (Greek).

31 No mesmo canto da Ilada so referidos, alm dos jogos fnebres em honra de Ptroclo (257897), os de Amarinceu, rei dos Epeus da lide (629642), e os de dipo em Tebas (677680). Os de Aquiles so evocados na Odisseia (24. 8592). Nos jogos de Ptroclo, os prmios a concurso so vasos (lebetes), trpodes, cavalos, mulas, bois e cativas (vv. 259261). A descoberta destes objectos votivos veio confirmar a realizao destes eventos no mundo grego. Sobre este assunto, vide Lynn E. Roller, Funeral Games for Historical Persons, Stadion 8 (1981) 118. Como observa Walcot 1966: 119, o passo de Hesodo no se refere a um culto de heri: for Hesiod is describing a special rather than a regular occasion. Vide n. seguinte.

32 Segundo informa Pausnias, no seu tempo conservavase no santurio do Hlicon uma trpode muito antiga que se dizia ser a consagrada por Hesodo (9. 31. 3). As escavaes arqueolgicas permitiram recuperar fragmentos de inscries de trpodes e de lebetes oferecidos nos jogos fnebres da Becia (L. H. Jeffery, The Local Scripts of Archaic Greece, Oxford, 1961, 9192, 94, pl. 78). Foi encontrado no santurio das Musas no Hlicon um fragmento da borda de um lebes de bronze arcaico com parte da inscrio dedicatria, cujas letras indicam o sc. VII.

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Introduo A tradio dos aedos e dos rapsodos

Em concluso, os vv. 650662 de Trabalhos e Dias de Hesodo atestam a realizao, na poca Arcaica, de competies poticas por ocasio de cerimnias de carcter fnebre e indiciam que a participao nesses eventos podia constituir um motivo para a deslocao dos cantores. No a primeira vez que surpreendemos a associao da poesia ao culto fnebre em honra de pessoas ilustres. O poeta da Ilada menciona a presena de aedos profissionais nos funerais de Heitor (24. 719722), embora no tenham sido convocados para uma competio nem sejam provavelmente verdadeiros cantores picos. No entanto, parecenos importante ponderar a possibilidade de existir continuidade ou semelhana entre os rituais fnebres do incio da poca Arcaica, que estes testemunhos presumivelmente evocam, e as homenagens que, dois sculos mais tarde, se realizaro em honra dos que perderam a vida na luta pela liberdade da Grcia.

A descoberta, na Acrpole de Atenas, de partes de cinco lebetes becios com traos das inscries comemorativas indiciam que atletas (ou poetas?) atenienses participavam nas competies da Becia (c. 700600?). Uma outra inscrio votiva, cujas letras sugerem o primeiro quartel do sc. VII, pertence a uma pea oriunda de Tebas, oferecida nos jogos fnebres de um homem chamado Ekpropos e dedicada a Apolo Ptico por um tal Isodikos. Estas descobertas, na opinio de Walcot 1966: 119120, confirmam que a realizao destas cerimnias no era rara na Becia da poca Arcaica.

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Mobilidade potica na Grcia antiga: uma leitura da obra de Simnides

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Introduo A tradio dos aedos e dos rapsodos

III. O aedo de Quios do HinO HOmricO a apOlO (vv. 165-176)

O Hino a Apolo, com 546 versos, um dos quatro maiores e mais antigos dos trinta e trs Hinos Homricos, cujas datas de composio podem variar entre o sc. VII e o sc. IVV d.C. (cf. Clay 1997: 490, West 2003b: 5). O ttulo da coleco explicase pelas caractersticas formais que aproximam estas composies de outros poemas da tradio pica, em especial dos Poemas Homricos.

David Ruhnken, no sc. XVIII, foi o primeiro a observar que o Hino Homrico a Apolo que chegou at ns resulta da juno de dois poemas na sua origem independentes33, sendo que os vv. 1178 se centram no nascimento do deus na pequena ilha de Delos, e os vv. 179546 narram o seu triunfo sobre Pton e o estabelecimento em Delfos. Actualmente, muitos estudiosos continuam a defender a anterioridade da primeira parte34, o que em nosso entender no pe em causa a unidade do hino que hoje conhecemos35.

O passo que agora nos interessa situase na parte final do Hino dlico e permite fazer a transio para o Hino ptico (vv. 165176). Depois de tratar o nascimento de Apolo, o poeta detmse na descrio da festa celebrada em Delos em honra do deus, na qual participa com o seu hino. Os vv. 146155 atestam, por isso, a realizao nesta pequena ilha, desde tempos antigos, de um grandioso festival paninico, que reunia provas atlticas e musicais (v.149),

33 Na segunda edio da Epistula Critica I (1782), segundo Lesky 1995 [1971]: 108. Cf. West 2003b: 9. Seguimos principalmente esta edio nas citaes do Hino Homrico a Apolo.

