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HETEROTOPIAS

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FACULDADE 7 DE SETEMBRORua Maximiano da Fonseca, 1395-

Bairro Engº Luciano CavalcanteCEP: 60.811-024 - Fortaleza-CE

Home page: www.fa7.edu.br

Diretor Geral:Ednilton Gomes de Soárez

Diretor Acadêmico:Ednilo Gomes de Soárez

Vice-Diretor Acadêmico:Adelmir de Menezes Jucá

Secretária Geral:Fani Weinschenker de Soárez

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HETEROTOPIAS

Revista de divulgação cultural e científica dos cursosde graduação e pós-graduação em comunicação-FA7

Fortaleza – CEVol. 01, novembro de 2005

Primórdios do telejornalismo no Ceará ......................... 07Alberto Perdigão

Entre informações e palavras de ordem ........................ 47Tiago Seixas Themudo

Comunicação e novas tecnologias (I parte) ................. 55Ismael Furtado

Comunicação e mídia contemporânea .......................... 85 João Paulo Ribeiro

Ironia e comunicação ........................................................... 111Márcio Acselrad

Etnocentrismo e cultura popular ...................................... 129Ismar Capistrano

Fotografia e Etnografia ....................................................... 145Jarí Vieira

Imagens ..................................................................................... 161Fátima Medina

A centralidade do centro de Fortaleza ......................... 189Ricardo Paiva

S U M Á R I OS U M Á R I O

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Heterotopias / Faculdade 7 de Setembro. – v.1, 2005 –Fortaleza: Book editora, 2005.

v. 1

Publicação anualISSN: 1980-6485

1. Periódico científico e cultural. 2. Comunicação.3. Faculdade 7 de Setembro – FA7.

CDD 302.205

EditorEditorEditorEditorEditor:

Tiago Seixas Themudo

Coordenação Editorial:Coordenação Editorial:Coordenação Editorial:Coordenação Editorial:Coordenação Editorial:

Raíssa Emir Maia

Conselho Editorial:Conselho Editorial:Conselho Editorial:Conselho Editorial:Conselho Editorial:

Ismael Furtado (FA7)Elisângela Teixeira (FA7)

Márcio Ascelrad (FA7)Lucas Melo (FA7)

Ednilo Soárez (FA7)

Conselho Externo:Conselho Externo:Conselho Externo:Conselho Externo:Conselho Externo:

Paulo Oneto (UECE)Paulo Germano Barroso de Albuquerque (LEPS)

Sylvio Gadelha (UFC)Alexandre Barbalho (UECE)

Dilmar Miranda (UFC)Rogério da Costa (PUC-SP)

Maria Cristina Franco Feraz (UERJ)Cristiana Tejo (UFPE)

Conselho Internacional:Conselho Internacional:Conselho Internacional:Conselho Internacional:Conselho Internacional:

Amalia Boyer (Universidad Del Norte – Colombia)

RevisãoRevisãoRevisãoRevisãoRevisão:::::

Ismael Furtado

Capa:Capa:Capa:Capa:Capa:

João Paulo Ribeiro

Editoração Eletrônica:Editoração Eletrônica:Editoração Eletrônica:Editoração Eletrônica:Editoração Eletrônica:

Edwaldo Junior

Projeto Gráfico:Projeto Gráfico:Projeto Gráfico:Projeto Gráfico:Projeto Gráfico:

Tiragem: 500 exemplares

©FA7 – Fortaleza, 2005

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E D I T O R I A L○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○

Dando prosseguimento à política editorial daFaculdade 7 de Setembro, os cursos de graduação epós-graduação em comunicação lançam o primeirovolume de sua revista de divulgação cultural ecientífica Heterotopias, cujo objetivo é funcionar comoum espaço de produção e divulgação de pesquisasde professores e alunos da instituição, assim comode seus parceiros institucionais.

Tem sido particularmente embaraçoso paraos cursos de comunicação social conviverem como diagnóstico presente que aponta para umcrescente monopólio dos meios de comunicação porcorporações comerciais. Isso tem necessariamenteimplicado numa também crescente perda deautonomia dos produtores e divulgadores de“informações”, matéria-prima de toda sociedadedemocrática, na medida em que barra tudo aquiloque é desprovido de valor comercial imediato, ouque possa vir a prejudicar o andamento dosnegócios – mesmo que por trás haja crimes ecoló-gicos ou contra os direitos constitucionais. Sendoassim, tem se tornado cada vez mais urgente multi-plicar os ambientes autônomos de produção edivulgação de reflexão sobre o mundo contempo-râneo, sobre os impactos presentes e futuros dosmeios de comunicação no mundo.

Nesse sentido, a revista Heterotopias nasce coma vocação para ser um desses espaços, marcadasobretudo pela vontade de diversidade, de heteroge-neidade dos pontos de vista reunidos. Mais do quetudo, gostaríamos de criar condições para queprofessores e alunos encontrassem um espaço parapensamentos mil, apto a suportar movimentos à di-reita e à esquerda, em ziguezague, pessimismos eotimismos, tristezas e alegrias; heterotopias.

O Editor

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Heterotopias – Vol. 01

PRIMÓRDIOS DOPRIMÓRDIOS DOPRIMÓRDIOS DOPRIMÓRDIOS DOPRIMÓRDIOS DOTELEJORNALISMO NO CEARÁTELEJORNALISMO NO CEARÁTELEJORNALISMO NO CEARÁTELEJORNALISMO NO CEARÁTELEJORNALISMO NO CEARÁ

1 Jornalista e professor do curso de Comunicação Social – FA7.

Alberto Magno Perdigão Silveira1 (organizador), Allison daSilva Ambrosio, Amanda Dias Capistrano, Denise Gurgel doAmaral Sampaio, Eduardo Téssio Câmara Carrá, IndyraGonçalves Tomaz, João Bosco Felix Camilo, Kariely ArrudaMedeiros, Larissa da Silva Viegas, Leilane Viana Soares, LuizaEmeline Machado Barbosa, Magnólia Maria Paiva, MárioJorge Teles de Sousa Neto, Miguel Martins de Soares, PatríciaHolanda Nielsen, Paula Cleidiany Queiroz Gondim, PauloSandro de Oliveira Lopes, Pedro Alves dos Santos Neto,Renata Ribeiro Maciel Lopes e Sérgio Paiva de Alencar.

ResumoResumoResumoResumoResumo – Entrevistas coletivas de Narcélio Limaverde eGilmar de Carvalho, realizadas por alunos da FaculdadeSete de Setembro, como prática da disciplina Telejor-nalismo 1. Nessas entrevistas foram explorados não só aorigem do jornalismo no Ceará, mas também problemasrelacionados à autonomia da imprensa nos dias atuais.

Palavras-chave:Palavras-chave:Palavras-chave:Palavras-chave:Palavras-chave: imprensa, mídia, comunicação.

AbstractAbstractAbstractAbstractAbstract – Group interviews with Narcélio Limaverdeand Gilmar de Carvalho, made by the Faculdade Setede Setembro students as practical exercise for thecourse of TV Journalism I. These interviews deal withthe origin of journalism, but also with problems relatedto the autonomy of press nowadays.

Key Words:Key Words:Key Words:Key Words:Key Words: press, media, communication.

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Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais e emComunicação Social, ambos pela Universidade Federaldo Ceará-UFC, Gilmar de Carvalho é Mestre em HistóriaSocial, também pela UFC, Mestre em Comunicação Socialpela Universidade Metodista de São Paulo e Doutor emComunicação e Semiótica pela Pontifícia UniversidadeCatólica-PUC de São Paulo. Gilmar de Carvalho nasceuem Sobral, no Ceará, de onde cedo veio estudar nacapital, Fortaleza, cidade onde conheceu televisão como“televizinho”, depois como aluno curioso de um colégioque era vizinho da primeira estação de TV da capital.Jornalista, publicitário, dramaturgo, professor univer-sitário e telespectador crítico, Gilmar de Carvalho é hojeum dos mais inquietos e produtivos cientistas sociaisdo país, com larga trajetória dedicada a conhecer einterpretar as expressões da cultura tradicional-populare seus diálogos com a comunicação de massa.

Entre muitas outras publicações, é de autoriade Gilmar de Carvalho o livro A Televisão no Ceará:consumismo, lazer e indústria cultural, arrolado nabibliografia da disciplina Telejornalismo I, daFaculdade 7 de Setembro, e utilizado amiúde emsala de aula. Trata-se da primeira pesquisa sobre apioneira TV Ceará (Canal 2, Rede Tupi), realizadaem meados da década dos anos 80, nos arquivosdos jornais de Fortaleza, compreendendo o períododesde um ano antes (1959) de sua inauguração atéa chegada do vídeo tape (1966), onde se vêem algu-mas das mais iconográficas fotografias da época, commuitos dos emblemáticos tele-atores, anunciadorese noticiaristas da época. “Ponto de partida para novaspesquisas sobre um episódio decisivo para a comu-nicação no Ceará, marco e referência da informação,da publicidade e do entretenimento”, como defineo autor no prefácio da segunda edição da obra,datada de 2004.

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Na entrevista coletiva que concedeu na noitede 5 de maio de 2006, no estúdio de rádio daFaculdade, Gilmar de Carvalho falou durante umahora sobre os antecedentes da televisão no Ceará,seu advento e as transformações que causou nasociedade e no mercado – mesmo sem se dar tantoconta disso. Foi uma aula impecável de históriacontemporânea de Fortaleza, um passeio pela nova– a avassaladora – programação cultural imposta aleitores de jornais e revistas, ouvintes de rádio efreqüentadores dos cinemas; aos donos de lojas eocupantes de cargos eletivos. Até que, apenas seisanos depois, uma nova ordem de relações sociais ede correlação de forças é colocada a tantos novosatores, a partir do vídeo tape, que transferiu para ametrópole – Rio de Janeiro e São Paulo – o monopólioda criação televisiva e que relegou ao cearense àcondição reles e passiva de telespectador.

Enquanto Gilmar de Carvalho preferiu dispen-sar preâmbulos introdutórios à coletiva, indo dire-tamente às perguntas dos alunos entrevistadores,Narcélio Limaverde, convidado da manhã daquelamesma sexta-feira, fez uma longa e divertida fala,antes de passar a responder às perguntas. Falou coma autoridade de contar com mais de meio século devivências no rádio, na televisão, em jornal e asses-soria de comunicação, e com a propriedade de tersido o primeiro apresentador de telejornal no Estado.Limaverde, que não chegou a concluir um curso denível superior – e que, portanto, estaria livre de pos-síveis castrações acadêmicas –, falou ora comoprotagonista, ora como “testemunha ocular daHistória”, parafraseando o slogan de um famosonoticioso, da época da Fortaleza de meio milhão dehabitantes, os quais ouviam o mundo por umaparelho de rádio em cada sala de estar e interpre-tavam a realidade no balanço de cadeiras nas calçadas.

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Narcélio Limaverde contou que, inicialmente,saía de casa para o trabalho de ônibus a contar, notrajeto, o avanço no número de antenas de TV insta-ladas nos telhados. Até que experimentaria serfamoso como um artista, tamanho era o número deaparelhos que logo chegaram ao comércio e àsmesmas salas de estar, num boom de consumo e denovos comportamentos nunca antes visto. Relatandoo dia-a-dia da emissora e as diferenças do novo meiode comunicação em relação à PRE-9 (Ceará RádioClube), explicou o que era uma estrovenga, criadapara apressar a veiculação da notícia-imagem, nummisto de criatividade e ousadia em que se fundou otelejornalismo cearense – e tantas outras atividadesda nova televisão. Estrovenga é “parecida assim aum garajau”2, tentou ser didático, para a gargalhadade futuros colegas jornalistas, que conheceramtelejornais já a cores, com apresentadores lendonotícias no teleprompter.

As perguntas feitas a Gilmar de Carvalho e aNarcélio Limaverde foram elaboradas em sala daaula. O processo de preparação para uma entrevistacoletiva começou com o conhecimento do tema,depois com a exploração do perfil do entrevistado,finalmente a compreensão de algumas regras quepodem ser decisivas para o bom desempenho dorepórter em situações em que vários outros repór-teres dividem o mesmo tempo, espaço e objetivo.Para cada encontro, um dos alunos ficou responsávelem convidar o entrevistado e produzir a coletiva,quanto ao dia, hora, local, equipamentos de gravaçãoem áudio e vídeo, etc., enquanto outros dois respon-sabilizaram-se pela transcrição do material gravado.

2 Garajau. Bras. N. E. Aparelho onde se conduz louça de barro ou peixe seco,como em RN: duas peças chatas e quadrangulares, com uns 65 cm decomprimento, cada uma formada por quatro varas presas pelas extremidades.

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O exercício valeu como verificação parcial de apren-dizagem, em que foram levadas em conta, para efeitode nota, a quantidade e a qualidade da participação decada um no projeto.

Narcélio LimaverdeNarcélio LimaverdeNarcélio LimaverdeNarcélio LimaverdeNarcélio Limaverde – A primeira vez que eu tomeiconhecimento em televisão foi há muitos anosatrás quando a emissora de rádio de Fortaleza, aCeará Rádio Clube, onde trabalhava meu pai (JoséLimaverde) – e eu nem sonhava em chegar norádio –, ela anunciou que ia fazer uma experiênciade televisão, que todo mundo ficasse preparado,que à uma hora da tarde seria feita uma expe-riência de televisão.

A cidade toda se mobilizou. Imagine vocêsque, na minha casa, meu pai – era da rádio, daCeará Rádio Clube – também providenciou umlençol pra colocar atrás do rádio, onde seria feitaa primeira experiência de televisão. Chegou ahora, uma hora da tarde, e começaram a serveiculados uns ruídos estranhos, diziam queestavam ligando o equipamento de televisão, etodo mundo em casa no suspense, querendo sabercomo seria aquela experiência usando as costasde um rádio e um lençol, que tinha que ser branco,infinitamente branco. Até que o speaker – naépoca era o locutor –, o chamado speaker disse:“há qualquer coisa aqui nesse equipamento, estáescrito primeiro de abril.” Foi a primeira vez quese pegou primeiro de abril em Fortaleza numaemissora de rádio e pegou uma cidade inteirinha,para mostrar que teria televisão como primeirode abril.

A segunda vez foi o seguinte: foi realizado umteste de circuito fechado a partir do Edifício Pajeú,que era onde funcionava a Ceará Rádio Clube, alina rua Sena Madureira, perto onde foi o ServiçoTelefônico de Fortaleza, hoje a Telemar. Então colo-

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caram as câmeras no auditório do edifício Pajeú,onde funcionava a Ceará Rádio Clube, e algunsreceptores de televisão, alguns televisores, namarquise do prédio Pajeú e na marquise daPrefeitura de Fortaleza, na Praça dos Voluntários.Nesse dia foi feita a primeira experiência de televisãoem circuito fechado aqui em Fortaleza – me desculpe,mas eu não lembro a data, a data (*) me foge àmemória, me foge à lembrança.

Depois disso, os Diários Associados, que eramproprietários da Ceará Rádio Clube, iniciaram umacampanha de venda de ações. A cidade todaparticipou da compra de ações, cujo resultado seriaa instalação da primeira emissora de televisão emFortaleza, a TV Ceará, Canal 2. E nós todos radia-listas aguardávamos ansiosos essa oportunidadede poder trabalhar numa emissora de televisão.Já havia no Rio (de Janeiro), em Recife, Belo Hori-zonte, Porto Alegre, mas Fortaleza seria uma dasprimeiras capitais do Nordeste a ter uma emis-sora de televisão. E nós da Ceará Rádio Clube achá-vamos que seríamos os escolhidos, porque já per-tencíamos à empresa.

Aí, aconteceu o seguinte: começou a caminhadapara a construção. A primeira emissora de televisãofoi onde hoje funciona a holding do grupo Butano(Edson Queiroz), ali ao lado da TV Verdes Mares. Alifoi construído um prédio e nós acompanhamos ainstalação da torre, metro por metro, com muitaemoção. Depois que o prédio terminou e a torre estavajá em ponto de bala, para receber e transmitir asimagens e sons da primeira televisão do Ceará come-çou a seleção daqueles que iriam trabalhar. Eu eraum locutor de notícias da Ceará Rádio Clube, bemjovem ainda, cabeludo, né...? E fui chamado parafazer o teste com Péricles Leal. Péricles Leal foium diretor de TV, da TV Tupi do Rio de Janeiro,

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que veio pra cá especialmente para implantar aTV Ceará, Canal 2. Ele me escolheu pra ser orepórter cruzeiro. O repórter cruzeiro era, comose diz hoje em dia, guardada a relatividade, orepórter nacional em termos locais e estaduais, eo nome Cruzeiro era porque ele era patrocinadopela loja A Cruzeiro, uma importante loja deFortaleza. Eu fui escolhido e fui a primeira imagemde notícias da televisão da TV Ceará, Canal 2.

Antes, estagiei na TV Rádio Clube do Recife,onde aprendi a fazer a televisão, a ser um apresen-tador de televisão, como também, já que eu era as-sessor do departamento comercial, aprendertambém a redigir para televisão. E há um detalheinteressante – eu não sei se vocês todos já viram umscript de televisão, já viram né...? Ele é dividido aomeio. Do lado esquerdo, ficam as informações paraa imagem, do lado direito é o som – e creio quemuitos não sabem, e eu aprendi isso antes decomeçar na televisão, que aquele lado do áudio temnove centímetros, nove centímetros equivalem a doissegundos na televisão, com isso a gente sabia o temponormal de cada emissão do Repórter Cruzeiro queeu apresentava, do Correio do Ceará na TV, que eraapresentado por outros companheiros.

A diferença que eu acho entre o apresentadorde rádio e da televisão..., eu sempre fui muito maisde rádio do que de televisão. O apresentador derádio, ele imposta a voz, se eu tivesse conversandono rádio eu diria (empostando a voz e falandocompassadamente): “Eu estou aqui participandode uma reunião com alunos da FA7, alunos doprofessor Alberto Perdigão”. Mas, se eu façotelevisão, eu faço assim, oh (coloquialmente,imprimindo mais ritmo): “Eu me encontro nesseinstante aqui conversando com vocês, é muito

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importante para mim, transmitir a vocês tudo oque eu sei com referência à televisão no Ceará”.

Era tudo muito difícil no início. Vocês ima-ginem que nós não tínhamos ar condicionado, nósnão podíamos usar ventiladores porque, alegavamos técnicos, podia prejudicar a emissão do som, obarulho do ventilador criava problemas. E uma coisaa mais: a iluminação era fortíssima, eram lâmpadasde mil velas ou mais, umas lâmpadas antigas,refletores que chamávamos de panelões. E muitasvezes, por exemplo, nós apresentadores de notícias,nós não fazíamos maquiagem, porque os homensnaquele tempo achavam que maquiagem não estavacorreto, era frescura, né? Eu não achava nada demais,mas como não havia maquiador, eu não fazia amaquiagem. Então os espetáculos de teleteatro eramao vivo e as moças e os rapazes, os tele-atores, tinhamque, de vez em quando, sair de cena ou aproveitar omomento do intervalo, porque a iluminação derretiatoda a maquiagem.

Não havia essa facilidade de hoje em dia, degravadores, gravadores portáteis, o que não haviachegado, no começo, só chegou muito depois. Eramimensos gravadores de vídeo que não ofereciamcondições para uma reportagem fora do estúdio,nem a grande facilidade de se ter equipamentos emicroondas para transmitir o som do local ondese encontrava uma reportagem. A ilustração dosnoticiários limitava-se a slides, porque tambémhavia um produtor de slides que hoje em diadesapareceu, não se usa mais de forma alguma. Enós encontramos na época uma solução, que foramas revistas de onde a gente recortava fotos deautoridades, essas fotos eram pregadas emflanelógrafos dentro do estúdio e, quando se dizia,por exemplo, na época, falava sobre o governador

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do Estado, então aparecia o retrato dele que estavapregado no flanelógrafo.

As reportagens-filme eram raras, não haviade forma alguma porque, principalmente, erammuito caras e não se dava esse valor. E hoje emdia, com a maior facilidade, você reporta o queesta acontecendo na cidade e, além disso, guardanum arquivo, o que é muito importante. Imaginevocês que não há um arquivo sequer do queacontecia há alguns anos atrás, no tempo docomeço da televisão. Hoje em dia, eu acho que apartir da TV Verdes Mares, 1970, o arquivo daemissora deve ter... Outro dia eu vi uma emissãodo jornal, não foi o jornal do (Alberto) Perdigão(Bom Dia Ceará), foi o jornal da noite (Jornal doDez), da Cíntia (Lima) (*), mostrando como é quese fazia televisão e onde é que guardavam asreportagens feitas algum tempo atrás. A ilustraçãocomeçou a melhorar, quando houve o início defilmagens em 16 milímetros e houve um caso muitointeressante: o Polion Lemos, que hoje em dia édiretor de filmagens da TV Verdes Mares, eleinventou um negócio que um companheiro nossoda época, o Almir Pedreira, grande nome do rádio,denominava de estrovenga – era qualquer coisacomplicada que se fazia. E o Polion inventou umaestrovenga parecida assim um garajau - devem sernomes que vocês desconhecem, né? E ele fazia oseguinte, era algo, como dizer, até parecido comesta mesa e menor tamanho naturalmente, eletrazia o filme da rua, tirava da filmadora e porbaixo dessa estrovenga havia três ou quatroventiladores, esses ventiladores serviam parasecar o filme, que poderia ser exibido trinta ouquarenta minutos depois do que estava aconte-cendo, dependendo do local – se fosse mais dis-tante levava muito mais, porque era o tempo devir até chegar na televisão.

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Agora, havia algo que se usava muito na tele-visão – um dia, eu estava acompanhando na TVUnião, onde existe um programa só sobre isso –que no começo da televisão acontecia em Fortaleza.Eram os casamentos, que eram todos filmados eexibidos no Repórter Cruzeiro, no noticiário, e erammuito importantes aqueles casais que tinham ofilme exibido, porque custava dinheiro para serexibido. E outra coisa: nós não tínhamos “moviola”(moviola era um equipamento de cinema quepermitia escrever um texto e saber, exatamenteonde é que ele vai aparecer para ele ficar de acordocom a imagem). A gente fazia o seguinte: a gente iaassistir ao filme no departamento de cinema e ficavaanotando os nomes: um homem, uma mulher, umcasal, para depois escrever o texto do apresentador.Quando o redator era o próprio apresentador, oapresentador tinha visto o filme antes, podia acres-centar alguma coisa à medida que o casamento iasendo exibido.

A televisão foi muito importante, a chegadadela, embora nem todo mundo tivesse aparelho detelevisão. Pra você ter uma idéia, eu fui o primeirohomem de televisão a fazer noticiário, mas na minhacasa não tinha televisor, minha mulher era televi-zinha, algo que inventaram na época. Quem tinhaum televisor lá na esquina, ela ia me ver na televisãona esquina. E uma outra coisa: eu, artista da televisão,diferente de hoje, do Alberto Perdigão, eu moravano Monte Castelo, na Rua Padre Anchieta, ia deônibus até a Praça José de Alencar, pegava outroônibus, ali ao lado do Palácio da Luz, pra chegar àtelevisão. Porque nós artistas, nós ainda não éramostão assediados naquele tempo, porque tambémpoucas pessoas viam a televisão.

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Há outras coisas interessantes que aconte-ceram comigo. Era o seguinte: no começo da tele-visão, havia os fatos sociais, as notícias, sendo quea primeira notícia, que eu disse assim, polêmica,na televisão, foi algo que aconteceu com umlaboratório, em Fortaleza. Estavam acontecendocasos de raiva humana e esse laboratório era oúnico na época que vacinava as pessoas. Entãoaconteceu o seguinte: pessoas que foram vacinadascontraíram a raiva. Foi um negócio muito sérioque aconteceu em Fortaleza e foi destaque nessemeu noticiário no Repórter Cruzeiro, emboralutando contra o dono do laboratório que, naépoca das ações, ele tinha comprado ação e achavaque ele tinha comprado ação da televisão...ninguém podia, ninguém iria criticá-lo.

Hoje em dia deve existir muita gente que nãoadmite que seja criticado, porque é importante nacidade. Uma outra coisa: um dia apareceu natelevisão uma pessoa querendo fazer uma recla-mação e, como eu era o redator, eu mesmo escrevia redação sem consultar o diretor da televisão. Eletrouxe um pão com uma ponta de cigarro dentrodo pão, aí então, no momento, eu estava apresen-tando o noticiário e disse: “Senhores telespec-tadores, vejam o senhor fulano de tal,” – o nomedele, é claro, não lembro – “comprou um pão napadaria da esquina e vinha esse cigarro dentro”.Rapaz, isso foi terrível! Quando eu saí, o diretor detelevisão, técnico de áudio, numa linguagem queele era costumeiro em dizer, quando ele queriareclamar de alguém, ele disse: “Chefinho, não seafrescalhe tanto, não!” Ele queria dizer que é muitoimportante pra quem faz televisão, ou mesmo rádio,que eu não deveria ter sido tão natural naquelemomento em que fazia aquela reclamação.

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A televisão melhorou, consideravelmente,em tudo e por tudo. Em técnica, em pessoal, apartir da chegada da TV Verdes Mares. Não éporque eu era da TV Ceará e passei para a TVVerdes Mares, não. Eu fui somar com eles que jáestavam lá. Porque o dono dela, o Edson Queiroz,era muito interessado, ele foi que começou acomprar um sem número de equipamentos, com-binando inclusive ser a TV Verdes Mares a pri-meira emissora a ter imagens coloridas, muitoantes que muitas emissoras de Fortaleza.

Assim foi a vida no inicio da televisão. Muitodifícil, sem ter celular para se comunicar umareportagem com o departamento de notícias, semter facilidades para filmar, para gravar, para editar.Outro equipamento que não havia era oequipamento para editar, não havia a ilha de edição,isso foi chegando à medida que foi crescendo oCanal 10, a televisão Verdes Mares. Havia umamentalidade muito boa das pessoas que dirigiam eque eram redatoras de televisão. Eles eramjornalistas, eram radialistas e se interessavam portudo o que acontecia na cidade, mas tudo esbarravanas dificuldades técnicas que existiam, mesmo assimnós divulgamos muitas informações importantesnaquele começo de televisão.

Indyra GonçalvesIndyra GonçalvesIndyra GonçalvesIndyra GonçalvesIndyra Gonçalves – Que empresas formavam osDiários Associados naquela época, e como era arelação entre eles?Narcélio LimaverdeNarcélio LimaverdeNarcélio LimaverdeNarcélio LimaverdeNarcélio Limaverde – Os Diários, rádios e tele-visão, Associados, aqui em Fortaleza, eram a CearáRádio Clube, a PRE-9, que hoje em dia existe; aTV Ceará, Canal 2; a Rádio Araripe do Crato(município do Ceará); os jornais Correio do Cearáe Unitário; e, esse é interessante: uma fazendaque criava bodes em Morada Nova, por pedido

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de Assis Chateaubriand, que foi o fundador dosAssociados e era um homem que se interessavamuito pelas coisas regionais. Agora, em todo oBrasil havia emissora de rádio e televisão asso-ciados. A Tupi do Rio, a Tupi de São Paulo, Itaco-lomy em Belo Horizonte, a TV Rádio Clube dePernambuco, a TV Baré no Pará, em Belém, e aTV, não estou lembrado, do Rio Grande do Sul,como era o nome dela...? Era como, era como umaTV Globo daquele tempo. Infelizmente, faltoudizer a pouco, a TV Verdes Mares foi inauguradae pouco tempo depois (*) foi fechada a TV Ceará,Canal 2 pelo governo (*), alegando dívidas ououtros problemas semelhantes.

Paulo Sandro OliveiraPaulo Sandro OliveiraPaulo Sandro OliveiraPaulo Sandro OliveiraPaulo Sandro Oliveira – Que grandes eventostiveram a cobertura da televisão?Narcélio LimaverdeNarcélio LimaverdeNarcélio LimaverdeNarcélio LimaverdeNarcélio Limaverde – Para início, eu lembro algoque era normal, por incrível que pareça, a TVCeará, Canal 2, começou com equipamento detransmissão externa, mas que só se dedicava atransmitir os jogos de futebol desse tempo, noEstádio Presidente Vargas, inclusive com patro-cínio. Se eu não me engano, era Bozzano o patroci-nador. Agora os fatos jornalísticos: um dos maisimportantes foi o desastre que vitimou o Presi-dente Humberto de Alencar Castelo Branco, de-sastre que aconteceu ali nas imediações do Mon-dubim, ali onde hoje tem a CHESF. Ali logo portrás caiu o avião em que ele vinha de Quixadá.Ele morreu mais outros passageiros e a televisãochegou a filmar os destroços do avião e a chegadado corpo no Hospital Geral de Fortaleza que, porsinal, ficava bem próximo da TV Ceará. Foi o fatomais importante em termos jornalísticos queaconteceu na TV Ceará, Canal 2, e que eu me re-corde no momento.

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Primórdios do telejornalismo no Ceará – Alberto Perdigão

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Paulo SandroPaulo SandroPaulo SandroPaulo SandroPaulo Sandro – Isso então teve uma repercussãonacional, essas imagens?Narcélio LimaverdeNarcélio LimaverdeNarcélio LimaverdeNarcélio LimaverdeNarcélio Limaverde – Exatamente, inclusiveforam copias das reportagens para a TV Tupi noRio de Janeiro.

Eduardo CarráEduardo CarráEduardo CarráEduardo CarráEduardo Carrá – Como era organizado o depar-tamento de telejornalismo? Quem fazia o que ládentro?Narcélio LimaverdeNarcélio LimaverdeNarcélio LimaverdeNarcélio LimaverdeNarcélio Limaverde – O telejornalismo tinha ochefe de telejornalismo. Eu posso citar nomes? Naépoca, era o J. Ciro Saraiva; primeiro foi o LucianoDiógenes. O Luciano Diógenes hoje é dito ícone datelevisão no Ceará. O J. Ciro Saraiva não trabalhamais no rádio, no jornal e nem em televisão. Haviao cinegrafista, mais os apresentadores, que muitasvezes eram os próprios redatores. Mas era umdepartamento, isso se você comparar hoje em diacom as atuais emissoras de televisão. Tinha nomáximo cinco funcionários.

Miguel MartinsMiguel MartinsMiguel MartinsMiguel MartinsMiguel Martins – Como era o relacionamentode Assis Chateubriand com o telejornalismo daTV Ceará?Narcélio LimaverdeNarcélio LimaverdeNarcélio LimaverdeNarcélio LimaverdeNarcélio Limaverde – Ele praticamente não entravaem contato aqui não. Ele vivia muito mais no Rio eem São Paulo. Em determinado momento, foiEmbaixador do Brasil em Londres. Ele vivia muitofora. Para se ter uma idéia, uma vez anunciaramque o Chateaubriand vinha a Fortaleza. Então, aCeará Rádio Clube funcionava ali no Edifício Pajeú,no segundo, terceiro andares. Então, colocaram atéum tapete. Ele chegou, abriu a porta do elevador,olhou e disse assim: “Dou por visto” e foi embora.Mas deixou uma conta pra pagarem. Ele vinha comuma cantora ao lado dele e deixou um colar, numadas relojoarias em Fortaleza, para a Ceará RádioClube pagar.

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Pedro AlvesPedro AlvesPedro AlvesPedro AlvesPedro Alves – Os apresentadores eram reconhe-cidos nas ruas, eram idolatrados como os artistas?Narcélio LimaverdeNarcélio LimaverdeNarcélio LimaverdeNarcélio LimaverdeNarcélio Limaverde – É arriscado eu ter que dizerque eu era um deles, né? Eu fazia o Repórter Crueiro,o Edson Martins fazia o Correio Ceará na TV, oAderson Braz também. Edson já morreu, o Adersonainda vive (*) e eu estou lutando aqui e teimando,né? Os outros nomes seriam esses que eu já citei,como redatores e dirigentes do telejornalismo, masera pequeno o cast. Os repórteres, eu confesso avocê, que às vezes até a gente servia de repórter.Eu cheguei a um determinado momento a sair nasruas, quando chegou o primeiro portátil de marcaGeloso, eu sai nas ruas. Eu e o Polion (Lemos), queera o homem que filmava, para mostrar os defeitosda cidade de Fortaleza, pedindo providencia àsautoridades. E é bom que eu diga, os mesmos defei-tos que continuam hoje em dia.

O rádio era uma escada natural para se chegarà televisão. Mas, na época, apareceram aqui muitosoutros profissionais vindos de Pernambuco, vindosda Bahia, atraídos pela televisão do Ceará, emboralá eles também tivessem emissoras de televisão.Muitos preferiram vir pra cá. Agora, a seleção erao seguinte: era um teste de imagem, e mesmo sefosse já um profissional experiente em comuni-cação, em falar, também fazia essa comunicação.Mas era muito fechado na época, não era tão fácila pessoa entrar na televisão.

Existia a autocensura, hoje ainda existe. Há,muitas vezes, a autocensura. É um bom censo quea pessoa tem. Se não se é dono da emissora ondese trabalha, como é que a gente vai impor as idéiasda gente? Se a gente vai impor a idéia, a gente saie diz “não fico mais aqui não”. Mas há algo muito

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interessante sobre censura. Houve um dia, o LustosaJosé da Costa, um nome que eu acho que vocês jádevem ter ouvido falar, ele fazia um programa naTV Ceará, era Política Quase Sempre. No dia emque a censura o proibiu, ainda não era época de64, era muito antes de 64, ele, ao invés de levar umentrevistado, ele fez um programa com receitas ebolo e a censura não compreendeu. Vocês compre-enderam, né? Alias há uma entrevista muito curiosado Lustosa.

É o seguinte: ele foi entrevistar o PadrePalhano. Padre José Palhano de Sabóia era deSobral. Era um homem muito conhecido aqui emFortaleza e no Ceará. Era piloto também de aviãoe as mulheres diziam que era um homem muitobonito. Então, o Lustosa da Costa, quando abriuo programa, disse: “Padre Palhano, eu tenho quefazer está pergunta pro senhor”, ele disse: “Podefazer”, ele disse: “Tem uma senhora aqui pergun-tando se o senhor namora.” Aí ele disse: “Namoro,sim, com a mãe da perguntadora”. Naquele tem-po, Padre não namorava, né? De jeito nenhum! E,se namorava, ninguém sabia.

Miguel MartinsMiguel MartinsMiguel MartinsMiguel MartinsMiguel Martins – Narcélio, o telejornalismo daépoca era muito influente na vida das pessoas, jáque existiam poucos aparelhos de TV?Narcélio LimaverdeNarcélio LimaverdeNarcélio LimaverdeNarcélio LimaverdeNarcélio Limaverde – Eles eram poucos no começo,foi crescendo, apareceram as lojas que vendiam àprestação – no começo não tinha, tinha que secomprar à vista –, como está acontecendo agoracom essas televisões grandes, home theater. E,então, no começo era difícil. Depois, não. Foificando, foi aumentando, aumentando, e eu quandosaía de casa de ônibus já ia olhando nos telhadosdas casas onde é que tinha antena de televisão. E

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aos poucos ia notando, e ia sabendo, que os televi-sores iam aumentando. Com isso a gente começou,também, a ter uma maior penetração junto à cidade.

Houve determinado momento que as campa-nhas políticas eram feitas na televisão. Não essascampanhas que são feitas por partidos, mas eramos candidatos, que podiam, que tinham dinheiro,eles contratavam a televisão – porque eles podiamcontratar e se apresentar pedindo votos. Houve atéum caso de um candidato, Carlos Jereissati, ele eracandidato a Senador e, dizem, que ele ganhou aeleição por causa de uma aparição na televisão. Elechegou na televisão e disse assim: “Senhorestelespectadores, me acusam de ser um empreguista,que eu arranjo emprego. Realmente eu arranjo.Amanhã, estarei lá no Correio à disposição de quemquer emprego”. Ele ganhou a eleição.

Pedro AlvesPedro AlvesPedro AlvesPedro AlvesPedro Alves – Os apresentadores naquela época,eles eram reconhecidos como artistas, eles eramassediados como artistas?Narcélio LimaverdeNarcélio LimaverdeNarcélio LimaverdeNarcélio LimaverdeNarcélio Limaverde – Depois de certo tempo, sim.Mas, no começo, não. Ninguém nem sabia, não tinhatelevisor. E havia o seguinte, havia casos de pessoasque iam para a televisão para conhecer os apresen-tadores. E isto, naturalmente, depois de uns seismeses ou um ano de televisão. Não sei se... Eu deixeia televisão pelo rádio. Com dois anos de televisão,eu deixei e fui trabalhar na rádio Dragão do Mar,que desenvolvia um projeto de rádio muitoimportante aqui em Fortaleza. A rádio Dragão doMar, na época, concorria como rádio com a televisão.Mas, os apresentadores de jornais, de certa maneira,mas os galãs, como João Ramos, como um rapazque veio do Pernambuco, Macdowell Holanda, comoo Paulo Oliveira – que não é, naturalmente, o Paulo

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Oliveira, do rádio hoje em dia, da TV Verdes Mares.Paulo Oliveira, depois que ele saiu daqui como tele-ator – ele era moreno –, ele fez muito sucesso. Mas,quando chegou no Rio, ele se transformou em PauloDiniz, que foi um cantor de muito sucesso, inclusivegravou uma musica em que chorava, uma históriade um choro que fez muito sucesso em Fortaleza, eque eu não estou lembrado, nem saberia cantar,porque eu não sou bom de voz (e tentou cantarolarum trecho da música).

Paulo SandroPaulo SandroPaulo SandroPaulo SandroPaulo Sandro – Narcélio, diante das dificuldades quesurgiram, para dar início à televisão, houve algummomento em que vocês não acreditavam no projeto?Narcélio LimaverdeNarcélio LimaverdeNarcélio LimaverdeNarcélio LimaverdeNarcélio Limaverde – Geralmente, essas coisas muitoesperadas, a gente ficava pensando, com pessimismo,que elas não iriam chegar. Logo era muito caro, eramequipamentos caríssimos, que dependiam muito deimportação. Muitas vezes, a pessoa dizia que iachegar tal equipamento e demorava muito tempo.Então, isso transmitia para nós uma idéia de quenunca chegaríamos ao estagio atual. Que hoje emdia, na minha impressão, as emissoras de televisãode Fortaleza fazem uma televisão igual ou melhor –é claro que não fazem espetáculos e novelas como aRede Globo – mas, em termos de jornalismo, nossomos muito bons, bons até demais.

Alberto PerdigãoAlberto PerdigãoAlberto PerdigãoAlberto PerdigãoAlberto Perdigão – Eu queria que você contassemais detalhadamente, como foi o impacto dosurgimento da TV Verdes Mares. Como era essaFortaleza de 1970 e qual foi o impacto que causouno mercado, entre os profissionais. E, finalmente,o que de diferente trouxe a TV Verdes Mares emrelação ao telejornalismo.Narcélio LimaverdeNarcélio LimaverdeNarcélio LimaverdeNarcélio LimaverdeNarcélio Limaverde – Inicialmente, se dizia: “Essatelevisão vem para cá para ser repetidora. Ela não

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vai fazer programação local”. Foi justamente ocontrário. A TV Verdes Mares entrou, começoulogo, foi em 1970, o ano da Copa do Mundo. Co-meçou logo fazendo uma gincana que eranovidade em Fortaleza e, talvez, em muitos esta-dos brasileiros. Foi feita uma gincana que foi umnegócio muito sério. O prêmio era um carro.Então, o que tinha de equipes... Foi uma dasprimeiras funções, quando cheguei na TV VerdesMares, em Junho de 1970, foi justamente orga-nizar essa gincana e fazer as fichas das equipes.Foi um sucesso tremendo.

Ela começou a se aproximar do povo, eliminouos grandes intervalos comerciais. Assim que termi-nava um programa entrava outro, quando nosassociados, até no intervalo de um programa paraoutro havia um grande número de comerciais queas pessoas não queriam aceitar. Ela começou acontratar bons profissionais. Ela começou a fazer ainteração das pessoas com a emissora. Eu me lembromuito bem que o slogan da época era o seguinte:Canal 10 – televisão para o povo, como o povo gosta.E um outro Slogan – que não foi criado por nenhumaagência de publicidade na época. Foi criado pornós mesmo lá, sentindo a repercussão da emissora– Canal 10, a nota máxima em televisão. Para mim,foi um dos maiores acontecimentos em Fortaleza achegada da TV Verdes Mares. E eu, que vinha demuitos anos nos Associados, passei para lá, porquesenti que haveria um futuro muito importante paramim como profissional.

Alberto PerdigãoAlberto PerdigãoAlberto PerdigãoAlberto PerdigãoAlberto Perdigão – O modelo do telejornalismo quese instalou no inicio da TV Ceará, era um modelovindo de onde? Quem foi que disse que era daquelejeito, com todos aqueles detalhes? De certa formaeu queria saber também se o modelo do “Repórter

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Esso” influenciou muito, como foi esse momentoda criação desse modelo?Narcélio LimaverdeNarcélio LimaverdeNarcélio LimaverdeNarcélio LimaverdeNarcélio Limaverde – Não, havia uma diferençamuito grande nossa, aquela nossa vaidade. Nósnão tínhamos teleprompter, então nós fazíamostudo para fazer a comunicação, como se faz hoje,como todo mundo faz, olhando para o telespec-tador. Muitas vezes, pedia-se ao assistente deestúdio pra ficar com o script, e como nós todoséramos jovens e tínhamos uma boa visão, nãohavia nenhum problema. Depois que... Eu nãoalcancei o teleprompter na TV Verdes Mares, fuialcançar na (Rede) Manchete. Lá foi que eu come-cei a trabalhar com ele.

Eu fui para o Rio de Janeiro um tempo e vio Cid Moreira apresentando o noticiário assim,com a cabeça baixa, olhando para o script. E eudisse: “e nós não fazemos isso no Ceará”. Então,nós não os imitávamos. Mas, nos impressionoumuito, um pequeno jornal que vinha, que eragravado em Washington pela “Voz da América”,chamado “Panorama Pan-americano”, que oapresentador era Reinaldo Dias Leme. A gentenotava que ele apresentava o jornal conversando,como todos os apresentadores hoje em dia fazem.Aí, uma vez, havia um engenheiro da VerdesMares, um alemão, senhor Leopoldo, e pergun-tamos: “Seu Leopoldo, por que é que é assim?”“Narcélio, eles têm um equipamento que, um dia,o Edson (Queiroz) e o Astrolábio (Queiroz)” – oAstrolábio era o superintendente –, “eles certa-mente vão trazer pra cá”.

Nós não tínhamos muitas notícias de fora doCeará, do estado não. O nigth press eram notíciasinternacionais, e não havia nenhum jornal inter-nacional na época, um jornal nacional e interna-

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cional. O editor ou o diretor de telejornalismo eraquem selecionava as notícias e muitos pressreleases eram divulgados.

