- reflexÃo - cirineu e verênica

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  • 8/18/2019 - REFLEXÃO - Cirineu e Verênica

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    PASTORAL CARCERÁRIA NACIONAL - CNBBPraça Clovis Bevilácqua, 351, conj.501Centro - 01018-001 - São Paulo - SPTel/fax (11) 3101-9419 - [email protected] - www.carceraria.org.br

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    SIMÃO CIRENEU E VERÔNICAA VOCAÇÃO DE ESTAR AO LADO DO CONDENADO

    MEDITAÇÃO PARA EQUIPE DA PASTORAL CARCERÁRIA

    “Enquanto levavam Jesus para ser crucificado, pegaram certo Simão dacidade de Cirene, que voltava do campo, e o forçaram a carregar a cruz atrás de Jesus” (Lc 23,26).

    “Jesus estava em Betânia, na casa de Simão o leproso. Enquanto faziam arefeição, chegou uma mulher com um vaso de alabastro, cheio de um perfume denardo puro, muito caro. Ela quebrou o vaso, e derramou o perfume na cabeça de Jesus” (Mc 14,3).

    Quando fui convidada a fazer uma reflexão sobre a espiritualidade dosirmãos e irmãs que trabalham na Pastoral Carcerária, a partir da experiênciavivida em minha família, me vieram à mente a imagem destes dois personagensque aparecem no caminho de Jesus para o calvário: Simão Cireneu e Verônica.São duas figuras quase anônimas no Evangelho. Verônica, nem sequer é citada,faz parte somente da tradição oral da Igreja e Simão Cireneu aparece quaseconstrangido neste sofrido momento de Jesus.

    Nesta reflexão gostaria de olhar para estes dois vendo neles o rosto deRaimundo, Penha, Oziel, Padre André, Vera, o rosto de cada irmão ou irmã que,

    na gratuidade, se faz solidário com os condenados deste tempo.Qual a mística que deve nos animar neste serviço tão específico, tão “de

    fronteira”, quase podemos dizer, tão “esquecido” pela pastoral oficial da Igreja?Porque é preciso assumi-lo como um serviço de minorias? Se ele não existisse,faria falta? Por que? Para quem?

    Estas perguntas talvez sejam perguntas fortes, provocativas... sãoperguntas que não poderão ser respondidas no nível da eficácia ou da razão, poiselas pertencem à esfera do mistério da ação de Deus na história humana...Verônicas, Cireneus, Marias de Cleofas, “Discípulos amados”... são figuras que sópodem ser encontradas e reconhecidas por aqueles e aquelas que se encontramna condição de “julgados”, “condenados”, “banidos”... Talvez, só seja possívelcompreender sua “vocação” quando se vive a condição de fragilidade própria dequem está ocupando este lugar na história.

    Porque Jesus, o “Filho do Homem”, o “Homem que Deus sonhou, escolheu,amou e enviou” chegou a experimentar a condição de “julgado, condenado emorto pelas autoridades constituídas do seu tempo? Talvez porque “eranecessário” ocupar este lugar para revelar a partir dali qual é o lugar que muitasvezes a lógica, a razão, a “Lei” colocam o próprio Deus...

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    PASTORAL CARCERÁRIA NACIONAL - CNBBPraça Clovis Bevilácqua, 351, conj.501Centro - 01018-001 - São Paulo - SPTel/fax (11) 3101-9419 - [email protected] - www.carceraria.org.br

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    Quando homens e mulheres ousam enfrentar essa racionalidade jurídica eser gratuitamente irmãos e irmãs solidários, eles sentem no coração o sentido da

    vida e se tornam profetas e profetizas do Reino de Deus na história.Vejamos como isso acontece concretamente:

    1. Simão Cireneu – o trabalhador do campo obrigado a carregar acruz...

    “Ao saírem, encontraram um homem de Cirene, de nome Simão, ao qualobrigaram a levar a cruz”(Mt 27,31)

    “Requisitaram um transeunte, um tal de Simão de cirene, que vinha do campo, pai de Alexandre e Rufo, para lhe carregar a cruz”.(Mc 15,21)

    “Ao conduzi-lo, lançaram mão de um certo Simão de Cirene, que vinha docampo, e o encarregaram de levar a cruz atrás de Jesus” (Lc23,26)

    Na leitura paralela dos sinóticos encontramos Simão Cireneu semprepresente. Os evangelistas o apresentam como alguém que foi “obrigado” acarregar a cruz na qual Jesus seria crucificado... Marcos e Lucas ainda afirmamque era um homem que vinha do campo.... E Marcos cita até mesmo o nome deseus filhos: “Alexandre e Rufo”, talvez, irmãos da comunidade cristã nascente...

