É sobre a relação das artes plásticas com a naturezapor meio da linguagem, a não ser por, tal...
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É bem verdade que, em termos de sua efetividade cultural, a tal "protecão" estaria antecipadamente perdida para nós, um • _ ,
homens modernos. Mas essa inacessibilidade ao passado nao e,
aqui, um obstáculo ininteligível e tampouco motivo .d~ resign~ção; podemos estar distantes de Michelangelo, mas sua ~tiv1dade deixo~, por assim dizer, vestígios preciosos, cabendo ao art1st~ a tarefa nao de copiá-lo, mas de decifrá-lo, soletrando, uma vez mais, as letra: ~e seu espírito. E o mesmo valeria para Rafael e qualquer outro gemo
renascentista: "Não haverá um Rafael como aquele de outrora, mas
um outro, a quem, de maneira particularmente similar, será facultado
atingir 0 vértice da arte. " 62 Perene, a arte começaria em todos os
grandes momentos de criação: ontem, hoje e amanhã- bem como
depois de amanhã. E, embora o texto de Schelling esteja voltado,
nesse caso específico, a um seleto público bávaro, não é apenas de
uma alma "nacional" que nele se fala. A arte é expressiva porque
nela os indivíduos interpretam suas almas e desejos, quer estejam
numa nação quer noutra. Transmitindo-se de mão em mão, o en-
tusiasmo à base da criação artística pode até ressurgir do perpétuo
caule da árvore da arte, mas, a cada vez, apresentará novas folha-
gens, sejam estas de uma palmeira ou não.
Fernando R. de Moraes Barros
(Pela generosidade e incentivo inspirado, agradecemos enfaticamente a Fernando Rey Puente. Parte da argumentação contida nesta introdução - em
especial no que se refere à pintura pode ser encontrada, sob uma forma mais detalhada, em nosso artigo "A pintura em Schelling e o problema da
imagem", Veritas, Porto Alegre, v. 55, n. 3, p. 202-216, set.-dez. 2010).
26 -~re a relação das ARTES PLÁSTICAS ...
Sobre a relação das artes plásticas com a natureza
Dias festivos como o de hoje, 1 identificado com o nome do Rei
e capaz de despertar alegres sensações em todos, de modo unânime
e mediante um sublime bordão, parecem conduzir, por si só, lá onde
apenas as palavras e o discurso podem festejá-los, a considerações
tais que, recordando o que há de mais universal e digno, reúnem
os ouvintes numa participação espiritual [geistiger Teilnehmung]
tão intensa quanto aquela que os unifica no sentimento patriótico
consoante a este dia. Afinal, o que mais agradecemos em máxima
medida aos senhores da terra senão o fato de eles nos conce-
derem e assegurarem o sereno deleite de tudo o que é excelente e
belo? De sorte que não podemos rememorar suas boas ações nem
considerar a felicidade pública sem sermos levados, de imediato,
àquilo que é comum a todos os seres humanos. Dificilmente seria
dado engrandecer tal festividade com um prazer mais geral do que
o de desvelar, nela, uma grande e verdadeira obra de arte plástica,
oferecendo-a livremente à contemplação [Anschauung]; não menos
unificante e ao mesmo tempo condizente com este lugar, consagrado
exclusivamente às ciências, pareceria a tentativa de descerrar a obra de arte em conformidade com sua essência, deixando-a surgir, por
assim dizer, diante do olho do espírito.
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Há muito tempo que se tem sentido, pensado e ajuizado
demasiadamente sobre a arte! Como o discurso poderia esperar, a
ser assim, em meio a uma reunião tão eminente dos mais esclarecidos
especialistas e juízes perspicazes, dar um novo estímulo ao tema e_m
questão, caso este não rechaçasse toda sorte de ornamentaçao
estranha e a presente preleção não tirasse algum proveito da aclamação
e receptividade gerais de que o tema goza? Pois, outros objetos
precisam ser realçados por meio da eloquência, ou, então, se têm
em si algo de exuberante, devem tornar-se verossímeis através da
exposição [Darstellung]. Mas a arte possui essa vantagem de ser
dada visualmente, já que sua realização vai de encontro às dúvidas eventualmente lançadas contra as afirmações de uma perfeição
acima da medida comum, na mesma proporção em que aquilo que
não seria apreendido na ideia surge, nessa região, como que corpo-
rificado diante dos olhos. Em prol desse discurso também concorre,
ademais, a observação de que as diversas doutrinas formadas a partir
de tal tema ainda se reportaram muito pouco à fonte primordial da arte. Pois a maioria dos artistas, ainda que todos eles devam imitar
a natureza, raramente logra atingir um conceito de sua essência. E,
no mais das vezes, por causa da maior inacessibilidade da natureza,
os especialistas e pensadores julgam mais cômodo deduzir suas teorias
a partir de considerações sobre a alma do que de uma ciência da
natureza. Mas, em geral, tais doutrinas são assaz superficiais;
decerto dizem coisas boas e verdadeiras a respeito da arte, porém
elas próprias não exercem efeito algum sobre o artista plástico,
sendo, de resto, totalmente infrutíferas à prática.
28 - Sobre a relação das ARTES PLÁSTICAS ...
Conforme a mais antiga expressão, a arte plástica deve ser
uma poesia muda. Com isso, o inventor de tal explicação esperava
sem dúvida dizer: assim como a poesia, aquela deve expressar
pensamentos espirituais e conceitos cuja origem é a alma, mas, não
por meio da linguagem, a não ser por, tal como a silenciosa natureza,
mediante figura [Gestalt]2 e forma, obras sensíveis que independem
da linguagem. Por conseguinte, a arte plástica coloca-se evidente-
mente como um vínculo ativo entre a alma e a natureza, podendo ser
apreendida apenas no centro vivo que vigora entre ambas. Ejá que
ela tem em comum com toda outra arte e, em especial, com a poesia
sua relação com a alma, aquilo através do qual a arte plástica se liga
à natureza - que deve ser, à semelhança desta última, uma força producente-, permanece a única coisa que lhe é própria; somente
a isso pode referir-se uma teoria apta a satisfazer o entendimento,
a qual deve, outrossim, auxiliar e promover à arte mesma.
Ao considerarmos a arte plástica em relação ao seu verda-
deiro modelo e fonte primordial, o mesmo é dizer, sob a égide da
natureza, esperamos, portanto, poder contribuir com algo que
sua teoria ainda desconhece, fornecendo algumas determinações
mais precisas ou elucidações dos conceitos; mas, sobretudo, trazer
à tona o nexo de relações do inteiro edifício da arte à luz de uma necessidade mais elevada.
Ora, mas a ciência não reconheceu desde sempre essa relação?
Não partiu toda teoria moderna do princípio mesmo segundo o
qual a arte deveria ser a imitadora [Nachahmerin] da natureza? De
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fato, assim foi que se deu; mas qual serventia esse princípio amplo e
geral poderia ter ao artista, tendo em vista a ambiguidade do conceito
de natureza e o fato de haver praticamente tantas representações
desta última quanto os diferentes modos de vida? Para alguns, ela
não é nada mais que o agregado morto de um amontoado indefi-
nido de objetos, ou, então, o espaço no qual se imagina as coisas
colocadas como que num recipiente; para outros, ela não passa do
solo a partir do qual eles retiram seu alimento e sua subsistência;
apenas ao investigador inspirado ela constitui a força primordial do
mundo, divina e eternamente criadora, engendrando e produzindo
ativamente todas as coisas a partir de si. Grande seria a relevância
de tal princípio, caso ele ensinasse à arte a emular [nacheífern] essa
força criadora; mas dificilmente se poderia duvidar do sentido em
que ele fora concebido, quando se conhece a condição geral em que
se achavam as ciências à época de seu primeiro surgimento. Seria
bastante insólito se justamente aqueles que negam toda vida da
natureza estabelecessem-na, na arte, como algo a ser imitado! A eles
poderiam ser empregadas as palavras de um homem profundo: "Vossa
mentirosa filosofia eliminou a natureza; então por que razão exigis
de nós, agora, que a imitemos? Para que possais renovar o prazer
de exercer a mesma violência sobre os discípulos da natureza?" 3
Para eles, a natureza não era apenas uma imagem muda,
mas completamente morta, para qual não havia, mesmo do ponto
de vista interno, nenhuma palavra viva que lhe fosse inerente; um
esqueleto oco de formas a partir do qual uma imagem igualmente
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oca deveria ser transposta para a tela, ou, então, talhada na pedra.
Essa era, em rigor, a doutrina daqueles povos mais antigos e rudes,
os quais, não vendo nada de divino da natureza, dela extraíam
ídolos; ainda que, para os sensíveis helenos, os quais em toda parte
sentiam o vestígio de um ser vivamente atuante, verdadeiros deuses
surgissem da natureza.
Então o discípulo da natureza deveria imitar, sem distinção,
tudo o que ela contém, copiando cada uma de suas partes? Apenas
os objetos belos cabem a ele reproduzir, e, mesmo destes últimos,
somente o que eles têm de belo e perfeito. O princípio foi, assim,
determinado com mais precisão, mas, justamente por isso, passou-se
a afirmar: na natureza, o perfeito está misturado ao imperfeito,
bem como o belo àquilo que é destituído de beleza. Como poderia,
então, aquele a quem não convém senão uma relação de imitação
servil com a natureza distinguir uma coisa da outra? É típico dos imitadores apropriarem-se mais depressa e com maior facilidade das
falhas de seu protótipo [Urbild] do que de seus méritos, haja vista
que as primeiras oferecem pontos de apoio e sinais distintivos mais
palpáveis; assim, vemos igualmente que o feio foi reproduzido pelos
imitadores da natureza com maior frequência, inclusive com mais
paixão, do que o belo. Se considerarmos as coisas, não a partir da
essência nelas contida, mas à luz de sua forma vazia e abstrata, elas
também não terão nada a dizer ao nosso mundo interior; para que
nos deem uma resposta, precisamos aplicar-lhes nossa própria mente
[Gemüt], nosso próprio espírito. Mas em que consiste a perfeição de
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cada coisa? Em nada senão que na vida criadora nela presente, na
força que a faz persistir na existência. Portanto, àquele que imagina
a natureza como algo absolutamente morto jamais será facultado
atingir o processo profundo, análogo ao processo químico, por
meio do qual emerge, como que depurado pelo fogo, o puro ouro
da beleza e da verdade.