34 Desde, pelo menos, U. von WilamowitzMoellendorff, Die Ilias und Homer (Berlin 1920) 441, o Hino ptico (ou Suite ptica) tem sido considerado uma continuao do Hino dlico, observandose, entre outros aspectos, que no tem um comeo prprio. Cf. Kirk 1981: 163. In Easterling and Knox 1985: 73, Kirk escreve a mais provvel concluso que a parte dlica deu a ideia e at certa medida o modelo da ptica. Contra esta tendncia, West 1975: 162 defendeu que a Suite ptica uma continuao, no do Hino dlico, mas de outra coisa que desapareceu: um poema independente que perdeu a sua abertura. As duas partes do hino foram certamente compostas antes do fim do sc. VI (cf. Lesky 1995 [1971]: 109). Com base no exame lingustico e nas referncias histricas, Janko 1982: 99132 situou a composio do Hino dlico em 660 e a do ptico em 585 (cf. p. 200). Cf. Cssola 1975: 100101, West 2003b: 1011.

35 Para uma resenha das principais teorias sobre a composio do hino, vide Cssola 1975: 97100 (a favor da anterioridade da primeira parte); Andrew M. Miller, The Address to the Delian Maidens in the Homeric Hymn to Apollo: Epilogue or Transition?, TAPhA 109 (1979) 173176; Clay 1997: 501502. No estudo publicado em 1986, From Delos to Delphi. A Literary Study of the Homeric Hymn to Apollo (Leiden), A. M. Miller prope uma anlise literria do hino segundo a perspectiva dos unitrios.

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Mobilidade potica na Grcia antiga: uma leitura da obra de Simnides

acontecimento importante na vida dos Inios, que se apresentavam com os seus filhos e esposas respeitveis (v. 148)36. Se as suas lutas, danas e cantos suscitam em especial o deleite de Apolo (vv. 146, 150), a sua beleza e jovialidade no deixariam indiferente o mais simples mortal que assistisse a tal celebrao (v. 153): o deleite de presenciar tal evento no uma graa exclusiva do deus.

O olhar do poeta demorase depois numa grande maravilha ( , v. 156): o coro das donzelas de Delos, servas do santurio, entoam hinos () em honra de Apolo, Leto e rtemis (vv. 158159) e recordam os homens e as mulheres do passado (v. 160). A sua glria, diz o poeta, jamais perecer (v. 156), pois estas donzelas encantam as tribos dos homens (v. 161), com a sua estranha capacidade de imitar as vozes e o balbuciar de todos os mortais (vv. 162164)37.

Depois de descrever os Inios de longas tnicas e a actuao graciosa das servas de Apolo, o poeta centrase na sua pessoa e no seu trabalho (vv. 165176):

, 165 ,

36 Outro testemunho destas festas antigas o de Pausnias sobre Eumelo de Corinto (cf. infra pp. 6568).

37 Na edio de Allen, Halliday and Sikes, a ltima palavra do v. 162 , fazer soar as castanholas (LSJ: rattling with castanets, to give the time in dancing). Cssola 1975 e West 2003b preferiram a v.l. , balbucio (LSJ, Suppl.: babbling, cf. , make inarticulate sounds), entendida, em geral, como referente ao som incompreensvel de uma lngua estrangeira. No comentrio a este termo, Cssola 1975: 497 observa que no culto a Apolo Dlio eram entoados cantos muito antigos, em lngua no grega. No cremos que seja esse o sentido dos vv. 162164, nos quais, semelhana do que acontece nos vv. 151155, o poeta se situa no lugar do espectador. Alguns estudiosos sugeriram tratarse de uma referncia possvel imitao dos dialectos dos vrios peregrinos (e.g. Allen, Halliday and Sikes 1936: 225, Kirk 1962: 276277). Podlecki 1984: 24 rejeitou esta leitura argumentando que num festival paninico deveria haver pouca diferena lingustica entre os devotos. No entanto, a subdiviso do grupo dialectal ticoinico estabelecida por Buck 1955: 10 no lhe d razo. Tambm J. M. Cook, The Greeks in Ionia and the East (London 1962) 24, observou que os habitantes da Inia constituam uma miscelnea de elementos de origem diversa. Por conseguinte, julgamos que neste passo pode estar presente uma aluso s diferenas lingusticas dos povos inicos, que no impediriam a completa fruio do hino entoado pelas servas de Apolo. Ser tambm um modo de o poeta traduzir o sentimento de comunho que dominaria o esprito de cada espectador, ao escutar um canto assim to notvel. Burkert 1993 [1977]: 226227 cita dois interessantes paralelos do xtase vivido pelas donzelas de Delos. No livro VIII, Herdoto recorda o estranho episdio do crio Mis que no santurio de Apolo Ptoo ouviu o orculo, que sempre falara grego, pronunciarse na sua lngua brbara (135). Outro paralelo, j referido por outros helenistas (cf. Allen, Halliday and Sikes 1936: 225; H. J. Tschiedel, Ein Pfingstwunder im Apollonhymnos (Hymn. Hom. Ap. 156164 und Apg. 2, 113), ZRGG 27, 1975, 2239), o milagre do Pentecostes sobre as dispertitae linguae tanquam ignis, que conferem aos Apstolos o dom divino de falarem outras lnguas e de se fazerem entender por todos os povos (Actos 2. 311).