Larissa ViegasLarissa ViegasLarissa ViegasLarissa ViegasLarissa Viegas – Narcélio, em algum momento a rádiose sentiu ameaçada com a chegada da televisão?Narcélio LimaverdeNarcélio LimaverdeNarcélio LimaverdeNarcélio LimaverdeNarcélio Limaverde – No começo se dizia que orádio ia se acabar por causa da televisão, como hojeem dia se diz também, que a Internet vai criarproblemas para os livros e está criando problemaspara a televisão e o rádio, o que não está aconte-cendo. Cada um tem seu espaço. É o que eu digosobre o rádio: o rádio é imediato, o rádio é maisinterativo, coisa que a televisão tem feito muito. Atelevisão tem se aproximado muito dos telespec-tadores, mas, em determinados momentos, o rádioAM está sempre interado com os ouvintes queacompanham o que se diz. E o rádio AM faz umtrabalho de prestação de serviços...

Alberto PerdigãoAlberto PerdigãoAlberto PerdigãoAlberto PerdigãoAlberto Perdigão – Narcélio, uma última pergunta:Eu queria ver se você consegue colocar no tempo,mais ou menos... vamos imaginar por décadas.Como era, na década de 60 o jornalismo, ora vocêcomo integrante do departamento de jornalismo,ou ora você como telespectador e como jornalistaatento como você sempre foi, como é que era maisou menos. Um resumo: da década de 60, 70, 60,90 e, se você quiser encerrar, imaginando como éque deve ser daqui pra frente o telejornalismocearense, seria bem interessante.Narcélio LimaverdeNarcélio LimaverdeNarcélio LimaverdeNarcélio LimaverdeNarcélio Limaverde – Ontem à noite, ouvi ministroHélio Costa (das Comunicações, na época) dizendoque iriam fazer uma espécie de uma mistura detelevisão japonesa, européia e televisão americana.Mas, a televisão dos anos 60, ela já começava aaparecer, a fazer reportagens, a enfocar os aconte-cimentos da cidade, e ocorreu a vinda do Jornal

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nacional. A presença do Jornal Nacional serviutambém como uma espécie de didática para tudoque se fazia, porque na época já começavam aaparecer os primeiros equipamentos – ainda não tinhachegado a TV Verdes Mares. Para mim, é um limitepara tudo que se fez em matéria de televisão no Cearáe, talvez, no Brasil. Nos anos 70 foi o advento datelevisão colorida, que a Verdes Mares, eu disseanteriormente, teve a primazia de apresentar (em1972), talvez até na região toda. Nos 80 foramacontecendo mais aperfeiçoamentos, foram apare-cendo outros profissionais, dos profissionais que saemdas universidades, das faculdades de Comunicação.É algo que eu sempre digo quando vou a umauniversidade, a uma faculdade, eu gosto de dizer: eutenho uma grande frustração na minha vida, que énão ter me formado em Comunicação.

Foi um erro terrível. (Aplauso final)

Renata RibeiroRenata RibeiroRenata RibeiroRenata RibeiroRenata Ribeiro – Eu queria começar perguntandoao professor Gilmar de Carvalho: o que era notícianos primeiros telejornais da TV Ceará?Gilmar de Carvalho Gilmar de Carvalho Gilmar de Carvalho Gilmar de Carvalho Gilmar de Carvalho – É uma pergunta interessante,porque nós não tínhamos uma tradição de umtelejornalismo, então era muito um rádio comimagens. E o rádio, por sua vez, ia buscar muito afonte da notícia na mídia impressa – talvez nãotenha mudado muito, pelo menos em relação aorádio, a TV se desenvolveu bastante, ela se sofisticoumuito e nós temos hoje (no Ceará) uma escola detelejornais, estilos de telejornais, mas o rádiocontinua ainda muito preso à mídia impressa. Então,dizer o que era notícia naquele tempo, acho que agente teria que pensar um pouco no provincianismoda cidade, que continua; pensar um pouco naoligarquia, nas relações de mandonismo, na políticacearense, que também não mudou muito daqueletempo para cá. E pensar que nos tínhamos ainda

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uma cidade mais afeita as lendas urbanas, maissentada nas calçadas para falar da vida alheia, entãonos podemos imaginar que a notícia, talvez muitacoisa que foi notícia nos anos 60, não seria certa-mente notícia hoje. Então, acho que mudou o con-ceito, mudaram as formas de emissão das notícias etambém as formas de recepção, evidentemente.Então, acho que nós estamos diante de algo que estáem processo.

Claro que as técnicas de codificação semprevão ser reformuladas, sempre vão estar sujeitas anovos impactos, a novas influências. Atualmente,temos Internet, toda essa disposição sobre jor-nalismo on line.

Então, naquele tempo, nós vivíamos um pe-ríodo bastante, eu diria, assim, de bastante e expe-rimentações, de uma certa timidez ainda em rela-ção ao que era notícia, o que poderia ir ao ar. Haviauma certa cobrança também muito exaustiva emrelação a aspectos moralizantes: isso não pode sair,isso não pode sair... Tanto em relação à notícia,quanto em relação ao entretenimento. Eu lembrodo escândalo que causou certa cena de uma adap-tação de Lucíola, de Jose de Alencar, falando nãode jornalismo, mas de um Contador de História(*), onde a atriz aparecia, assim: a câmera pegavada cabeça até os seios, depois pegava do joelhopra baixo, insinuando que ela estaria despida eaquilo foi objeto de muito alvoroço, muito malestar na cidade..., como é que a televisão se pres-tava para mostrar uma mulher nua!

Então, eu acho que em relação às notícias,nós tínhamos essa questão política e ideológicaque sempre foi forte e era também naquele tempo.E os Diários Associados se vincularam muitodiretamente ao Golpe de 64, ajudaram a fazer o

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Golpe, e o superintendente dos Diários Associadosno Ceará, Eduardo Campos, era considerado lídercivil do Golpe de 64 no Ceara. Então, eu acho quea gente tem que pensar a notícia em função docontexto histórico e pensar o quadro em que acidade vivia e onde a TV Ceará foi se inserir.

Amanda CapistranoAmanda CapistranoAmanda CapistranoAmanda CapistranoAmanda Capistrano – Quem via os telejornais,qual era o perfil do telespectador?Gilmar de CarvalhoGilmar de CarvalhoGilmar de CarvalhoGilmar de CarvalhoGilmar de Carvalho – Logo que a TV (Ceará) foiinaugurada, nos temos acesso a uma notícia quefalava, havia 500 televisores na cidade. Parece umnúmero relativamente pequeno, mas este númeroera bastante ampliado, na medida em que existia afigura do televizinho, alguém que não tinhatelevisão, mas ia pra casa do vizinho. Eu mesmo.Meu pai custou a comprar um televisor, era de umafamília de classe média baixa. Então, eu ia muitasvezes para a casa dos vizinhos, isso toda criançadado quarteirão fazia, ficava sentada vendo televisãodurante a tarde. Então eu acho que a gente temque ver que os números, eles não são, não podemser vistos assim friamente. E os televisores nãosignificavam nada, mas aqueles televisores elessignificam muito, porque a força que eles tinham,a atração que eles exerciam, a amplificação daquelasnotícias, do disse-me-disse e os comentários cha-mando as pessoas para outras emissões, outrosprogramas, e dos telejornais, tudo isso fazia comque muita gente visse televisão e, embora o aparelhofosse caro e estivesse de certo modo no primeiromomento mais próximo das pessoas de maior poderaquisitivo, logo a indústria brasileira tratou deproduzir componentes importados muitas vezes emas o preço foi se tornando acessível. E nós tivemostambém aí alguns empreendedores que passarama vender à prestação. Lembro bem do slogan: “Casa

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das Maquinas, o maior crediário do Ceará”. Erapossível comprar um televisor a prestações e assimnós tivemos um.

Eu diria que a cidade toda se empolgou com achegada da nova mídia. Houve realmente umacontaminação, uma empolgação, aquilo que pareciano primeiro momento uma utopia, assim: mas seráque a cidade comporta uma emissora de televisão,será que existe mercado para emissora de televisão?A reação do mercado foi muito favorável e a reaçãodas pessoas à mídia foi espetacular. As pessoasficaram vidradas, vendo e discutindo, e palpitando,e falando da vida das atrizes, falando da vida dosatores, dos cantores, dos jornalistas. Acho que muitagente via TV, muito mais do que as estatísticas nosdão a entender.

Sérgio AlencarSérgio AlencarSérgio AlencarSérgio AlencarSérgio Alencar – Como as forças políticas eeconômicas se relacionavam com o telejornalismoda TV Ceará?Gilmar de CarvalhoGilmar de CarvalhoGilmar de CarvalhoGilmar de CarvalhoGilmar de Carvalho – Em primeiro lugar, havia omonopólio – e onde há monopólio sempre hácerto mal estar –, você não tinha opção. Eu lembrobem e acho que isso está no livro (A Televisão noCeará – consumismo, lazer e indústria cultural),que quando as pessoas telefonavam para a TVCeará para reclamar do atraso da programação,de algum problema técnico, sempre ouvia umafrase feita, que não era dita por secretaria eletrô-nica, como não existia na época, mas era dita pelastelefonistas ou pelos telefonistas: “mude decanal”. As pessoas não podiam evidentementemudar de canal, porque só existia um. O outrocanal só veio dez anos depois. Então havia ummonopólio, havia uma força muito grande con-centrada neste canal e, evidentemente, as relaçõespalacianas se davam. Era muito mais fácil negociar

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com apenas uma emissora de televisão do quehoje, que a gente tem que fazer uma mídia políticae negociar com várias emissoras de televisão,então fica mais complicado.

Essa questão política sempre se fez muitoforte e a TV sempre foi, por ser uma concessão doGoverno Federal, ela sempre foi muito favorávelaos Governos Estaduais, aos Governos Municipais,ela sempre foi muito pouco crítica. Nós vamos terum exercício de uma televisão mais crítica naredemocratização, depois da anistia, depois dasdiretas já. E nós temos, aí, a possibilidade de mudarde canal e também de ter uma TV que não vai sercrítica muitas vezes no sentido de uma defesa dacoletividade, mas uma crítica no sentido de captaras tensões, os problemas entre os grupos quedisputam a hegemonia da política do Estado, oudas principais cidades do Estado.

Então eu acho que a gente tem ai uma questãoque ela não foi resolvida, ela apenas foi diluída,porque temos um número maior de emissoras,temos um maior número de receptores, um maiornúmero de anunciantes. Mas essa vinculação nessaTV quase chapa branca, ela continua ainda sendomuito forte porque, pelo próprio caráter daconcessão. É impossível, nós termos uma TV crítica,considerada mais nacionalista, que poderiaexercitar um pouco mais de crítica ao regime, aogolpe de 64, então ela foi sempre muito coniventecom tudo que aconteceu.

Paula QueirozPaula QueirozPaula QueirozPaula QueirozPaula Queiroz – Qual foi o impacto do vídeo tapeno telejornalismo local?Gilmar de CarvalhoGilmar de CarvalhoGilmar de CarvalhoGilmar de CarvalhoGilmar de Carvalho – Foi realmente radical nessaprodução local, nessa produção dos casos especiais,das telenovelas, do vídeo show... Houve, com o vídeotape, um desmonte de toda essa produção local e

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isso é lamentável. Do ponto de vista do jornalismo,o vídeo tape significou a possibilidade de realmentese fazer um jornalismo mais ágil, um jornalismomais presente porque, antes, tudo dependia depelícula. Então, a película é muito cara, e pra sairuma equipe, um cinegrafista, para fazer coberturasde muitos minutos... Eram (coberturas) muitoreduzidas, geralmente de eventos ou que interes-sassem bastante ao departamento comercial da TVou ligadas ao governador do Estado, ou à visita dealgum Ministro, de alguma autoridade, então issofazia com que os telejornais fossem muito parados.Ficava aquele apresentador, que nós chamamoshoje pejorativamente de bonecos, ficavam alisentados, impassíveis, sem muita emoção, lendo,não existia teleprompter, não existiam essesequipamentos que facilitam nossa leitura, entãoera muito no papel ou com algumas dálias, algumasfolhas de cartolina, dando alguns toques do tempoque faltava, de alguma notícia extra, de alguma coisaque deveria chamar a atenção. Era um telejornalismomuito amador, mas nem por isso feito com menospaixão, por pessoas que dedicaram boa parte desuas vidas, pessoas que aprenderam fazendo.

Acho isso importante ressaltar, em relaçãoà TV Ceará: não existia escola, não existia facul-dade, as pessoas aprendiam no dia-a-dia, no fazercom acertos, tentativas, com equívocos.

Mas me parece que o vídeo tape, como tudo navida, ele tem um lado bom, ele tem um lado mau. Seele acaba a produção local, ele por outro lado vaideslanchar realmente o telejornalismo. Pode-se falara rigor do telejornalismo depois do vídeo tape. Masnós temos aí outro problema: é que, com a centra-lização da produção, com a formação das redes, queera o que realmente interessava ao capitalismo naquelemomento, a produção deixava de ser feita em todos

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os estados para se concentrar no eixo Rio-São Paulo.Nós passamos a ser meros repetidores e o telejornalpassou a ocupar um espaço muito pequeno. Nós nãotemos um telejornal hoje compatível com que nósteríamos de notícias, com que nós teríamos a emitir,é o que eu penso do telejornalismo hoje. Ele ocupapouco espaço na grade das emissoras locais, masnaquele momento a possibilidade do vídeo tape erauma possibilidade de exercício de um telejornalismoque poderia se deslocar, fazer outras coberturas epoderia ser bem mais acessível do que a película,que tinha que ser revelada, daí dependia de muitosprocessos técnicos e químicos até ir ao ar.

João BoscoJoão BoscoJoão BoscoJoão BoscoJoão Bosco – Quanto tempo o telejornalismoocupava na programação diária? Eram quantosos telejornais?Gilmar de CarvalhoGilmar de CarvalhoGilmar de CarvalhoGilmar de CarvalhoGilmar de Carvalho – Dois grandes telejornais ecom a possibilidade, como nós temos ainda hoje,de emissões de extraordinárias. Mas, no inicio,eram dois telejornais, depois nós tivemos a expe-riência muito interessante na década de 70, comum telejornal chamado Dimensão Total, e aí jácom pessoas que comentavam, não podemoschamar ainda de âncoras, mas como críticos,colunistas, como pessoas que não apenas liam asnotícias, mas comentavam, faziam entrevistascom abertura para o chamado jornalismo cultu-ral. Eu diria que foi havendo um processo deaumento de tempo e, ao mesmo tempo, de seg-mentação. Só muito depois é que entra essejornalismo que eles dizem de serviço, eu prefirodizer policial, só vem entrar basicamente nos anos90, com o Barra Pesada.

Patrícia NielsenPatrícia NielsenPatrícia NielsenPatrícia NielsenPatrícia Nielsen – Quem eram os anunciantes dosprimeiros telejornais?Gilmar de CarvalhoGilmar de CarvalhoGilmar de CarvalhoGilmar de CarvalhoGilmar de Carvalho – Eu lembro da necessidade

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que os Associados tinham de ter um relacionamentomuito estreito, de seduzir os empresários locais,era muito grande. Durante ainda a construção doedifício que sediaria a TV Ceará, foram feitas visitasde empresários, para mostrar o andamento dasobras, como se os empresários não acreditassemna viabilidade do empreendimento. E iam até lá, ocanteiro de obras, para ver que o edifício estavasendo construído, pra ver que a torre estava sendomontada, que a televisão não era apenas um sonho,não era uma miragem, mas era algo que dentro dealgum tempo estaria transmitindo e interferindona vida da cidade. Esse esforço resultou na adesãodesses empresários, que compraram cotas de patro-cínio, que estavam muito presentes. Algumas em-presas, inclusive, davam nomes aos programas. Entãonós tínhamos o Show do Mercantil, já nos anos 70;nós tínhamos Sabatina e Ironte, Romcy e Girasorte,assim nomes de empresas ligadas à programação. Etambém os “Diários Associados” chamavam muitoa atenção para os anunciantes nacionais ou multi-nacionais que compravam espaços. Eu lembro deuma notícia em que dizia que a próxima atração,que seria o programa seguinte, tinha sido vendidapara Gessy Lever. A TV já entra no ar com o patro-cínio da Gessy Lever e de grandes anunciantesnacionais, como as companhias aéreas, as indústriasde montagem de automóveis, e aqui o nosso empre-sário, o empresário cearense, ele acreditou. O vare-jo, principalmente, fez-se muito forte na TV. O Ma-gazine Sucesso, que depois virou Romcy, Casas dasMáquinas; Lojas Cruzeiro, loja de moda masculina;Flama, que era loja de perfumaria. Houve realmenteuma adesão, acredito que tenha havido tambémcerta flexibilização dos preços, para permitir queaqueles anunciantes, assim, de pequeno porte,

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comparados com os nacionais ou multinacionais,pudesse ter acesso à nova mídia. Mas eu diria quefoi um sucesso, mesmo com alguns slides, com aquelacoisa muito estática, só mostrando o nome daempresa, com a locução em off – ou as empresasque poderiam se dar ao luxo, se permitir teremgarotos ou garotas propaganda, que anunciavam osprodutos, mostravam os televisores, mostravam osdisplays dos aviões que ligavam a grande Fortalezaaos grandes centros.

Eu acho que nós tivemos uma boa respostado público anunciante, dos empresários. Eu entre-vistei há uns vinte anos, quando eu estava fazendomeu mestrado no Rio o, já falecido, senhor RômuloSiqueira, que foi o diretor comercial do Canal 2, daTV Ceará. Ele me disse que a recepção, a respostado empresariado foi muito boa, eu tenho essa fitacomigo posso até ceder a vocês para tirarem umacópia. E ele também acreditava que o fato dosegundo canal ter sido inaugurado dez anos depois,contribuiu para reforçar o canal pioneiro e assimnós pudermos realmente, depois, contar com umsegundo canal que já veio com o respaldo de umgrande grupo econômico, o Grupo Edson Queiroz.Mas o senhor Rômulo Siqueira acreditava, e me dissena entrevista, que se nós tivéssemos tido os doiscanais inaugurados em um intervalo menor, oudois canais inaugurados simultaneamente, elesteriam quebrado, a cidade não teria suportado doiscanais. Então, foi coincidência talvez, ou estratégiabem sucedida, que fez com que nós pudéssemosviabilizar o empreendimento e em seguida partirpara uma diversificação, que eu estou chamandode monopólio.

AAAAAlberto Perdigãolberto Perdigãolberto Perdigãolberto Perdigãolberto Perdigão – Professor, o senhor falou queas empresas batizavam os telejornais, os progra-

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mas... não havia a interferência do patrocinadorno conteúdo das notícias?Gilmar de CarvalhoGilmar de CarvalhoGilmar de CarvalhoGilmar de CarvalhoGilmar de Carvalho – Bem mais que hoje, hoje elasnão tem mais isso, né? O “Repórter Esso” fez carreirano rádio, foi referencia na televisão. O telejornal“Crasa” e todos os telejornais que adotaram o nomede empresas sofriam essa interferência. Nós, naépoca, não sabíamos nem o que era assessoria decomunicação. Esse é um conceito muito maisrecente, que vem exatamente com a ditaduramilitar, que vai criar o press release, a notícia prontapara ser utilizada. Então, claro que os empresáriosnão eram santos e nem eram inocentes, mas pelofato de uma empresa associar sua imagem a umtelejornal não significava, necessariamente, umcomprometimento de um telejornal, uma defesa dosinteresses daquele empresário. Eu acredito que eramuito mais para veicular o nome, as pessoas diziam“eu vou assistir ao jornal Crasa”, você já estavadizendo o nome da empresa e remetia à relação, edevia causar um certo impacto para consolidação, acristalização da imagem da empresa.

Eu não acredito em imparcialidade, eu nãoacredito em independência dos meios de comu-nicação, eu não acredito em apartidarismo, eu nãoacredito em pluralidade. Isso tudo são slogans depublicitários. Na verdade, na verdade são vendidos.A Folha de São Paulo tratou de vulgarizar, muitosslogans passaram a ser adotados por outros veículos,mas todos têm os seus interesses, todos defendemos seus interesses e o interesse dos anunciantes ésempre muito forte, os interesses do governo sãosempre muitos fortes. Então, essa idéia deimparcialidade é uma idéia..., a gente como estudiosode Comunicação deve colocar na categoria das coisasque não devem ser levadas a sério.

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Magnólia PaivaMagnólia PaivaMagnólia PaivaMagnólia PaivaMagnólia Paiva – O jornalismo da PRE-9 era par-ceiro ou concorrente da TV Ceará?Gilmar de CarvalhoGilmar de CarvalhoGilmar de CarvalhoGilmar de CarvalhoGilmar de Carvalho – Eu diria que era parceiro,por que a TV, da mesma forma que a Tupi fez emSão Paulo e no Rio, a TV Ceará foi buscar os seusquadros na Ceará Rádio Clube, foi buscar seusquadros na PRE-9. Nessa primeira fase, que é a faseque eu estudei mais detidamente, da inauguraçãoem 60 à entrada do vídeo tape em 66, eu diria queo grande concorrente do telejornalismo da TV Cearáfoi a Rádio Dragão do Mar. A Rádio Dragão do Martinha um impacto, era uma rádio sensacionalista,era uma rádio ligada a, digamos, um empresárioprogressista que durante algum tempo, isso pode-se dizer, estava à esquerda. Com idéias políticasmais avançadas, a Rádio Dragão do Mar fez grandescoberturas, como o arrombamento do açude Orós,uma campanha contra a morte do Caryll Chesman,um norte-americano que foi condenado à morte,um escritor que foi morto depois – uma coisa meioprovinciana, nós fazermos uma campanha parasalvar um escritor norte-americano. Mas elaconseguia empolgar a cidade e ela, em 64, apoiouo Jango, fez parte da cadeia da legalidade, que eraliderada pelo Leonel Brizola e por outros políticosque não se conformavam com o golpe de 64. Então,eu diria que durante muito tempo, curiosamentee paradoxalmente, a concorrente da televisão foiuma emissora de rádio, já que não existia umaoutra emissora de televisão. Mas a paixão com queo radiojornalismo, da maneira com que era feito,isso contagiava as pessoas, e as pessoas às vezesdeixavam de ver TV para ouvir aqueles programas,e isso causava uma comoção e de certo modocausava um mal estar, uma apreensão – como umaemissora de rádio poderia concorrer com umaemissora de televisão? Mas foi o que aconteceu,pelo menos de 60 a 64.

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Mario JorgeMario JorgeMario JorgeMario JorgeMario Jorge – Queria saber se as transmissões defutebol tinham o mesmo impacto de audiência ecomercial das transmissões de hoje.Gilmar de CarvalhoGilmar de CarvalhoGilmar de CarvalhoGilmar de CarvalhoGilmar de Carvalho – O deslocamento de umequipamento para fazer uma cobertura nas ruas, eramuito complicado, era um carro pesadíssimo, era umcarro de difícil manobra, um carro alto. Só muitodepois é que o país e o Ceará foram interligados pormicroondas, então fez com que as transmissõespassassem ser fáceis, com equipamentos menospesados. Só se faziam transmissões externas em casosextremos. Nós tivemos a inauguração da TV, naConcha Acústica da UFC, foi uma transmissão externa,mas aí se justificava, porque era um momento solenede inauguração da TV. Mas, depois, nós tínhamosapenas os resultados dos jogos, discussões, questõessobre torcidas, estratégias de técnicos, mas nãotínhamos no primeiro momento transmissão dejogos de futebol, o que era uma pena, por que ésempre algo que interessa a um grande número depessoas e que, sem dúvida, resultaria em um maiorfaturamento da TV e isto geraria, mexeria com todacadeia produtiva. Mas os espetáculos (de futebol)vão se dar muito depois da década de 70, aí a gentejá tem a possibilidade de uma cobertura realmentesatisfatória para o desportista, para o aficionado.Da mesma forma que eu falei que o telejornal eramuito estático, muito sem essa dinâmica, a própriapublicidade também, as transmissões esportivas elasnão se deram.

Alberto PerdigãoAlberto PerdigãoAlberto PerdigãoAlberto PerdigãoAlberto Perdigão – O senhor acha que o jornalistaque se dedicava ao telejornalismo nos primórdiosda TV, vindos do rádio e quase sempre alguns vindosdo jornal – aliais alguns que até foram depois para aacademia, foram ser professores, como o TeobaldoLandim e me escapa outro nome – o senhor acha

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que esses profissionais eram mais jornalistas do queos que saem da universidade de hoje para se dedicarà televisão? A formação no batente, no tapa digamos,ela tem mais méritos do que a academia tem hoje emrelação à formação do profissional de televisão?Gilmar de CarvalhoGilmar de CarvalhoGilmar de CarvalhoGilmar de CarvalhoGilmar de Carvalho – Eu diria que todas essaspessoas, todas essa geração teve muito valor, temvalor e nós sempre elogiaremos esse profissionaisque souberam se preparar sem se formar. Mas euacredito que a geração de hoje que ocupa esse espa-ço está melhor preparada. Ela sai melhor preparadadas universidades, das faculdades. Compreendoque, naquele momento, aquela era a melhoralternativa. Hoje eu sou um defensor estrito de umaformação específica, eu acredito que as univer-sidades e as faculdades são fundamentais para quenós tenhamos um profissional que não apenasdomine uma técnica, mas que tenha formaçãoteórica e que tenha posicionamento ético. Eu nãosou nostálgico dessa autopreparação, dessa autofor-mação, desses grandes nomes respeitáveis que nóstivemos no jornalismo, no radialismo, no telejor-nalismo, mas, hoje, eu penso que se essas pessoastentassem dispensar essa formação superior, elasestariam condenadas a fazer um trabalho semqualidade.

Alison CostaAlison CostaAlison CostaAlison CostaAlison Costa – Se a gente comparar a linguagem detelejornalismo daquela década de 60 com a de hoje,quais seriam as características, as diferenças?Gilmar de CarvalhoGilmar de CarvalhoGilmar de CarvalhoGilmar de CarvalhoGilmar de Carvalho – Entre aquela bancada eaqueles slides que eram projetados, aquelas notí-cias que eram lidas com poucos cortes ou poucosinstantes de imagens e movimento, e o que nóstemos hoje, eu diria que nós passamos de um rádiocom imagem para um show. Eu vejo hoje ostelejornais com a mesma estética do espetacular,

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do restante da programação, e não poderia serdiferente. Ninguém suportaria um telejornal comduas pessoas lendo todas as notícias e com aquelear de cansaço e com aquela falta de empolgação,como se não tivesse havido nada. Como se nãotivesse havido uma corporação dessa dinâmica,desse processo, dessa linguagem, de uma ediçãomais ágil, de câmaras mais leves que permitemvariar, na hora de editar prevalece mais umaestética de vídeo clipe... Eu acho que tem umaagilidade, tem uma mobilidade hoje, em termosde linguagem, que nos permite essa mobilidade,nos permite uma adoção também de outrasestratégicas da retórica da imagem, como dizemos teóricos. Nós podemos, hoje, nos dar o luxo deutilizarmos metáforas, metonímias e dar deter-minadas ênfases para objetos, ampliar, colocar cornum ponto da imagem, utilizar gráficos e anima-ções, então eu penso que nós estamos sabendo doponto de vista técnico, nós temos uma televisãode altíssima qualidade e nós estamos sabendoutilizar. Potencialidades que essa técnica nos per-mite, mas os nossos problemas eles ainda con-tinuam e continuarão durante muito tempo nocampo ideológico.

Amanda CapistranoAmanda CapistranoAmanda CapistranoAmanda CapistranoAmanda Capistrano – Qual é a sua opinião sobrea questão dos blogueiros? Tem muitos que sãojornalistas, mas alguns não o são. Você apóia, quala sua opinião sobre esse tema?Gilmar de CarvalhoGilmar de CarvalhoGilmar de CarvalhoGilmar de CarvalhoGilmar de Carvalho – Eu sou muito atento e muitocuidadoso para o exercício da profissão. Eu souprofessor porque..., defendo o sindicato, sousindicalizado. Agora, em relação à Internet, euacredito que seja uma mídia mesmo mais aberta,eu não vejo problemas em que as pessoas façamseus blogs. Eu tenho muito pouca curiosidade emrelação aos blogs, não me interesso muito por eles,

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mas acho bom que eles existam, acho que muitas vezeseles são muitos narcisistas.

Amanda CapistranoAmanda CapistranoAmanda CapistranoAmanda CapistranoAmanda Capistrano – Não precisaria ser formadopra escrever?Gilmar de CarvalhoGilmar de CarvalhoGilmar de CarvalhoGilmar de CarvalhoGilmar de Carvalho – Não. Acho que qualquerpessoa pode escrever, está escrevendo ali como seestivesse escrevendo em seu diário, só que agoraesse diário é virtual. Ninguém pode impedir que aspessoas..., agora já em relação aos meios decomunicação, já o tratamento da informação, aí vocêtem que ter um comprometimento e esse compro-metimento passa por uma formação e passa por umcódigo de ética, passa por uma relação com o seusindicato, eu acho que aí geralmente tem que terum vinculo. Em relação à Internet, pode-se colocarqualquer coisa, porque também aquilo lá não élevado a serio, não, é notícia ali, às vezes o que estáali é uma facção, às vezes é bobagem, né? As pessoastêm o direito de dizer bobagens também.

Alberto PerdigãoAlberto PerdigãoAlberto PerdigãoAlberto PerdigãoAlberto Perdigão – Como é que se conseguia fazeraquelas telenovelas, aqueles teleteatros ao vivo, semedição – vai lá e faz na hora, inclusive com autorescearenses. Isso é de uma riqueza, uma teledrama-turgia muito rica para contrastar com a preca-riedade das condições de produção. O que foi pro-duzido para a TV Ceará, o que ultrapassou o limiteda TV e que foi importante nas artes, pra literatura,enfim, na cultura cearense?Gilmar de CarvalhoGilmar de CarvalhoGilmar de CarvalhoGilmar de CarvalhoGilmar de Carvalho – Eu me permito uma viagemsentimental, uma viagem no tempo. Eu estudava nocolégio Santo Inácio e a TV era onde hoje é a holdingdo grupo do Edson Queiroz. Então eu, sempre,quando voltava das aulas, eu passava por lá, paraver os cenários. E era um cheiro de tinta insuportável,e eles conseguiam realmente adaptar clássicos daliteratura universal, clássicos brasileiros, e desen-

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volver, ao mesmo tempo, uma dramaturgia cearense,como muitos espetáculos do Guilherme Neto, doEduardo Campos, de outros autores. Era como se atelevisão tivesse, naquele momento, suprido umanecessidade do espetáculo que o nosso teatro nãoestava sendo capaz de dar. Nós tínhamos um teatrode boa qualidade, feito pelo B. de Paiva, mas era umteatro muito elitista, diferente do teatro de CarlosCâmara, nos anos 20, que fazia com que os bondescirculassem até mais tarde no calçamento deMessejana (atual avenida Visconde do Rio Branco),no Joaquim Távora. A TV, de certo modo, ela cata-lisou, chamou pra si e deu possibilidades a que essaspessoas fizessem esse espetáculo. Eram casos especiais,eram novelas, programas de mistério, eram progra-mas de humor. Renato Aragão sai desse quadro eoutros nomes que se destacaram na mídia nacionalsaem desse quadro. Agora, o que isso representoupara a cultura cearense? Foi um prêmio que os espetá-culos do Eduardo Campos conseguiram em Barcelona.Foi a possibilidade de que algumas pessoas, que depoisse destacaram nas áreas, começassem ali, comoAldifax Rios, que é artista plástico, que sai como umaprendiz de cenógrafo; como Reinaldo Moreira... OCeará tem um fato que eu acho importante e gostariade ressaltar, porque, me parece, ele tem um pionei-rismo nacional, que foi o programa Na Ponta dos Pés,um programa de balé que levava (ao ar) balé. Claroque aí existia relações de familiares, a dona de umaacademia era ligada ao Augusto Borges, com quemcasou a filha dela e tudo mais... De certo modo, levarum programa de balé para televisão é algo que aGlobo mostrou ontem cinco segundos do grupo Corpofazendo espetáculo, que é maravilhoso. E. nós tivemosapenas um nas novelas, Cobras a Lagartos, um tape...Mas nós tínhamos balé, era balé de academia, ainda

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muito improvisado, não se pode chamar de muitorigor. Mas estava ali, estavam os musicais, o Ceará podetreinar e mostrar seus musicas na televisão, apren-dendo a ocupar os espaços que ocupariam depois namídia nacional. Então, eu acho que a TV teve uma boapostura nesses movimentos culturais na época, bemdiferente do que nós temos hoje.

Denise GurgelDenise GurgelDenise GurgelDenise GurgelDenise Gurgel – E até que ponto mudou, se mudou?Gilmar de CarvalhoGilmar de CarvalhoGilmar de CarvalhoGilmar de CarvalhoGilmar de Carvalho – Mudou. As pessoas passarama entrar (em casa) e ver a TV. As formas de socia-bilidade na cidade mudaram muito nesse período.Mas nos intervalos, digamos, na hora dos programasde menor interesse, na hora de... – a TV não ficava24 horas no ar como ela fica hoje, né? Tinha umahora em que tocava uma música de Dorival Caymie a TV saia do ar. Tinha o prefixo musical e o sufixomusical. Mas, enfim, havia alguns intervalos e aspessoas se aproveitavam para colocar as cadeirasnas calçadas, para falar dos atores e das atrizes. Osatores não eram tão viris, as atrizes não erammulheres decentes, direitas. Então, acho que essaidéia de revista Contigo, de revista Caras, de fofocada vida de socialites, de artista, de esportistas, sedavam num universo muito mais restrito, porquenós tínhamos acesso apenas ao nosso Olímpio, eramuito pequeno e local, e a nossa grande Cantoraera Ayla Maria, e estavam todos aqui, moravamperto da gente, às vezes a gente se encontrava nasruas, nas lojas – os supermercados não existiamnesse tempo nem shopping center, mas era maisou menos isso, assim..

Denise Gurgel Denise Gurgel Denise Gurgel Denise Gurgel Denise Gurgel – Mas há quem diga, pessoas queviviam nessa época, que a calçada ficou até maistarde, o pessoal começou a jantar mais cedo, opessoal dava um braek, uma pausa e por conta dissoela passou a ficar até mais tarde.

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Gilmar de CarvalhoGilmar de CarvalhoGilmar de CarvalhoGilmar de CarvalhoGilmar de Carvalho – É..., e a calçada podia sertambém no começo da tarde, aliás no começo danoite sempre tem o horário da calçada.

João BoscoJoão BoscoJoão BoscoJoão BoscoJoão Bosco – Depois de tanto tempo, surge a TVDiário, repetindo uma situação que aconteceu nosanos 60, como é que o senhor vê essa situação.Gilmar de CarvalhoGilmar de CarvalhoGilmar de CarvalhoGilmar de CarvalhoGilmar de Carvalho – É interessante o que vocêlevanta porque, na verdade, com todo o aparatotécnico e tudo, a TV Diário é como se fosse um remakeda TV Ceará. Nós temos aí, não é uma mera repetidora,ela está produzindo os termos locais. Apenas a TVDiário é muito recente, não dá para fazer cobrançasexcessivas, às vezes ela não tem propriamente umaprogramação, talvez, que atinja várias faixas, ela nãotem um público-alvo. Ela tem uma programaçãomuito focada no popular, no popularismo, mas deveser também uma estratégia comercial, provavelmenteeles devem saber o que estão fazendo. Como estu-dioso, eu admiro a TV Diário, acho interessante parao mercado que nós tenhamos uma TV Diário – comoreceptor eu vejo muito pouco!

Alberto PerdigãoAlberto PerdigãoAlberto PerdigãoAlberto PerdigãoAlberto Perdigão – (falando aos entrevistadores)Eu adiantei para vocês que o Gilmar é uma pessoarealmente preparada e encantadora, que a turmae fez uma feliz escolha, acho que todo mundo gostouacho que foi muito divertido...Gilmar de CarvalhoGilmar de CarvalhoGilmar de CarvalhoGilmar de CarvalhoGilmar de Carvalho – Lá no restaurante em que eualmoço – eu detesto pegar em dinheiro e comer – eudigo “eu pago depois”. Aí, a moça lá sempre perguntameu nome e eu digo: “Gilmar de Carvalho”. Um dia,ela disse um nome, foi Gilberto..., eu disse: “aprendaque é Gilmar, eu sou a única celebridade que comenesse restaurante”. (risos e aplausos)

Denise GurgelDenise GurgelDenise GurgelDenise GurgelDenise Gurgel – Eu queria perguntar mais uma coisa,até que é uma coisa muito... Eu sei como é difícil aquio mercado de livros o nosso mercado editorial local...

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Gilmar de CarvalhoGilmar de CarvalhoGilmar de CarvalhoGilmar de CarvalhoGilmar de Carvalho – É, eu vendo cada vez menos.

Denise GurgelDenise GurgelDenise GurgelDenise GurgelDenise Gurgel – Cada vez menos?Gilmar de CarvalhoGilmar de CarvalhoGilmar de CarvalhoGilmar de CarvalhoGilmar de Carvalho – É, cada vez menos.

Denise GurgelDenise GurgelDenise GurgelDenise GurgelDenise Gurgel – Se fosse pela venda num dava não.Gilmar de CarvalhoGilmar de CarvalhoGilmar de CarvalhoGilmar de CarvalhoGilmar de Carvalho – Não, nem escreveria se fossepela em função de venda. A gente escreve porqueacha que tem um recado para dar, tem uma coisa adizer e, aquela inquietação, vontade de ir fundo.Conhecer o Ceará todo, assim, eu já conheço mais dametade dos municípios, e eu quero conhecer todos.Para ver também a falácia da propaganda governa-mental e, tenho encontrado coisas muito feias, muitotristes e muito bonitas também por aí.

Muito obrigado (aplausos!!)

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ENTRE INFORMAÇÕESENTRE INFORMAÇÕESENTRE INFORMAÇÕESENTRE INFORMAÇÕESENTRE INFORMAÇÕESE PALAVRAS DE ORDEME PALAVRAS DE ORDEME PALAVRAS DE ORDEME PALAVRAS DE ORDEME PALAVRAS DE ORDEM11111

1 Conferência apresentada no evento “Cultura XXI”, na mesa redonda “Cultura,mídia e poder”. Fortaleza, abril de 2006.

2 Mestre em Psicologia Clínica PUC-SP, doutor em Sociologia – UFC, professordo curso de Comunicação Social – FA7 e coordenador da pós-graduação emComunicação e Cultura – FA7.

Tiago Seixas Themudo2

ResumoResumoResumoResumoResumo – Este artigo é fruto de uma conferência reali-zada no seminário “Cultura XXI”, promovido pelogoverno do Estado do Ceará, e debate especificamenteo tema do evento “Cultura, mídia e poder”.

Palavras-chave:Palavras-chave:Palavras-chave:Palavras-chave:Palavras-chave: palavras de ordem, informação,pensamento.

AbstractAbstractAbstractAbstractAbstract – The present article is the result of a conferencethat took place in the Seminar “Culture in the 21stcentury”, organized by the state of Ceará administration.More specifically, the discussion turned around thequestion of “Culture, media and power”.

Key Words:Key Words:Key Words:Key Words:Key Words: information, thought, words of order.

Gostaria inicialmente de agradecer ao convitedo Silas, uma vez que estou entrando nesse debatecomo um substituto do Homero, e espero estarminimamente a altura da potência de agressividadecom que ele pensa questões tão importantes, e tambémfalar da minha alegria em ter ouvido a fala do JuremirMachado, fortalecendo a crença de que ainda é possívelpensar com humor. Mas como eu não tenho asabedoria do Juremir pra fazer do humor uma armatão efetiva, vou assumir uma postura um pouco maisséria, que é onde eu me sinto um pouco melhor.

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Entre informações e palavras de ordem – Tiago Seixas Themudo

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A primeira idéia que me parece já estar implícitano tema do simpósio, Cultura, mídia e poderCultura, mídia e poderCultura, mídia e poderCultura, mídia e poderCultura, mídia e poder,apresenta o diagnóstico de uma relação perversaentre essas três dimensões que deveriam guardar umaradial autonomia entre si, pelo menos dentro docontexto de sociedades que se querem democráticas.Tanto no caso da cultura, da produção cultural, comoda produção da informação midiática, deveria haveruma radical separação em relação às principaisdisposições do poder, em relação às suas significaçõescaracterísticas. Se esses três domínios aparecemcompondo o tema de um debate, parece haver umapercepção coletiva, talvez ainda um pouco silenciosa,de que hoje o poder tem representado um dos grandesperigos para o exercício da cultura, do pensamentolivre, e da construção de formas de existência mini-mamente viáveis.

Eu diria que haveria uma outra dimensãopossível a ser articulada à cultura e à mídia, que é adimensão do pensamento. Talvez seja esse o maiorperigo que ronda o universo do pensamento: suasubordinação aos limites dos valores estabelecidos,ou a sua submissão pelos axiomas do poder, no casodo mundo moderno, do poder econômico. É isso quetenho tentado insistentemente passar para os meusalunos de comunicação, que o poder, ou os valoresestabelecidos, não podem funcionar como o limitedaquilo que é pensável ou daquilo que pode serpensado, daquilo que pode ser dito ou sentido. Essa éjustamente a característica do mundo da opinião, dadoxa e não do pensamento.

Há, nos dias de hoje, uma cruel apropriação dapalavra crítica, ou do termo crítico. Todo mundo pedee exige que as pessoas tenham pensamento crítico,mas deixam de levar em consideração duas operaçõesque são fundamentais para que um pensamento possaser considerado como crítico. Primeiro, a percepçãode que a dimensão do sentido das coisas não é única,

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não está subornada a um significante; todo o sentidotem uma história, e é, sobretudo, complexo, ou seja,múltiplo. Nesse sentido, o conceito de acontecimentoé muito mais preciso que o conceito de fato, tãoimportante para as ideologias jornalísticas contem-porâneas. O primeiro implica uma dimensão irredu-tível de multiplicidade; nenhum sentido único esgotao sentido do acontecimento. Por isso ele é sempreparadoxal, exigindo um pensamento capaz de seembrenhar em paradoxos. Já o conceito de fato exigesempre um sentido único, o bom sentido do fato, a“verdade” jornalística. Sendo assim, é tarefa dopensamento crítico dar conta da complexidade dosacontecimentos, mas é justamente isso que o sensocomum não permite que o façamos. Tudo deve terum sentido determinado, normalmente um bomsentido e que leva provavelmente à reconstrução daordem estabelecida.

