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Inspiraturas

personagemepaisagem

Aglaure Corrêa M artins - Davi SettaDhenova - Eulinda Barreto Fernandes

José Humberto Ribeiro - Juleni AndradeLarissa Fadel - M árcia Poesia de SáM arisa Schmidt - Osvaldo FernandesRogério Germani - Wasil Sacharuk

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Personagem

e

Paisagem

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2 INSPIRATURAS – Personagem e Paisagem

Escritores da Nova Ordem da Poesia 2011

Layout de Inspiraturas

DIREITOS RESERVADOS – É proibida a reprodução total ou parcial da

obra, de qualquer forma ou por qualquer meio, sem a prévia

autorização por escrito dos autores. A violação dos direitos autorais

é crime estabelecido pelo artigo 184 do Código Penal Brasileiro.

Impresso no Brasil

Printed in Brazil

2011

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3 INSPIRATURAS – Personagem e Paisagem

Aglaure Corrêa Martins

Davi Setta

Dhenova

Eulinda Barreto Fernandes

José Humberto Ribeiro

Juleni Andrade

Larissa Fadel

Márcia Poesia de Sá

Marisa Schmidt

Osvaldo Fernandes

Rogério Germani

Wasil Sacharuk

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4 INSPIRATURAS – Personagem e Paisagem

Frida e a Janela

Eu sou Frida, a abandonada. Aos oito anos fui deixada aqui,

na janela. Meus pais queriam amor e foram buscá-lo. A

vizinha, Dona Herta, vem todos os dias, quatro vezes, e traz

biscoitos, sanduíches e o almoço. Eu aguardo aqui, na janela,

enquanto observo o monte, lá no fim, entre a campina e o

horizonte. Eu sei de cada movimento, cada quero-quero,

pardal e, logo abaixo, sei de cada boi magro e meus dois

cachorros. Guaipa e Vanerão comem os restos do gado que

morreu de fome. O sol matou o capim e as novas sementes

continuam aguardando a chuva, tal como espero meus pais.

O que sobrou já não é mais verde. Tem aquela cor tempo

queimado, meio amarelo ou marrom.

Meus amigos são os periquitos, que conversam comigo lá do

tronco seco. Azuis, verdes e amarelos. Eles insistem em falar

sobre tempos tristes que jamais voltarão.

Wasil Sacharuk

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5 INSPIRATURAS – Personagem e Paisagem

PERCEBO-ME FRÁGIL

Daqui, eu que sou manso, posso avistar os sinais da guerra.

Tenho um rosto amável, porém a imagem dilacera qualquer

sorriso. Vejo a multidão aproximando, em meio aos poucos

automóveis que tentam andar. Meu corpo franzino não é

apropriado para ir à luta, tenho mãos frágeis e pernas finas.

O céu nublado dá o tom do contexto.

Rua apertada, com paralelepípedos irregulares, calçadas

estreitas, meios fios caiados. As fachadas das casas velhas

têm pinturas desgastadas pelo tempo e o desleixo. Como

meus cabelos embranquecidos, porém amarelados pela falta

de trato.

A tarde é quente e úmida e eu febril.

Do alpendre, vejo o cortejo alvoroçado. Em mim não há

alvoroço, sou velho demais para tais emoções. O povo grita

por justiça, esboço um pensamento de apoio, esqueço logo.

Sempre acho estranho o agrupamento de desiguais em causa

una. Talvez, seja minha experiência sobre aglutinações.

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6 INSPIRATURAS – Personagem e Paisagem

Um vento fraco sopra em minha cara, sinto o cheiro de flores.

Minha visão não é a mesma de alguns anos, não reconheço

rostos à distância. Então, temendo ao que está no porvir das

horas, resolvo entrar em casa e trancar a porta. Sei que

haverá sangue, sei do perigo, sei que a justiça não virá.

JULENI ANDRADE

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7 INSPIRATURAS – Personagem e Paisagem

SAUDADE DA INFÂNCIA

Estou sentada a beira de um lago artificial feito pelo meu avô

há muitos anos atrás. Chamo-me Luiza e me recordo com

alegria e saudade os poucos momentos da minha infância

que passei aqui. Lembro das flores que tinha a cor dos meus

olhos e das orquídeas que minha mãe gostava de tirar fotos.

Ainda posso ver meu avô de camisa alaranjada me esperando

na entrada do sítio e sorrindo ao me ver chegar com meu

irmão. Eu corria pelos espaços verdes e me sentia livre e

protegida. Hoje, sentada aqui ainda posso sentir o cheiro da

comida que minha avó preparava com tanto carinho na

panela de pedra. Posso sentir o abraço do meu primo e ver

todos os brinquedos espalhados pelo chão.

Os momentos que passei aqui foram breves, mas intensos. Eu

os guardo em um lugar muito especial na minha memória.

Sinto vontade de chorar quando vejo o pomar abandonado,

que meu avô cuidava com tanto carinho. Lá tinha uva, couve,

tomatinhos, alface, camomila, amora e pimenta. Tudo era

bem cuidado por todos nós.

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8 INSPIRATURAS – Personagem e Paisagem

Eu gostava dos mimos da minha madrinha e das minhas

outras tias, irmãs da minha mãe. Sentia-me querida com os

tantos beijos e afagos da minha vó.

Eu viajo nas minhas recordações jogando pedrinhas que

fazem círculo no lago onde em outros tempos nadavam 3

patinhos. Olho para a casa de tijolinho e meu peito parte de

saudade. Lembro das horas, tenho raiva do tempo. Preciso ir

embora. Olho para trás, vejo minhas pegadas e solto um beijo

de despedida no ar. Novamente penso no meu avô que tão

cedo se foi, deixando um vazio na minha infância e nesse

lugar.

Larissa Fadel

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9 INSPIRATURAS – Personagem e Paisagem

REENCONTRO MARCADO

Recebi genes de guerreiros. Tenho olhos de um negro bem agudo,

supercílios espessos e boca proporcional ao rosto magro e

triangular. Posso dizer que meu nariz é italiano como o do meu avô

fascista. Já minhas mãos são compridas, herdadas do outro avô

pianista.

Estou sentado em um banco da praça central desta cidadezinha

pequena. Tudo aqui é muito familiar, menos o chafariz recém

inaugurado. O chão é de pedra e há algumas graminhas entre elas.

Daqui vejo o portão da escola, é igual como estava há cinco anos.

Meus pés magros, dentro do italiano legítimo, suam. Enxugo a

testa pela milésima vez, o lenço não suporta mais tanto suor. Trago

a fumaça do último cigarro da carteira, o relógio parece sem

pressa.