Nada se alterou na visão geral dessa relação, e isso mesmo
quando a insuficiência de tal princípio já havia começado a se fazer
sentir de um modo mais universal. Nem sequer por meio da gloriosa
fundação de uma nova doutrina e um novo conhecimento mediante
Johann Winckelmann.4 Ele decerto restabeleceu a alma na arte
com toda sua eficácia, elevando-a de sua indigna dependência ao
âmbito da liberdade espiritual.5 Intensivamente movido pela beleza
das formas nas criações da antiguidade, ensinou que a produção
de uma natureza ideal e situada acima da efetividade constitui,
juntamente com a expressão de conceitos do espírito, o propósito
mais elevado da arte.
Se investigarmos, porém, em que sentido esse ultrapas-
samento da efetividade através da arte foi compreendido pela
maior parte das pessoas, tornar-se-á patente que, mesmo com tal
doutrina, a concepção de natureza como mero produto ou soma
de coisas sem vida ainda continuou em vigor, sendo que a ideia de
uma natureza viva e criadora não foi, em absoluto, despertada por
ela. Desse modo, aquelas formas ideais tampouco puderam, pois,
ser avivadas por meio de qualquer conhecimento positivo de sua
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essência; e se as formas consoantes à efetividade pareciam mortas
ao morto observador, então não menos mortas estavam as formas
ideais; se não era possível nenhuma produção autônoma destas
últimas, tampouco seria possível uma produção independente das
primeiras. O objeto da imitação foi modificado, mas a imitação
permaneceu. No lugar da natureza, entraram em cena as elevadas
obras da antiguidade, cuja forma exterior os discípulos dedicavam-se a
imitar, mas sem o espírito que as preenchia. Tais obras são, porém,
igualmente inacessíveis; são, aliás, ainda mais inacessíveis do que
as obras da natureza, de sorte que te [sie /assen dich] deixarão até mais frio do que estas últimas se não lhes acrescentar o olho do
espírito, para penetrar sua casca e sentir a força que nelas se efetua.
Por outro lado, os artistas decerto mantiveram, desde tal
época, um certo ímpeto idealista, bem como representações de uma
beleza que se eleva acima da matéria [Materie], mas tais represen-tações assemelhavam-se às belas palavras que não correspondem aos atos. Se o antigo tratamento artístico engendrara corpos sem
alma, tal concepção, em contrapartida, ensinou apenas o segredo da
alma, mas não aquele atinente ao corpo. Como sempre acontece, a
teoria atravessara a passos largos para o lado oposto, porém ainda
não havia encontrado o meio vivificante.
Quem pode dizer que Winckelmann não reconheceu a mais
elevada beleza? Mas, para ele, ela apareceu apenas em seus elementos
disjuntivos; por um lado, enquanto beleza presente no conceito e
emanado da alma; por outro, enquanto beleza das formas. Mas
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qual é o vínculo efetivamente atuante que une, pois, ambos os
elementos? Ou, melhor ainda, por meio de que força a alma é, como
que num só sopro, criada juntamente com o corpo? Se a arte não
fosse capaz de estabelecer tal vínculo, tal como o faz a natureza,
então, em geral, ela não estaria apta a criar nada. Winckelmann não
determinou esse termo médio [Mittelglied] vital; não ensinou como
as formas podem ser engendradas a partir do conceito. Assim, a arte
passou ao largo daquele método que, de nossa parte, gostaríamos
de denominar retroativo [rückschreitende], já que se esforça para
ir da forma à essência. Mas, com isso, não se alcança o incondi-cionado: este não é encontrado por meio de um mero incremento
do condicionado. Por isso, aquelas obras que tomaram como ponto
de partida a própria forma indicam, a despeito de todo refinamento
por parte desta última, um vazio impreenchível como marca de sua
origem, e isso justamente no lugar onde esperamos detectar o que
há de perfeito, essencial e final. Aqui, fica excluído o milagre por
meio do qual o condicionado deveria ser elevado ao incondicionado
e o humano, ao divino; o círculo mágico está traçado, mas o espí-
rito que nele deveria ser apreendido não aparece, desobediente
[unfo/gsam] à exortação daquele que reputava possível uma criação
por meio da mera forma.
Longe de nós querermos criticar, com isso, o espírito desse
homem perfeito, cuja eterna doutrina e revelação do belo terminou
por se converter mais num ensejo do que propriamente na efetiva
causa dessa tendência da arte! Sua memória se mantém sagrada para
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nós como a lembrança de benfeitores universais! Durante toda sua
época, ele permaneceu numa solidão sublime, qual uma montanha;
sem nenhum ruído replicante, nenhum movimento vital, nenhuma
pulsação no inteiro e amplo reino da ciência que se contrapusesse
ao seu esforço. Mas, justamente quando vieram seus verdadeiros
camaradas, esse homem excepcional fora levado desta para melhor
[dahingerafft; literalmente, "fulminado"].6 E, ainda assim, conseguiu
levar a cabo algo tão grandioso! Pelo sentido e espírito, não pertence
à sua época, mas à antiguidade, ou, então, ao período do qual foi o criador, a saber, a era atual. Por meio de sua doutrina, forneceu a
primeira fundamentação daquele edifício universal do conhecimento
e da ciência da antiguidade, que os períodos posteriores começaram
a erigir. Foi o primeiro a quem ocorreu a ideia de considerar as obras
de arte à maneira e conforme as leis das eternas obras da natureza, já que, antes e depois dele, elas foram vistas e correspondente-
mente tratadas, por todos os demais seres humanos, como obra
de uma arbitrariedade desprovida de qualquer lei. Atuando, entre
nós, como um vento advindo de regiões de clima mais suave, seu
espírito desanuviou o céu artístico de tempos imemoráveis, sendo,
se agora nos é dado vislumbrar suas estrelas com olhos límpidos e
livres de qualquer turvação, a ele que devemos atribuir a causa disso.
Como sentiu o vazio de sua época! Com efeito, se não tivéssemos
nenhuma outra razão além do seu eterno sentimento de amizade e
a inextinguível nostalgia de sua fruição, essa justificativa seria, já, o
suficiente para sancionar o amor intelectual para com esse homem
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perfeito, de vida e atuação clássicas. E, se ele ainda sentiu alguma
outra nostalgia além daquela, que não o saciou, foi, pois, a nostalgia
por um conhecimento mais íntimo da natureza. Nos últimos anos
de vida, ele mesmo asseverou reiteradamente a amigos íntimos que
suas últimas considerações deveriam ir da arte à natureza; como que antecipando, por assim dizer, um déficit e o fato de que lhe faltava
entrever a mais elevada beleza - que ele encontrava em Deus -
igualmente na harmonia do universo.
Antes de mais nada, a natureza vem ao nosso encontro de
modo hermético e sob uma forma mais ou menos rígida. Assemelha-
-se à beleza sóbria e serena, que não chama a atenção por meio de sinais gritantes nem atrai o olhar vulgar. Como podemos fundir,
digamos, do ponto de vista espiritual, aquela forma aparentemente
rígida a fim de que a força mais clamorosa das coisas flua juntamente
com a força de nosso espírito, transformando-as num só molde?
Temos que ultrapassar a forma, para, aí então, readquiri-la como
algo inteligível, vívido e verdadeiramente sentido. Considerai, pois,
as mais belas formas: o que vos restaria delas, afinal, se abstraísseis
seu princípio eficiente? Nada senão meras propriedades não es-
senciais, iguais à extensão e à relação espacial. Que uma parte da matéria se ache ao lado e fora de outra, contribui em alguma medida
para sua essencialidade [Wesenheit] interna, ou, antes do mais, é
algo que em nada contribui? A última alternativa, evidentemente.
Não é a contiguidade [Nebeneinandersein] que constitui a forma,
senão a maneira como aquela se dá; uma vez que isso só pode ser
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determinado por uma força positiva, a qual, contrapondo-se ao um
fora do outro [Aussereinander], submete a multiplicidade das partes
à unidade de um conceito; desde a força que atua no cristal até aquela que, como uma suave corrente magnética nas configurações
humanas, fornece às partes da matéria a disposição e o arranjo por meio dos quais o conceito, a unidade essencial e a beleza podem tornar-se visíveis.
Todavia, a essência na forma não deve aparecer-nos apenas
como princípio ativo em geral, mas como espírito e ciência efetiva,
para que possamos apreendê-la vivamente. Toda unidade deve ser,
pois, espiritual em sua espécie e procedência; e o que almeja toda
investigação da natureza senão encontrar, nela, a própria ciência?
Afinal de contas, aquilo para o qual não haveria entendimento
tampouco poderia constituir um objeto do entendimento; não se
pode reconhecer o próprio incognoscível. A ciência pela qual a natu-
reza opera não é, por certo, igual à ciência humana, que estaria ligada à reflexão de si mesma; nela, o conceito não se distingue da ação nem o projeto de sua execução. Daí, a matéria bruta visar,
às cegas, por assim dizer, a uma configuração regular, assumindo inconscientemente puras formas estereométricas, que, no entanto,
pertencem ao âmbito dos conceitos, constituindo algo espiritual na
própria esfera material. A aritmética e a metrologia mais sublimes
são congênitas aos astros, os quais, sem possuir um conceito de tais
ciências, praticam-nas em seus movimentos. E, ainda que lhes seja
inapreensível, o conhecimento vital revela-se com maior clareza nos
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animais, os quais, apesar de perambularem irrefletidamente, vemos desempenhar inúmeras ações, inclusive mais esplêndidas do que eles próprios; o pássaro que, embriagado de música, supera a si mesmo em sons comoventes; a pequena criatura dotada de arte que, sem treino e aprendizado, constrói singelas obras de arquitetura; todos conduzidos por um espírito superpoderoso que ilumina num só relâmpago de conhecimento, mas que em parte alguma irrompe, tal como no homem, como o pleno sol.