A segunda operação da crítica, talvez ainda maisimportante do que a primeira é a possibilidade dediscutir permanentemente os princípios a partir dosquais a gente interpreta os acontecimentos, ou seja,colocar em questão o valor dos valores a partir dosquais nós pensamos. Acredito que essas duas operaçõesestão sendo radicalmente colocadas de lado, seja naatividade de produção cultural, seja na mídia, mastambém nas universidades – que respondem cada vezmais aos imperativos do mercado e do dinheiro. Comefeito, estamos vivendo um esvaziamento dacriticidade, porque ninguém está a fim de fazer essasduas perguntas, pois elas podem comprometer o bomandamento dos negócios. Qual é a história, qual é oprocesso de construção social dos sentidos que nóscompartilhamos, e quais são os valores a partir dosquais esses sentidos únicos são produzidos?

Como não há ninguém muito disposto paradiscutir princípios, ou colocar o dedo em princípios,talvez por um medo já identificado pelo romancista

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inglês D. H Lawrence no começo do século, de um medocoletivo de perder o emprego, a gente vaicotidianamente fazendo pequenas concessões a essepoder, que nos afasta cada vez mais de um exercíciolegítimo do pensamento. Eu cito um exemplo parapensarmos juntos, que é muito tranqüilo. Gostaria decolocar em questão dois princípios fundamentais domundo contemporâneo: o primeiro que afirmavivermos ainda hoje em uma sociedade de pensamentolivre, e o segundo, que gosta de afirmar que vivemosem uma sociedade da informação.

Eu, muito humildemente, discordaria dessediagnóstico que o Humberto traçou, que diz que nomundo hoje tem muita informação disponível. Eudiscordaria, por acreditar haver uma confusão entreo conceito de informação e o de palavra de ordem.Somos, sem dúvida, muito mais íntimos de palavrasde ordem do que de verdadeiras informações: façaisso, compre aquilo, use isso, tome esse medicamento,use aquela roupa, vá para aquele lugar, pense dessamaneira, tenha esse corpo. Há uma constante exi-gência de que as pessoas tenham uma posição passivaem relação às informações, e a passividade é carac-terística da obediência, e não da reflexão. Para quehaja reflexão, para que haja pensamento é precisoum mínimo de espontaneidade, agressividade, ação;e é essa espontaneidade que está sendo retirada esubstituída por uma passividade que se torna cadavez mais desconfortável.

Talvez a euforia com que o Juremir tenha sidoaplaudido revele um pouco isso, estamos cansadosde sermos passivos, e são essas forças ativas dopensamento que aparecem nesses pequenos aconte-cimentos. Eu tenderia a dizer que não vivemosnuma sociedade de informação, mas sim numasociedade em que as palavras de ordem é que sãoabundantes. Exemplo: uma jovem criança numa salade aula, dentro do nosso modelo escolar contem-

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porâneo. É quase provocação dizer que as criançasaprendem alguma coisa na escola, ou que elas sãoinformadas de alguma coisa na escola. O que osprofessores divulgam hoje em dia nas nossasescolas, principalmente com o ritmo em que elasestão funcionando, é: aprenda isso, pense dessamaneira, reaja dessa maneira à tal situação, sintanáuseas em relação a isso, se alegre em relaçãoàquilo, mas sem que haja um processo de produçãomais artesanal das subjetividades, voltado para algomais que o sucesso profissional. Estamos tambémproduzindo crianças em série.

E isso não só em relação às escolas, quando agente liga o noticiário, quando abrimos o jornal,quando somos bombardeados pelas informações,pelas propagandas, o que temos não são infor-mações, são palavras de ordem, são formas padro-nizadas de comportamento, muito embora os meiosde comunicação insistam em manter atual o discursopositivista da neutralidade, da objetividade, daveracidade do discurso jornalístico que hoje, demaneira descarada, serve apenas para encobrir asverdadeiras alianças que a indústria da informaçãotem tecido com a economia.

Eu daria mais alguns exemplos para podermosdebater. Não quero tomar muito o tempo de vocês,porque há outras idéias mais pertinentes a seremdiscutidas. Mas grande parte das “mazelas”contemporâneas que nos atingem são, se nãoproduzidas, ao menos fortalecidas por falta deinformação. Exemplo: vivemos uma epidemiacontemporânea de câncer em que todos os médicos,minimamente sérios ou críticos – e críticos aqui sig-nifica autonomia em relação à indústria farma-cêutica – são unânimes em dizer que a grande causadessa epidemia de câncer é a indústria petro-química ligada à indústria alimentícia, presenteshá pelo menos cinco décadas naquilo que comemos,

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no ar que respiramos, no que passamos no corpoetc. E estamos vivendo essa epidemia crescente demaneira passiva, uma epidemia que foi construídapor falta de informação do tipo, comer isso faz mal,ou comer isso de maneira prolongada pode tematar. Porém, são poucos os médicos que têm acoragem de romper esse perverso acordo com aindústria farmacêutica. Normalmente as causasreais são substituídas por outras causas bem menoscomprometedoras, e sem que haja algum tipo deresponsabilização judicial: tendência de família ouhereditariedade, fatalidade! Em ambos os casos, háuma despolitização do problema, uma “desrespon-sabilização” generalizada. Estamos vivendo umacrise contemporânea de depressão juvenil. Osremédios mais vendidos do mundo hoje sãoantidepressivos e calmantes normalmente desti-nados à juventude e até mesmo à infância, e queestão funcionando como uma espécie de últimabarreira de contenção de um desmoronamento totaldas subjetividades e dos laços sociais. Quando asfamílias vão aos psiquiatras, novamente a genética,ou os genes são os grandes culpados, quando não épreciso mais ser doutor em nada para saber que essesurto de depressão está ligado a uma coisa chamadaestilo de vida, ou forma de existência. Mais uma vez,não somos bem informados, ou seja, não recebemosconhecimentos que nos permitam reinventar aprópria maneira como nos comportamos.

Estamos vivendo uma crise de violência urbana,e não há nenhum órgão da imprensa que consigaarticular a causa da violência urbana, ou as razões daviolência urbana, com a profunda desigualdade socialque marca historicamente a sociedade brasileira. Nãoé preciso ser doutor em sociologia para saber que ascondições de vida materiais de uma população estãointimamente relacionadas aos números da violênciapública. Mais uma vez, não somos informados, e todas

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as soluções, ou todas as palavras de ordem que nossão transmitidas pelos meios de comunicação a esserespeito, são via controle: mais polícia, mais repressão,mais força ostensiva.

Vivemos atualmente no Estado do Ceará, umaatividade de grilagem da terra, sobretudo a litorânea,motivada pela especulação imobiliária, como a queaconteceu na Inglaterra do século XIX quando oCapitalismo dava os primeiros sinais de suas violênciascaracterísticas. Novamente não somos informados,acontecendo à revelia de toda a sociedade civil. Talvezporque se fôssemos informados, se o conhecimentoque nos é passado ativasse as nossas forças depensamento, isso talvez não acontecesse de maneiratão descarada. Parece provocação dos meios decomunicação ocultar esses acontecimentos, num paísonde o desrespeito à lei é absolutamente flagrante.Hoje em dia no Brasil, respeitar a lei pode parecerum gesto anarquista.

Nós não vivemos em uma Democracia. Há muitotempo que estamos longe de uma sociedade que sealimenta de valores democráticos. Vivemos sim numaplutocracia, que é o governo dos ricos sobre os pobres,e que vem produzindo todos os mecanismosnecessários para manter esse atual estado de coisa.Parece ser necessário um velho português chamadoSaramago, que já não se interessa mais pela imprensaou pelo sucesso, para dizer que os artistas e osintelectuais não deveriam emprestar a sua autoridadepara dizer que vivemos numa sociedade de expressãolivre, ou seja, seria melhor que se calassem. Essa poderiase transformar na sua atividade crítica por excelência.Nesse caso, dos males, o menor.

Nesse sentido, não dá para dizer que somosperiodicamente informados. O que recebemos sãopalavras de ordem, e o que é mais terrível é que,normalmente, essas palavras de ordem sugeremcomportamentos contrários ao nosso interesse. Sendo

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assim, me parece que os meios de comunicação, emvez de cobrir os fatos, encobrem os acontecimentos.

Eu terminaria com a seguinte provocação: senão somos capazes de colocar em questão ou colocarem suspensão os princípios ou os valores a partirdos quais a gente tem produzido as nossas avaliações,parece que a gente está criando uma triste rede deredundância em torno de palavras de ordem e nãoem torno de pensamentos construídos coletivamentee que buscam produzir efeitos, também, coletivos.

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COMUNICAÇÃO E NOVASCOMUNICAÇÃO E NOVASCOMUNICAÇÃO E NOVASCOMUNICAÇÃO E NOVASCOMUNICAÇÃO E NOVASTECNOLOGIASTECNOLOGIASTECNOLOGIASTECNOLOGIASTECNOLOGIAS

1 Jornalista, mestre em Educação (UFC) e coordenador do curso deComunicação Social – FA7.

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Ismael Furtado1

Resumo Resumo Resumo Resumo Resumo – Vivemos em uma era marcada pela velocidadedo desenvolvimento tecnológico. Tentaremos traçar umresumo da evolução do jornal impresso. Acompanharemosos seus avanços tecnológicos, sua transformação deatividade artesanal em um produto industrial e o impactodos novos instrumentos tecnológicos de comunicação,como o telefone e o telégrafo. Relataremos também umpouco da história da Internet, sua origem na guerra friaaté a sua transformação em um poderoso meio de comu-nicação multimídia.

Palavras-chave:Palavras-chave:Palavras-chave:Palavras-chave:Palavras-chave: novas tecnologias, internet, imprensa.

AbstractAbstractAbstractAbstractAbstract – We live in an age marked by the speed oftechnological development. The question here is to presenta synopsis of the evolution in press journalism. We will tryto follow the technological progress, the transformationof a manual activity into an industrial process and theimpact of new technologies of communication such astelephone and telegraph. Then, we will present a shortsummary of the history of Internet, its origins – drom theCold War period until its transformation into a powerfulinstrument of multimedia communication.

Key Words:Key Words:Key Words:Key Words:Key Words: press, new technologies, internet.

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INTRODUÇÃOINTRODUÇÃOINTRODUÇÃOINTRODUÇÃOINTRODUÇÃO

Vivemos em uma era marcada pela velocidadedo desenvolvimento tecnológico. Os avanços daciência, sobretudo das telecomunicações e da infor-mática, estão produzindo cada vez mais rapida-mente profundas transformações em nosso modode pensar, interagir e viver.

Essa velocidade muitas vezes não nos permiterefletir sobre essas novas tecnologias e suas impli-cações em nossas vidas. Com a mesma rapidez comque são desenvolvidos, esses novos aparatos tecno-lógicos são incorporados ao nosso cotidiano, emum processo que não desperta a reflexão críticasobre o impacto dessas novas tecnologias.

Quem, há cinco anos, poderia prever que, empoucos anos, estaríamos portando telefones emnossos bolsos? E, no entanto, hoje convivemos coma telefonia celular com a naturalidade de umacessório indispensável. Qual a reflexão sistema-tizada, de base científica, elaborada sobre esseimportante meio de comunicação? Desconhecemos.Certamente a velocidade com que o telefone celularfoi incorporado ao nosso cotidiano atropelou apossibilidade de uma análise sobre o impacto datelefonia móvel no comportamento de seus usuários.

Neste momento, uma outra tecnologia estásendo popularizada rapidamente, modificando amaneira de transmitir e receber informações, emum processo semelhante ao que ocorreu comatelefonia celular.

Em apenas três anos, a Internet deixou de seruma aspiração da comunidade acadêmica para setornar um serviço de informação, entretenimento,comércio e lazer utilizado por milhões de pessoasem todos os recantos do mundo. Com a grande redemundial e seus recursos de comunicação, surge uma

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nova e poderosa mídia, rapidamente descobertapelas empresas de comunicação. Em pouco tempo,jornais e revistas ganharam uma versão eletrônicae inauguraram suas edições no universo virtual dascomunicações via Internet – o ciberespaço.

A virtualização dos jornais marca o início deuma verdadeira revolução na forma de coletar,editar, distribuir e acessar informações. Em menosde dois anos, os jornais eletrônicos deixaram deser meras reproduções dos jornais impressos, eaperfeiçoando-se, passaram a explorar todos os seusrecursos de interatividade e multimídia, iniciaramo desenvolvimento de uma linguagem própria ealcançaram uma auto-satisfação financeira.

A Internet consolidou-se como uma nova epoderosa mídia e acabou por influenciar a técnicae a forma dos jornais impressos. O desenvolvimentoe popularização dos recursos da Internet levarama que os jornais, mesmo os que não contam comuma versão eletrônica, utilizem-se, por exemplo,do correio eletrônico para interagir com seus lei-tores. Isso sem falar nas influências na progra-mação visual e na formatação dos textos e a amplautilização de ícones e infográficos. Existe cada vezmais hoje em dia uma confluência, uma articulaçãoe uma complementação entre versões eletrônicas eimpressas dos jornais.

Mas se a velocidade das transformações nojornalismo, originadas pelo uso intensivo datecnologia representa uma limitação para umareflexão teórica; mas essa limitação não implicaem uma impossibilidade. Ainda que de formasuperficial e passível de uma rápida defasagemcom relação à realidade, é possível pensar epesquisar as novas tecnologias da comunicação emdesenvolvimento, antes que elas sejam assimiladasde forma não crítica em nosso dia-a-dia.

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Acreditando nessa premissa, nos propomos aaqui elaborar uma breve reflexão sobre o jornalismona Internet, através de uma análise descritiva daevolução do jornalismo impresso, a criação da gran-de rede mundial, a criação da grande rede mundial,do hipertexto e do ambiente gráfico.

Mesmo as pesquisas que realizamos atravésda Internet apontam para uma produção teóricaainda muito pequena sobre o jornalismo na granderede. A velocidade do avanço tecnológico parecenão ser acompanhada pelo avanço da reflexãoteórica. Vem dessa limitação bibliográfica a inconsis-tência teórica, a ausência de referenciais e o recursoao método descritivo como metodologia do presentetrabalho. Muitas das informações aqui apresentadasforam obtidas com a utilização das ferramentas debusca da internet. Mais que uma coerência internacom o tema do trabalho, isso representa uma novae ilimitada forma de pesquisa para os trabalhosacadêmicos que, por certo, doravante estará in-corporada a todo trabalho de produção de inspi-ração científica.

Mesmo diante das dificuldades bibliográficas,e da ausência de outros trabalhos nessa área, ondepudéssemos nos referenciar, resolvemos seguir como desafio de compreender, ainda que superfi-cialmente, a evolução do jornalismo eletrônico quecoloca na ordem do dia a questão da sobrevivênciados jornais no formato impresso, antes que essastransformações sejam incorporadas ao nosso coti-diano sem uma reflexão.

Tentaremos traçar um resumo da evolução dojornal impresso. Acompanharemos os seus avançostecnológicos, sua transformação de atividade arte-sanal em um produto industrial e o impacto dosnovos instrumentos tecnológicos de comunicação,como o telefone e o telégrafo. Relataremos também

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um pouco da história da Internet, sua origem naguerra fria até a sua transformação em um poderosomeio de comunicação multimídia.

Percorrer sem bússola ou quadrante a es-trada tortuosa do novo jornalismo eletrônico re-presentou uma saborosa aventura, quando des-cobrimos a alegria de desbravar novos caminhosque se abrem para novas fronteiras, onde o desejode novos conhecimentos nos convida a novasviagens. Naveguemos.

11111 DA PRENSA DE GUTEMBERG À IMPRENSADA PRENSA DE GUTEMBERG À IMPRENSADA PRENSA DE GUTEMBERG À IMPRENSADA PRENSA DE GUTEMBERG À IMPRENSADA PRENSA DE GUTEMBERG À IMPRENSAINTERATIVA: A EVOLUÇÃO NECESSÁRIAINTERATIVA: A EVOLUÇÃO NECESSÁRIAINTERATIVA: A EVOLUÇÃO NECESSÁRIAINTERATIVA: A EVOLUÇÃO NECESSÁRIAINTERATIVA: A EVOLUÇÃO NECESSÁRIA

Passados mais de 400 anos da revolucionáriainvenção de Gutenberg, uma aparente imobili-dade tornava quase que inalterado o processocriado pelo ourives de Mogúncia. Os tipos móveise a prensa para impressão abriram um novo eamplo horizonte para as mensagens escritas, ini-ciando uma poderosa onda de transformaçõesque ainda não havia se revelado em sua plenitude.A necessidade de cultura e de conhecimento, astransformações no modo de produção e sua conse-qüente repercussão nas relações sociais, a expansãodas ciências e dos limites geográficos de um mundoque começava a romper suas próprias fronteiras,contrastavam com um único e inalterado processode reprodução do conhecimento.

Até o começo do século XIX, a prensa deGutenberg modificara-se muito pouco em suaestrutura. Ao contrário do inexorável processo deindustrialização advindo com a revolução industrial,a imprensa continuava como um sistema de produ-ção manual, em um processo lento, caro e de caráterquase que artesanal. As inovações de Gutenbergpermitiram a passagem de uma cultura oral para

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uma “cultura de mídia” e contribuíram diretamentepara imprimir uma grande velocidade na evoluçãodas transformações sociais, alimentando fortescorrentes de liberdade e progresso que mudaram operfil do planeta.

Mas a contradição entre os avanços da indus-trialização e o processo artesanal da imprensa erainsustentável, e ao final do século XIX a roda dahistória e a alavanca do progresso puseram-se emmovimento, num ritmo alucinante. Em menos decem anos passou-se da prensa manual ao jornalem cores. Um salto fantástico.

Não é uma tarefa simples estabelecer opropulsor que mais contribuiu para a aceleraçãodo processo. O único elemento ao qual podemosnos ater com segurança para compreendermos oritmo dessas transformações é, sem dúvidas, aintrínseca relação entre o desenvolvimento sociale o crescimento qualitativo e quantitativo dossistemas de comunicação entre os homens. Comoafirmou Garrat,...

Só podemos compreender plenamente osignificado e o andamento das evoluçõeshistóricas, sociais e políticas se as relacionarmosàs condições contemporâneas da técnica dascomunicações. (1)

2 A IDÉIA DO JORNAL2 A IDÉIA DO JORNAL2 A IDÉIA DO JORNAL2 A IDÉIA DO JORNAL2 A IDÉIA DO JORNAL

No início do século XVI o livro não era maisa única forma sistematizada de mensagem im-pressa. A quantidade e a variedade de tentativascom o objetivo de expressar o pensamento pormeio da imprensa, tomam praticamente impossíveldeterminar a data exata do nascimento da idéiado jornal na acepção completa do termo. As

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primeiras publicações nesse sentido foram os“livros de notícias”, uma iniciativa de sagazeseditores e impressores de formatar os boletins deinformações políticas e econômicas que circulavamentre as sedes centrais e periféricas das grandescompanhias de comércio. O mais antigo “livro denotícias” que se tem conhecimento, em inglês, é oThe Treve Encountre, de 1513. Os “livros 16 denotícias” não tardaram a assumir uma maiorvariedade de conteúdo e, a seguir, uma relativaperiodicidade. Esse formato primitivo de jornalexpandiu-se por toda a Europa. Em Veneza e naFrança foram chamados de “avisos” e “gazetas” ede “news papers”, na Inglaterra.

Passadas algumas décadas, surgem as pri-meiras publicações voltadas a uma temática maisabrangente, objetivando a superação da erudiçãoe da seriedade dos textos onde, segundo GiovanniGiovannini, “com simplicidade e, ao mesmo tempo,com decoro, se encontram crônicas diárias, novelas,críticas e, sabe-se lá, até fofocas”. (2)

A precariedade dos registros históricos nãopermite uma reconstituição exata do processo deformatação de um contorno mais próximo àscaracterísticas do jornal. O “aviso” Relation oderZeitung, semanário publicado em Estrasburgo e emAugusta em 1609, é citado por várias fontes comoo primeiro jornal, no sentido atual da palavra. Outrapublicação significativa na história do jornal é osemanário Gazette, fundado pelo médicoTheophraste Renaudot, que em 1631 era publicadono formato 22x16 com artigos compostos numacoluna e com conteúdos que nos remetem àconcepção moderna de um veículo de variedades.Com o apoio de Richelieu e colaborações de LuísXII, a Gazette conquistou uma credibilidadeincomum. A partir de 1631, e por um longo pe-

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ríodo, jornalistas, editores e impressores das“folhas de notícias” mantiveram uma nítidaposição de vanguarda ao adotar duas caracte-rísticas ainda hoje muito importantes para osjornais: um relacionamento direto com os leitores,através da publicação de seções de cartas e umahábil paginação, se considerarmos os recursosdisponíveis na época.

Assim, a idéia do jornal tem origens maisantigas do que as grandes inovações técnicas esócio-políticas do século XIX. Entretanto, asprimeiras formas orgânicas de jornais vão serencontradas na Inglaterra, no início do séculoXVIII. A abertura das primeiras linhas regularesde correio entre Denver e Londres permitiu apublicação dos primeiros jornais diários. Ofornecimento regular, ainda que atrasado, denotícias do exterior, permitiu aos jomais DailyCourant (1702), Daily Post (1719), Daily Joumal(1720) e ao Daily Advertiser (1730), indicar nocabeçalho a freqüência cotidiana.

Surge então o primeiro esboço do que viriaa ser o jornalismo político. Na melhor das hipó-teses, os jornais do século XVII publicavam umconjunto de notícias insignificantes. A partir de1704, a crescente-ebulição política leva à publi-cação dos primeiros artigos, assinados por atoresdestacados do cenário político. Na mesma épocasurgem os primeiros anúncios pagos.

A experiência inglesa não se espalhourapidamente pela Europa. Na França, a censuraretardou até 1777 a circulação do primeiro jornalcotidiano francês, o Joumal de Paris. Uma repressãoque se transformaria, alguns anos mais tarde,através da conquista da liberdade de imprensaadvinda com a Revolução, em uma avalanche depublicações. Nos primeiros anos pós-revolucio-

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nários, a necessidade de livre expressão de um povoque tomava em suas mãos o seu destino, fez comque Paris chegasse a contar com 350 jornais diários.Alguns desses jornais eram porta-vozes diretos designificativos cidadãos: Le Comere de Provence, deMirabeau, Le Patriote Français, de Brissot, Les Révo-lutions de Paris, de Prudhomme e L' ami du Peuple,de Marat.

Uma onda de liberdade e uma renovada sedede conhecimento contribuíam, de modo decisivo,para o desenvolvimento dos jornais. A “Declaraçãodos Direitos”, de 1791, resumia, em seus dezesseteartigos, os princípios do liberalismo e as prefigu-rações do Estado democrático moderno. A impor-tância cultural das transformações dessa épocarepercutiu de forma profunda em todo o mundo.Giuliano Gaeta, em sua Storia del giomalismo nãohesita em atribuir a Diderot e D'Alembert, junta-mente com Rousseau, Holbach, Turgout, Grimm eoutros iluministas, o papel de verdadeiros “jorna-listas”, uma vez que as suas obras fundamentaisentenderam que “uma quantidade de notíciascientíficas devia se tornar acessível ao público médioburguês” (3) que encontraram nos jornais, o seuveículo natural de difusão.

33333 A REVOLUÇÃO INDUSTRIAL CHEGA AOS JORNAISA REVOLUÇÃO INDUSTRIAL CHEGA AOS JORNAISA REVOLUÇÃO INDUSTRIAL CHEGA AOS JORNAISA REVOLUÇÃO INDUSTRIAL CHEGA AOS JORNAISA REVOLUÇÃO INDUSTRIAL CHEGA AOS JORNAIS

A efervescência política e cultural e a ampliaçãodas iniciativas editoriais contribuíram sobremodopara desencadear a busca por novos instrumentostecnológicos capazes de atender á demanda e à cele-ridade exigidas por uma imprensa emergente. Osaperfeiçoamentos na produção, em escala industrial,dos jornais, avançavam a passos muito lentos. Aslimitações iniciais sobre o “que escrever” estavam,ainda que parcialmente, superadas.

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Um dos fatores que bloqueavam a expansãoda imprensa era a produção do papel, em pequenaescala, o que implicava em custos elevados. Em1798, Nicolas Louis Robert, na fábrica de papel deEssones, na França, realiza a primeira experiênciade fabricação mecanizada do papel, com a utilizaçãode uma “contínua” em plano, conseguindo aumen-tar em dez vezes a produtividade, dando início aindustrialização do papel, que em suas sucessivasevoluções veio a contar com a contribuição decisivada química. A eliminação da produção manual de papelrespondia efetivamente aos desafios tecnológicos que,se não fossem superados, certamente acarretariam orisco de interromper, de modo brusco, o desenvol-vimento das comunicações de massa.

Permaneciam ainda como grandes desafios àsquestões relativas aos métodos de impressão e aossistemas de composição. A seguir, apresentaremosum esboço da evolução dos processos gráficosfundamentais para a massificação dos jornais.Observado apenas o aspecto1ecnológico e indus-trial, o parque gráfico dos jornais do século XVIIpouco evoluíram em relação à invenção de Guten-berg. Para que isso acontecesse, não contribuiusomente a lentidão do desenvolvimento técniconessa área. Juntamente com a ausência de inovaçõessignificativas, a hostilidade contra as mudanças nosprocessos de produção gráfica emperrava oprocesso. Curiosamente, o combate às inovações ea defesa da “velha profissão” e seu caráter artesanalse deu, inclusive, com o apoio empresarial. Aocorporativismo e ao temor do novo, se somou umadesconfiança acentuada dos patrões quanto àcoexistência entre o trabalho veloz e a qualidadedo produto final. A tradição artesanal, em contraponto com o caráter industrial emergente dos novosprocessos de produção, contribuíram para retardar

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a adoção de novas técnicas. Ilustra bem esse mo-mento histórico um episódio ocorrido em 1721,quando os tipógrafos de Jena obtiveram por partedas autoridades municipais a proibição do uso deuma prensa manual mais aperfeiçoada. Segundonos relata Giovannini, um impressor, porta-voz deseus colegas, definiu assim o modelo de prensaaperfeiçoado: “Um maldito demônio infernal quetentava perturbar a tranqüilidade alcançada pelostipógrafos”. (4)

Esse acontecimento, se não foi um protestopioneiro, revela-nos claramente a antiguidade dosprotestos das classes trabalhadoras contra a adoçãode novas tecnologias pelas empresas, um fato cadavez mais presente em nossos tempos, e que voltaremosa abordar em capítulos posteriores. Inicialmente, asprensas eram inteiramente fabricadas em madeira esua estrutura era muito pesada, dificultando oacionamento de seus mecanismos. Com o passar dotempo, a utilização de materiais metálicos tornou aarmação mais leve. As engrenagens em metal e ainstalação de contrapesos facilitaram o manuseio. Masem sua essência, o princípio que orientava seu funcio-namento permanecia o mesmo. A primeira esignificativa evolução da prensa é atribuída a ummatemático diletante, o conde Charles MahonSthanh'Ope, que idealizou uma estrutura de ferrocapaz de dar maior pressão no momento em que secomprimiam os tipos contra o papel. Na América,George Clymer, um marceneiro, idealizou em 1813um mecanismo de alavancas e contrapesos queeliminavam o parafuso de pressão. Desenvolvendoessa técnica, a R.W. Cope lançava em 1820 asimpressoras “Columbia” e “Albion”, com grandequalidade de impressão, peso reduzido e simplicidadede operação. A venda massiva desses modelosatestava o seu sucesso. Mas isso não era suficiente. O

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crescimento da indústria exigia um novo tipo demáquina que para ser acionada não mais dependesse,como único recurso, da força humana.

As condições históricas e científicas para apassagem do processo artesanal para o industrialestavam postas. A construção dos primeiros mo-tores a vapor constituiu o âmago da revoluçãoindustrial e fundamentavam uma série de grandestransformações no modo de produção. Em 1810,Frederick Koening, tipógrafo saxão, construiu sobencomenda de Thomas Bensley, editor londrino,a primeira máquina acionada a vapor. Não erauma estrutura complexa: acionada por um motor,que substituía os braços do homem, um conjuntode cilindros de tingimento, alimentado por umpequeno reservatório de tinta molhava automa-ticamente os tipos expostos. A invenção deKoening não obteve sucesso imediato. Apenas em1814 o jornal londrino Times anunciava a adoçãodo sistema, passando a ser um verdadeiro labo-ratório de pesquisas aonde viriam a ser de-senvolvidas as técnicas de cilindros múltiplos edupla impressão.

Nesse momento da história estavam dispo-níveis as condições fundamentais para a implan-tação de uma das maiores transformações naindústria gráfica: a utilização de prensas rotativas,nos moldes como conhecemos em nossos dias. Aenergia térmica (posteriormente substituída pelaenergia elétrica) e o princípio dos cilindros rota-tivos, aliados às tintas especiais, deram as con-dições básicas para um grande salto tecnológico.Em 1854, Charles Craske conseguiu fundir aspáginas do New Yark Herald em chapas adaptáveisà curvatura do cilindro. O Times de Londrespersistia no pioneirismo e em 1848 colocava emfuncionamento uma máquina que utilizava papel

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em bobina, imprimindo as duas faces do papelna surpreendente velocidade de 8.000 exemplarespor hora. A redução dos custos de impressãoobtidos por esses sistemas, aproximadamente25%, detonou uma corrida aos investimentos emnovas técnicas de impressão.

Por volta de 1890, as páginas impressaspassam a reproduzir fotos e ilustrações, ganhandomaior leveza. Inicia-se a utilização dos primeirosclichês em meia-tinta. As matrizes em chumbo,as chamadas “composições à quente” aindapredominavam, mas ensaiavam-se os primeirospassos da rotogravura, um processo com a utili-zação de cobre, e que por sua excelente qualidade,com ilustrações e fotos, mostrou-se desde o início,mais recomendado na produção de revistas. Sepor um lado encontramos um rápido desenvol-vimento dos processos de impressão, a compo-sição mecânica, isto é, a formação de chapas paraimpressão, ainda se dava de forma manual. O“compositor” usava técnicas diferentes daquelasdos séculos XV e XVI. Não se fazia mais a fusãodos tipos (caracteres) um a um, mas a máquinapara compor ainda estava muito longe deaparecer. O modo de composição artesanal eraconsiderado pelos editores e tipógrafos como aúnica e verdadeira garantia de qualidade doproduto final. As tentativas de mudança eramconsideradas como um verdadeiro atentado à artegráfica. Mas a despeito dessa resistência, astentativas de produção de uma máquina decomposição resultaram no patenteamento de maisde 200 tipos de equipamentos, que se não alcan-çaram o sucesso desejado, contribuíram para oaparecimento da máquina definitiva, e que iriainiciar uma série de transformações na produçãográfica: o linotipo.

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A origem do nome linotipo é um tanto curiosa.Durante sua apresentação, um tipógrafo exclamouentusiasmado diante da máquina: “one linetypes!”(uma linha de tipos!). A expressão de fascínio erajustificada. Nada de tipos isolados, alinhados umjunto ao outro nas dezenas de caixinhas docomponedor. Linhas inteiras, segundo a larguraescolhida, numa velocidade de 5 a 6 mil batidashorárias sobre um teclado, com a utilização de umúnico operador. Embora muitos técnicos de diversasnacionalidades tenham contribuído em sua cons-trução, o mérito da invenção do Linotipo é atribuídoao alemão Ottmaar Mergenthaler. A fabricação emsérie inicia-se em 1890, e em 1894 a nova compo-sitora automática estava presente em todos osgrandes jornais da Europa. Com a Linotipo, osjornais ganharam mais qualidade, graças autilização mais adequada dos tipos diferenciadospara títulos e textos. Mas se a técnica da Linotipoconquistou rápida aceitação, nas empresas elatambém deu origem a uma série de conflitos com ooperariado. Entre 1895 e 1915, operários maisidosos foram substituídos por jovens que enxer-gavam melhor e eram mais rápidos. O “mestre com-positor” perdia espaço para o linotipista, um profis-sional que passou a ocupar um papel central naorganização do trabalho. A importância da linotipopode ser melhor compreendida nas palavras deGiovanni Giovannini:

A Linotipo representou, até 1960, mesmo nospaíses dotados de uma tecnologia de vanguarda,uma espécie de símbolo com o qual se costumavaidentificar as fases mais Intensas e febris naelaboração do jornal. O seu ritmo acompanhou acomposição de noticias e comentários no decorrer

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de um dos períodos mais trágicos da históriamoderna. Um período repleto de acontecimentosterríveis, com duas guerras mundiais e a primeiraexplosão atômica. (5)

Os cilindros do tempo giraram e no espaço desessenta anos a linotipo foi transferida do centro dosparques gráficos para os salões de entrada, expostacomo testemunha de como o jornal era feitoantigamente. Mas, as grandes transformações nomodo de produção dos jornais não se limitavamapenas às questões de sua produção industrial,enquanto bem de consumo, cada vez mais massificadonos quatros cantos do planeta. Saindo da áreaindustrial dos jornais e adentrando no universo dasredações, onde se produziam as informações quegiravam em máquinas cada vez mais velozes,encontramos um mundo em transformação, sob oforte impacto de tecnologias que mudavam o processode levantamento, apuração e redação das notíciasno jornalismo impresso.

44444 O RÁDIO, O TELÉGRAFO, O TELEFONE E OSO RÁDIO, O TELÉGRAFO, O TELEFONE E OSO RÁDIO, O TELÉGRAFO, O TELEFONE E OSO RÁDIO, O TELÉGRAFO, O TELEFONE E OSO RÁDIO, O TELÉGRAFO, O TELEFONE E OSJORNAIS: A TELECOMUNICAÇÃO MANDAJORNAIS: A TELECOMUNICAÇÃO MANDAJORNAIS: A TELECOMUNICAÇÃO MANDAJORNAIS: A TELECOMUNICAÇÃO MANDAJORNAIS: A TELECOMUNICAÇÃO MANDASEUS PRIMEIROS SINAISSEUS PRIMEIROS SINAISSEUS PRIMEIROS SINAISSEUS PRIMEIROS SINAISSEUS PRIMEIROS SINAIS

Poucos anos após a afirmação do linotipo e darotativa, e sua contribuição para reduzir o tempode circulação das informações, o mundo assistia àsprimeiras transmissões de rádio. No final de 1870,Edson, com o seu fonógrafo, tinha conseguido gravare conservar a voz humana. A mesma voz que, mesmonão estando gravada, podia alcançar nossas casas etornar-se uma mídia alternativa ao jornal e ao papelimpresso em geral. Em 1896 Gugliemo Marconiconseguiu transmitir a voz, através da históricaexperiência realizada em Pontecchio, criando, na

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prática, a primeira antena irradiadora. Por 25 anosfoi considerado um grave defeito o fato de que erapossível captar com relativa facilidade as mensagensque, da estação transmissora, eram endereçadas aum destinatário especifico. Por muito tempo pesqui-sou-se um método, não para a utilização do rádiocomo um instrumento de comunicação coletiva, massim como um aparelho que através da propagaçãodas ondas magnéticas garantisse a reserva e o sigilodas transmissões.

Dessa forma às avessas, o rádio permaneceuaté o final da primeira grande guerra mundial,quando começou a tirar vantagem daquilo que eraconsiderado um grave defeito. Assim, por meradiversão, começam as primeiras transmissões naInglaterra e EUA de “cantos, pequenos recitais e osom de discos gramafônicos”(6). O dia 15 de junhode 1920 representa a data da reviravolta, em favordo grande público, do novo veiculo de comuni-cação. Da estação de Chelmsford é irradiado umconcerto da cantora Nellir Melba, captada em vastasextensões do território americano e a bordo de navios,em mares distantes. Um ano depois, na Marconi Housede Londres, entrava em atividade uma das primeirasestações européias de radiodifusão. Entre 1922 e1924, uma interminável série de experiências reali-zadas por Marconi alcançava resultados surpre-endentes. A descoberta das ondas curtas possibilitavaestender o alcance do rádio a grandes distânciasterrestres, abrindo espaço – para milhares de novoscanais de comunicação.

O potencial do rádio, como veículo de propa-ganda política, logo seria descoberto pelos regimesfascistas, que logo passam a investir em um projetoque o levaria a uma rápida ascensão na versão mais

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trabalhada da “máquina de atenção”. De 1929 a1940 o rádio experimentou um crescimento gigan-tesco na Itália, passando de menos de 1 00 mil para1, 3 milhão de assinantes. O projeto fascista vinha aoencontro de uma tendência espontânea das massasde fascínio pela nova mídia, de uso cada vez maisbarato e simplificado.

A invenção do transistor, em 1947, transformouo rádio num instrumento amplamente acessível àsgrandes massas. Noticias e idéias puderam, assim,alcançar grande parte da população, que não sabendoler devido ao analfabetismo disseminado, puderamcontribuir para o desenvolvimento de processospolíticos de enorme alcance social. Nos primeiros 50anos que se seguiram ao advento do rádio na décadade 20, os jornais sérios não sofreram graves golpes.O jornal periódico tinha vivido sua primeira e grandetemporada entre o final dos séculos XVIII e a primeirametade do século XIX. O diário, nascido dessaexperiência, dispunha de oportunidades inadiáveisexatamente devido à necessidade, sempre crescente,de garantir, a cada dia, a atualidade anteriormenteconfiada às publicações que saíam duas ou três vezespor semana. Mas o periódico, longe de ser consideradoesgotado o seu papel, com o advento do rádio e a suainstantaneidade, teve reforçado o seu papel deinstrumento voltado para o aprofundamento, aanálise, a reflexão e a crítica dos acontecimentoscorrentes, ao mesmo tempo em que convergia parao caminho da especialização e da especificidade.

Mas, se o rádio vem contribuir para a defi-nição do papel do jornal enquanto veículo de infor-mação, o telégrafo vem exercer um papel dos maisdecisivos no processo de coleta e distribuição denotícias, com impacto imediato nas redações. Ahistória do telégrafo se perde na noite das eras.

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Por muitos séculos tratou-se de um sistema decomunicação “a vista”, também chamado de ótico.Os primeiros a utilizá-lo foram os cartageneses querecorriam à fumaça durante o dia e à luz, durantea noite para a transmissão de sinais à distância.Ao longo do tempo, o telégrafo ganha uma enormevariedade de formas: sinalização com bandeiras,utilizado na navegação, sinalizadores articuladosde madeira, entre outros artifícios.

O primeiro telégrafo elétrico rudimentar foidesenvolvido por P. C. Lesage em Genebra, e datade 1754. Era um mecanismo com 24 fios metálicoscorrespondentes às 24 letras. Noventa anos depois,com o surgimento das primeiras pilhas, do conceitode baixa tensão, e a descoberta da relação entreeletricidade e magnetismo, estavam criadas asbases para o desenvolvimento do telégrafo. Em1855, o modelo desenvolvido pelo americano D.E. Hughes alcançava a fabulosa capacidade detransmitir e receber cerca de 1.500 palavras porhora. Mas como acontece a cada nova evoluçãotecnológica, o aperfeiçoamento do telégrafo nãoteve logo sua potencialidade vislumbrada. Em seusprimeiros anos, difundiu-se a idéia de que o telé-grafo se prestaria apenas a círculos restritos, semgrandes repercussões no modo de vida das pessoas.Mas um movimento histórico iria transformar essarealidade e o telégrafo teria sua importância reco-nhecida para as comunicações.

Na metade do século XIX a expansão dacolonização dos Estados Unidos do Atlântico atéao Pacífico trouxe para o governo federal norte-americano o problema proeminente da questãodo sistema de comunicações, fundamental paraa integração do país. Não é por acaso que umcidadão americano realizou a primeira ligaçãotelegráfica através dos oceanos. O sucesso da

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interligação dos EUA através do telégrafo levou auma expansão mundial desse novo sistema decomunicações. Em 1852 a Inglaterra contava commais de 6.400 quilômetros de linhas telegráficas.

A expansão dos recursos dos telégrafosencontraria na ponta da linha um cliente especial,sempre ávido por informações rápidas e confiáveis:os jornais. O mundo ficava menor, a circulação deinformações acelerava. Os jornais rapidamenteperceberam a preciosidade dessa nova fonte. Nomomento em que se realiza a ligação entre cidades,países e continentes amplia-se consideravelmente ocampo dos conhecimentos dos fatos, das notícias edos acontecimentos. Com a afirmação do telégrafo,a crônica passa a ser a “crônica do mundo”, com asconseqüências que hoje podemos melhor avaliar.Com o tempo, assimilados os recursos do telégrafo,os jornais passaram a necessitar de algo maisespecífico. Já não bastavam as ligações ponto-a-ponto. Os jornais necessitavam de transmissões maisrápidas, facilidade de operação e a possibilidade deir às origens da informação. Com a evolução doscódigos e sistemas de transmissão, e a expansão daslinhas, as necessidades dos jornais estariam atendi-das. Surgem as primeiras agências de notícias, quepassam a centralizar e distribuir aos jornais os acon-tecimentos de todo o mundo.

O telégrafo tinha aberto novas e florescentesoportunidades para o mundo das comunicações.A notícia transformou-se em uma mercadoriainteressante para os jornais, que encontravam oscanais de transmissão e de difusão adequados aum sistema de mídia, que a despeito dos precon-ceitos e ceticismos, caminhava a passos largos paraa sua consolidação em constante interação comnovos aparatos tecnológicos, como afirma Gio-vanni Giovannini:

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O caminho do progresso científico, que iapouco a pouco se entrelaçando com a evoluçãodo Instrumento tecnológico, ainda estava repletode obstáculos e dificuldades de todos os tipos.Incredulidade, desconfiança, ceticismo e, quasesempre, clamorosa manifestações de Imaturi-dade cultural. (7)

Em meio à guerra surda entre o avanço técnicoe o ceticismo, um invento fundamental para que ahumanidade alcançasse o seu atual estágio deprogresso seria apresentado ao mundo: o telefone.A criação de Bell somente foi possível com osavanços obtidos através da maturação técnica dotelégrafo, que já permitiam a comutação de linhas,criando as primeiras redes de comunicação.Inicialmente, o uso da telefonia para grandes distân-cias encontrou obstáculos que somente cinqüentaanos depois seriam solucionados, com a adoção denovos materiais nas linhas, a utilização de válvulase criação dos aparelhos repetidores. Apresentadoaos olhos de um mundo maravilhado, na exposiçãoda Filadélfia, em 1876, o telefone seria o meio decomunicação percussor de uma tendência consoli-dada em nossos dias: a junção com outros meios,originando novas formas e recursos de comu-nicação. Com o advento do rádio, o telefone passoua utilizar as ondas eletromagnéticas de transmissão,em uma velocidade que, em nossos dias, seriachamada de “tempo real”.