O portão da escola, fechado, parece ser uma esfinge guardando o

prédio do século dezenove. Decifrá-lo não sou capaz, nunca fui.

Preciso conter a ansiedade sentida. Esperar a hora exata, certeira

do adentrar. Minha boca, em uma secura extrema, auxilia minha

respiração. O ar está fortemente pesado, eu estou agitado por

dentro. Nenhuma alma chega ao portão e o sino não toca.

JULENI ANDRADE

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10 INSPIRATURAS – Personagem e Paisagem

Por hábito

Costumo não acostumar facilmente com as pessoas e dedico bom

tempo ao olhar os vazios. Sou de hábitos simples, gosto do aroma

do café e do gosto da salsa. Como pouco, só o suficiente para

manter os sessenta quilos que suportam minha estatura baixa.

Moro em apartamento pequeno, onde há uma sacada de frente

para o morro.

Sentado na cadeira de aço, observo a paisagem. A parte mais alta é

careca, não há nada mais além da terra avermelhada sob pedras.

Um pouco abaixo, posso ver algum verde e pequenos arbustos.

Não tem flores, também não gosto de flores. Tenho olhos negros e

não sou chegado ao colorido em demasia.

Do meio para a base, o morro é infestado de casebres feios, onde

as cores são ressaltadas. Varais mostram intimidades. Perturba-me

a visão daquelas almas enclausuradas em suas vidinhas cheia de

tons estridentes e falta de calma.

Quando anoitece, tomo a sopa de legumes, deito-me no sofá, ligo

a televisão. Incomodado com as desventuras que assisto, volto à

sacada. Depois de fumar uns três ou quatro cigarros de filtro

amarelo, tomo um chá de cidreira. Se durmo, sonho com as

pessoas em suas vidas cheias. Se a insônia me visita, fico

observando aquele morro inerte e suas lâmpadas incandescentes.

Davi Setta

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11 INSPIRATURAS – Personagem e Paisagem

Toquei o interfone. Apareceu uma mocinha. Pediu-me para

entrar e aguardar. Ao entrar na sala, sentei-me e fiquei

surpreso com a decoração. Tinha um ar leve, ainda em meia-

luz, cortinas brancas, soltas e leves. Tapetes discretos, mas

aconchegantes. Quadros belíssimos. Aquele ambiente tinha

um cheiro tão gostoso e ao mesmo tempo calmante. Tive a

sensação de que tudo aquilo era para ser comido! Vê se pode.

Sempre tenho um estranhamento quando sinto isso.

José Humberto Ribeiro

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12 INSPIRATURAS – Personagem e Paisagem

Inventei, em certa época, de pescar em lugar mais distante,

com mata mais fechada. Eram seis horas de pescaria todos os

dias. Pescar em rio quase sem peixe é um exercício de

meditação. A mente voa. Imagina-se o fundo do rio, escuta-se

um pássaro por horas. Bichos que estralam gravetos. Cutia

que aparece do outro lado do rio, lenta, precisa. Família de

jacus caminhando com seus pintos por cima das costas. Jibóia

crescida subindo o rio sinuosamente. De vez em quando uma

lontra. Visões de anos de solidão, pescando ali em silêncio e

sem companhia. Certa vez resolvi levar comida para os

peixes. Amarrava espigas de milhos, jogava quirela de milho e

também mandioca amarrada. Quando as capivaras não

comiam tudo, ia aumentando o movimento da pescaria. Coisa

pouca, mas no fim de semana a turma adorava aquilo tudo

frito com a cerveja. O peixe era um pretexto para ficar ali,

perdido, integrado e interagindo. Gostava tanto que ficava

no meio daquelas tempestades e raios, só para ver estiar e vir

aquele sol brilhando tudo em volta. É impressionante como

após uma chuva os sons da mata duplicam. Parece saudação.

José Humberto Ribeiro

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13 INSPIRATURAS – Personagem e Paisagem

Levantei-me já com a mão esquerda no bolso, caminhei,

contornei por aquela parede onde ela se escondia. Era uma

copa ampla, uma mesa para oito lugares. Na lateral havia

uma porta enorme, de vidro, um pouco aberta, que dava para

uma varanda, com cadeiras modernas, que pareciam

confortáveis. Não pude deixar de notar o belo jardim, com

uma piscina ao fundo.

De repente, me sai a advogada com uma jarra de suco na

mão. Era alta, cabelos caindo para frente, perto dos seios,

com aquela camisola longa, marcando um corpo esguio.

Gostosa. Aquele tecido da camisola, ao mesmo tempo que

marcava, também se movimentava, dando uma sensação de

desejo de toque. Toque? Sim. Parecia um violoncelo, mais

afinado. Eu dava um Sol sem Dó. O que é isso? O que estou

pensando? Música, sol, afinação... tocar. Eu estava sem

controle. Odeio quando isso acontece. Não consigo ter um

pensamento linear, para um diálogo simples e direto.

Eu estava parecendo um aparelho captador de sinestesia.

Aquilo tudo, misturado, desejável estava me perturbando. “Ó

formas alvas!”. Nessas horas e eu aqui lembrando de poeta.

A Katia terminou o seu café, passou por mim, abriu um pouco

mais a porta da varanda e sentou-se. Encolheu uma perna,

pisando com o pé esquerdo na cadeira. Pegou a barra da

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14 INSPIRATURAS – Personagem e Paisagem

camisola e recolheu para o meio das pernas. Da posição que

me encontrava, pude vê-la de lado. Metade das coxas

descobertas, firmes, roliças. Uma pequena tatuagem na

lateral, na altura da panturrilha. Dessa posição é que pude

notar com mais precisão o volume dos seios, querendo pular

para fora do pano. Agora é que não posso mais sair dessa

cadeira. Imaginar aquele corpo, os beijos, minhas mãos

passeando por ali sem pressa... meu corpo respondeu ao

desejo.

Encostei-me no portal da varanda. Seria complicado ficar

sentado assim logo de frente. Meio encostado, com o ombro

direito, mão esquerda no bolso, fiquei ali contemplando

aquilo tudo. Pensei no destino. Pensei na reunião. Pensei no

“eu digo sim”, no Amor-fati. A vida é sempre um presente.

Será? Bem, não posso ir embora e dar essa impressão que sou

assim bagunçado das idéias, perdido em sensações

complicadas, misturando música, boca, violoncelo etc. Na

verdade, isso se passava apenas na minha mente. Ainda não

tinha dito nada. Como é que ela poderia pensar isso ao meu

respeito?

