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Page 1: seminariodosul.com.br...O primeiro concílio da igreja é o mencionado no capítulo 15 de Atos dos Apóstolos, onde Lucas relata o Concílio de Jerusalém em 50 d.C., liderado por

Seminaacuterio Teoloacutegico Batista do Sul do BrasilFaculdade Batista do Rio de Janeiro

Diretor GeralPr Fernando Macedo Brandatildeo

Central de Atendimento ao Estudante (CAE)Rute Felipe da Silva Albuquerque

Coordenaccedilatildeo Geral Acadecircmica (CGA)Prof Dr Valtair Afonso Miranda

Centro de PesquisaProf Dr Dioniacutesio Oliveira Soares

Nuacutecleo de Apoio ao DiscenteProfa Me Ciacutentia Acircndria

Nuacutecleo de ExtensatildeoProfa Dra Teresa de Souza Akil

Nuacutecleo de Ensino a DistacircnciaProf Me Joatildeo Ricardo Boechat Sales

TEOLOacuteGICARevista Brasileira de Teologia (ISSN 1807-7056) nordm 8

Direccedilatildeo GeralPr Fernando Brandatildeo

Editor ResponsaacutevelProf Dr Valtair Afonso Miranda

EditoresProf Dr Dioniacutesio Soares

Profa Dra Teresa AkilProf Dr Valtair Afonso Miranda

Conselho EditorialProfa Dra Monica Selvatici (UEL)Profa Dra Elisa Rodrigues (UFJF)

Prof Dr Marcelo da Silva Carneiro (FATIPI)Profa Dra Rosalee Santos Crespo Istoe (Uenf)

Prof Dr Marcos Pinto (UFF)Profa Dra Andreia Cristina Lopes Frazatildeo da Silva (UFRJ)

Prof Dr Reinaldo Arruda Pereira (FBMG)Prof Dr Kenner Roger Cazoto (Faculdade Unida)

Prof Dr Jonas Machado (FTBSP)Prof Me Flaacutevio da Silva Chaves (FABERJ)

EdiccedilatildeoCoordenaccedilatildeo Editorial Prof Me Levy Freitas de Lemos

Projeto Graacutefico Editoraccedilatildeo e Capa OliverartelucasBibliotecaacuteria Hevacircnia de Oliveira Ribeiro

Os artigos publicados satildeo de inteira responsabilidade de seus autores e natildeo refletem necessariamente a opiniatildeo da Instituiccedilatildeo e do Conselho Editorial

Endereccedilo para correspondecircnciaRevista Brasileira de Teologia

Faculdade Batista do Rio de JaneiroSeminaacuterio Teoloacutegico Batista do Sul do Brasil

Rua Joseacute Higino 416 - Tijuca20510-412 - Rio de Janeiro - RJ

Tel (21) 2107-1819wwwseminariodosulcombr

teologicaseminariodosulcombrPERIODICIDADE SEMESTRAL

Apresentaccedilatildeo

Este nuacutemero da Revista Brasileira de Teologia conta com sete participaccedilotildees de aacutereas diferentes da Teologia Essa natureza pluritemaacutetica tem marcado a publicaccedilatildeo da revista desde o iniacutecio A opccedilatildeo eacute por dar voz a eixos diferentes de produccedilatildeo em vez de focar temas especiacuteficos

Entre os sete textos dois partem de anaacutelises de textos biacuteblicos A professora Teresa Akil em coautoria com Evelise Cavalcanti escreveu o artigo O livro de Jonas e o arrependimento verdadeiro na Biacuteblia e na atualidade A partir da experiecircncia de Jonas as autoras buscam refletir acerca da instabilidade humana em relaccedilatildeo a Deus na Biacuteblia e na atualidade Outro artigo que analisou extratos da Biacuteblia eacute Liturgia e identidade religiosa no Apocalipse de Joatildeo do professor Valtair Afonso Miranda no qual o autor procura vincular as expressotildees lituacutergi-cas do uacuteltimo livro neotestamentaacuterio com as possiacuteveis expressotildees identitaacuterias de sua audiecircncia presumida

Aleacutem desses dois artigos que trataram da Biacuteblia haacute dois que se debruccedilaram sobre uma aacuterea teacutecnica da teologia qual seja o estudo das liacutenguas originais dos textos sagrados Um deles foi produzido por Rawderson Rangel sobre a expressatildeo ldquoameacutemrdquo presente no grego do Novo Testamento e ainda hoje repetida em oraccedilotildees e expressotildees no interior dos cultos O texto foi intitulado Ameacutem Muacuteltiplos derivados o mesmo conceito As diferentes traduccedilotildees de uma mesma raiz Por sua vez a autora Thaiacutes de Oliveira Viriacutessimo escreveu A anaacutelise do discurso na interpretaccedilatildeo biacuteblica um texto que discute o papel dessa ferramenta na praacutetica teoloacutegica

Cliff Iuri de Souza Gonccedilalves em coautoria com o professor Walter Ferreira da Silva Junior escreveu Decisotildees cristoloacutegicas dos sete conciacutelios ecumecircni-cos O texto promove uma siacutentese histoacuterica dos debates iniciais realizados em conciacutelios ditos universais no periacuteodo inicial da histoacuteria do Cristianismo Desse modo esse artigo pode ser classificado como parte da teologia histoacuterica

Na interface entre teologia sociologia e religiatildeo o professor Joatildeo Boechat apresenta com base em pesquisas a nova configuraccedilatildeo religiosa brasileira e demonstra como essa configuraccedilatildeo tem sido alterada nas uacuteltimas deacutecadas aleacutem disso analisa como se daacute o tracircnsito religioso na sociedade brasileira ao escrever o artigo Transformaccedilatildeo Religiosa Brasileira e caracteriacutesticas do novo padratildeo religioso

Por fim numa discussatildeo que vincula com muita propriedade Teologia e Muacutesica o professor Theoacutegenes Eugecircnio Figueiredo escreveu o artigo intitulado ldquoNo dia do Senhorrdquo ndash Os atos o evento a autoexpressatildeo Uma breve reflexatildeo sobre as tradiccedilotildees lituacutergicas e sobre os termos liturgia culto e adoraccedilatildeo Nesse artigo satildeo apresentados os nuacutecleos lituacutergicos herdados do cristianismo primitivo aos quais no decorrer dos seacuteculos alguns elementos foram agregados constituindo- se posteriormente em grandes famiacutelias lituacutergicas

Desejamos uma boa leitura Que nossa revista seja um instrumento para a reflexatildeo e a disseminaccedilatildeo da teologia no Brasil

REVISTA TEOLOacuteGICA REVISTA BRASILEIRA DE TEOLOGIARevista do Seminaacuterio Teoloacutegico Batista do Sul do Brasil

Faculdade Batista do Rio de Janeiro Nuacutemero 8 2020

SUMAacuteRIODECISOtildeES CRISTOLOacuteGICAS DOS SETE CONCIacuteLIOS ECUMEcircNICOSCliff Iuri de Souza Gonccedilalves Walter Ferreira da Silva Juacutenior 9

O LIVRO DE JONAS E O ARREPENDIMENTO VERDADEIRO NA BIacuteBLIA E NA ATUALIDADEEvelise Cavalcanti Teresa Akil 23

TRANSFORMACcedilAtildeO RELIGIOSA BRASILEIRA E CARACTERIacuteSTICAS DO NOVO PADRAtildeO RELIGIOSOJoatildeo Boechat 35

AMEacuteM MUacuteLTIPLOS DERIVADOS O MESMO CONCEITO AS DIFERENTES TRADUCcedilOtildeES DE UMA MESMA RAIZ Rawderson Rangel 51

A ANAacuteLISE DO DISCURSO NA INTERPRETACcedilAtildeO BIacuteBLICAThaiacutes de Oliveira Viriacutessimo 63

ldquoNO DIA DO SENHORrdquo ndash OS ATOS O EVENTO A AUTOEXPRESSAtildeO UMA BREVE REFLEXAtildeO SOBRE AS TRADICcedilOtildeES LITUacuteRGICAS E SOBRE OS TER-MOS LITURGIA CULTO E ADORACcedilAtildeOTheoacutegenes Eugecircnio Figueiredo 86

LITURGIA E IDENTIDADE RELIGIOSA NO APOCALIPSE DE JOAtildeOValtair A Miranda 98

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DECISOtildeES CRISTOLOacuteGICAS DOS SETE CONCIacuteLIOS ECUMEcircNICOS

Cliff Iuri de Souza Gonccedilalves1

Walter Ferreira da Silva Juacutenior2

RESUMO A palavra trindade natildeo aparece na Biacuteblia Sagrada mas eacute um tema que norteia

as bases de feacute da Igreja Cristatilde No credo apostoacutelico que foi editado ao longo dos tempos houve vaacuterios acreacutescimos e retiradas de termos sobre quem seria Jesus Deus e o proacuteprio Espiacuterito Santo ateacute chegar agrave forma conhecida atualmen-te Este eacute um dos temas muito trabalhado nos conciacutelios ecumecircnicos entre os seacuteculos IV-VIII e sobre o qual ateacute os dias atuais natildeo existe um consenso A tentativa de definir as trecircs pessoas da Trindade eacute uma tarefa aacuterdua e complexa Este trabalho portanto visa traccedilar um panorama desse recorte da histoacuteria do cristianismo enfatizando as principais decisotildees relacionadas a Cristo De Niceacuteia I (325) a Niceacuteia II (787) satildeo abordadas as principais heresias seus principais fundadores e as respostas dos conciacutelios para cada uma delas com as respectivas conclusotildees dos conciacutelios

Palavras-chave Decisotildees cristoloacutegicas Conciacutelios ecumecircnicos Heresias Trin-dade Histoacuteria do cristianismo

ABSTRACT The word trinity is a concept that does not appear in the Holy Bible but it

is a theme that guides the faith bases of the Christian Church The apostolic creed which has been edited throughout the ages has had several additions and withdrawals from terms about who Jesus God and the Holy Spirit would be until reaching the form known today This is one of the themes that has been widely worked on in the ecumenical councils between the 4th and 8th centuries and which to this day does not have a consensus The attempt to define the three persons of the Trinity is an arduous and complex task This work therefore aims to provide an overview of this section of the history of Christianity emphasizing

1 Bacharel em Engenharia de Petroacuteleo pela Universidade Tiradentes Mestre em Engenharia Quiacutemica pela Universidade Federal de Sergipe e Doutorando em Engenharia Quiacutemica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro Graduando em Teologia pelo Seminaacuterio Teoloacutegico Batista do Sul do Brasil 2 Graduado e Licenciatura em Histoacuteria Poacutes-Graduado em Teologia Atualmente eacute professor no Seminaacuterio Teoloacutegico Batista do Sul do Brasil

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Teoloacutegica | Revista Brasileira de Teologia

the main decisions related to Christ From Nicaea I (325) to Nicaea II (787) the main heresies their main founders and the councilsrsquo responses to each of them are addressed with the respective council conclusions

Keywords Christological decisions Ecumenical councils Heresies Trinity History of Christianity

INTRODUCcedilAtildeOApoacutes a morte e a ressureiccedilatildeo de Cristo os apoacutestolos possuiacuteam uma grande

missatildeo em suas matildeos o questionamento sobre quem era Jesus Cristo pairava entre os adeptos do novo movimento (mais tarde denominado de cristianismo) e eles precisavam dar respostas Antes mesmo de sua morte Jesus Cristo havia perguntado aos seus disciacutepulos Ὑμεῖς δὲ τίνα με λέγετε εἶναι (ldquoHymeis de tiacutena me leacutegete einairdquo - Vocecircs no entanto quem vocecircs dizem que eu sou) Esta pergunta foi respondida por Pedro Τὸν Χριστὸν τοῦ Θεοῦ (ldquoTon Christon tou Theourdquo - O Cristo de Deus)

Mesmo sendo disciacutepulos para alguns ainda natildeo estava claro quem era Jesus Apoacutes a morte e ressureiccedilatildeo Tomeacute ainda precisou tocar em Jesus para ter certeza de que ali estava o Cristo ressuscitado Trezentos anos depois essa tarefa natildeo tinha ficado mais faacutecil Pelo contraacuterio se aqueles que estiveram com Cristo em carne natildeo haviam percebido como poderiam aqueles que natildeo andaram com Ele somente ouviram falar entender a ideia de Jesus como Deus Ou como Salvador

Portanto desde a fundaccedilatildeo do cristianismo a igreja tem lidado com contro-veacutersias no que diz respeito agrave aceitaccedilatildeo de Cristo como Deus ou como humano Muitas ideias surgiram principalmente entre os seacuteculos IV ndash VIII para tentar sistematizar o estudo da pessoa de Cristo comumente chamado de Cristologia Alguns desses pensamentos que contrastavam com as crenccedilas da igreja embora rotuladas de ldquohereacuteticasrdquo provocaram debates significativos sobre a pessoa de Cristo Esses debates convocados satildeo chamados de conciacutelios3

O primeiro conciacutelio da igreja eacute o mencionado no capiacutetulo 15 de Atos dos Apoacutestolos onde Lucas relata o Conciacutelio de Jerusaleacutem em 50 dC liderado por Tiago com o objetivo de discutir sobre a conversatildeo dos judeus ao cristianismo e a difusatildeo da Palavra aos gentios4 Depois apareceu a ameaccedila do gnosticismo

3 DIEgraveGUE Ricardo Christological controversies of the first four ecumenical councils B A Leavell College June 27 20144 KELLY Joseph F The Ecumenical Councils of the Catholic Church (Collegeville Minnesota Liturgical Press 2009)

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e de outras doutrinas semelhantes no seacuteculo III quando Cipriano era bispo de Cartago foi debatida a questatildeo da readmissatildeo dos que tinham caiacutedo5

Um fator limitante para que as discussotildees prosseguissem era a disponibili-dade dos envolvidos para isso pois muitos deles estavam sendo perseguidos ou fugindo Com o fim da perseguiccedilatildeo promovido por Constantino no iniacutecio do seacuteculo IV houve mais seguranccedila e liberdade para prosseguir o debate de controveacutersias teoloacutegicas Ideias controversas dentro do impeacuterio poderiam dividi- lo e Constantino natildeo queria ameaccedilar a unidade do impeacuterio Assim o primeiro conciacutelio ecumecircnico foi convocado6

Sete conciacutelios ecumecircnicos foram chamados no total entre os seacuteculos IV-VIII Dentre eles os quatro primeiros destacam-se por sua autoridade doutrinaacuteria e por sua importacircncia histoacuterica Niceacuteia I e Constantinopla I lanccedilam base para as questotildees da trindade enquanto Eacutefeso e Calcedocircnia tratam com mais afinco a questatildeo da encarnaccedilatildeo7

1 NICEacuteIA (325)O Primeiro Conciacutelio Ecumecircnico foi convocado pelo Imperador Constantino

o Grande em 325 em 20 de maio O Conselho reuniu-se em Niceacuteia na proviacutencia de Bitiacutenia na Aacutesia Menor e foi formalmente aberto pelo proacuteprio Constantino O Conselho aprovou 20 cacircnones incluindo o Credo Niceno o Cacircnon das Escrituras Sagradas (Biacuteblia Sagrada) e estabeleceu a celebraccedilatildeo da Pascha (Paacutescoa)

Aleacutem dessas questotildees a pessoa de Cristo foi debatida nesse conciacutelio A prin-cipal heresia debatida foi o arianismo Aacuterio era padre em Alexandria e no iniacutecio do seacuteculo IV seu paradigma de pensamento cristatildeo estava ganhando forccedila8 Em uma carta escrita a Euseacutebio bispo de Nicomeacutedia em 321 Aacuterio advertiu

[] mas natildeo podemos dar ouvidos nem mesmo pensar em debelar estas heresias sem que nos ameacem com mil mortes Noacutes pensamos e afir-mamos como temos pensado e continuamos a ensinar que o Filho natildeo eacute ingecircnito nem participa absolutamente do ingecircnito nem derivou de alguma substacircncia mas que por sua proacutepria vontade e decisatildeo existiu antes dos tempos e era inteiramente Deus unigecircnito e imutaacutevel Mas antes de ter sido gerado ou criado ou nomeado ou estabelecido ele natildeo

5 GONZAacuteLEZ Justo L Uma Histoacuteria Ilustrada do Cristianismo - Volume 1 Ed Vida Nova6 GONZAacuteLEZ Justo L Op cit 7 ALBERIGO Giuseppe (Ed) Historia de los concilios ecumeacutenicos Siacutegueme 19938 HASBROUCK Ryan The First Four Ecumenical Councils as Ineffective Means to Control the Rise and Spread of Heterodox Christian Ideologies Dept of History University of Colorado 2009

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existia pois ele natildeo era ingecircnito Somos perseguidos porque afirmamos que o Filho tem um iniacutecio enquanto Deus eacute sem iniacutecio9

A premissa fundamental de Aacuterio era que ele deduzia uma concepccedilatildeo da absoluta unidade e transcendecircncia de Deus somente Deus eacute ldquoprinciacutepio natildeo geradordquo e a essecircncia da divindade natildeo pode ser dividida nem ser comunicada a outros mesmo que o que existe tenha sido chamado a ser a partir do nada Um dos slogans mais ceacutelebres e discutidos sobre o Logos consistia precisamente na afirmaccedilatildeo segundo a qual ldquohavia um tempo em que ele natildeo erardquo slogan que comprometia a unicidade de Deus10

Na visatildeo dos anti-arianos eacute da proacutepria natureza do Pai gerar o Filho o Pai nunca foi outro senatildeo o Pai portanto o Filho e o Pai devem ter existido desde toda a eternidade o Pai gerando eternamente o Filho A frase de vital impor-tacircncia na resposta ortodoxa ao arianismo era ldquode uma substacircncia (homoousios) com o Pairdquo Esta frase afirma que o Filho compartilha o mesmo ser que o Pai e portanto eacute totalmente divino11 Assim nasce o credo Niceno que combatia as principais heresias arianas aleacutem de definir questotildees cristoloacutegicas

Conforme a tradiccedilatildeo dos Evangelhos e dos Apoacutestolos noacutes cremos em um soacute Deus Pai todo poderoso autor criador e ordenador providente do universo de quem todas as coisas adquirem existecircncia E num soacute Senhor Jesus Cristo seu filho Deus unigecircnito mediante o qual tudo existe o qual foi gerado pelo pai antes de todas as eacutepocas Deus de Deus tudo de tudo uacutenico de uacutenico completo de completo rei de rei senhor de senhor [] e se algueacutem disser que o Filho eacute uma criatura como qualquer outra ou uma prole como qualquer outra ou uma obra como qualquer outra seja anaacutetema12

Portanto atraveacutes desse conciacutelio fica decidido que Jesus eacute Deus verdadeiro com a mesma essecircncia (consubstancial) Assim trecircs foram as decisotildees do con-ciacutelio a primeira ediccedilatildeo do credo niceno o termo homoousios (ομοούσιος) e a condenaccedilatildeo de Aacuterio A carta que condena Aacuterio e seus disciacutepulos satildeo bem claras ao anatematizar suas opiniotildees classificando-as como blasfemas e dementes13

Examinou-se de iniacutecio perante Constantino nosso soberano mui amado de Deus a impiedade e irregularidade de Aacuterio e de seus disciacutepulos De-

9 BETTENSON H Documentos da Igreja Cristatilde Carta de Aacuterio a Euseacutebio bispo de Nicomeacutedia (c321) ASTE Satildeo Paulo 2011 10 ALBERIGO Giuseppe Op Cit 11 DAVIS Leo Donald The first seven ecumenical councils (325-787) Their History and Theology Collegeville Minnesota The Liturgical Press 198312 BETTENSON H Op cit O credo de dedicaccedilatildeo (341) ndash Atanaacutesio 13 SCHMELING Gaylin R The Christology of the Seven Ecumenical Councils

13TeoloacutegicaRevista Brasileira de Teologia ISSN 1807-7056 nordm 8 outdez Rio de Janeiro 2020 p 9-22

cidiu-se por unanimidade que devem ser anatematizadas suas opiniotildees iacutempias e todas as suas afirmaccedilotildees e expressotildees blasfematoacuterias tal como estatildeo sendo emitidas e divulgadas tais como ldquoo Filho de Deus eacute do que natildeo eacuterdquo ldquohouve [um tempo] quando natildeo existiardquo ou afirmaccedilatildeo de que Filho de Deus em virtude de seu livre arbiacutetrio eacute capaz do bem e do mal ou de que pode ser chamado de criatura ou de feitura Todas essas afirmaccedilotildees anatematizadas pelo santo Siacutenodo que natildeo tolera declaraccedilotildees tatildeo iacutempias tatildeo dementes e blasfematoacuterias14

Entre os apoiadores de Aacuterio podem-se contar Atanaacutesio bispo de Anazarbus Narciso de Neronias Euseacutebio de Cesareia e Asterius Dos anti-arianos podem ser citados os Grandes Capadoacutecios (Basiacutelio o Grande Gregoacuterio de Nazianzus - irmatildeo mais novo de Basiacutelio e Gregoacuterio de Nissa) e Atanaacutesio de Alexandria sendo este de grande importacircncia para a histoacuteria do conciacutelio que sucedeu o de Niceacuteia15

2 CONSTANTINOPLA (381)Atanaacutesio era secretaacuterio de Alexandre o Bispo de Alexandria Quando Ale-

xandre morreu Atanaacutesio foi eleito bispo de Alexandria Euseacutebio de Nicomeacutedia um dirigente ariano que possuiacutea contato direto com Constantino fez declaraccedilotildees sobre Atanaacutesio as quais levaram esse rei a decretar o exiacutelio de Atanaacutesio em Treacuteveris no Ocidente16

Constantino adoeceu e morreu no ano 337 logo em seguida o trono foi assu-mido por seu filho Constacircncio que revogou todos os exiacutelios e Atanaacutesio retornou a Alexandria A mudanccedila de lideranccedila teve um profundo impacto na controveacutersia ariana pois Constacircncio tambeacutem proacuteximo de Euseacutebio de Nicomeacutedia tornou-o bispo de Constantinopla e simpatizou-se com as visotildees arianas17 Tentando combater o arianismo Apolinaacuterio acabou se excedendo em seu pensamento razatildeo por que sua teoria tornou-se uma heresia

Apolinaacuterio alegou que o nous (mente alma) de Cristo era essencialmente o Logos (divino) em uma forma glorificada e espiritualizada da humanidade (seu corpo)18 Ele acreditava que o Logos havia substituiacutedo a alma de Jesus Por ter uma ideia opressiva da natureza divina de Jesus Apolinaacuterio cancelou a natureza

14 BETTENSON H Op cit Carta do Siacutenodo de Niceacuteia (325) ndash Condenaccedilatildeo de Aacuterio15 DIEgraveGUE Ricardo Op cit16 GONZAacuteLEZ Justo L Op cit17 RUBENSTEIN Richard When Jesus Became God The Struggle to Define Christianity during the Last Days of Rome Orlando Harcourt Inc 200018 ANDERSON William P A Journey through Christian Theology Minneapolis MN Fortress Press 2nd edition 2010

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humana de Jesus19 Isso se chama Monofisismo do grego monos ldquoapenas umardquo e physis ldquonaturezardquo e eacute a crenccedila de que como resultado da encarnaccedilatildeo a huma-nidade de Jesus foi tatildeo infundida por Sua divindade que Ele tinha apenas uma natureza divina20 Estava formado o palco para o segundo conciacutelio ecumecircnico

Atanaacutesio foi um dos maiores apologista de Cristo durante o conciacutelio de Constantinopla Para combater o apolinarismo ele argumentou que Jesus era simultaneamente homem e Deus A fim de evidenciar sua posiccedilatildeo mostrou que foi a encarnaccedilatildeo que permitiu que Jesus cumprisse Seu papel pretendido na Terra Colocando seu argumento em termos negativos Atanaacutesio estaria dizendo que se Jesus natildeo tivesse nascido de uma mulher e portanto habitado um corpo humano e vivido uma vida humana Ele natildeo poderia ter concedido salvaccedilatildeo agrave humanidade atraveacutes de Sua morte21

No comeccedilo de seus discursos Atanaacutesio natildeo usou muito o homoousios niceno mas gradualmente viu toda a implicaccedilatildeo desse conceito e se tornou seu defen-sor mais resoluto A semelhanccedila e a unidade do Pai e da Palavra natildeo podem consistir apenas em harmonia e concordacircncia de mente e vontade mas devem respeitar a essecircncia (ουσία) A divindade do Pai eacute idecircntica agrave divindade do Logos O Logos eacute diferente do Pai porque Ele veio do Pai mas como Deus o Logos e o Pai satildeo um e o mesmo O que eacute dito do Pai eacute dito do Filho exceto que o Filho natildeo eacute chamado Pai Pode-se dizer que os seres humanos satildeo homoousioi porque compartilham a natureza humana mas natildeo podem possuir uma mesma substacircncia (υπόστασις) idecircntica22

Esse eacute o ponto para o qual o credo foi direcionado a palavra Deus conota precisamente a mesma verdade quando vocecirc fala de Deus o Pai como acontece quando vocecirc fala de Deus o Filho Conota a mesma verdade Se vocecirc contempla o Pai que eacute uma apresentaccedilatildeo distinta da divindade obteacutem uma visatildeo mental do uacutenico Deus verdadeiro Se vocecirc contempla o Filho ou o Espiacuterito obteacutem uma visatildeo do mesmo Deus embora a apresentaccedilatildeo seja diferente a realidade eacute idecircnticardquo23

Creio em um soacute Deus Pai Todo-Poderoso criador do ceacuteu e da terra de todas as coisas visiacuteveis e invisiacuteveis Creio em um soacute Senhor Jesus Cristo

19 BELLITTO Christopher M The General Councils A History of the Twenty-One Church Councils from Nicaea to Vatican II Mahwah NJ Paulist Press 200220 JOHNSON Douglas W The Great Jesus Debates 4 Early Church Battles about the Person and Work of Jesus Saint Louis MO Concordia Publishing House 200521 HASBROUCK Ryan Op cit 22 DAVIS Leo Donald Op cit23 DAVIS Leo Donald Op cit

15TeoloacutegicaRevista Brasileira de Teologia ISSN 1807-7056 nordm 8 outdez Rio de Janeiro 2020 p 9-22

Filho Unigecircnito de Deus nascido do Pai antes de todos os seacuteculos Deus de Deus luz da luz Deus verdadeiro de Deus verdadeiro gerado natildeo criado consubstancial ao Pai Por ele todas as coisas foram feitas E por noacutes homens e para nossa salvaccedilatildeo desceu dos ceacuteus e se encarnou pelo Espiacuterito Santo no seio da Virgem Maria e se fez homem

A foacutermula proposta por Atanaacutesio resolveu temporariamente o dilema cris-toloacutegico que atormentava a igreja primitiva No entanto a maacute interpretaccedilatildeo do credo em uma capacidade diferente logo criou mais inquietaccedilatildeo e a necessidade de outro conselho ecumecircnico

3 EacuteFESO (431)Mesmo depois de Constantinopla I as questotildees voltaram a aparecer Como

poderia Jesus ser homem e Deus ao mesmo tempo Quais eram as implicaccedilotildees dessa afirmaccedilatildeo para Maria Era Jesus humano em algumas situaccedilotildees e Deus em outras Seria Maria matildee apenas da parte humana ou tambeacutem da parte divina Como fazer essa distinccedilatildeo24

O proacuteximo episoacutedio das controveacutersias cristoloacutegicas ocorreu por intermeacutedio de Nestoacuterio um partidaacuterio da escola de Antioquia que se tornou patriarca de Constantinopla em 428 Pelo fato de essa cidade ter sido declarada a capital do Impeacuterio Oriental Antioquia e Alexandria se tornaram rivais Cirilo que era bispo de Alexandria levantou-se para combater as ideias de Nestoacuterio25

O motivo imediato da controveacutersia foi o termo theotokos que era usado para Maria Theotokos geralmente traduzido por ldquomatildee de Deusrdquo literalmente quer dizer ldquogenitora de Deusrdquo Ao explicar sua oposiccedilatildeo a esse termo Nestoacuterio dizia que Deus em Jesus Cristo teria se unido a um ser humano Como Deus eacute uma pessoa e o ser humano eacute outra em Cristo devem estar presentes natildeo soacute duas naturezas mas tambeacutem duas pessoas O que nasceu de Maria foi a pessoa e natureza humana e natildeo a divina Por isso Maria eacute Christotokos (genitora de Cristo) e natildeo theotokos (genitora de Deus)26

Cirilo insistiu na unidade do divino e do humano a ponto de poder dizer que o Verbo sofreu por noacutes natildeo porque o divino sofreu (uma impossibilidade) mas que o divino e o humano se completaram na mesma pessoa27 As duas naturezas

24 BELLITTO Christopher M Histoacuteria dos 21 conciacutelios da Igreja de Niceacuteia ao Vaticano II Traduccedilatildeo de Claacuteudio Queiroz de Godoy Satildeo Paulo Loyola 201025 GONZAacuteLEZ Justo L Op cit26 GONZAacuteLEZ Justo L Op cit27 KELLY Joseph F

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Teoloacutegica | Revista Brasileira de Teologia

que foram unidas a fim de formarem a verdadeira unidade (uniatildeo hipostaacutetica) eram diferentes mas de ambas houve um soacute Cristo e um soacute Filho Eacute nesse sentido que Cristo nasceu na expressatildeo biacuteblica da carne de mulher embora existisse e fosse gerado pelo Pai antes de todos os seacuteculos28

Cirilo escreveu doze anaacutetemas e enviou a Constantinopla juntamente com uma extensa carta que expunha sua doutrina Dentre os principais pontos eacute interessante ressaltar os pontos um e dois que falam sobre Maria e sobre a uniatildeo hipostaacutetica

Se algueacutem natildeo confessar que o Emanuel eacute verdadeiro Deus e que portan-to a Santa Virgem eacute Theotoacutekos porquanto deu agrave luz segunda a carne ao Verbo de Deus feito carne seja anaacutetema Se algueacutem natildeo confessar que o Verbo de Deus Pai estava unido pessoalmente [kathrsquohypoacutestasin] agrave carne sendo com ela propriamente um soacute Cristo ou seja um soacute e mesmo Deus e homem ao mesmo tempo seja anaacutetema29

Enquanto isso Nestoacuterio foi deposto e enviado a um mosteiro de Antioquia Mais tarde ele foi transferido para a distante cidade de Petra e por fim a um oaacutesis no deserto da Liacutebia onde passou o resto de seus dias30

4 CALCEDOcircNIA (451)Apoacutes o Conciacutelio de Eacutefeso o debate sobre as duas naturezas de Jesus estava

em andamento Eacute importante lembrar que com a Escola Alexandrina liderada por Cirilo a uniatildeo foi feita de tal maneira que o Logos substituiu a alma e portanto a divindade de Jesus submergiu agrave sua humanidade No entanto para a Escola de Antioquia a ldquouniatildeordquo foi feita com a distinccedilatildeo de ambas as naturezas que permaneceram separadas31

A controveacutersia cristoloacutegica de Eacutefeso culminou com a condenaccedilatildeo de Nestoacuterio e o seu envio para o exiacutelio No entanto quando Dioacutescoro substituiu Cirilo no patriarcado em Alexandria em 444 um novo embate estava para surgir Agora a heresia era liderada por Ecircutico um monge que morava em Constantinopla Os ideais pregados por Ecircutico eram apoiados por Dioacutescoro o que dava ao monge certa ousadia e arrogacircncia para falar Mal sabia ele que as intenccedilotildees de Dioacutescoro eram poliacuteticas ele esperava que Ecircutico fosse condenado no conciacutelio para poder ter uma causa a defender contra Flaviano o novo patriarca de Constantinopla32

28 BETTENSON H Op cit Exposiccedilatildeo de Cirilo29 BETTENSON H Op cit Anaacutetemas de Cirilo de Alexandria30 GONZAacuteLEZ Justo L Op cit31 BOKENKOTTER Thomas A Concise History of the Catholic Church New York DoubleDay 200432 GONZAacuteLEZ Justo L Op cit

17TeoloacutegicaRevista Brasileira de Teologia ISSN 1807-7056 nordm 8 outdez Rio de Janeiro 2020 p 9-22

Dedicado agrave teologia de Cirilo e altamente ortodoxo Ecircutico comeccedilou a ensinar que antes da Encarnaccedilatildeo Cristo era de duas naturezas mas depois havia um Cristo um Filho um Senhor em uma hipoacutestase Ele repudiou a existecircncia de duas naturezas apoacutes a Encarnaccedilatildeo em oposiccedilatildeo agraves Escrituras e ao ensino dos Pais33

ldquoEu adorordquo ele insistiu ldquouma natureza a de Deus que se fez carne e se tornou homemrdquo No entanto admitiu que Cristo nasceu da Virgem portanto era subs-tancial conosco (humanos) e era Deus perfeito e homem perfeito No entanto a carne de Cristo natildeo era na opiniatildeo de Ecircutico consubstancial agrave carne humana comum mas reconheceu que a humanidade de Cristo era plena sem falta de uma alma racional como era para os apolinaristas A humanidade de Cristo tambeacutem natildeo era uma mera aparecircncia como era para os docetistas tampouco a Palavra e a carne foram fundidas em uma natureza mista Ainda assim ele repetiu obstinadamente que Cristo era de duas naturezas antes da Encarnaccedilatildeo e de apenas uma depois da encarnaccedilatildeo34

Leatildeo o grande foi o principal defensor da ortodoxia no conciacutelio de Calcedocirc-nia e sua defesa gerou o Tomo de Leatildeo A definiccedilatildeo desse conciacutelio portanto pode ser vista como proposiccedilotildees apologeacuteticas aos pensamentos do eutiquianismo

Fieacuteis aos santos pais todos noacutes perfeitamente unanimes ensinamos que se deve confessar um soacute e mesmo Filho nosso Senhor Jesus Cristo perfei-to quanto agrave divindade e perfeito quanto agrave humanidade verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem constando de alma racional e de corpo consubstancial [homooysios] ao Pai segundo a divindade e consubstan-cial a noacutes segundo a humanidade ldquoem todas as coisas semelhante a noacutes excetuando o pecadordquo gerado segundo a divindade antes dos seacuteculos pelo Pai e segundo a humanidade por noacutes e para nossa salvaccedilatildeo gerado da Virgem Maria matildee de Deus [Theotoacutekos] Um soacute e mesmo Cristo Filho Senhor Unigecircnito que se deve confessar em duas naturezas inconfundiacuteveis e imutaacuteveis conseparaacuteveis e indivisiacuteveis A distinccedilatildeo de naturezas de modo algum eacute anulada pela uniatildeo mas pelo contraacuterio as propriedades de cada natureza permanecem intactas concorrendo para formar uma soacute pessoa e subsistecircncia [hypoacutestasis] natildeo dividido ou separado em duas pessoas mas um soacute e mesmo Filho Unigecircnito Deus Verbo Jesus Cristo Senhor conforme os profetas outrora a seu respeito testemunharam e o mesmo Jesus Cristo nos ensinou e o credo dos pais nos transmitiu 35

33 DAVIS Leo Donald Op cit34 DAVIS Leo Donald Op cit35 BETTENSON H Op cit A definiccedilatildeo de Calcedocircnia (451)

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5 CONSTANTINOPLA II (553)O periacuteodo poacutes Calcedocircnia foi muito parecido com o de Niceacuteia em ambos os

conciacutelios uma soluccedilatildeo basicamente ocidental para um problema oriental havia sido introduzida na dieta teoloacutegica do Oriente Depois dos dois conciacutelios o Oriente empreendeu muito tempo e esforccedilo para digerir e assimilar tudo o que ficou decidido No caso de Niceacuteia o mundo romano gradualmente aceitou seu credo O arianismo permaneceu firme entre as tribos alematildes por um tempo mas muito lentamente sucumbiu a Niceacuteia No caso de Eacutefeso e Calcedocircnia seccedilotildees do mundo romano e aleacutem entraram em cisma em vez de aceitar suas decisotildees e assim continuam ateacute os nossos dias O conciacutelio de Constantinopla II foi um esforccedilo para mostrar aos (ateacute entatildeo) monofisitas cismaacuteticos que Calcedocircnia realmente preservava os valores teoloacutegicos36

Quando Justino morreu em 527 seu sobrinho Justiniano assumiu o impeacuterio Bizantino com o principal ideal de unir o impeacuterio No entanto ele precisaria reunificar uma igreja dividida pela questatildeo cristoloacutegica Justiniano achava que o conciacutelio de Calcedocircnia tinha se pronunciado corretamente com respeito agraves naturezas de Cristo mas ao mesmo tempo percebia que os monofisitas mais moderados tinham razatildeo ao apontar para os perigos que essa doutrina poderia trazer consigo 37

Assim o conciacutelio foi solicitado e aconteceu em 5 de maio de 553 no grande salatildeo anexo ao palaacutecio patriarcal em Constantinopla Estavam presentes os representantes do patriarca de Jerusaleacutem todos os 151 a 168 bispos incluindo seis a nove da Aacutefrica38

O objetivo de convocar o conciacutelio de Constantinopla II foi o de condenar as obras de trecircs homens a saber Teodoro de Mopsueacutestia Teodoreto de Cyr e Ibas de Edessa que tiveram suas declaraccedilotildees individuais agrupadas e chamadas de ldquotrecircs capiacutetulosrdquo Eles foram acusados de simpatizarem com o nestorianismo e de favorecerem o monofisismo ao afirmar que Jesus tinha uma soacute natureza o divino sobrepujando o humano Os ldquocapiacutetulosrdquo foram condenados nesse conciacutelio 39