Com o advento do telefone, os jornais entravamem uma nova era. Já não eram mais apenas emissoresde informações. A interatividade entre receptor eemissor da informação jornalística dava seus pri-meiros passos. Os leitores agora dispunham de umveículo de acesso aos órgãos de imprensa parareclamar, sugerir e opinar. Com a utilização do tele-

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fone, a própria organização do trabalho nas redaçõestransformou-se. Surgem os primeiros escritórios derepresentação dos jornais em pequenos centros. Doisnovos profissionais são acrescidos à ficha técnica dosjornais. Os correspondentes internacionais, forne-cendo informações e análises e o jornalista-estenó-grafo, encarregado de captar informações por tele-fone, transferido-as rapidamente para o papel emestenorafia, para posterior redação para publicação.Alguns anos depois, a “telefoto” chegaria às redações.

55555 OS COMPUTADORES CHEGAM AOS JORNAIS:OS COMPUTADORES CHEGAM AOS JORNAIS:OS COMPUTADORES CHEGAM AOS JORNAIS:OS COMPUTADORES CHEGAM AOS JORNAIS:OS COMPUTADORES CHEGAM AOS JORNAIS:O INÍCIO DE UMA NOVA ERAO INÍCIO DE UMA NOVA ERAO INÍCIO DE UMA NOVA ERAO INÍCIO DE UMA NOVA ERAO INÍCIO DE UMA NOVA ERA

Os primeiros computadores, ou “máquinaspensantes”, como eram chamados em seus primór-dios, originaram-se da evolução das primeirasmáquinas de cálculo, da álgebra e da lógica mate-mática, pilares científicos do sistema binário. As pri-meiras máquinas que podem ser reconhecidas comocomputadores, foram os artefatos utilizados natabulação do recenseamento norte-americano de1890, e as máquinas a relé do MIT (MassachusettsInstitute of Technology) e da Bell ThelephoneLaboratorie. Um marco da evolução dos compu-tadores é o ENIAC, uma máquina que ocupava umespaço de 30 metros de largura por 3 de altura e quecontava com 18 mil válvulas, utilizado pela marinhanorte-americana para cálculos de balística.

A evolução dos computadores contou com doisfatores político-econômicos fundamentais. Primeiro,a concentração da elite da ciência mundial noslaboratórios norte-americanos, fugindo em grandeparte dos horrores da guerra na Europa. O investi-mento bem sucedido em outras tecnologias deimediata aplicação comercial abriu os cofres degrandes corporações para o financiamento de pes-

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quisas. A corrida belicista beneficiava os grandescentros de pesquisa com generosas verbas governa-mentais. Essa parceria da ciência com os interessesmilitares, iniciado no desenvolvimento dos primeirosgrandes computadores, não seria interrompida aofinal da segunda grande guerra e viria a gerargrandes conquistas, como veremos no próximoartigo, a ser publicado nesta mesma coleção.

Em 1948, o transistor vem substituir as válvu-las, dando inicio ao desenvolvimento da micro-eletrônica. Mas o transistor teria vida curta. Apenasdoze anos mais tarde surgiriam os circuitosintegrados. O resultado direto desse processoevolutivo, foi o aumento gigantesco das capacidadesde memória e processamento e a redução dotamanho dos computadores. Esses avanços noHardware proporcionaram uma ampliaçãogigantesca no espectro de aplicações dos compu-tadores. Em 1971, a Intel, uma empresa da área desemicondutores, anunciava ao mundo o chip 4004,o primeiro microprocessador produzido em escalaindustrial, que marcaria a massificação dosmicrocomputadores que, em menos de duasdécadas, estariam presentes na quase todas asempresas e lares.

O grande salto tecnológico, determinante dasprincipais transformações no modo de viver,produzir e se informar das pessoas viria em breve.A telemática, a união da telefonia, das transmissõespor ondas de rádio e dos computadores, ensaiavaseus primeiros passos e começava a transformarsobremodo a atuação dos jornais e de seus profis-sionais. A primeira experiência registrada do usode computadores nas redações ocorre em 1960,no jornal New York Times, no controle de uma outraexperiência pioneira: a transmissão de uma edição

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para a tipografia Lamartine, em Paris. A importânciadesse acontecimento seria, na visão de GiovanniGiovannini “Uma demonstração clamorosa sobre apossibilidade de eliminar as inúteis fases repetitivas,mesmo se tudo acontecia com o auxilio de máquinastradicionais, tanto assim que a experiência foibatizada com o nome de telelinotipia”. (8)

O próximo passo da informatização seria otratamento eletrônico de textos. As pesquisas apontamque as primeiras experiências realizadas com aautomação das palavras teriam ocorrido no LosAngeles Times. Mas, para que isso fosse possível, umoutro avanço no processo de produção gráfica veiodar uma enorme contribuição. A fotocomposição, ummétodo que fotografa diretamente do papel o textodestinado a impressão. O grande salto desse sistemaera a possibilidade de produzir textos sem a utilizaçãodos tipos fundidos em chumbo. O próximo passo seriao desenvolvimento de software para a composiçãodos textos. Nos primeiros anos da década de 60,surgiam os primeiros sistemas computadorizados deformatação de texto. A implantação dessa novatecnologia encontrou um forte estímulo na tentativados grandes jornais americanos e europeus de reduzirseus custos para enfrentar a retração do mercado,causada, entre outros fatores, pela ascensão datelevisão. A resistência sindical se fez presente. A épocaregistra a eclosão de greves e manifestações deoperários gráficos, que anteviam um processo desubstituição da mão-de-obra humana por novossistemas e equipamentos. As máquinas ameaçavamconquistas sociais e trabalhistas.

Em marcha inexorável, do parque de máquinaspara a sala de redação, a informatização avançava,inaugurando os chamados “Sistemas Editoriais”. Odesenvolvimento de softwares específicos interligavatodos os setores dos grandes jornais. Após a redação,

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a montagem e a diagramação seriam as novas áreascontempladas com softwares especialistas. A evo-lução da informática distribuída, um dos avançosda telemática, substituía, nos jornais, as máquinasde escrever por terminais on line de computadoresde grande porte. As mudanças no modo de produçãoalteraram significativamente o modo de produçãodos jornais. De imediato, foram eliminadas asfunções de revisor e tipógrafo, as primeiras vitimasda informatização dos jornais. Outras atividadesforam completamente transformadas, como é o casodos diagramadores e dos paginadores. O avanço aacapacidade e da facilidade de acesso a grandesbancos de dados ameaçam o emprego de arquivistase bibliotecários. Outra modificação importantetrazida pelo computador nas redações foi a exigênciado “texto final”. Ao jornalista passou a caber aobrigatoriedade de “descer” sua matéria acabada,sem erros e retoques, aumentando a responsa-bilidade profissional. Não é preciso uma pesquisaaprofundada para constatar que apesar da adoçãode softwares corretores de textos, os erros de sintaxee concordância persistem em meio a um texto deuma qualidade cada vez mais determinada por ma-nuais e padrões.

Mas não param por aqui as mudanças naforma de trabalho do jornalista. A incorporaçãodas atividades típicas do revisor é apenas o primeiropasso. Com a diagramação disponível na tela doterminal, é factível pensarmos em um jornalistaescrevendo e diagramando sua coluna ou página,reduzindo o número de editores e eliminando boaparte dos setores de diagramação e montagem. Ou-tra perspectiva é a incorporação da atividade depesquisa, exigindo do jornalista a capacidade depesquisar em bancos de dados e em outros meios,

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diretamente de seu terminal, na redação. Osconhecimentos e aptidões exigidos do profissionaldo jornalismo ampliam-se consideravelmente,aumentando a seletividade em um mercado cadavez mais restrito. O processo de informatização dosjornais não pára. Tecnologias Direct to Plate parafotocomposição sem a utilização de químicos, aimpressão a laser, a digitalização completa dafotojornalismo, novos sistemas de editoraçãoeletrônica com ampla utilização de infográficos euso intensivo de cores são apenas algumas daslinhas de frente abertas para os avanços de novastecnologias no jornalismo impresso.

66666 AS NOVAS MÍDIAS ELETRÔNICASAS NOVAS MÍDIAS ELETRÔNICASAS NOVAS MÍDIAS ELETRÔNICASAS NOVAS MÍDIAS ELETRÔNICASAS NOVAS MÍDIAS ELETRÔNICAS

A expressão “novas mídias eletrônicas” surgeno início da década de 80, resultante de todo umleque de possibilidades abertas com a fusão crescentedos sistemas de transmissão de dados via cabotelefônico, ondas de rádio e sinais de satélites. Desseperíodo até nossos dias, muitas foram as “novasmídias” que fracassaram ou que obtiveram sucessorelativo. Outras alcançaram êxito inesperado oupassaram por evoluções de tal porte que se tornaramcompletamente diferentes de seu projeto inicial. Decomum a todos os projetos de “novas mídias”eletrônicas, está a tentativa de desenvolver veículossuficientemente velozes e ágeis para levar informa-ções em tempo real, uma conquista das telecomu-nicações. O desafio de romper os limites do espaçoe interligar, de forma interativa, o mundo aos escritó-rios e residências, estava lançado.

Talvez a mais velha das “novas mídias”eletrônicas seja o videotexto. A palavra videotextodesigna dois formatos de aplicações: o videotexto

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de difusão circular, também conhecido como tele-texto, e o videotexto interativo, também conhecidocomo viewdata. Nestes dois formatos, o sistemaconsiste em um computador central provedor deinformação, um terminal de TV adaptado ou omonitor do computador. O teletexto é uma mídiamono-direcional que utiliza os sinais de emissoras deTV para enviar textos ao usuário, e exibidos noaparelho de TV. O usuário pode selecionar previa-mente o tipo de noticiário que deseja receber. Ovideotexto circular começou a funcionar na Inglaterra,em 1974, através da sigla CEEFAX, mantido pela BBC.Apesar do relativo insucesso da experiência inglesa,quase todos os países europeus, além do Canadá edo Japão, mantiveram serviços de teletexto. Mas aexperiência do videotexto circular seria substituídaem pouco tempo por um modelo mais avançado ebidirecional de informações e serviços em tempo real:o videotexto interativo.

Desenvolvido pelo British Post Office, em 1978,o videotexto interativo inaugura uma nova e decisivaetapa para a consolidação das chamadas “novasmídias” eletrônicas. Em termos de equipamentos, odiferencial do videotexto interativo para o circularfica por conta da introdução de um novo equipa-mento, desenvolvido alguns anos antes, e que seincorporaria definitivamente às “novas mídias”, omodulador/demodulador, mais conhecido comomodem. A função do modem é transformar dadosem sinais telefônicos e vice-versa, permitindo aintegração definitiva da telefonia com a informáticae o acesso remoto a banco de dados, facilitando ainteração do homem com o computador. Ovideotexto interativo foi o primeiro sistema detransmissão de dados em duas vias, inaugurando aera da interatividade nas comunicações. Com o

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modem, o usuário do videotexto passou a interagircom o seu provedor de informação, selecionandoas informações, corno noticiário econômico, polí-tico, esportivo, previsão do tempo, informaçõessobre o trânsito, previsão do tempo, calendáriode espetáculos, horário de transportes, entreoutras informações e serviços. Outra inovaçãoadvinda com o surgimento do videotexto interativofoi a criação das primeiras empresas de serviçodestinadas à venda de informações – os provedoresde serviços.

Os primeiros provedores de informação, paradistribuição em videotexto, foram as empresas detelefonia. Em parceria com grandes jornais,agências de notícias e empresas de serviços, foramcriados os primeiros grandes bancos de dadosvoltados para o acesso em tempo real e em largaescala. Mas a orientação política dos governoseuropeus iria mudar esse quadro. Caberia àsempresas de telecomunicações a distribuição dasinformações, enquanto o fornecimento (jornais,agências, banco de dados) ficaria destinado àempresas privadas. Essa medida ampliou em muitoas fontes de informações disponíveis para osusuários do videotexto, e impulsionou a expansãodos provedores de informação, essenciais para aconsolidação das “novas mídias” eletrônicas.

Muito embora o videotexto interativo levasseàs casas e aos escritórios informações jornalísticasem tempo real, torna-se arriscado classificarmosessas experiências como sendo os primeiros “jornaiseletrônicos” ou “jornais na tela”, ou até mesmoestabelecer outras analogias ligadas ao jornalismoimpresso. De fato, no videotexto as informaçõesjornalísticas constituíam, apenas, mais um dosserviços disponibilizados, e que pela restrição dacapacidade de memória do sistema e da velocidade

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de transmissão, reduzia-se a um clipping sele-cionado pelo usuário, longe, portanto, de umaedição diária acessível por um computador e umalinha telefônica, o que somente seria possível algunsanos depois. No início da década de 80, os serviçosde videotextos alcançaram o seu apogeu e umarápida decadência. Para o quase desaparecimentodesses serviços, contribuíram uma série de fatores:o avanço da informática e a popularização de telase impressões em cores, a expansão das TVs a caboe sua segmentação e amplo leque de serviços, oredirecionamento da atuação dos provedores deinformação, o alto custo do serviço, a lentidão doacesso, entre outros. Mas, se os serviços de video-texto desapareceram, de sua experiência ficaramconquistas irreversíveis e tendências que viriam adeterminar toda a evolução das “novas mídias”eletrônicas. A interatividade, o acesso a informaçõesem tempo real e a ampliação da atuação dasempresas jornalísticas para o novo conceito deprovedores de informação e serviços, estariamdefinitivamente incorporados aos processos decomunicação dos novos tempos que se anunciavam.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASREFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASREFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASREFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASREFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

(1) Garrat. Elettronica per i Giornalisti. Simpósioda IFRA, Madri, 1° e 2 de abril de 1982. In:Giovannini, Giovani. Evolução na Comunicação doSilex ao Silício. Ed. Nova Fronteira, 1987. p. 144.

(2) Giovannini, Giovani. Evolução na Comunicaçãodo Silex ao Silício. Ed. Nova Fronteira, 1987. p. 147.

(3) Gaeta, Giuliano. Storia dei giornalismo. In:Giovannini, Giovani. Evolução na Comunicação doSilex ao Silício. Ed. Nova Fronteira, 1987. p. 150.

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(4) Giovannini, Giovani. Evolução na Comunicação doSilex ao Silício. Ed. Nova Fronteira, 1987. p. 169.

(5) Idem. p. 182.

(6) Idem. p. 184.

(7) Idem. p. 161. (7) Idem. pâg. 192.

(8) Idem. p. 187.

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Primórdios do telejornalismo no Ceará – Alberto Perdigão

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COMUNICAÇÃO E MÍDIACOMUNICAÇÃO E MÍDIACOMUNICAÇÃO E MÍDIACOMUNICAÇÃO E MÍDIACOMUNICAÇÃO E MÍDIACONTEMPORÂNEACONTEMPORÂNEACONTEMPORÂNEACONTEMPORÂNEACONTEMPORÂNEA

1 Publicitário e professor do curso de Comunicação Social – FA7.

João Paulo Marques Ribeiro1

ResumoResumoResumoResumoResumo – Esse artigo visa explorar a influência do universodas marcas na construção dos sistemas simbólicos contem-porâneos; de que maneira são construídas, como se insi-nuam nos universos perceptivos e cognitivos.

Palavras-chave:Palavras-chave:Palavras-chave:Palavras-chave:Palavras-chave: símbolos, marcas, velocidade.

Abstract Abstract Abstract Abstract Abstract – The article aims to explore the influence oflogos in the construction of contemporary symbolicsystems; how they come to be constructed, how they slipinto our perceptive and cognitive universe.

Key Words: Key Words: Key Words: Key Words: Key Words: symbols, logo, velocity.

INTRODUÇÃOINTRODUÇÃOINTRODUÇÃOINTRODUÇÃOINTRODUÇÃO

As logomarcas às quais estamos expostos nocotidiano urbano são um evento onipresente deestímulos de consumo. Geradas a partir de modelosde criação e métodos de exposição tecnológicos, elaspermeiam o ambiente urbano buscando garantir umespaço na mente do consumidor. São construídasmediante as necessidades de diferenciação nummercado extremamente competitivo em estímulosvisuais. Por isso seus significados verbais e não-verbais habitam composições visuais objetivas e

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necessariamente de fácil captação. Tal lógica deformas, cores e técnicas em disputa pela atenção doconsumidor ecoa no habitat urbano e compõe opanorama dos grandes centros. Um evento midiáticoacelerado que determina em grande parte o olhardos habitantes dos centros urbanos, operando navelocidade do turbocapitalismo. Conforme explanaLarrea (apud PETIT, 2003, p. 02):

Todos os dias assistimos ao que eu gosto dechamar de a guerra dos símbolos. Um embate ingratoque se desenvolve à nossa frente. Diariamente umaquantidade incontável de marcas nos espera comintenção de nos surpreender e trava-se entre elasuma batalha para chamar nossa atenção[...] Seabrimos o jornal, descobriremos que entre as notíciassaltam centenas de logotipos. Se pretendêssemosfazer uma lista, seria impossível finalizá-la. Cada umadelas tem uma história para contar, um currículopróprio e um designer que a criou.

Na velocidade de poderosas estações gráficasou de carona na coqueluche dos cibercafés, as maisdiversas intenções mercadológicas ganham formaatravés de acessíveis softwares gráficos. Na veloci-dade dos bits, no compasso da linha de montagem,milhares de marcas são construídas a cada minuto.O resultado desse processo de criação é corporificadofinalmente por avançados dispositivos de impressãoe aparatos de projeção tecnológicos. Através dessesmilhares de estímulos publicitários, um paradigmaestético impregnado de cultura industrial compõe ocotidiano urbano. E, analisando esse contexto desaturação visual, questionamos: a marca só é capazde se posicionar no mercado quando segue métodossecularizados do marketing, da publicidade e dodesign modernos? Num cenário onde os valores da

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indústria são postos em questão, a estética comercialurbana ainda seria adequada? Quando saturado dosestímulos do cenário urbano, o consumidor émotivado por quais tipos de estímulos visuais? Forada lógica urbana (objetiva, de alta precisão e cunhotecnológico), longe das intenções aceleradas dasociedade capitalista, quais elementos visuais sãocapazes de gerar associações positivas ao produto?

A partir de tantos questionamentos, chama-se a atenção para as logomarcas do ócio: represen-tações comerciais comuns às pequenas vilasturísticas, tais como Jericoacoara e Canoa Que-brada. Assim como vários ambientes dedicadosao ócio, esses dois destinos turísticos cearensescomungam de um critério estético ímpar. Repletasde imperfeições, carregadas de informação ecriadas a partir de técnicas rudimentares, as logo-marcas do ócio contradizem em várias instânciasa estética urbana e, conseqüentemente, várias leissecularizadas pelo marketing, publicidade edesign. Essas marcas serão ponto de partida paraessa análise que almeja melhor entendimentosobre a relação de consumo contemporânea emcontraste com um paradigma estético urbanosaturado. Impregnado pelas marcas onipresentesda cultura capitalista.

Nesse contexto, percebe-se que é precisobuscar uma melhor compreensão do olhar doconsumidor através do conhecimento da estética queos cerca e os tenta persuadir a cada contato. Nocaso, marcas do contexto urbano. Não obstante, faz-se indispensável um levantamento da história dessasmarcas urbanas, levantando também os contextosque determinaram e influenciaram sua estética.Assim poderemos reconhecer manifestações estéticasestranhas à lógica capitalista acelerada. E a partirdesse estudo, pode-se considerar a importância da

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investigação de estímulos visuais singulares fora docontexto urbano. Historicamente usadas compropósitos de diferenciação no mercado comercial,as marcas herdaram das artes seus métodos decriação e associação simbólica.

Conta Petit (1995) que a imagem da marcasurgiu na época dos mecenas. Eles eram os própriosdonos do negócio e usavam o talento dos artistaspara criar suas marcas. Petit Ressalta ainda que,por mais comercial e prático que fosse, existia umrefinamento e uma verdadeira criação, como sefosse uma obra de arte.

De acordo com Hurlburt (1980, p. 13),

O estilo do século XX – o que chamamos dedesign moderno – é uma complexa fecundaçãocruzada de influências e movimentos artísticos, istoé, seu desenvolvimento não seguiu uma simplesprogressão passo a passo de idéias e direções.

Naturalmente existe uma relação direta entreo discurso industrial, levantado aqui na atmosferade construção de marcas, e o uso da lógica artísticados movimentos estéticos que marcaram a eramoderna, a chamada arte aplicada. Influenciadapelos discursos visuais desta época, a relação entrea arte aplicada, publicidade e design é de grandeimportância para compreensão do critério quedireciona o processo de criação de marcas urbana.Só partir desse levantamento pode-se vislumbraruma visão mais ampla das origens da estéticaindustrial que, conseqüentemente, determinou opanorama visual urbano.

Conforme Aaker (2000) forças poderosas estãoinvestindo nesse contínuo interesse pelas marcas. Acapacidade em excesso, a competição viciosa pelopreço, a proliferação de produtos similares e

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varejistas poderosos é apenas um dos fatores quefazem da construção de marcas um imperativo. Eainda Schultz (2001) ressalta que não resta dúvidaque as marcas e a criação de marcas vão se tornarcada vez mais importantes no mercado.

Para Debord (1997, pág. 13), toda a vida dassociedades nas quais reinam as modernas condiçõesde produção se apresenta como uma imensaacumulação de espetáculos. Tudo o que era vividodiretamente tornou-se uma representação

Perante os esforços de uma estética midiáticaonipresente, reações adversas são mais do quenaturais. Logicamente, reações de consumo quevão de encontro à lógica urbana são conseqüênciade uma dinâmica social. Mediante a possibilidadede saturação eminente, as marcas do ócio parecem,a priori, adaptadas às novas necessidades. Suaestética, seu processo de criação bem como oselementos que as compõem já carregam em si oresultado de uma lógica anticapitalista. A presençade culturas cosmopolitas em fuga, em conjuntocom a forma rudimentar de vida dos habitantesnativos formou um contexto no qual o critérioestético é pautado por uma lógica que só ambientesvoltados para ócio proporcionam. Um conceitoestético que, numa época de estresse e saturaçãourbana, pode ter muito a nos ensinar. Seu estudopode levantar hipóteses acerca da relação de con-sumo contemporânea.

O objetivo geral desse estudo é levantar asinfluências que determinam a concepção tradi-cional de uma marca, levantando parâmetros queservirão de antítese para uma análise a cerca daestética em contexto ocioso, ou seja, fora do con-texto urbano.

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Temos como objetivos específicos mostrara relevância dos eventos estéticos estranhos àlógica moderna do marketing, publicidade edesign; decifrar as peculiaridades da comunicaçãocontemporânea, observando outras técnicasalheias ao processo urbano, atentando para a pos-sibilidade de novas posturas por parte do consu-midor; iniciar um levantamento regional doselementos visuais alheios à lógica urbana.

No segundo capítulo, faz-se uma abordagemhistórica das marcas no ocidente até levantarmossua função mercadológica nos dias atuais. Emseguida, no terceiro capítulo, fala-se das influênciasestéticas que determinaram o discurso publicitáriourbano, dando forma às intenções mercadológicasindustriais. Trata-se principalmente do contexto quedeterminou a arte moderna, revelando sua relaçãocom a revolução industrial e, conseqüentemente,seus desdobramentos no decorrer do século XX emforma de arte aplicada, mais conhecida como design.A partir daí, no quarto capítulo, faz-se a análise daamostra, levando em consideração os valores,temáticas e elementos que permeiam o discursovisual das logomarcas do ócio, a fim de identificar,em contraposição com o paradigma visual urbano,os discursos visuais que constroem essa motivaçãode consumo distinta.

11111 MARCAS: DA ACELERACÃO DO CAPITALMARCAS: DA ACELERACÃO DO CAPITALMARCAS: DA ACELERACÃO DO CAPITALMARCAS: DA ACELERACÃO DO CAPITALMARCAS: DA ACELERACÃO DO CAPITALAO ÓCIOAO ÓCIOAO ÓCIOAO ÓCIOAO ÓCIO

Por que as pessoas ao longo das eras estavamou eram fixadas em brasões, símbolos e imagenssingulares? Uma questão e tanto que permeia osambientes acadêmicos voltados para a adminis-tração, publicidade e design se faz foco desta discus-são, centrada no uso e na apropriação de valores

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em movimentos, traduzidos na corporificacãosimbólica das marcas pautadas pela relação deconsumo. Para se chegar aos valores trabalhadosnas marcas e suas associações de identidade, não sepode deixar de levantar suas origens, suas aplicaçõesmais primitivas, bem como os seus usos e suacrescente importância no contexto econômico noqual se estabeleceu.

1.11.11.11.11.1 HISTÓRICO DAS MARCASHISTÓRICO DAS MARCASHISTÓRICO DAS MARCASHISTÓRICO DAS MARCASHISTÓRICO DAS MARCAS

É imprescindível que se realize um estudodetalhado de como as marcas surgiram enquantodelimitação de um produtor ou serviço. O verbomarcar já define por si a função secular intrínsecana palavra logomarca, objeto principal desse estudoe tão logo, pilar fundamental de toda práticapublicitária contemporânea e sua função persuasiva.O ato de marcar nasceu como instrumento, umasolução perante as necessidades de atividadeseconômicas embrionárias. Solução esta que evoluiumediante o crescimento e consolidação do mercan-tilismo, até a composição do complexo universoeconômico dos dias de hoje. “Do latim, logos significadiscurso”. (TORRINHA, 1945)

A palavra marca traz em sua significaçãoportuguesa seu caráter funcional: “sinal que servepara que se reconheça uma coisa, para distinguí-lade outra, para identificar sua função […] Bandeiraindicando o posto do chefe presente a bordo donavio/ Traço distintivo/Prova, testemunho”.(KOOGAN; HOUAISS, 2000). Naturalmente, deacordo com o desenvolvimento da atividade econô-mica, a marca foi ganhando novas funções e, assim,somando a ela novos significados.

Não obstante, o uso histórico mais remoto damarca é caracterizado por sua funcionalidade diferen-

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ciadora. De acordo com Pinho (1951) na Antigui-dade existiam várias maneiras de promover as mer-cadorias. Sinetes, selos, siglas e símbolos eram as maiscomuns, utilizadas como um sinal distinto e de iden-tificação para assinalar animais, armas e utensílios.Naquele tempo, bem antes das marcas terem adquiridoo seu sentido moderno, era costume indicar aproveniência do produto agrícola ou manufaturado,a marca servindo muitas vezes para atestar a excelênciado produto. É importante observar a atividade de“marcar” ligadas a funções econômicas e de proprie-dade no decorrer dos tempos.

Tem-se segundo Pinho (1996) que na Gréciaantiga, arautos anunciavam de viva voz a chegadade navios com cargas de interesse especial. Osromanos tornavam públicos, por meio de mensa-gens escritas, os endereços onde se vendiam calça-dos e vinhos ou se podia encontrar um escriba. Ouso de pinturas revelou-se a melhor forma paraidentificar os comerciantes, principalmente levandoem conta a pouca quantidade de pessoas aptas àleitura. Os açougues romanos exibiam a figura deuma pata traseira de boi, os comerciantes de vinhoilustravam seu ofício usando na fachada de seusestabelecimentos o desenho de uma ânfora,enquanto para estabelecimentos que comercializavalaticínios, usava-se como representação o desenhorústico de uma vaca.

Na Idade Média, as corporações de ofício ede mercadores adotaram o uso de marcas comoprocedimento para controle da quantidade e daqualidade da produção. As chamadas marcas decomércio (trademarks) tornaram possível a ado-ção de medidas para o ajuste da produção ecomercialização de determinados bens à demandado mercado. E ainda constituíram uma proteçãopara o comprador, que podia identificar o produ-

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tor e resguardar-se da má qualidade que caracte-rizava grande parte das mercadorias da época.Para as corporações as marcas tinham tambémum sentido prático. Os ouvires na França e naItália, os tecelões na Inglaterra e muitos membrosdas guildas na Alemanha eram forçados e usarmarcas individuais, que permitiam às corporaçõespreservar o monopólio e identificar as falsificaçõesou o artesão cuja produção estivesse em desacordocom as especificações técnicas da agremiação.

Marcas individuais tornaram-se obrigatóriase adquiriram, já no século XI, um sentido comercial,com o surgimento das comunas e cidades e com adivisão de mercado, trabalho e competência. Asoperações comerciais eram realizadas longe docentro produtor, deixando de existir uma relaçãodireta entre produtor e comprador. Assim, a marcaera o elemento que estabelecia um vínculo entreo fabricante sediado na cidade de origem doproduto e o consumidor que estava em lugar dis-tante. Por meio dela, o comprador tinha assegu-rada a garantia de qualidade do produto e podiareclamar quando a mercadoria não apresentasseas qualidades devidas.

Pinho (1996) observa ainda que no séculoXVI, as destilarias escocesas embarcavam o uísqueem barris de madeira que recebiam a gravação afogo do nome do fabricante. A marca nos tonéisrepresentava a garantia de procedência e preven-ção contra substituição da bebida por outros suce-dâneos mais baratos. Na Inglaterra, as tabernas epubs exploraram de maneira engenhosa ossímbolos pictóricos no séc. XVII, usados em asso-ciação com o nome do estabelecimento. O uso pio-neiro da marca como elemento de diferenciaçãoaconteceu na Escócia, em 1835, com a introduçãoda marca Old Smuggler, criada para designar umalinha de uísque que empregava um processo espe-cial de destilação.

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1.21.21.21.21.2 MARCAS E MARKETINGMARCAS E MARKETINGMARCAS E MARKETINGMARCAS E MARKETINGMARCAS E MARKETING

O propósito de diferenciação que acom-panhou a história de produtos e marcas numambiente determinado pela competitividadecrescente logo encontrou um vasto acúmulo deconhecimentos, proveniente de estudos e estra-tégias de diferenciação. As marcas buscavam nodiferencial a garantia de sua desenvoltura econô-mica, ou seja, a garantia da venda.

De acordo com DeFleur (1993) os avançoscientíficos em estudos sociológicos do século XVIIIproporcionaram as primeiras teorias que foramusadas a serviço do comércio de produtos. Porvolta de 1943 a primeira apresentação de um im-portante estudo sobre necessidades de autoria deAbraham Harold Maslow, intitulado “Motivationand Personality”, forneceu uma importante teoriapara os esforços de venda: a hierarquia denecessidades humanas.

Maximiano (2002) observa que o compor-tamento é determinado por causas internas,relacionadas ao indivíduo, e causas externas, rela-cionadas ao ambiente. E essa visão serviu de basepara as teorias acerca das necessidades humanas,dentre elas, a hierarquia das necessidades de Maslow.

Maslow foi um dos fundadores da psicologiahumanista. Como o próprio nome sugere, o estudotratava das motivações dos homens e a influênciadestas na formação da personalidade. Tal estudo maistarde influenciaria na formação de um conceito maisaproximado de comportamento de consumo. Seuestudo mostrou que existem necessidades básicas, eque elas podem ser dispostas numa hierarquia deimportância e prioridade: as necessidades fisiológicas(fome, sede, abrigo), de segurança (sobrevivênciafísica), as de relacionamento (a aceitação pelo meio e

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o sentido de importância), as de estima e status(relevância, domínio, reputação, prestígio) e, por fim,as de auto-realização (desejo de conhecer, compre-ender, sistematizar, organizar e construir um sistemade valores).

Estabeleceu ainda que as primeiras neces-sidades (fisiológicas) dominam o comportamentoda pessoa até que sejam satisfeitas, em seguida asegunda torna-se preponderante até que seja sa-tisfeita, e nesta ordem até a última.

Tais estudos, juntamente com outros avançosda pesquisa em sociologia e comunicação de massa,foram determinantes para a evolução das marcasaté então. Mediante a abertura dos horizontes paraa compreensão do comportamento humano, aindústria passou a enxergar novas oportunidadesde mercado, deslocou a atenção do produto epassou a operar estratégias com o foco nos consu-midores agora segmentados e com suas neces-sidades fundamentais compreendidas. Munidosdesta postura, os produtos passam a ser desenvol-vidos de acordo com as necessidades da massa e,às marcas, foi agregada a função de significar satis-fação de necessidades.

Wolf (2001), observa que a dinâmica deestandardização industrial, bem como o a tendência

FIGURA 1 – Pirâmide

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conseqüente de homogeneizar os conteúdos seinscreve na pesquisa de expansão dos consumos, edetermina uma característica fundamental dacultura de massa: o novo público que a consome.Para lá das diferenciações de prestígio, hierarquia,convenções, etc, constitui-se uma identidade quedetermina a essência da cultura de massa. A iden-tidade de consumo.

Após a descoberta de necessidades pré-exis-tentes os produtos puderam ser direcionados numnível de especialização cada vez mais segmentado,levando em consideração variáveis importantes docomportamento de consumo tais como: classesocial, sexo, faixa etária, renda e outras, buscandoidentificar padrões de comportamento e mercadosem potencial.

A esse conjunto de conhecimentos teóricospertencentes ao campo das ciências econômicas,atribuiu-se a expressão “marketing”, que devido asua falta de referencial em outras línguas, acabouentrando para o conjunto de expressões inglesasherdadas por outras culturas, sendo usadas no âmbitotécnico administrativo-econômico mundial, e,portanto, sem um referencial preciso na línguaportuguesa. Segundo a definição do Dicionário Morda Língua Portuguesa (OLIVEIRA, 1967), marketing édefinido como comercialização. Ou ainda, como todosos atos comerciais que se destinam a promover oescoamento das mercadorias e serviços do produtoraté o consumidor. A atividade em torno de umproduto desde a planificação da sua produção até oseu consumo. Essa definição, de certa maneira, definea função do marketing perante a competitividade e anecessidade de escoamento de produção, através deesforços comerciais. No entanto se distancia doconceito de marketing de alguns teóricos, que ocolocam com foco voltado para as necessidades do

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consumidor, posicionamento no mercado e,principalmente, agregação de valor à marca.

Para Drucker (1998), o objetivo do marketingé tornar a venda supérflua. É conhecer e compre-ender o cliente tão bem que o produto ou serviçovenda por si próprio.

Percebe-se logo a preocupação de voltar asatenções administrativas para as necessidades dosclientes. Trabalhá-los de maneira sistemática nosvários desdobramentos do marketing é umamaneira a garantir a venda do produto. O ideal éque ele se venda por si e para isso é necessárioconhecimento e relacionamento profundo com ocliente. O marketing até aqui tem o objetivo degarantir, enquanto ferramenta, a dinâmica detodo o sistema capital, objetivando o sucesso davenda do produto, retorno do investimento econseqüente obtenção de lucro.

Segundo Kotler/Armstrong (1998), hoje emdia, o marketing deve ser compreendido não sóno antigo sentido de vender – ‘dizer e vender’ –mas também de satisfazer as necessidades docliente. Marketing é, segundo sua definição, umprocesso social e gerencial através do qualindivíduos e grupos obtêm aquilo que desejam ede que necessitam, criando e trocando produtose valores uns com os outros.

Kotler atenta ainda para uma atribuição maiorà função mercadológica de um produto, inserindo-o em um alto nível de interação com o consumidor,num contexto social onde o conjunto de necessidadese valores pauta a relação. Consiste no trabalho deidentificação de necessidades em segmentos demercado, desenvolvimento de produtos de valorrelevante para o público, definição de preços comparâmetros de competitividade e posicionamentode mercado, distribuição e relacionamento com oscanais de distribuição e por fim, promoção do

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produto nos mercados determinados através deações de comunicação integradas.

Para tal função mercadológica é importanteobservar o contexto histórico levantado porDefleur (1993), onde o acúmulo de conheci-mentos sobre as características distintivas, e dosrespectivos comportamentos das pessoas dentrode categorias sociais específicas, forneceu umasegunda base na qual o princípio de segmentaçãodo mercado foi criado no âmbito do comércio,governo e indústria. Estes conhecimentos indi-caram a necessidades de utilizar o método delevantamento (proveniente da pesquisa emSociologia) para estudar o conjunto de pré-dispo-sições, preferências e outros aspectos do compor-tamento do consumidor no que estes diferissemdentre diversos tipos de pessoas. Por exemplo,em breve tornou-se lugar-comum haver dife-renças significativas entre os hábitos de comprae comportamento de consumo de pessoas dediferentes faixas de renda, idades, níveis de edu-cação, antecedentes étnicos e assim suces-sivamente. A utilização de técnicas de levanta-mento para estudar a demografia dos mercadosficou acessível e apropriada pelos propósitosda indústria.

A especialização trabalhista bem como umnovo paradigma social urbano em desenvolvimentono século XVIII e XIX levou sociólogos a estabeleceremmétodos de levantamento estatístico para análise dasociedade mediante o conceito de segmentaçãosocial. Uma vez que as pessoas tendiam a se especia-lizarem, não só em seus “afazeres”, mas também emsuas faixas de remuneração, etnia, gosto, regiões demoradia etc, especializavam-se também em suaspropensões ao consumo. A indústria logo lançou mãodeste conceito através da pesquisa em marketing,

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de maneira que, categorizados, os consumidorespuderam ser melhor estudados e assim, produtos ediscursos específicos puderam ser desenvolvidospara cada segmento.

Kotler (2000) lembra que uma empresa nãoconsegue satisfazer as necessidades de todos osclientes de um Mercado ao mesmo tempo e que, poresta razão, é imprescindível que os profissionais demarketing comecem suas estratégias a partir dasegmentação de Mercado. Levantamento e análisede diferenças demográficas, psicográficas ecomportamentais determina, além dos atributos doproduto, seu campo de ação e volume de investimen-tos necessário a cada Mercado/segmento de consu-midores. A segmentação faz com que a empresa pos-sa desenvolver um produto ou serviço específico prafomentar determinada demanda, atentando para opotencial de liquidez e as vantagens e desvantagensdaquele Mercado, caracterizado por um público-alvobem delimitado.

De acordo com Troiano (2003), as marcascriam identidade para seus usuários, aproximandoo consumidor de seu ideal, como se projetassemuma identidade para si que só é alcançada medianteo uso de uma marca. Dessa maneira, as marcas pas-sam a pertencer a seus consumidores.

O conceito de segmentação estabelece a pos-sibilidade de um levantamento de necessidades, demodo que produtos e consumidores se aproximema ponto de se complementarem. O produto, voltadopara um determinado segmento de consumidor,vira uma extensão deste perfil de consumo, demaneira a tornar-se ícone representativo paraaquele grupo de consumidores. Isso faz com quemarcas possam vir a representar classes sociais,etnias ou mesmo afinidades por posição geográfica,enfim, representar um determinado segmento de

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mercado. Em contra-partida, o consumidor, rotu-lado em seu segmento, passa a encontrar no produtouma afirmação de seu perfil. Lembrando que estarepresentação é proporcionada muito mais pelo usoda marca do que pelo uso do produto, principal-mente se levarmos em conta a similaridade existenteentre produtos voltados para o mesmo tipo denecessidade. Isso caracteriza a concorrência, a dis-puta de marcas similares pela atenção e pela decisãode compra num mesmo segmento.

Por Kotler (2000), para cada mercado-alvodeve ser desenvolvida uma oferta ao mercado, etal oferta deve ser posicionada na mente doscompradores-alvo como possuidora de bene-fícios fundamentais.

Os benefícios de um produto fazem ligaçãodireta com o conjunto de necessidades que compõemo perfil do consumidor num determinado segmento.Percebe-se que para o marketing o consumidor é asoma de suas necessidades, classificadas em perfisde consumo e desejos em potencial. A capacidadede fomentá-los e estar à disposição para satisfazê-los deve constituir a oferta principal do produto. Àoferta, ou seja, à promessa de cumprimento denecessidades relacionadas ao produto ou serviço,perante um determinado segmento de mercado, dá-se o nome posicionamento de marca. Ela deve ter opoder de satisfação maior do que o de outras marcas,de maneira a conquistar o mercado numa lógica deseleção natural. Ou seja, a diferenciação devedeterminar o posicionamento da marca.

Tem-se em Trout (2000) que as escolhas entrediversas opções sempre se baseiam nas diferençasimplícitas ou explícitas. Estudos psicológicosrevelam a importância das diferenças ao seremdeterminantes para a memorização. Ancoradas noproduto, essas diferenças podem então ser intelec-

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tualmente avaliadas por vias de informaçõespresentes na memória do consumidor. Uma estra-tégia de fixação de marca que, ao mesmo tempo, dáao cliente razões para comprar o produto.

O conjunto de diferenciais competitivos deter-mina o posicionamento da marca. E esse posicio-namento é majoritariamente concebido em instân-cia virtual, na mente do consumidor, mediante umaescala de valores percebidos. Cada experiência coma marca influi no total de informações presentesna mente do consumidor, podendo somar ou sub-trai ao conjunto de diferenciais que, como resultadofinal, compõem um valor percebido. Para isso, cadaação de marketing tem o efeito memorizador,lançando mão de experiências sensitivas, visuais,auditivas, olfativas, tácteis ou degustativas, emdiversos níveis de interatividade. A manutenção dovalor da marca na mente do consumidor carac-teriza a luta dos marketeiros e respectivos pro-prietários de marca.

Kotler (2000), acredita que os clientes avaliamqual oferta proporciona o maior valor. Elesprocuram sempre maximizar o valor, dentro doslimites impostos pelos custos envolvidos na procurae pela limitação de conhecimento, mobilidade ereceita. Eles formam uma expectativa de valor eagem com base nela. A probabilidade de satisfaçãoe repetição da compra depende de a oferta atenderou não a essa expectativa de valor, fomentada antespor um conhecimento pré-venda. Nessa relação éimportante observar o conceito de custo total,referente ao somatório de custos tangíveis, incluin-do ainda os custos de tempo, energia física epsíquica do comprador. E o conceito de valor total,referente ao somatório de valores intangíveis taiscom benefícios relacionados ao produto, serviços,pessoal e/ou imagem.

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Tais conceitos são empregados pelo consumidorquase que instintivamente, de modo a aplicar ummétodo de comparação valor-preço decisivo para acompra. É como a clássica lei de oferta e procuramercantilista, só que empregada num contexto degrande multiplicidade de valores e competitividade.Teoricamente, a compra é efetivada de acordo com acapacidade da empresa de oferecer o maior valor deentrega: a diferença entre o valor total que o produtoproporciona e o custo total do produto. Essa diferençadeve ser a melhor em comparação à dos concorrentesdiretos e indiretos. Como em toda a relação de troca,o conjunto de atributos tangíveis e intangíveisdetermina o valor de um produto para o cliente, sendoo foco da negociação desde a identificação dasnecessidades até compra efetivada, partindo entãopara a próxima fase a relacionamento e, por que não,negociação entre o cliente e a marca: a pós-venda.Aqui há ainda mensuração das expectativas levan-tadas pela marca (produto ou serviço) antes da venda,agora mediante uso e análise efetiva dos atributosapós a venda. Caso as expectativas negociadas tenhamsido respectivamente cumpridas, superadas oufrustradas, se estabelece então uma relação defidelidade ou distanciamento com o consumidor.

Esse processo credencia a marca na formaçãode valores duradouros e relacionamentos idem,constituindo-se assim, um modelo de negóciorentável. Como diria Drucker, 2000, a primeiratarefa de uma empresa é “criar clientes”. Hoje essacapacidade cada vez mais determina a viabilidadedo negócio, assim como o seu foco.