    Interessa-nos aqui compreender a ação de Simão, talvez quem sabe seus

    sentimentos, mas sobretudo os sentimentos de Jesus diante desta presença....Simão, provavelmente era um cidadão comum que, sendo camponês

    passava por Jerusalém nesta época de festa pascal para apresentar seussacrifícios... Como homem camponês, sentia na própria carne o peso daexploração do campo pela cidade... Talvez já viesse “carregando a cruz” que acidade impõe ao campo há muito tempo... Diante das autoridades não teveescolha: obedecer ou obedecer! O que teria ele sentido? Dando asas à nossaimaginação, ousamos compará-lo a tantos homens e mulheres, familiares,amigos, filhos, irmãos, irmãs dos presos.... a primeira pergunta queprovavelmente se fazem diante de uma “punição pública” é “porque?” Porquevim parar “nessa fria”? Não podem voltar atrás, estão obrigados a carregar a cruzque crucifica alguém que aos seus olhos não é um criminoso, mas um “irmão”...Mas foram obrigados a carregar essa cruz....

    O sentimento talvez de Simão Cireneu era um mixto de raiva e compaixão,medo e misericórdia, solidão e solidariedade... Um sentimento talvez queexperimentamos, impotentes, diante das sentenças, às vezes injustas impostas apessoas que conhecemos, diante da maneira com que são tratados os presos,

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    diante das rebeliões, diante do descaso desta pastoral no conjunto da pastoralorganizada em nossa Igreja...

    Uma vez começado este trabalho não dá mais para recuar... CertamenteSimão Cireneu teria fugido daquela situação, se pudesse, mas impotente,simplesmente “obedeceu”... obedeceu aos soldados... obedeceu à situação....obedeceu: viu, ouviu, consentiu... assumiu!

    Quais teriam sido os sentimentos de Jesus diante deste homem? Jesus quenos caminhos da Galiléia, da Samaria, da Decápole, de Jerusalém, sempre tinhasido tão solidário... Jesus que tanto fez para aliviar o peso da cruz de tantos etantas que vinham desesperados ao seu encontro... e agora estava ali... objetode ignomínia, condenado, percorrendo o caminho da morte violenta... cumprindosua sentença... O que teria ele sentido diante de Simão Cireneu?

    Também aqui, nossa imaginação, trazendo na memória a imagem deirmãos e irmãs que visitamos na cadeia, pode visualizar sentimentos muitohumanos.... vergonha, humilhação, solidão, tristeza... sim, todos essessentimentos próprios de quem se senta na cadeira dos réus, mas também, semdúvida, gratidão, abertura, vazio... o vazio da condição de quem recebe... enesse vazio também dá, dá a si mesmo....

    Jesus, certamente provou a dor do abandono, mas graças a Cireneu,provou também a graça da compaixão... certamente ele provou o medo damorte, mas graças ao irmão que lhe ajudava a carregar o peso da sua cruz,provou o alívio de não se sentir abandonado.... Assim como tantos irmãos e irmãsque a pastoral carcerária visita, sem dúvida Jesus provou no silêncio, a força do

    amor que se faz dom, puro dom, sem nada exigir em troca...Simão Cireneu nos convida com seu ser e seu agir a nos perguntar até que

    ponto estamos nos dando conta que a vida nos colocou na condição de “ajudarsentenciados a carregar sua cruz para aliviar sua dor”? Até que ponto estamos “assumindo” na liberdade essa condição como missão, ou até que ponto a “suportamos” como obrigação diante da lei?

    Simão Cireneu, certamente, foi a pessoa que mais se identificou com Jesuscrucificado... Também ele, um inocente, também ele na cruz com o crucificado...ainda que não tenha morrido... E nós, nos identificamos com aqueles que asociedade condena? Temos coragem de pagar o preço de sermos chamados de “protetores de bandidos”? Até que ponto vamos, na defesa dos inocentes queconhecemos na carceragem?

    2. Verônica, a mulher que, na ternura, revela a “verdadeira face” docrucificado

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    No caminho do calvário, diz o Evangelho que muitas mulheres iam atrás deJesus batendo no peito... Entre elas a tradição oral cristã católica, reconhece uma

    em especial: Verônica. Uma personagem que pode ser somente um símbolo dossentimentos femininos no caminho do calvário e na experiência pascal, ou podeter sido realmente a figura com a qual os olhos de Jesus se encontraram nocaminho da cruz...

    Verônica é uma palavra que vem do Grego e que quer dizer: VERDADEIRAFACE. Sim, na figura da mulher que sai do meio da multidão e “enxuga o rostode Jesus” encontramos aquela que revela a “verdadeira face” de Deus que omundo tanto sonha contemplar....

    A figura de Verônica nos lembra a participação da mulher na trama davida... no processo de condenação, na experiência da morte e sobretudo notestemunho da Ressurreição de Jesus...

    Quantas mulheres aparecem nos evangelhos... aparecem na penumbra,seguindo e servindo Jesus e seus discípulos(Lc 8,1-3), lavando os pés de Jesuscom lágrimas (Lc 7,36-50), banhando-os com perfume precioso (Mc 14,3-9),tocando-o por trás (Mc 5,25-33), ousando contestá-lo a partir da coragem deassumir sua condição “de cachorrinho que come as migalhas que caem da mesados filhos”(Mc 7,24-30), sentada aos pés de Jesus como Maria ou servindo-ocomo Marta (Lc 10,38-42), à beira do poço como a Samaritana (Jô 4) ouchorando a morte de seu filho como a viúva de Naim (Lc 7,11-17)...