Foi aí que me compliquei. Ouvi um barulho forte, de passadas

rápidas. Quando menos esperei, um mastin napolitano

enorme colocou as patas sujas em meu peito e lambeu a

minha boca, com aquela baba toda. Além de babado, estava

com o paletó e gravata sujos de terra vermelha. O pior é que

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15 INSPIRATURAS – Personagem e Paisagem

o maldito ficou assim me namorando. Suavemente ela disse:

“Thor, venha aqui”. Ele foi e se deitou ao lado dela.

Levantou-se. Disse que cuidaria disso. Foi lá dentro, voltou

com um pano e um produto. Achei que fosse me entregar.

Ficando bem perto de mim, molhou o pano e foi limpando

minha gravata e o paletó. Podia sentir a respiração dela. Que

perfume é esse meu Deus!!!! Levantou os olhos, me olhou

fortemente, a uma distância de uns quatro dedos. Minha

boca encheu d'água. Virou-se e saiu.

José Humberto Ribeiro

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16 INSPIRATURAS – Personagem e Paisagem

Preguiça

Quero um café. Não sou dado a dias podres. Dias de tédio, de

energia não gasta. Minha preguiça se faz por paradas: o ônibus da

vontade passa como um guepardo, ergo o dedo e mão direita (o

bloco da consciência) e ele não para. Deve ser a velhice! Não há

vinte e oito anos que a pare. Por outro lado, quero ser velho. A

cada vez que o ‘ônibus’ passa, de má vontade minha mão

anarquista fraqueja o sinal. Talvez ele que não veja. Porém, apesar

de olhar o monitor fagulhando letrinhas, eu só vejo o café! Vou

levantar deste destroço.

Aliás, esta cadeira já está velha demais, assim como a parede, suja

demais. Deve ter o prazer de colecionar impressões digitais.

Viciada, como meus livros! Vou levantar, andar por estes pisos

timbrados de urina! Não! Não adianta me cheirar, Athenas, não

conseguirá sentir minha essência perto do que fizeste aí no chão!

Ademais, eu só quero o café. Em meio a farelos e leite em pó

empedrados nos copos sujos desta louça encontro também dotada

de incrustação a jarra de café. Encho na torneira que, como se

cantasse um nino, vive a pingar pela noite... e paro no ‘6’. Numa

equação matemática derramo o quanto de pó preciso: seis divido

por dois... Ah! Eu quero o café! A louça grita pra ser lavada, a bica,

pra ser consertada, volto ao meu quarto enquanto um aroma

divino paira em minha fronte. Volto a fagulhar letrinhas e nelas

gozo: como é bom ser preguiçoso!

Osvaldo Fernandes

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17 INSPIRATURAS – Personagem e Paisagem

Apresento-me. O que disso poderá ter proveito é uma

questão que não me diz respeito. Quando aprendi a ler e

escrever ninguém me disse para que servia. Ainda não sei.

Apenas uma vez queria ser sincero, ao extremo, verter uma

verdade infundada, pois que não existe verdade pessoal. Tive

sim medo de nascer. Vim prematuro e respirando mal. O que

se sabe é que alguém me deu um ponta-pé e me colocou no

mundo antes do tempo. Para mim e para ele. Nunca perdoei.

Perdoar é coisa de santo e isso não sou. Nunca fui! Tentei ser

normal a vida inteira e ela não deixou. Fui uma criança

franzina e sorridente, embora a falta de ar me tenha dado um

papel de espectador. Sempre achei que ganhar o que não se

pede é pura falta de educação. Bem cedo vi três mulheres

pintadas com cara de palhaço, sendo agasalhadas pelos

bombeiros. Meu primeiro exemplo de força. Por três vezes

ainda caíram ao meu lado, sujeitos anônimos, língua

enrolando e babando. Desejo de retorno. Meu primeiro senso

de responsabilidade foi designado por uma desconhecida:

passear com o seu cachorro pelo menos uma vez ao dia. Sua

serviçal incorporava às vezes e me dizia coisas do passado e

do futuro. Meu primeiro contato com a vida após a morte. Fui

matriculado no jardim de infância público. Pegou fogo antes

de minha entrada. Soube que em suas ruínas fumavam e

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18 INSPIRATURAS – Personagem e Paisagem

cheiravam coisas perigosas. Fui direto para o primeiro ano.

Tive medo. Chorei. Pediram-me para fugir das professoras

gordas e com óculos. Meu primeiro contato com a tirania.

Desse primeiro dia de aula, ainda sinto o cheiro de café na

cozinha, o vulcabrás esmagando os dedos e alguém num

rádio velho chorando: “eu chorei na avenida, eu chorei.” Sim,

era uma atmosfera afirmadora. Vence ou sucumbe. Não custa

dizer que cantávamos o hino nacional em homenagem aos

porões que ninguém sabia. Meu dia de nascimento e signo

foram apontados como sendo dos profundos e melancólicos.

A senhora sabe o que é profundidade?

Só pude entender um pouco melhor a vida quando me

apresentaram os bichos. O sorriso dos bichos vem com os

olhos. Tive muito medo de Deus. Quem não teve? Sabe tudo,

vê tudo e ainda castiga. Na minha época padre era vestido de

luto. Um dia ouvi Romaria, com a Elis tristonha: “como não

sei rezar, queria mostrar meu olhar... meu olhar”. Poeta

sujeito-bicho como eu. A única bondade que desenvolvi

sozinho foi a de não aceitar injustiça. Queria estar ao lado

deles, mas depois entendi o motivo: meu primeiro senso de

rebanho. A senhora pode entender o meu perfil psicológico?

Então me dê uma benção. Um dia quis ser um só com uma

menina. Chamaram de saliência e pouca vergonha. Bem tarde

uma mulher que não queria sexo algum comigo disse-me se

tratar de amor. Algo iluminou o meu escuro interior. Crianças

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19 INSPIRATURAS – Personagem e Paisagem

colecionam quinquilharias guardadas a sete chaves. “É meu,

não mexa”. O fato é que tem uma hora que é preciso

escolher: vou bater ou vou apanhar. Vou fazer parte ou me

afastar. Amar ou fingir. Coloquei essas palavras num saco de

papel, com letras separadas, sacudi e deu no que deu: EU!

Duas letras! Senhora, duas letras!!! Nem me venha falar como

é no inglês! A minha designação devia ser no mínimo

ANTICONSTITUCIONALISSIMAMENTE. Não é que esse

tamanho represente qualidade, mas a tontura que se é SER.