Essa ciência ativa é, tanto na natureza quanto na arte, o vínculo entre conceito e forma, corpo e alma. À cada coisa corresponde um conceito eterno, arquitetado no entendimento infinito; mas, como tal conceito passa à efetividade e à corporificação [Verkõrperung]? Apenas mediante a ciência criadora, a qual se acha tão necessaria-mente ligada ao entendimento infinito quanto no artista a essência -que compreende a ideia de uma beleza suprassensível - se encontra ligada àquilo que a expõe aos sentidos. Deve ser denominado feliz, e, sobretudo, digno de apreço, aquele artista a quem os deuses outorgaram esse espírito criador, e assim a obra de arte se aparecerá excelente, na medida em que nos mostrar, como que num contorno, essa inconcussa força de criação e a eficácia da natureza.
Há muito se percebeu que, na arte, nem tudo é feito com a consciência; que uma dada força inconsciente deve ligar-se à ativi-dade consciente, sendo a perfeita união e a mútua interpenetração de ambas que engendra o que há de mais elevado na arte. Obras desprovidas desse selo da ciência inconsciente são reconhecidas pela
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perceptível falta de vida autônoma, independentemente daquele que as produz; e, ao contrário, lá onde isso se efetua, a arte transfere à sua obra, com a mais elevada claridade do entendimento, aquela realidade inescrutável mediante a qual ela termina por se assemelhar a uma obra da natureza.
Com frequência, procurou-se esclarecer a posição do artista em relação à natureza através da máxima segundo a qual a arte, para ser o que é, teria de se afastar da natureza, retornando a esta última apenas em sua derradeira perfeição. A nós nos parece que o verdadeiro sentido de tal máxima não pode ser outro a não ser o seguinte: em todos os seres da natureza, o conceito vivente mostra-se atuante apenas de maneira cega; se ele agisse do mesmo modo como age no artista, então este em nada se distinguiria da natureza. Mas, se quisesse, com consciência, submeter-se inteiramente à efetividade, reproduzindo tudo o que existe com fidelidade subalterna, talvez lhe fosse dado produzir larvas, mas de modo algum obras de arte. Ele deve, pois, afastar-se do produto ou da criatura, mas tão somente a fim de elevar-se à força criadora e apanhá-la com o espírito. Com isso, ele ascende ao âmbito dos puros conceitos; deixa para trás a criatura para, depois, recuperá-la com ganhos mil vezes maiores, e, nesse sentido, a fim de retornar à natureza. Esse espírito da natureza, que atua no interior das coisas e fala por meio da forma e da figura como que através de imagens-sentido [Sinnbi/der],7 decerto deve ser emulado pelo artista, haja vista que só quando este o captura com uma vívida imitação lhe é dado criar algo verdadeiro. Pois obras que
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emergem de uma composição de formas, ainda que belas, seriam
destituídas de toda beleza, já que a única coisa que concede beleza
à obra ou ao seu todo já não pode ser a forma. Trata-se de algo que está além da forma; é a essência, o universal, vislumbre e expressão
do imanente espírito da natureza.
Não resta dúvida, a partir disso, de como se deve entender a
assim chamada e continuamente exigida idealização da natureza na
arte. Essa exigência parece brotar de uma maneira de pensar confor-
me a qual o real consiste não na verdade, na beleza e no bem, mas
no contrário disso tudo. Se o real fosse, de fato, oposto à verdade e à beleza, então o artista não precisaria elevá-lo ou idealizá-lo, mas, ao contrário, teria de suprimi-lo e aniquilá-lo a fim de criar algo
verdadeiro e belo. Mas como alguma coisa poderia ser real à exceção do verdadeiro? E que outra coisa é a beleza senão que o completo
e indefectível ser? Qual finalidade mais elevada poderia teM arte,
a ser assim, além de exibir aquilo que de fato existe na natureza?
Ou, como espera superar a chamada natureza efetiva, já que ela
teria de permanecer sempre abaixo desta última? Então a arte dá
vida efetivamente sensível às suas obras? Essa estátua não respira; não é movida por nenhuma pulsação e tampouco é aquecida por
algum sangue. Mas ambas, tanto essa suposta superioridade como
esse aparente atraso, revelam-se consequências de um e mesmo
princípio, assim que estabelecemos, como propósito da arte, a expo-
sição do ser verdadeiramente existente. Apenas na superfície suas
obras são aparentemente vivas; na natureza, a vida parece penetrar
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com mais profundidade, unindo-se inteiramente à matéria. Mas a constante mutação da matéria e a fatalidade universal da decompo-
sição do finito não nos instruem, afinal de contas, sobre a falta de
essencialidade de tal união, indicando-nos que não se trata de uma
fusão efetivamente íntima? Assim, na mera vivificação superficial
de suas obras, a arte de fato apenas expõe o não existente como
algo que inexiste. Então como é possível que, para qualquer sentido
minimamente cultivado, as imitações da assim chamada efetividade,
levadas ao nível da ilusão, apareçam como falsas no mais elevado
grau, inclusive dando a impressão de fantasmas, ao passo que uma
obra, na qual vigora o conceito, termine por lhe arrebatar com a
plena força da verdade, transpondo-o, de saída, ao mundo legitima-
mente efetivo? Donde isso advém senão que do sentimento, mais
ou menos obscuro, que lhe diz que o conceito é o único elemento
vivo presente nas coisas, levando-lhe a conceber todo o restante
como uma sombra vazia e vã? Todos os casos opostos se deixam
explicar a partir do mesmo princípio, os quais são trazidos à baila como exemplos da superação da natureza por meio da arte. Se esta
última detém o passo do rápido curso dos anos humanos, unindo a
força da madura virilidade com o suave encanto da tenra juventude,
ou, então, mostrando uma mãe e seus filhos e filhas, já crescidos,
em plena posse da beleza vigorosa: que outra coisa faz a arte senão
que suprimir aquilo que não é essencial, o mesmo é dizer, o tempo?
Conforme a observação de um auspicioso especialista, cada rebento
da natureza possui apenas um instante de completa e verdadeira
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beleza, de sorte que poderíamos afirmar também que ele só possui
um único instante de plena existência. Nesse instante, ele é o que
é em toda eternidade; para além dele, cabe-lhe apenas um vir a ser
e um perecer. A arte, na medida em que expõe a essência em tal
instante, retira-a do tempo; deixa-a aparecer em seu puro ser, na
eternidade de sua vida.
Depois que se abstraiu tudo o que há de positivo e essencial na
forma, esta teve, então, de aparecer como algo limitado e, por assim
dizer, nocivo à essência, já que a mesma teoria que havia evocado a falsa e lânguida idealidade contribuiu, simultânea e necessariamente,
para o disforme [Formlose] na arte. Por certo, a forma teria de ser
um entrave para a essência, caso existisse independentemente desta
última. Mas, se a forma existe com e mediante a essência, como
esta poderia sentir-se limitada por aquilo que ela mesma cria? Com
efeito, poder-se-ia violentá-la por meio de uma forma que lhe fosse
imposta, mas jamais mediante a forma que dela própria emana.
Nesta, ao contrário, ela deve dormitar regozijante, sentindo sua
existência como algo independente e completo em si. Na natureza,
a determinabilidade [Bestimmtheit] da forma nunca é uma negação,
mas sempre uma afirmação. Comumente, tu concebes [denkst du] 8
o formato de um corpo como uma limitação, da qual ele padece;
mas, se visses a força criadora, então ele se te revelaria como uma
medida que a força se impõe a si mesma, e na qual ela aparece como
uma força verdadeiramente inteligente. Pois, em todas as partes, a
capacidade de dar uma medida a si mesmo é tida por uma excelência,
42 - Sobre a relação das ARTES PLÁSTICAS ...
inclusive como uma das mais elevadas. De modo semelhante, a
maioria considera o particular em chave negativa, quer dizer, como
aquilo que não constitui o todo ou a totalidade; todavia, nenhum
particular existe por conta de sua limitação, mas por intermédio da
força que lhe é inerente e com a qual ele se afirma como um todo
próprio em face da totalidade.
Já que essa força consoante à particularidade, e, portanto, também à individualidade, expõe-se como um caráter vivo, então o seu próprio conceito negativo tem necessariamente como conse-
quência a concepção insatisfatória e falsa do característico na arte
[des Charakteristischen in der Kunst]. Morta e insuportavelmente
rígida seria a arte que tencionasse expor a casca vazia ou a limitação
daquilo que é individual. É certo que não desejamos ver somente o
indivíduo, mas algo a mais, a saber, o seu conceito vivo. Se, porém,
o artista reconhece o vislumbre e a essência da ideia criadora nele
presente, dando-lhe ênfase, ele termina por fazer do indivíduo
um mundo para si, um gênero [Gattung], um eterno protótipo; e
aquele que capturou a essência também não deve temer a rigidez
e a severidade, pois estas são condições da vida. Vemos a natureza,
que em sua completude aparece como a mais extrema suavidade,
almejar à determinabilidade em todos os particulares, visando, antes de mais nada, à rigidez, ao hermetismo da vida. Assim como a inteira criação é uma obra da mais alta renúncia [Entãusserung], o artista
deve, em primeiro lugar, negar-se a si mesmo e descer ao nível do
particular, sem se furtar ao isolamento, à dor, mas sim, ao tormento
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mesmo da forma. Desde suas primeiras obras, a natureza é de ponta
a ponta característica; na dura pedra, ela inclui a força do fogo e
0 brilho da luz, e, no rígido metal, a amável alma da sonoridade;
mesmo no umbral [Schwel!e] da vida, como que refletindo sobre a
configuração orgânica, ela volta a afundar na petrificação, dominada
pela força da forma. A vida das plantas consiste numa silenciosa
receptividade [Empfãnglichkeit]; mas em qual contorno preciso e
severo essa vida impassível se acha trancafiada? A luta entre vida e
forma parece começar, primeiramente, no reino animal; a natureza
alberga suas primeiras obras em duras conchas, e, justamente lá onde
tais invólucros são abandonados, o mundo animado se liga uma vez
mais, por meio do impulso artístico, ao âmbito da cristalização. Por
fim, a forma vem à luz com mais audácia e liberdade, de sorte que
caracteres ativos e vívidos terminam por se revelar, permanecendo
os mesmos em todos os gêneros. A arte não pode, com efeito,
começar num patamar tão profundo quanto a natureza. Ainda
que a beleza se estenda por todos os lados, há, no entanto, graus
distintos de aparência e desenvolvimento da essência, e, portanto,
diferentes graus de beleza; mas, a arte visa a uma certa plenitude
de si, desejando ecoar não uma sonoridade ou um som em parti-
cular, nem mesmo um acorde isolado, mas a harmoniosa melodia
da beleza. Por isso, ela imediatamente se aferra àquilo que há de
mais elevado e desenvolvido, a saber, à figura humana. Pois, já que
não lhe é dado abarcar o todo imensurável e posto que em todas as
outras criaturas o pleno ser só aparece em fulgurações particulares,
44 - Sobre a relação das ARTES PLÁSTICAS ...