Conforme Kotler (2000), essa crença está nocentro da nova visão dos processos de negócios,responsável por colocar o marketing nos pilares daconstituição de uma empresa, começando pela suaparticipação efetiva logo no início do processo, ainda

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no período de planejamento. Em vez de enfatizar afabricação e a venda, as empresas se vêem comoparte de uma seqüência de criação e entrega de valor.Essa seqüência dar-se resumidamente em três etapasdo processo de marketing: a seleção de valor, ondea empresa trabalha na segmentação, seleção de alvoe posicionamento; o fornecimento de valor, ondesão detalhadas as especificações do produto taiscomo atributos tangíveis, preço-alvo, distribuição etoda a tática por traz do posicionamento; e comoúltima etapa, a comunicação do valor, onde então éusado um marketing tático adicional na utilizaçãoda força das vendas, da promoção de vendas, dapropaganda e de outras ferramentas promocionais,visando informar o mercado sobre o produto.

A empresa, agora voltada para o marketing eas necessidades do seu público-alvo, seculariza aconstrução de suas marcas como objetivo funda-mental. O trabalho mercadológico é desenvolvidoem função do ciclo de vida do produto, almejandoonipresença no ciclo de vida dos clientes. Atributossão criados e recriados buscando a satisfazer os“desejos” dos consumidores em suas diversas fasesda vida. Essa busca de identidade produto-marca-consumidor determina todo o processo industrial,ao passo que o valor da marca é indicativo delucratividade. Sem uma boa relação custo/benefíciospara o cliente, o produto é mercadologicamenteinviável, perdendo todo o sentido da produção, logoo da indústria.

Perante a moderna postura mercadológica, oproduto passa a não existir por si, nem a empresaexiste por si. A marca é voltada para o cliente com aintenção de representá-lo, extensão de identidade,possibilidade de vir-a-ser, através do consumo e daapropriação dos valores intrínsecos na marca. Todosos esforços industriais se voltam para a construção

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dessa identidade recíproca, entre marcas e desejos.Se existe um acúmulo de capital, esse é efetivadomediante o acúmulo de valor para a marca, logo,capital virtualizado. O sistema econômico interna-cional opera suas bolsas mediante tal escala devalores, que sobem ou descem, oscilando variaçõesdos comportamentos de consumo e especulações damacro-economia, informações que virtualizadas eglobalizadas operam uma verdadeira orquestraregida pelo ritmo do consumo global.

Ao passo que historicamente a diferenciaçãopor qualidade e intenções promocionais eramúnicas funções atribuídas à representações simbó-licas sob o nome de “marca”, esta ganha agora umanova e fundamental importância no processo.Somada aos esforços de conquista de mercado ecompetitividade ao longo dos tempos, seu potencialde representatividade e comunicação redirecionouo foco do mundo industrial para conceito de valorà marca. Este tópico se estende pelas principaisdiscussões teóricas da administração em marketinghoje em dia, conceituando e tabulando diretrizesque busca a preservação, valorização e princi-palmente mensuração do valor da marca, o chama-do brand equity.

De acordo com a “Associação Americana deMarketing” (AMA – American Marketing Associa-tion), brand equity é: O valor de uma marca doponto de vista do consumidor. É baseado na atitudedo consumidor frente aos atributos positivos deuma marca e as conseqüências favoráveis ao usoda mesma2.

2 AMA - American Marketing Association – Brand Equity: The value of a brand.From a consumer perspective, brand equity is based on consumer attitudes aboutpositive brand attributes and favorable consequences of brand use. Disponívelem: <http:// http://www.marketingpower.com/mg-dictionary-view336.php >

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Para AAKER (2000), brand equity é o conjuntode ativos e passivos de uma marca, seu nome esímbolo, que se somam ou se subtraem do valorproporcionado por um produto ou serviço parauma empresa e/ou para os consumidores dela. Demero representantes de um ofício, serviço ouproduto, as marcas passaram a ser a finalidade emsi. Pelo seu significado presente na mente doconsumidor calcula-se o poder de liquidez e lucroda empresa que há por trás da marca.

Tais conceituações seguem a lógica do mar-keting e resultaram num modelo de negócio total-mente voltado para a marca. Se construir uma em-presa significa, antes de tudo, construir uma marcaé importante observar que o processo que se instalacomo resultado de um processo econômicoevolutivo: o paradigma econômico consiste naconstrução e manutenção de valores entre marcase consumidores.

Já Troiano (2003), ao falar de brand equity,promove uma análise em torno de forma de valortangível, levando em conta que o valor cujasmarcas adquirem decorre, essencialmente, danatureza e da intensidade da força da relação entreelas e os consumidores, tendo em vista que, emcerto sentido, as marcas pertencem ao consumidor,por fazerem parte de suas vidas. É medindo essarelação e seus níveis de uso, apropriação e posseque se chega ao valor da marca.

De fato, o poder atribuído às marcas atravésdo conceito de brand equity se materializa numainstância fora das instalações da fábrica ou de suascontas bancárias: ele está presente na mente doconsumidor, através de impulsos elétricos deproporções quânticas, até então pouco conhecidospela ciência. No entanto, é presumível que, enquanto

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matéria, um espaço na mente do consumidor per-tença a ele próprio. Uma vez que a conquista desseespaço é principal lógica da indústria, é presumívelque a relação de apropriação seja recíproca.

Em Kotler (1996), observa-se ainda que oalto valor patrimonial (brand equity) de umamarca fornece inúmeras vantagens competitivaspara uma empresa. Alcançando um alto valor, aempresa desfrutará custos de marketing menoresem função do acentuado nível de consciência ede lealdade do consumidor. A empresa terá maiorimpulso comercial para barganhar com distribui-dores e varejistas, uma vez que os consumidoresjá esperam que eles trabalhem com a marca.Poderá inclusive negociar maiores margens quan-do a marca possuir maior percepção de qualidadeno que ela representa. A marca oferecerá à empresaacima de tudo maiores defesas contra a concor-rência de preço agressivo.

Com efeito, o espaço conquistado na mente doconsumidor, através de uma boa percepção de marca,lealdade, conhecimento do nome, da qualidadepercebida, bem como os ativos e outras associaçõespositivas à marca, produzem uma relação dediferenciais em cadeia, contribuindo em todos asinstâncias do composto de marketing: Segmento,Produto, Posicionamento, Promoção e Distribuição.Conquistar esse espaço depende também de umaresposta do público com saldo positivo na escala depercepção de valores, nas diversas fases do relacio-namento cliente-marca, que vão desde a pré-venda,distribuição, pós-venda, passando ainda pelaexperiência de uso. Sob tal ponto de vista, marca econsumidor se retroalimentam, numa relaçãodinâmica de valores, interesses e trocas na dinâmicade mercado.

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Tal processo de troca de valores e identidadessó é possível mediante a comunicação, em diversosníveis e diversas formas, mas essencialmentecomunicação. Não obstante, em todas as etapas queestabelecem o valor da marca, reside uma relaçãode associações simbólicas mediadas por umdeterminado processo de comunicação. Conscien-tização de marca, fidelidade, qualidade percebida,associações positivas e outras vantagens compe-titivas são valores passados através de uma ligaçãosimbólica inerente ao processo de comunicação.Pode usar como referência uma lógica de estímuloe resposta: o conjunto de esforços mercadológicosobjetiva uma reação positiva mediante o estímulovisual da marca. Ora com sentido de impulso àcompra, ora com intuito de preparo para a compra.Assim, os arcos dourados do Mc Donald's estãoimpregnados de valores e convites para a compra.Para uma atitude positiva em relação à marca. Damesma maneira, as circunferências, que juntas for-mam a silhueta de Myckey Mouse, estão impreg-nadas de valores da Disney enquanto indústria deentretenimento, de fabricação de sonhos. As linhasprecisas da marca Microsoft estão igualmenteimpregnadas de associações imaginativas supertec-nológicas. Nesse ponto de vista de construção deidentidade visual através de associações positivas àmarca, resta ainda a possibilidade de livre associaçãode diferenciais, como acontece no caso da Apple.Uma maça mordida carrega em si os atributos dealta-tecnologia, desempenho e modernidade.

Já que marcas têm existência virtual, seja nabolsa de valores, seja na mente do consumidor, elassão corporificadas essencialmente por apariçõescomunicativas, através de formas e cores, curvastipográficas e representações estéticas. Apariçõesseguidas de associações conceituais com intuito de

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agregar valor à marca, num contínuo esforço deposicionamento. A marca da BMW que o agente JamesBond carrega em sua moto não está ali à toa. Nemmesmo as três listras comuns ao uniforme dasprincipais seleções de futebol não foram costuradasaleatoriamente. Essas aparições são impregnadas deintenções mercadológicas industriais. A estética dasmarcas é uma linguagem pensada para comunicaçãoinstantânea. Um processo associativo que formulamensagens positivas ao seu público-alvo. Um conjuntode traços, formas e cores, que embora resumido, écapaz de comunicar-se acumulando extensorepertório de valores.

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IRONIA E COMUNICAÇÃOIRONIA E COMUNICAÇÃOIRONIA E COMUNICAÇÃOIRONIA E COMUNICAÇÃOIRONIA E COMUNICAÇÃO

1 Doutor em Comunicação pela UFRJ, professor da FA7 e da Unifor.

Márcio Acselrad1

ResumoResumoResumoResumoResumo – Malgrado o pouco caso que se costumavadispensar ao tema do humor e do riso, nos últimos temposele vem crescendo de importância, com uma série detrabalhos realizados que visam recuperar esta vertentefundamental do ser humano, recolocando-a em seu devidolugar. O objetivo deste trabalho é tentar compreendermelhor o fenômeno na contemporaneidade, partindo desua revalorização a partir de fins do século dezenove,principalmente a partir de Nietzsche e Kierkgaard, comespecial atenção à questão da ironia.

Palavras-chave:Palavras-chave:Palavras-chave:Palavras-chave:Palavras-chave: riso, humor, ironia.

AbstractAbstractAbstractAbstractAbstract – spite of the little attention that one used togive to the subjects of humor and laughter, theirimportance has been increasing in recent times, througha series of works that try to rescue this fundamentalaspect of human nature. The main objective of this articleis to help to understand this phenomenon in our times,taking its reassessment at the end of the 19th century –especially in the philosophies of Nietzsche andKierkegaard – as a point of departure. Special emphasisis given to the question of irony.

Key Words:Key Words:Key Words:Key Words:Key Words: laughter, humor, irony.

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Desde que o homem se entende por gente eleé capaz de rir. Há inclusive quem diga que é justa-mente esta a característica que nos diferencia dasdemais espécies animais. “A guerra do fogo”, filmeque trata do processo inicial de hominização denossos ancestrais, mostra que os primatas maisevoluídos eram justamente os mais capazes de rir, eque considerável avanço evolutivo seguiu-se àaquisição da capacidade de rir das coisas e princi-palmente de si próprio. Ao invés de se indignar eenraivecer com o coco que lhe cai sobre a cabeça, oprotagonista percebe que muito melhor, em todosos sentidos, é soltar uma sonora gargalhada.

Desta forma o riso é muito mais do que meracaracterística: é um diferencial, um elemento desmis-tificador. Paralelamente aos cultos sérios e reve-renciais, sempre houve em todas as épocas, paródiasque convertiam as divindades em objetos de burla eblasfêmia. Assim, o riso também era cultuado epossuía seus próprios sacerdotes. Tipos cômicos dabaixa comédia grega e romana, bufões e bobos daIdade Média, personagens da Commedia Dell'arteitaliana, o clown. Em comum, todos possuem amesma qualidade: expor a estupidez do ser humanoe de suas relações. (PUCCETTI, 2000)

Entretanto, apesar da importância do riso edo humor na compreensão da essência do humano,o pensamento ocidental preferiu exclui-lo de seuconvívio. Já com o pai fundador do pensamentofilosófico, o ateniense Platão, há uma desvalorizaçãode tudo que dissesse respeito ao jogo, à diversão eao lúdico. Platão buscou substituir tudo que fosseleve, tudo que dançasse e risse por uma sobriedadee profundidade pouco invejáveis. Apesar destapostura radical de negação da festa da vida em favordo pensamento, seus seguidores foram inúmeros eo estrago perdurou.

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Malgrado o pouco caso que se costumavadispensar ao tema do humor e do riso, nos últimostempos ele vem crescendo de importância, comuma série de trabalhos realizados que visamrecuperar esta vertente fundamental do serhumano, recolocando-a em seu devido lugar.Adorado na antiguidade, divinizado na Grécia edepois pouco a pouco banido do terreno do pen-samento, primeiro na própria Grécia clássica,posteriormente com a modernidade tão séria ecientífica, o humor hoje retorna com toda força.O objetivo deste trabalho é tentar compreendermelhor o fenômeno na contemporaneidade, suarevalorização a partir de fins do século dezenove,principalmente a partir de Nietzsche e Kierkgaard,com especial atenção à questão da ironia. Pre-tende-se abordar o problema dos pontos de vistafilosófico e comunicacional e mostrar como ambosestão interligados. Além das referências biblio-gráficas, faremos uso do cinema de Woody Allenpara exemplificar nossas principais idéias.

Na filosofia, importante papel na reconsi-deração do humor e do riso veio com a escrita de “Agaia ciência”, por Friedrich Nietzsche, em 1887. Ofilósofo nômade escreve seu livro num momento derara alegria e o faz como “um espírito que pacien-temente resistiu a uma longa, terrível pressão”(NIETZSCHE, 2001, p. 9). Tal afirmativa (bem comoo restante do prólogo) pode ser compreendida comoo desabafo pessoal de um convalescente. O próprioautor nos aconselha a não seguir esta leitura simplistaao afirmar: “Mas deixemos o sr. Nietzsche de lado:que temos nós com o fato de o sr. Nietzsche haverrecuperado a saúde?” O que está em questão aqui éalgo bem maior. Não se trata apenas da debilitadasaúde do sr. Nietzsche mas da debilitada saúde dopensamento ocidental. É como se a própria filosofia

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recobrasse a saúde ao se tornar, uma vez mais, apóstanto tempo, capaz de rir.

O humor está associado à idéia de limite.Encontra-se na fronteira entre a consciência e oinconsciente, entre o cômico e o trágico, entre avida e a morte. Para o filósofo francês GeorgeBataille, discípulo de Nietzsche, ele é o própriomovimento de redenção do pensamento, como sea filosofia não pudesse mais se estabelecer fora dele.Com Bataille o humor torna-se revelação, o que abreo fundo das coisas. Bataille parte do riso para chegarao poético, ao sagrado, ao erótico, à angústia, aoêxtase, todas experiências desgarradas do mundodo pensamento. “Minha filosofia é uma filosofia doriso” (BATAILLE apud ALBERTI, 1990, p. 46). O risoé o que permite se falar seriamente do não saber. Éa experiência do nada, do impossível, da morte,como já foi mencionado.

O próprio do homem é o brincar, o jogar, nãoo trabalho ou qualquer outra atividade dita séria.Certo está que o homem é um animal que pensa(sapiens) e que age (faber), mas é, antes de maisnada, um animal que joga, que brinca, que se diverte.O mundo adulto obriga a todos a abandonar estecomponente fundamental da subjetividade presentena infância. Cabe ao pensamento fazer com que volteà cena. A partir de então a associação entre o humore o estudo pôde ser repensada e vários autorescomeçaram a seguir esta tendência.

Joachim Ritter apresenta os dois lados do serhumano: a ordem positiva e essencial e a que excluiesta ordem e é excluída por ela: o nada. É da essênciada ordem e do sério obrigar uma metade a existirsob a forma de oposto. Como exemplo, cita oscostumes, portanto uma vertente fundamental dacultura, que excluem diversas formas do humano,mas que não deixam de existir por isso. Assim,

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depois de muitos percalços e muita exclusão, o nadaé reincorporado à existência... como riso. O risorevela o não normativo, o desvio, o indizível comofazendo parte da existência. Daí o hábito salutarde muitos povos, os judeus encabeçando a lista, defazer pouco de si e de seus próprios costumes.

Mais radicalmente, o humor é uma forma dereverter a melancólica situação do homem dianteda morte. Em face do absurdo que é a existênciahumana, sem sentido e curta, surge a possibilidadede um renascimento, representado pela tomada deconsciência do sujeito, como afirma Kierkgaard. Ohumor, uma forma especial de arte, representa umasaída ativa dessa situação imobilizante e constituiriaum recurso existencial que não afasta a morte, masque permite uma convivência até certo ponto pací-fica com ela.

Diz um personagem de Pirandello que “quemtem a sorte de nascer personagem viva pode riraté da morte. Não morre mais! Morrerá o homem,o escritor, instrumento da criação; a criatura nãomorre jamais!” Para Pirandello, humor implicanecessariamente numa reflexão, num exercíciointrospectivo de compreensão que, em seu maisalto grau, recebe o nome de ironia. O humor é osentimento do contrário, é ver as coisas pelo aves-so, encontrar a profunda ironia por trás de tudoisso que está aí. Isso implica num espaço de riso,de diversão e ao mesmo tempo de reflexão, depensamento em que somos todos transformadosem personagens de uma grande farsa.

O riso é antes de tudo riso da morte e umadas estratégias que advém da profunda lucidez quepor vezes nos acomete. É o que acontece com Fer,o professor argentino de “Lugares Comuns”, quese vê subitamente acometido por esta paradoxalbendição/maldição:

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“A lucidez pode jamais despertar, mas sedespertar, não há como evitá-la. E quando elachega, fica para sempre. Quando percebemos afalta de sentido da vida, a gente também percebeque não há objetivos nem progresso. A gentecompreende, embora possa não querer aceitar,que a vida nasce com a morte ligada a ela, quevida e morte não são consecutivas, mas simul-tâneas e inseparáveis. Se a gente consegue mantera sanidade e cumprir as normas e rotinas em quenão acredita, é porque a lucidez faz a gente verque a vida é tão banal que não pode ser vividacomo uma tragédia.”

Assim se mostra a relação intrínseca entreriso e pensamento. O riso e o cômico tornam-se olugar de onde o filósofo pode fazer brilhar oinfinito da existência, que foi banido pela razãocomo marginal e... ridículo. Como vingança doriso, o filósofo existencial coloca o chapéu debufão. O riso torna-se redentor do pensamento,indispensáveis para o conhecimento do mundo epara a apreensão da realidade plena. O nada, aoqual o riso nos dá acesso, encerra uma verdadeinfinita e profunda, em oposição ao mundoracional e finito da ordem estabelecida.

Não por acaso ele só pode ser incorporadoplenamente ao pensamento no século XX, trazidopelas mãos de Nietzsche. O mesmo Nietzsche queviveu os horrores do totalitarismo do pensamento,representado pelo positivismo reducionista e dohistoricismo doentio, soube fazer do riso suaprincipal ferramenta. Em sua segunda “Consideraçãointempestiva”, descreve com fina ironia o histo-ricismo positivista de sua época como sendo umagorda bibliotecária que só sabe devorar informações.Chegou também a dizer que os filósofos deveriamser medidos pela capacidade que tinham de rir. E

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poucos o souberam fazer. Como ainda hoje é raroencontrar riso e humor na academia. Jorge Larrosaacentua que no lugar onde ele mais faz falta é apedagogia. Ensinar deveria ser algo realizado comarte, com leveza, com humor. Entretanto adverte oespanhol: “Não me recordo de nenhum assobio naliteratura pedagógica que eu tenho lido. Vocêspodem imaginar um livro de pedagogia em que oautor deixa, por um momento, de deitar moral, deargumentar, de propor, de dogmatizar, de criticar,e se põe a assobiar?” (LARROSA, 2001, p. 170). Creioque a acusação pode ser facilmente estendida àsdemais áreas do conhecimento científico.

Exemplo da ironia em face da tendênciatotalizante dos discursos científicos encontra-seno pequeno texto a seguir, do argentino JorgeLuis Borges comentado por Michel Foucault emseu “As palavras e as coisas”:

Os animais se dividem em: que pertencemao imperador; embalsamados; domesticados;leitões; sereias; fabulosos; cães em liberdade;incluídos na presente classificação; que se agitamcomo loucos; inumeráveis; desenhados com umpincel muito fino de pelo de camelo; et cetera;que acabam de quebrar a bilha; que de longeparecem moscas. (FOUCAULT, 1990, p. 56)

Esta “classificação” arruína a sintaxe, o quepõe juntas as palavras e as coisas. No jogo delinguagem, as palavras se soltam de suas amarras.O não sério, o não lugar da linguagem, é o lugaronde as palavras não significam as coisas, masjogam entre si, como acontece na infância. ParaFreud o riso tem razões psíquicas: é a expressãode um prazer original reencontrado ao qual tive-mos de renunciar em nome da civilização.

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Ironia e comunicação – Márcio Acselrad

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O riso é sempre uma afronta à ordem esta-belecida. É sempre da ordem do outro, do fora. Otrocadilho, o chiste, o jogo de palavras são afrontasà ordem gramatical, à ordem que liga as palavras eas coisas. Irrupção do inesperado, do radicalmentenovo, do inusitado. É obsceno, agressivo, pulsional.Por vezes mesmo grotesco. Da mesma forma que é aarte. Para Heiddeger toda obra faz explodir o quadrodo que é habitual, do ordinário, do admitido,explicita a fenda entre mundo e terra, produz oadvento de uma nova verdade. A arte, como o riso,perturba a ordem, desafia o coro dos contentes.

Quanto à questão da comunicação, podemoslembrar autores como Michel Maffesoli que alertanão é de hoje para o aspecto lúdico e convivial,espontâneo e bem humorado do universo co-municacional. Sem moralismos e embora correndoo risco de provocar escândalos (mas afinal não éeste o risco que corre quem quer que busque trazero humor mais para perto da academia?), afirmaele que

A principal função da comunicação édivertir, distrair, entreter. Nisso contudo nada háde pejorativo. Quando se fala em entretenimento,de maneira geral, pensa-se em subcultura, emconsumidores inconscientes, manipulados eacríticos. No sentido pascaliano do termo,divertimento significa aquilo que se opõe àangústia da morte. (MAFFESOLI, 2004, p. 28)

Ei-la novamente presente, sempre a mortecom sua feia máscara sendo evitada, ridicula-rizada, humilhada pelo pensamento bem humo-rado e vital. Colocar a morte de lado é tarefa éticademasiado humana. Deixando de lado sua faceobsessiva e onipresente, pode-se criar uma comu-nidade leve e fértil.

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Nesta mesma vertente que relaciona comu-nicação e leveza, sedução, devir lúdico, encontra-se o também francês Gilles Lipovetsky. Pensadorde fenômenos como a moda em sua efemeridadee a publicidade com sua pletora de humor esimulação, Lipovetsky positiva a nossa sociedadeorientada para o teatro, as aparências e o espe-táculo em geral. Liberta da racionalidade opres-sora de inspiração platônica, a sociedade pós-moderna pode entregar-se ao fluxo dos prazeressem culpa. O neo-hedonismo impera e surge umnovo gosto estético. Neste sentido, é simplismogrosseiro imaginar que a mídia é a arqui-vilã domundo em que vivemos, aquela que nos impedede sermos racionais. Lipovetsky afirma que nãohá sedução sem que haja um desejo de serseduzido. “A mídia não atomiza nem isola. Orelacional não está ausente de nossas sociedades”(LIPOVETSKY, 2004, p. 36).

A IRONIAA IRONIAA IRONIAA IRONIAA IRONIA

A ironia é a forma mais poderosa de lidarmoscom as questões cruciais do ser humano. Não é atoa que esta estranha maneira de dizer as coisas,por vezes por via do seu contrário, era a ferra-menta utilizada por Sócrates quando queriadesconstruir o discurso dos sofistas, mostrandoque desconheciam aquilo de que falavam, ouquando queria ridicularizar o fato de cobraremmuito dinheiro por seus supostos ensinamentos.É o que acontece nesta passagem do Hipias Maior,em que o filósofo faz pouco do sofista que acabarade se gabar de quanto dinheiro já havia ganhocom seus ensinamentos:

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Ironia e comunicação – Márcio Acselrad

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É admirável o que me conta, Hipias, e amelhor prova de que tua sabedoria e a dos homensdo nosso tempo ultrapassa a dos antigos. Peloque acabas de dizer, os contemporâneos deAnaxágoras eram uns ignorantões. O que me dizesse me afigura uma bela prova da superioridadedo saber dos homens de hoje em relação ao dosantigos, sendo que muita gente é de opinião que osábio, antes de mais nada, deve ser sábio para simesmo, o que se comprova com a capacidade deganhar muito dinheiro. (PLATÃO, 1980, p. 365).

O resto do diálogo segue a mesma linha irô-nica, com Sócrates mostrando que Hipias nadasabe sobre a beleza. O mais irônico é que o ironistatampouco sabe a resposta, e aí reside sua riqueza.Ao ser indagado sobre o que ele próprio acha dascoisas, provavelmente responderia com outrapergunta: “Porque eu?” Platão se distancia deSócrates quando para de fazer perguntas e começaa tentar respondê-las. Aí inventa a metafísica eafasta o humor da filosofia.

A ironia é, no dizer de Esteves (1997), o“exercício de uma racionalidade multiforme, quese multiplica em associações e relações”. Trata-sede uma inteligibilidade precária uma vez que nãoafirma, mas duvida sempre, filosófica por exce-lência. A ironia também tem um componenteimprescindível à sua inteligibilidade: o contexto.É talvez a mais ambígua das figuras de linguagens,uma vez que, se mal interpretada, pode levar ointerlocutor a ter a impressão rigorosamenteoposta a que se queria dar. Não se pode entendero humor do cartunista Henfil (bem como váriosoutros que fazem do traço sua forma de expressão)sem levar em conta a fina ironia presente em cadauma de suas frases.

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Irônico, neste sentido, é Alan Konisgberg,aliás, Woody Allen, as voltas com as grandesquestões, sempre misturadas com as mais ínfimase ridículas. A vida, a morte, e tudo o que aconteceno meio. O corpo, a alma e porque eles não seentendem. O sentido de tudo, a angústia da buscainterminável. Onde está Deus? Quais são seusplanos para nós? Temos alguma chance de intervirno gigantesco e complexo plano da criação outodas as cartas já estão marcadas e não passamosde marionetes, reféns de forças desconhecidas? E,mais importante do que tudo isso, onde foi mesmoque eu coloquei as chaves do carro?

Em 1975, Allen assume a forma de BórisGruschenko, saído diretamente da tradiçãoliterária da Rússia do fim do século XIX. Mesmouma fábrica de talentos capaz de produzir Checov,Dostoievski, Gogol e Tolstoi não pode acertarsempre. Inevitavelmente, em algum momento, háde produzir um Bóris Gruschenko. E é justamentesobre a tensão entre o grande e o pequeno, oinsigne e o insignificante, que irá se desenvolversua trajetória. Bóris/Allen tem toda a angústianecessária a um grande filósofo, mas falta-lhejustamente a grandeza. E sobra-lhe o humor. Elelevanta as grandes questões, discute o sentido davida e da morte, mas ao mesmo tempo nos distrai,levando nossa atenção para o prosaico e efêmero.É sempre no pequeno, no detalhe cotidiano eirrisório, que ele concentra sua atenção e a nossa,desviando-nos do que é “realmente importante”(e afinal o que é realmente importante?) para nosmostrar um mundo pequeno, minúsculo, efêmero,mas o único que temos, da mesma forma que hojeo fazem Maffesoli e Lipovetsky. (Boris provavel-mente diria: “E quem você pensa que é para falarmal da minha casa?”)

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Por intermédio de Gruschenko, Allen visitaKierkgaard, o angustiado inspirador do existen-cialismo que invadiu a Europa no século XX. Emum como em outro a mensagem se assemelha.Ambos dizem: está bem, é absurdo. A vida não fazsentido; Deus não se digna a realizar um míseromilagre que comprove sua existência; é precisoefetivamente morrer para saber o que acontecedepois; a vida, por sua vez, não é nenhum mar derosas; estamos condenados a pagar por um crimeque não cometemos e, para piorar as coisas, minhasogra decidiu ir morar lá em casa.

Mas não é apenas no diagnóstico que os doisconcordam. Também apresentam soluções seme-lhantes, pelo menos até certo ponto. Que fazerdiante de tanta incerteza? Kierkgaard oferece umaproposta razoável e tentadora: dedicar-se exclusi-vamente ao prazer, fazendo da vida um mar derosas não importa a que preço. O chamado viverestético é representado pela emblemática figurade Don Juan, comprometido exclusivamente con-sigo próprio e com sua satisfação pessoal. Nadade compromissos, nada de moralismo. Don Juané o homem que tudo pode e nada deve e paraquem a vida é um campo pleno de possibilidades.Sua relação com o mundo é a de um sujeito faceaos objetos que encontra, sejam eles coisas oupessoas. Se lhes dão prazer, há de buscá-los.Passado este prazer, eles podem e devem serabandonados em nome de outros. O prazer émóvel e sua essência está justamente em seuser passageiro e fugaz. Imoral é, aqui, prender-se, imobilizar-se por um qualquer envol-vimento acima do necessário. Ser sábio é saberabandonar os objetos na hora certa, antes quese tornem transtornos.

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Mas Kierkgaard adverte: este não é um modode vida pleno ou satisfatório. Falta algo. Falta ooutro, a responsabilidade, a consciência. Falta acomunicação. E com eles a noção de que tudo oque existe está interligado numa única e complexatrama da qual nada escapa. O hedonismo não basta(e neste ponto Kierkgaard discorda de Maffesoli).Não existem apenas sujeitos livres num mundo semregras em que cada um deve agir por si. Não existeo relativismo absoluto, o que seria um paradoxo.Estamos todos no mesmo barco, o que fazemos aosoutros, pessoas e coisas, fazemos a nós. Nasce aí aexistência ética. Sem moralismos desnecessários,sem pieguice. Precisamos do outro, nem que apenaspor nossa necessidade egoísta de viver, e, portanto,não podemos tratá-los como se fossem objetos. Atéporque, cuidado, eles podem revidar, e Don Juancertamente pagou o preço por seu estilo de vida: oódio de centenas de mulheres seduzidas, traídas eabandonadas. Para não mencionar seus maridos.

Pois bem, talvez então o estilo ético seja a solu-ção para os problemas da vida: Ser bom e respeitosocom pessoas de todos os credos e raças. Nem Allennem Kierkgaard se contentam com esta tosca solu-ção. Pois afinal de contas não foi no estágio éticoque surgiram as angústias da existência? “Estavaeu levando minha vida sossegado, sem importunarninguém, quando eis que de repente me vejoacometido por pensamentos estranhos e pertur-badores...”, diriam.

As soluções que encontram para o impasse,no entanto, parecem bastante diferentes. Kierkgaardafirma que o modo de vida ético é insuficiente e é aíque entra o humor, a ironia, a crítica à vida e a tudoque ela representa de dúvida e insegurança. É deforma bem humorada, por exemplo, que respondea seu grande opositor na filosofia, o sistemático

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Hegel, dizendo que é cômico explicar o todo do real edeixar o homem abandonado à sua angústia e aoparadoxo da existência. Para ele já não se trata decompreender a totalidade do tempo para descobriro absoluto nem nada parecido. Trata-se de viver ecompreender o mistério do instante concreto, dotempo sofrido por cada indivíduo, de como ele éambíguo e aberto. O sistema perde toda a sua vigênciae o homem se densifica naquilo que passou a ser: umproblema existencial ambulante (BORNHEIM, 1969).

A razão e a moral são insuficientes para ambos.Mas aí vem a diferença entre Kierkgaard e Allen:para o primeiro, o humor ainda é insuficiente, épreciso dar o salto da fé e apostar na existência deum ser superior, tal qual havia feito Pascal, séculosantes. O humor aqui é a ante-sala da fé. Este salto éjustamente o que Allen não se permite realizar. E aonão realizá-lo plenifica o próprio humor como suaresposta à angústia da existência. Alen ri tambémda fé e de todo tipo de consolo que ela possaproduzir. Prefere persistir no paradoxo, prefere onon sense, prefere o humor que mostra toda a nossainsignificância e aponta para o comesinho, o simples,o pequeno. Pois que o humor é o que tudo prometee nada confirma. Apazigua, mas não resolve aangustia. Antes usa a angustia para fazer piada. Estaidéia é apresentada com maestria no final de“Hannah e suas irmãs”, de 1986.

O personagem vivido por Allen encontra-semergulhado na grande questão existencial quetambém inspirava o Ingmar Bergman de “O sétimoselo”: o silêncio de Deus. Busca apoio em todas asreligiões mas sempre em vão, aproveitando oprocesso para fazer pouco de todas elas. Sobre ocristianismo, por exemplo, diz que não consegueaceitar uma religião do tipo “pague agora e recebadepois”. No auge de sua crise, achando que não vale

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a pena viver em um universo sem sentido, tenta amais radical das saídas: o suicídio. É isso, pode-seacabar com o sofrimento encurtando-o. Ou, como,dizia o sábio grego Sileno, “o supremo bem diantedeste mundo infeliz é inatingível ao homem: nãonascer. O segundo bem supremo, no entanto, épossível: morrer logo”.

Mas ao tentar esta drástica solução, descobreacidentalmente (devido à sua incompetência emtirar a própria vida) todo um novo campo depossibilidades. A arma dispara e ele, atordoado,sai de casa e anda por horas a fio até entrar emum cinema para descansar ou, em suas própriaspalavras, “colocar o mundo de volta em umaperspectiva racional”. O filme na tela é uma antigacomédia de non-sense dos Irmãos Marx. E é entãoque o personagem tem sua estranha ‘iluminação’,uma que prescinde da fé: e se Deus realmentenão existir? Será que a diferença é tão grandeassim? E se nós só vivemos mesmo uma vez, aindaassim não vale a pena participar da experiência eaproveitá-la ao máximo?

Afinal, porque se matar se podemos gastaro limitado tempo que temos nos divertindo?Porque viver a resmungar, hesitando entre crer enão crer, quando podemos experimentar tantascoisas fabulosas? ‘Divirta-se enquanto você pode,é mais tarde do que você pensa’, é a mensagemda letra de uma canção do filme “Todos dizemeu te amo”.

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PUCCETTI, Ricardo. Sobre o clown. In TEIXEIRA,João Gabriel L. C. e GUSMÃO, Rita (orgs.)Performance, Cultura e Espetacularidade. Brasília:Editora da UnB, 2000.

FILMESFILMESFILMESFILMESFILMES

“A guerra do fogo”, direção Jean Jaques Anoud, 1980.

“A última noite de Boris Gruschenko”, direçãoWoody Allen, 1975.

“Hannah e suas irmãs”, direção Woody Allen, 1980.

“Todos dizem eu te amo”, direção Woody Allen, 1993.

“Lugares Comuns”, direção Adolfo Aristarain, 2004.

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Primórdios do telejornalismo no Ceará – Alberto Perdigão

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ETNOCENTRISMO EETNOCENTRISMO EETNOCENTRISMO EETNOCENTRISMO EETNOCENTRISMO ECULTURA POPULARCULTURA POPULARCULTURA POPULARCULTURA POPULARCULTURA POPULAR

1 Bacharel em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pelaUniversidade Federal do Ceará, especialista em Docência do Ensino Superiorpela Universidade Cândido Mendes, mestrando em Comunicação pela UFPe,professor de ensino superior e assessor de comunicação.

Ismar Capistrano Costa Filho1

ResumoResumoResumoResumoResumo – Esse artigo vem discutir o conceito de culturapopular, e a maneira pela qual ela tem funcionado comoferramenta de estigmatização e exclusão das classes pobres.Nesse sentido, o universo da produção cultural tambémdeve ser explorado como uma das estratégias simbólicasde dominação nas condições do capitalismo moderno.

Palavras-chave:Palavras-chave:Palavras-chave:Palavras-chave:Palavras-chave: etnocentrismo, cultura, popular.

AbstractAbstractAbstractAbstractAbstract – The article discusses the concept of “popularculture” and the way by which it has functioned as atool in the process of stigmatization and exclusion oflower classes. In this sense, the universe of culturalproduction must also be analyzed as one of the symbolicstrategies of domination in modern capitalism.

Key Words:Key Words:Key Words:Key Words:Key Words: ethnocentrism, culture, popular.

Pensar sobre cultura popular é refletir sobreuma série de preconceitos e reducionismos embu-tidos nesta definição. Popular é o conjunto dastradições e costumes de um povo? Popular é o mesmoque moda pop? Ou é a luta pela emancipação dasclasses oprimidas? Como critério dessa análise,utiliza-se um dos principais conceitos da Antro-pologia: etnocentrismo.

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O termo indica uma visão de mundo que con-sidera meu grupo como padrão para o julgamentodos comportamentos dos outros. O que é diferenteé rejeitado, ridicularizado. – Meu modo de vida é ocorreto, o dos outros está errado. Esta postura seorigina de um processo de estranhamento, comumnos choques entre culturas diferentes. No entanto,torna-se preconceituosa quando julga um modo devida superior a outro. Assim, lembra EverardoRocha (1990):

O grupo do ‘eu’ faz, então, da sua vida aúnica possível ou mais discretamente se for ocaso, a melhor, a natural, a superior, a certa. Ogrupo dá outro fica, nessa lógica, como sendoengraçado, absurdo, anormal ou ininteligível.(ROCHA, 1990, pág. 9)

Mariana Marconi (2005) completa sobreo etnocentrismo

(...) significa a supervalorização da própriacultura em detrimento das demais. Todos osindivíduos são portadores desse sentimento e atendência na avaliação cultural é julgar as culturassegundo os moldes da sua própria. (MARCONI,2005, pág. 32)

Superar o etnocentrismo é compreender quea origem de cada cultura vem de um processo deadaptação do homem a seu meio ambiente. Emdiferentes épocas e lugares, comunidades resol-vem de formas diversas seus desafios. Cada qualencontra os mecanismos de controle simbólicoque melhor se adaptam à sua realidade. Culturaé, desta maneira, um

(...) conjunto de mecanismos de controlesimbólico (...) para governar o comportamento.

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(...) O homem é precisamente o animal maisdesesperadamente dependente de tais mecanismosde controle, extragenéticos, fra da pele, de taisprogramas culturais para ordenar seu compor-tamento. (GEERTZ, 1989, pág. 56).

1 MULTIPLICIDADE CULTURAL E ETNOCENTRISMO1 MULTIPLICIDADE CULTURAL E ETNOCENTRISMO1 MULTIPLICIDADE CULTURAL E ETNOCENTRISMO1 MULTIPLICIDADE CULTURAL E ETNOCENTRISMO1 MULTIPLICIDADE CULTURAL E ETNOCENTRISMO

A multiplicidade cultural traz assim o desafioda convivência entre os diferentes modos de vidanum mundo onde cada vez mais encurta asdistâncias. A relativização dos modos de vida podeinviabilizar a convivência entre os diferentes gruposculturais principalmente quando ocorrem choquesentre as tradições. Para evitar a intolerância ou aimposição de valores culturais de uma cultura sobreoutra, Stuart HALL (2003) propõe que as sociedadesreconheçam que:

1) O universal (conceitos, regras, leis e modosde vida válidos para todos) é um espaçopara negociação sem conteúdo pré-deter-minado. Caso contrário, pode servir paralegitimar a opressão contra culturas.

2) Já as culturas particulares devem estarabertas para negociação com outras cul-turas. Negociar significar saber abrir mãoeqüitativamente de algumas de costumesou símbolos de uma cultura que impeçama convivência com outras.

3) O constante encontro de diferentes modosde vida leva à hibridação cultural. Tradições,significados, estilos são misturados de formaque não se pode mais invocar uma exclusi-vidade ou pureza cultural.

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Fora o caminho da negociação, resta, se-gundo Hall, a etnicidade que gera conflitos entreos grupos e o subjetivismo liberal baseado nasescolhas individuas que não possibilitam asociabilidade. O desafio, no entanto, tornar-semaior quando vivemos em sociedades marcadaspela exclusão social. Como então não ser etnocên-trico onde a própria compreensão dominante decultura entende preconceituosamente comosinônimo de intelectualidade ou como mercadoriacolocada a venda?

22222 CULTURA ERUDITA E ETNOCENTRISMOCULTURA ERUDITA E ETNOCENTRISMOCULTURA ERUDITA E ETNOCENTRISMOCULTURA ERUDITA E ETNOCENTRISMOCULTURA ERUDITA E ETNOCENTRISMO

Ter cultura significa, numa visão originadado expansionismo colonial com base no ilumi-nismo da Modernidade, possuir conhecimentosletrados das ciências. Ter acesso aos bens intelec-tuais conquistados pela civilização européia.Quem não os possui não tem cultura. É conside-rado um objeto podendo ser inclusive proprie-dade dos outro, através da escravidão. Assim estamesma civilização européia que pregava seumodo de vida superior porque tinha capacidadecrítica e autoconsciência de valores como justiça,igualdade e liberdade encontram uma justificativapara o escravismo.

A superioridade é um princípio que marca aascensão burguesa denominada de Cultura Erudita.O resgate dos valores humanísticos da AntigüidadeClássica da Grécia caracteriza esta expressão. A novaclasse dominante quer mostrar para o mundo,através de sua nova forma de explicá-lo (a ciência)e de admirá-lo (a arte renascentista), que o homemé o senhor de sua história. Não é mais Cristo, Deusnem os santos, Quem decidem a vida terrena. Atémesmo os cristãos modernos defendem esta posição

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recorrendo ao livre arbítrio: Deus quando cria omundo dá a liberdade para o homem decidir seudestino. Então, a arte precisa exaltar esta beleza dopoder do homem. Tudo passa a ser humanizado: aspinturas de santos são feitas numa paisagemmundana, os santos não têm mais áureos, figurascomuns tornam-se centro de majestosas obrasprimas como Monalisa. O conhecimento passa a sercomprovado com a experiência e precisa ter umautilidade prática para o desenvolvimento econômicoe a melhoria da vida (ou o acúmulo de riquezas pelosburgueses) como defende Francis Bacon.

2.1 CULTURA POPULAR COMO INFERIORIDADE2.1 CULTURA POPULAR COMO INFERIORIDADE2.1 CULTURA POPULAR COMO INFERIORIDADE2.1 CULTURA POPULAR COMO INFERIORIDADE2.1 CULTURA POPULAR COMO INFERIORIDADE

Nesta visão, a cultura popular pertence a umconjunto de práticas inferiores dos subalternos. Nãohá, no popular, capacidade de autoconsciência e deemancipação. Só pela arte e ciência, pode-se atingiros valores humanísticos da liberdade, justiça eigualdade. Como defende Alfredo BOSI (1992), “oque singulariza a Cultura ‘superior’ é a possibilidadeque ela tem de avaliar a si mesma; em últimainstância, é a sua autoconsciência”. As multidões quese aglomeram nas recém formadas metrópoleseuropéias são irracionalizadas, indisciplinadas edesorganizadas. Cabe aos iluminados conduzi-lospara sua redenção. Popular, para os eruditos, ésinônimo de grotesco. Jesus MARTIN-BARBERO(1998) define assim posição contraditória daburguesia: “está contra a tirania em nome da vontadepopular, mas está contra o povo em nome da razão”(BARBERO, 1998, pg. 36).