Pelo bem ou pelo mal, assumi uma cadeira de juiz. Um deus

na terra! Não, não combinou. Maldita hora em que fui ler

Crime e Castigo, a G.H e a sua paixão, Riobaldo em guerra

com o diabo, Mersault estrangeiro em Argel. “Afasta de mim

esse cálice”. “Crepúsculo dos Ídolos”. Minha senhora, me

ensina a ser um indivíduo comum no meio do nada? Não

pense que desisti: tenho carro, tenho emprego, casa, filhos,

fui casado e já vi o mar. Mas a verdade mais fundamental e

terrível que tive acesso foi: pode-se mentir e enganar quem

se ama. Depois disso ainda é possível se escandalizar com a

fome, guerra, tortura e ideologia? A senhora poderia me

fazer a gentileza de me dizer: eu tenho um perfil psicológico?

José Humberto Ribeiro

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20 INSPIRATURAS – Personagem e Paisagem

ROTINA

Desde o ano passado, durmo tarde e acordo todos os dias as

6 da manhã com o barulho do toque de um celular que nem é

meu. Abro meus olhos, estico meu corpo, bebo a água que

fica sempre no criado mudo ao meu lado e continuo na cama.

Observo os movimentos do homem que levanta, seus gestos

rotineiros, sua mania de ligar a televisão com um volume

acima do que estava habituada e sua mania de limpar os pés

antes de calçar os sapatos. Espero com paciência a minha vez

de ir ao banheiro. Levanto depressa, tomo meu anti ácido de

sempre, escovo os dentes e volto pra cama. Penso como será

o resto do dia antes de começar. Bate o sono. Ganho um

beijo de despedida, as vezes um carinho no rosto e

raramente uma lambida na boca. Desejo um ótimo dia. Ouço

a porta da sala se fechar e logo após o barulho do motor do

carro. Levanto, olho pela janela aquela partida. Volto. Vou no

quarto dos meus filhos, fecho as janelas para o ambiente

escurecer e encosto a porta. Desligo a maldita televisão,

deito novamente e durmo por mais 1 hora. Acordo com vozes

de criança e com fome.Mas muitas vezes não tive vontade de

acordar. Abro a janela. Começo o dia esperando algo

diferente e só anoitece. Beijo de boa noite e durma bem.

Larissa Fadel

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21 INSPIRATURAS – Personagem e Paisagem

DESAMPARO

O saguão é no mais imponente estilo vitoriano, há vasos com

tulipas brancas e cortinas espessas. Nada contra isso tudo, mas

prefiro as pousadas coloridas à beira da Praia do Morro.

Quando nasci, fui deixada no portão de um casarão riquíssimo.

Talvez, minha progenitora esperasse dar-me uma vida boa. Fui

criada pela cozinheira.

Sentada no sofá macio, olho a portaria. Aguardo a chegada

daquela mulher.

O que vejo são pessoas cheias de si e de aparente felicidade, casais

em lua de mel, turistas, dentre outros que nem sei.

Levo meus olhares para cima, posso sentir a grandiosidade do teto

arqueado e muito bem adornado, além da beleza dos vitrais

coloridos. Desço os olhos, movimentando bruscamente a cabeça,

compreendo a força do mogno predominante. Na infância

aprisionada no quarto de empregada, observava escondida tudo

que passava no casarão. Aprendi tudo que sei pela observação

atenciosa.

Tenho olhos verdes, devem ser parecidos com os dela ou de meu

pai. Pai, palavra estranha. Nunca chamei ninguém por pai ou mãe.

Meus olhos e meu resto, ajudaram-me a ser expulsa do casarão –

minha salvação. Aquele asqueroso ousou tocar-me. A madame não

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22 INSPIRATURAS – Personagem e Paisagem

resistiu à afronta e culpou-me de tentação. Foi o fim da minha

escravidão.

Faço força para o tempo passar e conto os frisos do piso, os

quadros das paredes e as pessoas que entram e saem. Fui treinada

ao silêncio. A cozinheira quase nunca falava, nunca ouvi

reclamação de sua boca, mas as lágrimas diziam muito. Não lembro

de ter chorado depois dos sete anos. Devem ter secado as

lágrimas.

Ela não chega, a demora irrita-me. Espero pelo encontro desde

sempre e ainda mais depois da carta. Estou com um vestido preto,

sempre uso em ocasiões sérias. Com estes trajes arranjei meu

primeiro emprego no escritório. Devo estar bem.

Bem em frente ao balcão da recepção, afastado suficiente para

não atrapalhar o fluxo de hóspedes e funcionários, há um mesa.

Parece ser de nogueira e aparenta-se com a maldita mesa do

casarão. Em minha boca chega um amargo, lembranças do

inconveniente apalpar daquele verme. Estou livre.

A impaciência deve estar estampada em minha face. Como ela

será? Por que marcou neste lugar tão fino e caro? Rica, talvez. Deve

ter procurado por mim durante todos esses anos.

Outras lâmpadas foram acendidas, a noite já engatinha. Logo

estarei sendo inquirida sobre o motivo de minha presença. Por que

ela não chega? Sinto-me abandonada mais uma vez.

JULENI ANDRADE

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23 INSPIRATURAS – Personagem e Paisagem

Haviam encomendado algumas coisas em uma confeitaria.

Fui buscar a encomenda. Cheguei lá no balcão-vitrine e

entreguei o pedido. Logo abaixo de mim, tinham aqueles

biscoitos pequenos, que se vendem por quilo. Tem um nome

francês para eles. Não me lembro. O fato é que todo mundo

pára ali e come escondido. A variedade é razoável. Fiz o

mesmo, um pouco mais tímido, coloquei um daqueles na

boca, um gosto de coco ralado, misturado com um sabor

meio de leite e manteiga. De fato é bom, com café então,

nem se fala. Ao sentir o gosto, o estado de êxtase me veio.

Era uma senhora com cabelos presos, grisalhos, com uma

bola daquelas que as mulheres fazem mais ou menos no alto

da cabeça. Um rosto redondo com um olhar macio e familiar.

Sorriu para mim, com doçura. Caminhou de um lado para o

outro no local onde ela se encontrava. Sentou-se, cruzou com

dificuldades as pernas, com certa elegância, embora fosse

um tanto gorda. Aquilo me soou como um “vem aqui, meu

filho. Sente-se. Quanto tempo? Sabia que vinha e esperei

tanto por isso.” A vontade que me deu foi a de pular nesse

balão de imagens, escorregar para o outro lado e lá

permanecer para um café da tarde. “Acordei” com alguém

me cutucando. Era a atendente querendo me entregar o

pacote.