Se algueacutem natildeo reconhece a uacutenica natureza ou substacircncia (oysia) do Pai Filho e Espiacuterito Santo sua uacutenica virtude e poder uma Trindade consubs-tancial seja anaacutetema Porque existe um soacute Deus e Pai do qual procedem

36 DAVIS Leo Donald Op cit37 GONZAacuteLEZ Justo L Op cit38 DAVIS Leo Donald Op cit39 BELLITTO Christopher M Op cit

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todas as coisas e um soacute Senhor Jesus Cristo atraveacutes do qual satildeo todas as cosias e um soacute Espiacuterito Santo no qual estatildeo todas as coisas 40

Portanto o Conciacutelio de Constantinopla II esclareceu mais uma vez os ensi-namentos da Igreja sobre as duas naturezas de Jesus unidas hipostaticamente em uma soacute pessoa Os padres natildeo soacute condenaram os hereacuteticos e as heresias como tambeacutem os que simpatizavam com elas 41

6 CONSTANTINOPLA III (680-681)Em 7 de novembro de 680 o conciacutelio de Constantinopla III abriu em uma

grande sala abobadada - o Trullus - no palaacutecio imperial com apenas quarenta e trecircs bispos presentes O proacuteprio imperador abriu o conciacutelio e presidiu as onze primeiras sessotildees O conciacutelio teve dezoito sessotildees separadas por longos inter-valos ateacute 16 de setembro de 68142

Os legados papais comeccedilaram exigindo que o clero de Constantinopla expli-casse seus ensinamentos sobre monoenergismo e monotelismo A convite do imperador Jorge de Constantinopla e Macaacuterio de Antioquia responderam que eles ensinavam apenas doutrinas definidas pelos conselhos Seguiu-se a leitura dos atos dos Conciacutelios de Eacutefeso Calcedocircnia e Constantinopla II43

O patriarca Seacutergio de Constantinopla depois de tentar sem sucesso vaacuterias maneiras de aproximar-se dos monofisitas propocircs a doutrina chamada de ldquomo-notelismordquo Essa palavra vem das raiacutezes gregas mono (um) e thelema (vontade) O que Seacutergio propunha eacute que em Cristo ao mesmo tempo em que havia duas naturezas a divina e a humana como o concilio de Calcedocircnia declarara havia uma soacute vontade Ao que parece o que Seacutergio queria dizer era que em Cristo natildeo havia outra vontade aleacutem da divina Quando perguntaram ao papa Honoacuterio o que ele pensava da foacutermula de Seacutergio o papa a aprovou Poreacutem a oposiccedilatildeo em vaacuterias regiotildees do Impeacuterio natildeo demorou a se manifestar 44

O teoacutelogo que mais se distinguiu nesse sentido foi Maacuteximo de Crisoacutepolis que eacute conhecido por Maacuteximo ldquoo Confessorrdquo Mais tarde em 648 a oposiccedilatildeo ao monotelismo chegou a tal ponto que o imperador Constante II proibiu qualquer discussatildeo sobre se em Cristo havia uma ou duas vontades Quando o imperador promulgou essa proibiccedilatildeo o Impeacuterio tinha perdido o interesse de se aproximar

40 BETTENSON H Op cit Os ldquotrecircs capiacutetulosrdquo ndash Os cacircnones do segundo conciacutelio de Constantinopla (553)41 BELLITTO Christopher M Op cit42 DAVIS Leo Donald Op cit43 GONZAacuteLEZ Justo L Op cit44 GONZAacuteLEZ Justo L Op cit

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dos monofisitas Siacuteria e Egito as regiotildees do Impeacuterio onde o monofisismo tinha a maior parte dos seus adeptos haviam sido conquistadas pouco antes pelos aacuterabes Tal fato significaria que a partir de entatildeo a corte de Constantinopla em vez de se preocupar com a boa vontade dos monofisitas de Egito e Siacuteria tinha de melhorar as suas relaccedilotildees com os cristatildeos calcedonenses que eram a maioria tanto nos territoacuterios que ainda pertenciam ao Impeacuterio como no Ocidente45

Em consequecircncia o sexto conciacutelio ecumecircnico que se reuniu em Constanti-nopla em 680 e 681 condenou o monotelismo e reafirmou a Definiccedilatildeo de feacute de Calcedocircnia Entre os monotelitas condenados especificamente pelo conciacutelio es-tava o papa Honoacuterio O caso de um papa condenado nominalmente como herege por um conciacutelio ecumecircnico foi uma das dificuldades que os catoacutelicos tiveram de enfrentar quando no seacuteculo XIX conseguiram que o conciacutelio Vaticano I promulgasse a infalibilidade papal46

7 NICEacuteIA II (787)A uacuteltima grande controveacutersia que atingiu a igreja durante o periacuteodo aqui

estudado (ateacute o seacuteculo VIII) questionava o uso de imagens no culto puacuteblico A igreja cristatilde antiga parecia natildeo se opor ao uso delas para decoraccedilatildeo como imagens alusivas a episoacutedios da Biacuteblia No entanto quanto mais pagatildeos se con-vertiam mais os liacutederes temiam que as imagens levassem agrave praacutetica da idolatria Alguns no entanto reforccedilavam o valor das imagens como ldquolivros iletradosrdquo uma vez que muitos natildeo sabiam ler Assim surgiram dois partidos que receberam o nome de ldquoiconoclastasrdquo (destruidores de imagens) e ldquoiconodulosrdquo (adoradores de imagens) 47

Os iconoclastas se baseavam em passagens biacuteblicas que proiacutebem a idolatria como Ecircxodo 204-5 Os iconodulos por sua vez relacionaram a discussatildeo com as controveacutersias cristoloacutegicas dos seacuteculos anteriores

A razatildeo pela qual eacute possiacutevel representar os misteacuterios divinos atraveacutes de imagens eacute que em Cristo o proacuteprio Deus nos deu sua imagem Natildeo deixar representar a Cristo equivaleria a negar a sua humanidade Se Cristo foi homem deve ser possiacutevel representaacute-lo assim como qualquer outro ho-mem pode ser representado Aleacutem disso o primeiro criador das imagens foi o proacuteprio Deus ao criar a humanidade agrave sua imagem48

45 GONZAacuteLEZ Justo L Op cit46 BELLITTO Christopher M Op cit47 GONZAacuteLEZ Justo L Op cit48 GONZAacuteLEZ Justo L Op cit

21TeoloacutegicaRevista Brasileira de Teologia ISSN 1807-7056 nordm 8 outdez Rio de Janeiro 2020 p 9-22

Embora os bispos tivessem sido notavelmente longiacutenquos em seus debates eles foram bastante concisos em seu decreto Eles disseram que Cristo nos livrou da loucura idoacutelatra e sempre continua sustentando Sua Igreja mas alguns mes-mo os sacerdotes se desviaram deixando de ldquodistinguir entre santo e profano estilizando as imagens de Nosso Senhor e de Seus santos da mesma maneira como as estaacutetuas dos iacutedolos diaboacutelicosrdquo Os bispos acrescentaram a aceitaccedilatildeo dos seis conciacutelios ecumecircnicos anteriores especialmente o que se encontrava ldquona ilustre metroacutepole de Niceacuteiardquo49

Em seguida eles mantiveram inalteradas todas as tradiccedilotildees eclesiaacutesticas que foram transmitidas por escrito ou verbalmente uma das quais eacute a realizaccedilatildeo de representaccedilotildees pictoacutericas agradaacuteveis agrave histoacuteria da pregaccedilatildeo dos Evangelhos uma tradiccedilatildeo uacutetil em muitos aspectos mas especialmente em que a encarnaccedilatildeo da Palavra de Deus eacute mostrada como real e natildeo meramente fantaacutestica50 Em resumo o uso das imagens foi restaurado para veneraccedilatildeo (dulia) mas natildeo para adoraccedilatildeo (latria)51

CONSIDERACcedilOtildeES FINAISDiante de inuacutemeras controveacutersias e debates eacute interessante perceber como cada

decisatildeo tomada nos conciacutelios ajudou a entender temas cristoloacutegicos Percebe-se que desde o iniacutecio existe uma tentativa de explicar e sistematizar a natureza de Cristo de definir em quais momentos seu lado humano eou divino esteve em accedilatildeo As heresias debatidas foram importantes para que as respostas levantadas pela Igreja formassem ou pelo menos ajudassem a formar o pensamento que temos hoje sobre quem eacute Cristo e sua natureza Eacute inevitaacutevel que temas adja-centes aparecessem como a proacutepria natureza de Maria e a adoraccedilatildeo a imagens Estudar esse recorte da histoacuteria do cristianismo eacute portanto fundamental para compreender o pensamento da Igreja daqueles seacuteculos e qual a visatildeo que se tinha sobre quem eacute Jesus

O exerciacutecio mental que pode aqui ser realizado eacute o de comparar as mentali-dades e tentar perceber se muita coisa mudou em relaccedilatildeo aos nossos dias Outro exerciacutecio que pode ser feito eacute avaliar o quanto esse conjunto de pensamento do seacuteculo VIII nos influencia hoje

49 BELLITTO Christopher M Op cit50 BELLITTO Christopher M Op cit51 WILLIAMS Terri Cronologia da Histoacuteria Eclesiaacutestica em graacuteficos e mapas Satildeo Paulo Vida Nova 1993

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HASBROUCK Ryan The First Four Ecumenical Councils as Ineffective Means to Control the Rise and Spread of Heterodox Christian Ideologies Un-dergraduate Research Journal at UCCS v 2 n 1 Spring 2009 University of Colorado 2009

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WILLIAMS Terri Cronologia da Histoacuteria Eclesiaacutestica em graacuteficos e mapas Satildeo Paulo Vida Nova 1993

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O LIVRO DE JONAS E O ARREPENDIMENTO VERDADEIRO NA BIacuteBLIA E NA ATUALIDADE

Evelise Cavalcanti52

Teresa Akil53

RESUMO O presente artigo busca analisar a relaccedilatildeo de instabilidade do homem com

o divino atraveacutes da obediecircncia e desobediecircncia desse homem em relaccedilatildeo a Deus bem como ao pecado Analisa-se o reflexo primordial de desobediecircncia a Deus na parte introdutoacuteria do Livro de Jonas contemplando o pecado em si e o relacionamento de Jonas com Deus para que seja pautada e estruturada a misericoacuterdia divina na vida desse profeta A partir dessa concepccedilatildeo busca-se refletir acerca da instabilidade do homem em relaccedilatildeo a Deus na Biacuteblia e na atualidade para traccedilar paracircmetros para que seja aprofundado o arrependimento verdadeiro do ser humano a partir da anaacutelise de Jonas e Davi

Palavras-chave Livro de Jonas Desobediecircncia ao divino Duacutevida Culpa Arrependimento verdadeiro

ABSTRACTThis scientific article seeks to analyze the relationship of manrsquos instability

with the divine through manrsquos obedience and disobedience in relation to God as well as sin In this study the primary reflection of disobedience to God is analyzed in the introductory part of the Book of Jonah contemplating sin itself and Jonahrsquos relationship with God so that divine mercy in Jonah is guided and structured From this conception we seek to reflect on the instability of man in relation to God in the Bible and nowadays to outline parameters so that the true repentance of the human being is deepened based on the analysis of Jonas and David

Keywords Book of Jonah Disobedience to the divine Doubt Guilt True repentance

52 Graduada em Direito (Unifeso)) Graduada em Teologia (Faceten) Poacutes-graduada em Exegese e Interpretaccedilatildeo da Biacuteblia (Fabat) em Histoacuteria de Israel (Kennedy) em Direito Processual Civil (Unican) 53 Doutora em Teologia (PUC-Rio) Mestre em Teologia Biacuteblica (STBSB) Graduada em Teologia (Faculdade Batista do Paranaacute) e em Comunicaccedilatildeo Social (Universidade Estaacutecio de Saacute) Docente das disciplinas da aacuterea biacuteblica (Antigo Testamento) e Exegese coordenadora do Grupo de Estudo e Pesquisa Biacuteblica nas Tradiccedilotildees de Israel

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INTRODUCcedilAtildeO A histoacuteria de Jonas tem sido contada desde a antiguidade Natildeo eacute incomum

encontrarmos em classes infantis ou nas mais altas patentes teoloacutegicas discus-sotildees calorosas sobre as peculiaridades desse personagem tatildeo conhecido

Vaacuterias abordagens tecircm sido temas infindaacuteveis de duacutevidas seria possiacutevel um homem permanecer trecircs dias na barriga de um peixe Seria uma baleia Em que eacutepoca se passou Seria Jonas um profeta desobediente e insensiacutevel Enfim vaacuterias questotildees pertinentes afloram em nosso entendimento

A mais importante e contextualizada questatildeo natildeo se trata da possibilidade material ou emocional da situaccedilatildeo A importacircncia espiritual da histoacuteria tatildeo bem narrada em um dos menores livros da Biacuteblia traz-nos a reflexatildeo sobre a limitaccedilatildeo do homem em qualquer eacutepoca de ser avaliado quanto ao seu verda-deiro arrependimento

A Biacuteblia narra diversos momentos nos mais antigos textos em que os povos inclusive o povo escolhido natildeo conseguiram se manter firmes aos mandamentos de YHWH Em Niacutenive nos parece natildeo ter sido diferente No momento em que a matildeo de Deus mostrou-se pesada o rei se humilha e recebe o perdatildeo poreacutem natildeo mais que uma geraccedilatildeo apoacutes esse mesmo povo se mostra como inimigo mortal de Israel

Haveria acontecido um verdadeiro arrependimento ou o medo e a derrota certa teriam levado os ninivitas a um momentacircneo reconhecimento de seu erro e a uma consequente submissatildeo forccedilada pela situaccedilatildeo Para as consideraccedilotildees e conclusotildees precisamos entender um pouco desse povo e de todo contexto que o envolve

1 JONAS EacutePOCA HISTOacuteRIA AUTORIAJonas eacute descrito de formas diferentes de acordo com a visatildeo de teoacutelogos

diversos Bazioli (2011 p 3) por exemplo descreve Jonas como ldquoo mais estra-nho dos profetasrdquo mas com uma mensagem que produzira efeitos ateacute mesmo naqueles que natildeo o ouviram diretamente Para o autor Jonas fora o mais bem sucedido pregador com um sermatildeo que impactava apenas por meio de palavras Na Biacuteblia conforme enunciado por Alencar (2010) o livro de Jonas faz parte da coleccedilatildeo de livros profeacuteticos situando-se entre os livros de Abdias e Miqueias

Natildeo haacute um consenso absoluto acerca da autoria do livro de Jonas uma vez que o livro natildeo declara o nome do autor Entretanto haacute a tese bastante aceita e estabelecida nos estudos de Erthal et al (2002 p 35) de que ldquoembora o livro

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natildeo declare o nome do autor seguramente foi o proacuteprio Jonas quem o escreveurdquo Para os autores Jonas tem o nome que significa ldquopombordquo sendo apresentado como filho de Amitai Nascera em Gate-Efer cidade situada proacutexima a Nazareacute

Alencar (2010 p 7) por sua vez aponta que eacute impossiacutevel precisar de quem fora a autoria do livro de Jonas visto que na eacutepoca um dos grupos responsaacuteveis pela educaccedilatildeo eram os sacerdotes cuja obrigaccedilatildeo consistia em ensinar ao povo a instruccedilatildeo como uma lei relacionada ao culto e sacrifiacutecio ldquoO autor do livro de Jonas pode ter sua origem entre os saacutebios de Israel pois conhecia bem a tradiccedilatildeo de seu povo bem como a de outros povos Ele devia manter contato com estrangeiros e os considerava com bons olhosrdquo

Para que seja possiacutevel compreender e aprofundar conhecimentos acerca de Jonas e do livro que recebeu o seu nome torna-se indispensaacutevel refletir acerca do contexto histoacuterico do mesmo Dasilva (2003) leciona que o livro de Jonas fora escrito um seacuteculo antes de Jesus proferir as palavras registradas em Mateus 1239-40 no relato de como Deus enviara um profeta judeu para levar sua mensagem de salvaccedilatildeo para uma naccedilatildeo gentiacutelica a Assiacuteria com a capital Niacutenive que possuiacutea uma populaccedilatildeo de mais de 120000 homens O autor ainda complementa que

A histoacuteria de Jonas tatildeo conhecida pela menor crianccedila da Escola Domi-nical eacute geralmente contextualizada e limitada ao milagre do profeta subsistir dentro do ventre de um grande peixe por trecircs dias e trecircs noites ou ao fator de sua desobediecircncia Este livro no entanto natildeo tem como prioridade mostrar a Jonas o peixe sua pregaccedilatildeo ou o povo de Niacutenive Ele guarda na sua linda histoacuteria revelaccedilotildees sobre a pessoa e caraacuteter de Deus O livro foi escrito para revelar um Deus que estaacute sobre noacutes que cuida que orienta que ama e que caminha conosco (DASILVA 2003 p 1)

Fabio (1991) aponta que Jonas vivera em um periacuteodo no qual Israel corria gra-ve risco de ser extinto como naccedilatildeo O autor aponta que em II Reis 1427 ldquoAinda natildeo falara o Senhor em apagar o nome do Israel de debaixo do ceacuteurdquo mas estava perto de tomar tal decisatildeo Na eacutepoca a pobreza era uma marca da sociedade e natildeo havia nem um homem escravizado nem um homem livre As classes sociais estavam praticamente unificadas com o desaparecimento completo da classe meacutedia e a diminuiccedilatildeo significativas da riqueza privada

Paradoxalmente era tremenda a expansatildeo militar e Israel atingira um niacutevel bastante estaacutevel de seguranccedila nacional Percebemos isso em II Reis 142528 atraveacutes das palavras ldquorestabeleceurdquo e ldquoconquistourdquo presentes no

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texto Estaacute dito ali que Jeroboatildeo II restabelece as fronteiras e conquista espaccedilos pela via das forccedilas armadas enquanto isso a anguacutestia social do povo era horriacutevel Natildeo havia o menor vislumbre ou esperanccedila de mu-danccedilas radicais pois natildeo se contava com ningueacutem que socorresse Israel (II Reis 1426) Em consequecircncia de tal situaccedilatildeo Jonas se transformou num profeta extremamente politizado por conseguinte ideologizado Ele tinha consciecircncia por exemplo de que nos seus dias a grande ameaccedila para Israel era a Assiacuteria cuja capital era Niacutenive (FABIO 1991 p 4-5)

Ora Jonas natildeo vivera e sua histoacuteria natildeo fora contada em um periacuteodo de prosperidade Niacutenive era considerada uma grande ameaccedila para Israel assim como a Assiacuteria em geral Erthal et al (2002) apontam que o tema do livro de Jonas concentra-se na misericoacuterdia divina Jonas eacute chamado por Deus para advertir Niacutenive sobre os fatos que seriam consumados como consequecircncia de seus pecados o principal propoacutesito de Deus nesse sentido era demonstrar a Israel e agraves naccedilotildees a magnitude da Sua misericoacuterdia e a Sua accedilatildeo atraveacutes da pregaccedilatildeo do arrependimento

Para Alencar (2010) Jonas eacute chamado por Deus para anunciar a conversatildeo na capital Niacutenive que se encontrava fora das fronteiras com Israel um reflexo do nacionalismo exclusivista do povo de Israel no poacutes-exiacutelio fundamentado na concepccedilatildeo de povo eleito e na visatildeo de Jerusaleacutem como o uacutenico lugar onde Deus manifestava-se Trata-se da comunicaccedilatildeo de Deus aleacutem da visatildeo do povo de Jerusaleacutem fazendo uso de Jonas como um instrumento de conversatildeo

Antes de aprofundar conhecimentos acerca da histoacuteria do livro de Jonas tendo-se jaacute abordado acerca da autoria desse livro cumpre aprofundar conhe-cimentos sobre a eacutepoca atribuiacuteda ao mesmo Ainda segundo Alencar (2010) a narrativa do livro de Jonas natildeo oferece nenhuma evidecircncia que possibilite datar o livro A existecircncia de um profeta que vivera sob o nome Jonas no seacuteculo XVIII natildeo representa que o livro tenha sido escrito nessa eacutepoca Para o autor existem elementos que sugerem uma dataccedilatildeo tardia ao livro de Jonas quais sejam

bull Vaacuterias palavras de origem aramaica satildeo observadas na narrativa de Jonas O aramaico tornara-se liacutengua oficial no periacuteodo persa As palavras que designam os marinheiros e o navio (Jonas 1 5) e o decreto do rei de Niacutenive (Jonas 37) advecircm da liacutengua aramaica

bull A histoacuteria de Jonas conforme observado em Jonas (3 7-8) faz alusatildeo aos costumes persas como por exemplo a participaccedilatildeo de animais nos rituais de penitecircncia

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bull Niacutenive era identificada como capital da Assiacuteria no tempo de Jonas de modo que a cidade soacute se tornara importante no templo de Senaqueribe em 704 aC O rei seria tratado como rei da Assiacuteria e natildeo rei de Niacutenive

bull Natildeo haacute influecircncia no livro de Jonas da eacutepoca heleniacutestica do tempo de Ale-xandre Magno e de seus sucessores como tambeacutem natildeo aparecem conflitos com samaritanos nem mesmo questotildees envolvendo casamentos com mulheres estrangeiras

Esses elementos segundo Alencar (2010 p 8) natildeo satildeo suficientes para que se precise a data na qual fora escrito o livro de Jonas entretanto ldquoeacute possiacutevel afirmar que o livro tenha sido escrito no final do seacuteculo IV ou no iniacutecio do seacuteculo III aC no periacuteodo persardquo

Segundo Dasilva (2003) Deus ordenou que Jonas se levantasse e fosse para a grande cidade de Niacutenive Jonas teria dito ldquonatildeordquo a Deus sabendo que a Assiacuteria era uma inimiga terriacutevel de Israel Na verdade ele temia que Niacutenive se arre-pendesse e fosse poupada por Deus da puniccedilatildeo e condenaccedilatildeo iminente Caso Niacutenive caiacutesse Israel de Jonas escaparia de suas investidas e de seus ataques assim convocado por Deus ele fugiu

Erthal et al (2002) apontam que logo que Jonas fugiu tomando um navio para Taacutersis Deus passou a agir mandando forte vento sobre o mar e criando uma grande tempestade Jonas dormia no poratildeo do navio e o capitatildeo perguntou-lhe por qual motivo dormia enquanto o medo e o pavor tomavam conta dos tripu-lantes que clamavam aos deuses pelo livramento O versiacuteculo seis do primeiro capiacutetulo do livro relata que Jonas tambeacutem clama a Deus

Os tripulantes do navio ficaram indignados quando Jonas responde que era hebreu que servia ao Deus do ceacuteu mas que estava fugindo dEle (18- 10) Por causa de sua atitude Jonas foi obrigado a enfrentar as con-sequumlecircncias e acabou por confessar sua transgressatildeo ldquoE ele lhes disse Levantai-me e lanccedilai-me ao mar e o mar se aquietaraacuterdquo (112) Jonas se sentia nesse momento culpado por ter desobedecido a Deus e por colocar a vida da tripulaccedilatildeo em perigo Apanharam Jonas e o lanccedilaram ao mar A tempestade parou milagrosamente (11415) O resultado contrastante nesta situaccedilatildeo foi a conversatildeo da tripulaccedilatildeo ldquoTemeram pois estes ho-mens ao Senhor com grande temor e ofereceram sacrifiacutecios ao Senhor e fizeram votosrdquo (116) (ERTHAL et al 2002 p 37)

O clamor de Jonas apesar de sua rebeldia fora atendido Jonas mostrou-se sincero e temente a Deus pedindo misericoacuterdia divina e livramento ou seja

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que sua vida fosse poupada Deus providenciou um grande peixe para salvar a vida de Jonas deixou-o vivo por trecircs dias dentro do ventre daquele peixe Em Jonas 210 observam-se sete milagres divinos a tempestade a sorte de Jonas a calmaria do mar o grande peixe a sobrevivecircncia de Jonas o peixe conduzido ateacute a praia e o fato de o peixe ter vomitado Jonas em terra seca por ordem divina (FABIO 1991)

Ora a noccedilatildeo principal do livro de Jonas diz respeito justamente agrave misericoacuterdia divina Deus pune na mesma medida em que salva Deus aproxima-se de seus filhos mesmo quando estes fogem desde que se arrependam verdadeiramente Essa eacute a concepccedilatildeo fundamental do livro de Jonas

2 EPISOacuteDIOS QUE DEMONSTRAM A OSCILACcedilAtildeO DA OBE-DIEcircNCIA E DESOBEDIEcircNCIA A DEUS AO LONGO DA ERA BIacute-BLICA

Jonas eacute apenas um exemplo da oscilaccedilatildeo entre a obediecircncia e desobediecircncia a Deus ao longo do percurso biacuteblico Esta parte do estudo relata outros episoacutedios biacuteblicos nos quais se verifica essa oscilaccedilatildeo

Talvez o mais conhecido episoacutedio que elucida tal questatildeo seja o de Gecircnesis quando Deus concedera tudo a Adatildeo menos que ele provasse o fruto da aacutervore do conhecimento do bem e do mal deixando claro que se ele comesse esse fruto certamente morreria (Gecircnesis 2 17) Deus ainda que misericordioso puniu Adatildeo lanccedilando-o para fora do jardim do Eacuteden para lavrar a terra da qual fora tomado (Gecircnesis 3 23)

Esse episoacutedio de Gecircnesis eacute um dos principais exemplos biacuteblicos acerca do arrependimento agrave desobediecircncia diante de Deus Em Romanos 519 tem-se que pela desobediecircncia de um soacute homem muitos foram feitos pecadores assim como pela obediecircncia de um muitos seratildeo constituiacutedos justos

A oscilaccedilatildeo entre a obediecircncia e a desobediecircncia a Deus tambeacutem eacute abordada em Romanos No versiacuteculo 30 do capiacutetulo 11 do livro tem-se que ldquoPois assim como voacutes outrora fostes desobedientes a Deus mas agora alcanccedilastes miseri-coacuterdia pela desobediecircncia delesrdquo Ora Deus natildeo premia os que obedecem apoacutes a desobediecircncia mas sim eacute misericordioso pelo arrependimento genuiacuteno e sincero

3 ATUALIDADE ALGUNS EPISOacuteDIOS EM NOSSA VIDA ATUAL QUE DEMONSTRAM A INSTABILIDADE DO SER HUMANO EM PERMANECER FIEL A DEUS

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O ser humano eacute falho e imperfeito por natureza Entretanto natildeo foi soacute nos tempos biacuteblicos que o homem demonstrou dificuldades em permanecer fiel e obediente a Deus De fato tal instabilidade tem sido observada durante toda a histoacuteria humana e pode ser amplamente observada em nossa conduta na atualidade Esta parte do estudo procura demonstrar e exemplificar esse fato

O primeiro mandamento biacuteblico propotildee que o homem ame a Deus sobre todas as coisas Entretanto observa-se que o ser humano em muito afasta-se de Deus Os constantes estiacutemulos e os desejos de acumular riqueza por parte do ser humano satildeo exemplos de elementos que afastam o homem de Deus Por vezes o homem daacute importacircncia demasiada ao dinheiro colocando-o como prioridade em sua vida acima de Deus ou ainda orando a Deus tatildeo somente pedindo riqueza material e natildeo riqueza espiritual

Ora nem mesmo o primeiro mandamento biacuteblico eacute uma tarefa faacutecil de ser alcanccedilada pelos servos de Deus Como natildeo eacute objeto de ostentaccedilatildeo Deus acaba sendo ldquodeixado de ladordquo pelas pessoas que passam a buscar sobretudo a riqueza material e a estabilidade financeira desalinhando-se dos preceitos e princiacutepios divinos

A principal fonte de instabilidade do homem em relaccedilatildeo agrave fidelidade a Deus satildeo os estiacutemulos presentes em nossa sociedade O dinheiro e a ideia de acuacutemulo da riqueza satildeo apenas alguns fatores que afastam o homem de Deus A sexualidade eacute outro exemplo claro de estiacutemulo que torna o homem infiel e desobediente aos olhos divinos

De fato o sexo tornou-se um produto de consumo na atualidade Consumir e almejaacute-lo de maneira desenfreada e irrestrita eacute caracteriacutestico da sociedade O sexo eacute objeto de desejo nos filmes muacutesicas revistas e amplamente presente no mundo virtual na internet como um todo O homem eacute ludibriado em um mundo que respira sexo natildeo mantendo a integridade sexual almejada por Deus peca constantemente contra a sexualidade cobiccedilando tambeacutem a mulher do proacuteximo

Todos os mandamentos de Deus podem ser colocados como desafios ou obstaacuteculos para que o homem permaneccedila fiel a Ele em diferentes niacuteveis O homem pecador por natureza cria obstaacuteculos em sua conduta diaacuteria caindo constantemente em tentaccedilatildeo de maneira semelhante a Adatildeo que sucumbiu agrave tentaccedilatildeo de contrariar a uacutenica imposiccedilatildeo que lhe fora feita por Deus

A cobiccedila eacute um dos grandes problemas enfrentados pelo homem para manter um relacionamento com Deus Natildeo se refere aqui apenas agrave cobiccedila desenfreada pelo dinheiro e pelo sexo mas tambeacutem pelas coisas alheias Os homens desejam

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o poder e o conseguem por meio do erro e do pecado A televisatildeo por exemplo vende a ideia daquelas vidas perfeitas dos bem sucedidos provocando que o homem cobice os bens e a proacutepria vida de terceiros desconsiderando-se a si proacuteprio e ao seu relacionamento iacutentimo com Deus

Entretanto o homem temente a Deus arrepende-se constantemente Confessa o seu pecado mas volta rapidamente a pecar sucumbindo aos mesmos erros que o fizeram pecar em outro momento novamente almeja o poder o sexo a riqueza financeira Deseja intensamente tudo aquilo que natildeo tem

Para suprir essa alarmante necessidade o homem faz uso de todos os meios e mecanismos possiacuteveis muitas vezes pouco se importando se atendecirc-los significa estar ainda mais distante do divino Roubar eacute uma praacutetica comum em nossa sociedade natildeo somente para sustentar um viacutecio em substacircncia mas tambeacutem pelo simples ideal de acumular riquezas uma praacutetica tatildeo repreendida por Deus

Assim o homem se vecirc diante de todo um contexto desfavoraacutevel para se manter fiel a Deus De fato a sociedade jaacute haacute muito tempo tem se afastado dos princiacutepios e preceitos divinos os homens natildeo demonstram mais arrependimento genuiacuteno ao cometerem pecados e insistindo em seus erros independentemente das liccedilotildees divinas jaacute aplicadas a eles

Pode-se equiparar o contexto atual ao que observamos na histoacuteria de Jonas cuja abordagem jaacute foi feita anteriormente neste artigo Jonas tambeacutem sabendo de suas funccedilotildees e da vontade de Deus disparou em fuga O homem atual tambeacutem conhece suas funccedilotildees e a vontade de Deus e mesmo assim ignora-as diante de seu egoiacutesmo sacrificando sua proacutepria alma por sentimentos e prazeres pueris

Somente quando sente falta da presenccedila de Deus o homem cogita o arre-pendimento Jonas aprendera sua liccedilatildeo ao permanecer trecircs dias no ventre do peixe clamando pela misericoacuterdia divina O homem atual entretanto parece natildeo aprender suas liccedilotildees Ele insiste no pecado e sucumbe a ele e aos estiacutemulos peca-minosos amplamente presentes em nossa sociedade Haacute pontos de aproximaccedilatildeo e de afastamento entre os episoacutedios relatados neste estudo e o contexto atual de vivecircncia do homem Entretanto permanece a dificuldade de se permanecer estavelmente fiel a Deus

4 ABORDAGEM DO VERDADEIRO ARREPENDIMENTOConforme apresentado o homem arrepende-se buscando a misericoacuterdia e

o perdatildeo de Deus O arrependimento segundo Delumeau (2003) eacute deixar o pecado e para que este seja abandonado o arrependimento deve ser verdadeiro

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buscando o perdatildeo divino e comprometendo-se a natildeo cometer o mesmo pecado

No item anterior abordaram-se aspectos da vida atual que sugerem a falta de arrependimento verdadeiro da parte do homem Jonas por exemplo arrependeu--se verdadeiramente ao reconhecer a soberania de Deus Arrependeu-se pri-meiramente ao observar a tempestade arrependeu-se quando estava em alto mar e durante os trecircs dias nos quais esteve dentro do ventre do peixe Jonas de fato arrependeu-se verdadeiramente de sua desobediecircncia a Deus e buscou corrigir suas falhas

Adatildeo no mesmo sentido mostrou-se desobediente ao divino e arrependeu-se gravemente colocando todos os homens em pecado Adatildeo buscava que Deus tivesse pena e piedade de si e de Eva concedendo-lhes meios para sustentar a vida Pode-se questionar o motivo que conduziu Adatildeo ao arrependimento mas natildeo se fora ou natildeo verdadeiro

O homem arrepende-se de suas falhas para com Deus fruto da instabilidade de seu relacionamento de obediecircncia para com o divino Entretanto o homem atual costuma repetir seus pecados arrepende-se com frequecircncia mas por medo de puniccedilotildees raramente se arrepende verdadeiramente O homem natildeo atribui culpa a si mesmo por seus pecados e quando o faz eacute de maneira displicente insistindo nos mesmos erros que antes cometera

Todavia isso diz respeito justamente agrave natureza pecaminosa do homem Mes-mo na Biacuteblia satildeo raros os casos de arrependimento verdadeiros (DELUMEAU 2003) Castro (2013) aponta que o arrependimento verdadeiro ou genuiacuteno con-siste na ideia por traacutes da desobediecircncia do homem em relaccedilatildeo a Deus seja por meio de uma ordem direta ou como eacute mais comum na atualidade por meio da desobediecircncia aos preceitos biacuteblicos

Um exemplo de arrependimento verdadeiro inquestionaacutevel na Biacuteblia encontra- se na histoacuteria de Davi

A oraccedilatildeo de Davi depois do maior erro de sua vida ilustra a natureza da verdadeira tristeza pelo pecado Seu arrependimento foi sincero e profundo Ele natildeo fez nenhum empenho por atenuar a culpa Natildeo foi o desejo de escapar ao juiacutezo que lhe inspirou a oraccedilatildeo Davi reconheceu a enormidade de sua transgressatildeo viu a contaminaccedilatildeo de seu ser e sentiu nojo do pecado Natildeo suplicava unicamente o perdatildeo mas tambeacutem um coraccedilatildeo puro Desejava a alegria da santidade e estar mais uma vez em harmonia com Deus (ENSINOS DE JESUS 2012 p 21)

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Ora levando-se em consideraccedilatildeo a histoacuteria de Davi compreende-se que o arrependimento verdadeiro eacute fruto de um genuiacuteno sentimento de tristeza do ser humano ao desapontar a Deus representado pela sinceridade e pela verdade aceitando o pecado que cometeu e natildeo negando-o Trata-se do desprezo pelo pecado propriamente dito

Souza (2009) aponta que o homem peca quando ele age contra aquilo que eacute imposto por Deus Com o pecado o homem e a mulher tornaram-se seres decadentes sendo o arrependimento a noccedilatildeo atraveacutes da qual eles podem ser sinceros com Deus assumindo sua culpa no pecado e demonstrando tristeza diante de sua desobediecircncia

O arrependimento verdadeiro aleacutem de tais caracteriacutesticas natildeo adveacutem de accedilatildeo humana mas sim de accedilatildeo divina uma vez que

Nenhum ser humano tem o poder de perdoar pecados Somente Deus por meio de Cristo aquele que nunca pecou pode nos conceder perdatildeo e paz de espiacuterito O ensino de que algum ser humano tem poder de perdoar pecados natildeo estaacute em harmonia com a Biacuteblia Nenhuma accedilatildeo humana eacute ca-paz de conseguir o perdatildeo Somente Deus em Jesus Cristo pode perdoar nossos pecados Por isso devemos nos aproximar Dele com o coraccedilatildeo verdadeiramente arrependido (ENSINOS DE JESUS 2012 p 21)

Assim o arrependimento verdadeiro eacute obtido tatildeo somente na comunhatildeo do pecador com Deus Ele deve manifestar com sinceridade o seu arrependimento pelo erro cometido independentemente das dimensotildees de seu pecado Em uma era na qual pecar eacute socialmente aceitaacutevel arrepender-se verdadeiramente eacute um dos difiacuteceis desafios do pecador

5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAISO presente estudo concentrou-se em uma abordagem clara e objetiva acerca do

livro de Jonas sobretudo no aspecto referente agrave conduta dele em relaccedilatildeo a Deus demonstrando sua desobediecircncia e a concepccedilatildeo de arrependimento verdadeiro a fim de que Jonas pudesse persistir no caminho traccedilado por Deus executando a funccedilatildeo divina que lhe fora incumbida

No mesmo sentido observou-se que o pecado sempre marcou o homem desde os tempos de Adatildeo ateacute a atualidade na qual os estiacutemulos pecaminosos estatildeo ain-da mais presentes Existe noccedilatildeo de arrependimento mas natildeo de arrependimento verdadeiro conforme ocorreu com Jonas e Davi Esse tipo de arrependimento se manifesta por uma verdadeira tristeza pelo cometimento do pecado sincera

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e profundamente sem o desejo de escapar da puniccedilatildeo mas curvando-se diante da superioridade de Deus