33333 CULTURA INDUSTRIAL E ETNOCENTRISMOCULTURA INDUSTRIAL E ETNOCENTRISMOCULTURA INDUSTRIAL E ETNOCENTRISMOCULTURA INDUSTRIAL E ETNOCENTRISMOCULTURA INDUSTRIAL E ETNOCENTRISMO

A tarefa de controlar as multidões se tornacada vez mais difícil num mundo que tira milhares

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de pessoas da zona rural para as cidades. No campo,não se concentra mais a produção de riquezas comono feudalismo. As indústrias que dominam as zonasurbanas são o modo de agregar valor econômico àprodução. Este fenômeno também traz para as cidadesas epidemias, marginalidade, violência, fome,desemprego, falta de habitação enfim gera o caos social.

Tanto nas capitais como nas fábricas circulaum número cada vez maior de pessoas. Menores,trabalhadores, marginais, prostitutas, migrantes eoperários compõem essa multidão. O pensamentoburguês percebe como ameaça um foco permanentede distúrbios. (ORTIZ, 1998, pág. 93)

A polícia, as leis, o governo, a escola e a igrejajá não dão conta de reprimir a desordem que seagrava com os movimentos de anarco-sindicalistase comunistas.

Uma nova estratégia de dominação surgepossibilitada pelo advento da industrializaçãográfica. Os jornais, os livros e posteriormente osmeios de comunicação eletrônicos (como rádio, tve cinema) passam, conforme a definição de TheodorADORNO e Max HORKHEIMER (1985), a seremresponsáveis pela identidade entre os particulares(as pessoas) e o universal (o mundo). Para os indi-víduos saberem o que acontece no mundo, nacidade e até em seus bairros, precisam ter acessoao jornal, a revista, ao livro, ao tele e radiojornal.Neste processo comunicativo, também são criadosnovos símbolos que ambicionam controlar o modode vida das pessoas para gerar lucros.

Esta nova cultura industrial voltada para a venda,produzida em série e padronizada se choca com aCultura Erudita, pois a reprodutibilidade se torna suacaracterística fundamental. Walter BENJAMIN (1990)

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nota que a cópia, antes do advento da industrializaçãográfica, era considerada uma habilidade de falsários.Na cultura industrial, o valor está condicionado aquantidade de cópias. A qualidade, ou melhor, o suces-so, torna-se sinônimo de numeroso. Quanto maisexposto ou copiado mais valorizado, pois significa apossibilidade de maior lucro.

A cultura industrial confunde-se, nestaconcepção. com a Cultura Popular autodenominan-do-se de pop. Todas as produções populares podemtornar-se produto industrializado. Assim, a BlackMusic norte-americada da década de 60 passou demovimento de resistência dos negros contra oaparthide para uma moda das discotecas. O protestooriginado nos guetos, através do hip hop, tornou-sesucesso global com os rappers pops Eminem, 50 Cent,Sean Paul, Puff Dady... O que os produtores dacultura industrial detectam como possibilidade delucro, por ter um público alvo, transformam emmercadoria com a pretensão de ser pop porquevende bastante.

Por isso, as principais fontes de inspiraçãoda Industria Cultural são as manifestações popu-lares. Barbero defende a idéia mostrando a origemdo cinema, do radioteatro e da imprensa popularna América Latina. No cinema,

As chaves da sedução estarão, entretanto,no melodrama e nas estrelas. O melodrama comoestrutura de qualquer tema, conjugando aimpotência social e as aspirações heróicas.(BARBERO, 1998, pg. 245)

Este gênero de narrativa popular é apropriadopela industria cultural. Além de mostrar dramasda realidade popular, ganha um novo elemento: osconflitos são resolvidos como num passe de mágica

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para um happy end. Esta é formula de sucesso éutilizada até hoje pelas telenovelas diárias.

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O saudosismo da Cultura Erudita que, porvezes, quer concentrar o conhecimento numapequena minoria de iluminados leva a condenaçãodeste mundo pop. Para os teóricos frankfurtianosADORNO e HORKHEIMER (1985), não há maissalvação para o mundo porque tudo se tornounegócios. Os interesse econômicos prevalecemacima de todos os outros valores. Não resta maisnada a fazer do que se lamentar.

Já para os românticos, segundo Barbero, aindahá, porém, um refúgio para a Cultura Popular: astradições regionais. O resgate das danças,artesanatos, lendas e culinárias típicas de um povoé, para eles, o verdadeiro popular.

De um lado folk e volk serão o ponto departida do vocabulário com que se designará anova ciência – folklore e volkskunke –, enquantopeuple não se ligará a sufixo nobre para engendaro nome de um saber, mas sim a uma modalizaçãocarregada de sentido político e pejorativo:populismo. E enquanto folk tenderá a recortar-se sobre um topos cronológico, volk o fará sobreum geológico e peuple, sobre um sociopolítico.Folklore capta ante de tudo um movimento deseparção e coexistência entre dois ‘mundos’culturais: o rural, configurado pela oralidade, ascrenças e a arte ingênua, e o urbano, configuradopela escritura, a secularização e a arte refinada(...) (BARBERO, 1998, pg. 40)

Já a meta folclorista é a preservação das tradiçõestípicas. As transformações e mudanças culturais com-

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prometem o popular que deve ser museuficado.Este ideal parece desconhecer que as própriastradições têm origem. Assim, preservar, porexemplo, a tradição das quadrilhas juninasengessando suas danças, regras e passos não temsentido porque as próprias quadrilhas vêm deuma origem bem diversa a prática contem-porânea. Surgiram da reprodução das danças dacorte européia por escravos, índios e camponeses.O carnaval é outro exemplo de que as tradiçõesse modificam com o tempo. Originalmente, a festatinha um sentido religioso quando padres, freirase leigos se despediam dos prazeres da carne antesdas penitências da Quaresma. BARBERO (2004)chama essas reapropriações populares de rede-senhos. Novos usos e significados ganham aspráticas culturais quando passam para outrasculturas, gerações ou até mesmo entre indivíduos.Segundo Roberto DAMATTA (1987), não se pode,como se quer no ideal folclorista, preservar eengessar alguns traços típicos populares porquesão, na realidade, “tradições vivas”, pois mudame se transformam no tempo adquirindo novos sen-tidos e significados. Para ele,

Tradição viva é conscientemente elaboradaque passa de geração para geração, que permiteindividualizar ou tornar singular e única uma dadacomunidade relativamente às outras. (DAMATTA,1987, pág. 48)

3.2 SUBVERSÃO E CULTURA POPULAR3.2 SUBVERSÃO E CULTURA POPULAR3.2 SUBVERSÃO E CULTURA POPULAR3.2 SUBVERSÃO E CULTURA POPULAR3.2 SUBVERSÃO E CULTURA POPULAR

Mesmo assim, ainda cabe questionar se a CulturaPopular se resume a essas tradições vivas. Para osilustrados, conforme Barbero (1998) o povo reproduza cultura burguesa não só porque é seduzido por esse

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modo de vida, mas porque encontra falsamente naimitação a seus superiores uma capacidade de supe-ração. Muito do que é produzido pelo povo é umareprodução da cultura industrial de mercado ou dosideais eruditos da burguesia. Por isso, AntonioGramsci propõe um novo conceito que diferencie areprodução cultural do popular autêntico. “A culturapopular não se determina por sua origem, mas porsuas práticas” (LOPES, 1990, pg. 55). Popular é, nestavisão, o conjunto de práticas sociais que possibilitama emancipação, a conscientização e a libertação dopovo da exploração, dominação e opressão burguesa.No Brasil, esta idéia ecoou no final da década de 50e início de 60 em movimentos que lutavam pelaconscientização do povo como o Centro Popular deCultura (CPC) da União Nacional de Estudantes (UNE),seguido pelo Cinema Novo, as Ligas Camponesas, aAção Católica e o Tropicalismo. Todos estes gru-pos tiveram vida curta devido à repressão daDitadura Militar.

Hall considera, nesta linha de pensamento, queo popular é um espaço de subversão. A cultura dosdominados tem sua existência própria interde-pendente da dos dominantes. É lugar de inversãode valores. Sua relação com a cultura dominantepode ser de resistência, luta ou negociação. O popu-lar cria metáforas de transformação, ou seja, a imagi-nação do que aconteceria se os valores fossem inver-tidos e as velhas hierarquias fossem derrubadas. Ocarnaval, segundo Allon White, é um exemplo disso.Os símbolos normalmente rebaixados ou escondidos(como o bobo, o gordo, os genitais) são exaltados nafesta momina.

BARBERO (2004) também considera o popularcomo um espaço de conflito. Apesar de sua para-doxal apropriação pela Industria Cultural que criauma cumplicidade com sua memória e com seu mo-

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do de narrar, o popular é caracterizados pela rea-ção. Isto significa ver de outra maneira como que-rem que vejam e agir de maneira diferente quequerem que aja. As reações acontecem nos rede-senhos, apropriações que mudam os significadose os usos; nas gravidades das tramas, como as fo-focas, boatos, conspirações e correntes e na utili-zação da tecnologia desviada das intenções indus-triais, como na promoção das raízes locais e na“pirataria”. Na América Latina, segundo Barbero(2004), o popular tem sua característica de reaçãomais acentuada porque herda o espírito de resis-tência dos povos nativos colonizados.

Pensar assim a comunicação, nesta abordagemé compreender as reações dos receptores aos meiosde comunicação, suas leituras das mensagens e a rela-ção com as práticas cotidianas. HALL (2003) identificatrês formas de decodificação: a de aceitação, a denegociação e a de oposição. Segundo ele, o receptortem suas próprias estruturas de significado diferentesdas do emissor. A leitura é, então, a “capacidade subje-tiva de por uma relação criativa entre si e com outrossignos do ambiente e do contexto onde o receptor estáinserido” (HALL, 2003, pg. 399).

44444 COTIDIANO E CULTURA POPULARCOTIDIANO E CULTURA POPULARCOTIDIANO E CULTURA POPULARCOTIDIANO E CULTURA POPULARCOTIDIANO E CULTURA POPULAR

Ainda resta perguntar: será que existe algumvalor na cultura que é produzida por aqueles quea praticam? O senso comum é o conhecimento po-pular que responde aos mais diversos desafios dodia-a-dia das pessoas. É no cotidiano que acontecemas ações significativas da vida dos indivíduos: nas-cer, crescer, amar, lutar, trabalhar, brincar, morrer.Independente de reflexões prévias, o mundo impõeaos sujeitos a obrigação de dar respostas aos desa-fios como encontrar onde morar, ter alimentação para

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repor suas energias, incluir-se num grupo sociale relaxar suas tensões. Algumas características sãocomuns no conhecimento popular comum aocotidiano: moral, fé, empiria, falta de criticidadee improvisação.

Para facilitar as relações humanas, o conheci-mento popular é rico em preceitos, chamados demoral, que facilitam a conduta dos comportamentos.O respeito ao outro, a honra aos compromissos e aresponsabilidade com a conseqüência dos atos sãovalores reconhecidos pelo senso comum como ati-tudes boas e corretas. Mesmo que de maneira ingê-nua e autoritária porque não permite ser ques-tionada, a moral possibilita a sociabilidade mais ime-diata. A articulação destes valores não busca, porém,um planejamento que ultrapasse as questões maiscontingentes. Permite-se assim que se consiga su-portar o dia-a-dia, mesmo este sendo desfavorávela sua vida.

A realidade imediata leva o conhecimentopopular a basear sua aprendizagem na empiria. É,através da experiência, que se aprende como lidarcom os problemas da vida. O conhecimento éconstruído através dos constantes erros e acertosda prática cotidiana. O que dá certo é repetido e seesquece o errado. A experiência do dia-a-dia traztambém aos indivíduos a capacidade de elaborarreações improvisadas e para o novo. Esta criativi-dade é marca típica, por exemplo, dos artistas derua que, em suas performances musicais, cênicas,plásticas (como a cantoria, mímica, teatro, retra-tismo) são capazes de modificar e reformular suaprodução sem prévio planejamento.

Outra marca do senso comum é a capacidadede acreditar. A fé no futuro, em Deus e nos outrosé a motivação que permite estimular os indivíduosainda que entranhados na rotina repetitiva do dia-

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a-dia. Esta capacidade também leva a uma limitaçãodo conhecimento popular, a falta de criticidade, quenão procura questionar, mas, por vezes, tão só acei-tar dogmas como verdades inquestionáveis.

É também na rotina do dia-a-dia, segundo ofilósofo Custódio de Almeida, que surge a mudança.

Assim é que o cotidiano que conserva podetambém provocar irrupções; o cotidiano que aliena,também está prenhe de revoluções. E quandoirrompemos rumo ao novo e revolucionamos ovelho cotidiano, logo corremos em busca daestabilidade, logo desejamos novamente a calmarianecessária para instalar o novo e, de novo, já esta-mos no cotidiano. Portanto, a vida autêntica nãoacontece fora do cotidiano. Isso é paradoxal e real.Mas vale ainda ressaltar que, apesar do própriocotidiano nos fornece os elementos para conservare revolucionar (...) (ALMEIDA, 2000).

4.1 MUNDO VIVIDO4.1 MUNDO VIVIDO4.1 MUNDO VIVIDO4.1 MUNDO VIVIDO4.1 MUNDO VIVIDO

O filósofo Jürgen HABERMAS (1983) tambémencontra no dia-a-dia que ele denomina de mundovivido a revelação da racionalidade. É, no cotidiano,que acontece o trabalho, a linguagem e a ação comuni-cativa, principais sinais do logos. Trabalhando trans-forma-se não só o meio ambiente, mas o significadoque se tem da vida. Quando se pesca, não só se afetao ecossistema marítimo, mas também se adquire umasérie costumes e se cria símbolos que controlam desdea alimentação. O trabalho fornece a possibilidade dedar sentido para o mundo.

A linguagem que acontece, no mundo vivido,dá condições ao homem de entender mais comple-xamente sua realidade. Nos demais animais, paracada som, produz-se um significado. A quantidade

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de significados para a realidade fica limitada acapacidade do aparelho fonador. O homem, no en-tanto, consegue, conforme Ferdinand Saussure, supe-rar esta limitação combinando os sons entre si e criandofonemas para significar a realidade e articular-seestes entre si criando sintagmas com sentido maiscompleto. Assim, pode-se compreender e refletirsobre o mundo. Para falar não é preciso, porém,adquirir intelectualidade. É, no dia-a-dia, que seaprende e se coloca em prática a linguagem.

Através da fala, torna-se também possíveltecer relações sociais bem mais complexas. Asinterações entre os indivíduos possibilitam àscomunidades adaptar-se em quase todos os meiosambientes. Locais que são inóspitos para indiví-duos sozinhos são modificados por grupos. Emambientes que o homem seria o início da cadeiaalimentar, torna-se o topo. Isso só é possível pelacapacidade dos indivíduos de criar a sociabilidade.É, no cotidiano, que as pessoas buscam entender-se, aceitando-se mutuamente. Esta ação comuni-cativa é base para superar-se os desafios do mundovivido. As relações humanas para efetivar-se comosociabilidade passa por um jogo de negociação quecada um precisa ceder, aceitar e conquistar seusinteresses.

Aceitar o outro é também aceitar que nãoexiste verdade absoluta. Ninguém é seu proprietárioexclusivo e pode detê-la com arrogância. Cada qualtem suas verdades baseadas, pelo menos, em suasexperiências de vida. Isto independe de poderaquisitivo, escolaridade, localidade. E a verdadeúltima, segundo J. Habermas, aparece na fabilidadehumana. Quando se erra, reconhece a inadequaçãodas representações à realidade. Por isso, como umser falível e desesperadamente necessitado desociabilidade, o homem precisa buscar o diálogo

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(movimento do logos). É na troca da racionalidadede cada um que se pode construir a convivênciasocial que emancipe autonomamente os indivíduose comunidades.

O cotidiano é, assim, o espaço onde se podeencontrar o conceito de Cultura Popular que fogedo etnocentrismo do Folclore, da Cultura Indus-trial e dos Movimentos de Esquerda. É conside-rando o mundo vivido que se pode aceitar as dife-renças, a alteridade, as reações e a multiplicidadedos modos de vida controlados pelos significadosconstruídos socialmente.

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FOTOGRAFIA E ETNOGRAFIAFOTOGRAFIA E ETNOGRAFIAFOTOGRAFIA E ETNOGRAFIAFOTOGRAFIA E ETNOGRAFIAFOTOGRAFIA E ETNOGRAFIAa utilização da fotografia naa utilização da fotografia naa utilização da fotografia naa utilização da fotografia naa utilização da fotografia na

pesquisa etnográficapesquisa etnográficapesquisa etnográficapesquisa etnográficapesquisa etnográfica

1 Fotógrafo e professor do curso de Comunicação Social – FA7.

Jarí Vieira1

ResumoResumoResumoResumoResumo – A etnografia se constitui da análise, mas antesde qualquer coisa, da descrição, de tudo que estiverrelacionado ao etno (do grego ethnos), ou seja, povo,gente, nação. Esse artigo visa explorar essa aproximaçãoentre as práticas etnográficas e a utilização da fotografiaem suas descrições.

Palavras-chave:Palavras-chave:Palavras-chave:Palavras-chave:Palavras-chave: etnografia, fotografia, sentido.

AbstractAbstractAbstractAbstractAbstract – Ethnography consists in an analysis, but,also and above all, a description of ethnic features(from the Greek ethnos – group). This article aims toexplore the relation between ethnographic practiceand photography.

Key Words:Key Words:Key Words:Key Words:Key Words: ethnography, photography, sense.

Antes de sabermos o que é fotografia etno-gráfica, se faz necessário conhecer o conceito deEtnografia: estudo e descrição dos povos, sua língua,raça, religião e manifestações materiais de sua ativi-dade; descrição da cultura material de um povo, emessencial seus usos e costumes (Dicionário Aurélio,

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Fotografia e Etnografia – Jarí Vieira

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2001). Ramo das ciências que tem por objetivo oestudo propriamente descritivo das etnias e de todasas suas atividades. A etnografia é essencialmente umaciência de análise (Enciclopédia Delta Larousse,1977:2605.).

A etnografia se constitui da análise, mas antesde qualquer coisa, da descrição, de tudo que estiverrelacionado ao etno (do grego ethnos), ou seja,povo, gente, nação. Dessa forma, ao associarmos àfotografia, temos uma forma não textual para arealização de tal descrição.

Descrever através do recurso imagético, re-gistrando, rituais, culturas e festas, é exatamenteisso que faz a fotografia etnográfica.

Para John Collier, não há nada mais preciosono registro de uma realidade que uma foto. Ao entrarem uma caverna, por exemplo, e se deparar comalguns escritos nas paredes, o que seria mais óbviode se fazer para registrar tais escritos? Tentardesenhar igual como se está na rocha? Ou escrevero que se está vendo? Ou fotografar? Enfim, fica claro,nesse caso que a foto guardará com maior verossi-milhança o que se está diante de nossos olhos.

Muitas vezes quando se assiste a um filme natelevisão é comum deixar passar alguns detalhes, masà medida que se assiste de novo começa-se a ver novosdetalhes antes não percebidos. E diferentes pessoasacabam por ver, cada uma, algo que a outra não con-seguiu ver. Essa é outra façanha da imagem, por elaestá ali e poder ser repetida à nossa visão, permite quefaçamos uma análise bem mais acurada e precisasobre o que se vê. Como diz Goethe: “Olhar apenaspara uma coisa não nos diz nada. Cada olhar leva auma inspeção, cada inspeção a uma reflexão, cadareflexão a uma síntese, e então podemos dizer que,com cada olhar atento, estamos teorizando.” (Goetheapud Leite, 1998:40)

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E a medida que a imagem é destinada a umafutura análise, ou seja a um objeto de pesquisa, elaacrescenta dados que em um primeiro momentonão são percebidos pelo etnógrafo. Quando se anotao que está vendo, essa anotação é uma descriçãoque permite uma futura interpretação e análise porparte de outras pessoas, mas só se pode trabalharem cima do que está escrito e evidentemente algopode ter escapado ao olho do etnógrafo no mo-mento de sua ação em campo. Mas se sua pesquisafoi feita através da fotografia, maior é a pos-sibilidade de nada escapar, pois por mais que opróprio não tenha visto ou não tenha dado rele-vância, uma outra pessoa ao ver a foto, dará impor-tância e conseguirá ver o que ele não viu, mas a fotoregistrou (Bittencourt, 1998).

A descrição poderia ser feita textualmente daseguinte forma: homem moreno, aparentemente de45 anos de idade, sentado em uma cadeira com aas pernas cruzadas, na calçada de uma casa, porvolta de 16:30h da tarde. Ao lado dele, há mais oumenos um metro de distância, também sentada emuma cadeira uma senhora de aparentemente 55anos. Ao que parece a descrição está completa,relatou tudo, mas se no lugar do texto fosse utilizadahá fotografia acima, haveria assim a possibilidadede se analisar mais precisa e detalhadamente,extraindo tudo que foi acima relatado e ainda maisdetalhes a acrescentar como, por exemplo, a portaentreaberta, a sacola em cima da janela, a expressãodo olhar de cada um deles, enfim, detalhes quedependendo da pesquisa, podem ser como podemnão ser relevantes, mas de qualquer forma essa éuma decisão que cabe ao pesquisador.

“Por dedução e síntese, é possível obter infor-mações que não se encontram diretamente visíveisna fotografia.” (Bordieu apud Leite, 1998:20)

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UTILIZAÇÃOUTILIZAÇÃOUTILIZAÇÃOUTILIZAÇÃOUTILIZAÇÃO

Inicialmente há uma certa e cada vez menorrelutância das Ciências Humanas em querer incor-porar as imagens como objeto de estudo, tudodevido às várias idéias associadas ao termo imagemno decorrer do tempo. Descartes, filósofo de tradi-ção racionalista, diz que a imagem é fonte de ilusãoe engano, já no persa antigo, a imagem estava as-sociada ao termo magia. (Grand Dictionnaire Uni-versal Larousse, apud Matos, 1991:96).

Para Roland Barthes (1990:27) a imagem évista como a raiz de imitar. Ela é tida como uma re-presentação analógica, no sentido de representaçãodo real, ou cópia do real.

Se para uns a imagem pode conter poucoselementos passíveis de uma análise, para outros elaé uma fonte inesgotável.

Em se falando de ciência, é comum vermostrabalhos científicos, sejam eles em diversas áreas,onde a maioria do seu conteúdo é todo escrito, aimagem, nesse caso, vem sempre como um apoio,para reiterar o que está escrito, mas já faz algunsanos que esse pensamento de atribuir a imagem umcaráter só e somente só de complemento não écoerente. “Não é mais aceitável a idéia de se relegar aimagem a segundo plano nas análises dos fenômenossociais e culturais.” (Novaes, 1996:116).

Digamos que se queira saber, e, por conse-guinte, provar cientificamente, se enquanto o cavalocavalga, há um momento em que ele tira as quatropatas do chão ou não. A fotografia desse animal emmovimento responderá a essa questão, e a foto seráo único objeto de estudo. A foto, nesse caso, é umaprova científica de valor igual a um texto. Mas especi-ficamente nessa situação só a foto poderia melhorelucidar o problema, muito mais do que pedir para

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um cientista ficar olhando exaustivamente para aspatas do animal e descrever se viu ou não o fenômeno.

Cabe às ciências, saber que há fotos que sãotiradas quando se está de férias com a família, semnenhuma intenção de pesquisa e há fotos etno-gráficas, que são de extrema seriedade e com-promisso com a pesquisa.

Dentre as ciências humanas, a antropologiaé a que mais vem utilizando a fotografia para seusestudos, é o que John Collier Jr. (1973) chama deAntropologia Visual.

Ela se utiliza o material da etnografia para,a partir do mesmo, fazer uma síntese. No caso deserem registros fotográficos, é feito um estudo emcima das imagens. E ao utilizar elementos visuais,a interpretação dos fatos vai mais além do quese imagina.

METODOLOGIAMETODOLOGIAMETODOLOGIAMETODOLOGIAMETODOLOGIA

“Toda imagem é produzida com uma fina-lidade, o que a torna comprometida com uma in-tenção objetiva ou subjetiva. Essa intenção podeser identificada pela maneira com que o fotógrafose serve dos elementos constituintes da linguagemfotográfica.” (Ribeiro, 1996:13)

MEAD E BATESONMEAD E BATESONMEAD E BATESONMEAD E BATESONMEAD E BATESON

Dentre os primeiros registros visuais, ospioneiros da antropologia visual, os que se des-tacam perante os demais, temos o trabalho depesquisa realizado por Margareth Mead e GregoryBateson e, posteriormente, um outro realizado porJohn Collier Jr., em ambos a imagem foi utilizadacomo um instrumento, um recurso que possibilitao desdobramento do conhecimento, seguindo origor científico necessário. (idem:23)

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Mead e Bateson tinham a preocupação decaptar o ethos (aspectos afetivos normatizadores)e o eidos (aspectos cognitivos padronizados) da so-ciedade balinesa, baseados nessa finalidade elesdesenvolveram metodologias que atendessem ao usoda imagem na pesquisa antropológica e que contri-buíram para a descrição da sociedade balinesa.(idem ibidem)

Foram seis anos de pesquisa, e nesse períodoforam obtidos 25 mil negativos, e após uma triagem,759 imagens foram reproduzidas no livro Balinesecharacter: A photografic analysis (1942). A diagra-mação do livro foi feita dividindo as imagens porséries, onde cada série continha de seis a nove ima-gens, permitindo o reconhecimento de determinadosaspectos do comportamento do grupo.

A fotografia permitiu que fossem reveladoscertos aspectos intangíveis da cultura em estudo,como no caso, a transmissão do conhecimentoatravés da gestualidade, características relacionadasao temperamento e as emoções, sendo assim difíceisde ser captadas mediante um caderno de notas.Nessa pesquisa os autores buscavam métodos quesuperassem o textual, ultrapassando o limite entrea imagem fotográfica e a narrativa verbal.

Em diversos casos, o texto escrito e o visualaparecem juntos, e se complementam. Mas existemaqueles em que o divórcio entre os dois é completo.A leitura atenta pode isolá-los, ignorando um e le-vando em conta apenas o outro. (Leite,1998:38)

De acordo com Mead e Bateson, a maneiramais acessível para se estudar uma sociedade,utilizando-se da fotografia, é fazendo o registroda materialidade das relações humanas. E noestudo feito por eles foi percebido como a forma

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de aprendizagem da sociedade balinesa é extrema-mente gestual.

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John Collier Jr., outro pioneiro na antro-pologia visual, realiza um trabalho de pesquisajunto às culturas andinas e as comunidades no NovoMéxico e Canadá, ele além de utilizar a fotografiacomo fonte de pesquisa, também propõe novasperspectivas de seu uso na antropologia.

Em seu livro Antropologia Visual (1973), Co-llier, relata uma metodologia a ser usada para sefazer um trabalho de fotografia etnográfica. Paracomeçar a fazer o trabalho o autor cita três casosonde o pesquisador tem que fazer fotos sobre apescaria, no primeiro o pesquisador não conhecenada sobre pescaria e sendo assim fica difícil sabero que se deve fotografar, no segundo o pesquisadorconhece tudo sobre pescaria e por conseguinte vaisaber o que fotografar, mas já irá muito direcionadoe o terceiro caso, onde o fotógrafo que é um pesqui-sador novato, não sabe nada sobre pescaria, masse apresenta ao comandante da embarcação e dizqual a sua intenção, pra que vão servir as fotos, e ocomandante por sua vez apresenta-o aos tripulantescomo: “o amigo que vai tirar fotos”, sendo assimele já fica numa situação confortável para realizarseu trabalho.

De acordo com Collier, é fundamental que seconheça a sociedade estudada ou pesquisada, masum conhecimento aprofundado deve ser feio no localquando do início da documentação fotográfica.

Collier (1973) propõe que seja feita amizadecom alguém da comunidade que possa levar o pes-quisador aos lugares certos e até mesmo apresentá-lo às demais pessoas que possam também contribuir.

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E dessa forma o etnógrafo estará sendo guiado poralguém que conhece a cultura local e, por conseguinte,mostrará lugares de relevância na região, consideran-do os aspectos: culturais, sociais e religiosos. Enfim,essa pessoa deve ser um nativo, que não vá eviden-temente omitir aspectos da comunidade que venhama denegrir a imagem da mesma.

Como começar? Onde começar? Depois dessecontato inicial, essas são as próximas perguntas queirão surgir diante do fotógrafo etnográfico. JohnCollier segue o conselho de Robert Redfield(1955,p.19): “começar em qualquer lugar, e depois passarmetodicamente de um relacionamento a outro.”

Buscando compreender o caráter siste-mático da vida em comunidade, o estudante nãopode começar em todas as partes; deve iniciar emalgum ponto. Usualmente o início é dado comelementos imediatamente visíveis... (Falando deseus estudos sobre a cidade de Cham Com) comeceionde parece ser conveniente começar. Acompa-nhei um homem ao campo que ele tinha preparadona floresta para plantar milho. Observei como elecortava a madeira e com ela construía um pequenoaltar no campo. Vi-o misturar milho moído comágua e aspergi-lo nas quatro direções e entãoajoelhar-se em prece. Observei-o percorrendo ocampo e fazendo buracos nos lugares baixos comuma vara pontiaguda e deixando cair alguns grãosde milho em cada buraco. (Redfield apud Co-llier.1973:23)

Dessa forma, Redfield foi seguindo caminhosque convergiam para à cidade, logo depois as ruasda cidade e assim sucessivamente, as ruas foram darem uma fazenda e na fazenda moravam a mulher eos filhos do homem do campo, ou seja, ele partiu de

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um ponto que foi levando a outro. E ainda conse-guiu uma aproximação, que foi partir de um todopara algo particular, passando durante todo essepercurso por unidades importantes para se enten-der a cultura estudada.

Collier diz ainda que quando o etnógrafoestando em campo, em ação, e durante todo esseprocesso tem que ter plena consciência de quenão está ali simplesmente de férias, como umturista que tira fotos e vai embora, e também nãoé um repórter-fotográfico que também sai logoao fazer a foto. Enfim, ele tem que estar sempreatento para duas coisas muito importantes: temque se fazer perceber pela sociedade, com diplo-macia, e segundo, sua fotos tem uma finalidadede pesquisa. (Collier, 1973)

Conforme Collier (1973), ao começar a fazeras fotos o fotógrafo deve estar o mais atentopossível não só antes de fazer a foto, mas durantee depois dela ser feita, pois a última coisa queum pesquisador pode querer causar é uma máimpressão na comunidade que ele estuda, por issoele deve se apresentar e dizer a que veio, porqueestá ali e o que está fazendo. Ele deve tentarconseguir o que Collier chama de Golden Key(chave de ouro) para fazer as fotos na região,que é exatamente quando alguém chega para osoutros e diz: “olha esse aqui é o amigo que estátirando fotos da nossa região para uma pesquisa.”

A impressão geral que você pode causarao seu redor está nesta declaração: “Gosto devocê e admiro o que vocês fazem!” De outrolado, os nativos podem tornar-se perigosamentehostis, no momento em que você começar aregistrar circunstâncias que eles sentem refletiruma certa crítica sua ao modo de vida deles. No

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México você pode ser preso por fotografar cená-rios de pobreza. Crescendo a confiança da comu-nidade e uma apreciação inteligente da sua pes-quisa, os nativos terão também uma tolerânciamaior pelo que você escolher fotografar. Alémdisso o que você fotografa é a imagem deles, e aimagem não-verbal tende a ser mais carregadaemocionalmente do que uma que eles expressemverbal e intelectualmente.(idem:22)

O fotógrafo etnográfico para Collier é umobservador participante, ele tem que se inserir nacomunidade, participar, ir tomar um cafezinho nacasa da dona Maria, jogar sinuca na bodega daesquina, porque são nesses encontros casuais e nãoprogramados, onde se pode onde informaçõesextremamente preciosas para a pesquisa, pois eleestá sendo convidado a entrar na sociedade e navida das pessoas, e exatamente por isso essas mes-mas pessoas vão se abrir pra ele, contar históriasque intrínsecas da região.

Collier propõe que em um encontro como esseo fotógrafo pode mostrar algumas das fotos que jáfez para ver a opinião das pessoas, pois elas podemmuito bem dizer que o que ele está fotografandonão tem nada haver com a região pois não temrelevância alguma, por exemplo: “Por que que emvez de você fotografar essas casas aí, não fotografaos meninos jogando bola na praia que é algo muitocomum da região?”.

Collier chega a propor inclusive uma mostrapública das fotos, onde o fotógrafo poderia reuniruma boa parte da população na praça principalapós uma missa de domingo, por exemplo, edependendo das condições, projetar as fotos numtelão ou distribuir as fotos de mão em mão, paraver a opinião de um número maior de habitantes

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da região, analisar se os mesmos conseguem se vernaquelas fotos, conseguem ver a sua região, enfimo que eles vêem e o que sentem falta.

Luciana Bittencourt (1998) relata um casode estudo sobre a cultura da região de RoçaGrande, em Minas Gerais, onde em vez do fotógrafofazer as fotos, a câmera foi entregue nas mãos dospróprios nativos. De acordo com ela, essa é umaoutra possibilidade de se lidar com a pesquisa, poisos nativos foram tirar fotos de coisas que eramimportantes para eles e que de certa forma tinhamrelevância para a pesquisa, fotos estas que talvezos olhos do etnógrafo não enxergassem se não fossea feita pelo habitante da própria região.

A Neutralidade, será que ela, existe? Se há algoque o fotógrafo não pode se esquecer em momentoalgum, é que ele deve ser neutro o tempo todo queestiver fazendo fotos etnográficas. Collier não entrano mérito da questão, não discute se há ou nãoneutralidade total, mas enfatiza deve sempre setentar ser o máximo neutro possível.

Como o material fotográfico que se estáproduzindo tem uma finalidade de pesquisa faz-senecessário que o etnólogo não se deixe influenciarpor suas ideologias.

Em etnografia, como em todas as relaçõeshumanas, ver o estranho como ele “realmente” étorna-se, frequentemente, um acidente dos nossosvalores pessoais. Os sociólogos avaliam que émuito pouco o que podemos ver que seja verda-deiramente livre de preconceitos e projeçãopessoal. O realismo dessa inquietação se estendeà visão fotográfica, bem como à visão dos olhos.Mas os etnógrafos aceitaram, com grande entu-siasmo, a fotografia como a ilustração mais clarade uma cultura. (Collier, 1973:07)

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John Collier (1973) relata em seu livro quecerta vez quando foi fazer seu primeiro trabalhode pesquisa antropológica, teve um choque quandoo diretor do projeto chegou pra ele e disse: “Vocêsabe John, quando você no fim apresentar osresultados de sua investigação, provavelmente apublicação não terá fotografias.” (idem:99)

Por isso, Collier ressalta a importância dofotógrafo saber transformar suas fotografias emdados estatísticos e verbais, que podem se tornarparte de um conjunto verbal dos dados e da con-clusão. Ou seja, “não conseguimos completar a pes-quisa com a câmara fotográfica, amenos que pos-samos deixar as fotografias de lado em nossorelatório final.” (idem ibidem)

TEXTO E IMAGEMTEXTO E IMAGEMTEXTO E IMAGEMTEXTO E IMAGEMTEXTO E IMAGEM

Sébastien Darbon (1998) faz três conside-rações sobre o texto e a imagem, que merecem sercitadas. A primeira é que não podemos consideraro texto e a imagem da mesma classe hierárquica:“a imagem deve ser subordinada ao texto.” Ele citacomo exemplo o trabalho antropológico que Gre-gory Bateson e Margaret Mead realizaram em Bali,onde depois de 25.000 negativos, foi lançado umlivro, em cada foto havia uma legenda, algo queexplicava a foto. Fato este, graças que, enquantoBateson produzia a foto, Mead anotava todos ospor menores do contexto.

Ele afirma que de um simples ponto de vistadescritivo a fotografia não basta, mas também nãoretira seu valor. Pois para garantir essa dependênciade texto e imagem basta olharmos primeiro o texto,mascarando a foto e se verá que “o texto é preciso,mas abstrato, seco, muito pouco evocador”, en-quanto se for feito o contrário, mascarando-se o texto

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e vendo só a imagem verá que “as fotos são evoca-doras, mas abrem uma multiplicidade de sentidos,tornam possíveis numerosas interpretações”(Darbon,1998:109)

A segunda consideração é que “uma descriçãopura não existe. Toda descrição seja ela de umaimagem ou de uma realidade, já é uma interpre-tação.” O que poderá garantir que tal interpretaçãoserá correta? O etnólogo com toda a sua seriedadeno trabalho que desenvolve, é a pessoa mais indi-cada a fazer e analisar as fotos, como no caso deBateson que estava presente na foto e na análisedas mesmas, o que torna uma situação mais favo-rável de se acreditar que a de um historiador quetrabalha com fotos antigas.

E a terceira observação é que “quando seencontra diante de uma imagem as palavrasutilizadas para descrevê-la representam menos essaimagem que o que se espera dela depois de tê-lavisto” (idem:110). Michal Baxandall, falando depintura: “Numa descrição, trata-se mais de umarepresentação daquilo que se pensa a propósito deum quadro, do que uma representação dessequadro” (Baxandall apud Darbon,1998:110)

ITALIANOS DO BRÁSITALIANOS DO BRÁSITALIANOS DO BRÁSITALIANOS DO BRÁSITALIANOS DO BRÁS

Suzana Ribeiro, em seu livro Italianos doBrás (1994), se utiliza de imagens para tentarrecontar a história dessa comunidade do Brás. Oprocedimento é fazer entrevistas com pessoas dolocal, moradores e, por conseguinte, italianos.Conseguir despertar nessas pessoas através dasfotos uma catarse.

Com esse procedimento de entrevistas, osinformantes trazem elementos para a construçãode um esboço biográfico das pessoas da comu-

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nidade, fornecendo pistas para a identificação dasimagens e apontando, mesmo que involunta-riamente, para aspectos da realidade que nãohaviam sido pensados nem pelo realizador doregistro, nem pelo pesquisador. (Ribeiro, 1994: 33)

Primeiramente ela fez um levantamento dagênese dos documentos, seguindo as indicações deBoris Kossoy: “é importante conhecer os caminhospercorridos pela fotografia, as vicissitudes por quepassou, as mãos que a dedicaram, os olhos que aviram, as emoções que despertaram, os porta-retratos que a emolduraram, os álbuns que a guar-daram, os porões e sótãos que a enterraram e asmãos que a salvaram” (Kossoy, 1989:15).

Logo em seguida, após reunir uma pequenacoleção de fotografias de imigrantes residentes noBrás durante a década de 20 e 30, a etapa seguintetambém é baseada na proposta metodológica deKossoy, que é a análise individual, com o levan-tamento de questões precisas e objetivas: conhecero espaço ocupado, temas e personagens do coti-diano do bairro.

Depois de tudo reconhecido, começaram asentrevistas, as pessoas entrevistadas tinham emcomum o fato de serem descendentes dos imi-grantes e idade superior a 65 anos. Assim come-çaram a ser recolhidas informações antes não ob-tidas sobre essa região.

O fato mais interessante desse trabalho é quea fotografia serviu para a pesquisa de uma formadiferente, ou seja, como um recurso catártico,trazendo situações, conflitos, ideais e realizações epermitiu também uma aproximação do cotidianoidealizado, com o realmente vivenciado nas décadasde 20 e 30.

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A imagem e a memória se complementamnesse trabalho, pois um representa o ideal e o outrodesvenda o real, mediante o resgate de elementosque não são imediatamente visíveis. “Verdadesocultas na fotografia foram desveladas, ampliandoe conservando informações sobre um passado emvias de desaparecimento” (Ribeiro, 1994:54).

Para Suzana (1994), “o objetivo desse trabalhonão foi somente averiguar o que existe de verdadeironos instantes que determinaram os registrosfotográficos, mas os jogos de verdade: o escondido,o disfarçado, o excluído e o lembrado.”

Esse trabalho sobre o Brás segue de certaforma o pensamento de Sébastien Darbon (1998),citado anteriormente, em sua segunda observaçãosobre a imagem e o texto, onde se leva em conta aconfiança em quem está analisando a imagem, poissegundo ele, uma descrição pura não existe. Nessetrabalho o que Suzana Ribeiro procura, é fazer comque as pessoas certas, as mais indicadas, façam adescrição sobre as fotos, as pessoas que vivenciaramaquele momento, ou que de certa forma estiverammais próximas daquele momento.

Esse trabalho, por mais que tenha a carac-terística principal de resgate de algo antes nãodetectado, é um trabalho de pesquisa com imagensfotográficas e a metodologia utilizada tem comoobjetivo superar o aspecto meramente ilustrativoatribuído a imagem pela pesquisa tradicional, ondea imagem serve apenas como um reforço e nãocomo um fonte reveladora e rica em dados.

E ainda “inspirado pela nova história a quese propõe contar, este trabalho procurou ampliaro conceito de documento, restrito, normalmenteàs fontes escritas, ao utilizar a fotografia e a histó-ria oral para a reconstrução do cotidiano do Brás”(Ribeiro, 1994:16).

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Um antropólogo contou-me suas frustra-ções a respeito da fotografia: “Não é que afotografia não seja boa. Ela é ótima. As fotografiassão o mais puro realismo. Contêm tudo. Temosaperfeiçoado técnicas para compilar dadosverbais, mas o que podemos fazer com fotogra-fias?” Esta é sem dúvida a dificuldade. Umafotografia pode conter mil referências. E, o que émais desconcertante, a maioria das fotografiassão prova de um minuto de tempo – de um centé-simo de segundo da realidade. Enquanto os pesqui-sadores de campo não souberem o que fotografar,quando e quantas vezes fotografar – e porquê –, osantropólogos não verão modo funcional de usar acâmara. (Collier, 1973:09).

BIBLIOGRAFIABIBLIOGRAFIABIBLIOGRAFIABIBLIOGRAFIABIBLIOGRAFIA

COLLIER, John. Antropologia visual: a fotografiacomo método de pesquisa. São Paulo: EPU,1973.

FREUND, Gisèle. Fotografia e Sociedade. ColeçãoComunicação & Linguagens. 2ª. Ed. Mafra: Vega, 1995.

Enciclopédia Delta Universal. Rio de Janeiro:Delta, 1980.