José Humberto Ribeiro

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24 INSPIRATURAS – Personagem e Paisagem

Eu sou Pedro. Pedro significa rochedo, pedra. Meu nome foi

escolhido por meu bisavô, um negro guerreiro que se rebelou e

fugiu dos seus senhores, refugiando-se aqui nessa serra onde a

mata ainda permanece virgem e a água é límpida e abundante.

Meu bisavô foi o fundador do quilombo, hoje comunidade

quilombola onde resido.

Tenho o habito de acordar muito cedo, como dizemos aqui: acordo

com as galinhas.

Antes de o sol ensaiar seus primeiros raios, tomo meu destino, sigo

calmamente a pequena estrada de barro vermelho ornada com

pequenas flores brancas que exalam um cheiro adocicado, ando

aproximadamente uma légua até chegar no meu pequeno paraíso.

Gosto de passar parte do dia lá, sozinho.

Vez por outra me sento para descansar e beber um gole da água

que carrego na moringa feita com cabaça. Enquanto descanso,

observo os pássaros que voam livres.

O céu aqui sempre é azul, às vezes está bordado com nuvens bem

branquinhas que parecem os flocos de algodão que colhemos nas

nossas plantações.

Eu sou Pedro, eu sou negro, eu sou rochedo, eu sou livre.

Aglaure Corrêa Martins

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25 INSPIRATURAS – Personagem e Paisagem

LENIENTES

Construo barquinhos de papel, relaxa. Tenho alguns medos

latentes, como lobos à espreita. Esqueço os nomes das

pessoas, até as mais íntimas. A idade permite que eu não

ligue para certas coisas, como radicalismos. Leio o jornal

diariamente, não importo com as notícias. Outro dia vi, na

televisão, uma notícia sobre a violência urbana e dei graças

aos deuses por morar neste arraial.

O dia está chuvoso. Nesta calçada, repleta de folhas do oiti,

forma-se uma camada de limo. Não é varrida há uma semana,

acho. Mais uns barquinhos irão navegar nas ondas da calha

pluvial. As crianças vizinhas vibram com a brincadeira.

Chove mansamente e a rua está tranquila, falta areia entre as

pedras que a revestem, a pavimentação é antiga. Na outra

calçada, bem limpa, vejo uma pulseira caída. Alguma menina

desatenta perdeu a jóia. Calo-me, não tenho vontade alguma

de atentar sobre o assunto. Sou indiferente aos desleixos

alheios. Algum esperto ganhará o presente útil, talvez.

Aos poucos lanço alguns dos barquinhos e sem despedir-me

volto para minha casa. Fecho-me no meu recanto, sem

saudades, sem companhia, sem expectativas grandes. Certo

que os lobos rondam minha noite, procuro o calmante

comprado sem receita médica. Faz tempo que não consulto

um doutor, não preciso de uma sobrevida extensa. Para as

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26 INSPIRATURAS – Personagem e Paisagem

dores, gotas de um analgésico qualquer. Para os tremores,

chá de capim cidreira. Nos resfriados, mel com limão. Na hora

da fome, roscas com mate ou sopa de pacote.

Amanhã, vou abrir a janela, não lembrarei mais da pulseira.

Alguns barquinhos estão na estante esperando mais chuvas.

Ainda tenho muitos papéis e calmantes.

Construo barquinhos de papel, relaxa.

JULENI ANDRADE

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27 INSPIRATURAS – Personagem e Paisagem

NOVO TEMPO

Sou jovem. Isso é o que mais escuto e o que menos importa.

Meus olhos claros, meus cabelos loiros e ralos e esta magreza de

ossos expostos são jovens, mas eu tenho a idade da dor e do

medo.

Faço parte de um tempo que já se esgotou, como este casarão que

ora vejo. Nem sei porque vim até aqui. Saudade? Despedida?

Lembro bem da pitangueira que existia no canto do terreno, atrás

do casarão; nela subi tantas vezes e lá do alto via meus coleguinhas

correndo enquanto saboreava os frutos vermelhos e brilhantes...

Chego a sentir o sabor doce-azedo e meus olhos procuram o que já

não existe: o grande terreno irregular com seus jardins e um

tanque de areia no qual se caia com o coração aos pulos na descida

do escorregador... Os balanços coloridos e o eterno vozerio das

crianças; muitas delas gostavam de deitar na grama e olhar o céu

onde as nuvens criavam desenhos divertidos e eu, era uma delas.

O alambrado que permitia se olhar todo o bairro hoje é muro alto e

eletrificado e o enorme terreno hoje está tomado por espigões de

concreto onde, de certo, moram crianças que jamais saberão o

sabor de uma pitanga.

O grande e imponente casarão está aqui, confinado entre pares

estranhos, deslocado num novo tempo. Como eu...

Marisa Schmidt

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28 INSPIRATURAS – Personagem e Paisagem

Foi quase um sonho. Praça ampla, muitos incêndios, vidros

espatifando por todos os lados. Era um barulho ensurdecedor,

principalmente os estampidos de tiros.

Percebi que não era um sonho, quando saí de um “pub” correndo

feito um louco e balas zuniam perto de mim. Contornei um

caminhão, atravessei um chafariz, pulei uma pequena cerca viva e

caí de cabeça aos pés de um santo.

Santo de jardim! Era santo ou herói? O fato é que lascas dessa

estátua eram arrancadas à bala. Só agora é que percebi que estava

armado. Armado até os dentes. Mão calejada e suja.

Cabeça meio rapada, porque passei a mão na cabeça antes de

apanhar o capacete que havia caído. Que diabos de uniforme é

esse que me vestiram? Algo como um ímã me atraía para uma casa

próxima ao local que me encontrava. Mais duas cerquinhas e uma

rajada de balas. Agora os tiros cessaram em minha direção. Ouvi

um cara gritando em um idioma que nem faço idéia, mas

gesticulava para que eu avançasse.

Fiquei de pé, atrás da estátua, rastejei pelo jardim e próximo à

porta da casa, levantei e meti o pé, arrombando prontamente.

Deparo-me com uma velha senhora, com uma coroa de milhares de

brilhantes. Gentilmente se move e mete um tiro a queima roupa

diretamente em meu peito. Caí de costas com apenas a cabeça

para fora da casa. A última cena que vi: uma revoada de pombos!

José Humberto Ribeiro

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29 INSPIRATURAS – Personagem e Paisagem

FESTA DE ANIVERSÁRIO

Fiquei observando todos os movimentos dos convidados.

Eram poucas pessoas, a maioria parentes.