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Introduo A tradio dos aedos e dos rapsodos

, , ; 170 , . , 175 , .

Mas vamos! Que Apolo possa ser benvolo, junto com rtemis. 165Passai bem, vs todas! E no futuro lembraivos tambmde mim, quando algum dos homens que vivem sobre a terra,um estrangeiro que muito tenha sofrido, chegue aqui e pergunte: donzelas, qual para vs o mais doce dos aedos,que aqui vem muitas vezes, e com quem vos deleitais mais? 170E vs todas haveis de responder numa s voz: um homem cego, e habita na Quios rochosa;todos os cantos dele sero no futuro os melhores.E ns levaremos a vossa glria enquanto sobre a terraregressarmos s cidades aprazveis dos homens. 175E eles acreditaro, pois verdade.

Estes versos evidenciam as frmulas de concluso caractersticas de outros Hinos Homricos: a prece dirigida s divindades para que favoream o canto ( ...) e o adeus do poeta (). No se trata, porm, de uma transio convencional. A frmula de concluso mais frequente Eu lembrarmeei de vs e de outro canto ( )38 , que encerra a promessa de uma nova actuao, aqui modificada: o poeta pede s donzelas de Delos que se lembrem dele no futuro (vv. 166167), assim como elas evocam com o seu canto os homens e as mulheres de antanho ( , v. 160), assim como os Inios evocam () Apolo por meio da luta, da dana e do canto (vv. 149150). Tornarse presente pela memria significa ser evocado pelo canto (cf. v. 171). Como recompensa, o poeta promete levar a outras partes do mundo a glria deste coro to singular (vv. 174175). Por conseguinte, os vv. 165173 aproximamse muito mais do promio da Teogonia de Hesodo (cf. vv.

38 E.g. h.Hom. 2. 495, 3. 546. A frmula convencional de transio para outro hino expressa nos vv. 177178, que se seguem a este passo e indicam o regresso ao assunto principal: Mas eu no deixarei de celebrar Apolo, que atira de longe,/ deus do arco de prata, que Leto de bela cabeleira gerou. ( | , .). Sobre as frmulas de abertura e de concluso dos Hinos Homricos, vide Clay 1997: 493.

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Mobilidade potica na Grcia antiga: uma leitura da obra de Simnides

2228), no qual a assinatura do poeta (a 39) , como aqui, dramatizada. A nfase dada, desde o incio da descrio, ao deleite (de Apolo, dos Inios, cf. vv. 146, 150, 153) e ao encanto das donzelas (vv. 156, 161) culmina no v. 170 com a proclamao de que o autor deste hino quem mais deleite ( ) lhes proporciona. O retrato que nos apresenta lembra as palavras de Eumeu sobre o aedodemiourgos: um cantor que deleita, que vem muitas vezes a Delos (v. 170)40 e percorre as cidades a mostrar a sua arte (vv. 174175).

Os vv. 12 do fr. eleg. 19 de Simnides (vide infra, pp. 221222) atestam que no seu tempo, pelo menos, a expresso homem de Quios designava o autor da Ilada, Homero (cf. Burkert 2001: 217). Tucdides, por sua vez, para confirmar que no passado os Inios realizavam em Delos um grandioso festival com competies, citou os vv. 146150 e 165172 do Hino dlico, que designa por 41, e conclui com as seguintes palavras (3.104. 36): Assim Homero testemunhou que antigamente havia tambm um grande concurso e um festival em Delos. ( ).

Para Tucdides e Aristfanes42 a autoria do Hino dlico estava atestada pelo prprio poema. O mais doce dos aedos (v. 169), aquele cujos cantos no futuro seriam os melhores (v.173), s poderia ser Homero. A repetio de () (vv. 166, 173) denuncia a importncia do reconhecimento na posteridade. Finalmente, o v. 172 talvez o testemunho mais antigo da identificao de Homero com um aedo cego natural de Quios. A cegueira e a mobilidade so dois temas habituais nos relatos biogrficos sobre o poeta (cf. infra, p. 44). Nestes versos, porm, depois de uma descrio pormenorizada do que de mais admirvel se poderia ver na festa dos Inios (cf. vv. 153154), a sugesto de um poeta cego paradoxal e situao j no mundo da lenda. Parecenos que no o nico aspecto que aproxima o aedo de Quios do de

39 Cf. Cssola 1975: XXV, Kirk in Easterling and Knox 1985: 72 (sphragis or seal, a kind of signature by the composer, who declares himself to be a blind man from rugged Chios.). Sobre o paralelo com a Teogonia, cf. Clay 1997: 502.