FELDMAN-BIANCO, Bela, LEITE, Miriam L. Moreira.(orgs.). Desafios da Imagem: Fotografia, icono-grafia e vídeo nas ciências sociais. São Paulo:Papirus, 1998.

RIBEIRO, Suzana Barreto. Italianos do Brás:Imagens e Memórias. São Paulo: Brasiliense, 1994.

SAMAIN, Etienne.(org.) O fotográfico. São Paulo:Hucitec, 1998.

SONTAG, Susan. Ensaios sobre fotografia. Rio deJaneiro: Arbor, 1981.

VASQUEZ, Pedro. Como fazer fotografia. Petrópolis:Vozes, 1986.

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LER IMAGENS: O QUE SE TIRALER IMAGENS: O QUE SE TIRALER IMAGENS: O QUE SE TIRALER IMAGENS: O QUE SE TIRALER IMAGENS: O QUE SE TIRADELAS, O TERROR QUE TRANSMITE,DELAS, O TERROR QUE TRANSMITE,DELAS, O TERROR QUE TRANSMITE,DELAS, O TERROR QUE TRANSMITE,DELAS, O TERROR QUE TRANSMITE,

O QUE PODE SER SENTIDO E AO QUE PODE SER SENTIDO E AO QUE PODE SER SENTIDO E AO QUE PODE SER SENTIDO E AO QUE PODE SER SENTIDO E ABELEZA DA DENÚNCIABELEZA DA DENÚNCIABELEZA DA DENÚNCIABELEZA DA DENÚNCIABELEZA DA DENÚNCIA

1 Jornalista, mestre em Filosofia e doutoranda em Sociologia. Faz parte docorpo docente do curso de Comunicação Social – FA7.

Fátima Medina1

ResumoResumoResumoResumoResumo – Este artigo procura refletir sobre o trabalho deManguel, buscando analisar a maneira com que produzuma semiótica do homem ordinário.

Palavras-chave:Palavras-chave:Palavras-chave:Palavras-chave:Palavras-chave: arte, imagem, homem ordinário.

Abstract Abstract Abstract Abstract Abstract – The article attempts to propose a reflectionon the work of Alberto Manguel, analyzing the way bywhich it generates a semiotics of the common man.

Key Words:Key Words:Key Words:Key Words:Key Words: art, image, common man.

Alberto Manguel se diz um curioso sobre anarrativa das imagens. Na sua obra Lendo Imagens:uma história de amor e ódio propõe um estudo dasdiferentes formas de expressão artísticas expondoo comportamento e a mensagem que os artistasreconhecidos internacionalmente passam para ohomem comum. Como esse homem ordináriofreudiano pode retirar alguma mensagem ao anali-sar, ou mesmo observar uma obra de arte? Nessecontexto, vários autores foram escolhidos porManguel, como Aleijadinho, Picasso, Vincent Van

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Gogh e na arquitetura Claude-Nicolau Ledoux. Mas,no presente trabalho, não poderíamos esquecer deFrida Kahlo, Salvador Dali, Edvard Munch e ArthurBispo do Rosário.

Seria a arte o simulacro da própria dor e dadenuncia dessa dor? Mas ao se reporta para asimagens que transmitem sentimento de medo,Manguel, procura fazer um paralelo entre as diversasconstruções e a representação filosófica que oindividuo faz dessa representatividade. O presenteestudo tem início no texto sobre arquitetura, aoanalisar o trabalho de Ledoux. Mengel, remonta adefinição de casa sob o olhar de um poeta anglo-saxão do século XII que chama o túmulo de ‘umacasa sem janelas’ (Manguel: 2003 p.252) e deApolodoro quando descreve no século II a.C. olabirinto de Creta como ‘uma casa sem portas’.(p.252), No entanto a definição de casa tem em seuconceito intrínseco o de lar, aconchego, segurança.Também relata que era comum no mundo antigona arte da arquitetura o uso de maquetes, tanto noEgito, Grécia e Roma, mas como reprodução poste-rior da construção já ponta. A cultura no uso demaquete para obras que irão ser construídas surgeno século XIV pelos grandes arquitetos da renas-cença: Brunelleschi, Bramante, Leon Battista Alberti,Michelangelo. Manguel cita que o arquiteto AndréaPalladio, para construir a igreja de San Francescodella Vigna em Veneza, utilizou a teoria da harmoniapitagórica descrita na obra de Platão “Timeu” ondeacontece o diálogo entre os personagens Timeu eCrítias, quando delineia a cidade de Atlântidaempregando conceitos metafísicos sobre o mundodas idéias. Santo Agostinho em sua obra “Civitas Dei”fala de uma cidade construída em total perfeição.No Apocalipse ao descrever uma Jerusalém perfeitano final dos tempos que surge dos céus numa forma

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de um cubo perfeito com as medidas certas feitade jaspe e ouro e ‘todas as espécies de pedraspreciosas’ (p.253).

Hegel diz em “Lições introdutórias sobreestética” que o arquiteto tem como missão ‘puri-ficar o mundo exterior, dotando-o de ordem simé-trica e afinidade com a mente’ dessa forma o deusda comunidade entraria na edificação à parte do‘lampejo faiscante da individualidade, que animapermeia a massa inerte’. (p.254). Segundo Menguel“toda construção propões um argumento que nosenvolve como espectadores e em que somos envol-vidos como moradores. O sucesso de uma cons-trução pode ser medido a partir dessas duas posi-ções, e a nossa leitura de uma construção requer,pelo menos, essas duas percepções ou experiên-cias”. (Menguel: 2003 p.254).

Fundamentando através das construçõeserguidas ao longo do tempo em diversos lugarescomo as casas brancas de Jericó, os arranha-céusnas grandes metrópoles, ou as construções fic-cionais como a Torre de Babel, de Pieter Bueghel,o castelo de Drácula, de Bram Stocker, a mansãode Marderley da obra Rebecca, de Daphne duMaurier, no mesmo estilo da casa em Encarnação,de José de Alencar, ou Le Grand Meaulnes, de AlainFournier. Mas Manguel passa a usar como exemplo,ou mesmo como modelo a usina de sal Arc-et-Sanans, do século XVIII, idealizada pelo arquitetofrancês Claude-Nicolas Ledoux, como represen-tação da arquitetura enquanto filosofia “em pedrasólida e real”.

Para Manguel a obra de Ledoux se desenhacomo a representação de um pensamento equi-librado. “Hoje a primeira visão de Art-et-Senansnada nos diz, a não ser que aquele que sonhou tinhauma mente maravilhosamente bem equilibrada.”

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(Menguel, 2003, p. 256). Numa estrutura em semi-círculo a entrada da usina de sal Art-et-Senans émarcada por um imenso pórtico sustentado por oitocolunas dóricas (característica das construções noséculo XVIII). O sal era o produto principal e sendotributado na França como um dos principais recursosdo tesouro Real. O tributo foi idéia do conselheiro deLuís XIV, Jean Baptista Collrert, por volta do ano de1681. Criou um sistema de impostos (os abomináveisfermiers généraux) cobrados diretamente dos pro-dutores, o que gerou insatisfação entre o povo. Segun-do Manguel era dedicado todo ódio da populaçãopara com os cobradores enquanto o rei recebia admi-ração e amor.

O sal era tão importante quanto o ouro e pormuitos séculos foi valioso para a família real, masno século XVIII a produção de sal começou a cair emvárias usinas do reino. Foi então que Luís resolveuconstruir uma usina que tivesse capacidade de pro-dução contínua e crescente. O local ideal foi Arc-et-Senans, por ficar perto da Floresta de Chaux (X’o) oque forneceria lenha suficiente para alimentar oscaldeirões de água salgada. O arquiteto escolhidofoi Claude-Nicolau Ledoux.

Ledoux não era rico, foi obrigado a sair daescola e aprender o ofício de gravador em Paris.Aprendeu a desenhar árvore e animais. Tornou-sehábil em cenas de batalhas o que lhe proporcionoua formação de projetista o levando a profissão de

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arquiteto. Aos 24 anos entrou para a Écola des Artsde Jacques-François Blondel, primeira escola de artefrancesas que ensinava arquitetura a seus alunos.Mas foi no emprego na Superintendência dos Canise Florestas de Sens que Ledoux conheceu MadameDu (Dy) Barry, favorita do rei. Substituindo MadamePompadour, depois de sua morte. Du Barry construiuem suas terras, um pavimento para abrigar suacoleção de obras de arte e receber o rei. O pavimentohavia sido projetado por Ledoux, que era comparadoa Palladio, arquiteto italiano de grande renome. Coma morte do rei Luís XV, o filho Luís VI contratouLedoux para executar um projeto de construção dausina de sal. A obra teria que contemplar váriosrequisitos entre eles a capacidade de expandir-separa evitar a saturação. Diz Manguel: “tinha quepermitir livre acesso tanto para a água salgada,donde o sal era extraído como para a lenha neces-sária as fornalhas”. (Menguel: 2003 p.259). Alémde segurança contra fogo e roubo de sal. O maisimportante dos requisitos, no entanto, era que a obrativesse algo que representasse as idéias de melhoria,ou qualidade de vida, “tinha que ser a encarnaçãoda razão”. (Menguel: 2003 p.259)

Com a queda do governo revolucionário francêspor Napoleão, Ledoux foi preso. Em constantes re-flexões perguntou: ‘O poder da arquitetura não é umpoder colossal?’ e respondia, ‘Dentro da próprianatureza que imita, ela pode construir uma outranatureza; não está limitada a um terreno demasiadoestreito para a grandeza de seus pensamentos; avastidão do céu e a terra são seu domínio; [...] podesubjugar o mundo inteiro desde o desejo do recém-nascido aos sublimes acasos da imaginação.’(Menguel: 2003 p.259).

Os temas apontados pela Revolução Francesapreenchem os pensamentos de Ledoux que projeta

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constrói a fábrica ‘mais eficiente, mais agradávelao olhar que o mundo conheceu’. (Menguel: 2003p.259). Hoje, a única fábrica tombada pelo Patri-mônio Mundial da Unesco.

A fábrica oferecia aos operários e suas famíliasótimas instalações, além de área para lazer com oscolegas e filhos. Tudo sob a supervisão do Diretorda Usina. Para Ledoux “um modelo de justiça sociale felicidade popular”. (Menguel: 2003 p.260) Todoo complexo arquitetônico tem forma de leque, aoentrar pelo pórtico o visitante se depara com a casado Diretor da Arc-et-Senans que fica no prédio maisalto. De lá todos são vigiados. Segundo Menguel,embora a construção transmita uma imponência euma severidade se contrapõe pela elegância queapresenta. A casa do diretor faz ligação com asoficinas pela parte térrea o que impediria qualquertipo de roubo, até mesmo por um controle psico-lógico ou mesmo simbólico. As escadarias que con-duzem à casa do diretor, o topo do primeiro lancede batentes, têm um pátio que era usado como altarpara a celebração de missas aos domingos. Ocrucifixo é formado pelo espaço do fundo dopatamar e pelos dois braços que se estendem paracada lado, conduzindo aos apartamentos. Dessaforma passa a simbologia (impressão) de que odiretor estava mais próximo de Deus do que os de-mais. Era total forma de controle.

Nos alojamentos dos operários, que traba-lhavam longos turnos para manter as fornalhas sempreacesas, descansavam em frente ao fogão da cozinha,onde ouviam a voz dos amigos e o cheiro das comidas.Afirmava Ledoux que dessa forma eram protegidos‘contra todos as distrações dispendiosas e orgiasbáquicas que ameaçam destruir o casamento e tomaros ociosos de surpresa’. (p.261). Por trás de cadaalojamento havia hortas individuais. Essa proposta de

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Ledoux se contrapõe à vida dos trabalhadores daMuralha Chinesa, Minas de ouro do Caribe, da cons-trução das pirâmides, mas não deixa de ser uma formadominadora de reger o outro.

Menguel lembra que no período havia o idealde uma sociedade onde o indivíduo tivesse uma vidamelhor, advindo dos pensamentos da RevoluçãoFrancesas com o lema: Liberdade, Igualdade eFraternidade. (p.264) Ledoux acreditava que ostrabalhadores podiam viver sob uma autoridadeilustre com paz e sabedoria. Com esse pensamentoe com a queda do governo revolucionário, Ledoux épreso, passa 16 anos no cárcere e morre dois anosapós ser libertado.

Na prisão trabalhou arduamente para cons-truir uma cidade perfeita onde o homem pudesseviver em harmonia. À cidade perfeita deu o nomede Chaux. As casas projetadas em circunferênciaofereceriam mais tranqüilidade aos seus moradores.As construções de Ledoux se aprofundavam nasforma elementares que a natureza produz, afirmaMenguel, como os cristais, o cubo, a esfera, a pirâ-mide. No projeto a parte onde ficaria a defesa dacidade, já que acreditava ser a guerra parte semprepresente na organização da sociedade, seriamerguidas pirâmides como quartel.

Existiria ainda a Casa da Paz, local das reso-luções dos conflitos através da discussão racional. ODomo do Prazer ou simplesmente lugar de viver,conteria várias caixas e cilindros chatos onde os tra-balhadores poderiam ouvir música e apreciarquadros. O sistema hidráulico da cidade partia dacasa do Diretor dos Serviços Hidráulico. De lá fluíaum rio. Um cemitério em forma de circulo semi-enterra, que de qualquer lugar da cidade poderiaser visto. O faria os trabalhadores pensar na vida

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sobre a terra e que tinham o tempo contado.Chama a arquitetura de architecture parlante(arquitetura falante). A explicação vem com ofilosofo francês Jean Starobinski ‘as formasprimordiais da geometria não só satisfazem umanecessidade funcional na construção de um edi-fício, mas também desenvolvem um significadolegível.’ (p.267)

Chaux era o complemento do leque da Arc-et-Sanens. Segundo Manguel “o trabalho, que lim-pa a alma do homem devia continuar no centro dacidade de Ledoux na forma da Casa do Diretor, masna segunda metade não concretizada se ergueriamas formas arquitetônicas visíveis de um mundoregido pela justiça e pela razão.” (p.265). Mas quenão era escolha dos indivíduos que lá habitavam.

Partindo da arte como formade denuncismo do grito ou dacrença de quem dela se vale paraanunciar ou mesmo berrar “asdores do mundo”, como diriaSchopenhauer. Para Plantão sãoaparências, sombras do mundo dasidéias. Já Kant diz que faz parteda categoria a priori. Hegel advogaque a arte faz parte do espíritoabsoluto. Segundo Manguel, oescultor Antônio Francisco Lisboa

ou simplesmente Aleijadinho, utilizou a “imagemcomo subversão”, revoltado com o seu estado desaúde e contra o sistema político monárquico,esculpiu Nossa Senhora do Rosário (imagem ao lado)com características de branco e negro. Ela representaIemanjá. “As imagens religiosas, embora cristãs,também se prestavam a uma leitura segundo atradição africana, a ser feita pela população negra

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Mostrando toda suacapacidade de observaçãofrente a alienação socialde valores estabelecidopelo belo, Aleijadinho fazo denuncismo ideológicode seu tempo, a teologiacomo forma de perfeiçãohumana, física e moral.

Utilizando-se da artee vivendo em uma outraépoca encontramos Pablo

que aluía como rebanho à igreja: a Nossa Senhorado Rosário é também Iemanjá, a deusa africana domar”. (Manguel:p.239)

Aleijadinho, subvertendo a ordem vigente doséculo XVIII, pode gritar a revolta contra as idéiasmantida de um Deus banco, perfeito e que haviacriado os indivíduos a sua imagem e semelhança.Com o desenvolvimento da lepra torna-se maisamargo. “Deformado pelas doenças de que padecia,perdendo os dedos e a visão, percebendo-se tão feioque se sentia forçado a trabalhar sob a proteção deuma tenda, e enfurecendo-se contra a feiúra que osolhos dos outros lhe impunham, procurava mostrara glória de um Deus que optou por ser homem emformas humanas que estivessem, na sua imaginação,o mais distante possível das suas. E nessas faces emembros elegantes que os seus sonhos criaram,talvez, o seu desejo se visse refletido, uma espéciede branqueamento artístico”. (Manguel:p. 239)

Figura 03Picasso e sua forma de criar o destempero dos valoressociais vigentes, principalmente na sua fase cubista.

Na tela pintada em outubro de 1937 ‘Mulherchorando’, tem a vaidade apresentada ao se fazbela compondo seu visual com chapéu em cores,

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mostra os diversos ângulos da dor. Para Manguelé como se o artista descrevesse a nossa própriahistória e acrescenta: “Para a maioria de nós, osespectadores comuns, a obra de um artista nãopertence apenas à vida do artista, mas também anossas próprias vidas (que incluem, sem dúvida,certas idéias do que a vida desse artista poderiater sido).” (Manguel: p.207)

Nos chocamos ao observar as imagens que nossão postas e expostas. Os sentimentos, os maisdiversos, nos percorrem a alma e não conseguimosentender, parecem conflitos que estão estampados,concretizados, objetivados e estamos dispostos a nãoderrubar a empanada que colocamos para não ver.

Cada imagemconvoca o observadora mergulhar em suaprópria alma e nessepercurso as imagensse mostram em diver-sas tiras ilustradacom cada uma de nos-sas emoções. A imagi- Figura 04

nação nos leva a territórios que muitas vezes nãoousamos percorrer. Em “Estupro” o artista denúnciaa violência praticada dentro da sociedade. Podemospensar sobre o fato, mas vê-lo como denuncia eapresentado como imagem provoca impulso naforma de consternar, de total desalento. Como podealguém desenhar de forma e de maneira tãoimpactante algo de características tão violenta?

É dessa forma que Picasso produz o quadro“Guernica”, um óleo sobre tela de 1937, feio parao pavilhão da República Espanhola na Exposiçãode Paris. Atualmente está exposto no CentroNacional de Arte Rainha Sofia. Em primeiro planono quadro, está uma figura fragmentada com ca-

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beça cotada, à esquerda, um outro braço tambémcortado, ao centro, agarrando uma espada quebrada,emblema bem conhecido da resistência heróica.

Junto à espada quebrada encontra-se uma flor,como uma mensagem de esperança numa vida nova,apesar das tentativas do homem para a destruirconstantemente. A comovente delicadeza da florparece aumentar o horror geral da cena caótica eacima o olho de quem tudo ver.

O impressionismo surge como um movimentoque mostra a realidade dentro uma abordagemdireta, independente de qualquer poética, ou seja,contra o ‘clássico’ e o ‘romântico’.

Segundo Guilio Carlo Argan, “o problema quese colocava era o de enfrentar a realidade sem osuporte de ambos, libertar a sensação visual dequalquer experiência ou noção adquirida e dequalquer postura previamente ordenada quepudesse prejudicar sua imediaticidade, e a operaçãopictórica de qualquer regra ou costume técnico quepudesse comprometer sua representação atravésdas cores”. (Argan:1992 p.75)

Quem são esses indivíduos que buscam reco-nhecer a sociedade ou por ela ser reconhecido?Vincent van Gogh em suas crises de lucidez e loucuraprocurou, durante toda sua vida, representar os fatose denunciar a condição humana. No seu primeiro

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momento pinta “Os carregadores e suas cargas”, oartista passa a condição dos trabalhadores de formasóbria e melancólica através das cores da pintura.

Para Agan, Van Gogh fica ao lado de Kierke-gaard e Dostoievski pela forma de como se questionasobre a vida. “Como estes [Kierkegaard e Dostoi-evski], ele se interroga, cheio de angústia, sobre osignificado da existência, do estar-no-mundo.Naturalmente coloca-se ao lado dos deserdados edas vítimas: os trabalhadores explorados, os campo-neses dos quais a indústria tira, com a terra e o pão,o sentimento da eticidade e religiosidade do tra-balho”. (Argan, 1992, p.124)

Mesmo convivendo com grandes artistas nãoconteve a insatisfação, precisava ficar perto doque era simples e denunciar a condição dotrabalhador do campo e faz em “Os carregadorese suas cargas” o comportamento e a vida da so-ciedade simplória. Saiu da fase com tons maissóbrios, depois de conhecer as obras de artistascomo Toulouse-Lautrec, Pissarro e outros impres-sionistas, Van Gogh tem uma mudança radical emseu trabalho e passa a utilizar cores mais vivas.

Mas, na produz do quadro “Par de sapatos”que tem como objetivo denunciar a condição dospiões. “Os sapatos dos operários” passa a serinspiração para uma série de trabalhos. Na obra,

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Para Robert Goldwater: “Os momentos dramá-ticos da carreira de van Gogh, os quais ele parece amercê de forças externas ou incontroláveis fatoresdentro dele mesmo, nunca nos deve obscurecer aforça de sua determinação pela qual ele ajustouseu curso.”

A mexicana Frida Kahlo surge no cenárioartístico mundial com suas pinturas denunciativasda dor que a fez padecer durante toda a vida provo-cada pela poliomielite e depois ficou durante muitotempo presa a uma cama resultado de um acidenteque a fez realizar inúmeras cirurgias corretivas. Foidurante o período de convalescença que Fridacomeça a pintar. A mãe colocou acima de sua camaum espelho assim podia ficar admirando-se. Pintoumais a si mesma e dizia: “Eu pinto-me sim porqueestou muitas vezes sozinha e porque sou o assuntoque conheço melhor”. (Kettenmann, p.18) Com umcasamento tumultuado e uma relação difícil com a

van Gogh utilizou uma gama de tons escuros.Como acontece em outras obras, os objetos maishumildes adquirem uma grande força expressivana arte vangoghiana. Não conseguindo sintonizar-se com vida, suicida-se. É considerado o maiorpintor holandês após Rembrandt, e um dos maio-res do movimento Pós-Impressionista.

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mãe, a artista resolve pintar os acontecimentosmais importantes de sua vida. Em 1932 apresentao quadro “O meu nascimento” ou “Nascimento”,no qual o rosto da mãe fica coberto por um lençol.Sentia-se rejeitada pela mãe. Dessa forma, Fridapinta a própria dor.

André Berton, um dos líderes do surrealismo,disse um dia a Frida que ela era uma “surrealiste”,a artista responde que seu trabalho predominavaa inteligência e o humor.

Dizia-se filha da revolução, já que viveuintensamente o período político de ascensão dogoverno mexicano que começa por volta de 1910,resultado de movimento popular, antilatifun-diário e antiimperialista. Movimento que derrubouo governo de Porfírio Diaz responsável pela aber-tura da entrada do capitalismo e empresas estran-geiras contrapondo ao desenvolvimento das ca-madas populares.

A revolução é responsável pela derrubada daditadura de Porfírio Diaz e a ascensão de FranciscoMadero, em junho de 1911.

Compartilhava com o movimento social esimpatizava com a Liga de Leon Trotsky desde quese apresentara na Quarta Internacional. QuandoTrotsky foi expulso da Noruega, Frida Kahlo, junto

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com o marido Diego Rivera, pediram ao presidenteLázaro Cárdenas asilo para Leon e foram aten-didos. Em janeiro de 1937 o casal Trotsky chegavaa Tampico. Ao longo dos meses Frida mantém umcaso com Leon.

Frida é atuante dentro dos movimentos revo-lucionários e em 1928 se filia ao partido Comunista,deixando no ano seguinte por que a organizaçãopolítica agora havia aderido ao stalinismo. Fazendoparte do grupo de artistas e intelectuais, defendia“o regresso às raízes da nação e ao restabelecimentoda arte popular mexicana”. (Kettenmann: p.21)

Depois de se submeter há várias cirurgias,mesmo assim as dores na coluna não passam, Kahloé obrigada a usar um colete de aço. Vem a inspiraçãopara o quadro “A Coluna partida”. As correias docolete fazem com que a artista tenha firmeza nocorpo. Assim Andréa Kettenmann descreve a pintura:“uma coluna jônica, rachada em vários sítios, tomao lugar da sua coluna vertebral fraturada. A fendaabismal na sua carne é retomada nos sulcos quemarcam a paisagem gretada e erma que se vê atrás,que assim se torna num símbolo de sua dor e solidão.Os pregos espetados na cara e no corpo, lembrando

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imagens do martírio de S. Sebastião, atravessado porseta, são símbolos de sua dor ainda mais poderosos.”(Kettenmann: p.69)

Casa com o artista Diego Rivera, viaja a NovaYork onde o marido fora convidado para pintar umpainel. Freqüento a alta burguesia americana, Fridanão deixa de contemplar a dualidade social, a luxuriados que tinha muito e a miséria dos que nada tinham.Em brigas constantes com o marido para voltar aterra natal, resolve fazer uma colagem, alias, únicoem toda sua obra “O Meu Vestido Está ali Pendurado”ou “Nova Iorque” onde mostra o capitalismo ameri-cano, de um lado tudo que contém o desenvol-vimento industrial, são muitos os símbolos como oCapitólio com suas colunas em estado de esplendore triunfo, chaminés, prédios os mais altos, lixos e nocentro o vestido da artista em meio a todos os sím-bolos. O trabalho mostra a “América moderna eaponta para a decadência social e para a destruiçãode valores humanos fundamentais”. (Frida: p.34).

A capacidade de perceber o sensível faz comque o artista transforme os acontecimentos emnarrativa imagética. Considerados como excêntricos,eles ousam mostrar ao mundo suas mazelas comum capricho entre as linhas condutora da revelaçãoque explodem na composição das cores que essa re-presentação contém.

Sobre o Surrealismo diz Gombrich: “A expe-riência de pintar imagens oníricas foi certamenteválida. Nos sonhos, com freqüência experimenta-mos a estranha sensação de que pessoas e objetosse fundem e trocam de lugar. Nosso gato pode serao mesmo tempo nossa tia, e o nosso jardim ser aÁfrica.” (Gombrich:1995 p.592)

Gombrich considera Salvador Dali um dosprincipais pintores surrealistas. O artista espanholusa sua própria imagem para denunciar aquilo que

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não está posto, mostrado, estampado, mas aquiloque está categoricamente concretizado em suasformas. De temperamento excêntrico atrevia-se, empostura e discursos, quebrar a ordem das coisas.Costumava dizer: “a única diferença entre mim eum louco é que eu não sou louco”. Desagradou acritica, aos fãs, mas jamais a ele mesmo “todas asmanhãs, ao levantar-me, experimento um prazersupremo: ser Salvador Dali. E pergunto-me sur-preso. O que este prodigioso Salvador Dali vai fazerhoje de prodigioso”. Incomodava tanto que na obrade Guilio Carlo Argan, Arte Moderna, ela escrevesobre o movimento Surrealista, mas não faznenhuma menção ao artista.

No quadro “Lúcifer” (figura 10) o senhor dastrevas, representado pelo auto-retrato de Dali, temdo lado direito o relógio do tempo quebradoindicando o fim, transpassado pelo sangue que jorrado lado esquerdo seguindo uma faixa vermelha emdireção a mão direita que exibe um braço fortesegurando o pincel, propondo mais um tempo, umtempo novo simbolizado pelo relógio amolecido.

Um dos maioresícones do Surrealismo,movimento que teveinfluência do psicana-lista vienense SigmundFreud, que argumen-tava a importância doinconsciente na criati-vidade humana. Segun-Figura 10

do Freud, o individuo deve libertar a mente dasquestões lógicas determinadas pelos valores sociaisvigentes e dar vazão aos sonhos do inconsciente.

Dali foi um dos partidários do pensamentofreudiano e em seu trabalho transmitiu o desejoincontido de não ter medo. Dos sonhos de poder e

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da superioridade sobre as coisas. Dizia: “Aos seisanos eu queria ser um cozinheiro. Aos sete, queriaser Napoleão. As minhas ambições continuaram acrescer ao mesmo ritmo desde então” ou “Não tenhomedo da perfeição. Você nunca vai atingi-la”.

Dono de um temperamento difícil, Dali pro-vocou a sociedade ao assumir um comportamentoforte, empertigado, talvez uma forma de mimetismocontra valores expurgado por ele numa eterna lutainterior. O quadro “A tentação de Santo Antão” foirealizado por Dali para participar de um concursode divulgação de um filme que tinha o mesmo nomedo trabalho. Dali não venceu, mas a partir daquelemomento havia criado um mundo novo e simbólico.Na obra Santo Antão empunha uma cruz para re-pelir os maus espíritos, expressos em forma de ca-valo e elefantes carregando elementos simbólicos.No dorso do primeiro elefante está uma mulher, querepresenta a luxúria.

No quadro “Criança Geopolítica Assistindoao nascimento do Novo Homem”, pintado em1943, segundo Nathaniel Harris, trata-se de umaverdadeira paródia com relação às antevisõesotimistas, realizadas durante a segunda grandeguerra mundial sobre esse novo mundo que seacreditava surgir depois da derrocada do fascismo.O quadro apresenta o novo homem nascendo deum ovo, como um pinto, a casca e mole, a consis-tência tem maior aparência com ovo de jacaré oude cobra. Mesmo os continentes são moles dandoa aparência de que estão derretendo, misterio-samente. A África ocidental deixou cair umalágrima em cor vermelha. O toldo pontiagudo e amulher apontando, ao mesmo tempo musculosa eemaciada, ajudam a dar ao quadro uma atmosferabastante ameaçadora. (Nathaniel Haris – Vida eObra de Dali)

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Em seus quadros, passa a perfeição do deta-lhamento, como afirma Gombrach, a precisão quepintava Grant Wood as pinturas de paisagens. Dalipintava a realidade transformada em símbolos edentro dessa visão onírica se faz mensageiro doreal. Na obra “Aparição de rosto e fruteira numapraia” e descrita por Gombrach da seguinte for-ma: “a baía com suas onda, a montanha com seutúnel – representa ao mesmo tempo a cabeça deum cão, cuja coleira é também um viaduto ferro-viário sobre o mar. O cão paira em pleno ar –parte media do seu corpo é uma fruteira com pê-ra, a qual, por sua vez, se converte no rosto deuma mulher cujos olhos são formados por estra-nhas conchas marinha, numa praia repleta deintrigantes aparições. Como sonho, algumas coisas– por exemplo, a corda e o pano – destacam-secom inesperada clareza, enquanto outras formaspermanecem vagas e evanescentes.” (Gombrach:1995p.593)

O artista procura denunciar as condiçõesexistenciais extremas em que vive a humanidade,Gombrach faz uma comparação entre o quadrode Dali e Tlaloc, deus da chuva, senhor do raio,do trovão e do relâmpago, temido pelos astecasque sacrificavam pessoas em rituais dedicados aodeus. Os astecas acreditavam que era o respon-sável pelas inundações e secas. Tlaloc era senhordo destino da coletividade e “o cão e a fruteirade Dali refletem o sonho impalpável de uma pes-soa, para a qual não temos a chave que o decifre.”(Gombrach: 1995 p.594)

Saber retratar a dor humana e ser o porta-voz do espírito aflito de uma sociedade que securva frente ao medo do mundo, mas que fingenão perceber.

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Edvard Munch abre odesafio e contra os valoressociais denunciar a dor daalma para que se pudesserealizar algo de transfor-mador, luta pela voz e vezde uma humanidade cheiade amarguras.

No movimento Ex-pressionista, que nascecomo a forma de represen-Figura 11

tação do mundo, propõem expor aquilo quecontém numa dialética histórica. Para Argan esseagitação tinha dois pensadores que influenciaram,Bergson e Nietzsche. “Para Bergson, a consciênciaé, no sentido mais amplo do termo, a vida; nãouma imóvel representação do real, mas umacomunicação ativa e contínua entre objeto e sujei-to. Um único elã vital, intrinsecamente criativo,determina o devir tanto dos fenômenos como dopensamento. Para Nietzsche, a consciência édecerto a existência, mas esta é entendida comovontade de existir em luta contra a rigidez dosesquemas lógicos, a inércia do passado que oprimeo presente, a negatividade total da história.”(Argan: 1992 p.228) Munch se destaca e é com o quadro “O Grito”que sobressai. O quadro representa angústia mo-derna, que o autor conhecia muito bem. ParaGombrich “Munch poderia ter replicado que umgrito de angústia nada tem de belo, e que seriafalta de sinceridade olhar apenas o lado agradávelda vida. Pois os expressionistas alimentavamsentimentos tão fortes a respeito do sofrimentohumano, da pobreza, violência e paixão, que erampropensos a pensar que a insistência na harmonia

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e beleza em arte nascera exatamente de uma recusaem ser sincero.” (Gambrich: 1995 p. 564/566)

Tanto é que Munch pintou quatro versões de“Grito”. O primeiro foi em 1893. Duas estão noMuseu Munch, outra com um colecionador parti-cular, e a quarta com a Galeria Nacional de Oslo.

Começa a pintar em 1880, dando prefe-rência a retratos, depois quadro naturalista quetestemunham sua rejeição do impressionismo daépoca. Em 1895, pinta “Puberdade”, onde mostraa timidez e a fragilidade de quem tem inse-gurança, provocada pelo medo da possível desco-berta dos desejos.

Segundo Argan, “o rosto indeciso e ame-drontado indica a perturbação da moça pela trans-formação que sente se realizar em seu próprio ser.Realista é a sobra, projetada em pela iluminaçãofrontal, apenas levemente deslocada para aesquerda. A passagem do estagio de menina para ode mulher, cujo destino obrigatório é amar, procriare morrer, não é para Munche um acontecimentofisiopsicológico, mas social.” (Argan: 1995 p.265)

As funções simbólicas das representações setornam a descrição do fato importante e trans-formador do comportamento social que pretendeignorar a existência dos conflitos íntimos hu-manos que não podem ser ditos nem muito menosanunciado. Para Argan: “O símbolo não é algoalém da realidade; é algo de morto que se mesclaà vida. A sociedade, dizia Ibsen, é como um naviocom um cadáver a bordo, e o cadáver é o símbolo-tabu.” (Argan: 1995 p.258).

Em 1894, Munch pinta “Cinzas”. No quadroencontrar-se o desespero daqueles que perderamtudo. As mãos da mulher sobre a cabeça, os cabe-los descuidados, o vestido em desalinhado. O ho-mem, numa posição curvada, tem a mão sobre a

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cabeça, a cor preta da roupa e dos cabelos, confir-ma o desespero.

Concluindo, Argan, afirma: “Munch respon-de que não se escapa da realidade evadindo-se nosímbolo; a realidade é inteiramente simbólica, nãohá nada mais real do que o símbolo. O Amor é osexo, a Morte é o cadáver ou o ataúde; a Sociedadeé a loucura, a Palavra é som inarticulado, grito. Narealidade, nada possui a estabilidade, a clareza, osignificado certo da forma; tudo possui a precarie-dade, a instabilidade, a inconsistência do evento.Ou da imagem.” (Argan: 1995 p.258)

Chegamos a Arthur Bispo do Rosário quesaiu do seu Estado natal, Sergipe, depois de deixara Marinha, por volta de 1933, e vai para a capitalfederal, Rio de Janeiro. Dizia ter sido pugilista notempo que serviu a Marinha Brasileira. Trabalhouno Departamento de Trações de Bondes da Light,como lavador. É demitido por não cumprir ordemdo chefe. Emprega-se na casa do advogadoHumberto Leone. Segundo Jorge Anthonio, autordo livro Arthur Bispo do Rosário: arte e loucura,o artista tinha compulsão em lustrar o chão “atéconseguir um brilho onde se visse refletido”. Tra-balhava na casa como faxineiro e encarregado deserviços gerais.

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Em 1938 sofre o primeiro delírio é quando vêJesus Cristo descendo do céu rodeado por sete anjosazuis. Recebe a mensagem de reconstruir o mundo.Passa a viver pelas ruas e é conduzido pela Políciaao Hospital dos Alienados. Começam suas eternasentradas e saída de hospitais psiquiátricos.

Sempre apresentou muita habilidade paraartes. Segundo Jorge Anthonio, em um dos prontuá-rios clínicos traz como diagnóstico ‘esquizofreniaparanóide’. E acrescenta sobre esquizofrenia “paraa medicina é a psicose crônica com afecção reveladaem inúmeras formas de comportamento com opensamento em desacordo com a vida emocional eas formas de relação com o mundo exterior. Aorigem pode ser psico-bio-social. Na forma figurada,pode-se dizer que na esquizofrenia há uma projeçãodos extratos mais profundos do inconsciente sobrea razão. A vigília é, então, conduzida pelo delíriogerando alucinações várias. O pensamento éafetado, fragmenta-se o discurso, perde-se a unidadede ser, advêm as ambivalências e o autismo. Diz-seque morre o afeto. Rompem-se os laços sociais.” (Silva:2003 p. 38)

Pobre, negro, solteiro, sem família, esqui-zofrênico, não se sabe muita coisa sobre sua vidasexual. A única preocupação que demonstrava eracom valores celestiais. Mas, todo o trabalho era deperfeita sintonia. O artista tinha comportamentoperfeccionista. Verdadeiro ato antagônico já queBispo apresentava desordem emocional, a perfeiçãose fazia presente nos trabalhos. Como delinearalguém que agora constrói o belo, o equilibrado, ocriativo, no espaço social? A verdade era outra eArthur mostrava os dois mundos em que vivia.

A confecção do Manto da Apresentação, peçaque começa a montar com linha e outros objetos,

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Imagens – Fátima Medina

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seria usado na passagem do artista para o reinodos céus. Os trabalhos de Bispo diversificam-seentre justaposições de objetos e bordados. Para aconfecção de objetos utiliza geralmente utensíliosdo cotidiano da Colônia para doentes mentais,como canecas de alumínio, botões, colheres,madeiras de caixas de fruta, garrafas de plástico,calçados, vassouras, chapéus, cordas, palhas, emateriais comprados por ele ou pessoas amigas.Para os bordados usa os tecidos disponíveis, comolençóis ou roupas, e consegue os fios desfiando ouniforme azul de interno. Prepara, com seustrabalhos, uma espécie de inventario do mundopara o dia do Juízo Final. Nesse dia se apresentariaa Deus, com um manto especial, como represen-tante dos homens e das coisas existentes. O mantobordado traz o nome das pessoas conhecidas, paranão se esquecer de interceder junto a Deus por elas.Bispo faz também estandartes, fardões, faixas demiss, fichários, entre outros artigos, nos quais bordadesenhos, nomes de pessoas e lugares, frases comrespeito a notícias de jornal ou episódios bíblicos,reunindo-os em uma espécie de cartografia. Acriação das peças, para ele, é uma tarefa impostapor vozes que dizia ouvir.

Para Jorge Anthonio, o Manto da Apresen-tação, “é o elemento denunciador do desejo detornar-se grande, de sobrepor-se ao mero sentidoda vida cotidiana. É o objeto que faz do corpoalgo intangível, pois o desmaterializa, como nossantos e reis.” (Silva: 2003 p.89)

Os estandartes mostram a criatividade ex-pressando motivos de navios, rodas dos ventos,numa história simbólica sobre sua passagem pelaMarinha Brasileira. Não havia esquecido aquelemundo em que um dia estivera.

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No painel das canecas, ape-sar do comportamento esquizofrê-nico, Bispo mostra a sua organiza-ção e linearidade na disposição emque estão os canecos.

Para Jorge Anthonio, “trans-porto o objeto para a montagem,ele entra na formação do con-ceito, abrindo significações ao ob-jeto final. Em Bispo é o desneces-sário que se transforma em fun-damental, na medida em que seFigura 13

auto-referencia. O objeto não se pretende a repre-sentação fiel da figura. A busca do artista é a orga-nização dos segmentos na obra, indefinível comoforma, mas pessoal nas relações de contigüidadeentre seus constituintes.” (Silva:2003, p. 1001)

Arquitetura da desconstrução? Não. Definiti-vamente, porquanto os artistas que manifestama realidade fazem o grande favor a humanidadeao denotar a verdadeira arquitetura da cons-trução. A sociedade com seus mitos, discursos eideologias provocou a desconstrução. O homemfrente ao pseudoquadro exposto pelos conceitosatinados pela sociedade não compreende aprofundidade do seu próprio existir, nem a ver-dade do espelho.

O trabalho encerrou com Arthur Bispo doRosário que mostrou a arquitetura da descons-trução e da construção. Expões a consciência e aruptura, o contraste e a harmonia, essa dicotomiaprovocadora dos conflitos humanos. A verdadeiradialética do existir.

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Imagens – Fátima Medina

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BIBLIOGRAFIABIBLIOGRAFIABIBLIOGRAFIABIBLIOGRAFIABIBLIOGRAFIA

ARGAN, Giulio Carlo. Arte Moderna. Tradução deDenise Bottmann e Frederico Carotti. São Paulo:Companhia das Letras, 1992.

CONNOLLY, Sean. A vida e a obra de Vincent vanGogh. Editora Madras.

GOMBRICH, E. H. A História da Arte. 16ª ed.Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro:Editora, 1995.

HILDALCO, Luciana. Arthur Bispo do Rosário: osenhor do labirinto. São Paulo: Rocco, 2000.

KETTENMANN, Andréa. Frida Kahlo. Tradução deSandra Oliveira. Lisboa: Taschen, s/d.

SILVA, Jorge Anthonio e. Arthur Bispo do Rosário:arte e loucura. 2ª ed. São Paulo: Quaisquer, 2003.

Site: http://www.proa.org/exhibicion/inconsciente/salas/id_bispo_23a.html

ILUSTRAÇÕESILUSTRAÇÕESILUSTRAÇÕESILUSTRAÇÕESILUSTRAÇÕES

Figura 01: Plano geral da usina de sal Arc-et-sanans, foto de Claude-Nicolas Ledoux.

Figura 02: Nossa Senhora do Rosário, imagempolicromada de 90 centímetros, de Aleijadinho.

Figura 03: “Mulher chorando” (578x700 cm), dePablo Picasso.

Figura 04: “Estupro” (desenho), de Pablo Picasso.

Figura 05: “Guernica” (óleo sobre tela, 350x782cm), 1937, de Pablo Picasso.

Figura 06: “Os carregadores e suas cargas”, deVincent Van Gogh.

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Figura 07: “Par de sapatos”, de Vincent Van Gogh.

Figura 08: “Nascimento” (óleo e colagem sobremasonite, 46x50 cm), 1933, de Frida Kahlo.

Figura 09: “A Coluna Partida”, (óleo sobre tela,montado em masonite, 40x30 cm), Frida Kahlo.

Figura 10: “Lúcifer”, (380 x 306 cm) de Salvador Dali.

Figura 11: “O grito”, (813 x 158 cm), de Edvard Munch.

Figura 12: “Puberdade” (1,50 x 1,10 m), 1895,de Edvard Munch.

Figura 13: “Canecas”, de Arthur Bispo do Rosário.

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Primórdios do telejornalismo no Ceará – Alberto Perdigão

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A CENTRALIDADEA CENTRALIDADEA CENTRALIDADEA CENTRALIDADEA CENTRALIDADEDO CENTRO DE FORTALEZADO CENTRO DE FORTALEZADO CENTRO DE FORTALEZADO CENTRO DE FORTALEZADO CENTRO DE FORTALEZA

1 Arquiteto e professor do curso de Comunicação Social – FA7

Ricardo Paiva1

ResumoResumoResumoResumoResumo – O presente estudo acerca da centralidadedo Centro consiste em analisar as especificidadesinerentes à produção do espaço intra-urbano deFortaleza frente ao processo de globalização, com ênfa-se no quadro de segregação sócio-espacial provenientedo processo predatório e desigual de urbanização, ma-terializado no Centro.