A porta da sala, que dá para o jardim de inverno, e o próprio,

estavam enfeitados com balões nas cores laranja e azul

escuro. A mesa, com bolo e doces, estava revestida com uma

toalha nos mesmos tons dos balões. Nos copos, nos

guardanapos e na toalha estavam desenhados os carrinhos

da Hot Wheels.

As brincadeiras começavam, caçoando uns aos outros.

Lembrando de suas travessuras.

Olhei para o lado esquerdo da sala, estavam os três genros.

No sofá, à minha frente, o filho e a nora, felizes porque nesse

dia, (12 -1-08) tiraram os papéis, para o casamento.

Olhando para o lado direito, duas filhas folheando revistas de

produtos de beleza. A outra filha, a anfitriã, servindo as

crianças que só nessa hora, se aquietaram um pouco.

Meus pensamentos foram para muitos anos atrás,

acompanhando as lembranças deles. Narravam às artes que

fizeram. Os machucados com acidentes de bicicleta, bola, etc.

Também o período escolar, os professores amigos etc

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30 INSPIRATURAS – Personagem e Paisagem

Tornei a passar os olhos pela sala. Lá estava a minha família! E

como estava bonita, alegre, feliz!

Logo após os parabéns, o pai do aniversariante fez um breve

agradecimento aos convidados. Comentou que “é trabalhoso

cuidar de dois filhos e como deve ter sido difícil para a minha

sogra, com quatro”.

Muitas coisas me esqueci. O tempo passa tão rápido... e os

filhos vão crescendo. Como ele mesmo disse,(meu genro)

“tudo supera e vale a pena ter esses filhos e cada um com a

sua personalidade”.

Nessa hora, lembrei-me do meu marido, porque todas as

reuniões que participava, fazia um belo discurso.

Obrigada meu DEUS, por ter permitido ver e passar por essa

vida, deixando a minha história.

Eulinda Barreto Fernandes

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31 INSPIRATURAS – Personagem e Paisagem

O INSUBMISSO

Inserido em terreno seco, edificou-se o forte. A muralha foi

erguida com pedras irregulares, postas em camada grossas

artesanalmente. Fica em frente à arenosa estrada, por onde

trafegam ambulantes almas.

Dentro é frio. O prédio central seria sóbrio, se não

considerasse a torre mais alta. Há um farol que singra a noite,

procurando rastros de pedras e espinhos. Também, existe o

insistente arbusto que resiste à seca.

Moro ali, sem receio, sem refresco ou esteio. Os morcegos

fazem revista. Os pardais sumiram, as estrelas piscam, os

grilos não encontram abrigos.

O único móvel é a cadeira dura, o único prazer é o telescópio.

Nasci longe daqui, em um oásis. Cresci na presença de olhos

atenciosos e amáveis, cobradores insaciáveis. Os agiotas do

carinho sempre afagavam minhas mãos curiosas. Na

puberdade dos espinhos, vendi o cavalo e comecei a

construção de um mausoléu.

Maduro, cru, azedo fiquei com o tempo ventando em minhas

ventas. Raspei economias, converti à ascese. Tranformei meu

ouro em muro. Duro, acre e só vesti o manto de esfinge.

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32 INSPIRATURAS – Personagem e Paisagem

Com o passar de várias luas comi o fruto de minha lavra.

Desisti de todas as crenças inúteis e arremessei –me ao

deserto, onde fiz-me rei do infértil campo de solidão

voluntária.

Atualmente, vigio os passos de um rato; converso em

centúrias com astros distantes e mudos; banho-me com o sal;

analiso a fúria do Helicobacter pylori.

Desejo morrer à noite, como nasci.

Juleni Andrade

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33 INSPIRATURAS – Personagem e Paisagem

VÍTIMA

Ainda não tinha nome, nem passava fome, não pisava no

seco, nem era palafita. Ainda não dormia só, nem tinha

companhia. Não era menina, nem botão de flor. As

amarguras não via, não corria atrás de sonhos. Não era fria,

nem esquentava o dia.

Agora, não tinha senhor. Comia o pão dormido que o danado

amassou.

Esquecia o rosto vendo o sol nascer, havia beleza no cerrado.

Plantava ventos, mas não escolhia sentimentos.

Morreu na subida da ladeira, sem dó ou explicação. O

culpado desapareceu. Foi enterrada no chão.

Ainda não virou anjo, nem santa, nem assombração. Na missa

de sétimo dia: só o padre, um tolo e o sacristão.

Juleni Andrade

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34 INSPIRATURAS – Personagem e Paisagem

Por favor, não quero incomodá-lo. Apenas fiquei te observando.

Mais uma vez te vi nos poucos lugares que ainda é visto, feliz ou

infelizmente é uma livraria em um shopping elegante e moderno.

Lá vinha você, pensativo como sempre, naquelas alamedas

estonteantes quando se depara com uma fila indiana imensa.

Tratava-se de crianças carentes passeando naquele mundo de

fantasia. Elas vinham cercadas por “monitores” na frente, no final

e por todos os lados. Vi que passou bem perto e reparou aqueles

olhares esbugalhados, como que drogados. Sim! Só alguém

absurdo poderia imaginar o que imaginou: eles estão

concentrados. Lembra daquelas cenas reais dos campos de

concentração? Isso mesmo! Aqui nessa cidade não existe favela,

apenas periferia. Eles se concentram lá! Já o haviam avisado para

ficar longe da verdade, mas algo sempre esteve em você que a

“verdade” se apaixona. Sabe qual é a verdade de um homem

solitário absurdo? Não queira saber. É um diálogo frequente na

cabeça, um amontoado de perguntas e respostas. Imagina-se de

tudo. Parece uma preparação para algo que vai vir

inesperadamente. Alguém, um ato, uma cena, uma pergunta... já

imaginou um Raskólnikov passeando por um shopping? Que

espécie de castigo é esse que se impõe? Estar apartado do mundo?

Necessidade de clareza e honestidade? Necessidade de racionalizar

tudo? Não se sabe ao certo, mas ele acredita que as mulheres são

aptas a dar uma opinião. A sensibilidade ajuda. Inesperadamente

conheceu uma dessas mulheres. As mulheres carregam sempre

consigo uma proposta. Por ser um homem tímido e míope, faz

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35 INSPIRATURAS – Personagem e Paisagem

sempre as piores leituras. São piores porque são puras. Os heróis

solitários são puros essencialmente.

Mas essa foi um pouco diferente, quis educá-lo em suas palavras.

Disse-lhe para que “deixasse de ser esse filho da puta de santinho.

Que não existe coisa pior e mais nojenta que um homem de bem.