Este estudo natildeo buscou esgotar o assunto ou tornaacute-lo acabado mas tatildeo so-mente abordar concepccedilotildees acerca do verdadeiro arrependimento e das oscilaccedilotildees entre a obediecircncia e a desobediecircncia a Deus observadas tanto na era biacuteblica quanto na atualidade

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REFEREcircNCIAS ALENCAR J F Levanta-te e vai agrave grande cidade uma introduccedilatildeo ao livro de Jonas Revista Vida Pastoral ano 51 n 274 setembro-outubro 2010 p 6-13

BAZIOLI A J Graccedila Soberana Um Estudo do livro de Jonas copy Comunidade Presbiteriana Chaacutecara Primavera Ministeacuterio de Grupos Pequenos Abr2011

BIacuteBLIA SAGRADA Disponiacutevel em sanderleicombrPDFBibliaBiblia- Sagrada-Joao-Ferreira-de-Almeidapdf Acesso em 2 jul 2017

CASTRO D R Joatildeo Batista Profeta Do Amor Esponsal 1 ed ISBN 978-85-7784-077-9 copy Ediccedilotildees Shalom Aquiraz Brasil 2013

CLEMENTE M A Riqueza de Jonas Goiacircnia GO Editora RHJ 2008

DASILVA R E As Revelaccedilotildees Do Livro De Jonas Pulpito On-Line Forta Lauderdale 2003

DELUMEAU J O pecado e o medo ndash a culpabilizaccedilatildeo no ocidente (seacuteculos 13-18) Traduccedilatildeo Aacutelvaro Lorencini Bauru EDUSC 2003 2 v

ENSINO DE JESUS 2012 O que Jesus Ensinou sobre o Perdatildeo 6ordf liccedilatildeo Disponiacutevel em ltensinosdejesuscombrmateriaisestudosestudo-6pdfgt Acesso em 5 jul 2017

ERTHAL L A et al Profetas Menores Seminaacuterio Evangeacutelico para o aper-feiccediloamento de Disciacutepulos e obreiros do Reino ndash SEMEADOR Niteroacutei 2002

FAacuteBIO C Jonas O Sucesso do Fracasso Itajaiacute SC Editora Vinde 1991

SOUZA J N O destino do homem no plano de Deus uma anaacutelise da antropo-logia patriacutestica sobre a ldquoimagem e semelhanccedilardquo Rev Pistis Prax Teol Pastor Curitiba v 1 n 1 p 119-145 janjun 2009

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TRANSFORMACcedilAtildeO RELIGIOSA BRASILEIRA E CARACTERIacuteSTICAS DO NOVO PADRAtildeO RELIGIOSO

Joatildeo Boechat54

RESUMOO Brasil experimentou intensa transformaccedilatildeo religiosa nos uacuteltimos 40 anos

Essa mudanccedila caracterizou-se por trecircs pontos centrais a saber a) Queda da membresia Catoacutelica b) Crescimento dos indiviacuteduos que se consideram sem--religiatildeo e c) Crescimento Evangeacutelico A partir daiacute a sociedade brasileira apresenta uma nova configuraccedilatildeo religiosa Dessa forma surge a necessidade de natildeo apenas compreendermos essa nova configuraccedilatildeo como tambeacutem perce-bermos as relaccedilotildees entre esses grupos religiosos atraveacutes do tracircnsito religioso isto eacute como se daacute a formaccedilatildeo de cada grupo religioso e quanto essa formaccedilatildeo tem relaccedilatildeo com o ganho ou perda de membros antes ligados a outros grupos religiosos Este artigo apresenta a nova configuraccedilatildeo religiosa brasileira aleacutem de demonstrar como essa configuraccedilatildeo tem sido alterada nas uacuteltimas deacutecadas e por fim analisa como se daacute o tracircnsito religioso na sociedade brasileira

Palavras-Chave Transformaccedilatildeo Religiosa Configuraccedilatildeo Religiosa Cresci-mento Evangeacutelico

ABSTRACTIn the last 40 years Brazil has experienced intense religious transformation

Such change is characterized by three main points a) Decrease of Catholic mem-bership b) Increase of Non-Religious groups and c) Increase of the Evangelicals Thus Brazilian society presents a new religious setting Because of that there is the need of not only comprehend this new configuration but also understand the relationship among the religious groups using the analysis of the religious traffic in Brazil ie how each group is formed and how this formation is related to the adding or losing of individuals who were once members of other religious groups In this way this paper presents the new religious configuration in Brazil and discusses how said configuration has been altered in the last decades At last it analyzes how the religious traffic takes place in Brazilian society

54 Joatildeo Boechat eacute professor da Faculdade Batista do Rio de Janeiro aleacutem de pesquisador do Deutscher Akademischer Austauschdienst (DAAD) Eacute doutorando em Sociologia Poliacutetica pela Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF) com ecircnfase em Teologia pela Humboldt Universitaumlt zu Berlin na Alemanha Possui mestrado em Sociologia Poliacutetica pela UENF e especializaccedilatildeo em Ciecircncia da Religiatildeo aleacutem de graduaccedilatildeo em Teologia e Relaccedilotildees Internacionais

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Keywords Religious transformation Religious Configuration Evangelical Growth

INTRODUCcedilAtildeOA realidade do campo religioso brasileiro indica uma forte transformaccedilatildeo

na sociedade em que vivemos Esta percepccedilatildeo ocorre pois ainda que a religiatildeo seja uma espera proacutepria ela influencia e eacute influenciada pelas demais esferas sociais como a economia poliacutetica e ciecircncia Portanto eacute sine qua non para a profunda compreensatildeo teoloacutegica a forma pela qual a religiatildeo se relaciona com a realidade vigente

A palavra que define a realidade religiosa brasileira nas uacuteltimas deacutecadas eacute ldquotransformaccedilatildeordquo Especialmente a partir da deacutecada de 80 o campo religioso no Brasil observa uma intensa mudanccedila encabeccedilada pelo grande crescimento evangeacutelico que atua como principal combustiacutevel de tal transformaccedilatildeo que tambeacutem eacute caracterizada pelo crescimento dos sem-religiatildeo e pela queda catoacutelica

Nesse contexto este artigo procura analisar a transformaccedilatildeo religiosa na sociedade brasileira observando os dados dos censos das uacuteltimas deacutecadas bem como buscando compreender o tracircnsito religioso que ocorre por meio da anaacutelise de como se daacute a formaccedilatildeo das membresias religiosas Por fim apontam-se algumas razotildees que auxiliam na compreensatildeo da mudanccedila religiosa brasileira

Assim pretende-se colaborar para a compreensatildeo da realidade brasileira e de como a transformaccedilatildeo estaacute relacionada com questotildees que atingem a sociedade como um todo Tambeacutem pretende-se explicitar que a religiatildeo eacute uma esfera autocirc-noma que influencia e eacute influenciada pelas demais esferas sociais adaptando-se agraves demandas e necessidades de seus fieacuteis e provendo respostas que busquem atender a tais necessidades

1 PADRAtildeO RELIGIOSO BRASILEIROAs uacuteltimas deacutecadas demonstraram um ldquopadratildeo religiosordquo no Brasil Em

2020 o Instituto Datafolha lanccedilou os seguintes dados da configuraccedilatildeo religiosa brasileira

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Graacutefico 1 Configuraccedilatildeo Religiosa Brasileira

Fonte Datafolha (2020)

Atualmente 50 dos brasileiros se afirmam Catoacutelicos 31 Evangeacutelicos55 10 Sem-Religiatildeo e 9 adeptos de outras religiotildees

Os dados do Graacutefico 1 atuam em conformidade com os dados do Censo de 2010 realizado pelo IBGE56 os quais apontam que a configuraccedilatildeo religiosa no Brasil nas uacuteltimas deacutecadas possui trecircs caracteriacutesticas fundamentais a) intensa queda dos Catoacutelicos b) crescimento significativo dos Evangeacutelicos c) crescimento relevante dos sem-religiatildeo Considerando os dados levantados pelo IBGE eacute possiacutevel identificar tal configuraccedilatildeo

Graacutefico 2 Religiotildees no Brasil (2010)

Fonte Censo do IBGE 2010

55 Caso dividamos os Evangeacutelicos entre os principais subgrupos a formaccedilatildeo do campo brasileiro corres-ponde a 21 de Pentecostais 44 de Evangeacutelicos de Missatildeo e 45 de Evangeacutelicos Natildeo-Determinados56 2010 corresponde ao ano do uacuteltimo censo publicado pelo IBGE

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De acordo com os dados do uacuteltimo Censo do IBGE publicado em 2010 entre os brasileiros 646 se denominam Catoacutelicos 57 222 Evangeacutelicos 58 81 Sem- Religiatildeo 59 27 possuem outras religiotildees 60 21 satildeo adeptos do Espiritismo e 033 de religiotildees afro-brasileiras 61

De fato as religiotildees natildeo satildeo compostas por subgrupos homogecircneos com completa unidade doutrinaacuteria eclesial e praacutetica Tomemos como primeiro exemplo os Evangeacutelicos Para a real compreensatildeo desse grupo religioso no Brasil eacute relevante levar em conta suas divisotildees a fim de melhor entender sua configuraccedilatildeo uma vez que ela se expressa de forma mais variada do que as dos Catoacutelicos e dos Sem-religiatildeo Afinal entre os Catoacutelicos 994 satildeo Catoacutelicos Apostoacutelicos Romanos jaacute entre os Sem-Religiatildeo 952 natildeo possuem religiatildeo mas creem no transcendente ou seja apenas 48 satildeo ateus ou agnoacutesticos

Diferentemente dos Catoacutelicos e Sem-Religiatildeo cuja anaacutelise dividimos em dois subgrupos os Evangeacutelicos apresentam uma divisatildeo relevante em trecircs subgrupos os Pentecostais que correspondem a 60 dos Evangeacutelicos e 133 da populaccedilatildeo brasileira 62 os Evangeacutelicos Natildeo-Determinados correspondem a 212 dos Evangeacutelicos e 48 dos brasileiros 63 Por fim os Evangeacutelicos de Missatildeo ou Histoacutericos correspondem a 182 dos Evangeacutelicos e 44 da populaccedilatildeo brasileira 64

Com base no Graacutefico 2 dividimos a anaacutelise da evoluccedilatildeo do campo religioso brasileiro em duas fases de 1940 a 1980 e de 1980 a 2010 Essa divisatildeo ressalta

57 Entre os Catoacutelicos 994 satildeo Catoacutelicos Apostoacutelicos Romanos 45 Catoacutelicos Apostoacutelicos Brasileiros e 01 Catoacutelicos Ortodoxos58 Entre os Evangeacutelicos 60 satildeo Pentecostais 218 Natildeo-Determinados e 182 Evangeacutelicos de Missatildeo59 Entre os Sem-Religiatildeo 952 satildeo sem-religiatildeo 4 Ateus e 08 Agnoacutesticos60 Entre as outras religiotildees 333 satildeo adeptos de outras religiosidades cristatildes 317 satildeo Testemunhas de Jeovaacute 146 possuem muacuteltiplas religiosidades 55 satildeo Budistas 52 satildeo membros da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Uacuteltimos Dias 36 adeptos de outras religiosidade orientais 24 satildeo Judeus 17 adeptos do Esoterismo e 14 membros de religiotildees Indiacutegenas Haacute ainda grupos de outras religiotildees como o Hinduiacutesmo que correspondem a menos de 1 deste grupo61 Entre as Religiotildees Afro-brasileiras 692 pertencem agrave Umbanda 284 ao Candombleacute e 24 a outras religiotildees de matriz afro-brasileiras62 Os maiores grupos e igrejas pentecostais satildeo Assembleia de Deus (485 dos Pentecostais) Igrejas Pentecostais Independentes (208) Congregacional Cristatilde do Brasil (9) Igreja Universal do Reino de Deus (74) Igreja do Evangelho Quadrangular (71) Deus eacute Amor (33) e Maranata (14)63 Os Natildeo-Determinados satildeo assim denominados pois satildeo formados por igrejas independentes de teologia protestante sem viacutenculo histoacuterico com associaccedilotildees protestantes norte-americanas ou europeias como as Igrejas de Missatildeo64 Os Evangeacutelicos de Missatildeo satildeo assim chamados pois possuem teologia protestante e sua formaccedilatildeo estaacute vinculada agraves missotildees protestantes de igrejas histoacutericas norte-americanas ou europeias No Brasil as maiores igrejas ou associaccedilotildees satildeo Batistas (485 dos Evangeacutelicos de Missatildeo) Adventistas (203) Luterana (13) Presbiteriana (12) Metodista (44) Congregacional (14) e outras (04)

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como nas uacuteltimas trecircs deacutecadas houve relevante mudanccedila e uma nova padro-nizaccedilatildeo religiosa no paiacutes

Tabela 1 ndash Religiotildees no Brasil de 1940 a 2010 em porcentagem (MARIANO 2013)

Religiatildeo 1940 1950 1960 1970 1980 1990 2000 2010Catoacutelicos 952 937 931 911 892 833 738 646Evangeacutelicos 26 34 40 58 66 90 154 222Outras Religiotildees 19 24 24 23 25 29 35 50Sem Religiatildeo 02 05 05 08 16 48 73 81

Natildeo declarou 01 00 00 00 01 00 00 01

TOTAL 100 100 100 100 100 100 100 100Fonte Mariano 2013

De 1940 a 1980 o nuacutemero de Catoacutelicos no Brasil caiu de 952 para 892 passando de 39256972 para 108066311 adeptos65 Apesar do crescimento geral os Catoacutelicos declinaram em 6 nessas quatro deacutecadas Jaacute de 1980 a 2010 os Catoacutelicos caiacuteram de 892 para 646 da populaccedilatildeo do paiacutes totalizando 123228246 adeptos o que indica uma queda de 246 da membresia

Em 2020 o Instituto Datafolha66 publicou uma pesquisa cujos dados revelam que no Brasil os Catoacutelicos correspondem a 50 dos brasileiros o que confirma o ldquopadratildeo religiosordquo de queda da membresia catoacutelica67 Caso o Censo do IBGE de 2020 confirme os dados levantados pelo Datafolha haveria uma queda de 146 na membresia catoacutelica significando a maior perda de adeptos jaacute registrada em uma deacutecada

Por outro lado os Evangeacutelicos se moveram na direccedilatildeo contraacuteria dos Catoacutelicos De 1940 a 1980 aquele grupo cresceu de 26 para 66 da populaccedilatildeo brasilei-ra o que significa que em 40 anos os Evangeacutelicos saltaram de 1072144 para 7995938 adeptos Todavia se nessas quatro deacutecadas os Evangeacutelicos cresceram 4 nas deacutecadas seguintes houve um exponencial aumento dos adeptos entre 1980 e 2010 Nestas os Evangeacutelicos saltaram de 66 para 222 totalizando 42347787 adeptos Isso significa que nas uacuteltimas deacutecadas os Evangeacutelicos

65 De acordo com os dados do Censo do IBGE a populaccedilatildeo brasileira em 1940 era de 41236315 pessoas em 1980 121150573 e em 2010 190755799 pessoas66 Pesquisa Datafolha com 2948 entrevistas realizadas em 176 municiacutepios no paiacutes em 5 e 6 de dezembro de 2019 Margem de erro de 2 pontos percentuais para mais ou para menos e niacutevel de confianccedila de 9567 De acordo com a Pesquisa do Instituto Datafolha em Dezembro de 2019 a Religiatildeo do Brasileiro eacute dividida em 50 Catoacutelicos 31 Evangeacutelicos 10 Sem-Religiatildeo 3 Espiacuteritas 2 Afro-Brasileiros 2 Outras Religiotildees 1 Ateus 03 Judeus

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cresceram cinco vezes mais do que a populaccedilatildeo brasileira Enquanto de 1980 a 2010 a populaccedilatildeo brasileira cresceu 123 os Evangeacutelicos cresceram 62

O crescimento evangeacutelico eacute evidenciado pela pesquisa do Datafolha de acordo com a qual estes atingiram 31 da populaccedilatildeo em 2020 Conforme esses dados o periacuteodo de 2010 a 2020 aponta duas realidades opostas em relaccedilatildeo aos Catoacutelicos e Evangeacutelicos Por um lado os Catoacutelicos sofreram a maior perda de membresia jaacute registrada em uma deacutecada Por outro lado os Evangeacutelicos experimentaram de 2010 a 2020 o maior crescimento jaacute registrado em seu nuacutemero de adeptos

Portanto em 2010 os cristatildeos (Catoacutelicos e Evangeacutelicos)68 correspondiam a 868 dos brasileiros ou seja quase 9 em cada 10 brasileiros ainda se con-siderava cristatildeo De acordo com o Instituto Datafolha em 2020 esse nuacutemero corresponde a 81 dos brasileiros Issto indica que apesar do grande cresci-mento evangeacutelico a queda do nuacutemero de catoacutelicos foi expressiva a ponto haver reduccedilatildeo do nuacutemero de cristatildeos no paiacutes em mais de 5 pontos percentuais Ainda assim apesar do crescimento dos Sem-Religiatildeo (de 8 para 10) os ateus correspondem a apenas 1 da populaccedilatildeo brasileira

Assim os nuacutemeros do Censo permitem a formulaccedilatildeo do seguinte graacutefico

Graacutefico 3 Cristatildeos na populaccedilatildeo brasileira (1940-2020)

Fonte Censo do IBGE (1940-2010) Datafolha (2020)

Em conformidade com o crescimento evangeacutelico os Sem-Religiatildeo tambeacutem obtiveram consideraacutevel aumento Entre 1940 e 1980 eles passaram de 02 a 16 indo de 82473 para 1938409 indiviacuteduos que natildeo possuem religiatildeo Em 68 De fato os Espiacuteritas tambeacutem satildeo cristatildeos Mas como estamos considerando as principais mudanccedilas religiosas no paiacutes consideremos apenas Catoacutelicos e Evangeacutelicos como Cristatildeos Contudo apenas para a anaacutelise e natildeo como afirmaccedilatildeo teoloacutegica Considerando os Espiacuteritas os Cristatildeos atingiriam 2 da populaccedilatildeo em 2010 e 3 em 2020

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2010 esse grupo alcanccedilou 81 dos indiviacuteduos no Brasil totalizando 15451220 pessoas

Por outro lado considerando a pesquisa do Datafolha os Sem-Religiatildeo atin-giriam 10 havendo crescimento de cerca de 2 em nuacutemero Esse crescimento seria maior do aquele que ocorreu entre 2000 e 2010 (08) mas menor do que o ocorrido entre 1990 e 2000 (25)

Graacutefico 4 Cristatildeos x Sem-Religiatildeo no Brasil (1940-2020)

Fonte Censo do IBGE (1940-2010) Datafolha (2020)

Portanto se no fim do seacuteculo XIX apoacutes a Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica (1889) os Catoacutelicos concentravam praticamente 100 da populaccedilatildeo brasileira o seacuteculo XX eacute marcado pela constante queda dessa membresia ainda que ela fosse ampla maioria em 1970 (911) Todavia a partir da deacutecada de 1980 essa queda acelerou-se fazendo com que os Catoacutelicos perdessem quase 1 de sua membresia ao ano (-097)

Desse modo estabelecendo-se uma projeccedilatildeo linear em que os Catoacutelicos manteriam sua perda de 097 ao ano os Evangeacutelicos o seu crescimento de 069 aa e os Sem-Religiatildeo ganhando 017 o ldquopadratildeo religioso brasileirordquo apresentaria uma mudanccedila em relaccedilatildeo agrave hegemonia religiosa por volta de 2036 assim os Evangeacutelicos com 403 ultrapassaratildeo os Catoacutelicos com 394 Em 2040 os Evangeacutelicos teriam 43 e os Catoacutelicos 355 Nesse ano os cristatildeos corresponderiam a 785 da populaccedilatildeo brasileira enquanto os Sem-Religiatildeo formariam 132 da populaccedilatildeo brasileira

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Graacutefico 5 Religiotildees no Brasil (1940-2040)

De fato natildeo eacute possiacutevel afirmar que tal transformaccedilatildeo continuaraacute nesse ritmo Todavia ainda que haja desaceleraccedilatildeo na perda de Catoacutelicos ou no crescimento dos Evangeacutelicos o padratildeo religioso brasileiro eacute ratificado pela intensa mudanccedila ocorrida no cenaacuterio brasileiro nos uacuteltimos 150 anos

Assim os nuacutemeros das pesquisas mencionadas confirmam o ldquopadratildeo religio-sordquo brasileiro e demonstram que este tem se desenvolvido de forma estaacutevel nos uacuteltimos 40 anos Eacute relevante perceber contudo que o paiacutes natildeo passou nestas uacuteltimas deacutecadas por um processo de ldquodesligamento do transcendenterdquo ou seja a perda catoacutelica e o acreacutescimo dos sem-religiatildeo natildeo indicam necessariamente uma diminuiccedilatildeo da experiecircncia com o transcendente ou a perda da busca pelo sagrado A anaacutelise desse padratildeo ajuda a entender a transformaccedilatildeo no campo religioso ocorrida nas uacuteltimas deacutecadas

2 TRAcircNSITO RELIGIOSO BRASILEIRO De forma geral o padratildeo religioso brasileiro indica uma transformaccedilatildeo do

campo religioso marcado pelas transformaccedilotildees na direccedilatildeo da relaccedilatildeo com o divino e natildeo na negaccedilatildeo do divino Isso significa que o brasileiro natildeo deixou de crer no transcendente mas apenas alterou a forma como crecirc ou o caminho para acessar o divino De acordo com o IBGE em 2010 apenas 03 da populaccedilatildeo se denominava ldquoateurdquo ou seja 78 dos brasileiros se consideram sem-religiatildeo mas mantecircm a crenccedila no transcendente

Portanto a configuraccedilatildeo religiosa brasileira se constroacutei a partir das transfor-maccedilotildees inter-religiosas como demonstra a Tabela 2

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Tabela 2 ndash Religiatildeo atual e tracircnsito religioso (BARTZ 2012)

Religiatildeo atual Natildeo mudou Mudou populaccedilatildeoCatoacutelica 959 41 646Evangeacutelico de missatildeo 228 772 41Evangeacutelico pentecostal 144 856 133Outras religiotildees 107 893 50Sem-religiatildeo 197 803 81Meacutedia Total 683 235 100

Fonte Censo Demograacutefico do IBGE 2010

Agrave primeira vista a meacutedia total indica que o Brasil eacute um paiacutes no qual a maioria da populaccedilatildeo permanece na religiatildeo em que nasceu (683) enquanto uma minoria muda de religiatildeo durante a vida (235) Contudo analisando a tabela perceberemos que apenas os Catoacutelicos satildeo maioria entre os que natildeo mudaram de religiatildeo De fato em cada 100 Catoacutelicos 96 nasceram em ambientes Catoacutelicos e apenas 4 se converteram ao longo da vida Isso significa que o Catolicismo eacute no Brasil uma religiatildeo de nascidos e natildeo de convertidos

Se considerarmos os demais grupos religiosos como tambeacutem os sem-religiatildeo veremos que ateacute 2010 828 dos brasileiros jaacute mudaram de crenccedila religiosa durante a vida Com exceccedilatildeo do Catolicismo todos os demais grupos de crenccedila no Brasil satildeo formados majoritariamente por convertidos ou seja seus adeptos se tornaram membros ao longo da vida e natildeo nasceram em ambientes praticantes dessa religiatildeo Pelo menos trecircs quartos da populaccedilatildeo evangeacutelica ou dos que hoje se consideram ldquosem-religiatildeordquo jaacute estiveram em alguma outra religiatildeo antes de possuiacuterem o atual entendimento sobre o transcendente Por exemplo dos 139 da populaccedilatildeo de pentecostais 856 se converteram a essa vertente durante a vida e somente 144 satildeo filhos de pais pentecostais tratando-se portanto de uma religiatildeo majoritariamente de convertidos e natildeo de originaacuterios

Aleacutem disso quando observamos o tracircnsito religioso brasileiro comparando-se a religiatildeo atual e a religiatildeo anterior dos brasileiros percebemos como o fluxo religioso ocorre entre os ldquoconvertidosrdquo

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Tabela 3 ndash Religiatildeo atual x religiatildeo anterior (BARTZ 2012)

Religiatildeo AnteriorReligiatildeo Atual

CatoacutelicaEvangeacutelico Histoacuterico

Evangeacutelico Pentecostal

Outras Religiotildees

Sem-Religiatildeo

Catoacutelica 00 138 589 163 421Evangeacutelico de Missatildeo 269 213 507 11 57Evangeacutelico Pentecostal 187 402 408 04 239Outras Religiotildees 474 99 155 110 64Sem-religiatildeo 179 12 742 55 00Ateus 231 118 332 158 31

Fonte Bartz 2012

A Tabela 3 foi elaborada levando-se em conta os indiviacuteduos que jaacute mudaram de crenccedila religiosa ao longo da vida Assim ela natildeo demonstra a religiatildeo de origem desses indiviacuteduos mas aquelas pelas quais eles jaacute passaram em compa-raccedilatildeo com a atual religiatildeo Portanto a somatoacuteria de algumas supera os 100 uma vez que um indiviacuteduo que hoje eacute Evangeacutelico por exemplo pode ter passado por uma ou mais religiotildees

Com relaccedilatildeo aos Catoacutelicos eacute vaacutelido lembrar que apenas 41 dos adeptos satildeo convertidos Dentre estes 474 satildeo oriundos de famiacutelias que passaram por religiotildees de matriz africana ou orientais 269 foram Evangeacutelicos de Missatildeo e 187 Pentecostais Ademais 231 foram Ateus e 179 Sem-Religiatildeo

Os Evangeacutelicos satildeo o grupo que mais cresce no Brasil eacute uma religiatildeo de ldquocon-vertidosrdquo em que8 em cada 10 indiviacuteduos (82) aproximadamente tornaram-se adeptos ao longo de sua vida e natildeo nasceram em ambientes evangeacutelicos Entre os adeptos que se denominam ldquode Missatildeordquo 402 jaacute pertenceram ao Pentecosta-lismo Isso indica que entre os Evangeacutelicos de Missatildeo o principal fluxo ocorre dentro da esfera Evangeacutelica Ademais 213 dos Histoacutericos jaacute fizeram parte de outra instituiccedilatildeo evangeacutelica histoacuterica como por exemplo um Batista que jaacute foi membro de uma organizaccedilatildeo Metodista ou Presbiteriana Em continuidade 138 dos Evangeacutelicos de Missatildeo jaacute foram Catoacutelicos e 118 Ateus

Por outro lado se entre os Evangeacutelicos Histoacutericos ou de Missatildeo o principal fluxo eacute intrarreligioso entre os Pentecostais 742 foram Sem-Religiatildeo 589 jaacute foram Catoacutelicos e 332 Ateus De fato entre os Pentecostais a maior parte dos convertidos jaacute passou por outras religiotildees Ademais o fluxo intrarreligoso tambeacutem eacute consideraacutevel haja vista que 507 dos Pentecostais jaacute foram ldquoHistoacute-

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ricosrdquo e 408 jaacute passaram por outras organizaccedilotildees Pentecostais Por exemplo um membro da Assembleia de Deus Ministeacuterio Madureira jaacute foi membro da Assembleia de Deus Vitoacuteria em Cristo ou ainda da Igreja Universal do Reino de Deus

O grupo dos ldquosem-religiatildeordquo (78) representa o segundo maior contingente de pessoas que migraram de religiatildeo As igrejas evangeacutelicas pentecostais e os catoacutelicos satildeo os principais fornecedores para este grupo Observamos ainda que 421 dos ldquosem-religiatildeordquo declaram-se ter sido catoacutelicos 239 pentecostais 57 histoacutericos 64 declaram ter pertencido a outras religiotildees Haacute duas rotas portanto de migraccedilatildeo para os ldquosem-religiatildeordquo a primeira vai do catolicismo ou dos evangeacutelicos histoacutericos e a segunda do catolicismo ao pentecostalismo e entatildeo ao grupo ldquosem-religiatildeordquo

Assim o tracircnsito religioso brasileiro nos apresenta algumas caracteriacutesticas a) os Catoacutelicos satildeo os doadores universais b) os Evangeacutelicos satildeo receptores universais ainda que haja intenso fluxo intrarreligioso c) os Sem-Religiatildeo satildeo majoritariamente indiviacuteduos que mantecircm determinada espiritualidade e natildeo se tornam ateus

A fim de aprofundarmos o estudo da Religiatildeo no cenaacuterio brasileiro analisa-remos essas caracteriacutesticas observando possiacuteveis explicaccedilotildees para a formaccedilatildeo desse padratildeo

3 FORMACcedilAtildeO DO PADRAtildeO RELIGIOSO BRASILEIRODiversos trabalhos tecircm sido apresentados a fim de explicar as razotildees para

esse padratildeo apresentado a Teoria da Secularizaccedilatildeo se apresenta como uma valiosa ferramenta para a compreensatildeo dessa nova realidade (NERI 2011 ANDRADE 2012 ALTMANN 2012 GRACINO 2012 MARIANO 2013 CAMURCcedilA 2017)

Considerando que a esfera religiosa no mundo moderno eacute uma esfera como as demais que disputa espaccedilo e relevacircncia sociais pode-se destacar no caso brasileiro trecircs efeitos do processo de secularizaccedilatildeo sobre ela 1) a desmonopo-lizaccedilatildeo religiosa 2) a liberdade religiosa e 3) o pluralismo religioso

Apesar das mudanccedilas ocorridas no campo religioso brasileiro nas uacuteltimas deacutecadas a realidade religiosa brasileira ainda demonstra ser a del um paiacutes ma-joritariamente catoacutelico Apenas no fim do seacuteculo XIX com a proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica o Brasil se tornou oficialmente laico Todavia ainda assim a Igreja Catoacutelica manteve seus privileacutegios em relaccedilatildeo ao Estado secular Entretanto se

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durante os periacuteodos de colonizaccedilatildeo e impeacuterio para ser brasileiro era necessaacuterio ser catoacutelico a separaccedilatildeo entre Igreja e Estado resultou no fim da monopolizaccedilatildeo religiosa

A diferenciaccedilatildeo entre a esfera religiosa e as esferas poliacutetica e juriacutedica se aprofundou criando uma condiccedilatildeo secular que viria a ter efeitos estruturais tambeacutem sobre o modo de organizaccedilatildeo e atuaccedilatildeo das diferentes religiotildees

De acordo com os dados do IBGE em 1940 952 da populaccedilatildeo brasileira era catoacutelica Em 1980 o nuacutemero havia decrescido para 89 da populaccedilatildeo Esse nuacutemero passou para 73 em 2000 decrescendo para 646 da populaccedilatildeo de acordo com o Censo de 2010

O fim da monopolizaccedilatildeo religiosa ocorrida com o iniacutecio da Repuacuteblica no fim do seacuteculo XIX ocasionou tambeacutem maior liberdade religiosa Os dados do IBGE (2000) apontam que cerca de 40 dos catoacutelicos brasileiros eram natildeo praticantes ou seja natildeo participavam ativamente das atividades eclesiais A natildeo-participaccedilatildeo natildeo indica todavia uma falta de atividade religiosa Como ser brasileiro estaacute ligado a ser catoacutelico faz parte da cultura brasileira denominar--se catoacutelico enquanto participa de reuniotildees espiacuteritas ou frequenta cultos no Candombleacute e Umbanda O resultado dessa maior liberdade religiosa bem como a maior liberdade para se considerar como pertencente a outras religiotildees ou mesmo sem-religiatildeo pode ser observada nos Censos das uacuteltimas deacutecadas Enquanto o Catolicismo decresceu de 952 em 1940 para 646 em 2010 as ldquooutras religiotildeesrdquo cresceram de 19 para 5 da populaccedilatildeo os ldquosem-religiatildeordquo saltaram de 02 para 81 de 1940 a 2010 e os evangeacutelicos cresceram de 26 para 222 da populaccedilatildeo nos uacuteltimos 70 anos

Por fim a secularizaccedilatildeo abre espaccedilos para que natildeo soacute novas religiotildees como tambeacutem novas organizaccedilotildees religiosas busquem espaccedilo e concorram pela fide-lizaccedilatildeo religiosa dos indiviacuteduos

A concessatildeo da liberdade religiosa e a separaccedilatildeo Igreja-Estado romperam definitivamente o monopoacutelio catoacutelico abrindo caminho para que outros grupos religiosos pudessem ingressar e se formar no paiacutes disputar e conquistar novos espaccedilos na sociedade adquirir legitimidade social e consolidar sua presenccedila institucional (MARIANO 20033)

Com o fim do monopoacutelio religioso e consequentemente a abertura para novas organizaccedilotildees religiosas possibilita-se a formulaccedilatildeo de distintos interesses religiosos respondendo a distintos interesses sociais A religiatildeo agrave medida que vai se autonomizando como esfera social com loacutegica proacutepria atua como elabo-

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radora dos interesses religiosos a partir da mateacuteria-prima dos interesses sociais dos distintos grupos permitindo por exemplo que distintos interesses sociais estejam ligados a um mesmo interesse religioso Uma vez que as organizaccedilotildees consigam elaborar interesses religiosos comuns capazes de transcender em certa medida as fronteiras dos interesses sociais - embora sem nunca lograr uma completa desvinculaccedilatildeo desses interesses - torna-se provaacutevel a adesatildeo de distintos grupos sociais a essas organizaccedilotildees e especialistas a fim de realizar esses interesses religiosos

Para exemplificarmos o efeito do pluralismo religioso observemos o cresci-mento das igrejas evangeacutelicas no Brasil nos uacuteltimos anos Os dados do Instituto Brasileiro de Planejamento Tributaacuterio (IBPT) apontam que existem no Brasil mais de 179 mil organizaccedilotildees religiosas evangeacutelicas registradas Somente em 2013 doze igrejas foram abertas por dia no Brasil cerca de 4400 novas organi-zaccedilotildees religiosas evangeacutelicas ao longo do ano Esse nuacutemero apresentou em 2014 crescimento de 52869 As organizaccedilotildees religiosas evangeacutelicas apresentam um faturamento de cerca de R$20 bilhotildees ao ano oriundo de diacutezimos venda de produtos e aplicaccedilotildees financeiras70

Essa nova configuraccedilatildeo religiosa no Brasil abre oportunidades para a anaacutelise da religiatildeo sob novas perspectivas uma vez que novos interesses religiosos e sociais ganham espaccedilo nas disputas por atenccedilatildeo nas organizaccedilotildees e especialistas religiosos

Dessa forma a nova configuraccedilatildeo religiosa brasileira demonstra que as transformaccedilotildees religiosas acompanham as transformaccedilotildees sociais mas ocorrem tambeacutem por mudanccedilas na proacutepria esfera religiosa e na capacidade de diferentes religiotildees organizarem distintos interesses e atenderem distintas demandas dos indiviacuteduos

Portanto compreender a configuraccedilatildeo religiosa brasileira eacute funccedilatildeo importante de todo aquele que deseja analisar como a religiatildeo influencia tanto o indiviacuteduo como a sociedade brasileira ao passo que tambeacutem eacute influenciada por eles

69 Disponiacutevel em httpwwwempresometrocombrSiteMetodologia70 Para mais informaccedilotildees sobre a arrecadaccedilatildeo das organizaccedilotildees religiosas evangeacutelicas ver httpexameabrilcombrbrasilem-um-ano-arrecadacao-de-igrejas-passou-dos-r-20-bi

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AMEacuteM MUacuteLTIPLOS DERIVADOS O MESMO CONCEITOAs diferentes traduccedilotildees de uma mesma raiz

AMEN MULTIPLE DERIVATIVES THE SAME CONCEPTDifferent translations of the same word

Rawderson Rangel71

RESUMOHaacute diversas expressotildees que se encontram no Novo Testamento utilizadas

com muita frequecircncia ainda hoje nas igrejas cristatildes cuja origem eacute o hebraico A proposta do presente artigo eacute analisar a conhecida expressatildeo ldquoAmeacutemrdquo repe-tida em oraccedilotildees e muitas vezes como resposta da congregaccedilatildeo ao pregador ou dirigente do culto Atraveacutes do estudo de diferentes vocaacutebulos tendo esta palavra em sua raiz a investigaccedilatildeo apresentaraacute possiacuteveis significados e sentidos para a expressatildeo que de forma consensual eacute definida simplesmente por ldquoassim sejardquo

Palavras-chave Ameacutem Hebraico Raiz verbal

ABSTRACTMany expressions found in the New Testament often used even today in

Christian churches have their origin in the Hebrew The purpose of this article is to analyze the familiar expression ldquoAmenrdquo repeated in prayers and often as a congregation response of to the preacher or gospel service responsible Through the study of different words having this word in their root the research will present possible meanings for the expression usually simply defined by ldquoLet it be sordquo

Keywords Amen Hebrew Verbal root

71 Bacharel em Teologia pelo Seminaacuterio Teoloacutegico Batista do Sul do Brasil (atual Faculdade Batista do Rio de Janeiro) RJ Brasil revalidado pela Faculdade Teoloacutegica Batista do Paranaacute em Curitiba (atual FABAPAR) PR Brasil Poacutes-graduado em Antigo Testamento tambeacutem pela FABAPAR PR Mestre em Teologia pela Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Paranaacute Cursou Hebraico Biacuteblico pela Israel Biblical Institute of Studies acreditado pela Universidade Hebraica de Jerusaleacutem Israel atualmente eacute estudante de Grego Biacuteblico pela mesma instituiccedilatildeo Escritor professor de Teologia e idiomas biacuteblicos missionaacuterio da Junta de Missotildees Mun-diais da Convenccedilatildeo Batista Brasileira - JMM da CBB em Moccedilambique Eacute professor do Instituto Teoloacutegico Baptista da Beira Sofala e Instituto Biacuteblico de Sofala ndash Moccedilambique E-mail rawdersonhotmailcombr