manifestando-se, porém, sem interrupção no ser humano, então à
arte não é somente permitido, mas exigido ver o todo da natureza
apenas no homem. Mas, justamente porque aqui a natureza reúne
tudo num só ponto, ela também repete sua inteira multiplicidade,
percorrendo uma vez mais, num trecho mais curto, o mesmo caminho
que ela havia atravessado em seu amplo circuito. Eis donde surge a
exigência de que o artista deva ser verdadeiro e fiel nas delimitações,
para aparecer completo e belo no todo. Aqui, cabe-lhe lutar com o
espírito criador da natureza, o qual, numa insondável multiplicidade,
também distribui caracteres e marcas distintivas no mundo humano;
mas não mediante uma batalha desanimada e enfraquecida, senão
que intensa e destemida. É o exercício contínuo de reconhecimento daquilo que faz da especificidade das coisas uma positividade que
deve preservá-lo do vazio, da languidez, da nulidade interior; e isso
antes que ouse querer atingir, por meio de ligações cada vez mais
elevadas e mediante a derradeira fusão das formas variegadas, a
suprema beleza em figuras de suprema simplicidade, mas de conteúdo infinito.
A forma só pode ser negada por meio de sua própria perfei-
ção, sendo que nisso mesmo consiste o derradeiro objetivo da
arte no âmbito que designa o característico. Mas, assim como
a concordância [Übereinstimmung] fictícia é internamente nula,
deixando-se apreender mais facilmente pelas almas fúteis do que
por outras, o mesmo se dá, na arte, com a harmonia exterior açoda-
damente conquistada e destituída da plenitude do conteúdo; e, se
F. W. J. Schelling - 45
-
a teoria e o ensino devem fazer oposição à imitação vazia das belas
formas, compete-lhes tanto mais confrontar a tendência a uma arte
descaracterizada e cheia de caprichos, a que se atribui nomes mais
pomposos, mas que apenas esconde, com isso, sua incapacidade
de satisfazer as condições básicas.
Aquela beleza sublime, na qual a completude formal suprime
a própria forma, foi adotada pelas novas doutrinas artísticas depois
de Winckelmann não somente como a mais alta, senão como sendo a
única medida. Mas, porque se passou ao largo do profundo funda-
mento sobre o qual ela se assentava, terminou-se por criar um
conceito negativo daquilo que constitui a quintessência de toda
positividade. Winckelmann compara a beleza com aquela água
que, nascida do seio da fonte, tanto mais saudável será considerada
quanto menos gosto tiver. É bem verdade que a arte mais elevada não possui caracteres; mas, nesse sentido, também podemos dizer
que ela se assemelha ao universo destituído de qualquer mensu-
ração determinada, sem comprimento nem largura ou profundidade,
já que contém tudo em igual infinidade, ou, então, que equivale à
arte da natureza criadora, que é disforme, porque não se submete
a nenhuma forma. Desse e de mais nenhum outro ponto de vista,
podemos dizer que, em sua mais elevada criação, a arte helênica
eleva-se à ausência de caracteres. Mas ela não se esforçou, de ime-
diato, rumo a isso. Só depois que se desvencilhou das amarras da
natureza ergueu-se às alturas da liberdade divina. Não de uma
semente espalhada a esmo, mas somente a partir de um grão
46 - Sobre a relação das ARTES PLÁSTICAS ...
profundamente enterrado poderia ter medrado esse rebento heroico.
Apenas os poderosos movimentos do sentimento bem como 0 profundo arroubo da fantasia, ocasionado pela impressão das forças
universalmente vivificantes e dominantes da natureza, poderiam
impregnar a arte com a força irresistível mediante a qual, desde a
rígida e hermética austeridade das figuras de épocas remotas
até as obras de sensível e profusa graça, ela se manteve fiel à
verdade, engendrando espiritualmente a realidade mais elevada
que os mortais já puderam contemplar. Assim como a tragédia dos
antigos começa com o caráter mais nobre na moral [Sittlichen],
sua arte plástica tem início na austeridade da natureza, figurando
a sóbria deusa Atena como sua primeira e única musa. Essa época
deixa-se caracterizar por aquele estilo que Winckelmann descreve
como seco e rígido, e a partir do qual o estilo posterior ou elevado
só pôde desenvolver-se mediante a ascensão do característico ao
simples e sublime. Nas figuras das naturezas divinas ou mais perfeitas
deveria ser unificada não somente a completude das formas de que a
natureza humana é em geral capaz, senão tal união também devia ser
de uma espécie tal que pudéssemos concebê-la no próprio universo;
de sorte que as formas inferiores, ou, então, aquelas relacionadas a
propriedades menos relevantes, estivessem compreendidas abaixo
das mais altas, e, por fim, tudo estivesse subordinado a uma única
e mais elevada forma, na qual as demais formas particulares se
extinguem umas em relação às outras, continuando a existir, porém, segundo sua essência e força. Por isso, se não podemos chamar de
F. W. J. Schelling - 47
-
característica essa beleza elevada e autossuficiente, porquanto nesse
caso ainda se pensa na limitação ou condicionalidade da aparência,
ainda assim o elemento característico continua a agir nela de modo
indistinguível; tal como ocorre no cristal, o qual, mesmo sendo
transparente, não perde, apesar disso, a textura; cada elemento
característico tem seu peso, por mais suave que seja, contribuindo,
desse modo, para a produção da sublime indiferença da beleza.
O lado exterior ou a base de toda beleza consiste na beleza da
forma. Mas, já que a forma não pode existir sem a essência, mesmo
lá onde há apenas forma, esta também é caráter, seja como presença
visível ou, ao menos, passível de ser sentida. A beleza característica
é, portanto, a beleza em sua raiz, a partir da qual a beleza mesma
pode, qual um fruto, nascer e crescer; a essência decerto suplanta
a forma, mas, ainda assim, o elemento característico permanece
sempre a efetiva fundamentação da beleza.
O mais digno conhecedor,9 a quem os deuses permitiram reinar
tanto sobre a natureza como sobre a arte, compara o elemento carac-
terístico em sua relação com a beleza ao esqueleto em sua relação
com a figura viva. Se nos fosse permitido interpretar essa acertada
comparação sob a nossa ótica, diríamos então que, na natureza, o
esqueleto não se acha separado do todo vivente, tal como se dá
em nosso pensamento; que o sólido e o frágil, o determinante e
o determinado, pressupõem um ao outro e só podem existir em
conjunto; e que, justamente por isso, o elemento característico
vivo constitui, já, a inteira conformação nascida da ação recíproca
48 - ~re a relação das ARTES PLÁSTICAS ...
entre osso e carne, ativo e passivo. Se a arte, assim como a natureza
em seus níveis mais elevados, pressiona a ossatura, outrora visível,
para o lado de dentro, ela jamais poderá opor-se à conformacão e à beleza, uma vez que nunca cessa de cooperar determinante~ente tanto com uma quanto com a outra.
Se, porém, essa elevada e indiferente beleza também deve
vigorar como a única medida na arte, haja vista que é tida, pois, como
a mais sublime, eis algo que parece depender necessariamente do
grau de extensão e completude com o qual cada arte determinada
pode atuar. Mas, em seu amplo círculo, a natureza sempre expõe
o mais elevado juntamente com aquilo que ela tem de mais baixo;
criando o divino no homem, ela apenas atualiza em todos os demais
produtos sua própria matéria e fundamento, o qual deve existir a
fim de que a essência, em contraste com ele, apareça como tal. E
mesmo no superior mundo humano a massa volumosa converte-se r
uma vez mais, na base em que o divino, conservando-se com pureza
nos mais raros, manifesta-se através das legislações, dos impérios
e crenças religiosas. Assim, lá onde a arte atua mais intensamente
com a multiplicidade da natureza, ela também pode e deve, ao lado
da mais alta medida da beleza, mostrar, uma vez mais, sua funda-
mentação e, digamos, sua matéria em criações próprias. Aqui se
desenvolve, pela primeira vez de uma maneira relevante, a natureza
variada das formas artísticas. No sentido mais rigoroso do termo,
a arte plástica despreza dar espaço exterior ao seu objeto; este já
o traz consigo. Mas justamente isso impede sua maior expansão,
F. W. J. Schelling - 49
-
vendo-se, de fato, obrigada a mostrar a beleza do universo quase
que num único ponto. A ser assim, ela deve visar imediatamente
ao mais elevado, sendo-lhe dado atingir a multiplicidade apenas
separadamente e mediante a exclusão rigorosa dos elementos mutu-
amente conflitantes. Separando a pura animalidade na natureza
humana, ela também logra efetuar criações inferiores, inclusive
com harmonia e beleza, tal como nos ensina a beleza dos diversos
faunas que foram conservados da antiguidade; tal como o jovial
espírito da natureza a parodiar a si mesmo, ela pode até mesmo
inverter seu próprio ideal e aparecer, por exemplo, nas figuras
desproporcionais de Sileno, libertando-se uma vez mais da pressão
da matéria por meio do tratamento lúdico e jocoso. Mas, ainda assim,
sempre se vê obrigada a isolar totalmente sua obra, para torná-la
harmoniosa consigo mesma e criar um mundo para si, na medida
em que, para ela, não há nenhuma unidade mais elevada na qual a
dissonância do particular pudesse dissolver-se. Em contrapartida, a
pintura pode, em amplitude, medir-se em maior grau com o mundo
e criar com uma extensão épica. Numa Ilíada, há lugar até mesmo
para um Tersites;10 e, afinal de contas, o que não encontrará espaço
no grande poema heroico formado pela natureza e pela história!