Essa coisa de misericórdia, de olhar puro diante do lixo e,

principalmente, com um discurso quase impossível de ser

superado. Mulheres gostam de cafajestes, trapaceiros, que

apimentam a vida e colorem o mundo com suas nuances de

banditismo” (Ahh essa doce mulher! Ela fica tão linda de rabo de

cavalo e sua farda miliciana!). É preciso jurar! Aprender!. O homem

solitário absurdo é, por conceito, um filósofo. Nem ele sabe o

porquê e para quê. É por isso que ele é um párea. Talvez isso tenha

ficado mais claro ao ler um daqueles emails que todos já leram,

onde se diz que uma estudante interpretou Camões dizendo para

ele largar de babaquice e arrumar uma mulher e fazer muito sexo.

Como é que foi preciso uma criança para ligar a luz para a

transvaloração moderna? Voltando a Raskólnikov: o mundo é

extraordinário! Como já foi jurado acima, continua se prometendo,

o homem absurdo, que será parte da imbecilidade. Vai crer na

mídia, nos padres, nos pastores, na moda e no mercado. Afinal,

talvez tenha chegado mesmo o momento de esvaziar a taça e

encher o pote. O pote de personalidades variáveis, pois a cada dia

todos matam seus personagens no final da noite, com ou sem

choro. Assim fará suas preces, para que tenha criatividade para

manter-se vivo. Afinal ser "um" todos os dias não é fácil.

José Humberto Ribeiro

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36 INSPIRATURAS – Personagem e Paisagem

FALANDO SOZINHO

Nem todo mundo nasce para sofrer. Eu nasci.

Sei o que vivi e vivo neste buraco cavado por antecessores. O

futuro já estava comprometido desde o berço. A única

reserva de amenidades foi levada com minha mãe, ela fugiu

com o circo no dia que aprendi andar.

Ainda sinto o toque frio da vida, o beijo da partida, a cortina

de fumaça de charuto, a luz do sorriso cínico do anjo que

cuidou de mim.

Sonhos? Só os da padaria do centro, os outros são

gordurosos demais. Vibro com os olhos da morena que lava a

calçada aqui em frente a janela.

Moro no casebre antigo, herança de meu pai. As paredes são

úmidas e o reboco está caindo dia a dia mais um tanto. Os

tacos, riscados e sem brilho, estão deixando o piso como

boca desdentada e as portas emperram como as janelas de

vidros quebrados.

Hoje, eu queria um abraço. Poderia ser de algum estranho

qualquer.

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37 INSPIRATURAS – Personagem e Paisagem

Na mais completa solidão, completamente sem jeito para

aproximar de qualquer pessoa, sofro.

A noite esculpe mais uma ruga em meu rosto feio. Meus

dedos estão mais rígidos que ontem e minha alma também.

JULENI ANDRADE

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38 INSPIRATURAS – Personagem e Paisagem

O jardineiro e a rosa

Certa vez, diante de uma antiga fábrica abandonada, um

homem simples deparou-se com um graveto jogado no chão.

Comovido com a sorte do objeto, o caminhante recolheu o

galho sequioso e, após retirar as impurezas que o tempo nele

havia depositado, replantou-o numa terra próxima àquele

local.

Foi assim que, com zelo e paciência, o individuo iniciou a sua

sina de todos os dias regar o ramo esquecido. Algumas

pessoas descrentes que diariamente passavam por ali

tentavam desencorajá-lo; viviam aconselhando-o para que ele

desistisse de sua labuta, que era guerra perdida resgatar algo

tão danificado pelo destino. Mas o jardineiro vivia de sonhos.

Secretamente nutria em seu coração a esperança de que o

graveto sobreviveria...

Tomado por um sentimento de afeição e uma inabalável fé, o

homem simples não mais se contentou em apenas molhar a

terra ao redor do ramo que acabou se revelando uma muda

de roseira; feito um humilde servo, o jardineiro, para melhor

proteger a roseira, foi conviver ao lado da planta.

Além de retirar manualmente as ervas daninhas e as pragas

que rondavam o local, o salvador, já dominado pela paixão,

alimentava o ego de sua musa vegetal cantando canções que

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39 INSPIRATURAS – Personagem e Paisagem

ele próprio compunha: semeava cuidados precisos e carinhos

e sobre humanos.

Com o passar dos meses, a roseira reviveu. Novas hastes

surgiram verdes e, entre brotos e espinhos, um minúsculo

botão surgiu. Extasiado, o homem simples se aproximou da

jóia que nascera e, num gesto delicado, estendeu uma de

suas mãos para acariciar-lhe asa pétalas. A roseira porém,

talvez com medo, afastou o botão e agindo rispidamente

com seus rígidos espinhos, feriu profundamente o jardineiro

que lhe resgatara.

Compreensivo e triste, o apaixonado homem respeitou o

fato: jurou para si mesmo que, a partir daquele dia, nunca

mais tentaria afagar sua protegida; simplesmente continuaria

defendendo-a de todos os infortúnios que a vida enviava.

Redobrada a atenção que lhe era prestada, a roseira encheu-

se de vigor. Suas verdes folhas tornaram-se viçosas, seus

galhos e espinhos cresceram fortes, sadios e o único botão

de repente se abriu uma enorme e bela rosa amarela.

Embriagado pelo perfume e feliz por admirar uma flor tão

linda, o jardineiro exausto adormeceu.

Enquanto o trabalhador descansava, aproximou-se um rapaz

desconhecido que, arrebatado pela beleza da rosa amarela,

impetuosamente arrancou a flor do solo e levou-a consigo.

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40 INSPIRATURAS – Personagem e Paisagem

Minutos mais tarde, já acordado, o jardineiro amargou a

ausência de sua bela flor. Ainda desnorteado, pôde avistar

um estranho seguindo cada vez mais distante carregando a

sua rosa. Em choque, não reagiu, não correu.

Silenciosamente chorou. Não por ver a rosa amarela partir...

lágrimas caíram pelo confronto com a melancólica verdade:

sua via- crucis era cultivar amor pelos canteiros da terra e

nunca, nunca dele desfrutar.