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INTRODUCcedilAtildeO O hebraico biacuteblico por ser um idioma antigo apresenta-se bastante complexo

com determinados caracteres e algumas formas gramaticais que hoje natildeo satildeo mais utilizadas tal complexidade pode ser diminuiacuteda se o estudante estiver atento a alguns detalhes que satildeo extremamente uacuteteis no estudo da liacutengua e a anaacutelise a partir de determinadas raiacutezes eacute uma delas Haacute muitas palavras de tronco comum que uma vez entendidas ajudam na memorizaccedilatildeo delas na compreensatildeo do sentido de uma expressatildeo e ateacute mesmo de um verso biacuteblico

O vocabulaacuterio da Biacuteblia hebraica eacute de aproximadamente oito mil palavras72 sendo que duas mil delas aparecem apenas uma vez no texto desse modo um bom dicionaacuterio biacuteblico eacute indispensaacutevel no estudo do Antigo Testamento Ao mesmo tempo todo esse vocabulaacuterio pode ser reduzido a mil e trezentas raiacutezes73 e a polissemia desse idioma torna o estudo das palavras e seu significado original relevante pois facilita a compreensatildeo de determinadas palavras ou expressotildees no texto hebraico Ela tem sido vista como uma soluccedilatildeo para os muacuteltiplos significados representados por uma uacutenica palavra Ana Ceciacutelia Cruz defende essa relaccedilatildeo tanto graacutefica quanto foneacutetica segundo essa autora esta eacute ldquo() uma relaccedilatildeo metafoacuterica que amplia um sentido baacutesico para outros mais abstratosrdquo74

Miles Van Pelt afirma que as primeiras cinquenta palavras mais frequentes permitem ao estudante reconhecer um pouco mais da metade (55) do total de palavras que ocorrem no Antigo Testamento hebraico Dominar as 641 palavras que ocorrem cinquenta ou mais vezes permitiraacute identificar mais de 80 das palavras75 Uma das razotildees para isso eacute a relaccedilatildeo entre estas e as suas raiacutezes

A palavra que seraacute analisada neste artigo tambeacutem pode ter muacuteltiplas tradu-ccedilotildees embora um sentido baacutesico Analisar a origem e o significado de ldquoAmeacutemrdquo eacute bastante interessante embora natildeo menos complexo quando comparada agraves de-mais liacutenguas semiacuteticas76 Sabe-se que ela existe desde tempos remotos tanto em hebraico como tambeacutem em aacuterabe (rsquoĀmīn) ldquoAmeacutemrdquo eacute referecircncia nas trecircs grandes religiotildees que surgiram no Oriente Meacutedio cristianismo islamismo e judaiacutesmo Assim como ldquoAleluiardquo essa palavra tambeacutem natildeo se traduz em nenhum idioma sendo compreendida por todas as culturas sob a influecircncia de pelo menos uma das religiotildees mencionadas anteriormente

72 FRANCISCO Edson Faria de In Liacutengua Hebraica Aspectos Histoacutericos e Caracteriacutesticas (2010)73 JOUumlON P MURAOKA T (2007) Gramaacutetica del Hebreo Biacuteblico sect40 ndash nota74 CRUZ A d Estratificaccedilatildeo linguiacutestica ampliaccedilatildeo semacircntica e polissemia em hebraico Revista Veacutertices 11 2011 p 4275 PELT Miles Van The vocabulary guide to biblical Hebrew 2003 p ix76 WILLIAM B EERDMANS PUBLISHING COMPANY (1974) Theological Dictionary of The Old Testament (Vol I) Paacutegs 292293

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1 AMEacuteM EM DIVERSAS CULTURASA palavra tem algumas caracteriacutesticas particulares em cada uma dessas

religiotildees apesar de natildeo estar incluiacuteda no Alcoratildeo āmīn eacute uma das mais im-portantes na oraccedilatildeo islacircmica usada em diferentes contextos principalmente na sua conclusatildeo77 o rabino Chanina em 225 dC afirmou que ldquoameacutemrdquo eacute um acroacutestico - a palavra eacute composta por trecircs consoantes que em hebraico sintetizam a frase ldquoDeus Rei Fielrdquo rsquoel melek e nersquoeman78 Pronunciar essa palavra no final da prece eacute segundo esse raciociacutenio uma declaraccedilatildeo espiritual de que o proacuteprio Deus vai agir jaacute no cristianismo quando se pergunta o significado de ldquoAmeacutemrdquo logo vem a resposta ldquoassim sejardquo Tambeacutem no cristianismo ela tem um conceito de encerramento conclusatildeo teacutermino sendo esta uma das uacuteltimas palavras do Novo Testamento encontrada em Apocalipse 2220 21

Independentemente do que esteja acontecendo em um culto nas igrejas evan-geacutelicas eacute comum ouvir-se um ldquoameacutemrdquo Eacute tatildeo comum no linguajar cristatildeo que se tornou inclusive uma pergunta ldquoAmeacutem irmatildeosrdquo A resposta vem a seguir ldquoAmeacutemrdquo A depender do contexto tem o sentido de ldquopode ser assimrdquo ldquocon-cordamrdquo ou ateacute mesmo ldquoeacute assim ou natildeo eacuterdquo Quando aparentemente natildeo haacute um assunto definido ou o dirigente ainda estaacute se organizando no puacutelpito surge a pergunta ldquoAmeacutemrdquo A resposta da congregaccedilatildeo eacute repetir ldquoAmeacutemrdquo Resta analisar se foi criada uma nova semacircntica

Em diversos lugares do mundo o ldquoameacutemrdquo identifica-se com a feacute Quando se termina o momento devocional e de oraccedilatildeo a palavra eacute repetida imediatamente uma vez que tem sido ensinada como significado de ldquoassim sejardquo No Dicionaacuterio Internacional de Teologia do Antigo Testamento no entanto lecirc-se que

Esse conceito tatildeo importante da doutrina biacuteblica eacute prova clara do signi-ficado biacuteblico de ldquofeacuterdquo em contraste com muitos conceitos populares do termo No acircmago do sentido da raiz estaacute a ideia de certeza Isso eacute susten-tado pela definiccedilatildeo de feacute do NT encontrada em Hebreus 11179

Esse dicionaacuterio relaciona a expressatildeo pistis com certeza e feacute algo que tambeacutem acontece em alguns versos traduzidos do hebraico pela LXX cuja raiz da palavra eacute ldquoameacutemrdquo 80 embora natildeo com uniformidade 81

77 AKASOY 200978 Strack amp BILLERBECK 1922 paacuteg 464 Apud ZINKAND 1982 p 279 rsquoāmīn in HARRIS ARCHER JR e WALTKE 199880 Dt 3220 Jeremias 92 entre outros81 ZINKAND 1982 op cit paacuteg 4

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2 ʾmN e SeUS DeRivaDOS Partindo da anaacutelise da sua raiz (que neste caso eacute ʾmn) e de acordo com o

contexto eacute possiacutevel perceber que a palavra ameacutem tem um sentido que vai aleacutem do significado convencional ʾmn pode ser traduzido do texto hebraico82 de diferentes maneiras mas normalmente relacionado a ldquoconfiarrdquo e ldquoacreditarrdquo Esta eacute tambeacutem a tese defendida por Flor83 ainda que a raiz apareccedila como verbo ou adjetivo

Embora essa palavra aqui estudada seja mais conhecida como uma interjeiccedilatildeo ela tambeacutem se encontra no original tanto em raiacutezes verbais como tambeacutem em substantivos e adjetivos reafirmando o significado de confianccedila e estabilidade Eacute possiacutevel que haja alguma dificuldade para identificaacute-la especialmente pelas variaccedilotildees caracteriacutesticas da gramaacutetica hebraica No entanto ao reconhececirc-la o texto seraacute enriquecido com as possibilidades de interpretaccedilatildeo

21 ʾmN NaS RaiacutezeS veRBaiS

A primeira vez que a palavra aparece no texto do Antigo Testamento eacute na passagem de Gecircnesis 15 quando Deus percebe que Abratildeo colocava em duacutevida que ele teria descendecircncia direta Nesse episoacutedio o patriarca afirma esperar que a sua descendecircncia seria a de Eliezer mas Deus ldquoimediatamenterdquo (hinnēh - Gecircnesis 154) apresenta-lhe as suas intenccedilotildees convidando-o gentilmente84 a sair da sua tenda e ver a quantidade de estrelas no ceacuteu como um exemplo da quantidade de descendentes que ele teria

Apoacutes essa conversa diz o texto em Gecircnesis 156 ldquoEle creu [hě ěʾmin] no Se-nhor e isso lhe foi imputado para justiccedilardquo A raiz do verbo em destaque eacute ʾ mn85 Uma vez que se encontra em hifil pode ser traduzido por ldquoele acreditourdquo ou ldquoele se firmou por uma convicccedilatildeo internardquo A mudanccedila de sentimento de Abratildeo foi fundamental para o desenrolar da histoacuteria de Israel conforme apresentado no Antigo Testamento Essa passagem inclusive eacute confirmada no Novo Testamen-

82 Salvo nota indicando o contraacuterio todas as passagens biacuteblicas em portuguecircs apresentadas na presente investigaccedilatildeo foram extraiacutedas da versatildeo Revista e Atualizada da Sociedade Biacuteblica do Brasil 199983 FLOR E N (Novembro de 2000) ldquoAmenrdquo in Old Testament liturgical texts a study of its meaning and later development as a plea for ecumenical understanding p 784 Sobre a expressatildeo que demonstra esse tratamento cordial e respeitoso por parte de Deus nesta passagem ver RANGEL Rawderson ldquoNatildeo estou mandando estou pedindo a partiacutecula de Suacuteplicardquo in Revista Teoloacutegica nuacutemero 6 ago ndash dez 2018 pp 114-125 Filo afirma que a conversa natildeo foi em um niacutevel de Deus para o homem mas sim entre amigos in PAGE T E (Ed) Philo (Vol VI) London England William Heinemann Ltd Harvard University Pressp 311 85 Na LXX a traduccedilatildeo utiliza a palavra episteusen da mesma raiz da palavra feacute usada em Hebreus 11

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to 86 e nessas passagens todos os versos traduzem o ʾmn por pisteuo seguindo a LXX no aoristo enfatizando o fato da ocorrecircncia natildeo da sua natureza

Ainda como verbo no contexto de ldquoacreditarrdquo e ldquoconfiarrdquo na histoacuteria de Israel ʾmn tambeacutem aparece como uma negaccedilatildeo agrave feacute ou a crer Quando Moiseacutes estaacute diante de Deus no monte Sinai recebendo a missatildeo de libertar o povo de Israel do Egito ele pergunta ldquo[] Mas eis que natildeo creratildeo [yaʾmīnū] nem acudiratildeo agrave minha voz []rdquo (Ecircxodo 41) A falta de feacute ou confianccedila eacute tambeacutem evidenciada na passagem em que o povo de Israel teme entrar na terra prometida diante do testemunho dos espias que foram enviados a Canaatilde ldquo[] Ateacute quando me provocaraacute este povo e ateacute quando natildeo creraacute [lōʾ -yaʾ ămicircnucirc] em mim a despeito de todos os sinais que fiz no meio delerdquo87 (Nuacutemeros 1411)

O conhecido texto de Habacuque 24 eacute tambeacutem uma interessante passagem relacionada a crer e confiar ldquo() mas o justo em sua feacute [beʾ ĕmucircnāṯocirc] viveraacuterdquo [trad do autor] 88 Outra possibilidade para Habacuque 24 o justo por aquilo que ele crecirc viveraacute A feacute tem seu fundamento naquilo que estaacute estabelecido e por isso eacute digno de creacutedito

Isaiacuteas 79 apresenta um curioso jogo de palavras ldquo[] se o natildeo crerdes certamente natildeo permanecereisrdquo No hebraico os verbos crer e permanecer satildeo palavras homoacutegrafas e homoacutefonas taʾămicircnucirc e tēʾāmēnucirc reforccedilando a ideia Ambos com a raiz ʾmn tecircm o sentido de fidelidade feacute e acreditar

Acosta Rosales apresenta um estudo no qual apenas analisa essa palavra em qal 89 Mas haacute diversos outros exemplos na Biacuteblia que relacionam ʾmn com confianccedila no particiacutepio a palavra eacute usada para expressar a confianccedila de uma crianccedila nos braccedilos de sua matildee 90 ou de seus cuidadores (Nuacutemeros 1112 91 e 2Reis 101 92) em Isaiacuteas 604 93 no Nifal eacute possiacutevel tambeacutem relacionar-se o verbo a cuidadores com sentido de trazer seguranccedila e firmeza

86 Romanos 43 Gaacutelatas 36 Tiago 22387 A traduccedilatildeo correta seria creratildeo yarsquomīnū88 A palavra feacute em Habacuque 24 na LXX eacute traduzida por pistis no Genitivo singular feminino 89 ROSALES A D Re-discovering the semantics of ןמא in qal Theologica Xaveriana 67 (Grammar Philology Semantics) 431-46090 rsquoāman in WILLIAM B EERDMANS PUBLISHING COMPANY 197491 Nuacutemeros 1112 ldquoConcebi eu porventura todo este povo Dei-o eu agrave luz para que me digas Leva-o ao teu colo como a ama [particiacutepio] leva a crianccedila que mama agrave terra que sob juramento prometeste a seus paisrdquo 92 2Reis 101 ldquoAchando-se em Samaria setenta filhos de Acabe Jeuacute escreveu cartas e as enviou a Samaria aos chefes da cidade aos anciatildeos e aos tutores [particiacutepio] dos filhos de Acabe dizendordquo 93 Isaiacuteas 604 ldquoLevanta em redor os olhos e vecirc todos estes se ajuntam e vecircm ter contigo teus filhos chegam de longe e tuas filhas satildeo trazidas [Nifal imperfeito 3feminina plural] nos braccedilos

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22 ʾmN COmO SUBSTaNTivO e aDjeTivO

Ainda relacionada agrave credibilidade a palavra utilizada para nomear as vigas sobre as portas do templo que deram sustentaccedilatildeo agrave construccedilatildeo tem em sua raiz ʾmn em 2Reis 1816 encontramos a palavra traduzida por ombreiras 94 das portas do templo de Israel95 Na LXX a traduccedilatildeo eacute de uma palavra derivada de stērizō algo que daacute estabilidade Quando se avalia toda a estrutura do templo evidencia-se que tais ombreiras natildeo poderiam ser algo sem uma firmeza e que garantissem seguranccedila

Como sustentaccedilatildeo e credibilidade relacionadas a pessoas ʾmn encontra-se em Ecircxodo 1712 na conhecida passagem em que os filhos de Israel perdiam a batalha quando Moiseacutes baixava as suas matildeos Percebendo isso Aratildeo e Hur seguraram os seus braccedilos e ldquo() assim lhe ficaram as matildeos firmes [ʾ ĕmucircnacirc] ateacute ao pocircr-do-solrdquo96 Com a firmeza veio a certeza da vitoacuteria Novamente atraveacutes da raiz o texto atribui agrave atitude desses homens o sinocircnimo de seguranccedila e firmeza

Essa credibilidade se observa tambeacutem como sinocircnimos de guardas e segu-ranccedilas porteiros (1Crocircnicas 922) pessoas responsaacuteveis por atividades diversas em quem se depositou total confianccedila (1Crocircnicas 931 2Crocircnicas 3412)

Haacute vaacuterios substantivos que satildeo derivados da raiz ʾ mn e todos eles transmitem a ideia baacutesica de ldquosuporte firmezardquo ou ldquoconfirmaccedilatildeordquo Haacute variantes da palavra traduzidas por ldquopai adotivordquo algueacutem que apoia e nutre um grupo familiar dando-lhe estabilidade e firmeza A forma feminina com essa raiz ʾomenet significa ldquomatildee adotivardquo e inclui a ideia de ldquonutrirrdquo ldquofortalecerrdquo Outra palavra que demonstra essa firmeza agora na arte eacute ʾuman denota ldquoum operaacuterio habi-lidosordquo traduzido por ldquoartesatildeordquo97

O texto biacuteblico apresenta uma relaccedilatildeo curiosa entre o homem e ʾmn falando em termos da natureza humana ele eacute falho e inseguro pode vacilar Os adjetivos relacionados com ʾ mn atribuiacutedos aos seres humanos nunca englobam a sua tota-lidade mas sim aspectos e momentos pontuais que viveram Nem mesmo a Joacute que recebeu os elogios do Senhor por sua integridade eacute atribuiacutedo esse adjetivo

No entanto eacute a Deus que ʾ āman eacute atribuiacutedo Para Flor isso acontece especial-mente no livro de Salmos (mas natildeo soacute) porque Deus eacute imutaacutevel estaacutevel e firme

94 A mesma palavra pode ter dois significados diferentes um se refere a m ezuwzah (laterais) enquanto que a palavra de 2 Reis 1816 se refere agrave parte superior da porta A LXX traduz por estērigmena 95 2Reis 1816 ldquoFoi quando Ezequias arrancou das portas do templo do Senhor e das ombreiras o ouro de que ele rei de Judaacute as cobrira e o deu ao rei da Assiacuteriardquo96 A LXX traduz este texto com a mesma ideia97 FLOR E N op cit p 15

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enquanto o ser humano frequentemente eacute fraco instaacutevel e inconstante98 Por essa razatildeo acreditando nisso em Lamentaccedilotildees 323 se lecirc a respeito das misericoacuterdias de Deus ldquo() renovam-se cada manhatilde Grande eacute a tua fidelidade [ʾ ĕmucircnātekā]rdquo

A palavra do Senhor tambeacutem eacute tida por fiel e verdadeira digna de credibili-dade e aiacute tambeacutem se encontra a raiz da palavra em questatildeo O salmo 119 nos versos 75 86 90 138 o poeta homenageia a Lei de Deus qualificando-a de fiel e verdadeira

3 āʾmaN e ldquoaSSim Sejardquo

A palavra ldquoAmeacutemrdquo aparece vinte e quatro vezes no Antigo Testamento (doze delas apenas em Deuteronocircmio 2715ss) Devido agrave variedade de possibilidades torna-se difiacutecil identificar o seu real sentido no hebraico99

Haacute textos que sugerem a expressatildeo ldquoassim sejardquo em sua traduccedilatildeo com uma conotaccedilatildeo de confirmaccedilatildeo daquilo que estava sendo dito como nos versos de Jeremias 115100 286101 e 1Reis 136 37102 Nesses textos eacute possiacutevel interpretar que Deus daria a sua becircnccedilatildeo ao que jaacute havia sido planejado e dito Nessas passagens a referecircncia eacute feita aos oradores somente porque eles reconheceram o que jaacute havia sido determinado por YHVH e confirmaram a afirmaccedilatildeo Suas declaraccedilotildees podem significar ldquoPrecisamente Eu sinto o mesmo a respeito que Deus o faccedilardquo103 Eacute como uma aceitaccedilatildeo do que foi estabelecido natildeo uma esperanccedila em algo que aconteceria

Existem tambeacutem ao menos trecircs passagens nas quais a palavra ldquoameacutemrdquo estaacute em uma situaccedilatildeo diferente da mencionada anteriormente todas elas relacionadas a uma maldiccedilatildeo contra a pessoa envolvida em Deuteronocircmio 2715-26 (declara-ccedilatildeo de maldiccedilotildees no caso do natildeo cumprimento das leis e estatutos estabelecidos por Deus) em Nuacutemeros 522104 (declaraccedilatildeo solene acontecia no momento em que

98 ibidem p 1799 WILLIAM B EERDMANS PUBLISHING COMPANY op cit p 320100 Jeremias 115 ldquoPara que confirme o juramento que fiz a vossos pais de lhes dar uma terra que manasse leite e mel como se vecirc neste dia Entatildeo eu respondi e disse ameacutem oacute Senhorrdquo101 Jeremias 286 ldquoDisse pois Jeremias o profeta Ameacutem Assim faccedila o Senhor confirme o Senhor as tuas palavras com que profetizaste e torne ele a trazer da Babilocircnia a este lugar os utensiacutelios da Casa do Senhor e todos os exiladosrdquo102 1Reis 136 37 ldquoEntatildeo Benaia filho de Joiada respondeu ao rei e disse Ameacutem Assim o diga o Senhor Deus do rei meu senhor Como o Senhor foi com o rei meu senhor assim seja com Salomatildeo e faccedila que o trono deste seja maior do que o trono do rei Davi meu senhorrdquo103 WILLIAM B EEDERMANS PUBLISHING op cit pp 320104 Nuacutemeros 522 ldquoE esta aacutegua amaldiccediloante penetre nas tuas entranhas para te fazer inchar o ventre e te fazer descair a coxa Entatildeo a mulher diraacute Ameacutem Ameacutemrdquo

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a mulher era confrontada sobre o adulteacuterio) e em Neemias 513105 (compromisso contra a usura) Por serem maldiccedilotildees que recairiam sobre quem natildeo cumprisse a sua palavra ou imprecaccedilatildeo sobre a pessoa condenada a expressatildeo sugere uma declaraccedilatildeo solene de que aqueles castigos iriam acontecer106 Seria o conhecido ldquoassim sejardquo pronunciado em declaraccedilatildeo solene de aceitaccedilatildeo do castigo contra aquele que estava assumindo o compromisso

Em algum momento a expressatildeo passou a ser tambeacutem usada na Doxologia em resposta da congregaccedilatildeo diante de uma declaraccedilatildeo de Deus em Neemias 86 a congregaccedilatildeo diz ldquoameacutem ameacutemrdquo levantando as suas matildeos Natildeo se sabe dizer se este jaacute era um costume seguido (conforme 1Crocircnicas 1636) ou se passou a ser regular a partir daquele momento107 Sobre os cacircnticos do salteacuterio a palavra aparece no final dos primeiros quatro livros (Salmos 4113 7219 8952 10648)

CONCLUSAtildeO Os exemplos apresentados ilustram a importacircncia de o estudante do hebraico

biacuteblico analisar as palavras a partir de suas raiacutezes para poder interpretar melhor o texto biacuteblico sempre considerando prioritariamente o contexto que eacute deter-minante na interpretaccedilatildeo108 Dificilmente haveraacute um uacutenico significado oriundo de uma uacutenica raiz portanto conhecer os seus significados seraacute uma grande contribuiccedilatildeo no estudo do texto biacuteblico

Quando um hebreu ouvia as vaacuterias palavras derivadas da raiz ʾmn a ideia baacutesica que lhe vinha agrave mente era aparentemente ldquoconstacircnciardquo ldquoestabilidaderdquo Quando se referiam a objetos significavam ldquocontinuidaderdquo quando relacionadas a pessoas ldquoconfiabilidaderdquo Outros derivados da raiz satildeo ldquodurabilidaderdquo ldquoesta-bilidaderdquo ldquoverdaderdquo ldquofeacuterdquo ldquocompletuderdquo ldquoaquele que protegerdquo109 No entanto Deus eacute aquele que plenamente tem essas virtudes e atributos o ser humano tem essas qualidades ateacute certo ponto devido agrave sua limitaccedilatildeo e fragilidade

Quanto agrave palavra ldquoameacutemrdquo que proveacutem da raiz que expressa todas as qualida-des mencionadas anteriormente a expressatildeo tem o sentido de feacute e confianccedila em algo previamente estabelecido mas tambeacutem expressa uma certeza e confianccedila 105 Neemias 513 ldquoTambeacutem sacudi o meu regaccedilo e disse Assim o faccedila Deus sacuda de sua casa e de seu trabalho a todo homem que natildeo cumprir esta promessa seja sacudido e despojado E toda a congregaccedilatildeo respondeu Ameacutem E louvaram o Senhor e o povo fez segundo a sua promessardquo106 Barry J D Mangum D Brown D R Heiser et al Faithlife Study Bible (Dt 2715) Bellingham WA Lexham Press 2016107 WILLIAM B EEDERMANS PUBLISHING op cit pp 321108 Osborne (2009 paacutegs 101-139 especialmente as paacutegs 104-108) trata do exagero que muitos estudiosos da Biacuteblia datildeo agraves palavras analisadas de forma isolada descontextualizada109 WILLIAM B EEDERMANS PUBLISHING op cit pp 323

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quanto ao futuro Quando observada no Antigo Testamento ela eacute feita de forma solene e consciente e por isso mesmo raramente eacute encontrada no texto

A expressatildeo que sugere uma ratificaccedilatildeo eacute cuidadosamente aplicada nas paacutegi-nas da Biacuteblia natildeo sendo uma palavra dita em qualquer momento ou por qualquer situaccedilatildeo A conclusatildeo de Lande eacute que ldquoameacutemrdquo eacute usado como confirmaccedilatildeo de uma situaccedilatildeo muito especial e que a expressatildeo natildeo pertence agrave fala cotidiana110 Hulst expressa a mesma opiniatildeo ao afirmar ldquoA palavra ameacutem natildeo pertence agraves palavras do uso diaacuterio constante eacute mantido para uso em situaccedilotildees muito especiais e aleacutem disso raramente ocorre111 Por sua raridade no texto biacuteblico os personagens do Antigo Testamento tinham consciecircncia do seu sentido e o respeitavam

No AT a palavra eacute usada tanto pelo indiviacuteduo quanto pela comunidade para 1) confirmar a aceitaccedilatildeo de uma tarefa designada por homens mas a sua exe-cuccedilatildeo envolve a vontade de Deus (1Reis 136) 2) ratificar a aplicaccedilatildeo pessoal de uma ameaccedila ou maldiccedilatildeo divina (Nuacutemeros 522 Deuteronocircmio 2715ss Jeremias 115 Neemias 513) e 3) para declarar o louvor a Deus em resposta a uma doxologia (1Crocircnicas 1636 Neemias 86) como mostram os textos finais dos primeiros quatro livros dos Salmos (4113 7219 8952 10648)112

110 LANDE 1949 paacuteg 112 apud FLOR 2000 pp 16 17111 HULST 1953 p50 apud FLOR E N ldquoAmenrdquo in Old Testament liturgical texts a study of its meaning and later development as a plea for ecumenical understanding University of South Africa novembro de 2000 p17112 RENGSTORF ἀμήν in Wm B Eerdmans Publishing Co 1964 paacuteg 335

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A ANAacuteLISE DO DISCURSO NA INTERPRETACcedilAtildeO BIacuteBLICA

DISCOURSE ANALYSIS IN BIBLICAL INTERPRETATIONMe Thaiacutes de Oliveira Viriacutessimo113

Universidade Federal do Rio de Janeiro

RESUMO A Anaacutelise do Discurso tida como relevante para a interpretaccedilatildeo dos inuacutemeros

gecircneros textuais existentes eacute uma teoria linguiacutestica com extensiva abrangecircncia e aplicabilidade Sua importacircncia tem sido reconhecida inclusive por aqueles que manuseiam textos antigos entre os quais a Biacuteblia eacute encontrada Por ser ainda escassa a interaccedilatildeo entre estudos da linguagem e teologia no ambiente acadecircmico brasileiro objetiva-se neste artigo apresentar a Anaacutelise do Discurso como ferramenta possiacutevel de interpretaccedilatildeo biacuteblica Para isso interpretou-se Evangelho de Marcos 11-4 por meio do meacutetodo desenvolvido por Viriacutessimo (2018) sob os pressupostos da linguiacutestica textual (HORTA 1991 WALLACE 2009 GUTHRIE DUVALL 1998 OLSSON 2013) A pesquisa resultou na compilaccedilatildeo de informaccedilotildees criacuteticas acerca do texto biacuteblico

Palavras-chave Anaacutelise do Discurso Novo Testamento Grego koineacute Evan-gelho de Marcos

ABSTRACTConsidered as relevant for interpreting many existing textual genres Discour-

se Analysis is a linguistic theory with wide scope and applicability Even those who handle Ancient texts among which the Bible is found have recognized its importance As the interaction between studies in languages and Theology in Brazilian colleges is still rare this paper aims to present Discourse Analysis as a tool for biblical interpretation Using the method developed by Viriacutessimo (2018) the Gospel of Mark 11-4 was observed through linguistic assumptions (HORTA 1991 WALLACE 2009 GUTHRIE DUVALL 1998 OLSSON 2013) As a result it was developed a critical compilation of informations about the text

Keywords Discourse Analysis Biblical interpretation New Testament Koine Greek Gospel of Mark

113 Mestre em Letras Claacutessicas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro Possui tambeacutem os tiacutetulos de Licenciada em Portuguecircs-Grego pela supracitada instituiccedilatildeo e de Especialista em Antropologia Intercultural pelo Centro Universitaacuterio de Anaacutepolis (UniEvangeacutelica) Email virissimoprotonmailcom

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1 INTRODUCcedilAtildeOEacute lugar comum afirmar que nenhuma outra obra literaacuteria foi e permanece sen-

do tatildeo citada comentada traduzida e questionada na histoacuteria da humanidade como a Biacuteblia ndash coletacircnea de livros sagrados para o cristianismo e igualmente respeitada por outros segmentos religiosos globais114 A influecircncia da Biacuteblia eacute notoacuteria inclusive no que se refere agrave formaccedilatildeo cultural brasileira Suas histoacuterias inspiraram a arquitetura a exemplo do Redentor de braccedilos abertos sobre a Baiacutea de Guanabara a literatura como os personagens machadianos Esauacute e Jacoacute a muacutesica conforme a mistura dos amores poeacuteticos cantada por Renato Russo em seu Monte Castelo

Ainda assim a abordagem da Biacuteblia como um objeto de estudo suscetiacutevel ao escrutiacutenio por meacutetodos multidisciplinares continua sendo miacutenima no espaccedilo acadecircmico nacional Eacute certo que avanccedilos promissores precisam ser destacados nessa aacuterea como o recente ldquoEstudos Biacuteblicos em Foco I Congressordquo evento promovido pelo Instituto de Letras da UERJ em novembro de 2019 Contudo faz-se indispensaacutevel natildeo apenas a criaccedilatildeo mas a manutenccedilatildeo de iniciativas de pesquisas biacuteblicas fora dos ambientes confessionais de reflexatildeo

A promoccedilatildeo pois de uma metodologia de pesquisa ancorada na Anaacutelise do Discurso destacando-se a sua utilidade no ensino de liacutengua e teologia eacute a linha de chegada que se pretende alcanccedilar com esta publicaccedilatildeo Para tal o artigo foi organizado nas seguintes seccedilotildees 2 Anaacutelise do Discurso em que conceitos fundamentais acerca do assunto seratildeo apresentados 3 Metodologia em que o meacutetodo proposto seraacute passo a passo descrito numa siacutentese teoacuterica e exemplificado com sua aplicaccedilatildeo em Segundo Marcos 11-4 conforme os itens subsequentes ndash 31 Contextualizaccedilatildeo 32 Etapas de anaacutelise 33 Notas e 34 Interpretaccedilatildeo e 4 Consideraccedilotildees finais em que se registraraacute a importacircncia do diaacutelogo entre as Ciecircncias da Linguagem e a Teologia

2 ANAacuteLISE DO DISCURSOA Anaacutelise do Discurso (doravante AD) eacute um quadro teoacuterico com vaacuterias pos-

sibilidades de aplicaccedilatildeo visto que nele podem ser considerados na anaacutelise de

114 O islamismo por exemplo tem registrado no Alcoratildeo a validade da Toraacute e da Biacuteblia como escrituras inspiradas por Deus Alguns versiacuteculos em que isso pode ser percebido satildeo ldquoEle te revelou (oacute Mohammad) o Livro (paulatinamente) com a verdade corroborante dos anteriores assim como havia revelado a Toraacute e o Evangelhordquo (33) ldquoDize Cremos em Allah no que nos foi revelado no que foi revelado a Abraatildeo a Ismael a Isaac a Jacoacute e agraves tribos e no que do Senhor foi concedido a Moiseacutes a Jesus e aos profetas natildeo fazemos distinccedilatildeo alguma entre eles porque somos para Ele muccedilulmanosrdquo (384) ldquoE se tivessem sido observantes da Toraacute do Evangelho e de tudo quanto lhes foi revelado por seu Senhor alimentar-se-iam como que estaacute acima deles e do que se encontra sob seus peacutes [hellip]rdquo (566)

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um texto os seus aspectos extralinguiacutesticos (contexto de produccedilatildeo tipografia meio de apresentaccedilatildeo etc) paralinguiacutesticos (pontuaccedilatildeo entonaccedilatildeo atos de fala gecircnero textual etc) e linguiacutesticos (ordem lexical nominalizaccedilatildeo estilo etc) (LOUW 1992 p18) Mesmo textos antigos com sua exiguidade de formas podem ser observados agrave luz da AD quando definida como ldquoum processo de investigaccedilatildeo pelo qual algueacutem examina a forma e a funccedilatildeo de todas as partes e niacuteveis de um discurso escrito com o objetivo de melhor compreender tanto as partes como o todo daquele discursordquo (GUTHRIE 2001 p 255 traduccedilatildeo nossa)115 Contudo para melhor compreensatildeo do que eacute a AD faz-se necessaacuterio definir o que se entende como discurso

Funcionando ldquoao mesmo tempo como referindo objetos empiacutericos (lsquohaacute discursosrsquo) e como algo que transcende todo ato de comunicaccedilatildeo particular (lsquoo homem eacute submetido ao discursorsquo)rdquo (MAINGUENEAU 2015 p 23) ldquodiscursordquo eacute um termo polivalente Por um lado em associaccedilatildeo a ldquoobjetos empiacutericosrdquo refere-se a ldquoum conceito superordenador no que diz respeito agraves questotildees tradicionais dos filoacutelogos e dos literatosrdquo por abranger ldquotoda uma variedade de gecircneros literaacuterios de registros de niacuteveis de textualizaccedilatildeo das obras bem como as distinccedilotildees formais entre poesia e prosardquo (BONDARCZUK 2017 p 61) Por outro lado extrapolando o ato comunicativo discurso eacute ldquoum processo e natildeo um objeto apresentando um movimento que tem sua dinacircmica proacutepria (ou dyacutenamis) e que por sua vez envolve a negociaccedilatildeo de significado entre os interlocutoresrdquo (BONDARCZUK 2017 p 61) A proacutepria etimologia da palavra mostra que discurso ldquotem em si a ideia de curso de percurso de correr por de movimentordquo sendo assim ldquopalavra em movimento praacutetica de linguagem com o estudo do discurso observa-se o homem falandordquo (ORLANDI 2000 p 15)

Frente a tal complexidade a AD se configura como uma aacuterea de estudos da linguagem que perpassa procedimentos de anaacutelise linguiacutestica tradicionais chegando aos campos de atuaccedilatildeo das teorias linguiacutesticas modernas No que diz respeito aos estudos biacuteblicos somam-se deacutecadas de aplicaccedilatildeo da AD com propoacutesitos diversos ndash desde a traduccedilatildeo da Biacuteblia ateacute a interpretaccedilatildeo desta propriamente dita Porter (2015 p 134) identifica cinco tipologias de AD desen-volvidos para esses fins (1) a Sulafricana (2) a da Sociedade Internacional de Linguiacutestica (Summer Institute of Linguistics SIL) (3) uma abordadem ecleacutetica (4) a amparada na Linguiacutestica Sistecircmico-Funcional e (5) a Continental Euro-peia116 Como se veraacute adiante eacute nessa uacuteltima tipologia em que o meacutetodo a ser apresentado foi ancorado

115 ldquoa process of investigation by which one examines the form and function of all the parts and levels of a written discourse with the aim of better understanding both the parts and the whole of that discourserdquo116 Para maiores detalhes cf Breve histoacuterico entre Anaacutelise do Discurso e os estudos do Novo Testamento subcapiacutetulo da dissertaccedilatildeo de mestrado da presente autora (VIRIacuteSSIMO 2018)

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3 METODOLOGIAA Anaacutelise do Discurso Continental Europeia especificamente nos trabalhos

desenvolvidos pela escola escandinava eacute base dessa metodologia porque sendo sua ecircnfase o texto escrito o que com ela objetiva eacute o esclarecimento das relaccedilotildees de conteuacutedo entre as partes do texto explicando-as em termos da proacutepria liacutengua original Por isso eacute comum essa tipologia ser comparada agrave Linguiacutestica Textual e conforme o teoacutelogo e analista do discurso sueco Birger Olsson ldquouma anaacutelise linguiacutestico-textual eacute um componente baacutesico de todas as exegesesrdquo117 (OLSSON 1985 p 107 apud GUTHRIE 2001 p 256 traduccedilatildeo nossa)

Em suma na tipologia Continental Europeia segundo a elaboraccedilatildeo que Reed (1996) faz das formulaccedilotildees de David Hellholm professor emeacuterito da Faculdade de Teologia da Universidade de Oslo

a anaacutelise do discurso estaacute amplamente preocupada com a comunicaccedilatildeo (Ausdruck) dos signos (Zeichn) por um autorfalante (Sender) e o efeito (Appell) que eles tecircm em um leitorouvinte (Empfaumlnger) Tais signos representam arbitrariamente (Darstellung) coisas como objetos assunto e circunstacircncias (Gegenstaumlnde und Sachverhalte) dos mundos externo e interno dos textos Isso eacute basicamente o que a parte de anaacutelise do termo ldquoanaacutelise do discursordquo envolve (REED 1996 p 225 traduccedilatildeo nossa)118