40 Que desde muito cedo este santurio de Apolo um lugar de visita obrigatria, propcio para a divulgao da poesia, provao a sua evocao no canto VI da Odisseia (vv. 162167). A referncia do v. 168 a um estrangeiro que muito tenha sofrido parece quase uma aluso a este passo homrico.

41 O escoliasta explica que os hinos eram designados por e funcionavam como preldios s recitaes picas. Como observa Lesky 1995 [1971]: 107, esta designao diz respeito ao facto de conclurem geralmente com a promessa de execuo de um outro canto em honra da divindade (cf. supra n. 38). O promio da Teogonia, alm de ser um hino s Musas, tambm um inventrio dos temas que sero tratados mais tarde na obra. Sobre este assunto, vide Cssola 1975: XIIXIV, XVIIXXI; William Furley, Types of Greek Hymns, Eos 81 (1993) 2141, esp. 2429; Praise and Persuasion in Greek Hymns, JHS 115 (1995) 2946; Clay 1997: 494498; West 2003b: 36.

42 O v. 575 de As Aves alude provavelmente ao v. 114 do Hino dlico.

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Introduo A tradio dos aedos e dos rapsodos

Alcnoo. Recordese que quando Demdoco canta os amores de Ares e de Afrodite, um coro de jovens feaces dana sua volta (Od. 8. 258366). Em nosso entender, um dos aspectos mais singulares do Hino dlico a descrio e invocao do coro das donzelas, e a impresso com que ficamos que elas estariam tambm a actuar ao lado do aedo. Elas so, aparentemente, instrudas por ele (cf. Nagy 1989: 6061).

Um dos textos da tradio pseudobiogrfica, o Certamen Homeri et Hesiodi, que comentaremos a seguir, conta que Homero, depois de passar algum tempo em Argos, navegou para Delos a fim de participar na grande panegria ( ). nessa festa que de p, sobre o altar crneo recita um hino a Apolo ( ), cujo incio coincide com o primeiro verso do Hino dlico. Portanto, o compilador do Certamen conhecia uma tradio que atribua a Homero a composio da primeira parte do Hino Homrico a Apolo ou baseouse nos vv. 165172. Atentese, porm, num pormenor: segundo este relato pseudobiogrfico, Homero recita () o seu poema, mas os vv. 169 () e 173 () do Hino dlico, e especialmente a actuao das donzelas (vv. 158, 161, 164), sugerem que o agon de Delos era de canto43.

Cremos que se inscreve tambm nesta tradio pseudobiogrfica um fragmento que figura no corpus de Hesodo (fr. dub. 357 MW), citado pelo escoliasta da II Nemeia de Pndaro (schol. 1d, III. 31 Dr. = FGrHist 328 F 212):

(sc. ) .

, , , .

Filcoro diz que os rapsodos se chamam assim, porque compem e costuram o canto. Mostrao Hesodo quando afirma:

Ento, primeiro em Delos, eu e Homero, aedos,celebramos, costurando um canto em novos hinos,Febo Apolo da espada de ouro, que Leto gerou.

Segundo este fragmento, Homero e Hesodo apresentaramse pela primeira vez em Delos. Apesar de se especificar que eram aedos e do emprego de , o segundo verso sugere que actuaram como rapsodos (

43 No entanto, nos restantes Hinos Homricos, que so peas rapsdicas, a designao do poema habitualmente .

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Mobilidade potica na Grcia antiga: uma leitura da obra de Simnides

), o que um lugarcomum da tradio pseudobiogrfica, como veremos. Reparese que a citao pretende confirmar a definio de de Filcoro de Atenas (sc. IV)44. Sublinhese ainda que o fragmento contradiz o que Hesodo afirma nos vv. 650651 de Trabalhos e Dias45, que jamais viajara por mar, a no ser at Eubeia.

Um outro esclio da mesma ode de Pndaro causa grande desentendimento entre os estudiosos modernos. a explicao que o escoliasta apresenta sobre os Homridas (schol. 1c. Nem. 2. 1, III. 29 Dr. = FGrHist 568 F 5):

, . , . , . , .

Antigamente diziam que os Homridas eram os descendentes de Homero, que tambm cantavam a poesia dele por direito de sucesso. Mais tarde, os rapsodos fizeram o mesmo, mas j no remontavam a sua linhagem a Homero. Notveis eram os que rodeavam Cineto, sobre os quais se diz que compuseram muitos dos versos que introduziram na poesia de Homero. Cineto era de uma famlia de Quios. Ele que, dos poemas registados como sendo de Homero, lhe atribuiu o hino a Apolo, que ele prprio comps. Este mesmo Cineto foi o primeiro a recitar em Siracusa os versos picos de Homero na 69 Olimpada (= 504/500), como Hipstrato diz.