Aqui, o particular sequer chega a contar por si mesmo; o todo toma
seu lugar, e aquilo que não seria belo por si próprio acaba por se
tornar belo mediante a harmonia do todo. Se numa das grandiosas
obras da pintura, que une suas formas por meio da distribuição do
espaço, da luz, da sombra e do reflexo, a mais elevada medida da
50 - Sobre a relação das ARTES PLÁSTICAS ...
beleza fosse empregada em todas as suas partes, seguir-se-ia a mais
antinatural monotonia, pois, como diz Winckelmann, o supremo
conceito da beleza é o mesmo em qualquer lugar, admitindo poucas
variações. O particular então seria preferível ao todo, pois, lá onde
este último surge a partir de uma multiplicidade, o particular deve
estar a ele subordinado. Por isso, em tal obra, devem ser observadas
gradações da beleza, pois apenas por meio destas a beleza plena,
concentrada no ponto central, torna-se visível; e de um excesso no
particular resulta um equilíbrio do todo. Aqui, o limitado caracte-
rístico também encontra seu lugar, de modo que a teoria deveria,
ao menos, indicar ao pintor não tanto aquele espaço estreito em
que a beleza se reúne concentricamente, mas, antes do mais, a
multiplicidade característica da natureza, única por meio da qual ele
pode conferir a uma grande obra o peso integral de um conteúdo
vivo. Assim pensava, pois, dentre os patronos da arte moderna, o
ilustre Leonardo, 11 bem como Rafael, 12 o mestre da beleza elevada,
o qual preferia não se furtar a expô-la sob uma medida menor a ter
de parecer monótono, desprovido de vida e efetividade; embora
soubesse não apenas produzir tal beleza, mas também romper uma
vez mais sua regularidade mediante a diversidade de expressão.
Pois, mesmo que o caráter também possa expressar-se no
repouso e no equilíbrio da forma, é apenas em sua atividade que
ele se torna propriamente vivo. Por caráter entendemos uma uni-
dade de múltiplas forças, as quais se esforçam continuamente para
lograr uma certa harmonia e uma determinada medida, e às quais
F. W. J. Schelling - 51
-
corresponde, quando não são desestabilizadas, um equilíbrio similar
na simetria das formas. Mas se tal unidade viva deve mostrar-se na
acão e na atividade, isso só se torna possível se as forças, levadas
à.sublevação por meio de alguma causa, saírem do equilíbrio. Que
esse é justamente o caso das paixões, eis algo que salta aos olhos
de qualquer um.
Aqui nos deparamos com aquele célebre preceito da teoria
que obriga a moderar a paixão, tanto quanto possível, quando
esta se irromper efetivamente, para que a beleza da forma não
seja danificada. Acreditamos, porém, que tal preceito tem de ser
invertido, de sorte a expressar que a paixão deve ser moderada
justamente por meio da própria beleza. Pois há que se temer muito
que a almejada moderação também termine por ser compreendida
em chave negativa, ao passo que a verdadeira exigência equivale,
antes do mais, a opor uma força positiva à paixão. Afinal, assim
como a virtude não consiste na ausência de paixões, senão no
poder do espírito sobre elas, não é mediante sua eliminação ou
redução que se assegura a beleza, mas pelo poder da beleza sobre
as próprias paixões. As forças da paixão devem dar efetivas mostras
de si, tornando patente que poderiam elevar-se integralmente, mas
que, no entanto, são refreadas pela força do caráter, desfazendo-se
sobre as formas da beleza firmemente erigida, tal como ondas de
um rio que inunda suas margens, mas não pode transbordar. Do
contrário, tal operação com vistas à moderação assemelhar-se-ia
à empresa própria àqueles moralistas superficiais, os quais, para
52 - ~re a relação das ARTES PLÁSTICAS ...
melhor lidarem com o homem, preferem mutilar sua natureza; e
que tencionaram extrair a tal ponto o que há de positivo nas ações,
que o povo se compraz com o espetáculo de grandes delitos, para,
ao menos assim, dar a si mesmo um alívio gratificante através da
visão de algo positivo.
Tanto na natureza quanto na arte, a essência visa a efetivar-se
e expor a si mesma primeiramente no particular. Por isso, em ambas,
a maior rigidez da forma dá-se a conhecer logo no início; pois, sem
limitação, o ilimitado não poderia aparecer; se não houvesse a dureza,
a brandura tampouco poderia existir; e se a unidade deve fazer-se
sentir, isso só pode ocorrer mediante particularidade, isolamento e
oposição. A ser assim, de início, o espírito criador aparece inteira-
mente perdido na forma, inacessível, fechado e ainda austero em sua
grandeza. Mas quanto mais ele logra unir sua inteira completude em
uma única criatura, tanto mais ele reduz, passo a passo, sua rigidez,
lá onde delineou inteiramente a forma, a ponto de nela dormitar
e se apreender com satisfação, ele parece regozijar-se e começa,
digamos, a mover-se em linhas suaves. Esse é o estado consoante
à mais bela maturidade e florescimento, no qual o puro invólucro
se apresenta com perfeição e o espírito da natureza torna-se livre
de suas amarras, sentindo sua afinidade com a alma. Tal como uma
amena aurora que se alça sobre a inteira figura, a alma vaticina
sua chegada; ainda não se acha presente, mas tudo se prepara
para recebê-la mediante o leve jogo de delicados movimentos; os
contornos enrijecidos fundem-se, abrandando-se em suaves linhas;
F. W. J. Schelling - 53
-
uma essência adorável, que ainda não é sensível nem espiritual,
mas inapreensível, estende-se sobre toda figura, aninhando-se em
todos os contornos e em cada vibração dos membros. Essa essência,
a qual, como foi dito, apesar de não ser palpável, é, ainda assim,
por todos percebida, constitui aquilo que a língua grega designava
com o nome de Charis, e que a nossa chama de "graça" [Anmut].
Lá onde a graça surge sob uma forma plenamente realizada,
a obra, por parte da natureza, é perfeita; já não lhe falta nada e
todas as exigências estão cumpridas. Também aqui alma e corpo se
acham numa completa harmonia; o corpo é a forma e a graça, por
seu turno, é a alma; não é, contudo, a alma em si, senão que a alma
da forma, ou, o mesmo é dizer, a alma da natureza.
A arte pode deter-se e permanecer nesse ponto, pois, ao
menos de um lado, sua tarefa já foi cumprida. Mantida nesse nível,
a pura imagem da beleza é a deusa do amor. Mas a beleza da alma
em si, fundida à graça sensível, é a mais alta divinização da natureza.
Apenas à primeira vista o espírito da natureza opõe-se à alma, pois, em si, é o instrumento de sua revelação; por certo, ele torna
operatória a contradição à base das coisas, mas apenas para que a única essência possa, como suprema brandura e reconciliação,
emergir de todas as forças. Todas as outras criaturas são avivadas
pelo simples espírito da natureza e afirmam, através dele, sua indi-
vidualidade; apenas no ser humano a alma vem à tona como que num ponto central, sem a qual tanto o mundo quanto a natureza
achar-se-iam privados do sol.
54- Sobre a relação das ARTES PLÁSTICAS ...
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Assim, no ser humano, a alma não é o princípio de indivi-
dualidade, mas aquilo por meio do qual ele se eleva para além de
todo egotismo [Selbstheit], tornando-se capaz de sacrificar-se, amar
desinteressadamente e, o que é mais sublime, contemplar e conhecer
a essência das coisas, bem como da arte, portanto. A alma já não se
ocupa com a matéria e tampouco se relaciona imediatamente com
ela, mas tão só com o espírito entendido como a vida das coisas.
Mesmo quando surge sob uma forma corpórea, ainda assim ela é
livre do corpo, cuja consciência, nas mais belas criações, flutua sobre
a alma apenas como um leve sonho, o qual não chega a perturbá-la.
A alma não constitui nenhuma propriedade, nenhuma faculdade ou
qualquer outra coisa específica desse tipo; não sabe, mas é ciência;
não é boa, mas consiste no bem; não é bela, tal como o corpo pode sê-lo, senão que é a própria beleza.
Antes de mais nada, a alma do artista revela-se na obra de
arte por meio da invenção no particular; mas também no todo, desde
que aquela, num calmo silêncio, paire sobre ele qual uma unidade.
No entanto, a alma deve tornar-se visível no objeto exposto; seja
como força primordial do pensamento, quando o ser humano, prenhe
de um conceito ou de uma digna consideração, é devidamente
representado; seja como bem essencial e imanente. Ambos os
casos encontram sua clara expressão até mesmo no mais tranquilo
estado de repouso, mas de uma maneira mais vivificante, quando
a alma pode revelar-se na ação e na contradição; e já que cabe
sobretudo às paixões a tarefa de interromper a paz da vida, supõe-se
F. W. J. Schelling - 55
-
comumente que a beleza da alma se manifesta, de preferência,
mediante o sereno domínio em meio à tempestade das paixões.