Feitas tais consideraccedilotildees sobre a tipologia empregada cabe dizer que as subseccedilotildees a seguir estatildeo divididas em explicaccedilatildeo do processo e a aplicaccedilatildeo a fim de exemplificaacute-lo no corpus neotestamentaacuterio

31 CONTEXTUALIZACcedilAtildeO

O primeiro passo da contextualizaccedilatildeo do corpus eacute a leitura integral de uma traduccedilatildeo jaacute existente sempre que disponiacutevel da obra em que ele se encontra A versatildeo biacuteblica aqui consultada foi a Almeida Revista e Atualizada (seguidamente ARA) em funccedilatildeo de nela ser respeitada ldquona medida do possiacutevel a forma da liacutengua em que se encontra a mensagem originalrdquo (BARNWELL 2011 p 15) Ademais no estudo da Biacuteblia eacute oportuna a leitura em diferentes versotildees para comparaccedilatildeo ldquotraduccedilotildees entre as quais vocecirc consiga perceber os pontos de divergecircnciardquo (FEE STUART 2011 p 43) e caso o pesquisador assim queira

117 ldquoA text-linguistic analysis is a basic component of all exegesisrdquo118 ldquoDiscourse analysis is broadly concerned with the communication (Ausdruck) of signs (Zeichen) by an authorspeaker (Sender) and the effect (Appell) they have on a readerlistemer (Empfaumlnger) Such signs arbitrarily represent (Darstellung) such things as objects subject matter and circumstances (Gegenstaumlnde und Sachverhalte) of the external and internal worlds of the texts This is largely what the analysis part of the term lsquodiscouse analysisrsquo entailsrdquo

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fazer sugere-se que essa leitura comparativa esteja focada no corpus propria-mente dito

No mesmo passo da leitura realiza-se uma pesquisa histoacuterico-literaacuteria e formula-se uma redaccedilatildeo a respeito de questotildees gerais como autoria dataccedilatildeo gecircnero puacuteblico alvo entre outras informaccedilotildees que o pesquisador julgar perti-nentes Para este exemplar consultou-se o livro Introduccedilatildeo ao Novo Testamento (CARSON MOO MORRIS 1997) e a partir dele expandiu-se a bibliografia Eacute profiacutecuo que o pesquisador jaacute nessa etapa comece a estabelecer suas convicccedilotildees a respeito das questotildees gerais pontuando em seu texto quais variedades satildeo-lhe mais coerentes no todo conforme o resultado a seguir

ΚΑΤΑ ΜΑΡΚΟΝ como apresenta a 5ordf ediccedilatildeo de The Greek New Testament (ALAND 2014) traduzido como Segundo Marcos refere-se ao tiacutetulo atribuiacutedo pela tradiccedilatildeo eclesiaacutestica ao segundo evangelho da ordem canocircnica Contudo a nomenclatura mais popular para a obra eacute a de Evangelho de Marcos ou sim-plesmente Marcos isso por dois fatores Em primeiro lugar os quatro escritos dedicados agrave vida e ao serviccedilo de Jesus satildeo tradicionalmente tidos como ldquoevan-gelhordquo ndash palavra extraiacuteda justamente do primeiro versiacuteculo de Marcos Eacute vaacutelido dizer que Marcos esteve agrave margem dos estudos neotestamentaacuterios por muito tempo possivelmente em funccedilatildeo de ser esse o evangelho de menor extensatildeo (16 capiacutetulos em comparaccedilatildeo aos 28 de Mateus 24 de Lucas e 21 de Joatildeo) Jaacute nos dias atuais o relato tem ganhado proeminecircncia por ser o mais antigo de que se dispotildee acerca de Jesus tendo servido como base para os textos mateano e lucano (PAGOLA 2013 p 11)

A outra razatildeo pela qual a obra tem o tiacutetulo exposto deve-se ao fato de a primeira atribuiccedilatildeo de um suposto Marcos como autor do livro datar do II seacutec Euseacutebio historiador cristatildeo do IV seacutec dedica boas porccedilotildees de seu livro Histoacuteria Eclesiaacutestica (326 d C) discutindo a formaccedilatildeo do cacircnone evangeacutelico Ao escre-ver acerca de Segundo Marcos Euseacutebio primeiramente registra o depoimento de um presbiacutetero testemunhado por Papias bispo da Friacutegia por volta de 120 d C o qual dizia que embora natildeo tivesse ouvido e seguido diretamente a Jesus Marcos veio a escrever sobre suas accedilotildees por ter sido disciacutepulo e inteacuterprete do apoacutestolo Pedro (CESAREacuteIA III 39 15) Euseacutebio citaria ainda outros Pais da Igreja como Irineu (185 d C) e Clemente (195 d C) e justificaria a criaccedilatildeo do texto em muito pela insistecircncia da comunidade para que um relato evangeacutelico fosse escrito

A figura desse Marcos segundo o testemunho biacuteblico (TENNEY 2008 v 4 p 117) poderia ser construiacuteda a partir da fuga de Pedro da prisatildeo o apoacutestolo

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logo se dirigiu ldquoagrave casa de Maria matildee de Joatildeo tambeacutem chamado Marcos onde muita gente se havia reunido e estava orandordquo (Atos dos Apoacutestolos 1212 - ARA) Marcos cujo nome hebraico era Joatildeo parece ter sido um jovem financeiramente abastado levando-se em conta o fato de sua matildee acolher a receacutem-nascida co-munidade cristatilde em sua proacutepria casa pondo inclusive servos agrave disposiccedilatildeo dos seus integrantes (Atos dos Apoacutestolos 1213) Um detalhe interessante sobre a figura de Maria matildee de Marcos eacute seu provaacutevel status de viuacuteva uma vez que a propriedade era considerada como dela o que seria inconcebiacutevel agrave eacutepoca caso o marido ainda vivesse

O valor da mulher oriental no periacuteodo de Jesus estava ligado agrave fecundidade e ao lar natildeo se comparando ao homem na perspectiva da religiatildeo (JEREMIAS 1983 p 493) Contudo o papel desempenhado por Maria junto a essa comuni-dade cristatilde chama ainda a atenccedilatildeo para a importacircncia de natildeo se subestimar a atuaccedilatildeo das mulheres no ambiente cristatildeo natildeo apenas no sustento dos evange-lizadores mas sobretudo na divulgaccedilatildeo da mensagem de Jesus desde os dias em que o Nazareno iniciou sua missatildeo na Galileia Os registros evangeacutelicos mostram Jesus sempre disposto a posicionar a figura da mulher dentro do vindouro Reino de Deus dando-lhe voz e importacircncia ndash tanto por meio dos diaacutelogos estabelecidos com mulheres como por paraacutebolas contadas cujo enredo as tinha como personagens

Joatildeo Marcos tambeacutem possuiacutea parentesco com o proeminente liacuteder cristatildeo Barnabeacute (Colossenses 410) que o levou em sua primeira viagem missionaacuteria com Paulo (Atos dos Apoacutestolos 135) Entretanto agrave eacutepoca da empreitada Joatildeo acabou retornando a Jerusaleacutem (Atos dos Apoacutestolos 1313) Os motivos dessa desistecircncia satildeo desconhecidos sabe-se no entanto que eles foram prejudiciais a ponto de separar Paulo e Barnabeacute nas viagens posteriores (Atos dos Apoacutestolos 1537-39a) Tempos depois o jovem viria a ser considerado com respeito por Paulo aquele que antes o rejeitara (Colossenses 410 1Timoacuteteo 411 Filemom 24) Tambeacutem Pedro diria ldquoMarcos meu filhordquo (1Pedro 513) ao citaacute-lo como companheiro na chamada ldquoBabilocircniardquo ndash provavelmente Roma

Haacute quem infira ldquoassinaturas ao peacute do quadrordquo ou seja evidecircncias autorais textuais deixadas no proacuteprio evangelho (POHL 1998) Um exemplo eacute o excerto de Marcos 1017-22 o qual se refere ao encontro de Jesus com um homem rico tambeacutem relatado em Mateus 1916-22 e Lucas 1818-23 Para alguns estudiosos eacute sugerido um testemunho pessoal no versiacuteculo 21 ldquoJesus entatildeo tendo olhado para ele com olhos de amor []rdquo (traduccedilatildeo nossa) Uma informaccedilatildeo dessa natureza argumentam esses estudiosos somente poderia ser registrada pela pessoa presente em tal situaccedilatildeo ou seja o jovem e rico Joatildeo Marcos de Atos dos Apoacutestolos

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Ainda que haja consenso na Tradiccedilatildeo quanto agrave autoria de Segundo Marcos o mesmo natildeo se pode afirmar no que diz respeito ao local de publicaccedilatildeo embora a inclinaccedilatildeo da maioria seja Roma (CARSON MOO MORRIS 1997 p 107) Tambeacutem quanto agrave data de criaccedilatildeo do texto quatro satildeo as deacutecadas sugeridas Sendo a primeira delas os anos 40 d C jaacute se mostra evidente o texto escrito ser o produto de uma tradiccedilatildeo preacute-literaacuteria extensa jogando luz sobre o caraacutecter oral do evangelho Endossa-se aqui a suposiccedilatildeo da publicaccedilatildeo de Segundo Marcos ter ocorrido em meados dos anos 60 d C muito em funccedilatildeo de seu conteuacutedo e do que disseram os primeiros liacutederes acerca de sua produccedilatildeo

A principiante feacute cristatilde do I seacutec estava imersa em um amaacutelgama religioso que a ela fortemente se opunha Por um lado as pressotildees teoloacutegicas dos judeus como os escritos neotestamentaacuterios bem expotildeem por outro a repressatildeo do Im-peacuterio Romano a partir do governo de Nero (CAIRNS 1995 p 73) quando teve iniacutecio o grande massacre tanto de judeus como de cristatildeos crentes opositores agrave religiatildeo oficial sendo estes torturados como uma forma de entretenimento puacuteblico (GONZAacuteLEZ 1995 p 25) Justifica-se assim a feitura de Marcos como o apelo agrave firmeza em resposta a difiacuteceis tempos de perseguiccedilatildeo e martiacuterio e o combate ao sincretismo das divisotildees religiosas

Voltando ao evangelho como texto literaacuterio Marcos eacute parte do tetraeuangeacute-lion ldquoisto eacute os quatro Evangelhos vistos como um conjunto de documentos sal-viacuteficos que tinham o mesmo valor veio a ter ampla circulaccedilatildeo e reconhecimento como nos mostram os escritos de Irineu (bispo de Lyon por volta de 180 d C)rdquo (ALAND ALAND 2013 p 53) Seu gecircnero eacute ldquoevangelhordquo propriamente dito algo proacuteprio do cristianismo ou seja ldquoum modo de expressar-se uacutenico que natildeo pode ser identificado com nenhuma outra obra do tempo antigordquo (MARCON-CINI 2012 p 9) Embora haja quem veja semelhanccedilas dos escritos evangeacutelicos com os modelos das leituras feitas nas sinagogas ou que os vincule ldquoao gecircnero da biografia greco-romana e suas variantesrdquo (ZABATIEIRO LEONEL 2011 p 41) o objetivo dos evangelistas era divulgar a mensagem de Jesus particu-larmente para as pessoas natildeo radicadas na Palestina e a forma adotada para isso foi inovadora

A liacutengua de Marcos eacute o grego koineacute em sua variaccedilatildeo semiacuteticavulgar o que a torna fascinante Um livro escrito para o povo

[] composto de aproximadamente 95 narrativas com 11240 palavras 1345 vocaacutebulos 30 aacutepax ou seja vocaacutebulos natildeo usados em outros lugares do Novo Testamento A liacutengua eacute o grego popular da koineacute com semitismos (talithagrave kum effethacirc korbacircn Abbagrave) poreacutem natildeo de tal modo

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a justificar um original aramaico com alguns latinismos (praitoacuterion kentyrion) com estilo vivaz proacuteprio da liacutengua falada pouco cuidado gramatical e sintaticamente que privilegia a parataxe ou coordenaccedilatildeo assindeacutetica (cf 630-33) inclinado a empregar anacolutos (cerca de 20) com repeticcedilatildeo de frases Tudo evidencia o estilo do narrador atestado tambeacutem pelo frequente lsquologo em seguidarsquo e pelo presente histoacuterico (150 ocorrecircncias) [] (MARCONCINI 2012 p 90)

32 ETAPAS DE ANAacuteLISE

Esta eacute de longe a parte que exige maior dedicaccedilatildeo do pesquisador pois natildeo se resume a fichar autores mesmo que de maneira criacutetica Trata-se do exame deta-lhado do corpus em sua liacutengua original Nesse ponto faz-se sobretudo necessaacuteria a escolha consciente do texto grego que melhor ofereccedila subsiacutedios de consulta a respeito de sua formaccedilatildeo Por isso as opccedilotildees adotadas pela autora deste artigo satildeo continuamente as publicaccedilotildees da Sociedade Biacuteblica da Alemanha como a quinta ediccedilatildeo do Novo Testamento grego (ALAND 2014)

A periacutecope selecionada deve entatildeo ser lida em grego ndash ato imprescindiacutevel pois ldquoseja para a estrutura seja para a especificidade do ato de ler o texto natildeo oferece suporte a um significado inequiacutevoco mas eacute lsquoo lugar de possiacuteveis significadosrsquordquo (EGGER 1994 p 92) Isto feito o texto eacute quebrado em oraccedilotildees seus elementos analisados morfossintaticamente e todo o conjunto disposto em diagrama De fato a anaacutelise morfossintaacutetica natildeo eacute um fim em si mesma mas o meio pelo qual se poderaacute dispor o texto analiticamente dividindo-o em partes ainda menores na diagramaccedilatildeo semacircntico-gramatical 119 processo em que melhor se visualizam as relaccedilotildees de niacutevel estrutural

Na disposiccedilatildeo gramatical do texto podem-se observar todos os seus consti-tuintes linguiacutesticos e as regras que os coordenam (EGGER 1994 p 74) Jaacute na disposiccedilatildeo semacircntica satildeo retratadas ldquoas relaccedilotildees de significadofunccedilatildeo entre palavras frases oraccedilotildees sentenccedilas e ateacute mesmo paraacutegrafosrdquo 120 (DUVALL GUTHRIE 1998 p 40 traduccedilatildeo nossa) pois ldquosob o aspecto semacircntico o texto eacute visto como o conjunto de relaccedilotildees (estrutura) entre os seus elementos significantes forma um todo constituindo uma espeacutecie de lsquomicro-universo semacircnticorsquordquo (EGGER 1994 p 91)

119 Embora siga o modelo proposto por Guthrie e Duvall (1998) a diagramaccedilatildeo semacircntico-gramatical aqui empregada eacute uma adaptaccedilatildeo feita por Viriacutessimo (2018) Sendo uma ferramenta ainda em desenvolvimento ela eacute por isso amplamente passiacutevel de receber criacuteticas120 ldquothe meaningfunction relationships between the words phrases clauses sentences and even paragraphsrdquo

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O diagrama conteacutem o texto grego e uma traduccedilatildeo em portuguecircs de aparecircncia interlinear Esta traduccedilatildeo eacute preliminar vindo a sofrer sucessivas revisotildees ateacute que se constitua a proposta final Contudo ela eacute importante em funccedilatildeo de o texto original ter sido redigido em grego de modo que Wegner (1998 p 28) a considera o ldquoprimeiro passo a ser realizado na exegeserdquo Uma inovaccedilatildeo da dia-gramaccedilatildeo neste artigo eacute a numeraccedilatildeo para referenciaccedilatildeo sobrescrita antes dos termos aos quais se refere Como uacuteltimo passo tem-se a redaccedilatildeo do comentaacuterio das relaccedilotildees linguiacutesticas observadas

Exemplo

Marcos 11-4

Continua

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continuaccedilatildeo

O substantivo (1) introduz Marcos delimitando o tema de toda a obra sob a construccedilatildeo em genitivo propriamente dito (2 3 4) Haacute um sentido baacutesico de posse entre (2) (3) e (4) embora este natildeo tenha sido representado por setas Optou-se por deixar os modificadores juntos na mesma linha tanto (3) como (4) por eles funcionarem como uma unidade devendo por isso ser interpretados em conjunto Outro sentido passiacutevel de ser destacado tambeacutem natildeo exposto no

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diagrama eacute de especificaccedilatildeo entre os elementos em (3) e de relacionamento em (4)

Na parte a do versiacuteculo 2 o adveacuterbio (5) verifica ou seja fornece uma evidecircncia que comprove a validade da introduccedilatildeo por meio da foacutermula de invocaccedilatildeo veterotestamentaacuteria em perfeito resultativo (6) o qual se refere a ldquouma accedilatildeo inteiramente acabada e por conseguinte tambeacutem o resultado de uma accedilatildeo passada cujos efeitos perduram (ideia de estado)rdquo (HORTA 1991 p 208) O redobro (γε-) caracteriacutestico dos tempos passados marca esse grau de acabamento da accedilatildeo que na esfera expressa em (7) reforccedila ser o agora o momento do cumprimento de algo predito O autor pela obra metoniacutemia em (8) que ligada a (7) o especifica como ecircnfase ndash repeticcedilatildeo do artigo equivalendo a adjunto adnominal enfaacutetico Na parte b do versiacuteculo a partiacutecula demonstrativa (9) chama a atenccedilatildeo para a accedilatildeo que a segue (ROBINSON 2012 p 430) o verbo (10) prefixado pela preposiccedilatildeo que despede o objeto em (11) ldquopara determinado propoacutesitordquo (LOUW NIDA 2013 p 172) Esse objeto (11) tem sua natureza especificada em (15) e pertence a (12) Tambeacutem estaacute expressa a relaccedilatildeo de posse entre (13) e (14) (16) e (17)

No versiacuteculo seguinte a construccedilatildeo (18) e (19) explica como se deu a accedilatildeo (10) sobre o objeto (11) e qual foi a sua esfera (20) de ocorrecircncia Duas exortaccedilotildees entatildeo satildeo expressas e o contraste entre elas estaacute no tempo verbal Por um lado tem-se o imperativo aoristo (21) traduzindo ldquoordem particular e momentacircneardquo por outro haacute o imperativo presente (24) exprimindo ldquouma ordem geral que perdurardquo (HORTA 1991 p 282) Transmitem assim sob ilustraccedilatildeo a impressatildeo de grande urgecircncia e necessidade de permanecircncia tanto a forccedila de significado do verbo (19) como o seu discurso (21) e (24) A relaccedilatildeo de posse em (22) e (23) eacute um paralelismo com (16) e (17) especificando em (23) a figura do (17) Ainda outra relaccedilatildeo de posse haacute entre (25) e (26)

No versiacuteculo final sem preocupaccedilatildeo com o processo mas acompanhando o tempo da narraccedilatildeo histoacuterica o tempo aoristo em (27) expressa a accedilatildeo instantacircnea (WALLACE 2009 p 554) de chegada do sujeito (28) especificado em (29) ndash subjetivaccedilatildeo do particiacutepio Nota-se um paralelismo entre as esferas expressas em (20) e (30) de modo que (28) descreve (18) dando-lhe detalhes viacutevidos A accedilatildeo (27) entatildeo eacute ligada por (31) agrave maneira como aconteceu (32) ndash noccedilatildeo adverbial presente no modo particiacutepio A mensagem (33) dessa circunstacircncia eacute especiacutefica (34) para um fim (35)

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33 NOTAS

Esta parte do meacutetodo a seguir consiste na elaboraccedilatildeo de notas explicativas acerca de palavras-chave ou passiacuteveis de esclarecimento no corpus as quais acabam por compor um dicionaacuterio proacuteprio do pesquisador Segundo Egger (1994) o processo de compreensatildeo dos significados de um texto depende do repertoacuterio de conhecimentos preacutevios do leitor jaacute que sem o arcabouccedilo cultural necessaacuterio ele natildeo seraacute capaz de apreender os sentidos velados de um escrito especialmente se este for de tempos longiacutenquos Acerca do Novo Testamento demanda-se ldquoque se aproximem ao menos os principais paralelos do ambiente p ex os do AT e do mundo heleniacutestico contemporacircneordquo (EGGER 1994 p 92)

Os verbetes da anaacutelise que se segue foram escritos com base na Enciclopeacutedia da Biacuteblia (TENNEY 2008) e apresentados com o item a respeito do qual se pretende dissertar em negrito e em portuguecircs conforme a traduccedilatildeo interlinear seguido da forma grega em itaacutelico como aparece no corpus e introduzida pela abreviaccedilatildeo ldquogrrdquo Veja a seguir

Versiacuteculo 1

Evangelho gr εὐαγγελίου Vocaacutebulo que em sua origem ldquonatildeo se referia aos quatro escritos mas a anuacutencios proclamados oralmenterdquo (MARCONCINI 2012 p 5) Sob o advento messiacircnico significa o bom anuacutencio da possibilidade de recomeccedilo e renovaccedilatildeo Seu uso eacute encontrado no Antigo Testamento com o sentido religioso da comunicaccedilatildeo da mensagem profeacutetica (cf Isaiacuteas 527) bem como para a anunciaccedilatildeo feita em cenaacuterios de guerra ou por ocasiatildeo do nascimento de uma crianccedila (cf Jeremias 2015 1Samuel 319) Esse segundo uso estaacute conectado agrave forma de uso que os gregos faziam da palavra ndash a ideia da proclamaccedilatildeo de uma notiacutecia alegre de cunho poliacutetico ou pessoal referindo-se agrave recompensa dada ao mensageiro que proclamou tal ldquoboa novardquo Novamente trata-se de uma palavra associada a contextos basicamente orais

Jesus gr Ἰησοῦ A Jesus eacute atribuiacutedo o papel mais importante em todo o Novo Testamento sendo apresentado como a chave de interpretaccedilatildeo do Antigo Nos Evangelhos Ele eacute apresentado como um homem judeu nascido milagrosa-mente nos limites da Palestina (cf Mateus 21 Lucas 24-7) pela concepccedilatildeo espiritual de Maria virgem por ainda ser noiva de Joseacute na ocasiatildeo (cf Mateus 118 Lucas 127) Sabe-se pouco acerca de sua infacircncia (cf Mateus 219-23 Lucas 241-52 416) o relato de suas accedilotildees estatildeo concentrados em sua idade adulta (cf Lucas 323)

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Cristo gr Χριστοῦ Do hebraico mashiach aquele sobre o qual Deus der-ramou a autoridade sacerdotal e real do esperado messias dos judeus (STERN 2008 p 26) Esse tiacutetulo era concedido a reis e a sacerdotes ensejando portanto aleacutem da religiosa uma interpretaccedilatildeo poliacutetica sobre Jesus

[filho de Deus] gr [υἱοῦ θεοῦ] Pode ter sido parte original ou um acreacutescimo posterior ldquopara indicar que natildeo se tem certeza quanto ao texto original as palavras υἱοῦ θεοῦ aparecem no texto entre colchetesrdquo (OMANSON 2010 p 56) Opta-se aqui pela originalidade visto que a paternidade celestial dispen-sada sobre Jesus seraacute confirmada na forma de ilustraccedilatildeo no evangelho poucos versiacuteculos depois (Marcos 110-11) sendo o Jesus evangeacutelico uma percepccedilatildeo do evangelista Assim a expressatildeo deve ser entendida como a preocupaccedilatildeo de um autor que escreve para romanos acostumados a cultuar heroacuteis nacionais atribuiacutedos de caracteriacutesticas divinas por forccedila do arcabouccedilo miacutetico grego na religiatildeo imperial

evangelho de jesus Cristo filho de Deus gr τοῦ εὐαγγελίου Ἰησοῦ Χριστοῦ [υἱοῦ θεοῦ] Mais do que pertencer a Jesus o ldquoevangelhordquo eacute o designador da boa notiacutecia acerca daquele que se tornou ldquoportador de toda novidade sendo portador de si mesmordquo (MARCONCINI 2012 p 7)

Versiacuteculo 2

Isaiacuteas o profeta gr τῷ Ἠσαΐᾳ τῷ προφήτῃ Inspirado orador que previu a vinda do salvador e servo sofredor Jesus (Isaiacuteas 9 53) cerca de 700 anos antes de ela acontecer Foi um importante profeta veterotestamentaacuterio com clara influecircncia na esfera poliacutetico-religiosa de seu tempo (2Reis 191-7) Ao longo da histoacuteria o profetismo entre os hebreus assumiu um caraacuteter vocacional e natildeo institucional em contraste agrave profecia profissional cultual popular eou monaacuter-quica (FOHRER 1982 p 289) O que se quer dizer com isso eacute que os profetas profissionais perderam sua importacircncia para ldquoos grandes profetas individuais incluindo Amoacutes e Oseacuteias Isaiacuteas e Miqueacuteias Sofonias e Jeremias Ezequiel e em parte o Deuteroisaiacuteasrdquo (FOHRER 1982 p 291) agrave medida que o povo tomava consciecircncia de que estes estavam certos contrariamente aos profetas profissionais Foi dessa maneira que se deu iniacutecio agrave compilaccedilatildeo dos discursos dos grandes profetas individuais formando coleccedilotildees que posteriormente ficaram conhecidas como escritura sagrada (FOHRER 1982 p 291)

Eia envio meu mensageiro diante da tua face gr Ἰδοὺ ἀποστέλλω τὸν ἄγγελόν μου πρὸ προσώπου σου A citaccedilatildeo no versiacuteculo 2 pertence ao profeta

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Malaquias (Malaquias 31) enquanto a metoniacutemia enfatiza Isaiacuteas A Biacuteblia que os cristatildeos do primeiro seacuteculo liam e ouviam era a Septuaginta ndash a traduccedilatildeo grega do Antigo Testamento tradicionalmente atribuiacuteda a 72 filoacutelogos durante o periacuteodo poacutes-exiacutelico conhecida tambeacutem como LXX Grande parte das citaccedilotildees no NT era baseada nessa traduccedilatildeo e muitas vezes por meio da memoacuteria auditiva que se tinha das leituras feitas em voz alta durante as concentraccedilotildees populares Ao citar apenas Isaiacuteas Marcos parece ter cometido um ato falho que priorizou o profeta maior ou seja aquele que tinha a maior quantidade de escritos sob a influecircncia divina A seguir uma exposiccedilatildeo paralela da fonte na LXX (RAHLFS 1979) e da citaccedilatildeo em Marcos

LXX NTMalaquias 31 Marcos 12ἰ δ ο ὺ ἐ γ ὼ ἐξαποστέλλω τὸν ἄγγελόν μου καὶ ἐπιβλέψεται ὁδὸν π ρ ὸ π ρ ο σώ π ο υ μου καὶ ἐξαίφνης ἥξει εἰς τὸν ναὸν ἑαυτοῦ κ ύριος ὃν ὑμεῖς ζητεῖτε κ α ὶ ὁ ἄ γ γ ε λ ο ς τ ῆ ς δ ι α θ ή κ η ς ὃν ὑμεῖς θέλετε ἰ δ ο ὺ ἔ ρ χ ε τ α ι λ έ γ ε ι κ ύ ρ ι ο ς παντοκράτωρ

Καθὼς γέγραπται ἐν τῷ Ἠσαΐᾳ τῷ προφ ήτ ῃ Ἰδο ὺ ἀποστέλλω τὸν ἄγγελόν μου πρὸ προσώπου σου ὅς κατασκευάσει τὴν ὁδόν σου∙

Isaiacuteas 403 Marcos 13φ ω ν ὴ β ο ῶ ν τ ο ς ἐ ν τ ῇ ἐ ρ ή μ ῳ ῾Ετοιμάσατε τὴν ὁ δ ὸ ν κ υ ρ ί ο υ εὐθείας ποιε ῖτε τὰς τρίβους τοῦ θεοῦ ἡμῶν

φ ο ν ὴ β ο ῶ ν τ ο ς ἐ ν τ ῇ ἐ ρ ή μ ῳ Ἑτοιμάσατε τὴν ὁ δ ὸ ν κ υ ρ ί ο υ εὐθείας ποιε ῖτε τὰς τρίβους αὐτοῦ

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Versiacuteculo 3

Deserto gr τῇ ἐρήμῳ Frequente cenaacuterio no texto biacuteblico o deserto tinha grande influecircncia na vida e na cultura da Palestina (TENNEY 2008 v 2 p 95) Em Marcos Joatildeo estava proacuteximo ao rio Jordatildeo na altura de Nazareacute da Galileacuteia (cap 1 vv 5 e 9)

Senhor gr κυρίου Trata-se de um tiacutetulo dado a Deus e a Cristo com a ideia de ldquoaquele que governa a humanidade com autoridade sobrenaturalrdquo (LOUW NIDA 2010 p 126)

Versiacuteculo 4

Joatildeo o que batiza gr Ἰωάννης [ὁ] βαπτίζων Personagem neotestamentaacuterio tido como aquele que antecederia a vinda do Cristo (Mateus 3 Marcos 12-11 Lucas 31 15-17 21-22) Filho de sacerdote (Lucas 18-25 157-80) Joatildeo Batista rompeu com as expectativas eclesiaacutesticas de sua linhagem exercendo uma vocaccedilatildeo na medida dos profetas antigos sendo por vezes associado agrave figura de Elias (Mateus 117-14) ndash ldquoesse formidaacutevel asceta frequentador do deserto em sua vestimenta grosseira fazia reviver a imagem popular de um profeta inspirado e como os antigos profetas anunciava o iminente julgamento de Deus sobre um povo infielrdquo (DODD 1977 p 137)

Batismo gr βάπτισμα Vocaacutebulo que literalmente significa imersatildeo mas que na mentalidade judaica do seacutec I ldquopoderia incorporar ambas as realidades espirituais e os siacutembolos fiacutesicos Em outras palavras quando algueacutem falava de batismo comunicava ambas as ideias ndash a realidade e o ritualrdquo (WALLACE 2009 p 370 grifo do autor)

Batismo de arrependimento gr βάπτισμα μετανοίας Expressatildeo usada nos evangelhos (Marcos 14 Lucas 38) que revela uma das tarefas da missatildeo a qual Joatildeo estava atrelado No contexto da personagem parece que

o batismo de Joatildeo Batista reflete muito mais o costume dos banhos rituais entre os judeus do que o tipo de batismo praticado pelos cristatildeos que era um siacutembolo de iniciaccedilatildeo na comunidade cristatilde baseada na feacute em Jesus Cristo e na lealdade para com ele como Senhor e Salvador (LOUW NIDA 2013 p 479)

Libertaccedilatildeo gr ἄφεσις Consiste no ldquocancelamento da culpa do pecadordquo121 (BAUER 1979 p 125 traduccedilatildeo nossa)

121 ldquocancellation of the guilt of sinrdquo

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Pecados gr ἁμαρτιῶν A transgressatildeo da medida justa em que se deveria viver tanto conforme as coisas humanas como as divinas (BAUER 1979 p 43) Por medida justa na esfera biacuteblica o paracircmetro eacute o caraacuteter de Deus (Deu-teronocircmio 324 Salmos 117 Miqueacuteias 68) A humanidade criada agrave imagem e semelhanccedila de Deus (Gecircnesis 127) assim foi feita para viver e ser conforme seu Criador (Isaiacuteas 437 1 Coriacutentios 1031) O pecado consiste pois numa desconfiguraccedilatildeo do ser humano em referecircncia a Deus Em diferentes textos do Novo Testamento (Hebreus 1012 Gaacutelatas 14 1 Joatildeo 17) nota-se que a condiccedilatildeo pecaminosa da humanidade natildeo eacute um simples erro do alvo mas um estado de degradaccedilatildeo que soacute pocircde ser transposto por Jesus em sua entrega voluntaacuteria para morrer agrave semelhanccedila dos animais usados nos sacrifiacutecios judaicos

Perdatildeo dos pecados gr εἰς ἄφεσιν ἁμαρτιῶν O desconhecido autor da Epiacutestola aos Hebreus desenvolve a ideia de perdatildeo em comparaccedilatildeo com a lei mosaica Tratando-se de uma representaccedilatildeo do que haveria de vir (Hebreus 101) a lei teve em Jesus o seu cumprimento pois por ele foi ldquooferecido para sempre um uacutenico sacrifiacutecio pelos pecadosrdquo (Hebreus 1012) Os sacrifiacutecios de animais embora fossem aceitos por Deus dentro das condiccedilotildees estabelecidas natildeo eram suficientes para apagar a consciecircncia de pecado ou seja a culpa que reside sobre aquele que peca visto que vez apoacutes vez ao espiar o sangue de um cordeiro o indiviacuteduo se lembrava de sua condiccedilatildeo de portador da transgressatildeo (Hebreus 103) O perdatildeo dos pecados configura-se pois como aquilo que tem o poder que a lei natildeo tinha a anulaccedilatildeo total da culpa (Hebreus 10 17)

34 INTERPRETACcedilAtildeO

Eis a uacuteltima etapa do meacutetodo Nela satildeo encontradas a proposta definitiva de traduccedilatildeo amparada sobre o tripeacute exatidatildeo clareza e naturalidade (BARNWELL 2011 p 25) o esboccedilo do texto parcialmente formulado neste artigo conforme os tiacutetulos encontrados na obra Synopsis Quattuor Evangeliorum (ALAND 1967) e o comentaacuterio final em que se privilegiam apenas alguns aspectos de todo o material produzido respeitando-se as conclusotildees obtidas das relaccedilotildees intra e extra textuais dos elementos estruturantes do texto de maneira a explicitar o que seja relevante para dentro do escopo da pragmaacutetica Exemplo

Esboccedilo

11 O PROacuteLOGO12-4 JOAtildeO AQUELE QUE BATIZA

12-3 Profecia veterotestamentaacuteria14 O surgimento de Joatildeo

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Proposta de traduccedilatildeo

1 Iniacutecio do evangelho de Jesus Cristo Filho de Deus 2 Assim como perma-nece escrito em Isaiacuteas o profeta ldquoAtenccedilatildeo Despeccedilo antes de tua presenccedila o meu mensageiro o qual colocaraacute em ordem o teu caminho 3 Uma voz trovejante no deserto Preparai o caminho do Senhor fazei retas as suas veredasrdquo 4 Surgiu no deserto Joatildeo aquele que batiza anunciando o batismo de arrependimento para o perdatildeo dos pecados

Reflexatildeo

O primeiro versiacuteculo de Marcos uma sentenccedila que sendo incompleta em si funciona como o tiacutetulo a obra define os paracircmetros de leitura da histoacuteria que haacute de ser contada o evangelho pertence a Jesus Eacute esse personagem o iniacutecio da causa evangeacutelica bem como o tema do livro Sem a preocupaccedilatildeo de fornecer dados histoacutericos Marcos o apresenta como o libertador prometido e resume sua genealogia filho de Deus Ao se pensar nos primeiros leitores-ouvintes pessoas ansiosas por novos tempos de prosperidade e paz a imagem de um Jesus heroico e divino mais forte que a humanidade mortal cativa a atenccedilatildeo para o que haacute de ser dito

No versiacuteculo seguinte Marcos gera ainda mais expectativa em seu puacuteblico recorrendo agrave memoacuteria coletiva das profecias antigas para mostrar a validade de sua mensagem Ele assim o faz por meio da foacutermula ldquoconforme escritordquo mos-trando sua credencial de inspiraccedilatildeo Marcos inaugura a interpretaccedilatildeo evangeacutelica do Antigo Testamento Pode-se inferir que atribuindo a referecircncia somente a Isaiacuteas profeta de singular importacircncia o evangelista procura confirmar suas palavras como dotadas da mesma autoridade da tradiccedilatildeo profeacutetica de Israel E essa antiga profecia invocada por Marcos permanece presente enquanto o texto existir Surge entatildeo o mensageiro que haveria de ser enviado da parte de Deus

Antecedendo o Cristo esperado o mensageiro aparece sob a forma de um som uma voz que se faz ouvir no deserto Satildeo duas as exortaccedilotildees que essa voz traz agora eacute hora de preparar o caminho do Senhor e permanentemente se deve preparar as suas veredas Uma mensagem urgente e contiacutenua A voz entatildeo simplesmente aparece sob o nome de Joatildeo Do ponto de vista de quem ouve a voz tudo o que foi dito ateacute agora se afigura como o preluacutedio perfeito para a chegada do novo personagem ndash que natildeo eacute o messias mas possui grande importacircncia histoacuterica na tradiccedilatildeo profeacutetica

Eis uma obra prima a imagem desse Joatildeo que surge no ermo lugar como um som trovejante irrompendo e se transformando gradativamente em homem

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numa espeacutecie de efeito sinesteacutesico Joatildeo eacute o que batiza ou seja aquele que anuncia a outros a imersatildeo na mudanccedila da forma como se vecirc e se pensa a proacutepria existecircncia para assim se alcanccedilar a possibilidade de soltura das amarras que aprisionam O misteacuterio sendo revelado sobre a figura angelical faz com que a seacuteria narrativa assuma a delicadeza de uma contaccedilatildeo de histoacuterias sem contudo anular a forccedila das verdades para aqueles que nelas creem

CONSIDERACcedilOtildeES FINAISAs etapas de execuccedilatildeo neste artigo foram aqui descritas partindo de 2

Anaacutelise do Discurso em que se procurou elucidar essa aacuterea da linguiacutestica de maneira acessiacutevel a leitores especializados em outros saberes Em 3 Metodo-logia o meacutetodo foi explanado em detalhes nos toacutepicos subsequentes Em 31 Contextualizaccedilatildeo pretendeu-se a delimitaccedilatildeo dos sentidos de produccedilatildeo do texto Em 32 Etapas de Anaacutelise foi disposta a diagramaccedilatildeo semacircntico-gramatical desse texto e uma breve anaacutelise de suas relaccedilotildees linguiacutesticas Em seguida em 33 Notas houve a elucidaccedilatildeo de termos especiacuteficos constantes do fragmento examinado Por fim em 34 Interpretaccedilatildeo a autora pretendeu alcanccedilar uma compreensatildeo mais apurada do enredo