A ligao de Homero a Quios evocada na tradio pseudobiogrfica com frequncia46. Este esclio claro na distino que estabelece entre os Homridas, ainda cantores (), e os rapsodos do crculo de Cineto, que so acusados de falsificarem os poemas do grande pico47. Sugere tambm que estes profissionais tinham de viajar por causa do seu ofcio, semelhana dos aedos. O que indica sobre a introduo em Siracusa das recitaes de pica homrica no pode estar completamente correcto, porque a data muito tardia. West 1975: 166 defendeu a hiptese, muito plausvel, de essa data

44 O escoliasta acrescenta ainda uma informao do historiador helenstico Ncocles, segundo o qual Hesodo havia sido o primeiro a actuar como rapsodo( ).

45 Vide as razes que levam West 1967: 440 a considerar o fragmento esprio. Cf. Janko 1982: 113114, Burkert 2001: 213 n. 61.

46 E.g. Cert. 117, 307308 Allen = 12, 17 W; Vita Herodotea, passim; Suda, s.v. .47 Alguns estudiosos, como WadeGery 1936: 57, foram a interpretao do esclio e

identificam Cineto como um dos famosos Homridas. Todavia, o esclio estabelece uma distino clara entre os antigos defensores da obra de Homero e os mais recentes rapsodos. Como a imagem destes denegrida, os estudiosos modernos tendem a considerar que as insinuaes sobre as suas fraudes foram divulgadas pelos prprios Homridas. Cf. West 1975: 166, Burkert 1979: 5657.

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Introduo A tradio dos aedos e dos rapsodos

representar antes a primeira entrada numa lista oficial de rapsodos vitoriosos48. Mais importante a informao de que uma das falsificaes era um Hino a Apolo. Em nossa opinio, esta notcia no prova que o Hino dlico uma criao de Cineto (nem sequer o ptico). Ao contrrio do que se verifica nos testemunhos de Tucdides e do Certamen, neste caso no se cita nenhum verso. No sabemos, de facto, a que hino se refere o esclio.

W. Burkert e R. Janko propuseram, em estudos independentes, a hiptese de a execuo integral do Hino Homrico a Apolo ter acontecido num festival organizado em Delos, em 523 ou 522, promovido pelo tirano Polcrates de Samos: as festas dlicopticas49. Nesta altura estaria divulgada a lenda do poeta cego de Quios, de modo que o pblico teria associado essa simples referncia a Homero. Como Hipstrato, historiador siciliano do sc. III (?), indica que Cineto estava activo no ltimo quartel do sc. VI, plausvel que tenha sido responsvel, no pela composio, mas pela juno dos dois hinos. No podemos saber se fez mais do que ligar versos, mas a nossa ignorncia pode deverse apenas aos acasos da transmisso literria. Sobre este ponto preferimos a observao de R. Janko de que as duas partes do hino parecem muito antigas para terem sido compostas por Cineto, o que leva a crer que foi apenas responsvel pela recitao pica no festival de Polcrates50.

O facto de no conhecermos o autor do Hino dlico no diminui o seu valor documental, porque os vv. 165176 apenas teriam sido considerados autnticos se evocassem uma situao verosmil para um grego da poca Arcaica (cf. v. 176). Na opinio de alguns helenistas, testemunham uma das primeiras tentativas de criao de um clssico51 ou de uma personalidade literria qual dada o nome 52. A pertinncia destas teses no pe em causa o valor histricosocial dos vv. 165176: falamnos, na primeira

48 Cf. Cssola 1975: 101 e Burkert 1979: 5456, que prope outra explicao: the first of Kynaithos was to start the same Homeric revival in the very homeland of Stesichorus.

49 Cf. Burkert 1979: 5962, 2001: 213; Janko 1982: 112114. Polcrates pretendia com este festival celebrar a oferta da pequena ilha de Rnea a Apolo (cf. Thuc. 3. 104. 2). Cf. Phot. s.v. ; Suda, s.v. . Sobre este assunto, vide ainda H. W. Parke, Polycrates and Delos, CQ 40 (1946) 105108.

50 Janko 1982: 114. No exame da questo conclui que o Hino dlico deve ser atribudo aos Homridas (pp. 114115). De um modo geral, os estudiosos modernos identificam Cineto com o autor do Hino Homrico a Apolo (e.g. Allen, Halliday and Sikes 1936: 185186) ou com o responsvel pela sua forma definitiva, quer tenha, para isso, composto o Hino ptico, como defenderam WadeGery 1936: 57 e Kirk 1981: 173174, quer tenha composto o Hino dlico (cf. West 1975: 165). Vide ainda Burkert 1979: 5761, West 1999: 368372, esp.

51 Cf. Burkert 1979, 2001: 214 (This is the clearest expression in epic diction of the notion of a classic, an absolute classic, that I can imagine. This is meant to be Homer.).