Todavia, cumpre operar aqui uma importante distinção. Pois,
para moderar tais paixões, que consistem apenas numa sublevação
de espíritos menos elevados da natureza, a alma não tem de ser
evocada; nem pode ser indicada em oposição a tais paixões; pois,
lá onde a reflexão ainda se debate contra as paixões, a alma sequer
chegou a vir à tona; elas devem ser moderadas pela natureza do ser humano, pelo poder do espírito. Há, porém, casos mais eleva-
dos, nos quais não apenas uma única força, mas o próprio espírito
reflexivo rompe todas as barreiras; sim, casos em que até mesmo a
alma é subjugada pelo vínculo que a prende à existência sensível, bem como à dor que deveria ser estranha à sua natureza divina; casos em que o homem se sente afrontado e atacado na raiz de sua
vida, não pelas meras forças da natureza, mas pelas forças morais;
onde o erro inocente impele-o ao delito e, com isso, à infelicidade; onde a injustiça profundamente sentida exorta os mais sagrados
sentimentos da humanidade à revolta. Esse é o caso de todas as situações verdadeiramente trágicas, no sentido sublime, tais como,
por exemplo, aquelas que a tragédia da antiguidade faz saltar aos
nossos olhos. Quando forças cegamente passionais são agitadas, o
espírito reflexivo torna-se atuante como uma espécie de guardião da
beleza; mas, se o próprio espírito for arrastado, digamos, por uma
potência irrefreável, então que poder há de proteger e zelar pela
sagrada beleza? Ou, se até mesmo a alma terminar por padecer,
como poderá salvar a si mesma da dor e da profanação?
56 - Sobre a relação das ARTES PLÁSTICAS ...
Reprimir arbitrariamente a força da dor ou do sentimento
revoltado equivaleria a pecar contra o sentido e o propósito da arte,
seria, enfim, trair a necessidade de sensação e de alma no próprio
artista. Apenas a beleza que se converteu em caráter, estribando-se
em grandes e firmes formas, coloca à disposição da arte o meio de exibir, sem ferir a simetria, toda grandeza da sensação. Pois, lá onde
a beleza se assenta sobre formas poderosas, apoiando-se, por assim
dizer, sobre colunas inabaláveis, uma mínima mudança em suas rela-
ções, a qual mal chega a roçar suas formas, faz-nos deduzir a grande
força que foi necessária para efetuá-la. A graça santifica ainda mais
a dor. Sua essência consiste no fato de ela não conhecer a si mesma· '
mas, como não foi adquirida arbitrariamente, tampouco pode ser
arbitrariamente perdida; quando uma dor insuportável ou mesmo
quando a loucura imposta por deuses punitivos rouba a consciência
e a reflexão, a graça coloca-se como um demônio protetor junto
à figura sofrente, fazendo com que esta não leve a cabo nada de inadequado, nada que deponha contra a humanidade; cuidando
entretanto para que a figura, vindo a cair, caia ao menos como uma
vítima pura e imaculada. Não sendo propriamente a alma, mas sua
predição [Ahndung], a graça produz, por meio do efeito natural, aquilo
que a alma realiza através de uma força divina, na medida em que
transforma a dor, o entorpecimento e até a própria morte em beleza.
Mas essa graça, conservada na mais extrema adversidade,
estaria morta sem a sua transfiguração através da alma. Que expressão
lhe convém, porém, em tal situação? Ela se salva da dor e vem à
F. W. J. Schelling - 57
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baila, não derrotada, mas triunfante, porque suprimiu seu vínculo
com a existência sensível. Cabe ao espírito da natureza despender
suas forças em prol dessa conservação, mas a alma não toma parte
nessa luta; no entanto, sua presença suaviza até mesmo as tempes-
tades da vida lastimosa e beligerante. Toda força exterior só pode
apropriar-se de bens exteriores, sendo, de resto, incapaz de atingir a
alma; pode desfazer um laço temporal, mas não dissolver o vínculo
eterno do amor verdadeiramente divino. Longe de se mostrar rígida
e insensível, abrindo mão do próprio amor, a alma revela, na dor,
única e exclusivamente o amor, apresentando-o como uma sensação
que sobrevive à existência sensível e se ergue, desse modo, à glória divina, acima das ruínas da vida ou da felicidade exteriores.
Essa é, pois, a expressão da alma que o criador de Níobe nos
apresentou sob a forma de imagem. Faz-se uso, aqui, de todos os
meios de que a arte pode servir-se para amenizar aquilo que há de
assustador. O poderio das formas, a graça sensível, inclusive a natu-
reza do próprio tema em questão tornam a expressão mais suave, na
medida em que a dor, transcendendo toda expressão, suprime uma
vez mais a si mesma; e a beleza, a qual parecia impossível ser salva-
guardada com vida, é preservada da violação pelo entorpecimento
impendente. Mas, o que seria disso tudo sem a alma? E como esta
se revela? No semblante da mãe vemos não apenas a dor ocasionada
pela.perda de suas crianças, que, como flores, foram-lhes podadas;
não só o temor mortal pela salvação daquela que ainda lhe sobrou,
a filha mais jovem que, fugindo, protegeu-se em seu seio; nem
58 - Sobre a relação das ARTES PLÁSTICAS ...
somente o ressentimento para com as divindades terríveis e muito
menos, como é de se esperar, o frio desprezo; vemos tudo isso, mas
não para si; pois, por meio da dor, do temor e do ressentimento, o
amor eterno resplandece qual uma luz divina, como a única coisa
que lhe resta; e é nele que a mãe se conserva não como alguém que
já foi, mas que ainda é mãe, que continua ligada ao bem-amado mediante um laço eterno.
Qualquer um reconhece que a grandeza, a pureza e a bene-
volência da alma também possuem sua expressão sensível. Mas se
o princípio atuante na matéria não fosse, desde logo, uma essência
aparentada e semelhante à alma, como isso seria concebível? Na exposição da alma há, outra vez, níveis da arte que podem variar
respectivamente entre si, caso ela se ache ligada ao mero carac-
terístico, ou, então, conflua a olhos vistos com elegância e graça.
Quem não percebe que aquela elevada eticidade [Sittlichkeit] que habita naturalmente as obras de Sófocles vigora, já, na tragédia de
Ésquilo? Aqui, porém, ela ainda se acha trancafiada numa casca
áspera, partilhando menos do todo, já que ainda lhe falta o vínculo
da graça sensível. Mas, apesar disso, a graça sofocliana pôde emergir
dessa austeridade e dessas graciosidades, ainda frutíferas, próprias
à arte inicial; e, com ela, deu-se igualmente a completa fusão dos dois elementos, a qual nos faz duvidar se, nas obras de tal poeta,
é a graciosidade moral ou a graça sensível que mais nos deleita. O
mesmo vale para as produções plásticas do estilo ainda rígido, em
comparação à suavidade consoante ao estilo tardio.
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Se, além de ser a transfiguração do espírito da natureza, a
graça ainda se torna o meio de ligação entre o bem moral e a apa-
rência sensível, então é já de si evidente que a arte deve, a partir
de todas as vertentes, atuar em sua direção, como que caminhando
rumo a seu ponto central. Essa beleza, que deriva da completa
interpenetração entre o bem moral e a graça sensível, arrebata-nos
e deleita-nos com o poder de um milagre sempre que a encontramos.
Pois, enquanto o espírito da natureza revela-se independente da
alma em todas as partes, e, em certa medida, até lhe fazendo oposição,
aqui, como que mediante uma concordância voluntária e através
do fogo interno do amor divino, ele parece fundir-se com a alma;
a lembrança da unidade original entre a essência da natureza e a
essência da alma acomete o espectador com uma clareza instan-
tânea; tem-se a certeza de que toda contradição é apenas aparente,
que o amor é o elo de todos os seres e o bem é o fundamento e o
conteúdo da inteira criação.
Aqui, a arte supera a si mesma, por assim dizer, convertendo-se
uma vez mais num mero instrumento. Nesse ápice, a graça sensível
torna-se novamente apenas a casca exterior e o corpo de uma vida
mais elevada; aquilo que outrora constituía o todo, agora é tratado
como parte, e, com isso, a relação mais sublime entre a arte e a
natureza é efetivamente alcançada, haja vista que esta última faz da
primeira um meio para tornar visível a alma que nela reside.
Mas, se nesse florescimento da arte, tal como no florescimento
do reino vegetal, todos os níveis anteriores se repetem, então se
60 - Sobre a relação das ARTES PLÁSTICAS ...
torna possível discernir, ao contrário, quais diferentes direções a arte
pode assumir a fim de sair daquele ponto central. Aqui, a distinção
natural entre ambas as formas da arte plástica revela-se com sua
mais intensa eficácia. Pois, na medida em que expõe suas ideias
por meio de coisas corpóreas, a plástica parece necessariamente
encontrar seu vértice no perfeito equilíbrio entre alma e matéria;
se conferisse primazia a esta última, ela termina por decair em
sua própria ideia; no entanto, parece totalmente impossível que a
plástica eleve a alma às custas da matéria, já que, com isso, teria de ultrapassar-se. Com efeito, como diz Winckelmann a propósito
do Apolo de Belvedere, o artista plástico perfeito, com vistas à sua obra, não irá valer-se de mais matéria do que aquela que se
lhe faz necessária para alcançar seu objetivo espiritual; mas, num
sentido inverso, tampouco irá depositar na alma mais força do que
aquela que é imediatamente expressa na matéria; pois sua arte se
baseia justamente nisso, quer dizer, em expressar o espiritual de
modo totalmente corpóreo. A plástica, por isso, só pode atingir o
seu verdadeiro cume em naturezas cujo conceito implique que elas
tenham de existir na efetividade do mesmo como existem segundo
sua ideia ou alma, o mesmo é dizer, em naturezas divinas. Assim,
ainda que nenhuma mitologia a antecedesse, a plástica já teria
chegado por si só aos deuses, inventando-os inclusive, caso não os
tivesse encontrado. E já que o espírito restabelece, num nível inferior,
a mesma relação com a matéria que havíamos outorgado à alma, na medida em que constitui o princípio da atividade e do movimento -
F. W. J. Schelling - 61
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tal como a matéria constitui o princípio do repouso e da inatividade
[Untãtigkeit] -, a lei de medida na expressão e na paixão será um
princípio fundamental que emana de sua própria natureza; mas essa
lei deverá valer não só para as paixões inferiores, mas igualmente
para aquelas mais elevadas e divinas, se nos for permitido assim
denominá-las; paixões de que a alma é capaz no momento de
encanto, devoção e adoração; portanto, porque apenas os deuses
estão desonerados dessas paixões, também a plástica tende, desse
lado, a produzir criações das naturezas divinas.