Palavras-chave:Palavras-chave:Palavras-chave:Palavras-chave:Palavras-chave: globalização, segregação, regiãocentral.

Abstract Abstract Abstract Abstract Abstract – The present study about the centrality ofdowntown Fortaleza consists in an analysis of itsinherent particularities concerning the production ofintra-urban space in face of the process of globali-zation. Emphasis will be given to the background ofsocio-spatial segregation caused by the predatory andunequal urbanization of downtown.

Key Words:Key Words:Key Words:Key Words:Key Words: globalization, segregation, downtown.

Atualmente, muitas e distintas visões têm-sevoltado para os centros urbanos com o intuito decompreender a dinâmica sócio-espacial das cidadesbrasileiras, condicionada, entre outras, pelasseguintes questões:

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A centralidade do centro de Fortaleza – Ricardo Paiva

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A suposta perda de centralidade unitária e osurgimento das centralidades múltiplas.

A necessidade de requalificação dos espaçosurbanos centrais e;

Os novos paradigmas de produção e gestãodo espaço urbano.

11111 CENTRO E CENTRALIDADE: UMA QUESTÃOCENTRO E CENTRALIDADE: UMA QUESTÃOCENTRO E CENTRALIDADE: UMA QUESTÃOCENTRO E CENTRALIDADE: UMA QUESTÃOCENTRO E CENTRALIDADE: UMA QUESTÃOSEMÂNTICASEMÂNTICASEMÂNTICASEMÂNTICASEMÂNTICA

Nos últimos anos, as discussões sobre os cen-tros urbanos adquiriram novos contornos, deli-neados, sobretudo, pela relação entre o processode urbanização contemporâneo e a nova lógicado capitalismo. O acento da questão urbana con-temporânea se concentra na reestruturação, con-dicionadas pela globalização, por que têm passadoas cidades no final do século XX.

Na escala urbana, os movimentos de frag-mentação, descentralização e simultaneamentecentralização, decorrentes do processo de flexibi-lização da produção, se somam ao incremento dosetor terciário, justificando um modelo deurbanização disperso, acentuando o processo demetropolização.

Neste redimensionamento das funções urbanasna cidade, surgem as “novas centralidades”, locali-zações que concentram na maioria das vezes umconglomerado de atividades terciárias avançadas,além de outras funções urbanas, compondo umaformação metropolitana com vários centros, umaestrutura polinucleada.

No entanto, a natureza destas “novas centra-lidades” e sua relação com os centros “principais”adquirem uma conotação diversa, dependendo deque modelo de polinucleação se trata, pois é pre-

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ciso admitir que as determinações globais nãoincidem de forma homogênea e simultânea em todosos lugares.

Na América Latina, a inserção na rede defluxos globais acentua o processo de diferenciaçãosócio-espacial, resultado da urbanização desiguale maximizado pelas heranças da dependência frenteaos países hegemônicos. Nesta direção, embora seadmita o surgimento de “novas centralidades” noespaço intra-urbano no Brasil, esta estruturapolinucleada apresenta características distintas, naqual as “novas centralidades” surgem parareproduzir o quadro de segregação sócio-espacial,associado às classes dominantes, e à permanênciaefetiva do centro “principal” como elemento essen-cial da estrutura intra-urbana, pois:

Os centros tradicionais de nossas metró-poles, apesar de suas notórias decadências,continuam sendo os focos irradiadores da orga-nização espacial urbana, continuam sendo a maiorconcentração de lojas, escritórios e serviços – etambém de empregos – de nossas áreas metro-politanas. Atendem a maior população do quequalquer outro centro das metrópoles, uma vezque atendem o maior número de viagens (VILLAÇA1998:246).

Malgrado as diferenças no que se refere aotermo “novas centralidades” e suas relações comos centros “principais”, percebe-se que a centra-lidade, ou seja, as atribuições qualitativas condi-zentes com as funções urbanas de centro, têmpassado da condição de predicado para sujeito,ou de adjetivo para substantivo, revelando umaindefinição conceitual, na qual o termo “centra-

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lidade” adquire significado e uso indiscriminado.Neste sentido, será utilizado neste trabalho o termo“novas centralidades” como novas áreas urbanascom atributos de centro, e “centralidade” para sereferir às atribuições, tanto do centro principal,como dos novos centros. O conceito de centro, porsua vez, pode ser entendido pela origem e trans-formações ocorridas na totalidade da estruturaintra-urbana.

1.1 A CENTRALIDADE DO CENTRO1.1 A CENTRALIDADE DO CENTRO1.1 A CENTRALIDADE DO CENTRO1.1 A CENTRALIDADE DO CENTRO1.1 A CENTRALIDADE DO CENTRO

Castells (1982:65) identifica quatro elementosresponsáveis pela formação da centralidade urbana,relacionada ao centro principal. Em primeiro lugar,ela decorre da espacialização da divisão social dotrabalho, ou seja, existe uma divisão do trabalhona sociedade à medida que há distinções deatividades e diferentes níveis sociais de acordo comtais atividades, gerando diferenciações espaciais.O autor identifica como o segundo elementoresponsável pela centralidade urbana, que édecorrente do primeiro, “a concentração deatividades, de recursos econômicos e do poder dedecisão tanto público quanto privado” (CASTELLS,1982:66). Em função deste processo de concen-tração no centro e, simultaneamente, dispersão nacidade, surge o terceiro elemento, que diz respeitoà acessibilidade relacionada ao sistema de trans-portes em detrimento da hierarquia criada por estadinâmica de crescimento urbano. Finalmente, oúltimo elemento responsável pela formação dacentralidade urbana:

(...) é a diferença simbólica do espaço e daconcentração de ditos processos simbólicos emcertos lugares, isto é, todo o espaço está carregado

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de significação, mas, além disso, como há umahierarquia social implícita nesta valorização sim-bólica, existe também uma hierarquia na organi-zação espacial. A centralidade urbana será, portan-to, também a expressão do nível mais alto dessahierarquia simbólica (CASTELLS, 1982:66).

Em síntese, os quatros elementos identificadospor Castells (1982:66) na formação da centralidadeurbana: divisão social do trabalho, concentraçãodo poder, acessibilidade ligada ao crescimentourbano e hierarquização simbólica, permitemextrair os atributos de centralidade econômica,política e simbólica dos centros urbanos.

A centralidade do centro se manifestava deforma expressiva no preço do solo, fruto do valorde uso e valor de troca, configurando a famosadicotomia centro x periferia. No entanto, estesatributos de centralidade dos centros urbanos,segundo Castells (1982:67), provocaram umprocesso crescente de desgaste do centro principal,materializado na sua decadência espacial e social.Ele atribuiu esta “crise no sistema de centralismo”à defasagem entre a dinâmica da estrutura social eà rigidez e permanência das formas existentes nocentro urbano. Estas novidades funcionais foramresponsáveis essencialmente pela criação de “novascentralidades”, embora ainda contíguas ao centroprincipal, e pelo sistema de circulação e a conse-qüente criação de novos fluxos urbanos.

Porém, o problema é que esta adaptaçãofuncional, em geral, serve como eixo de penetraçãode outros aspectos mais dominantes. A saber: aadaptação necessária do novo processo devalorização do solo. A dominação do valor de troca

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sobre o valor de uso, em nossa economia, faz comque as novas funções urbanas valorizadas – a saber,a implantação de funções administrativas, aresidência de classes sociais elevadas, em termosde rendas e status social – tende a deslocar asatividades e a população que habita neste espaçode tradição histórica (CASTELLS, 1982:67).

Embora se associe em demasia a criação de“novas centralidades” à deterioração de edifíciose das condições de vida e envelhecimento daestrutura urbana central, o que se verifica é queeste processo de decadência acontece tambémcomo conseqüência do processo de substituiçãode usos e adaptações funcionais, motivados porinteresses econômicos. Entretanto,

(...) toda a estrutura física pode se manter sehouver uma política, tanto pública quanto privada,de conservação destas estruturas; se não se manteveé porque os interesses funcionais e os interesseseconômicos subjacentes não representam um estí-mulo suficiente para a manutenção física das estru-turas (CASTELLS, 1979:68).

Após a histórica retirada de muitas funçõesurbanas, iniciadas com a habitação, o centro prin-cipal passava a abrigar atividades ligadas predo-minantemente ao circuito inferior da economia(SANTOS, 1988). Desta forma:

O centro antigo continua muito ativo, masé o local de concentração de um comércio po-pular, de serviços públicos e culturais e de partede atividades financeiras. É o lugar, também, da

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concentração do comércio de rua, do ambu-lante ‘informalizado’, que vende produtospopu-lares à população de renda média e baixa(ZANCHETI, 2000).

A decadência é o traço mais evidente desseprocesso que se caracteriza fundamentalmente peladiminuição do valor da terra urbana, seguida dadiminuição de investimentos públicos e privados eminfra-estrutura, equipamentos urbanos e manu-tenção dos espaços públicos, agora transferidos paraas “novas centralidades”; pela obsolescência dariqueza construída, tornando-se capital inativo; peladescaracterização do patrimônio edificado emfunção das adaptações de uso; pela decadênciacultural e social, marcada pela destruição dos rema-nescentes históricos e culturais que conferiam legiti-midade à identidade e à memória coletiva; e pelareprodução do quadro de segregação e fragmentaçãosócio-espacial.

A partir do final dos anos oitenta e início dosanos noventa surgem no Brasil esforços no sentidode propor a renovação/reabilitação/requalificação/revitatilização2 dos centros urbanos das capitais bra-sileiras e a preservação do seu acervo histórico ecultural, influenciados por experiências interna-cionais. Estes esforços foram induzidos, sobretudo,

2 Embora os termos possam ser qualificados comumente como ações dereestruturação de áreas deprimadas, existe algumas diferenças entre oslimites de cada conceito. A renovação urbanarenovação urbanarenovação urbanarenovação urbanarenovação urbana tem uma conotação inscritanos moldes da visão modernista do planejamento urbano do pós-guerra(PORTAS, 1985) de substituição de áreas históricas destruídas por novosusos e estrutura urbana, segundo Maricato (2001) seria “uma ação cirúrgicadestinada a substituir edificações envelhecidas, desvalorizadas, queapresentam problemas de manutenção, por edifícios novos e maiores (...)”.A reabilitaçãoreabilitaçãoreabilitaçãoreabilitaçãoreabilitação e a requalificaçãorequalificaçãorequalificaçãorequalificaçãorequalificação se assemelham, enquanto categorias deanálise, e se referem à “uma ação que preserva, o mais possível, o ambienteconstruído existente e dessa forma também os usos e população moradora”(MARICATO, 2001:126). A revitalizaçãorevitalizaçãorevitalizaçãorevitalizaçãorevitalização visa a recuperação de áreas degra-dadas, mas tem conotação mais pejorativa, quando não consideram que asáreas centrais não possuem vitalidade.

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pelas transformações na sociedade contemporânea,a princípio do ponto de vista econômico, com aspossibilidades de obter vantagens no uso dosrecursos culturais dos centros históricos, viabili-zados pelo desenvolvimento do turismo. Em segun-do lugar pelas mudanças políticas relacionadas àsnovas formas de gestão do espaço urbano e, final-mente, pelas transformações culturais, caracteri-zadas pelo fetiche criado em torno do passado nabusca de uma diferenciação na onda homogenei-zante da globalização.

Os principais exemplos no Brasil são o corredorcultural do Rio de Janeiro, o Pelourinho em Salvadore o Bairro do Recife na capital pernambucana, combase nas experiências de Bolonha, Boston, Barcelona,Paris, Buenos Aires e Bilbao (COSTA, 2003). O acentofundamental das intervenções nos centros históricosé a sua suposta capacidade de impulsionar odesenvolvimento local das cidades. Entretanto, taisexperiências não estão isentas de contradição, postoque as opiniões se dividem quanto às estratégias dedesenvolvimento local com bases na requalificaçãodos centros históricos.

Por um lado, há os que acreditam que a inje-ção de investimentos na preservação do patrimôniohistórico seria suficiente para reverter o processode decadência dos centros, porque constituiriamfocos de atração de investimentos em outras áreas,além de agregarem valor à imagem da cidade. Poroutro lado, estas iniciativas de requalificação sãoacusadas de criarem um processo de expulsão dasclasses menos favorecidas das áreas de intervenção,com o enobrecimento do lugar, chamado de“gentrification”.

O resultado desse processo seria a produçãode uma cidade desigual, com a expulsão da popu-lação de baixa renda das regiões revitalizadas em

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prol dos interesses econômicos das elites, que sebeneficiaram. Nessa visão, a cultura torna-seapenas um captador de investimentos, umamercadoria em torno do qual formula-se (importa-se) um consenso sobre o que deve ser a cidade,financiado pelo capital privado e internacional3.(Grifo no original).

Atualmente, o debate sobre a perda de cen-tralidade dos centros principais é lugar comumnas políticas públicas dos governos locais. As açõesque tentam reverter o quadro de declínio destesespaços da cidade apresentam paradoxos inerentesàs especificidades de cada cidade. O processo dedecadência do Centro de Fortaleza e as tentativasde reabilitação e preservação do patrimônio apre-sentam semelhanças, através do processo de urba-nização predatória comum às várias capitaisbrasileiras; da assimilação do discurso interna-cional nas práticas de requalificação; e da preser-vação inscrita nos novos modelos de gestão ur-bana, principalmente os planos estratégicos. Alémde distinções, como o hiato entre o discurso e aprática e o avançado estado de deterioração doCentro de Fortaleza.

1.21.21.21.21.2 O CENTRO DE FORTALEZA E AS PRÁTICASO CENTRO DE FORTALEZA E AS PRÁTICASO CENTRO DE FORTALEZA E AS PRÁTICASO CENTRO DE FORTALEZA E AS PRÁTICASO CENTRO DE FORTALEZA E AS PRÁTICASECONÔMICAS, POLÍTICAS E CULTURAL-ECONÔMICAS, POLÍTICAS E CULTURAL-ECONÔMICAS, POLÍTICAS E CULTURAL-ECONÔMICAS, POLÍTICAS E CULTURAL-ECONÔMICAS, POLÍTICAS E CULTURAL-IDEOLÓGICASIDEOLÓGICASIDEOLÓGICASIDEOLÓGICASIDEOLÓGICAS

Com base na relação entre o espaço e aspráticas sociais, a centralidade econômica seráestudada à luz do valor de uso e de troca; a centra-

3 (KANASHIRO, Marta. Prós e contras da revitalização de centros históricos.In: www.legfor.com.br, em 08/07/2004).

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lidade política com bases nas relações de poder ea centralidade simbólica em função dos signi-ficados, que na sua interação, possibilitam a com-preensão do papel do Centro na estrutura intra-urbana de Fortaleza.

1.2.1 A CENTRALIDADE ECONÔMICA1.2.1 A CENTRALIDADE ECONÔMICA1.2.1 A CENTRALIDADE ECONÔMICA1.2.1 A CENTRALIDADE ECONÔMICA1.2.1 A CENTRALIDADE ECONÔMICA

No caso específico de Fortaleza, juntamentecom a maioria das capitais brasileiras, o Centrosofreu transformações substantivas a partir doinício da década de 1970, quando a sua condiçãode centro economicamente hegemônico associadoao valor de uso e valor de troca, foi subtraída pelosurgimento de “novas centralidades” como o bairroda Aldeota e pela crescente autosuficiência dosbairros, através da configuração dos sub-centros.A justificativa de tal assertiva demanda uma análiseque melhor se aproxime da realidade, no estudoda gênese, desenvolvimento e implicações da perdade centralidade do Centro.

O surgimento do bairro da Aldeota na direçãoda Av. Santos Dumont, eixo de expansão signifi-cativo, previsto desde o século XIX por Adolfo Her-bster efetivou em meados do século XX o deslo-camento das classes mais abastadas do Centro parao sentido leste, após efêmera ocupação dos bairrosdo Benfica, Jacarecanga e Praia de Iracema,praticamente no núcleo central. A tendência à espe-cialização do Centro para o setor terciário; a ade-quação das necessidades da moradia burguesa auma nova estrutura fundiária, que o Centro nãoatendia, através de lotes maiores e um padrão deimplantação da residência “solta” em meio a áreaslivres verdes; o próprio crescimento da cidade e asnovas frentes de exploração do mercado imobiliáriosão alguns fatores que justificam este deslocamento.Na opinião de Flávio Villaça, este fenômeno estáassociado aos novos bairros residenciais dascamadas de alta renda, que surgem freqüentementecontíguos aos centros principais.

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Outra manifestação da importância dada aocentro pelas camadas de mais alta renda –comprovada apenas para as metrópoles brasileiras,talvez as latino-americanas em geral – consiste nofato de levarem o centro a se deslocar em suadireção (...) (VILLAÇA, 1998:249).

Neste sentido, evidencia-se também o deslo-camento de outras funções urbanas, a princípioo lazer, associado agora ao desfrute da praia e,posteriormente, o trabalho. O marco na consoli-dação da “nova centralidade” da Aldeota, relacio-nado ao terciário, foi a inauguração do ShoppingCenter Um (1974), que pontuou a tendência dobairro em concentrar lojas, escritórios e bancos.Atualmente esta área apresenta-se como uma“nova centralidade”, pela diversidade de funçõesque concentra.

Outro ponto a ser analisado diz respeito aoplano de importância econômica do Centro deFortaleza com relação à constituição da área decentralidade na Aldeota. A observação da realidademostra, por um lado, que o Centro e a Aldeota nãose excluem enquanto territórios com qualidades decentro, apenas possuem naturezas diferenciadas, ede outro, que o status de centro principal, emboraenfraquecido pelas “novas centralidades”, só podeser atribuído a um deles.

A construção do Shopping Iguatemi (1982), quepontuou o segundo centro de compras desta naturezana cidade, inaugurou o esboço de outra “novacentralidade”, posterior à implantação da Univer-sidade de Fortaleza e do Centro de Convenções noBairro da Água Fria, no setor sudeste. A rivalidadefrente à centralidade do Centro de Fortaleza éacrescida com o desenvolvimento dos subcentros,principalmente pelo desenvolvimento das atividadesterciárias nos bairros, com destaque para os bairrosdo Montese, Parangaba, Messejana, Antônio Bezerrae Barra do Ceará. O Centro de Fortaleza por serelemento crucial na estrutura intra-urbana, absorve

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as transformações que se operam na cidade, asseguraRenato Pequeno:

O centro tradicional desde os anos 1970vem perdendo sua importância com o desloca-mento progressivo nas direções leste e sudeste,seguindo eixos viários que se dirigem às locali-zações escolhidas pelos empreendedores imobi-liários, expandindo-se como centro linear pon-tuado por shoppings centers, verdadeirosnódulos de concentração comercial e de serviços(PEQUENO: 2001:129).

O deslocamento das classes sociais maisabastadas em direção ao leste e sudeste da cidadetem como conseqüência a expressiva injeção deinvestimentos em infra-estrutura, equipamentosurbanos, parques e praças em porções localizadas,revelando, nessa urbanização desigual, as dispari-dades sócio espaciais.

A decadência não se confunde necessaria-mente com alterações na dinâmica econômica doCentro4, mas com a sua tomada pelas camadas po-pulares do comércio e serviços, anteriormente vol-

4 De acordo com fontes da Associação dos Lojistas do Centro e Junta Comercialdo Ceará, o Centro de Fortaleza é responsável por 8% do ICMS arrecadadode todo o Estado do Ceará. Sua dinâmica econômica pode ser aindacomprovada com outros dados: Fluxo diário: 300 mil pessoas. Datascomemorativas 500 mil pessoas. Trabalhando: 70 mil pessoas; Ônibuscirculando na Rua General Sampaio, principal corredor - horário de pico:400; Estabelecimentos comerciais: 25.630; Local de compras de 68% dapopulação economicamente ativa de Fortaleza.(Fonte: Associação dos Lojistasdo Centro e Junta Comercial do Ceará).Uma pesquisa realizada em 2004 pelo SEBRAE-Ce sobre o Perfil Econômicodo Centro ratifica sua pujança, tais como: “o ranking dos aspectos positivosmais evidenciados pelos clientes do Centro de Fortaleza, dentre os quaisdestacam-se: variedades (58,43%); praças (25,17%); preços (24,50%);cinemas/lazer (18,33%); shopping (14,13%); fácil acesso (12,20%), TeatroJosé de Alencar (4,16%), localização (3,13%), dentre outros”> Emcontrapartida,(...) os aspectos negativos do Centro da cidade apontadospelos entrevistados na, tem-se principalmente: a sujeira/poluição (71,21%);a segurança (63,30%); os camelôs (6,35%); os “trombadinhas” (5,99%); ospedintes (5,19%); os estacionamentos (5,10%); a fiscalização do trânsito(3,00%); os preços altos (2,95%); o saneamento (2,68%), dentre outros.

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tadas à burguesia, e com a legitimação do lado lestee sudeste como alvo das principais intervençõesdo Estado.

O alarmante estado de deterioração da estru-tura física e do patrimônio histórico e cultural étestemunho das transformações do valor de uso ede troca do Centro, pois revela uma crescente movi-mentação de diversas funções urbanas para outrasáreas da cidade, e por conseqüência destas mu-danças de usos e da ausência de investimentos, adiminuição do valor de troca da terra urbana. Noentanto, esta regressão nos valores da terra urbanado Centro só acontece se comparada aos das áreasleste e sudeste da cidade. “Nos espaços centraiscomercias, o preço da terra apresenta-se dez vezesmais valorizados que os espaços periféricos”(PEQUENO, 2001:168), em função da infra-estru-turada instalada.

1.2.2 A CENTRALIDADE POLÍTICA1.2.2 A CENTRALIDADE POLÍTICA1.2.2 A CENTRALIDADE POLÍTICA1.2.2 A CENTRALIDADE POLÍTICA1.2.2 A CENTRALIDADE POLÍTICA

Entendendo centralidade política como umatributo que o Centro incorpora na esfera dopoder, é imprescindível compreender o papel doEstado na qualificação de uma área com centra-lidade política. Tais funções podem ser constatadasem duas instâncias: a primeira consiste na concen-tração e materialização do poder através dos edifí-cios, monumentos e estrutura urbana como lócusda atividade político-administrativa e a segundaconsiste na forma e intensidade com que o Estadoaloca investimentos em infra-estrutura e equipa-mentos urbanos, entre outros.

O Centro de Fortaleza foi por muito tempoo emblema da localização e intervenção do Estadona cidade, mas progressivamente, houve o aban-dono tanto dos investimentos, como de várias ins-

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tituições públicas representativas do poder esta-dual e municipal. Algumas considerações de Sega-wa podem esclarecer tal processo, pois:

(...) a articulação entre as várias partes de umaadministração pública (...) complica-se na mesmaproporção que a burocracia se torna mais complexae na maioria das vezes mais inteligível. Rebatendoessa complexidade no espaço físico, o crescimentoconfuso da burocracia produz uma desorganizaçãoespacial usualmente caracterizada pela pulverizaçãode repartições no tramo das cidades tradicionais,acomodações nem sempre satisfatórias do ponto devista da articulação das partes administrativas doconjunto (SEGAWA, 2002:176).

No entanto, a justificativa técnica e pragmáticade que a estrutura do Centro não comporta a comple-xidade burocrática da administração pública,ocasionado a conseqüente transferência para osnovos centros administrativos periféricos é insufi-ciente para explicar essa fuga, pois a criação doCentro tem conotação simbólica inerente ao exercíciodas práticas políticas.

A partir da década de 1970, semelhante àsoutras cidades, influenciado pela experiência deBrasília como sede do poder e seu resultado formalmodernista, o Governo do Estado transferiu defini-tivamente suas instalações administrativas para umaárea periférica da cidade (Cambeba), completandosua fuga parcial anterior para o Bairro da Aldeota,migração acompanhada pela Assembléia Legislativa,Câmara dos Vereadores e até mesmo a itinerantesede da Prefeitura Municipal, que atualmente nãopossui uma localização de destaque. O golpe final serefere à sede do Poder Judiciário, com a transferênciado Fórum Clóvis Beviláqua para a Av. WashingtonSoares, esboço de uma “nova centralidade”.

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Quanto às intervenções no Centro de Forta-leza, os espaços representativos do poder estaduale local aparecem atualmente em intervençõespontuais, muito mais na construção de edifícios quepropriamente numa reestruturação urbana. As açõesmais significativas são a construção dos MercadosCentral e São Sebastião, a Nova Praça do Ferreira, oProjeto Parque da Cidade e a Urbanização da Praiade Iracema pela Prefeitura Municipal e, o a NovaPonte dos Ingleses, o Centro Dragão do Mar de Artee Cultura e o Projeto do Centro Multifuncional deFeiras e Eventos do Governo Estadual.

Portanto, a partir da definição de Castells(2000:317) de centro político-institucional comoa articulação dos pontos fortes dos aparelhos deEstado como referência a uma dada estruturaurbana, percebe-se que sua capacidade de centra-lizar funções e usos relacionados ao poder vemsendo gradativamente subtraída, uma vez que asintervenções pontuais têm se mostrado insufi-cientes para promover a requalificação efetiva doCentro de Fortaleza.

1.2.3 - A CENTRALIDADE SIMBÓLICA1.2.3 - A CENTRALIDADE SIMBÓLICA1.2.3 - A CENTRALIDADE SIMBÓLICA1.2.3 - A CENTRALIDADE SIMBÓLICA1.2.3 - A CENTRALIDADE SIMBÓLICA

A partir do entendimento de Castells(2000:318) acerca do centro simbólico, como “aorganização espacial de pontos de interseção doseixos do campo semântico da cidade, quer dizer, olugar ou lugares que condensam de um maneiraintensa uma carga valorizante, em função da qualse organiza de forma significativa o espaço urbano”,é possível identificar a importância do Centro paraFortaleza à medida que o mesmo concentra parcelasignificativa da memória da cidade, representadaspelo seu acervo histórico e cultural. Por outro lado,cabe salientar que:

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A história da preservação urbana deFortaleza é marcada fortemente pela tentativade criar o ‘novo’ em detrimento da conservaçãodo ‘antigo’. No discurso das elites políticas eintelectuais locais, o novo é visto como sinônimode ‘progresso e modernidade’. Neste sentido, osespaços são constantemente modificados e atémesmo destruídos (ORIÁ, 2002:255).

O principal elemento simbólico da históriaurbana oficial de Fortaleza é o mito da modernidadecom o propósito de reinventar a cada dia a imagemmoderna da cidade, ambos associados às práticaseconômicas e políticas e com intensa participaçãodo Estado. O Centro sofre essas conseqüências sobdois aspectos, por um lado, as intervenções se deslo-cam para “novas centralidades” através deinvestimentos em equipamentos públicos e de infra-estrutura; por outro, as intervenções são insuficien-tes e deslocadas da realidade sócio-espacialexistente, principalmente do seu patrimônio his-tórico e cultural.

As implicações deste processo cumulativo dainvenção de uma memória oficial que privilegiasempre a imagem moderna em detrimento darealidade do cotidiano, onde o tempo está de-sarticulado do espaço, finda criando um movi-mento de sobreposição de paisagens, desvin-culando os cidadãos dos lugares e comprometendoa construção de uma identidade urbana alicerçadaem valores culturais autênticos. Neste sentido, apreservação da memória da cidade por intermédiode um quadro espacial é fundamental, pois:

(...) a memória é imprescindível na medidaque ela esclarece sobre o vínculo entre a sucessãode gerações e o tempo histórico que as acompanha.

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Sem isso, a população urbana não tem condiçõesde compreender a história de sua cidade, comoseu espaço urbano foi produzido pelos homensatravés dos tempos, a origem do processo quea caracterizou.

(...)Esta perda de referências históricas

pautadas na memória da cidade, nos dá a estranhasensação de que somos 'estrangeiros' em nossaprópria casa. Sem a memória, não encontramosmais os ícones, símbolos e lembranças que nosunem à cidade e, assim, nos sentiremos deslo-cados e confusos (ORIÁ, 2002:254 e 255).

A análise do processo da perda de centrali-dade econômica, política e simbólica do centro podeser explicitada a partir da dinâmica das funçõesurbanas que comporta, conforme será visto a seguir.

1.31.31.31.31.3 AS FUNÇÕES URBANAS NO CENTRO DEAS FUNÇÕES URBANAS NO CENTRO DEAS FUNÇÕES URBANAS NO CENTRO DEAS FUNÇÕES URBANAS NO CENTRO DEAS FUNÇÕES URBANAS NO CENTRO DEFORTALEZAFORTALEZAFORTALEZAFORTALEZAFORTALEZA

1.3.1 HABITAÇÃO1.3.1 HABITAÇÃO1.3.1 HABITAÇÃO1.3.1 HABITAÇÃO1.3.1 HABITAÇÃO

Desde o progressivo deslocamento dahabitação do Centro para outras áreas, percebe-se, semelhante às outras cidades brasileiras, umdesequilíbrio entre a dinâmica diurna da superconcentração de pessoas e atividades e o esvazia-mento noturno, comprometendo ainda a utili-zação e manutenção dos espaços de lazer e cul-tura. Este cenário tem seguramente como influên-cia o legado do urbanismo moderno no Brasil,que personificado no Estado, através da sua atua-ção reguladora, criou um zoneamento frag-mentado de funções urbanas, herdeiro dos pos-tulados da Carta de Atenas.

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Atualmente, embora ainda com um númerosignificativo de moradores5, a habitação no Centrode Fortaleza apresenta sinais de diluição, devidoàs pressões de expulsão, como a especializaçãodas atividades ou monofuncionalidade, o esva-ziamento noturno, a insuficiência de atividadescomplementares à habitação, a precariedade daestrutura física e das edificações, a insegurança,além de mudanças nos padrões contemporâneosde moradia.

O tipo e a qualidade da habitação no Centrode Fortaleza apresenta diferenciações em funçãoda localização. No núcleo central propriamentedito, por concentrar de maneira mais efetiva aatividade comercial, verifica-se que as unidadesresidenciais aparecem de forma pulverizada,muitas vezes ocupando os pavimentos superioresde edificações que se prestam ao comércio6. Àmedida que se deslocam para as bordas percebe-se uma quantidade maior de unidades habita-cionais, representadas pela extremidade próximaà Rua Governador Sampaio, e pela faixa litorânea,marcada, sobretudo, pelo caráter de ocupaçãomarginal, com focos de favelização. Estes padrõestêm como ponto comum a precariedade e adescaracterização das edificações. Por outro lado:

O número mais relevante de habitantes doCentro de Fortaleza, porém, situa-se nos limitesestendidos para além dos boulevards DomManuel, Duque de Caxias e Imperador, onde a

5 O Centro possui uma população de 24777 habitantes - Dados do Censo2000 - IBGE

6 Síntese Diagnóstica do LEGFOR, 2003. Revisão do Plano Diretor deDesenvolvimento urbano de Fortaleza - PDDU-1992.

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função comercial não se instalou da forma comofez no centro histórico. Ainda se preserva aqualidade ambiental de muitas vias, onde apresença de arborização pública é maior, e nãoraro encontramos seqüências inteiras de edifi-cações residenciais, em cuja proximidade avançaa implantação de comércios e serviços. A tipo-logia das edificações também é bastante distinta.Além de maiores, apresentam melhores estadosde conservação e preservação7.

Ao contrário outras metrópoles, não houve noCentro, a ocupação ilegal de edifícios verticais, quese prestavam a outras atividades, para fins habi-tacionais, formando as favelas verticais ou cortiços.Em Fortaleza, esta espécie de periferia central podeser observada em formas de ocupação clandestinasnas áreas residenciais supracitadas, que acontecem,na maioria das vezes, ao longo das vias férreas e nasmargens de rios e faixa litorânea desvalorizada, comoé o caso do Centro de Fortaleza.

1.3.2 LAZER1.3.2 LAZER1.3.2 LAZER1.3.2 LAZER1.3.2 LAZER

Como as atividades de lazer são comple-mentares à habitação, conforme já foi citado, seudeslocamento sucedeu à migração da habitação,repercutindo também no equilíbrio entre as atividadesnoturnas e diurnas. Considerando as transformaçõesnas práticas de lazer, fundamentalmente pelo usufrutodas praias e pelo lazer contido nos shoppings, o Centroperdeu muito a capacidade de representar o “centrolúdico” da cidade, apesar de possuir um enormepotencial de praças, parques e equipamentos diversos.

7 Síntese Diagnóstica do LEGFOR, 2003. Revisão do Plano Diretor deDesenvolvimento urbano de Fortaleza - PDDU-1992.

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O uso dos espaços públicos foi demasia-damente prejudicado pela monofuncionalidadeda atividade comercial. Durante o dia estes luga-res servem muito mais como espaços de circulação(muitas praças funcionam, inclusive, comoterminais de ônibus), que propriamente comoárea de permanência. As praças e parques sãoseguramente o maior potencial de lazer do Centrode Fortaleza, constituindo um importante sistemade espaços livres da cidade, que conta com 18 praças.

O declínio da atividade de lazer no Centropode ser atribuído também à transferência deequipamentos culturais rumo às novas centra-lidades pontuadas pelos shoppings. A partir doinício da década de noventa, houve um gradativoprocesso de fechamento dos cinemas localizadosno Centro, como foi o caso dos Cines Diogo e Forta-leza, resistindo apenas o emblemático Cine SãoLuiz, um dos maiores do Brasil, na Praça do Ferrei-ra, além das atividades culturais do Theatro Joséde Alencar.

Evidentemente, as formas de lazer maissofisticadas, dirigidas às classes mais favorecidasnão têm lugar privilegiado no Centro, exceto oTheatro José de Alencar, que ainda se conserva co-mo equipamento importante, embora seu uso nãogere permanência de público no Centro.

Por outro lado, o lazer representa ainda 16%das atividades habituais do Centro, ocupando oquarto lugar na atração de público para a área8.Interessa saber que existe, sim, atividade de lazer noCentro, mas que se destina a uma parcela dapopulação que não dispõe de outras alternativas e,por isso, possui práticas de lazer que são enquadradas

8 Fonte: Pesquisa da GAMA - Job 1976/99 Agosto/99 - Resposta Múltipla.

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como marginais pela classe dominante, conformeesclarece a declaração de Isabel Gurgel sobre a vidanoturna do Centro de Fortaleza:

Existe uma noite no centro sim, mas que nãoé uma noite que eu me sinta estimulada a fre-qüentar, por exemplo. Eu me pergunto: que tipode ocupação eu quero para a noite do centro? Querouma ocupação como na Praia de Iracema? Eu achoque a cidade vai dizer não. Quero uma ocupaçãoque exclua as pessoas que hoje vivem no Centro ànoite? Outra parte da cidade vai dizer não. Eu querouma ocupação que traga pessoas que nunca vieramao centro? Sim eu quero, mas eu quero de imediato,estabelecer uma nova relação com o Centro. Aspessoas sempre associam o centro à insegurança, àsujeira, à decadência. Existe uma diversidade devida que agente não alcança, porque estamostrabalhando em outro circuito” 9.

Esta declaração é valiosa à medida queexplicita que o espaço de lazer no Centro deFortaleza não pode ficar restrito às novas formasde entretenimento ligadas ao turismo, como naPraia de Iracema, gerando um processo significativode exclusão da população residente e das atividadesde lazer preexistentes, ou, mesmo, aos padrões delazer exclusivos das classes média e alta, sob o riscode não contemplar a diversidade de formas de vidaque o Centro representa e contém.

9 Um novo Centro para Fortaleza, – O POVO, 29/04/2002, pág. 4. Declaraçãode Isabel Gurgel – Coordenadora do Programa Arte da Boa Vizinhança doTheatro José de Alencar.

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1.3.3 TRABALHO1.3.3 TRABALHO1.3.3 TRABALHO1.3.3 TRABALHO1.3.3 TRABALHO

Certamente o comércio é a atividade deter-minante das funções de trabalho do Centro e deimportância capital para economia local, poisconcentra uma estrutura complexa que compre-ende: grande variedade de artigos e concentraçãode lojas; especialização e zoneamento de comércioscom graus de sofisticação distintos; além daexistência do comércio informal.

O comércio atacadista, ao longo da RuaGovernador Sampaio, representa um ponto críticodentro da estrutura funcional do Centro, pelaincompatibilidade de uso, posto que sua localizaçãoé muito distante do Porto do Mucuripe. A atividadegera um fluxo impertinente de veículos de grandeporte na área, acentuado pela estrutura viária“caduca”. O comércio distribuído de forma linearao longo da Rua Governador Sampaio funcionacomo uma barreira física considerável na integraçãodo Centro com a Aldeota.

O comércio varejista, malgrado a diversidadede formas, se direciona essencialmente para opúblico popular. Os comerciantes se apropriamindevidamente do espaço público para fins privados,que devido à concorrência entre os estabelecimentos,acabam usando a rua como extensão da loja, combancas e cavaletes que avançam pela calçada, alémdos locutores aliciando os clientes. Outro traçoimportante é a descaracterização da arquitetura dasedificações, principalmente na adulteração dos vãosdo pavimento inferior, com o intuito de dispor demais área de exibição das mercadorias, bem como aaplicação desordenada de elementos de comu-nicação visual, além de toldos e marquises.

A atribuição da queda de qualidade daatividade comercial dos centros urbanos à concor-

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rência com shoppings acabou gerando mudançasfuncionais importantes. No caso de Fortaleza, veri-fica-se, por exemplo, a interrupção das atividadesdas lojas de grande porte, tipo magazine, tendo comoconseqüência um grande estoque de edificações commaior área, inutilizado e degradado.

Por outro lado, para manter os consumidoreshabituais e atrair os potenciais, existe a tentativa deadaptar a estrutura existente, como as edificaçõesde maior porte, aos moldes da estrutura física dosshoppings, através de galerias que se voltam para ointerior, na tentativa de promover uma aparentesensação de conforto e segurança. Desta forma:

O novo comércio tem reduzidas proporções.Ocupa menor espaço e reduz o custo de instalação.É esse, grossomodo, o comércio que se proliferano centro, ajustados à sua clientela dominante.Essa nova modalidade de organização do comérciona áreas central altera, significativamente, osroteiros e itinerários impondo novos fluxos. Édeveras contraditória a convivência com váriaslojas com portas cerradas e o intenso burburinhodos shoppings ajustados às novas condições docentro. Esse tipo inovador do uso do solo valorizamais ainda os espaços privados dos centros emdetrimento da qualidade dos espaços públicosdisponíveis, alguns, em acelerado estágio dedegradação e destruição do equipamento emobiliário urbano10.

O panorama da degradação do espaço pú-blico e do patrimônio histórico e cultural é alar-

10 José Bozarchiello da Silva. O POVO – Do centro e outras periferias.19/08/01 – página 07.

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mante, tanto pela ruptura dos limites entre oespaço público e o privado, quanto pela negaçãodo primeiro.

O setor de serviços não apresenta a mesmaexpressão do comércio, pois tal atividade sofremais intensamente a concorrência com a formaçãode outras centralidades, como também não possuia mesma pujança econômica do comércio. Omelhor exemplo é a desconcentração das agênciasbancárias de importantes instituições financeirase serviços oferecidos por profissionais liberais.

O setor industrial é praticamente insigni-ficante, representado por pequenas fábricas deconfecção, estabelecimentos de metalurgia, entreoutros. A indústria naval, localizada na faixa litorâneado Centro, é seguramente o exemplo mais relevante,principalmente pelas discussões sobre sua inadequa-bilidade, devido à sua localização, funcionando comobarreira física de acesso ao mar.

1.3.4 - CIRCULAÇÃO1.3.4 - CIRCULAÇÃO1.3.4 - CIRCULAÇÃO1.3.4 - CIRCULAÇÃO1.3.4 - CIRCULAÇÃO

A estrutura física de Fortaleza é resultadode um sistema viário radioconcêntrico, que temorigem nos antigos caminhos que convergiam paracidade, intercalados por malhas em xadrez. Estaconfiguração convergente reflete um sistema decirculação bastante conturbado, com problemascrônicos, acentuados pela quantidade de veículose precariedade de estacionamentos.

Os principais eixos viários de acesso ao Centropodem ser divididos em dois tipos: os binários quefazem a ligação direta com os bairros, com fluxosde entrada e saída e os eixos de fluidez, quetangenciam os limites do Centro. Esta estrutura secaracteriza pela manutenção do traçado e da escala

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do século XIX, com ruas e passeios estreitos, acar-retando sérios problemas de circulação, sobretudoos provocados pelo transporte coletivo, que faz aligação centro-bairros.

Os outros problemas, no que concerne àcirculação, são ainda os fluxos de pedestres e a situa-ção de estacionamentos. Ambos estão condicio-nados, assim como a circulação dos veículos, pelapermanência da estrutura urbana do século XIX.

No caso da circulação de pedestres se verificaque os passeios são insuficientes para permitir suafluidez, devido às dimensões estreitas (dois metros)e a obstrução das calçadas como conseqüência dalocalização indevida tanto do comércio de lojas,que avançam além dos seus limites, como docomércio ambulante. Embora existam áreasrestritas de pedestrianização, com ruas exclusivaspara pedestres, seu número não é significativo,além de apresentarem os mesmos problemas deobstrução dos passeios.

A problemática das áreas de estacionamentopode ser observada pela insuficiência de espaçospúblicos adequados para tal fim, e pelo conflito como tráfego de veículos. Ao longo das vias de circulação,os estacionamentos privados, na sua grande maioriase localizam em adaptações na estrutura fundiáriaexistente, com lotes estreitos e longos, assim comonas áreas verdes remanescentes (áreas intra-lotes emargens do Riacho Pajeú).

22222 CONSIDERAÇÕES FINAIS CONSIDERAÇÕES FINAIS CONSIDERAÇÕES FINAIS CONSIDERAÇÕES FINAIS CONSIDERAÇÕES FINAIS

Enfim, pela debilidade das intervenções doEstado, incapazes de reverter as resistências impos-tas pelo tecido urbano (sistema viário e dimensõesdo lote), praticamente intacto em relação ao final

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do século XIX, o espaço do Centro funciona comoelemento determinante na (re)produção dosprocessos sócio-espaciais de segregação e exclusão.

O estudo da centralidade do Centro se tornafundamental para confirmar a sua importânciapara a cidade, sobretudo no que concerne à suacarga valorizante uma vez que as “novas centra-lidades”, na maioria das vezes, não incorporam adimensão simbólica. É imprescindível que asintervenções no Centro de Fortaleza contemplemsua dimensão econômica, política e simbólica,incorporando a sua função de patrimônio da cidadeaos novos fluxos contemporâneos.