52 Cf. West 1999. Para uma posio contrria, vide os artigos de G. S. Kirk, The Search for the Real Homer, in Ian McAuslan and Peter Walcot (edd.), Homer (Oxford 1998) 3852, e M. M. Willcock, The Search for the Poet Homer, ibidem, pp. 5364.

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Mobilidade potica na Grcia antiga: uma leitura da obra de Simnides

pessoa, de um aedo inico que se desloca a Delos com frequncia, que conhece outras terras, participa em competies poticas e se vangloria de ser o melhor. Quantos cantores itinerantes no diriam o mesmo de si? Lembremonos do castigo de Tmiris (Il. 2. 597) e do apelo de Fmio a Ulisses (Od. 22. 344349). Por tudo isto, em nossa opinio constituem um dos testemunhos fundamentais sobre a mobilidade potica da poca Arcaica.

Em jeito de apndice, vale a pena referir que as frmulas de concluso de dois Hinos Homricos atestam que estas composies eram apresentadas em contextos de competio.

No VI Hino (a Afrodite), o poeta suplica deusa que lhe conceda a vitria neste concurso (vv. 1920)53. Na opinio de West 2003b: 16, a nfase no poder de Afrodite em Chipre (vv. 23) sugere que o poema pode ter sido a apresentado, por ocasio da panegria da antiga Pafos, mencionada por Estrabo (14. 6. 3). No XXVI Hino (a Dinisos), o poeta formula o voto de que possa regressar nos anos seguintes (vv. 1213), o que indicia a participao num festival de carcter anual.

53 Cf. h.Hom. 11. 5, 15. 9, 24. 5, 25. 6.

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Introduo A tradio dos aedos e dos rapsodos

IV. O certamen HOmeri et HesiOdi

O Certamen Homeri et Hesiodi54 um texto de carcter pseudobiogrfico, do tipo das Vidas de Homero compiladas na poca Alexandrina, cuja gnese assenta na ideia de que os dois maiores picos gregos haviam sido contemporneos e competido um contra o outro num concurso potico em Clcis. Transmitido como annimo por um manuscrito do sc. XIV (Laur. 56.1), a sua ltima redaco data do perodo antonino, mas quase certo que rene tradies mais antigas, algumas das quais remontam poca Arcaica, e informaes recolhidas em fontes diversas55. Citamse, entre outros, o sofista Alcidamante e o historiador Helnico de Lesbos, dos fins do sc. V, o estico Cleantes de Assos (sc. IVIII) e Eratstenes (sc. III)56.

Parece evidente que o compilador do Certamen procurou documentar o seu relato com a insero de excertos das obras atribudas a Homero e a Hesodo, como os vv. 611 do canto IX da Odisseia (quando Ulisses diz a

54 Na identificao dos passos do Certamen indicamos a numerao de Allen 1946: 225238 e de West 2003b: 318353. Seguimos estas edies na citao do texto grego. Para uma traduo, com introduo e notas, de todo o Certamen, vide Ana E. Pinheiro, in Pinheiro e Ferreira 2005: 135159.

55 Um dos episdios mencionados no Certamen a consulta do orculo de Delfos pelo imperador Adriano (sc. II d.C.), a fim de saber qual era a ptria de Homero (3234 Allen = 3 W). Plutarco recorda brevemente o concurso potico (Sept. sap. conv. 10. 153f154a, Quaest. conv. 5. 2. 674f675a), que foi tambm evocado na Vida de Hesodo de Tzetzes, mas est ausente das Vidas de Homero.

56 De todos os autores citados (cf. 1922 Allen = 3 W), o que levanta mais discusso Alcidamante, discpulo de Grgias e rival de Iscrates. No artigo publicado em 1967, West retomou a tese de F. Nietzsche, apresentada em 1870, de que a seco referente ao concurso potico e morte de Hesodo (54239 Allen = 514 W) se baseia inteiramente no Mouseion, composto por aquele sofista na primeira metade do sc. IV. A tese de Nietzsche viria a ser corroborada pela publicao de dois papiros: o Flinders Petrie Papyrus (ed. 1891), datado do sc. III, contm 48 linhas que correspondem aproximadamente a uma parte do Certamen e veio confirmar que a lenda do confronto potico remontava aos tempos helensticos, pelo menos, ou mais antigo; o Michigan Papyrus 2754 (ed. 1925), datado do sc. IIIII d.C., fornece o fim de uma narrativa muito semelhante ao do Certamen (linhas 114 do papiro), seguido de uma espcie de eplogo e a subscriptio ] . O seu editor, J. C. Winter, props a atribuio a Alcidamante com base nos mesmos argumentos de Nietzsche: 1) Estobeu (4. 52. 22) cita os hexmetros dactlicos que ocorrem em 7879 Allen = 7 W como sendo do Mouseion; 2) O Certamen indica esta obra como fonte (239240 Allen = 14 W). Sobre as questes relacionadas com a composio e transmisso do texto, vide West 1967 (cf. 2003b: 297298); Robert Renehan, The Michigan AlcidamasPapyrus: a Problem in Methodology, HSCPh 75 (1971) 85105; George L. Koniaris, Michigan Papyrus 2754 and the Certamen, ibidem, pp. 107129; Richardson 1981, OSullivan 1992.