A pintura, no entanto, parece constituir-se de um modo inteira-
mente diferente da escultura. Pois, à diferença desta última, ela não expõe seus objetos mediante coisas corpóreas, mas mediante luz e
cor, e, portanto, através de um meio incorpóreo e, em certa medida,
espiritual; também não oferece suas imagens, em absoluto, como os
objetos são em si mesmos, mas conta apresentá-las expressamente
apenas enquanto imagens. Por conseguinte, em si e para si, ela
não dá tanto peso à matéria quanto a plástica, e, por essa razão, ao elevar a matéria acima do espírito, parece afundar em si mesma
mais profundamente do que a plástica em casos semelhantes; mas,
em contrapartida, parece estar mais bem preparada para conceder à alma uma clara superioridade. Lá onde visa ao que há de mais eleva-
do, a pintura decerto irá enobrecer as paixões mediante o caráter ou
moderá-las por meio da graça, ou, ao menos, indicar o poder da alma
que neles existe; em contrapartida, são justamente essas elevadas
paixões que, fiando-se na afinidade da alma com um ser superior,
62 - ~re a relação das ARTES PLÁSTICAS ...
condizem inteiramente com a natureza da pintura. E, se a plástica
estabelece uma proporção perfeita entre a força por meio da qual
um ser se conserva no mundo exterior e age na natureza e aquela
mediante a qual ele, subsistindo internamente, vive enquanto alma,
a ponto de excluir o mero sofrimento até mesmo da matéria, então
a pintura poderá, em compensação, e em prol da alma, amenizar
o caráter da força e da atividade na matéria, transmudando-o em
renúncia e resignação; o que, à primeira vista, parece tornar o ser humano mais receptivo às inspirações [Eingebungen] da alma e, em geral, às influências mais elevadas.
Por si só, essa contradição esclarece não apenas a necessária
precedência da plástica na antiguidade e o predomínio da pintura no
mundo moderno- haja vista que, na primeira, a maneira de sentir era
inteiramente plástica, ao passo que este último, o mundo moderno, faz
até mesmo da alma um órgão sofrente das mais elevadas revelações;
mas isso também indica que não basta visar ao elemento plástico na
forma e na exposição; pois ainda seria preciso, sobretudo, pensar e
sentir plasticamente, isto é, à maneira dos antigos. E assim como o desvio da plástica no âmbito pictórico resulta numa deterioração da
arte, a redução da pintura à condição plástica e à forma é, por sua vez, uma limitação arbitrariamente imposta. Pois, se a plástica, tal
como a força da gravidade, atua sobre um único ponto, a pintura,
tal como a luz, deve preencher criativamente o universo inteiro.
A própria história dá provas dessa universalidade ilimitada da
pintura, assim como os exemplos dos grandes mestres, os quais, sem
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ferir a essência de sua arte, levaram à perfeição cada um de seus níveis particulares, de sorte que também podemos reencontrar, na
história [Historie] da arte, a mesma sucessão que pôde ser assinalada
no objeto artístico.
Isso não ocorre em exata conformidade com o tempo, a
não ser de acordo com a ação. Assim é que, com Michelangelo,13
apresenta-se a época mais antiga e poderosa da arte tornada livre,
em que ela dá mostras de sua força, ainda desenfreada, em criações
colossais; tal como nos mitos do simbólico mundo teogônico, segun-
do os quais a Terra, após os abraços de Urano, trouxe primeiramente
à luz os T!tãs e os revoltosos gigantes celestes, antes que tivesse início o suave reino dos deuses serenos. A nós nos parece que a obra Juízo
final, com a qual aquele espírito gigante, logrando a quintessência
de sua arte, preencheu a Capela Sistina, lembra mais os primeiros
períodos da Terra e suas criaturas do que suas épocas mais tardias.
Atraído pelos fundamentos mais recônditos da forma orgânica e,
em especial, da figura humana, ele não evita o assustador, senão
que o procura intencionalmente, despertando-o de seu repouso
nas obscuras oficinas da natureza. Contrabalança a falta de delica-
deza, graça e agradabilidade com a mais extrema força; e, se incita
horror através de suas representações, trata-se daquele assombro
que, como reza a fábula, o antigo deus Pã14 costumava disseminar,
quando, de súbito, surgia em meio às assembleias humanas. Em rigor, a natureza produz o extraordinário por meio do isolamento e
da exclusão de propriedades opostas; assim, em Michelangelo, foi
64 - Sobre a relação das ARTES PLÁSTICAS ...
preciso que a austeridade e a profunda força da natureza imperassem
sobre o sentido da graça e da sensação atinente à alma, para que então fosse possível mostrar, na pintura dos novos tempos, o ápice da força puramente plástica.
Após o apaziguamento da violência inicial e do enérgico
impulso ao nascimento, o espírito da natureza transfigura-se em
alma, dando à luz o gracioso [Grazie]. Após Leonardo da Vinci, a arte atinge esse nível com Correggio,15 em cujas obras a alma
sensível constitui o efetivo fundamento da beleza. Isso não é visível
apenas nos suaves contornos de suas figuras, mas também naquelas
formas que mais se assemelham às naturezas puramente sensíveis presentes nas obras da antiguidade. Nele floresceu a verdadeira era
de ouro da arte, que conferiu à Terra o afável governo de Cronos; aqui, a inocência jocosa, o desejo jovial e o prazer infantil sorriem
em semblantes francos e faceiros; aqui, as saturnais da arte são
festejadas. A expressão geral dessa alma sensível é o claro-escuro, o
qual Correggio cultiva mais do que ninguém. Pois aquilo que o pintor
põe no lugar da matéria é o escuro; sendo esse o estofo no qual
ele deve afixar a fugidia aparência da luz e da alma. Assim, quanto mais o escuro fundir-se ao claro, resultando, de ambos, apenas um
único ser, e, digamos, um único corpo e uma única alma, tanto mais
o elemento espiritual aparece sob uma forma corpórea e o elemento
corporal, por sua vez, como que elevado ao nível do espírito.
Depois de superadas as restrições da natureza e suprimido
o monstruoso, fruto da primeira liberdade, a forma e a figura são
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embelezadas pelo pressentimento [Vorgefühl] da alma; o céu,
clareando-se, permite que o terrestre, devidamente suavizado, possa
unir-se à instância celeste, e esta, uma vez mais, ao doce âmbito humano. Rafael toma posse do sereno Olimpo e, consigo, conduz-nos
da Terra à assembleia dos deuses, formada por seres imortais e bem-aventurados. O florescer da vida perfeitamente formada, o
perfume da fantasia e o tempero do espírito exalam, juntos, de
suas obras. Ele já não é pintor, mas sim filósofo, sendo, a um só
tempo, poeta. O poder de seu espírito põe-se ao lado da sabedo-
ria, de maneira que, do modo como expõe as coisas, termina por
ordená-las na eterna necessidade. Nele, a arte atingiu seu alvo, e,
porque o puro equilíbrio entre o divino e o humano só pode estar,
aproximadamente, num só ponto, o selo da singularidade acha-se
gravado em suas obras.16
A partir daqui, para dar cumprimento a cada possibilidade que
nela se enraíza, a pintura só podia continuar a mover-se para um
único lado; e, em que pese a renovação posterior por ela empreen-
dida, bem como as diferentes direções rumo às quais ela procurou seguir, parece que apenas um indivíduo dentre todos logrou fechar
o círculo dos grandes mestres com uma espécie de necessidade.
Assim como a moderna fábula de Psiquê encerra o círculo das antigas
histórias dos deuses, também a pintura, mediante a preponderância
que concedeu à alma, pôde conquistar um novo nível artístico, em-bora não mais elevado. A isso aspirou Guido Reni, 17 tornando-se o
pintor da alma propriamente dito. Eis como se nos parece necessário
66 - Sobre a relação das ARTES PLÁSTICAS ...
interpretar todo seu esforço, frequentemente incerto, e, em algumas
obras, perdido no indeterminado; o que se torna patente, talvez
como em poucas outras criações de sua arte, na obra-prima1a que
se oferece à admiração de todos na grande coleção de nosso Rei. Na figura da virgem que ascende ao céu, toda austeridade e rigidez
plásticas são apagadas até o último vestígio; aliás, em tal obra,
a pintura mesma não se parece com a Psiquê, solta e liberta das
formas duras, alçando-se à transfiguração com suas próprias asas? Aqui, nada existe que fosse exterior, com decisiva forca da natureza·
nela, tudo expressa receptividade e serena resigna~ão, mesmo ~ carne efêmera cuja propriedade é designada, em seu idioma, com
o nome de morbidezza; totalmente diferente da carne com que
Rafael veste a Rainha do Céu, a qual, descendendo, aparece ao
Papa suplicante e a um santo. 19 A observação segundo a qual o
modelo das cabeças femininas de Guido é a Níobe da antiguidade
tem, por certo, razão de ser, mas o fundamento de tal semelhança
não está, em absoluto, numa imitação meramente arbitrária; uma
aspiração semelhante talvez pudesse levá-lo ao emprego de meios
iguais. Se a Níobe florentina é um epítome da plástica, realizando,
nesta última, a exposição da alma, o quadro que nos é conhecido
também representa, por seu turno, um ponto máximo da pintura,
que aqui ousa abrir mão da necessidade da sombra e do escuro I
operando praticamente com a pura luz.
Ainda que a pintura, em virtude de sua natureza específica,
estivesse em condições de conceder uma clara predominância à alma,
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o melhor para a teoria e para o ensino seria persistir na busca daquele
centro original, único a partir do qual a arte pode ser engendrada
novamente; haja vista que, no nível supramencionado, ela tem de
permanecer, em contrapartida, necessariamente em repouso, ou,
então, degenerar num maneirismo limitado. Pois, mesmo aquele
sofrimento mais elevado conflita com a ideia de um ser perfeitamente
vigoroso, cuja imagem e reflexo cabe à arte mostrar. O sentido
acertado sempre se regozijará em ver um ser que foi formado da
maneira mais digna e independente possível, ainda que a partir de
seu lado individual; sim, a própria divindade olharia prazerosamente
para a criatura que, dotada de pura alma, também exteriorizasse
com brio a grandeza de sua natureza, afirmando-a por meio de sua
existência sensivelmente atuante.