Conclui-se que o meacutetodo apresentado figura como um instrumental interes-sante de pesquisa e de ensino ndash objetivo primeiro para o qual foi desenvolvido ndash oferecendo subsiacutedios para os dispostos a se debruccedilar sobre o aprofundamento de sua praacutetica acadecircmica eou religiosa Num contexto de impressionante preconceito da Academia para com a Biacuteblia como objeto de estudo literaacuterio eacute essencial que o inteacuterprete do texto biacuteblico esteja disposto a reinventar sua praacutetica de pesquisa por meio da dialeacutetica multidisciplinar Existe uma instrumentalidade na diversidade das teorias cientiacuteficas e esta pode ser aproveitada sem que se extrapolem os possiacuteveis sentidos do texto

Como ressalta Egger (1994 p 9) ldquouma metodologia neotestamentaacuteria eacute antes de tudo uma introduccedilatildeo agrave correta leitura dos textos do Novo Testamentordquo As distacircncias existentes entre um texto antigo e o leitor atual constituem um grande desafio dada a imensa diferenccedila entre uma eacutepoca e outra natildeo raro se afigurando praticamente impossiacutevel o pleno resgate do entendimento do modo de pensar de um narradornarrataacuterio inserido no contexto originaacuterio e o leitorinteacuterprete atual voltado para a pesquisa na constante busca do conhecimento Tanto a liacutengua como a cultura em geral passam por mudanccedilas as mais variadas ao longo do tempo e caso o pesquisador tenha um compromisso confessional com o texto ele lhe imporaacute tambeacutem distanciamentos de ordem divina (LOPES 2004 p 25)

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O reconhecimento das aparentes barreiras exige o esforccedilo do estranhamento por parte desse leitorinteacuterprete que por um lado pode estar preso agrave familia-ridade encontrada no texto ou que por outro lado pode ler equivocadamente sob seu perspectivismo o que lhe eacute desconhecido Por isso trabalhar com textos da Antiguidade eacute tambeacutem uma provocaccedilatildeo das Ciecircncias Sociais Assim para ambas as situaccedilotildees supracitadas pode-se parafrasear o antropoacutelogo Gilberto Velho (1978 p 45) e dizer que eacute necessaacuterio ao que se propotildee agrave pesquisa o confronto intelectual e emocional de diferentes versotildees e interpretaccedilotildees do texto a fim de se tornar capaz de estranhaacute-lo Soacute assim se consegue alcanccedilar a erudiccedilatildeo prometida pela reflexatildeo cientiacutefica

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ldquoNO DIA DO SENHORrdquo ndash OS ATOS O EVENTO A AUTOEXPRESSAtildeO

Uma breve reflexatildeo sobre as tradiccedilotildees lituacutergicas e sobre os termos liturgia culto e adoraccedilatildeo

Theoacutegenes Eugecircnio Figueiredo122

RESUMO No presente artigo satildeo apresentados os nuacutecleos lituacutergicos herdados do cris-

tianismo primitivo que no decorrer dos seacuteculos tiveram em si alguns elementos agregados constituindo-se posteriormente em grandes famiacutelias lituacutergicas Os protestantes satildeo caracterizados historicamente pela diversidade lituacutergica por possuiacuterem nove famiacutelias lituacutergicas No Brasil os protestantes se caracterizam como igrejas livres que fogem das foacutermulas lituacutergicas preacute-fixadas Liturgia culto e adoraccedilatildeo satildeo conceitos abordados atraveacutes dos siacutembolos ldquoos atosrdquo ldquoo eventordquo e ldquoa autoexpressatildeordquo Comenta-se a criacutetica de Kierkgaard agrave inversatildeo das funccedilotildees dos partiacutecipes de um evento cultual O evento culto eacute definido como o trabalho do povo e o evento da ldquovisatildeo de Isaiacuteasrdquo eacute apresentado como um dos modelos cultuais

Palavras-chave Culto Liturgia Adoraccedilatildeo Famiacutelias lituacutergicas Batistas

ABSTRACTThis article presents the liturgical nuclei inherited from primitive Christianity

which over the centuries had some elements aggregated to later constituting large liturgical families Protestants are historically characterized by liturgical diversity as they have nine liturgical families In Brazil Protestants are charac-terized as free churches diverting from pre-fixed liturgical formulas Liturgy worship and adoration are concepts commented by the symbols ldquothe actsrdquo ldquothe eventrdquo and ldquoself-expressionrdquo Kierkgaardrsquos critique about the inversion of the roles of participants in a worship event is commented The worship event is defined as the job of the people and the event of the ldquovision of Isaiahrdquo is commented as one of the worship models

Keywords Worship service Liturgy Worship Liturgical families Baptist

122 Doutor em Ciecircncias da Religiatildeo pela UFJF e mestre em muacutesica pela UNIRIO Professor do Curso de Licenciatura em Muacutesica com Gestatildeo da Muacutesica Eclesiaacutestica da Faculdade Batista do Rio de Janeiro - STBSB

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1 AS FAMIacuteLIAS LITUacuteRGICAS ndash O LEGADOOs elementos lituacutergicos herdados do cristianismo primitivo formaram dois

nuacutecleos o nuacutecleo da Palavra (proveniente do culto judaico que passou a ser chamado de Liturgia da Palavra nas celebraccedilotildees da Igreja Catoacutelica) e o nuacutecleo da Ceia do Senhor ou da Eucaristia Este pode ser considerado ldquocomo uma marca genuinamente cristatilderdquo123 da liturgia

Ao longo dos seacuteculos alguns elementos foram agregados a esses dois nuacutecleos da liturgia da Igreja Cristatilde surgindo uma ordo124 isto eacute ldquoum conjunto de ele-mentos e formas usados para realizar o encontro entre Deus e a comunidade E eacute a partir desse processo que se constituiacuteram as grandes famiacutelias lituacutergicas que mantecircm os nuacutecleos baacutesicos comunsrdquo125

Essas famiacutelias satildeo centralizadas em

a) Alexandria (Egito) conhecida como a liturgia de Satildeo Marcos

b) Jerusaleacutem e Antioquia (Siacuteria Ocidental) conhecida como a liturgia de Satildeo Tiago

c) Siacuteria Oriental

d) Cesareia conhecida como a liturgia de Satildeo Basiacutelio

e) Constantinopla conhecida como a liturgia bizantina ou liturgia de Satildeo Crisoacutestomo

f) Roma conhecida como a liturgia de Satildeo Pedro que se encontra em uso mais amplo no catolicismo romano

g) a liturgia gaacutelica que compreende o clatilde ocidental natildeo-romano126

Os protestantes possuem nove famiacutelias lituacutergicas tendo desde o iniacutecio o culto protestante se caracterizado pela diversidade lituacutergica O diagrama a seguir mostra essas famiacutelias

123 MARTINI 200223124 Palavra latina que significa ordem significando uma disposiccedilatildeo metoacutedica um arranjo de coisas segundo certas relaccedilotildees uma boa disposiccedilatildeo um bom arranjo um arrumaccedilatildeo (Dicionaacuterio Aureacutelio)125 MARTINI 200224126 WHITE 199728

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Diagrama 1127

Ala esquerda significa uma ruptura radical com a liturgia medieval tardia encontrando-se nela os Anabatistas que segundo uma corrente histoacuterica originou os Batistas atuais ala Centro significa os grupos mais moderados em relaccedilatildeo a uma ruptura com a liturgia histoacuterica e ala Direita mostra os grupos mais conservadores em termos de preservaccedilatildeo da liturgia histoacuterica

As igrejas de tradiccedilatildeo lituacutergica possuem os livros lituacutergicos que contecircm os ritos e as leituras de suas celebraccedilotildees Um deles eacute o Palavra do Senhor I ndash Lecionaacuterio dominical ABC que tem a sua imagem apresentada a seguir e a especificaccedilatildeo do seu conteuacutedo128

Lecionaacuterio dominicalConteacutemRito da Missa (partes fixas)Proacuteprio do tempo advento natal quaresma tempo comum etcProacuteprio dos santosVasta coleccedilatildeo de prefaacuteciosVaacuterias oraccedilotildees eucariacutesticasMissas rituais Batismo confirmaccedilatildeo profissatildeo religiosa etcMissas e oraccedilotildees para diversas necessidades pelo papa pelos bis-pos pelos governantes pela conservaccedilatildeo da paz e da justiccedila etcMissas votivas Santiacutessima Trindade Espiacuterito Santo Nossa Senhora etcMissas dos fieacuteis defuntosNo iniacutecio o Missal apresenta longa e preciosa introduccedilatildeo con-tendo a Instruccedilatildeo Geral sobre o Missal Romano e as Normas Universais para o Ano Lituacutergico e o Calendaacuterio1

127 WHITE 199729128 PERES 2018

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O Livro lituacutergico ldquoeacute um livro grande que conteacutem todo o formulaacuterio e todas as oraccedilotildees usadas nas celebraccedilotildees da missa para todo o ano lituacutergico Fitas marcadoras indicam as diversas partes da celebraccedilatildeo []rdquo129

11 OS BATISTAS BRASILEIROS E SUA TRADICcedilAtildeO LITUacuteRGICA

No Brasil o protestantismo de missatildeo chegou com suas tradiccedilotildees lituacutergicas tendo os batistas seguido a tradiccedilatildeo das ldquoigrejas livres da poacutes-Reforma e principalmente dos reavivamentos ingleses e americanos somados agraves formas de cultos das fronteiras da expansatildeo norte-americana para o oesterdquo130

O quadro a seguir mostra a data da chegada das diversas denominaccedilotildees protestantes em terra brasileira e sua linha lituacutergica

Protestantes Entrada no Brasil Igrejas livres (natildeo-lituacutergicas)Congregacionais 1855 SimPresbiterianos 1859 SimBatistas 1881 SimMetodistas 1886 SimEpiscopal 1898 Natildeo

Antonio Gouvecirca de Mendonccedila afirma que a liturgia dos batistas ldquoeacute uma das mais informaisrdquo131 isso significa dizer que os batistas tecircm uma praacutetica lituacutergica ldquoque foge a foacutermulas prefixadas aos rituais e aos aparato lituacutergico [] O culto e demais rituais preestabelecidos satildeo virtualmente condenados e quase sempre com a alegaccedilatildeo de que sugerem a missa catoacutelicardquo132 Donald P Hustad afirma que ldquoa heranccedila dos evangeacutelicos tiacutepicos eacute uma adoraccedilatildeo natildeo-liacutetuacutergica isto quer dizer eles rejeitam todas as formas ou liturgias estabelecidasrdquo133

Entatildeo se as igrejas batistas satildeo de tradiccedilatildeo lituacutergica livre as liturgias satildeo fundamentadas em quecirc

2 LITURGIA CULTO E ADORACcedilAtildeO ndash OS ATOS O EVEN-TO E A AUTOEXPRESSAtildeO CULTUAL

O termo liturgia eacute muitas vezes considerado sinocircnimo dos termos culto e adoraccedilatildeo Entretanto eacute necessaacuterio que se faccedila a distinccedilatildeo entre esses termos Os

129 PERES 2018130 MENDONCcedilA e VELASQUES FILHO 2002171 Grifo nosso131 MENDONCcedilA e VELASQUES FILHO 200244132 MENDONCcedilA e VELASQUES FILHO 2002156133 HUSTAD 1986166

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atos praticados durante o culto satildeo considerados liturgia culto eacute um evento total que abrange um conjunto de elementos lituacutergicos sendo um desses elementos a adoraccedilatildeo (em seu sentido estrito) a atitude do indiviacuteduo Adoraccedilatildeo eacute uma autoexpressatildeo em resposta agrave accedilatildeo divina

21 LITURGIA ndash OBRA DO POVO TRABALHO DO POVO OS ATOS CULTUAIS

Voltemos a nossa atenccedilatildeo ao termo liturgia e vejamos o que podemos de-preender do proacuteprio termo

Liturgia foi traduzida para o portuguecircs da palavra grega leitourgeo composta dos vocaacutebulos gregos LEITOSLAOS que significa povo e ERGON que significa trabalho Haacute um consenso entre os estudiosos do assunto que o significado seja ldquoobra do povordquo ldquotrabalho do povordquo

Essa ideia de trabalho do povo tambeacutem pode ser inferida da maioria dos vocaacutebulos originais da Septuaginta traduzidos para o idioma portuguecircs como liturgia Satildeo eles 134

Vocaacutebulo Significado Passagem biacuteblica

Leitourgiacutea (6 vezes)

Ministeacuterio Lc 123Assistecircncia 2 Co 912Serviccedilo Fp 217Socorro Fp 230Ministeacuterio Hb 86Serviccedilo Sagrado Hb 921

Leitourgoacutes (5 vezes)Ministro

Rm 136Rm 1516Hb 17Hb 82

Auxiliar Fp 225

Leitourgeacuteotilde (3 vezes)Servindo At 132Servi-los Rm 1527Serviccedilo Sagrado Hb 1011

Leitourgikoacutes (1 vez) Ministradores Hb 114

134 COSTA 198715-16

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Como visto o termo liturgia ocorre no Novo Testamento num total de quinze vezes tendo o seu significado se consolidado como ldquoo conjunto das falas e praacuteti-cas de culto dos seguidores de Jesusrdquo135 Essas praacuteticas de culto ou decorrentes do culto satildeo a assistecircncia o socorro o auxiacutelio o serviccedilo etc

22 CULTO O EVENTO CULTUAL TOTAL

Culto eacute uma reaccedilatildeo do humano agrave uma accedilatildeo divina Um bom exemplo eacute a atitude de Noeacute narrada em Gecircnesis 6-8 Depois do diluacutevio Noeacute ldquoconstruiu um altar dedicado ao Senhor e tomando alguns animais e aves puros ofereceu-os como holocausto []136 Liturgia no caso de Noeacute foi o evento constituiacutedo do ldquoconjunto de atos palavras e formas carregados de significado expressos de um certo jeito numa certa sequecircnciardquo137 realizados na reaccedilatildeo de Noeacute agrave bondade de Deus para consigo

23 A ADORACcedilAtildeO UMA AUTOEXPRESSAtildeO CULTUAL

Em relaccedilatildeo ao conceito de adoraccedilatildeo Bob Sorge em seu livro Exploring worship apresenta-nos dois exemplos que ajudam no entendimento dessa au-toexpressatildeo Satildeo os exemplos de Joacute e Abraatildeo

Joacute foi atingido por uma extrema calamidade perdendo todos os seus bens e perdendo todos os seus filhos

A resposta de Joacute eacute emocionante ldquoEntatildeo Joacute se levantou rasgou o manto e raspou a cabeccedila e ele caiu no chatildeo e adorourdquo (Joacute 120) Se concordamos que esta eacute a primeira menccedilatildeo de adoraccedilatildeo na Biacuteblia entatildeo podemos dizer que a adoraccedilatildeo eacute o que fazemos em face de grande trageacutedia e julgamento pessoal Adoraccedilatildeo em sua essecircncia natildeo eacute o que fazemos quando a vida eacute feliz e nos sentimos abenccediloados eacute o que fazemos quando perdemos as coisas que satildeo mais caras para noacutes o teste de adoraccedilatildeo natildeo eacute no domingo de manhatilde quando nos reunimos com o povo de Deus De manhatilde eacute faacutecil adorar Os crentes estatildeo reunidos em santa convocaccedilatildeo os liacutederes oram e estatildeo preparados para liderar o canto do Senhor comeccedila a surgir a presenccedila de Deus enche a casa Se vocecirc natildeo pode adorar no domingo de manhatilde vocecirc provavelmente estaacute morto138

135 MIRANDA 201239 Grifo nosso136 BIacuteBLIA ONLINE Gn 820137 MARTINI 200221 Grifo nosso138 SORGE 2018 cap 4 Grifo nosso

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Nesse ato de culto de Joacute a adoraccedilatildeo pode-se verificar uma expressatildeo original ndash uma autoexpressatildeo ndash que tem como essecircncia a espontaneidade da expressatildeo em resposta agrave percepccedilatildeo da trageacutedia ocorrida em sua vida

O conceito de autoexpressatildeo eacute definido como uma expressatildeo original que responde espontaneamente agrave percepccedilatildeo de algo A autoexpressatildeo acontece em resposta a um dado sensorial especiacutefico tendo como essecircncia a espontaneidade Contrariamente a expressatildeo pode ser um ato intencional servindo mais para demonstrar os sentimentos dos indiviacuteduos do que se apresentar como uma expressatildeo primaacuteria uma autoexpressatildeo139

O segundo exemplo citado por Sorge se encontra em Gecircnesis 225 passagem biacuteblica da narrativa de um episoacutedio muito marcante na vida de Abraatildeo que denota sua atitude de adorar mesmo quando Deus ordenara que sacrificasse o seu proacuteprio filho seu uacutenico herdeiro que o proacuteprio Deus tinha providenciado de forma milagrosa Mesmo naquela situaccedilatildeo desesperadora Abraatildeo teve a atitude de adorar a Deus Assim comenta Sorge

Quando Abraatildeo estava a caminho da montanha onde pretendia matar o seu uacutenico filho o que disse ele aos criados ldquoEntatildeo disse a seus servos Esperai aqui com o jumento eu e o rapaz iremos ateacute laacute e havendo ado-rado voltaremos para junto de voacutesrdquo (Gecircnesis 225) Na ansiedade mental de planejar matar o seu proacuteprio filho quando Deus sem duacutevida parecia estar a milhas de distacircncia Abraatildeo adorou Ele natildeo podia entender por-que Deus tinha ordenado que ele sacrificasse o seu uacutenico filho o uacutenico e verdadeiro herdeiro que Deus tinha providenciado milagrosamente Mas apesar da sua incapacidade em compreender as intenccedilotildees de Deus Abraatildeo adorou A sua adoraccedilatildeo natildeo teria sido completa sem a sua total obediecircncia140

139 FIGUEIREDO faz o seguinte comentaacuterio sobre a diferenciaccedilatildeo entre esses dois conceitos ndash autoexpres-satildeo e expressatildeo ldquouma autoexpressatildeo de juacutebilo realizada por um indiviacuteduo pela presenccedila apresentaccedilatildeo ou contemplaccedilatildeo de um ldquodeusrdquo ou de algum objeto que o represente pode resultar no nascimento de uma praacutetica ritual Nesse momento originaacuterio de um ritual a demonstraccedilatildeo de juacutebilo gradativamente se propaga agraves pessoas presentes e todos satildeo possuiacutedos do mesmo sentimento as emoccedilotildees humanas satildeo tocadas profundamente nesse momento Numa segunda ocasiatildeo tal demonstraccedilatildeo de juacutebilo eacute repetida mas agora sem aquele fator gerador da expressividade do grupo como ocorrido na primeira ocasiatildeo o segundo momento eacute realizado portanto como uma accedilatildeo intencional do grupo servindo mais para demonstrar os sentimentos dos indiviacuteduos do que uma autoexpressatildeo ou servindo para aliviar os sentimentos do grupo Neste caso ocorre a execuccedilatildeo de um ato supostamente expressivo porque natildeo possui a respectiva motivaccedilatildeo interior Eacute um ato ritual e natildeo um ato expressivo em sua essecircncia (um ato autoexpressivo) Sua suposta expressividade tem uma motivaccedilatildeo loacutegica racional intencional em contraposiccedilatildeo a um ato fisioloacutegico e espontacircneo caracteriacutestica daquele primeiro momento de juacutebilordquo (FIGUEIREDO 2010124-125) Leia mais sobre esse assunto em FIGUEIREDO 2010123-125140 SORGE 2018 cap 4 Grifo nosso

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Essa expressatildeo primaacuteriaoriginal de adoraccedilatildeo de Joacute e Abraatildeo em resposta agrave atuaccedilatildeo de Deus em suas vidas satildeo exemplos de autoexpressatildeo

3 CULTO UM EVENTO NO QUAL Eacute O POVO QUEM TRA-BALHA

Haacute uma criacutetica do filoacutesofo-teoacutelogo dinamarquecircs Soren Kierkgaard que aponta para a inversatildeo das funccedilotildees dos partiacutecipes nos atos de culto (liturgia) a qual deve ser levada em consideraccedilatildeo

Kierkgaard criticou a natildeo participaccedilatildeo ativa do povo da sua igreja lituacutergica luterana ldquoInsistiu em que na verdadeira adoraccedilatildeo a congregaccedilatildeo satildeo os atores o ministro e o coro satildeo os lsquopontosrsquo e Deus eacute o auditoacuteriordquo141 Kierkgaard afirma que ldquono sentido mais enfaacutetico Deus eacute o criacutetico frequentador de teatro que observa para ver como o texto eacute declamado e como ele eacute ouvido O orador portanto eacute o ponto e o ouvinte encontra-se abertamente diante de Deus O ouvinte se posso assim dizecirc-lo eacute o ator que verdadeiramente atua diante de Deus142

A sua criacutetica estava fundamentada nos fatos ocorridos na Idade Meacutedia quan-do ldquoa missa era essencialmente lsquoobra dos sacerdotesrsquo a congregaccedilatildeo natildeo era nem de bons espectadores visto que natildeo entendia as palavras [porque a missa era realizada no idioma latino] e em uma grande catedral natildeo conseguia nem ver a accedilatildeordquo143 Nos dias de hoje

em algumas situaccedilotildees evangeacutelicas parece claro tambeacutem que a adoraccedilatildeo eacute obra do ministro e do coro a congregaccedilatildeo eacute o ldquoauditoacuteriordquo o que suge-re que eles [fieacuteis] agem mais como ouvintes Em muitas situaccedilotildees eles [fieacuteis] nunca satildeo encorajados a falar uma soacute palavra nos cultos lendo as Escrituras ou participando das oraccedilotildees [] Indubitavelmente lhes eacute per-mitido cantar os hinos embora algumas vezes estes sejam bem poucos e ateacute mesmo esta oportunidade eacute ignorada por muitas pessoas em algumas congregaccedilotildees Eacute verdade que pode-se envolver na adoraccedilatildeo ndash pode-se ateacute falar com Deus ndash sem pronunciar nem um som audiacutevel mas cremos que eacute desejaacutevel ter o maacuteximo de participaccedilatildeo da congregaccedilatildeo tanto do que se fala como do que se canta e tambeacutem da accedilatildeo fiacutesica 144

141 HUSTAD 1986165142 HUSTAD 1986165143 HUSTAD 1986165144 HUSTAD 1986165

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Os encontros cultuais puacuteblicos devem priorizar portanto a participaccedilatildeo ativa do povo o trabalho do povo isto eacute os elementos lituacutergicos de um culto (adoraccedilatildeo leitura biacuteblica canto coletivo oraccedilatildeo testemunho mensagem muacutesica instrumental coro etc) devem propiciar a participaccedilatildeo plena do povo

Outro autor que trabalha esses dois termos ndash liturgia e culto ndash eacute o teoacutelogo Nelson Kirst Ele compara o momento do culto com o ldquorancho na roccedilardquo O culto eacute o encontro de Deus com a sua comunidade e a ldquoliturgia eacute o conjunto de elementos e focircrmas (espaccedilos lugares tempos objetos funccedilotildees gestos foacutermu-las histoacuterias instruccedilotildees olhares siacutembolos e significados) atraveacutes dos quais se realiza o encontro de Deus com sua comunidaderdquo145

Imagine-se uma famiacutelia de agricultores que sai para trabalhar um pedaccedilo de terra localizado a 1 ou 2 km de casa De manhatilde bem cedo potildeem-se todos a caminho de carroccedila levando enxadas foices facotildees arado e o cesto com o lanche Laacute chegando dividem as tarefas e se lanccedilam ao trabalho Mourejam por umas duas horas e entatildeo se recolhem para um descanso Em algum ponto daquela roccedila ergue-se o rancho construccedilatildeo tosca de trecircs paredes e um telhado em meia-aacuteguaEacute no aconchego do rancho na roccedila que a famiacutelia camponesa depois da primeira arrancada de enxada e arado se recolhe descansando o corpo fortalecendo-se de patildeo aacutegua fresca e conversa - para meia horinha depois voltar agrave enxada e ao arado e misturar seu suor agrave terra em outro tanto de jornada A famiacutelia vai da enxada para o rancho e sai fortalecida do rancho para a enxada A parada no rancho natildeo faz sentido sem o trabalho na roccedila E o trabalho na roccedila se esgota em agitaccedilatildeo e cansaccedilo sem a parada no rancho146

O culto entatildeo eacute o lugar para renovaccedilatildeo de energias espirituais lugar onde o povo busca ldquoalimentordquo espiritual atraveacutes dos atos de adoraccedilatildeo e louvor ao Deus criador ao Deus salvador Atos de enunciaccedilatildeo de suas alegrias e suas tristezas de exposiccedilatildeo suas ansiedades e vitoacuterias e o retorno para a vida ordinaacuteria das atividades seculares

O culto constituiacutedo pelo conjunto de elementos lituacutergicos eacute um evento total que possui situaccedilotildees momentacircneas cultuais diversas Qual eacute a origem desses momentos determinados constantes de uma liturgia

145 KIRST 1998119146 KIRST 1998119

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4 ldquoA VISAtildeO DE ISAIacuteASrdquo UM DOS MODELOS DE EVENTO CULTUAL

Apesar da origem natildeo-lituacutergica dos batistas sua liturgia segue alguns princiacutepios modelos Os atos lituacutergicos natildeo satildeo propostos aleatoriamente Entatildeo de onde vecircm esses princiacutepiosmodelos que norteiam uma liturgia

Esses elementos vecircm dos exemplos biacuteblicos de adoraccedilatildeo O teoacutelogo Romeu R Martini nos apresenta no seu livro Liturgia e culto o exemplo biacuteblico de Noeacute (Gn 6-8) e o teoacutelogo Russel P Shedd no seu livro Adoraccedilatildeo biacuteblica elenca vaacuterios exemplos biacuteblicos de adoraccedilatildeo afirmando que ldquoas sagradas letras satildeo o nosso manual de adoraccedilatildeordquo147

O salmista no Salmo 96 Enoque em Gn 522-24Hb 56 Jacoacute em Gn 3222ss Moiseacutes em Ex 3312-33 Isaiacuteas em Is 61-8 e Maria em Jo 121-8 satildeo os exemplos apresentados por Shedd

De todos esses exemplos biacuteblicos de adoraccedilatildeo haacute uma convergecircncia entre os teoacutelogos de que a experiecircncia de Isaiacuteas eacute a que mais detalhes apresenta sobre os diversos atos ocorrentes em um encontro de um ser humano com o Deus criador Do texto de Isaiacuteas 6-1-9a emergem os seguintes atos lituacutergicos

- Consciecircncia da presenccedila de Deus (Is 61) ndash Preluacutedio

- Adoraccedilatildeo (Is 62-3)

- Confissatildeo (Is 65)

- Perdatildeo (Is 66-7)

- Apelo (Is 68) ndash Palavra do SenhorEnsino

- Consagraccedilatildeo (Is 68) ndash Resposta do homem

- Disponibilidade para o serviccedilo (Is 69a) ndash Posluacutedio

Nelson Kirst fala de uma forma mais abrangente que a liturgia ndash a sequecircncia de atos elementos eventos ornamentos e momentos lituacutergicos ndash precisa ser moldada Utiliza o exemplo de uma casa com seus cocircmodos para o entendimento dessa questatildeo

Uma casa eacute composta de diversas dependecircncias Haacute certas dependecircncias que natildeo podem faltar numa casa p ex a cozinha ou o dormitoacuterio Satildeo imprescindiacuteveis Haacute outras partes que satildeo uacuteteis sem ser imprescindiacuteveis

147 SHEDD 1987113

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p ex a sala de estar a sala de jantar ou a varanda Assim tambeacutem a liturgia tem partes imprescindiacuteveis que nunca podem faltar e partes que satildeo uacuteteis mas podem faltar num cultoNa comparaccedilatildeo da liturgia com uma casa tambeacutem se aprende alguma coisa sobre a disposiccedilatildeo das diversas partes dentro do conjunto A entrada de uma casa geralmente vai ser pela sala de estar ou perto da sala de estar e natildeo pela cozinha ou pelo dormitoacuterio Por outro lado o banheiro pode localizar-se entre o dormitoacuterio e a sala ou entre o dormitoacuterio e a cozinha e a sala de estar pode encontrar-se do lado esquerdo ou do lado direito da entrada Assim tambeacutem na liturgia haacute certas partes que tecircm seu lugar fixo p ex o canto de entrada soacute pode estar no iniacutecio do culto e a interpretaccedilatildeo da Palavra soacute pode vir depois das leituras biacuteblicas E haacute outras partes que podem ser dispostas com certa flexibilidadeFinalmente haacute muita maleabilidade na maneira como satildeo configuradas as diversas dependecircncias de uma casa O material as cores as cortinas a decoraccedilatildeo dependeratildeo de quem haacute de utilizar essa casa para morar Assim tambeacutem haacute muita liberdade quanto agrave maneira ou ao estilo de se realizar as partes da liturgia148

5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAISFinalizando liturgia significa os atos ocorrentes no momento de culto isto

eacute os atos praticados pelos indiviacuteduos em reaccedilatildeo agrave accedilatildeo divina Os batistas satildeo uma igreja livre (natildeo-lituacutergica) em relaccedilatildeo agrave orientaccedilatildeo lituacutergica A liturgia dos batistas procura seguir os exemplos de adoraccedilatildeo encontrados na Biacuteblia sendo a experiecircncia de Isaiacuteas com Deus a mais ensinada nas casas teoloacutegicas como modelo de atos cultuais

Para que a liturgia natildeo se transforme em um ritual ndash uma monoacutetona repeticcedilatildeo de atos lituacutergicos ndash existe uma liberdade na sua elaboraccedilatildeo preservando-se alguns dos elementoseventos cultuais de adoraccedilatildeo biacuteblica bem como a omissatildeo de outros

Hustad afirma que em resumo a liturgia de um culto deve contemplar duas accedilotildees baacutesicas da adoraccedilatildeo ldquouma revelaccedilatildeo plena de Deus seus atos e sua vontade para noacutes e uma reaccedilatildeo dos homens e mulheres incluindo corpo emoccedilatildeo intelecto e vontaderdquo149

148 KIRST 1998125149 HUSTAD 1986166 Grifo nosso

97TeoloacutegicaRevista Brasileira de Teologia ISSN 1807-7056 nordm 8 outdez Rio de Janeiro 2020 p 86 - 97

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LITURGIA E IDENTIDADE RELIGIOSA NO APOCALIPSE DE JOAtildeO

Valtair A Miranda150

RESUMONosso propoacutesito neste artigo eacute analisar as peccedilas hiacutenicas descritas nos capiacutetulos

quatro e cinco do livro de Apocalipse e refletir sobre o papel que executam na construccedilatildeo e manutenccedilatildeo da identidade social e religiosa dos leitores e ouvintes desse livro no momento da sua produccedilatildeo Argumentamos que os hinos registrados nas obras do movimento de Jesus possuiacuteam um papel significativo na definiccedilatildeo da autodescriccedilatildeo dos membros das igrejas quer por representarem o que se cantava nas comunidades quer como sugestatildeo do que cantar Cantar entatildeo natildeo apenas descreve a pessoa de Deus ou o falar com ele mas propicia a quem canta um forte senso de identidade pessoal e social Nos hinos o fiel expressa o que ele se ainda natildeo eacute pelo menos gostaria de ser

Palavras-chave Apocalipse de Joatildeo Culto e ritual hino e liturgia Cristianismo antigo

ABSTRACTOur purpose in this article is to analyze the hymn pieces of Revelation 4 and

5 and to reflect on their role in building and maintaining the social and religious identity of the readers and listeners of this book at the time of its production We argue that the hymns recorded in the works of the Jesus movement had a signifi-cant role in defining the self-description of church members either because they represent what was sung in the communities or rather as a suggestion to sing Singing then not only describes God or speaks to him but gives the person who sings a strong sense of personal and social identity In the hymns the faithful express what he if he still is not at least would like to be

Keywords Revelation of John Worship and ritual worship and liturgy Ancient Christianity

150 Valtair Afonso Miranda eacute Doutor em Ciecircncias da Religiatildeo (UMESPSP) e Doutor em Histoacuteria (UFRJ) Eacute Diretor Acadecircmico da Faculdade Batista do Rio de Janeiro onde leciona Histoacuteria da Igreja e Exegese do Novo Testamento

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O capiacutetulo 4 de Apocalipse inicia uma longa seccedilatildeo descritiva de um tipo de culto celestial Aparentemente este livro poderia ser dividido em trecircs partes uma seccedilatildeo para descrever a visatildeo do Filho do Homem que aparece a Joatildeo para narrar sete cartas para sete igrejas (capiacutetulos 1 a 3) uma seccedilatildeo para descrever a visatildeo do rolo selado com sete selos (capiacutetulos 4 a 11) e uma uacuteltima para apresentar o conflito escatoloacutegico entre o Cordeiro e o Dragatildeo (capiacutetulos 12 a 22)151

Nesse sentido o capiacutetulo 4 seria o iniacutecio da segunda seccedilatildeo Sua narrativa co-meccedila com o ingresso do visionaacuterio por uma porta aberta no ceacuteu e o subsequente acesso ao Templo Celestial Na perspectiva da audiecircncia desse texto a cena elabora uma narrativa a partir de uma preacutevia experiecircncia extaacutetica Afinal Joatildeo continua na Ilha de Patmos apesar de o seu espiacuterito vislumbrar o trono divino e uma seacuterie de personagens que participam da liturgia celestial Embora se apresente como a narrativa de uma experiecircncia visionaacuteria entretanto o Apocalipse ecoa por meio dessa cena um conjunto de tradiccedilotildees e passagens provavelmente bem conhecidas de sua audiecircncia como Ecircxodo 249-11 Isaiacuteas 6 Ezequiel 126-28 Daniel 79-28 1Reis 2219-23 1Enoque 39 e 2 Enoque 20-22 entre outras

O primeiro versiacuteculo do capiacutetulo 4 apresenta um anjo convocando Joatildeo para subir ao ceacuteu Esse anjo promete mostrar ao visionaacuterio o que aconteceria ldquodepois destas coisasrdquo O cumprimento dessa promessa do anjo se daacute nos termos do relato quando o Cordeiro siacutembolo do Jesus crucificado rompe sete selos de um livro e provoca sete trombetas escatoloacutegicas Isso aparece no capiacutetulo 6 em diante jaacute que os dois primeiros capiacutetulos da seccedilatildeo (4 e 5) se dedicam ao ato lituacutergico em um ritmo muito lento apresentando as cenas e os atores do culto celestial

Nosso propoacutesito neste artigo eacute analisar as peccedilas hiacutenicas desses dois capiacutetulos do Apocalipse e refletir sobre o papel delas na construccedilatildeo e manutenccedilatildeo da identidade social e religiosa dos leitores e ouvintes do livro no seu momento de produccedilatildeo152

151 Para uma discussatildeo dessa estrutura no formato de trecircs seccedilotildees conferir o meu livro MIRANDA Valtair Afonso O caminho do Cordeiro representaccedilatildeo e construccedilatildeo de identidade no Apocalipse de Joatildeo Satildeo Paulo Paulus 2011152 Pressupomos que esta obra foi escrita no final do seacuteculo I e enviada para membros do movimento de Jesus na proviacutencia romana da Aacutesia especificamente para comunidades nas cidades de Eacutefeso Esmirna Peacutergamo Tiatira Saacuterdis Filadeacutelfia e Laodiceia Para uma anaacutelise mais ampla do contexto de produccedilatildeo do Apocalipse de Joatildeo conferir MIRANDA Valtair A Revisitando o contexto de produccedilatildeo do Apocalipse de Joatildeo Reflexus ano IX n 14 p 389-416 2015 FRIEDRICH Paulo Nestor Apocalipse 2ndash3 Sete cartas Uma anaacutelise literaacuteria Estudos de Religiatildeo Satildeo Bernado do Campo n 19 p 149-173 2000 WIKENHAUSER Alfred El Apocalipsis de San Juan p 25-34

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CELEBRANDO A CRIACcedilAtildeO O CULTO AO DEUS ENTRONI-ZADO

O capiacutetulo 4 do Apocalipse apresenta um trono no ceacuteu e em torno dele ele-mentos tiacutepicos de uma teofania da Escritura judaica (Is 61-4) Como na visatildeo de Isaiacuteas esse trono divino eacute uma peccedila central Tudo gira em torno dele Ao seu redor estatildeo quatro criaturas denominadas de Seres Viventes Aleacutem destes o relato apresenta tambeacutem vinte e quatro tronos menores nos quais se assentam vinte e quatro anciatildeos vestidos com roupas brancas tendo coroas de ouro na cabeccedila Independentemente da forma como os inteacuterpretes contemporacircneos interpretam esses personagens celestiais o essencial eacute que todos estatildeo envolvidos em atos lituacutergicos Eles adoram o anciatildeo que se assenta sobre o trono