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Mobilidade potica na Grcia antiga: uma leitura da obra de Simnides

Alcnoo que no h coisa mais bela do que escutar o aedo durante um banquete onde reine a paz), sobre os quais informa que se chamavam de ouro e que ainda no seu tempo era habitual recitlos nos sacrifcios, antes do banquete e das libaes (cf. 9094 Allen = 8 W).

semelhana do que caracterstico das Vidas dos poetas, a narrao do concurso potico entre os dois picos antecedida de informaes de carcter biogrfico. No caso de Hesodo, os vv. 639649 de Trabalhos e Dias, nos quais se refere instalao do pai em Ascra, cortaram as asas imaginao dos bigrafos, mas a ausncia de indicaes sobre a ptria de Homero permitiu que muitas cidades se apresentassem como seu bero, designadamente Esmirna, Quios e Clofon (cf. 117 Allen = 12 W)57. Sobre a filiao de Homero, o Certamen mostra que no havia consenso e o mesmo acontecia quanto cronologia relativa entre os dois poetas58. esta falta de unanimidade cronolgica que deixa em aberto a possibilidade de terem sido contemporneos e rivais, como se afirma na introduo histria do seu encontro em Clcis (5474 Allen = 56 W):

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, .

57 Kirk 1962: 286 observa que em meados do sc. VII, mais ou menos na poca de Arquloco, o aedo annimo comea a tornarse numa figura obsoleta. O pblico interessase cada vez mais pela personalidade dos poetas, cujos sentimentos e experincias pessoais se tornam na prpria matria de canto. possvel que tenha comeado ento o interesse pela vida do pouco conhecido autor dos Poemas Homricos. Segundo a tradio, Tegenes de Rgio, que viveu no final do sc. VI, teria sido o primeiro a procurar informaes sobre a vida e a data de Homero (fr. 8. 1 DK). Cf. Pfeiffer 1968: 1011, Richardson 1993: 27.

58 Esta uma das velhas questes que continua a dividir os estudiosos. Herdoto afirma que os dois poetas viveram 400 anos antes, o que os situa c. 850800 (2. 53. 2). West 1966: 40 observa que para a maioria dos Gregos do sc. V e IV os seus poetas mais antigos eram Orfeu, Museu, Hesodo e Homero. Aquele helenista acredita que pudesse ser essa a ordem cronolgica verdadeira e supe que tenha sido a propaganda dos Homridas que levou inverso da ordem HesodoHomero (p. 47; na n. 4 comenta os testemunhos mais antigos sobre a prioridade de Homero: Xenfanes e Heraclides Pntico; cf. Gel. 3. 11). A tendncia com mais apoiantes privilegia a antiguidade de Homero, mas no h certezas. Lesky 1995 [1971]: 115, na sequncia da afirmao de que os Antigos gostavam de nomear os dois poetas em conjunto (como Herdoto), observa que, no obstante o que tm em comum a mtrica, a linguagem pica e a tradio rapsdica , Hesodo pertence a um mundo social e culturalmente distinto, do qual ele prprio nos deu testemunho (cf. Ehrenberg 1964: 15). Estes aspectos, bem como a nuvem de desconhecimento que envolve a pessoa de Homero, devem ter contribudo para a tradio de que era um dos poetas mais antigos. Cf. supra n. 52.

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Introduo A tradio dos aedos e dos rapsodos

, . . , , . , . , .

Alguns, porm, dizem que eram contemporneos, de maneira que at competiram um contra o outro, quando se encontraram em Alis, na Becia. Homero, na verdade, depois de ter composto o Margites, dizem, andava de cidade em cidade a recitar e, quando chegou a Delfos, perguntou qual era a sua ptria e a Ptia respondeu:

a ilha de Ios, a ptria de tua me, que quando morreres te receber; mas tem cuidado com o enigma dos jovens rapazes.

Depois de ouvir isto, dizem, evitou ir para Ios e permaneceu naquela regio. Por volta desse tempo, Ganictor, na celebrao dos funerais de seu pai Anfidamante, um rei da Eubeia, convidou para os jogos todos os homens notveis, no s pela fora e ligeireza de ps, mas tambm pela sabedoria, honrandoos com grandes dons. E estes, portanto, que por acaso se haviam encontrado, segundo dizem, foram para Clcis. Como juzes do concurso sentaramse alguns dos Calcdios notveis e entre eles Panedes, que era irmo do falecido. No obstante terem sido ambos admirveis na competio, dizem que Hesodo venceu do seguinte modo: tendo avanado para o centro, ia fazendo perguntas a Homero e Homero respondia.