Rogério Germani

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41 INSPIRATURAS – Personagem e Paisagem

Garimpo

Jéssica juntava os palitos de fósforos queimados, um por um,

e guardava na bolsa de plástico cor-de-rosa que trazia

atravessada no peito. A cor rosa trazia manchas amareladas,

não só pela sujeira, mas também porque fora achado no lixão

perto do casebre onde morava com a mãe. O irmão

abestalhado ficava horas sentado por ali, olhando às vezes

para Jéssica, esquálida e muito branca, sem falar nada,

nenhum resmungo, o olhar perdido, daqueles que enxergam

mas não veem... Jéssica continuava sua empreitada, juntava

um, dois, três palitos de uma vez só, quando não havia mais

nenhum, a menina de cabelos negros, escorridos, de lábios

finos e dentes separados buscava outros tesouros que só o

lixo poderia trazer... encontrou uma vez uma boneca sem

cabeça, daquelas que falavam, a mãe achava estranho a

boneca ainda falando, embora com um som arrastado, pilha

gasta, sem cabeça, e mexendo os braços. ‘Coisa do demônio’,

dizia. Jéssica ria. Chorou muito quando o irmão arrancou os

braços e as pernas da boneca e colocou no fogo. O cheiro de

plástico doeu fundo em Jéssica. Outra vez, achou uma

revista, na capa rasgada um casal sorrindo. O sorriso da

mulher loira, de olhos azuis e dentes perfeitos ficou

perturbando-lhe o sono. ‘Um dia’, pensava, ‘ terei dentes

assim, brancos e perfeitos...’ Quando cansava de garimpar,

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42 INSPIRATURAS – Personagem e Paisagem

Jéssica corria para cima do morro. De lá, podia ver parte da

mata fechada à esquerda, as folhas verdes brilhando ao

finalzinho de tarde. Alguns telhados, escondidos pelos

arbustos, deixavam na imaginação de Jéssica suas fachadas.

‘Um dia’, pensava, ‘serei eu a dona de um telhado’.

Dhenova

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43 INSPIRATURAS – Personagem e Paisagem

Inspeção

Um tempo inteiro passou antes que me desse conta da

limitação auferida agora. No espaço cinza nada brilha, não há

reflexos, só reflexões...Se o frio vem de dentro ou de fora eu

não sei. Deve ser de fora. As paredes úmidas e malcheirosas

atestam isso; tudo tão pobre e sem o mínimo conforto na

cama de alvenaria com um colchão rasgado e fino, no sujo e

fétido buraco no chão, nas garatujas rabiscadas por mil mãos

em mil anos - rascunho da não vida.

Concentro-me principalmente no pequeno quadrado

gradeado e alto por onde entra, de má vontade, uma luz

também cinza e sei, como jamais soube antes qualquer coisa,

que esta será minha casa por muitos anos. A minha última

casa.

O irônico é que este bem foi o único que eu nunca quis, mas

fiz tudo para merecê-lo.

Marisa Schmidt

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44 INSPIRATURAS – Personagem e Paisagem

Às margens

As águas encontram os cascos escuros dos barcos atracados

às margens do arroio. Fazem redemoinho nas pedras cinza da

murada que o acompanha por grande parte, e estas águas

chegam leves e serenas na pequena bacia formada por areia

e arbustos... apesar da queda brusca do barranco mais

adiante, onde começa a murada, o arroio naquela pequena

bacia só alcança fundura um metro adiante à areia, então se

vê, entremeio ao brilho das pedrinhas coloridas, peixinhos

pequenos fazendo a correria...

Perto dali, bem em frente a uma árvore frondosa, Aurora

senta-se toda manhã, perto das nove horas e fica até perto

das onze, folheando, entretida, livros de poesia, e também de

contos curtos. Na bolsa, um romance que vez por outra relê,

enquanto espera os netos saírem da escola. Hoje teria o dia

leve, procuraria não fazer nada e não sentir-se culpada em

não fazer. Então acordou mais cedo, pegou alguns tesouros,

seus livros, e veio para as margens.

Agora, depois de colocar os óculos, começa a folhear o

primeiro livro, a capa vermelha deveria ser motivo de

curiosidade, mas estranhamente Aurora sente-se dispersiva.

À frente, há não muito tempo, uma moça de longos cabelos

castanhos parara à margem, e ficara olhando a correnteza.

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45 INSPIRATURAS – Personagem e Paisagem

Naquele momento, a ousada menina tira os sapatos, e senta-

se sobre a murada, coloca os pés para fora... Aurora está

paralisada, ofegante, percebe o perigo que corre a moça de

cabelos castanhos. A moça, no entanto, está sorrindo e abre

os braços. Quando Aurora pensa em gritar, a voz emudece ao

ver a expressão de felicidade estampada naquela face... algo

no íntimo de Aurora encolhe-se, abre um buraco, e ela olha

para seus tesouros, todos colocados estrategicamente ao seu

redor, sua fuga, seu momento de ilusão, todo o seu mundo e

sorri, um sorriso tranquilo...

A moça salta para fora da murada, cravando os pés na areia.

Pega os sapatos e sai caminhando pela rua... Aurora, então,

vai devagar até o muro de pedras cinza e também olha à

correnteza... Aurora também tira os sapatos... Aurora abre os

braços... Aurora sorri... Aurora mergulha os pés na água.

Aurora renasce ali.

Dhenova

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46 INSPIRATURAS – Personagem e Paisagem

Um sorriso

Da sacada podem ser vistos os galhos das árvores frondosas

sendo castigados pelo vento frio. A mulher abre a janela,

respingos no rosto marcam a maquiagem cara, e os brincos

de ouro. Mas ela parece não se importar, sorri para o céu...

uma gota mais safada escorre peito adentro, invade o V,

alcança o íntimo. E o sorriso se abre, esplendoroso, apesar de

tudo estar cinza ao redor. No entanto, de repente, a luz se

apaga... volta logo após... a mulher olha para a mão

esquerda, a marca branca da aliança congela o sorriso...

apenas o brilho dos olhos perde um pouco o calor...

desenhado nos lábios o mesmo traçado, ainda que as

lágrimas escorram aflitas...

Dhenova

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47 INSPIRATURAS – Personagem e Paisagem

Minha vela

Sou o desamparado andarilho cujo olho só vê o verde,

quando sigo não tenho medo e apenas me permito ser

levado. Abraçado, lambido, beliscado pelo sal, queimado com

suavidade mas quando retorno, vejo o deserto, escuto os

assovios do intrépido vento, e o vejo me abandonar mais uma

vez até a próxima manhã. Sozinho na noite sinto frio, minhas

velas amarradas querem voar contigo. A rede solitária chora

comigo, vazia da gestação de peixes temporários ela só

aguarda. E por mais bela que seja a paisagem, choramos

nossa solidão até o sol raiar.

Márcia Poesia de Sá

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48 INSPIRATURAS – Personagem e Paisagem

Coletânea extraída dos fóruns da

NOP Nova Ordem da Poesia

www.novaordemdapoesia.com

www.inspiraturas.com