Os Quatro Viventes especificamente tecircm como missatildeo sem descanso dia e noite expressar adoraccedilatildeo (Ap 48) Deles Joatildeo ouve ldquoSanto Santo Santo eacute o Senhor Deus o Todo-Poderoso aquele que era que eacute e que haacute de virrdquo O hino comeccedila com uma expressatildeo triacuteplice originada em Isaiacuteas 63 ldquoE clamavam uns para os outros dizendo Santo santo santo eacute o Senhor dos Exeacutercitos toda a terra estaacute cheia da sua gloacuteriardquo No texto de Isaiacuteas a canccedilatildeo eacute entoada por Serafins figuras parecidas com serpentes aladas Essa passagem foi largamente usada em textos apocaliacutepticos para compor as cenas do santuaacuterio celestial (1En 3012 2En 211 Ap Abr 16) Os grupos judaicos do segundo Templo frequentemente viam no triacuteplice ldquosantordquo a expressatildeo perfeita do culto dos anjos deduzindo daiacute um modelo para o culto na terra153

Eacute interessante comparar a versatildeo de Isaiacuteas com a LXX e o Apocalipse e assim verificar a forma como as tradiccedilotildees literaacuterias satildeo retomadas no Apo-calipse A LXX que normalmente traduz o termo tsabaoth por pantokrator dessa vez simplesmente transliterou o termo sabaoth Joatildeo entretanto de forma consistente continuou usando pantokrator no lugar de tsabaoth De qualquer forma ambas as expressotildees denotam um ser soberano sobre todos os outros deuses e senhores da terra Ele eacute o Senhor dos Exeacutercitos o Todo-poderoso o Senhor da terra toda Isso daacute ao conjunto da canccedilatildeo um tom de natureza poliacute-tica A acentuaccedilatildeo do ldquoSenhor Deus Todo-Poderosordquo eacute ainda maior porque o hino acrescenta agrave descriccedilatildeo divina a expressatildeo ldquoaquele que era que eacute e que haacute de virrdquo no que se configura uma afirmaccedilatildeo da eternidade imutabilidade e autonomia divinas uma evocaccedilatildeo do ldquoeu sourdquo de Ecircxodo 314 Um Deus eterno natildeo estaacute sujeito agraves variaccedilotildees do tempo ou agraves transiccedilotildees dos domiacutenios humanos

153 PRIGENTE P O Apocalipse p 104

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No momento em que os Quatro Viventes cantam o hino de Isaiacuteas denominado frequentemente de ldquokedushaacuterdquo os Vinte e Quatro Anciatildeos se prostram diante do que se assenta no trono depositando aos seus peacutes suas coroas de ouro Dessa vez satildeo eles que adoram ldquoTu eacutes digno Senhor e Deus nosso de receber a gloacuteria a honra e o poder porque todas as coisas tu criaste sim por causa da tua vontade vieram a existir e foram criadasrdquo (Ap 411)

A forma literaacuteria eacute de aclamaccedilatildeo mas configurada em expressatildeo hiacutenica no texto do visionaacuterio A estrutura do hino consiste do adjetivo ldquodignordquo seguido do verbo ser (na terceira pessoa do singular) mais uma seacuterie de atributos Esse eacute um hino de dignidade A divindade eacute adorada porque eacute digna e eacute digna em funccedilatildeo da sua obra de criaccedilatildeo

Esse hino tambeacutem levanta a questatildeo de quem eacute digno de ser adorado Possi-velmente eacute uma peccedila lituacutergica que surge em meio agrave disputa por adoraccedilatildeo Com um hino desse tipo o Apocalipse tenta apontar quem eacute digno de adoraccedilatildeo e consequentemente quem natildeo o eacute

Essas expressotildees querem responder agrave questatildeo ldquoquem eacute o verdadeiro senhor da terrardquo ou entatildeo quem eacute digno de ser A resposta do Apocalipse eacute clara o Senhor da terra eacute aquele que a criou A ele pertencem todas as coisas

Esses hinos poderiam atuar na identidade da audiecircncia de diversas maneiras mas destacamos aqui apenas trecircs Primeiramente ao ouvir tais hinos ou cantaacute--los a audiecircncia acompanha os seres celestiais declarando o senhorio exclusivo de Deus sobre o mundo154 Deus eacute o verdadeiro Senhor da Terra o que promove uma determinada filosofia da histoacuteria Um Deus Soberano estaacute acima dos poderes e governos do mundo Esse tipo de divindade tem poder para controlar e dirigir a histoacuteria da humanidade e o faraacute levando-a ateacute a instalaccedilatildeo efetiva do seu Reino sobre a terra (Ap 510) O olhar sobre esse futuro - mas iminente - reino alerta as comunidades de crentes que a vida que eles vivem no presente eacute circunstancial e peregrina O seu destino ainda natildeo chegou Um primeiro efeito plausiacutevel entatildeo se daria na postura poliacutetica dos fieis cantantes ao promover a perspectiva de oposiccedilatildeo agrave sociedade circundante155

Segundo ao afirmar que somente Deus eacute digno de receber adoraccedilatildeo honra poder o hino afirma a singularidade da figura divina diante das pretensotildees im-

154 BORTOLINI Joseacute Como ler o Apocalipse p 53155 Para uma reflexatildeo mais ampla sobre posturas de oposiccedilatildeo do movimento de Jesus agrave estrutura imperial romana cf MIRANDA Valtair A Religiatildeo e sociedade na Aacutesia romana Religare v13 n1 p150-179 2016 LAZIER Josueacute Adam A estrateacutegia cristatilde no contexto da Pax Romana Estudos Biacuteblicos n 36 p 37-40 1992 MESTER Carlos OROFINO Francisco A violecircncia do Impeacuterio Romano e a sua influecircncia na vida das comunidades cristatildes do fim do primeiro seacuteculo Estudos Biacuteblicos n 69 p 72-82 2001

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periais romanas E ao afirmar a singularidade de Deus o hino tambeacutem reforccedila a singularidade de seus adoradores Mesmo que experimentando o desprezo da sociedade romana os seguidores de Jesus se percebem como figuras especiais pois formam o povo de Deus na terra

Terceiro esse conhecimento do senhorio de Deus sobre o universo e da singu-laridade do seu povo eacute um conhecimento profundo que somente quem acessa as regiotildees celestiais conhece Ningueacutem consegue enxergar o que eles veem naquele momento Essa ldquovisatildeo profundardquo era dada aos seguidores do Cordeiro quando se reuniam em seus encontros de culto Dessa forma o culto se torna o espaccedilo privilegiado para o acesso a um ldquooutro mundordquo no interior ldquodeste mundordquo

CELEBRANDO A REDENCcedilAtildeO O CULTO AO CORDEIROO capiacutetulo 5 do Apocalipse apresenta uma crise Qual eacute a crise Joatildeo eacute infor-

mado de que haacute um rolo que ningueacutem pode abrir Ele comeccedila a chorar ateacute que algueacutem bate no seu ombro e diz ldquoNatildeo chores eis que o Leatildeo da tribo de Judaacute a Raiz de Davi venceu para abrir o livro e os seus sete selosrdquo (Ap 55) Ele ouve falar de um leatildeo mas quando olha o que vecirc eacute um cordeiro Eacute Jesus Cristo na forma simboacutelica de um cordeiro ensanguentado representando a centralidade do seu sacrifiacutecio na cruz no projeto de redenccedilatildeo divino Daqui em diante o Cordeiro Jesus Cristo jaacute com o rolo na matildeo vai comeccedilar a quebrar os selos do rolo um por um Agrave medida que cada selo eacute removido uma cena eacute testemunhada por Joatildeo

Jesus que jaacute aparecera antes na forma do Filho do Homem (Ap 113) agora eacute descrito como um cordeiro com aparecircncia de ter sido morto com sete chifres e sete olhos Satildeo imagens que devem ser menos entendidas e mais sentidas Chifres e olhos tecircm a ver com a presenccedila do poder e do espiacuterito de Deus Mas de onde vem a imagem do Cordeiro

Essa imagem tem analogia com o sacrifiacutecio e a morte Uma passagem relevante para estudar o significado de ldquocordeirordquo estaacute no Antigo Testamento especifica-mente em uma profecia de Jeremias 1119 ldquoEu era como manso cordeiro que eacute levado ao matadouro porque eu natildeo sabia que tramavam projetos contra mim dizendo Destruamos a aacutervore com seu fruto a ele cortemo-lo da terra dos vi-ventes e natildeo haja mais memoacuteria do seu nomerdquo O profeta fala de si mesmo como um cordeiro que eacute levado mansamente para a morte

A passagem mais proacutexima de Jeremias eacute Isaiacuteas 537 ldquoEle foi oprimido e humilhado mas natildeo abriu a boca como cordeiro foi levado ao matadouro e como ovelha muda perante os seus tosquiadores ele natildeo abriu a bocardquo O relato de Isaiacuteas 53 sobre o ldquoservo sofredorrdquo reaparece no Novo Testamento de diversas

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formas para falar do ministeacuterio de Jesus e sua morte (Lc 2237 At 832-33 1Pe 222) sendo muito importante para responder agrave questatildeo de como o sofrimento e a morte de Jesus poderiam ser explicados diante da sua natureza messiacircnica

Eacute exatamente isso que aparece quando o Apocalipse descreve Jesus como um Cordeiro Ele eacute o Messias pelo caminho do sacrifiacutecio Mais ainda o Cordeiro Jesus

- Eacute aquele que morreu e ressuscitou (Ap 56)

- Eacute adorado pelas figuras celestiais (Ap 581213)

- Eacute o que tem o poder de revelar os eventos celestiais (Ap 61)

- Eacute o que julgaraacute todas as pessoas (Ap 616 717) pois possui o Livro da Vida (2127)

- Eacute o que lavou as vestes dos salvos com o seu proacuteprio sangue (Ap 791014)

- Eacute o que vence o Dragatildeo em funccedilatildeo do seu sangue (Ap 1211)

- Venceraacute as bestas (Ap 1714)

- Se casaraacute com sua noiva a Nova Jerusaleacutem o povo de Deus (Ap 1979 219)

- Iluminaraacute a Nova Jerusaleacutem (Ap 2123)

A imagem do cordeiro sacrificial entatildeo no Apocalipse faz referecircncia natildeo apenas ao sofrimento e agrave morte mas tambeacutem agrave vitoacuteria reinado poder e gloacuteria Eacute a esse Cordeiro exaltado que toda a adoraccedilatildeo do capiacutetulo 5 se dirige Ele eacute digno de ser adorado porque segundo os vinte e quatro anciatildeos e os Quatro Viventes morreu e com seu sangue comprou pessoas de todas as naccedilotildees constituindo-as reino e sacerdotes para Deus (Ap 59-10) Os mesmos seres que adoraram a Deus no capiacutetulo 4 agora se rendem em adoraccedilatildeo ao Cordeiro de Deus no capiacutetulo 5 (Ap 59-10) ldquoDigno eacutes de tomar o livro e abrir-lhe os selos porque foste morto e compraste para Deus atraveacutes do teu sangue pessoas de toda tribo liacutengua povo e naccedilatildeo e os constituiacuteste para o nosso Deus reino e sacerdotes e reinaratildeo sobre a terrardquo

Adela Yarbro Collins estudiosa da Yale University (EUA) interpretou esse rolo como uma epiacutestola celestial na forma de um livro de destino Em outras palavras ele seria uma taacutebua de eventos futuros Os sete selos enfatizam simbolicamente a intensidade do segredo do conhecimento sobre os eventos futuros cujo conteuacutedo eacute dado na forma de duas seacuteries de sete visotildees (selos e trombetas)156 O Cordeiro seria o uacutenico digno de revelar para o visionaacuterio e sua comunidade o conhecimento escatoloacutegico A base dessa dignidade eacute a morte de Jesus Cristo

156 COLLINS Adela Yarbro The combath myth in the Book of Revelation p 25

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A imagem de um cordeiro imolado jaacute seria evocaccedilatildeo suficiente agrave morte de Jesus da mesma forma como sua posiccedilatildeo em relaccedilatildeo ao trono o afirma vivo e com poder para fazer especificamente duas coisas comprar para Deus um povo exclusivo e fazecirc-los reino e sacerdotes de Deus Essa afirmaccedilatildeo jaacute apareceu antes (Ap 15-6) na forma de um hino entoado pelo autor na primeira pessoa do plural ldquoAgravequele que nos ama e pelo seu sangue nos libertou dos nossos pecados e nos constituiu reino sacerdotes para o seu Deus e Pai a ele a gloacuteria e o domiacutenio pelos seacuteculos dos seacuteculos Ameacutemrdquo Jaacute nesse hino ao Cordeiro satildeo os Vinte e Quatro Anciatildeos diante do Trono no ceacuteu que declaram esta mesma realidade Seria uma maneira de indicar que os seres celestiais confirmam o status real e sacerdotal cantado pelos crentes na terra

A origem dessas pessoas como ldquode toda tribo liacutengua povo e naccedilatildeordquo afirma o caraacuteter natildeo mais eacutetnico do povo de Deus A filiaccedilatildeo natildeo seria mais uma questatildeo de sangue mas de compromisso com o Cordeiro

As formas verbais satildeo bem precisas Os seguidores do Cordeiro jaacute foram comprados e jaacute receberam a investidura real e sacerdotal Seriam accedilotildees realizadas por Jesus no momento de sua morte e ressurreiccedilatildeo Mesmo assim uma reserva escatoloacutegica se manifesta eles ainda reinaratildeo sobre a terra Eles jaacute fazem parte do reino de Deus e seu filho Jesus Cristo mas esse reino ainda natildeo eacute visto por quem natildeo faz parte dele O cacircntico expressa a esperanccedila entretanto somente na intervenccedilatildeo uacuteltima de Deus esse reinado se materializaraacute157

Os cantores desse hino de dignidade ao Cordeiro satildeo os Quatro Viventes e os Vinte e Quatro Anciatildeos A cena ganha proporccedilotildees ainda maiores quando apoacutes o hino anjos em nuacutemero de ldquomilhotildees de milhotildees e milhares de milharesrdquo tambeacutem cantam a mesma temaacutetica (Ap 512) ldquoDigno eacute o Cordeiro que foi morto de receber o poder e riqueza e sabedoria e forccedila e honra e gloacuteria e louvorrdquo

Enquanto a primeira canccedilatildeo de dignidade ao Cordeiro estaacute na segunda pessoa do singular (um hino que fala com o Cordeiro) a canccedilatildeo dos anjos estaacute na terceira pessoa do singular (um hino que fala do Cordeiro) Em ambas as canccedilotildees o objeto de adoraccedilatildeo eacute descrito numa linguagem poliacutetico-religiosa do antigo Israel

Ele eacute o Leatildeo da Tribo de Judaacute a raiz de Davi que conquistou e portanto eacute digno de abrir o rolo que Deus entregou em suas matildeos Mas eacute ao mesmo tempo um Cordeiro em peacute como se tivesse sido morto Eacute ele que tem o rolo na matildeo

157 Isto configura um determinado tipo de milenarismo como analisado em MIRANDA Valtair A Maacutertires e monges milenarismos antigos e medievais Santo Andreacute Kapenke 2018 p 43-72

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O Leatildeo era usado como siacutembolo de poder no mundo antigo (Pr 3030) e se tornou associado com o trono de Davi atraveacutes da caracterizaccedilatildeo de Judaacute feita por Jacoacute (Gn 499) A raiz de Davi eacute uma metaacutefora para a linhagem de Davi (Is 1110) e se tornou siacutembolo da restauraccedilatildeo da monarquia daviacutedica (Jr 235) Essas tradiccedilotildees do restabelecimento do reino de Deus como um ato de forccedila e poder eram tradicionais Mas essa natildeo eacute a perspectiva de Apocalipse que inverte a imagem O leatildeo se torna cordeiro Existe violecircncia sim mas contra o cordeiro natildeo do Cordeiro Ele tem poder e tem forccedila para conquistar mas seus atos de conquista passaram pela sua morte158

Se Deus eacute digno por causa de sua obra de criaccedilatildeo o Cordeiro eacute digno por causa da redenccedilatildeo Somente ele entatildeo eacute capaz de abrir os selos somente ele venceu a morte Ao inserir o tema da morte do Cordeiro na tradiccedilatildeo messiacircnica daviacutedica o visionaacuterio insere na esperanccedila messiacircnica poliacutetica os aspectos da tradiccedilatildeo sacrificial

As cenas de culto celestial natildeo eram novidades na apocaliacuteptica Entretanto a presenccedila do Cordeiro ldquocomo que mortordquo no Templo celestial participando ou mesmo recebendo o culto eacute uma grande novidade do Apocalipse de Joatildeo Um nuacutemero muito maior de epiacutetetos nesses hinos de dignidade eacute lanccedilado sobre o Cordeiro do que ao proacuteprio Anciatildeo que estava assentado sobre o trono central do Santuaacuterio

Apoacutes a adoraccedilatildeo ao Cordeiro o relato acrescenta que ldquotoda criatura que haacute no ceacuteu e sobre a terra debaixo da terra e sobre o mar e tudo o que neles haacuterdquo e se volta novamente para aquele que se assenta no trono A descriccedilatildeo do culto celestial assim extrapola os espaccedilos celestiais pois envolve tambeacutem o acircmbito da terra e do mar bem como todos os seus seres A natureza inteira aparece envolvida na adoraccedilatildeo celestial O que eles cantam eacute ldquoAo que se assenta sobre o trono e ao Cordeiro o louvor e a honra e a gloacuteria e o domiacutenio para os seacuteculos dos seacuteculosrdquo (Ap 513)

Finalmente ambos os personagens celebrados no culto celestial recebem simultaneamente a adoraccedilatildeo As claacuteusulas de dignidade se parecem com o hino dos anjos (Ap 512) e com o hino a Deus em Apocalipse 411 A gloacuteria e a honra aparecem nos trecircs hinos O poder eacute dado a Deus pelos Vinte e Quatro Anciatildeos e ao Cordeiro pelos anjos mas natildeo aparece na lista quando ambos satildeo louvados juntos Na adoraccedilatildeo a Deus e ao Cordeiro por sua vez ainda se manifestam o domiacutenio e o louvor que natildeo apareceram antes para Deus De qualquer forma todas

158 BARR David L Tales of the End p 70

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as dignidades de Deus pertencem tambeacutem ao Cordeiro que ainda suporta outras Somente Ele nesses trecircs hinos de dignidade teve celebrada a riqueza a sabedoria e a forccedila Esses elementos sinalizam que diferentemente das visotildees tradicionais do Templo celestial no Apocalipse de Joatildeo natildeo eacute Deus a figura principal mas sim o Cordeiro Ele eacute o personagem central da revelaccedilatildeo do visionaacuterio

Nos termos de Hurtado

judeus convertidos se reuniam para adorar em nome de Jesus oravam a ele cantavam para ele entendiam que ele estava em uma posiccedilatildeo celestial acima de toda a ordem angelical usaram para ele tiacutetulos e passagens das Escrituras judaicas originalmente usadas para Deus procuraram convencer outros judeus e tambeacutem gentios a reconhece-lo como o redentor messiacircnico escolhido por Deus e em geral redefiniam a devoccedilatildeo tradicional ao uacutenico Deus para incluir a veneraccedilatildeo a Jesus159

Ao apresentar a adoraccedilatildeo de elementos da natureza o visionaacuterio ainda demons-tra a possibilidade de elementos de fora do acircmbito celestial participarem de algu-ma maneira do culto no ceacuteu O que esses elementos celebram eacute a manifestaccedilatildeo do Reino de Deus e seu domiacutenio perpeacutetuo Os cantores desse hino representam toda a ordem da criaccedilatildeo que juntos adoram o que se assenta no trono e o Cordeiro160

Como um responsoacuterio coral a resposta vem daqueles que se encontram bem perto do trono os Quatro Viventes que respondem ldquoAmeacutemrdquo

A conclusatildeo da cena eacute um novo ato de prostraccedilatildeo e adoraccedilatildeo dos Anciatildeos (Ap 513-14) O verbo usado no Apocalipse para adoraccedilatildeo eacute predominantemente proskuneo Ele aparece 60 vezes no Novo Testamento mas em nenhum outro livro tem a importacircncia que tem no livro de Joatildeo no qual aparece 24 vezes indicando o quanto a questatildeo da adoraccedilatildeo eacute central para o visionaacuterio O termo denota prostraccedilatildeo postura de submissatildeo e homenagem atitude que seraacute repetida vaacuterias vezes no Apocalipse

Finalmente o culto ao Anciatildeo e ao Cordeiro dos capiacutetulos 4 e 5 de Apocalipse seraacute interrompido pela seacuterie de selos e trombetas mas apareceraacute novamente em vaacuterios outros lugares da obra

159 HURTADO Larry W One God One Lord p 17-18160 MESTER Carlos OROFINO Francisco Apocalipse de Joatildeo p 182-183

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CONCLUSAtildeORetomando a questatildeo inicial sobre o papel dos hinos dos capiacutetulos 4 e 5 de

Apocalipse na autocompreensatildeo religiosa e social da audiecircncia ali descrita acreditamos que eles funcionariam para afirmar um status exaltado dos segui-dores de Jesus que foram comprados para Deus e lhe pertencem agora Como propriedade exclusiva de Deus satildeo seus sacerdotes fazendo parte do reino de Deus e do Cordeiro jaacute no presente tempo Por isso eles jaacute podem cantar todas as expectativas que as antigas tradiccedilotildees judaicas esperavam para a intervenccedilatildeo escatoloacutegica divina

Profeticamente o reinado de Deus e seu ungido se manifestam jaacute no espaccedilo sagrado do culto O Templo celestial sede do reino de Deus tem seu equivalente na terra no ajuntamento da comunidade de fieacuteis em adoraccedilatildeo Assim separados da vida ordinaacuteria dentro do limite do tempo e espaccedilo ritual na assembleia de adoraccedilatildeo no dia do Senhor os seguidores de Jesus conseguiam ver o que ningueacutem mais via e mais do isso jaacute antecipavam prolepticamente sua participaccedilatildeo no Reino de Deus e seu Cordeiro

Como contraponto entretanto essa perspectiva identitaacuteria promoveria algum tipo de rejeiccedilatildeo agrave ordem social romana A grande pergunta que os capiacutetulos 4 e 5 de Apocalipse quer responder eacute Quem eacute digno de adoraccedilatildeo Muita gente na eacutepoca do Apocalipse dizia que o Imperador Romano era digno de adoraccedilatildeo Para aqueles que cantavam esses cacircnticos entretanto a sociedade romana paganizada estava equivocada

Eacute certo que os imperadores romanos eram pessoas muito poderosas Tatildeo poderosas que imaginavam poder receber honras e adoraccedilatildeo como se fossem divindades O culto imperial era efetivamente um problema para as comunidades receptoras do Apocalipse Entretanto em oposiccedilatildeo a essa estrutura religiosa imperial o Apocalipse responde com o convite para uma adoraccedilatildeo exclusiva a Deus e seu Cordeiro mesmo que o preccedilo para isso fosse o caminho do martiacuterio (Ap 1413)

Valtair Afonso MirandaRua Uruguai 514202

20510-060 ndash Rio de Janeiro RJvaltairmirandagmailcom

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MESTER Carlos OROFINO Francisco Apocalipse de Joatildeo a teimosia da feacute dos pequenos Petroacutepolis Vozes 2002

_________ A violecircncia do Impeacuterio Romano e a sua influecircncia na vida das comu-nidades cristatildes do fim do primeiro seacuteculo Estudos Biacuteblicos n 69 p 72-82 2001

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Page 2: seminariodosul.com.br...O primeiro concílio da igreja é o mencionado no capítulo 15 de Atos dos Apóstolos, onde Lucas relata o Concílio de Jerusalém em 50 d.C., liderado por

Conselho EditorialProfa Dra Monica Selvatici (UEL)Profa Dra Elisa Rodrigues (UFJF)

Prof Dr Marcelo da Silva Carneiro (FATIPI)Profa Dra Rosalee Santos Crespo Istoe (Uenf)

Prof Dr Marcos Pinto (UFF)Profa Dra Andreia Cristina Lopes Frazatildeo da Silva (UFRJ)

Prof Dr Reinaldo Arruda Pereira (FBMG)Prof Dr Kenner Roger Cazoto (Faculdade Unida)

Prof Dr Jonas Machado (FTBSP)Prof Me Flaacutevio da Silva Chaves (FABERJ)

EdiccedilatildeoCoordenaccedilatildeo Editorial Prof Me Levy Freitas de Lemos

Projeto Graacutefico Editoraccedilatildeo e Capa OliverartelucasBibliotecaacuteria Hevacircnia de Oliveira Ribeiro

Os artigos publicados satildeo de inteira responsabilidade de seus autores e natildeo refletem necessariamente a opiniatildeo da Instituiccedilatildeo e do Conselho Editorial

Endereccedilo para correspondecircnciaRevista Brasileira de Teologia

Faculdade Batista do Rio de JaneiroSeminaacuterio Teoloacutegico Batista do Sul do Brasil

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Apresentaccedilatildeo

Este nuacutemero da Revista Brasileira de Teologia conta com sete participaccedilotildees de aacutereas diferentes da Teologia Essa natureza pluritemaacutetica tem marcado a publicaccedilatildeo da revista desde o iniacutecio A opccedilatildeo eacute por dar voz a eixos diferentes de produccedilatildeo em vez de focar temas especiacuteficos

Entre os sete textos dois partem de anaacutelises de textos biacuteblicos A professora Teresa Akil em coautoria com Evelise Cavalcanti escreveu o artigo O livro de Jonas e o arrependimento verdadeiro na Biacuteblia e na atualidade A partir da experiecircncia de Jonas as autoras buscam refletir acerca da instabilidade humana em relaccedilatildeo a Deus na Biacuteblia e na atualidade Outro artigo que analisou extratos da Biacuteblia eacute Liturgia e identidade religiosa no Apocalipse de Joatildeo do professor Valtair Afonso Miranda no qual o autor procura vincular as expressotildees lituacutergi-cas do uacuteltimo livro neotestamentaacuterio com as possiacuteveis expressotildees identitaacuterias de sua audiecircncia presumida

Aleacutem desses dois artigos que trataram da Biacuteblia haacute dois que se debruccedilaram sobre uma aacuterea teacutecnica da teologia qual seja o estudo das liacutenguas originais dos textos sagrados Um deles foi produzido por Rawderson Rangel sobre a expressatildeo ldquoameacutemrdquo presente no grego do Novo Testamento e ainda hoje repetida em oraccedilotildees e expressotildees no interior dos cultos O texto foi intitulado Ameacutem Muacuteltiplos derivados o mesmo conceito As diferentes traduccedilotildees de uma mesma raiz Por sua vez a autora Thaiacutes de Oliveira Viriacutessimo escreveu A anaacutelise do discurso na interpretaccedilatildeo biacuteblica um texto que discute o papel dessa ferramenta na praacutetica teoloacutegica

Cliff Iuri de Souza Gonccedilalves em coautoria com o professor Walter Ferreira da Silva Junior escreveu Decisotildees cristoloacutegicas dos sete conciacutelios ecumecircni-cos O texto promove uma siacutentese histoacuterica dos debates iniciais realizados em conciacutelios ditos universais no periacuteodo inicial da histoacuteria do Cristianismo Desse modo esse artigo pode ser classificado como parte da teologia histoacuterica

Na interface entre teologia sociologia e religiatildeo o professor Joatildeo Boechat apresenta com base em pesquisas a nova configuraccedilatildeo religiosa brasileira e demonstra como essa configuraccedilatildeo tem sido alterada nas uacuteltimas deacutecadas aleacutem disso analisa como se daacute o tracircnsito religioso na sociedade brasileira ao escrever o artigo Transformaccedilatildeo Religiosa Brasileira e caracteriacutesticas do novo padratildeo religioso

Por fim numa discussatildeo que vincula com muita propriedade Teologia e Muacutesica o professor Theoacutegenes Eugecircnio Figueiredo escreveu o artigo intitulado ldquoNo dia do Senhorrdquo ndash Os atos o evento a autoexpressatildeo Uma breve reflexatildeo sobre as tradiccedilotildees lituacutergicas e sobre os termos liturgia culto e adoraccedilatildeo Nesse artigo satildeo apresentados os nuacutecleos lituacutergicos herdados do cristianismo primitivo aos quais no decorrer dos seacuteculos alguns elementos foram agregados constituindo- se posteriormente em grandes famiacutelias lituacutergicas

Desejamos uma boa leitura Que nossa revista seja um instrumento para a reflexatildeo e a disseminaccedilatildeo da teologia no Brasil

REVISTA TEOLOacuteGICA REVISTA BRASILEIRA DE TEOLOGIARevista do Seminaacuterio Teoloacutegico Batista do Sul do Brasil

Faculdade Batista do Rio de Janeiro Nuacutemero 8 2020

SUMAacuteRIODECISOtildeES CRISTOLOacuteGICAS DOS SETE CONCIacuteLIOS ECUMEcircNICOSCliff Iuri de Souza Gonccedilalves Walter Ferreira da Silva Juacutenior 9

O LIVRO DE JONAS E O ARREPENDIMENTO VERDADEIRO NA BIacuteBLIA E NA ATUALIDADEEvelise Cavalcanti Teresa Akil 23

TRANSFORMACcedilAtildeO RELIGIOSA BRASILEIRA E CARACTERIacuteSTICAS DO NOVO PADRAtildeO RELIGIOSOJoatildeo Boechat 35

AMEacuteM MUacuteLTIPLOS DERIVADOS O MESMO CONCEITO AS DIFERENTES TRADUCcedilOtildeES DE UMA MESMA RAIZ Rawderson Rangel 51

A ANAacuteLISE DO DISCURSO NA INTERPRETACcedilAtildeO BIacuteBLICAThaiacutes de Oliveira Viriacutessimo 63

ldquoNO DIA DO SENHORrdquo ndash OS ATOS O EVENTO A AUTOEXPRESSAtildeO UMA BREVE REFLEXAtildeO SOBRE AS TRADICcedilOtildeES LITUacuteRGICAS E SOBRE OS TER-MOS LITURGIA CULTO E ADORACcedilAtildeOTheoacutegenes Eugecircnio Figueiredo 86

LITURGIA E IDENTIDADE RELIGIOSA NO APOCALIPSE DE JOAtildeOValtair A Miranda 98

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DECISOtildeES CRISTOLOacuteGICAS DOS SETE CONCIacuteLIOS ECUMEcircNICOS

Cliff Iuri de Souza Gonccedilalves1

Walter Ferreira da Silva Juacutenior2

RESUMO A palavra trindade natildeo aparece na Biacuteblia Sagrada mas eacute um tema que norteia

as bases de feacute da Igreja Cristatilde No credo apostoacutelico que foi editado ao longo dos tempos houve vaacuterios acreacutescimos e retiradas de termos sobre quem seria Jesus Deus e o proacuteprio Espiacuterito Santo ateacute chegar agrave forma conhecida atualmen-te Este eacute um dos temas muito trabalhado nos conciacutelios ecumecircnicos entre os seacuteculos IV-VIII e sobre o qual ateacute os dias atuais natildeo existe um consenso A tentativa de definir as trecircs pessoas da Trindade eacute uma tarefa aacuterdua e complexa Este trabalho portanto visa traccedilar um panorama desse recorte da histoacuteria do cristianismo enfatizando as principais decisotildees relacionadas a Cristo De Niceacuteia I (325) a Niceacuteia II (787) satildeo abordadas as principais heresias seus principais fundadores e as respostas dos conciacutelios para cada uma delas com as respectivas conclusotildees dos conciacutelios

Palavras-chave Decisotildees cristoloacutegicas Conciacutelios ecumecircnicos Heresias Trin-dade Histoacuteria do cristianismo

ABSTRACT The word trinity is a concept that does not appear in the Holy Bible but it

is a theme that guides the faith bases of the Christian Church The apostolic creed which has been edited throughout the ages has had several additions and withdrawals from terms about who Jesus God and the Holy Spirit would be until reaching the form known today This is one of the themes that has been widely worked on in the ecumenical councils between the 4th and 8th centuries and which to this day does not have a consensus The attempt to define the three persons of the Trinity is an arduous and complex task This work therefore aims to provide an overview of this section of the history of Christianity emphasizing

1 Bacharel em Engenharia de Petroacuteleo pela Universidade Tiradentes Mestre em Engenharia Quiacutemica pela Universidade Federal de Sergipe e Doutorando em Engenharia Quiacutemica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro Graduando em Teologia pelo Seminaacuterio Teoloacutegico Batista do Sul do Brasil 2 Graduado e Licenciatura em Histoacuteria Poacutes-Graduado em Teologia Atualmente eacute professor no Seminaacuterio Teoloacutegico Batista do Sul do Brasil

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the main decisions related to Christ From Nicaea I (325) to Nicaea II (787) the main heresies their main founders and the councilsrsquo responses to each of them are addressed with the respective council conclusions

Keywords Christological decisions Ecumenical councils Heresies Trinity History of Christianity

INTRODUCcedilAtildeOApoacutes a morte e a ressureiccedilatildeo de Cristo os apoacutestolos possuiacuteam uma grande

missatildeo em suas matildeos o questionamento sobre quem era Jesus Cristo pairava entre os adeptos do novo movimento (mais tarde denominado de cristianismo) e eles precisavam dar respostas Antes mesmo de sua morte Jesus Cristo havia perguntado aos seus disciacutepulos Ὑμεῖς δὲ τίνα με λέγετε εἶναι (ldquoHymeis de tiacutena me leacutegete einairdquo - Vocecircs no entanto quem vocecircs dizem que eu sou) Esta pergunta foi respondida por Pedro Τὸν Χριστὸν τοῦ Θεοῦ (ldquoTon Christon tou Theourdquo - O Cristo de Deus)

Mesmo sendo disciacutepulos para alguns ainda natildeo estava claro quem era Jesus Apoacutes a morte e ressureiccedilatildeo Tomeacute ainda precisou tocar em Jesus para ter certeza de que ali estava o Cristo ressuscitado Trezentos anos depois essa tarefa natildeo tinha ficado mais faacutecil Pelo contraacuterio se aqueles que estiveram com Cristo em carne natildeo haviam percebido como poderiam aqueles que natildeo andaram com Ele somente ouviram falar entender a ideia de Jesus como Deus Ou como Salvador

Portanto desde a fundaccedilatildeo do cristianismo a igreja tem lidado com contro-veacutersias no que diz respeito agrave aceitaccedilatildeo de Cristo como Deus ou como humano Muitas ideias surgiram principalmente entre os seacuteculos IV ndash VIII para tentar sistematizar o estudo da pessoa de Cristo comumente chamado de Cristologia Alguns desses pensamentos que contrastavam com as crenccedilas da igreja embora rotuladas de ldquohereacuteticasrdquo provocaram debates significativos sobre a pessoa de Cristo Esses debates convocados satildeo chamados de conciacutelios3

O primeiro conciacutelio da igreja eacute o mencionado no capiacutetulo 15 de Atos dos Apoacutestolos onde Lucas relata o Conciacutelio de Jerusaleacutem em 50 dC liderado por Tiago com o objetivo de discutir sobre a conversatildeo dos judeus ao cristianismo e a difusatildeo da Palavra aos gentios4 Depois apareceu a ameaccedila do gnosticismo

3 DIEgraveGUE Ricardo Christological controversies of the first four ecumenical councils B A Leavell College June 27 20144 KELLY Joseph F The Ecumenical Councils of the Catholic Church (Collegeville Minnesota Liturgical Press 2009)

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e de outras doutrinas semelhantes no seacuteculo III quando Cipriano era bispo de Cartago foi debatida a questatildeo da readmissatildeo dos que tinham caiacutedo5

Um fator limitante para que as discussotildees prosseguissem era a disponibili-dade dos envolvidos para isso pois muitos deles estavam sendo perseguidos ou fugindo Com o fim da perseguiccedilatildeo promovido por Constantino no iniacutecio do seacuteculo IV houve mais seguranccedila e liberdade para prosseguir o debate de controveacutersias teoloacutegicas Ideias controversas dentro do impeacuterio poderiam dividi- lo e Constantino natildeo queria ameaccedilar a unidade do impeacuterio Assim o primeiro conciacutelio ecumecircnico foi convocado6

Sete conciacutelios ecumecircnicos foram chamados no total entre os seacuteculos IV-VIII Dentre eles os quatro primeiros destacam-se por sua autoridade doutrinaacuteria e por sua importacircncia histoacuterica Niceacuteia I e Constantinopla I lanccedilam base para as questotildees da trindade enquanto Eacutefeso e Calcedocircnia tratam com mais afinco a questatildeo da encarnaccedilatildeo7

1 NICEacuteIA (325)O Primeiro Conciacutelio Ecumecircnico foi convocado pelo Imperador Constantino

o Grande em 325 em 20 de maio O Conselho reuniu-se em Niceacuteia na proviacutencia de Bitiacutenia na Aacutesia Menor e foi formalmente aberto pelo proacuteprio Constantino O Conselho aprovou 20 cacircnones incluindo o Credo Niceno o Cacircnon das Escrituras Sagradas (Biacuteblia Sagrada) e estabeleceu a celebraccedilatildeo da Pascha (Paacutescoa)

Aleacutem dessas questotildees a pessoa de Cristo foi debatida nesse conciacutelio A prin-cipal heresia debatida foi o arianismo Aacuterio era padre em Alexandria e no iniacutecio do seacuteculo IV seu paradigma de pensamento cristatildeo estava ganhando forccedila8 Em uma carta escrita a Euseacutebio bispo de Nicomeacutedia em 321 Aacuterio advertiu

[] mas natildeo podemos dar ouvidos nem mesmo pensar em debelar estas heresias sem que nos ameacem com mil mortes Noacutes pensamos e afir-mamos como temos pensado e continuamos a ensinar que o Filho natildeo eacute ingecircnito nem participa absolutamente do ingecircnito nem derivou de alguma substacircncia mas que por sua proacutepria vontade e decisatildeo existiu antes dos tempos e era inteiramente Deus unigecircnito e imutaacutevel Mas antes de ter sido gerado ou criado ou nomeado ou estabelecido ele natildeo