Se o compilador do Certamen teve em considerao o que se diz no incio da obra sobre o Margites, que segundo os habitantes de Clofon fora o primeiro trabalho de Homero (1517 Allen = 2 W)59, ento a mobilidade (andava de cidade em cidade a recitar) era um trao caracterstico que a

59 A atribuio do Margites a Homero, que figura na Potica de Aristteles (4. 1448b1449a), foi tambm afirmada por Arquloco (frr. 201, 303 W), Cratino (fr. 368 KA) e Calmaco (fr. 397 Pf.), segundo um comentador de Aristteles (Eustratius in Arist. EN 6. 7 = Archil. fr. 303 W). Sobre o possvel contedo e caractersticas formais do Margites, vide West 2003b: 225228; para os testimonia e fragmenta, cf. pp. 240253. West prope como data plausvel de composio o final do sc. VI (p. 227). Vale a pena referir a sua interpretao do fr. 1, de trs versos, que fala de um velho e divino aedo que chegou a Clofon com a sua lira na mo ( ). West supe que estes versos pertencem ao incio do poema e dizem respeito ao seu narrador, quer ele fosse ou no identificado com Homero. Na sua opinio, plausvel que o Margites tenha sido composto em Clofon, como se afirma no Certamen (pp. 226227). A confirmarse a sua interpretao, a mobilidade do poeta era uma das primeiras notas deste poema singular.

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Mobilidade potica na Grcia antiga: uma leitura da obra de Simnides

tradio associava aos primrdios da sua carreira. Esta ideia vai ao encontro do que relata a Vida de Homero do PseudoHerdoto a propsito do mesmo assunto60. Um mercador chamado Mentes convidou o jovem Melesgenes, que s mais tarde mudaria o nome para Homero61, a abandonar a escola e a acompanhlo nas suas navegaes, para que assim pudesse conhecer terras estrangeiras, enquanto era novo. Curiosamente, o autor desta Vida observa que a ideia de viajar despertava certamente um grande interesse no jovem, pois j nesse momento ele deveria estar a pensar em tornarse poeta (6172 Allen = 6 W). Ou seja, para o autor deste relato, mais do que uma formao escolar, so as viagens realizadas na juventude que explicam os vastos conhecimentos demonstrados pelo grande pico. S mais tarde que ele cegou completamente (7387 Allen = 7 W), depois de ter conhecido o mundo que descreve nos seus poemas. Contudo, continua o mesmo relato, a falta de viso no o impediu de viajar, agora com a finalidade de dar a conhecer a sua obra (288313 Allen = 2122 W)62.

Voltando ao Certamen, em Delfos que Homero ouve falar da celebrao de jogos para honrar a memria de Anfidamante. A se havia dirigido para interrogar o orculo sobre a sua ptria, uma questo que certamente despertava a curiosidade dos Gregos, j que eram muitas as cidades que disputavam essa honra. O Certamen comea por referir essa polmica, mas este passo desacredita o que a se escreve: nem sequer o prprio Homero sabia onde nascera e a Ptia dizlhe que fora em Ios, a ilha das Cclades situada entre Naxos e Tera. Portanto, segundo a verso do Certamen, o poeta era oriundo de uma ilha cicldica, mas desde o incio da carreira a mobilidade fizera parte da sua vida. Sublinhese que a forma verbal que designa essa actividade .

O orculo da Ptia introduz um enigma que apenas ser resolvido na parte final do Certamen e passase imediatamente histria do concurso potico em Clcis. evidente que esta verso dos jogos fnebres em honra de Anfidamante desenvolve os escassos elementos fornecidos por Hesodo em Trabalhos e Dias (vv. 654659):

60 Na opinio de West 2003b: 301, este texto deve ter sido escrito entre c. 50 e c.150 d.C.61 A interpretao do nome dividiu os bigrafos antigos e os estudiosos modernos.

Para uma resenha das teorias principais, vide Cssola 1975: XXXIIXXXIV. Para uma anlise global da questo, vide West 1999.

62 Temse defendido que a deficincia visual de Homero (cf. Paus. 4. 33. 7) foi inspirada pela caracterizao de Demdoco (e.g. Hainsworth 1988: 350, Zanker 1995: 166). Sobre a assiduidade deste motivo na tradio pica, cf. Ehrenberg 1964: 79. A ligao da cegueira poesia e profecia no mito examinada por R. G. A. Buxton, Blindness and Limits: Sophokles and the Logic of Myth, JHS 100 (1980) 2237, esp. 2730. John Miles Foley, Individual Poet and Epic Tradition: Homer as Legendary Singer, Arethusa 31. 2 (1998) 149179, discute em especial os traos que caracterizam o chamado poeta lendrio, quer nos relatos biogrficos sobre Homero quer nos que existem sobre os bardos eslavos e de outros povos, designadamente a mobilidade, que no af