Vimos como a obra de arte, como que brotando das profun-
dezas da natureza, começa com determinibilidade e delimitação
para, aí então, desenvolvendo sua infinitude e plenitude interior,
transfigurar-se em graça e alcançar, ao fim e ao cabo, a alma; mas
foi preciso representar separadamente aquilo que, no ato de criação
da arte amadurecida, consiste apenas num único ato. Nenhuma
doutrina ou regra prescritiva pode criar essa força espiritualmente
produtiva. Ela é a pura dádiva da natureza, a qual, aqui, encerra-se
pela segunda vez, na medida em que, efetuando-se integralmente,
confere à criatura sua própria força criadora. Mas, tal como na grande
marcha da arte, onde esses níveis surgiram uns após os outros até
se transformarem, no ponto mais elevado, num único grau, assim
68 - Sobre a relação das ARTES PLÁSTICAS ... 1
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também, no particular, uma sólida formação só pode vir à tona lá,
onde esta última se desenvolveu regularmente a partir da semente e da raiz, elevando-se até a floracão . .
A exigência de que a arte, bem como todo outro vivente
deve partir de seus primórdios e a eles sempre retornar a fim d~ rejuvenescer-se com vitalidade pode parecer uma doutrina um
tanto dura numa época em que foi dito, a torto e a direito, que
basta aceitar a beleza mais acabada de obras de arte já existentes
para, aí então, como que num simples passo, lograr o último
alvo. Não possuímos, já, o excelente e o perfeito? Então por que
deveríamos, agora, voltar ao inaugural, ao disforme? Se os grandes
patronos da arte moderna tivessem pensado dessa maneira, jamais
teríamos visto seus milagres. Também já havia, antes deles, as
criações dos antigos, esculturas circulares e trabalhos em relevo
que eles poderiam ter transposto imediatamente para pintura. Mas
essa apropriação de uma beleza que não foi autoadquirida e que se
mostra, portanto, ininteligível, não satisfazia um impulso artístico
que remontava a um princípio original do qual a arte deveria, uma
vez mais, engendrar a si mesma com liberdade e força primordial.
Não tinham medo, pois, de parecer ingênuos, inartísticos e secos
junto àqueles sublimes antigos; e tampouco de cultivar a arte, com
delonga, no seu broto indiscernível e ainda não desabrochado até , o período em que a graça tivesse, por fim, chegado. Como ainda
seria possível contemplarmos essas obras dos antigos mestres, de
Giotto ao professor de Rafael, movidos por uma espécie de devoção,
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inclusive por uma certa predileção, se a fidelidade de seus esforços
e a grande seriedade de sua serena e espontânea limitação não
nos impusessem respeito e admiração? Assim como tais artistas se
relacionavam com os antigos, relaciona-se com eles, agora, o ser
humano de nossos dias. Nenhuma tradição viva, nenhum vínculo de
formação orgânica e progressivamente crescente une a sua época
com a nossa; temos de recriar a arte seguindo o mesmo trilho que
eles seguiram, mas com a nossa própria força, para nos igualarmos
a eles. Mesmo aquele pequeno e tardio verão da arte, ocorrido no
final do século XVI e no início do século XVII, só pôde gerar alguns
brotos do antigo caule, mas nenhuma semente fértil, e muito menos
plantar uma nova árvore da arte. Mas deixar de lado as obras de arte
perfeitas e ir atrás de seus primórdios ainda limitados e despreten-
siosas, para simplesmente imitá-los, como quiseram alguns, eis o que
seria um novo equívoco e talvez ainda maior; sequer lograriam um
retorno ao estado original, e a simplicidade não passaria afetação,
convertendo-se, de resto, em aparência hipócrita.
Mas qual perspectiva o período atual ofereceria a uma arte
que, desde a raiz, medra de uma semente fresca? Pois, em grande
parte, ela depende do sentido de sua época; e quem estaria apto
a prometer àqueles sérios primórdios a aprovação da atualidade,
quando a arte, por um lado, dificilmente obtém a mesma valoração
concedida a outros artefatos de luxo extravagante; e, por outro,
quando artistas e entusiastas totalmente incapazes de entender a
natureza exigem e louvam o ideal?
70 -~re a relação das ARTES PLÁSTICAS ...
A arte nasce apenas do vívido movimento das mais íntimas
forças do espírito e da mente, que chamamos de entusiasmo
[Begeisterung]. Tudo o que cresceu a partir de inícios árduos e
pequenos, mas terminou por adquirir vasto poder e altura, tornou-se
grande por intermédio do entusiasmo. Isso vale tanto para impérios
e Estados quanto para as artes e ciências. Não é, porém, a força do
indivíduo que leva isso a efeito; tal tarefa cabe apenas ao espírito,
o qual se espraia pelo todo. Pois, assim como as plantas mais
delicadas dependem do ar e do clima, a arte é particularmente
dependente da opinião pública, carecendo de um entusiasmo geral
pela sublimidade [Erhabenheit] e beleza; tal como aquele que, na
época dos Médici, exortou todos os grandes espíritos de súbito e
num só golpe, qual um quente sopro primaveril; precisa de uma
constituição como aquela que nos apresenta Péricles em seu louvor
de Atenas, ou, então, aquela em que o poder brando de um regente
paternal consiga conservar-nos com mais segurança e durabilidade do
que o governo popular; em que cada força se efetua livremente e
todo talento se revela com prazer, porque cada um só adquire valor
conforme sua dignidade; em que a indolência é tida como um escân-
dalo e o vulgar não rende elogios, já que se visa, ao contrário, a um
alvo excepcional e assaz ambicioso. Apenas quando a vida pública é
posta em marcha por aquela força que eleva a arte se torna possível,
a esta última, tirar alguma proveito da primeira; pois, sem abrir mão
da nobreza de sua natureza, a arte não poderia voltar-se para nada
que lhe fosse exterior. Arte e ciência só podem movimentar-se ao
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redor de seus próprios eixos; como qualquer um que é atuante em
coisas do espírito, o artista somente pode seguir a lei que Deus e a
natureza lhe inscreveram no coração, e nenhuma outra. Ninguém
pode ajudá-lo, já que ele mesmo deve ajudar-se; tampouco pode
ser gratificado com algo que esteja fora de si, pois tudo aquilo que
viesse a produzir sem vontade própria tornar-se-ia, de imediato, nulo;
justamente por isso ninguém pode comandá-lo ou prescrever-lhe o
caminho que deve peregrinar. Se é lamentável que tenha de lutar
contra sua época, é tanto mais desprezível se com ela for indulgente.
E como isso lhe seria sequer possível? Sem um grande e universal
entusiasmo há somente seitas, mas nunca uma opinião pública. Não
se trataria de um gosto firme e tampouco dos grandes conceitos de
um povo inteiro, mas apenas de vozes individuais de alguns juízes
que, eleitos arbitrariamente, decidem acerca do mérito; e a arte,
que em sua grandeza basta a si mesma, passa a mendigar aplausos
e prestar serviços, quando deveria justamente reinar.
A épocas distintas são dados entusiasmos diferentes. Não
deveríamos então esperar que à época presente também seja dado
o seu, haja vista que o novo mundo que ora se forma, quer exter-
namente, quer internamente, na mente, não pode mais ser medido
por nenhum dos padrões da opinião até então vigentes? E no qual
se exigem, ao contrário, padrões bem mais amplos, anunciando uma
renovação geral? Aquele sentido para o qual a natureza e a história
se reabriram mais vivamente não deveria, afinal, devolver à arte seus
grandes objetos? Tentar fazer faíscas com as cinzas daquilo que já
72 - Sobre a relação das ARTES PLÁSTICAS ...
passou para, a partir delas, querer reacender um fogo universal, eis aí
uma tarefa vã. Apenas uma mudança operada nas próprias ideias é,
pois, capaz de erguer a arte de seu esgotamento; somente um novo
saber e uma nova crença estariam aptos a incitá-la ao trabalho por
meio do qual ela revela, numa vida rejuvenescida, uma opulência
semelhante àquela do passado. Com efeito, uma arte exatamente
igual, em todas as suas determinações, à arte dos séculos precedentes
jamais retornará; pois a natureza nunca se repete. Não haverá um
Rafael como aquele de outrora, mas um outro a quem, de maneira
particularmente similar, será facultado atingir o vértice da arte.
Desde que se atenda àquelas condições básicas, a arte revitalizada
mostrará o objetivo de sua determinação, tal como mostrara, em
suas primeiras obras, a arte que a antecedeu; e, ainda que de modo
velado, a graça se faz presente, já, na formação daquilo que é pro-
priamente característico, uma vez que emerge de uma fresca força
primordial, sendo que, em ambas as artes, a alma acha-se, desde
logo, predeterminada. Obras que vêm à luz desse modo já são,
mesmo em sua imperfeição inicial, necessárias e eternas.
Devemos confessar que, com essa esperança num novo
renascimento de uma arte inteiramente própria, temos em vista,
sobretudo, a terra natal. À época em que a arte renasceu na Itália já havia crescido, a partir de nosso solo materno, a imponente planta
artística de nosso grande Albrecht Dürer;2º um artista propriamente alemão, mas aparentado àqueles cujos doces frutos foram amadu-
recidos pelo sol mais aprazível da Itália. Um povo do qual adveio
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a revolução do modo de pensar na Europa moderna, cuja força de
espírito prestou testemunho das maiores invenções que outorgou
leis ao céu e perscrutou a terra com a maior profundidade de todas;
no qual a natureza implantou, mais profundamente do que em
qualquer outro, um inconcusso sentido de justiça e a inclinação
ao conhecimento das primeiras causas, tal povo [italiano] tem de
desembocar numa arte própria.
Se os destinos da arte dependem dos destinos universais do
espírito humano, com quais esperanças devemos então considerar a
futura terra natal, onde um nobre regente deu liberdade ao entendi-
mento humano, asas ao espírito e efetividade às ideias humanistas, enquanto seus sólidos povos ainda preservam as sementes vivas da
antiga disposição artística e os célebres centros da antiga arte alemã
terminaram por se u