    Quantas mulheres... No caminho da cruz, ei-las aí de novo... aos pés dacruz, ao lado da própria mãe de Jesus, ali estão contemplando silenciosas o rosto

    desfigurado daquele que revela a nós nosso próprio rosto...Verônica, a mulher audaciosa que aparece no caminho do calvário, é

    símbolo desta figura também na história da Igreja... Ela nos revela nossopotencial de força escondida na fraqueza aparente daquelas que vivem sempre nasombra da história patriarcal contada pelos homens e para os homens....

    Como Verônica teria se sentido diante da experiência do caminho docalvário? O que a teria levado a sair do anonimato para “enxugar o rosto suadode Jesus”? De que vale este gesto num contexto de morte iminente?

    Essas perguntas nos levam a reviver o caminho do calvário e a reconhecê-loao longo da história no testemunho de tantas mulheres, mães, filhas, esposas,amigas, irmãs... daqueles que sofrem a experiência do julgamento e dacondenação pública...

    No caminho do calvário fica evidente a força e o poder da lei ao lado dafraqueza e impotência do coração humano... mas também no caminho docalvário, a figura destas mulheres nos revela a fraqueza da lei e a força do amorque rompe com a lógica humana, é a força que revela a teimosa esperança navitória da vida....

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    A presença solidária de homens e mulheres na pastoral carcerária, deveriaver em Verônica uma luz inspiradora: como agentes da pastoral carcerária pouco

    ou nada podemos fazer para diminuir a força da lei que julga e condena, às vezesinjustamente, pessoas à morte lenta.... aqui está nossa fraqueza diante da forçada lei.... mas também como agentes da pastoral carcerária, somente nóspodemos chegar perto dos “condenados” e enxugar-lhes com ternura o rosto coma força do amor...

    A principal missão da pastoral carcerária deveria ser tocar comcarinho nos irmãos machucados, enxugar seu rosto, às vezes manchadode sangue, e revelar para o mundo que neste rosto desfigurado habita orosto transfigurado de Jesus Cristo... simplesmente porque Ele mesmoassumiu a condição de condenado à morte por amor...

    Muitas vezes são somente as mães, esposas, filhas, irmãs dos presos querealizam tão sublime missão porque sabem que ali se encontra uma pessoaquerida... O desafio da pastoral carcerária é de assumir junto com estas irmãsesta missão simplesmente na gratuidade, por acreditar que, independente dacondição de culpado ou inocente, no ser humano humilhado numa cela comum,encontra-se desfigurado o rosto do próprio Cristo crucificado...

    Verônica, ao aproximar-se de Jesus tão machucado, fez sua a dor que Elesentia, certamente chorou ao seu lado... contemplou calada seu corpo inerte nacruz.... sepultou-o, mas no primeiro dia da semana, junto com as discípulas, foiao sepulcro... Somente quem chora profundamente a dor da morte públicapode testemunhar a vitória da vida que vence a morte...

    Sim, para aquelas e aqueles que ousam acreditar na força do amor, a “facedo próprio Deus se revela na face do crucificado”. Esse é um grandemistério... não existe teologia no mundo capaz de compreendê-lo... é um mistériono qual se mergulha somente passando pela experiência do encontro amorosocom quem sofre... um encontro que sabemos o que significa pois faz parte docotidiano de nossa missão de agentes da pastoral carcerária.

    3. As luzes que Simão Cireneu e Verônica acendem em nossa missão

    A partir desta reflexão podemos identificar alguns traços da espiritualidade dapastoral carcerária:

    •  A coragem de assumir a condição de ajudar aqueles que o mundocondenou...

    •  A resistência diante de situações inevitáveis. A ternura que gera umcoração sensível e dá força para superar o medo e aliviar a dor de quemsofre.

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    PASTORAL CARCERÁRIA NACIONAL - CNBBPraça Clovis Bevilácqua, 351, conj.501Centro - 01018-001 - São Paulo - SPTel/fax (11) 3101-9419 - [email protected] - www.carceraria.org.br

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    •  A solidariedade que cuida e ama quem está preso por reconhecer nele orosto do próprio Cristo.

     

    A esperança de quem vê além das aparências e reconhece a mão amorosade Deus na ternura frágil do gesto de aliviar o sofrimento•  O testemunho profético do Reino de Deus que continua vivo e atuante

    nas dobras da história, nos pequenos gestos aparentemente insignificantesmas na verdade carregados do verdadeiro sentido da vida.

    A VERDADE É DIVINA E NOS TORNA MAIS HUMANOS!Muitas vezes precisamos passar pela verdade de nossa condição de

    homens e mulheres frágeis e pecadores, para chegarmos a nos encontrarcom a face do Deus que é misericórdia e força no amor!

    Ir. Luzia Ribeiro Furtado08/05/2005 – dia das mães