5 GONZAacuteLEZ Justo L Uma Histoacuteria Ilustrada do Cristianismo - Volume 1 Ed Vida Nova6 GONZAacuteLEZ Justo L Op cit 7 ALBERIGO Giuseppe (Ed) Historia de los concilios ecumeacutenicos Siacutegueme 19938 HASBROUCK Ryan The First Four Ecumenical Councils as Ineffective Means to Control the Rise and Spread of Heterodox Christian Ideologies Dept of History University of Colorado 2009

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existia pois ele natildeo era ingecircnito Somos perseguidos porque afirmamos que o Filho tem um iniacutecio enquanto Deus eacute sem iniacutecio9

A premissa fundamental de Aacuterio era que ele deduzia uma concepccedilatildeo da absoluta unidade e transcendecircncia de Deus somente Deus eacute ldquoprinciacutepio natildeo geradordquo e a essecircncia da divindade natildeo pode ser dividida nem ser comunicada a outros mesmo que o que existe tenha sido chamado a ser a partir do nada Um dos slogans mais ceacutelebres e discutidos sobre o Logos consistia precisamente na afirmaccedilatildeo segundo a qual ldquohavia um tempo em que ele natildeo erardquo slogan que comprometia a unicidade de Deus10

Na visatildeo dos anti-arianos eacute da proacutepria natureza do Pai gerar o Filho o Pai nunca foi outro senatildeo o Pai portanto o Filho e o Pai devem ter existido desde toda a eternidade o Pai gerando eternamente o Filho A frase de vital impor-tacircncia na resposta ortodoxa ao arianismo era ldquode uma substacircncia (homoousios) com o Pairdquo Esta frase afirma que o Filho compartilha o mesmo ser que o Pai e portanto eacute totalmente divino11 Assim nasce o credo Niceno que combatia as principais heresias arianas aleacutem de definir questotildees cristoloacutegicas

Conforme a tradiccedilatildeo dos Evangelhos e dos Apoacutestolos noacutes cremos em um soacute Deus Pai todo poderoso autor criador e ordenador providente do universo de quem todas as coisas adquirem existecircncia E num soacute Senhor Jesus Cristo seu filho Deus unigecircnito mediante o qual tudo existe o qual foi gerado pelo pai antes de todas as eacutepocas Deus de Deus tudo de tudo uacutenico de uacutenico completo de completo rei de rei senhor de senhor [] e se algueacutem disser que o Filho eacute uma criatura como qualquer outra ou uma prole como qualquer outra ou uma obra como qualquer outra seja anaacutetema12

Portanto atraveacutes desse conciacutelio fica decidido que Jesus eacute Deus verdadeiro com a mesma essecircncia (consubstancial) Assim trecircs foram as decisotildees do con-ciacutelio a primeira ediccedilatildeo do credo niceno o termo homoousios (ομοούσιος) e a condenaccedilatildeo de Aacuterio A carta que condena Aacuterio e seus disciacutepulos satildeo bem claras ao anatematizar suas opiniotildees classificando-as como blasfemas e dementes13

Examinou-se de iniacutecio perante Constantino nosso soberano mui amado de Deus a impiedade e irregularidade de Aacuterio e de seus disciacutepulos De-

9 BETTENSON H Documentos da Igreja Cristatilde Carta de Aacuterio a Euseacutebio bispo de Nicomeacutedia (c321) ASTE Satildeo Paulo 2011 10 ALBERIGO Giuseppe Op Cit 11 DAVIS Leo Donald The first seven ecumenical councils (325-787) Their History and Theology Collegeville Minnesota The Liturgical Press 198312 BETTENSON H Op cit O credo de dedicaccedilatildeo (341) ndash Atanaacutesio 13 SCHMELING Gaylin R The Christology of the Seven Ecumenical Councils

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cidiu-se por unanimidade que devem ser anatematizadas suas opiniotildees iacutempias e todas as suas afirmaccedilotildees e expressotildees blasfematoacuterias tal como estatildeo sendo emitidas e divulgadas tais como ldquoo Filho de Deus eacute do que natildeo eacuterdquo ldquohouve [um tempo] quando natildeo existiardquo ou afirmaccedilatildeo de que Filho de Deus em virtude de seu livre arbiacutetrio eacute capaz do bem e do mal ou de que pode ser chamado de criatura ou de feitura Todas essas afirmaccedilotildees anatematizadas pelo santo Siacutenodo que natildeo tolera declaraccedilotildees tatildeo iacutempias tatildeo dementes e blasfematoacuterias14

Entre os apoiadores de Aacuterio podem-se contar Atanaacutesio bispo de Anazarbus Narciso de Neronias Euseacutebio de Cesareia e Asterius Dos anti-arianos podem ser citados os Grandes Capadoacutecios (Basiacutelio o Grande Gregoacuterio de Nazianzus - irmatildeo mais novo de Basiacutelio e Gregoacuterio de Nissa) e Atanaacutesio de Alexandria sendo este de grande importacircncia para a histoacuteria do conciacutelio que sucedeu o de Niceacuteia15

2 CONSTANTINOPLA (381)Atanaacutesio era secretaacuterio de Alexandre o Bispo de Alexandria Quando Ale-

xandre morreu Atanaacutesio foi eleito bispo de Alexandria Euseacutebio de Nicomeacutedia um dirigente ariano que possuiacutea contato direto com Constantino fez declaraccedilotildees sobre Atanaacutesio as quais levaram esse rei a decretar o exiacutelio de Atanaacutesio em Treacuteveris no Ocidente16

Constantino adoeceu e morreu no ano 337 logo em seguida o trono foi assu-mido por seu filho Constacircncio que revogou todos os exiacutelios e Atanaacutesio retornou a Alexandria A mudanccedila de lideranccedila teve um profundo impacto na controveacutersia ariana pois Constacircncio tambeacutem proacuteximo de Euseacutebio de Nicomeacutedia tornou-o bispo de Constantinopla e simpatizou-se com as visotildees arianas17 Tentando combater o arianismo Apolinaacuterio acabou se excedendo em seu pensamento razatildeo por que sua teoria tornou-se uma heresia

Apolinaacuterio alegou que o nous (mente alma) de Cristo era essencialmente o Logos (divino) em uma forma glorificada e espiritualizada da humanidade (seu corpo)18 Ele acreditava que o Logos havia substituiacutedo a alma de Jesus Por ter uma ideia opressiva da natureza divina de Jesus Apolinaacuterio cancelou a natureza

14 BETTENSON H Op cit Carta do Siacutenodo de Niceacuteia (325) ndash Condenaccedilatildeo de Aacuterio15 DIEgraveGUE Ricardo Op cit16 GONZAacuteLEZ Justo L Op cit17 RUBENSTEIN Richard When Jesus Became God The Struggle to Define Christianity during the Last Days of Rome Orlando Harcourt Inc 200018 ANDERSON William P A Journey through Christian Theology Minneapolis MN Fortress Press 2nd edition 2010

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humana de Jesus19 Isso se chama Monofisismo do grego monos ldquoapenas umardquo e physis ldquonaturezardquo e eacute a crenccedila de que como resultado da encarnaccedilatildeo a huma-nidade de Jesus foi tatildeo infundida por Sua divindade que Ele tinha apenas uma natureza divina20 Estava formado o palco para o segundo conciacutelio ecumecircnico

Atanaacutesio foi um dos maiores apologista de Cristo durante o conciacutelio de Constantinopla Para combater o apolinarismo ele argumentou que Jesus era simultaneamente homem e Deus A fim de evidenciar sua posiccedilatildeo mostrou que foi a encarnaccedilatildeo que permitiu que Jesus cumprisse Seu papel pretendido na Terra Colocando seu argumento em termos negativos Atanaacutesio estaria dizendo que se Jesus natildeo tivesse nascido de uma mulher e portanto habitado um corpo humano e vivido uma vida humana Ele natildeo poderia ter concedido salvaccedilatildeo agrave humanidade atraveacutes de Sua morte21

No comeccedilo de seus discursos Atanaacutesio natildeo usou muito o homoousios niceno mas gradualmente viu toda a implicaccedilatildeo desse conceito e se tornou seu defen-sor mais resoluto A semelhanccedila e a unidade do Pai e da Palavra natildeo podem consistir apenas em harmonia e concordacircncia de mente e vontade mas devem respeitar a essecircncia (ουσία) A divindade do Pai eacute idecircntica agrave divindade do Logos O Logos eacute diferente do Pai porque Ele veio do Pai mas como Deus o Logos e o Pai satildeo um e o mesmo O que eacute dito do Pai eacute dito do Filho exceto que o Filho natildeo eacute chamado Pai Pode-se dizer que os seres humanos satildeo homoousioi porque compartilham a natureza humana mas natildeo podem possuir uma mesma substacircncia (υπόστασις) idecircntica22

Esse eacute o ponto para o qual o credo foi direcionado a palavra Deus conota precisamente a mesma verdade quando vocecirc fala de Deus o Pai como acontece quando vocecirc fala de Deus o Filho Conota a mesma verdade Se vocecirc contempla o Pai que eacute uma apresentaccedilatildeo distinta da divindade obteacutem uma visatildeo mental do uacutenico Deus verdadeiro Se vocecirc contempla o Filho ou o Espiacuterito obteacutem uma visatildeo do mesmo Deus embora a apresentaccedilatildeo seja diferente a realidade eacute idecircnticardquo23

Creio em um soacute Deus Pai Todo-Poderoso criador do ceacuteu e da terra de todas as coisas visiacuteveis e invisiacuteveis Creio em um soacute Senhor Jesus Cristo

19 BELLITTO Christopher M The General Councils A History of the Twenty-One Church Councils from Nicaea to Vatican II Mahwah NJ Paulist Press 200220 JOHNSON Douglas W The Great Jesus Debates 4 Early Church Battles about the Person and Work of Jesus Saint Louis MO Concordia Publishing House 200521 HASBROUCK Ryan Op cit 22 DAVIS Leo Donald Op cit23 DAVIS Leo Donald Op cit

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Filho Unigecircnito de Deus nascido do Pai antes de todos os seacuteculos Deus de Deus luz da luz Deus verdadeiro de Deus verdadeiro gerado natildeo criado consubstancial ao Pai Por ele todas as coisas foram feitas E por noacutes homens e para nossa salvaccedilatildeo desceu dos ceacuteus e se encarnou pelo Espiacuterito Santo no seio da Virgem Maria e se fez homem

A foacutermula proposta por Atanaacutesio resolveu temporariamente o dilema cris-toloacutegico que atormentava a igreja primitiva No entanto a maacute interpretaccedilatildeo do credo em uma capacidade diferente logo criou mais inquietaccedilatildeo e a necessidade de outro conselho ecumecircnico

3 EacuteFESO (431)Mesmo depois de Constantinopla I as questotildees voltaram a aparecer Como

poderia Jesus ser homem e Deus ao mesmo tempo Quais eram as implicaccedilotildees dessa afirmaccedilatildeo para Maria Era Jesus humano em algumas situaccedilotildees e Deus em outras Seria Maria matildee apenas da parte humana ou tambeacutem da parte divina Como fazer essa distinccedilatildeo24

O proacuteximo episoacutedio das controveacutersias cristoloacutegicas ocorreu por intermeacutedio de Nestoacuterio um partidaacuterio da escola de Antioquia que se tornou patriarca de Constantinopla em 428 Pelo fato de essa cidade ter sido declarada a capital do Impeacuterio Oriental Antioquia e Alexandria se tornaram rivais Cirilo que era bispo de Alexandria levantou-se para combater as ideias de Nestoacuterio25

O motivo imediato da controveacutersia foi o termo theotokos que era usado para Maria Theotokos geralmente traduzido por ldquomatildee de Deusrdquo literalmente quer dizer ldquogenitora de Deusrdquo Ao explicar sua oposiccedilatildeo a esse termo Nestoacuterio dizia que Deus em Jesus Cristo teria se unido a um ser humano Como Deus eacute uma pessoa e o ser humano eacute outra em Cristo devem estar presentes natildeo soacute duas naturezas mas tambeacutem duas pessoas O que nasceu de Maria foi a pessoa e natureza humana e natildeo a divina Por isso Maria eacute Christotokos (genitora de Cristo) e natildeo theotokos (genitora de Deus)26

Cirilo insistiu na unidade do divino e do humano a ponto de poder dizer que o Verbo sofreu por noacutes natildeo porque o divino sofreu (uma impossibilidade) mas que o divino e o humano se completaram na mesma pessoa27 As duas naturezas

24 BELLITTO Christopher M Histoacuteria dos 21 conciacutelios da Igreja de Niceacuteia ao Vaticano II Traduccedilatildeo de Claacuteudio Queiroz de Godoy Satildeo Paulo Loyola 201025 GONZAacuteLEZ Justo L Op cit26 GONZAacuteLEZ Justo L Op cit27 KELLY Joseph F

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que foram unidas a fim de formarem a verdadeira unidade (uniatildeo hipostaacutetica) eram diferentes mas de ambas houve um soacute Cristo e um soacute Filho Eacute nesse sentido que Cristo nasceu na expressatildeo biacuteblica da carne de mulher embora existisse e fosse gerado pelo Pai antes de todos os seacuteculos28

Cirilo escreveu doze anaacutetemas e enviou a Constantinopla juntamente com uma extensa carta que expunha sua doutrina Dentre os principais pontos eacute interessante ressaltar os pontos um e dois que falam sobre Maria e sobre a uniatildeo hipostaacutetica

Se algueacutem natildeo confessar que o Emanuel eacute verdadeiro Deus e que portan-to a Santa Virgem eacute Theotoacutekos porquanto deu agrave luz segunda a carne ao Verbo de Deus feito carne seja anaacutetema Se algueacutem natildeo confessar que o Verbo de Deus Pai estava unido pessoalmente [kathrsquohypoacutestasin] agrave carne sendo com ela propriamente um soacute Cristo ou seja um soacute e mesmo Deus e homem ao mesmo tempo seja anaacutetema29

Enquanto isso Nestoacuterio foi deposto e enviado a um mosteiro de Antioquia Mais tarde ele foi transferido para a distante cidade de Petra e por fim a um oaacutesis no deserto da Liacutebia onde passou o resto de seus dias30

4 CALCEDOcircNIA (451)Apoacutes o Conciacutelio de Eacutefeso o debate sobre as duas naturezas de Jesus estava

em andamento Eacute importante lembrar que com a Escola Alexandrina liderada por Cirilo a uniatildeo foi feita de tal maneira que o Logos substituiu a alma e portanto a divindade de Jesus submergiu agrave sua humanidade No entanto para a Escola de Antioquia a ldquouniatildeordquo foi feita com a distinccedilatildeo de ambas as naturezas que permaneceram separadas31

A controveacutersia cristoloacutegica de Eacutefeso culminou com a condenaccedilatildeo de Nestoacuterio e o seu envio para o exiacutelio No entanto quando Dioacutescoro substituiu Cirilo no patriarcado em Alexandria em 444 um novo embate estava para surgir Agora a heresia era liderada por Ecircutico um monge que morava em Constantinopla Os ideais pregados por Ecircutico eram apoiados por Dioacutescoro o que dava ao monge certa ousadia e arrogacircncia para falar Mal sabia ele que as intenccedilotildees de Dioacutescoro eram poliacuteticas ele esperava que Ecircutico fosse condenado no conciacutelio para poder ter uma causa a defender contra Flaviano o novo patriarca de Constantinopla32

28 BETTENSON H Op cit Exposiccedilatildeo de Cirilo29 BETTENSON H Op cit Anaacutetemas de Cirilo de Alexandria30 GONZAacuteLEZ Justo L Op cit31 BOKENKOTTER Thomas A Concise History of the Catholic Church New York DoubleDay 200432 GONZAacuteLEZ Justo L Op cit

17TeoloacutegicaRevista Brasileira de Teologia ISSN 1807-7056 nordm 8 outdez Rio de Janeiro 2020 p 9-22

Dedicado agrave teologia de Cirilo e altamente ortodoxo Ecircutico comeccedilou a ensinar que antes da Encarnaccedilatildeo Cristo era de duas naturezas mas depois havia um Cristo um Filho um Senhor em uma hipoacutestase Ele repudiou a existecircncia de duas naturezas apoacutes a Encarnaccedilatildeo em oposiccedilatildeo agraves Escrituras e ao ensino dos Pais33

ldquoEu adorordquo ele insistiu ldquouma natureza a de Deus que se fez carne e se tornou homemrdquo No entanto admitiu que Cristo nasceu da Virgem portanto era subs-tancial conosco (humanos) e era Deus perfeito e homem perfeito No entanto a carne de Cristo natildeo era na opiniatildeo de Ecircutico consubstancial agrave carne humana comum mas reconheceu que a humanidade de Cristo era plena sem falta de uma alma racional como era para os apolinaristas A humanidade de Cristo tambeacutem natildeo era uma mera aparecircncia como era para os docetistas tampouco a Palavra e a carne foram fundidas em uma natureza mista Ainda assim ele repetiu obstinadamente que Cristo era de duas naturezas antes da Encarnaccedilatildeo e de apenas uma depois da encarnaccedilatildeo34

Leatildeo o grande foi o principal defensor da ortodoxia no conciacutelio de Calcedocirc-nia e sua defesa gerou o Tomo de Leatildeo A definiccedilatildeo desse conciacutelio portanto pode ser vista como proposiccedilotildees apologeacuteticas aos pensamentos do eutiquianismo

Fieacuteis aos santos pais todos noacutes perfeitamente unanimes ensinamos que se deve confessar um soacute e mesmo Filho nosso Senhor Jesus Cristo perfei-to quanto agrave divindade e perfeito quanto agrave humanidade verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem constando de alma racional e de corpo consubstancial [homooysios] ao Pai segundo a divindade e consubstan-cial a noacutes segundo a humanidade ldquoem todas as coisas semelhante a noacutes excetuando o pecadordquo gerado segundo a divindade antes dos seacuteculos pelo Pai e segundo a humanidade por noacutes e para nossa salvaccedilatildeo gerado da Virgem Maria matildee de Deus [Theotoacutekos] Um soacute e mesmo Cristo Filho Senhor Unigecircnito que se deve confessar em duas naturezas inconfundiacuteveis e imutaacuteveis conseparaacuteveis e indivisiacuteveis A distinccedilatildeo de naturezas de modo algum eacute anulada pela uniatildeo mas pelo contraacuterio as propriedades de cada natureza permanecem intactas concorrendo para formar uma soacute pessoa e subsistecircncia [hypoacutestasis] natildeo dividido ou separado em duas pessoas mas um soacute e mesmo Filho Unigecircnito Deus Verbo Jesus Cristo Senhor conforme os profetas outrora a seu respeito testemunharam e o mesmo Jesus Cristo nos ensinou e o credo dos pais nos transmitiu 35

33 DAVIS Leo Donald Op cit34 DAVIS Leo Donald Op cit35 BETTENSON H Op cit A definiccedilatildeo de Calcedocircnia (451)

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5 CONSTANTINOPLA II (553)O periacuteodo poacutes Calcedocircnia foi muito parecido com o de Niceacuteia em ambos os

conciacutelios uma soluccedilatildeo basicamente ocidental para um problema oriental havia sido introduzida na dieta teoloacutegica do Oriente Depois dos dois conciacutelios o Oriente empreendeu muito tempo e esforccedilo para digerir e assimilar tudo o que ficou decidido No caso de Niceacuteia o mundo romano gradualmente aceitou seu credo O arianismo permaneceu firme entre as tribos alematildes por um tempo mas muito lentamente sucumbiu a Niceacuteia No caso de Eacutefeso e Calcedocircnia seccedilotildees do mundo romano e aleacutem entraram em cisma em vez de aceitar suas decisotildees e assim continuam ateacute os nossos dias O conciacutelio de Constantinopla II foi um esforccedilo para mostrar aos (ateacute entatildeo) monofisitas cismaacuteticos que Calcedocircnia realmente preservava os valores teoloacutegicos36

Quando Justino morreu em 527 seu sobrinho Justiniano assumiu o impeacuterio Bizantino com o principal ideal de unir o impeacuterio No entanto ele precisaria reunificar uma igreja dividida pela questatildeo cristoloacutegica Justiniano achava que o conciacutelio de Calcedocircnia tinha se pronunciado corretamente com respeito agraves naturezas de Cristo mas ao mesmo tempo percebia que os monofisitas mais moderados tinham razatildeo ao apontar para os perigos que essa doutrina poderia trazer consigo 37

Assim o conciacutelio foi solicitado e aconteceu em 5 de maio de 553 no grande salatildeo anexo ao palaacutecio patriarcal em Constantinopla Estavam presentes os representantes do patriarca de Jerusaleacutem todos os 151 a 168 bispos incluindo seis a nove da Aacutefrica38

O objetivo de convocar o conciacutelio de Constantinopla II foi o de condenar as obras de trecircs homens a saber Teodoro de Mopsueacutestia Teodoreto de Cyr e Ibas de Edessa que tiveram suas declaraccedilotildees individuais agrupadas e chamadas de ldquotrecircs capiacutetulosrdquo Eles foram acusados de simpatizarem com o nestorianismo e de favorecerem o monofisismo ao afirmar que Jesus tinha uma soacute natureza o divino sobrepujando o humano Os ldquocapiacutetulosrdquo foram condenados nesse conciacutelio 39

Se algueacutem natildeo reconhece a uacutenica natureza ou substacircncia (oysia) do Pai Filho e Espiacuterito Santo sua uacutenica virtude e poder uma Trindade consubs-tancial seja anaacutetema Porque existe um soacute Deus e Pai do qual procedem

36 DAVIS Leo Donald Op cit37 GONZAacuteLEZ Justo L Op cit38 DAVIS Leo Donald Op cit39 BELLITTO Christopher M Op cit

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todas as coisas e um soacute Senhor Jesus Cristo atraveacutes do qual satildeo todas as cosias e um soacute Espiacuterito Santo no qual estatildeo todas as coisas 40

Portanto o Conciacutelio de Constantinopla II esclareceu mais uma vez os ensi-namentos da Igreja sobre as duas naturezas de Jesus unidas hipostaticamente em uma soacute pessoa Os padres natildeo soacute condenaram os hereacuteticos e as heresias como tambeacutem os que simpatizavam com elas 41

6 CONSTANTINOPLA III (680-681)Em 7 de novembro de 680 o conciacutelio de Constantinopla III abriu em uma

grande sala abobadada - o Trullus - no palaacutecio imperial com apenas quarenta e trecircs bispos presentes O proacuteprio imperador abriu o conciacutelio e presidiu as onze primeiras sessotildees O conciacutelio teve dezoito sessotildees separadas por longos inter-valos ateacute 16 de setembro de 68142

Os legados papais comeccedilaram exigindo que o clero de Constantinopla expli-casse seus ensinamentos sobre monoenergismo e monotelismo A convite do imperador Jorge de Constantinopla e Macaacuterio de Antioquia responderam que eles ensinavam apenas doutrinas definidas pelos conselhos Seguiu-se a leitura dos atos dos Conciacutelios de Eacutefeso Calcedocircnia e Constantinopla II43

O patriarca Seacutergio de Constantinopla depois de tentar sem sucesso vaacuterias maneiras de aproximar-se dos monofisitas propocircs a doutrina chamada de ldquomo-notelismordquo Essa palavra vem das raiacutezes gregas mono (um) e thelema (vontade) O que Seacutergio propunha eacute que em Cristo ao mesmo tempo em que havia duas naturezas a divina e a humana como o concilio de Calcedocircnia declarara havia uma soacute vontade Ao que parece o que Seacutergio queria dizer era que em Cristo natildeo havia outra vontade aleacutem da divina Quando perguntaram ao papa Honoacuterio o que ele pensava da foacutermula de Seacutergio o papa a aprovou Poreacutem a oposiccedilatildeo em vaacuterias regiotildees do Impeacuterio natildeo demorou a se manifestar 44

O teoacutelogo que mais se distinguiu nesse sentido foi Maacuteximo de Crisoacutepolis que eacute conhecido por Maacuteximo ldquoo Confessorrdquo Mais tarde em 648 a oposiccedilatildeo ao monotelismo chegou a tal ponto que o imperador Constante II proibiu qualquer discussatildeo sobre se em Cristo havia uma ou duas vontades Quando o imperador promulgou essa proibiccedilatildeo o Impeacuterio tinha perdido o interesse de se aproximar

40 BETTENSON H Op cit Os ldquotrecircs capiacutetulosrdquo ndash Os cacircnones do segundo conciacutelio de Constantinopla (553)41 BELLITTO Christopher M Op cit42 DAVIS Leo Donald Op cit43 GONZAacuteLEZ Justo L Op cit44 GONZAacuteLEZ Justo L Op cit

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dos monofisitas Siacuteria e Egito as regiotildees do Impeacuterio onde o monofisismo tinha a maior parte dos seus adeptos haviam sido conquistadas pouco antes pelos aacuterabes Tal fato significaria que a partir de entatildeo a corte de Constantinopla em vez de se preocupar com a boa vontade dos monofisitas de Egito e Siacuteria tinha de melhorar as suas relaccedilotildees com os cristatildeos calcedonenses que eram a maioria tanto nos territoacuterios que ainda pertenciam ao Impeacuterio como no Ocidente45

Em consequecircncia o sexto conciacutelio ecumecircnico que se reuniu em Constanti-nopla em 680 e 681 condenou o monotelismo e reafirmou a Definiccedilatildeo de feacute de Calcedocircnia Entre os monotelitas condenados especificamente pelo conciacutelio es-tava o papa Honoacuterio O caso de um papa condenado nominalmente como herege por um conciacutelio ecumecircnico foi uma das dificuldades que os catoacutelicos tiveram de enfrentar quando no seacuteculo XIX conseguiram que o conciacutelio Vaticano I promulgasse a infalibilidade papal46

7 NICEacuteIA II (787)A uacuteltima grande controveacutersia que atingiu a igreja durante o periacuteodo aqui

estudado (ateacute o seacuteculo VIII) questionava o uso de imagens no culto puacuteblico A igreja cristatilde antiga parecia natildeo se opor ao uso delas para decoraccedilatildeo como imagens alusivas a episoacutedios da Biacuteblia No entanto quanto mais pagatildeos se con-vertiam mais os liacutederes temiam que as imagens levassem agrave praacutetica da idolatria Alguns no entanto reforccedilavam o valor das imagens como ldquolivros iletradosrdquo uma vez que muitos natildeo sabiam ler Assim surgiram dois partidos que receberam o nome de ldquoiconoclastasrdquo (destruidores de imagens) e ldquoiconodulosrdquo (adoradores de imagens) 47

Os iconoclastas se baseavam em passagens biacuteblicas que proiacutebem a idolatria como Ecircxodo 204-5 Os iconodulos por sua vez relacionaram a discussatildeo com as controveacutersias cristoloacutegicas dos seacuteculos anteriores

A razatildeo pela qual eacute possiacutevel representar os misteacuterios divinos atraveacutes de imagens eacute que em Cristo o proacuteprio Deus nos deu sua imagem Natildeo deixar representar a Cristo equivaleria a negar a sua humanidade Se Cristo foi homem deve ser possiacutevel representaacute-lo assim como qualquer outro ho-mem pode ser representado Aleacutem disso o primeiro criador das imagens foi o proacuteprio Deus ao criar a humanidade agrave sua imagem48

45 GONZAacuteLEZ Justo L Op cit46 BELLITTO Christopher M Op cit47 GONZAacuteLEZ Justo L Op cit48 GONZAacuteLEZ Justo L Op cit

21TeoloacutegicaRevista Brasileira de Teologia ISSN 1807-7056 nordm 8 outdez Rio de Janeiro 2020 p 9-22

Embora os bispos tivessem sido notavelmente longiacutenquos em seus debates eles foram bastante concisos em seu decreto Eles disseram que Cristo nos livrou da loucura idoacutelatra e sempre continua sustentando Sua Igreja mas alguns mes-mo os sacerdotes se desviaram deixando de ldquodistinguir entre santo e profano estilizando as imagens de Nosso Senhor e de Seus santos da mesma maneira como as estaacutetuas dos iacutedolos diaboacutelicosrdquo Os bispos acrescentaram a aceitaccedilatildeo dos seis conciacutelios ecumecircnicos anteriores especialmente o que se encontrava ldquona ilustre metroacutepole de Niceacuteiardquo49

Em seguida eles mantiveram inalteradas todas as tradiccedilotildees eclesiaacutesticas que foram transmitidas por escrito ou verbalmente uma das quais eacute a realizaccedilatildeo de representaccedilotildees pictoacutericas agradaacuteveis agrave histoacuteria da pregaccedilatildeo dos Evangelhos uma tradiccedilatildeo uacutetil em muitos aspectos mas especialmente em que a encarnaccedilatildeo da Palavra de Deus eacute mostrada como real e natildeo meramente fantaacutestica50 Em resumo o uso das imagens foi restaurado para veneraccedilatildeo (dulia) mas natildeo para adoraccedilatildeo (latria)51

CONSIDERACcedilOtildeES FINAISDiante de inuacutemeras controveacutersias e debates eacute interessante perceber como cada

decisatildeo tomada nos conciacutelios ajudou a entender temas cristoloacutegicos Percebe-se que desde o iniacutecio existe uma tentativa de explicar e sistematizar a natureza de Cristo de definir em quais momentos seu lado humano eou divino esteve em accedilatildeo As heresias debatidas foram importantes para que as respostas levantadas pela Igreja formassem ou pelo menos ajudassem a formar o pensamento que temos hoje sobre quem eacute Cristo e sua natureza Eacute inevitaacutevel que temas adja-centes aparecessem como a proacutepria natureza de Maria e a adoraccedilatildeo a imagens Estudar esse recorte da histoacuteria do cristianismo eacute portanto fundamental para compreender o pensamento da Igreja daqueles seacuteculos e qual a visatildeo que se tinha sobre quem eacute Jesus

O exerciacutecio mental que pode aqui ser realizado eacute o de comparar as mentali-dades e tentar perceber se muita coisa mudou em relaccedilatildeo aos nossos dias Outro exerciacutecio que pode ser feito eacute avaliar o quanto esse conjunto de pensamento do seacuteculo VIII nos influencia hoje

49 BELLITTO Christopher M Op cit50 BELLITTO Christopher M Op cit51 WILLIAMS Terri Cronologia da Histoacuteria Eclesiaacutestica em graacuteficos e mapas Satildeo Paulo Vida Nova 1993

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HASBROUCK Ryan The First Four Ecumenical Councils as Ineffective Means to Control the Rise and Spread of Heterodox Christian Ideologies Un-dergraduate Research Journal at UCCS v 2 n 1 Spring 2009 University of Colorado 2009

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WILLIAMS Terri Cronologia da Histoacuteria Eclesiaacutestica em graacuteficos e mapas Satildeo Paulo Vida Nova 1993

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O LIVRO DE JONAS E O ARREPENDIMENTO VERDADEIRO NA BIacuteBLIA E NA ATUALIDADE

Evelise Cavalcanti52

Teresa Akil53

RESUMO O presente artigo busca analisar a relaccedilatildeo de instabilidade do homem com

o divino atraveacutes da obediecircncia e desobediecircncia desse homem em relaccedilatildeo a Deus bem como ao pecado Analisa-se o reflexo primordial de desobediecircncia a Deus na parte introdutoacuteria do Livro de Jonas contemplando o pecado em si e o relacionamento de Jonas com Deus para que seja pautada e estruturada a misericoacuterdia divina na vida desse profeta A partir dessa concepccedilatildeo busca-se refletir acerca da instabilidade do homem em relaccedilatildeo a Deus na Biacuteblia e na atualidade para traccedilar paracircmetros para que seja aprofundado o arrependimento verdadeiro do ser humano a partir da anaacutelise de Jonas e Davi

Palavras-chave Livro de Jonas Desobediecircncia ao divino Duacutevida Culpa Arrependimento verdadeiro

ABSTRACTThis scientific article seeks to analyze the relationship of manrsquos instability

with the divine through manrsquos obedience and disobedience in relation to God as well as sin In this study the primary reflection of disobedience to God is analyzed in the introductory part of the Book of Jonah contemplating sin itself and Jonahrsquos relationship with God so that divine mercy in Jonah is guided and structured From this conception we seek to reflect on the instability of man in relation to God in the Bible and nowadays to outline parameters so that the true repentance of the human being is deepened based on the analysis of Jonas and David

Keywords Book of Jonah Disobedience to the divine Doubt Guilt True repentance

52 Graduada em Direito (Unifeso)) Graduada em Teologia (Faceten) Poacutes-graduada em Exegese e Interpretaccedilatildeo da Biacuteblia (Fabat) em Histoacuteria de Israel (Kennedy) em Direito Processual Civil (Unican) 53 Doutora em Teologia (PUC-Rio) Mestre em Teologia Biacuteblica (STBSB) Graduada em Teologia (Faculdade Batista do Paranaacute) e em Comunicaccedilatildeo Social (Universidade Estaacutecio de Saacute) Docente das disciplinas da aacuterea biacuteblica (Antigo Testamento) e Exegese coordenadora do Grupo de Estudo e Pesquisa Biacuteblica nas Tradiccedilotildees de Israel

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INTRODUCcedilAtildeO A histoacuteria de Jonas tem sido contada desde a antiguidade Natildeo eacute incomum

encontrarmos em classes infantis ou nas mais altas patentes teoloacutegicas discus-sotildees calorosas sobre as peculiaridades desse personagem tatildeo conhecido

Vaacuterias abordagens tecircm sido temas infindaacuteveis de duacutevidas seria possiacutevel um homem permanecer trecircs dias na barriga de um peixe Seria uma baleia Em que eacutepoca se passou Seria Jonas um profeta desobediente e insensiacutevel Enfim vaacuterias questotildees pertinentes afloram em nosso entendimento

A mais importante e contextualizada questatildeo natildeo se trata da possibilidade material ou emocional da situaccedilatildeo A importacircncia espiritual da histoacuteria tatildeo bem narrada em um dos menores livros da Biacuteblia traz-nos a reflexatildeo sobre a limitaccedilatildeo do homem em qualquer eacutepoca de ser avaliado quanto ao seu verda-deiro arrependimento

A Biacuteblia narra diversos momentos nos mais antigos textos em que os povos inclusive o povo escolhido natildeo conseguiram se manter firmes aos mandamentos de YHWH Em Niacutenive nos parece natildeo ter sido diferente No momento em que a matildeo de Deus mostrou-se pesada o rei se humilha e recebe o perdatildeo poreacutem natildeo mais que uma geraccedilatildeo apoacutes esse mesmo povo se mostra como inimigo mortal de Israel

Haveria acontecido um verdadeiro arrependimento ou o medo e a derrota certa teriam levado os ninivitas a um momentacircneo reconhecimento de seu erro e a uma consequente submissatildeo forccedilada pela situaccedilatildeo Para as consideraccedilotildees e conclusotildees precisamos entender um pouco desse povo e de todo contexto que o envolve

1 JONAS EacutePOCA HISTOacuteRIA AUTORIAJonas eacute descrito de formas diferentes de acordo com a visatildeo de teoacutelogos

diversos Bazioli (2011 p 3) por exemplo descreve Jonas como ldquoo mais estra-nho dos profetasrdquo mas com uma mensagem que produzira efeitos ateacute mesmo naqueles que natildeo o ouviram diretamente Para o autor Jonas fora o mais bem sucedido pregador com um sermatildeo que impactava apenas por meio de palavras Na Biacuteblia conforme enunciado por Alencar (2010) o livro de Jonas faz parte da coleccedilatildeo de livros profeacuteticos situando-se entre os livros de Abdias e Miqueias

Natildeo haacute um consenso absoluto acerca da autoria do livro de Jonas uma vez que o livro natildeo declara o nome do autor Entretanto haacute a tese bastante aceita e estabelecida nos estudos de Erthal et al (2002 p 35) de que ldquoembora o livro

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natildeo declare o nome do autor seguramente foi o proacuteprio Jonas quem o escreveurdquo Para os autores Jonas tem o nome que significa ldquopombordquo sendo apresentado como filho de Amitai Nascera em Gate-Efer cidade situada proacutexima a Nazareacute

Alencar (2010 p 7) por sua vez aponta que eacute impossiacutevel precisar de quem fora a autoria do livro de Jonas visto que na eacutepoca um dos grupos responsaacuteveis pela educaccedilatildeo eram os sacerdotes cuja obrigaccedilatildeo consistia em ensinar ao povo a instruccedilatildeo como uma lei relacionada ao culto e sacrifiacutecio ldquoO autor do livro de Jonas pode ter sua origem entre os saacutebios de Israel pois conhecia bem a tradiccedilatildeo de seu povo bem como a de outros povos Ele devia manter contato com estrangeiros e os considerava com bons olhosrdquo

Para que seja possiacutevel compreender e aprofundar conhecimentos acerca de Jonas e do livro que recebeu o seu nome torna-se indispensaacutevel refletir acerca do contexto histoacuterico do mesmo Dasilva (2003) leciona que o livro de Jonas fora escrito um seacuteculo antes de Jesus proferir as palavras registradas em Mateus 1239-40 no relato de como Deus enviara um profeta judeu para levar sua mensagem de salvaccedilatildeo para uma naccedilatildeo gentiacutelica a Assiacuteria com a capital Niacutenive que possuiacutea uma populaccedilatildeo de mais de 120000 homens O autor ainda complementa que

A histoacuteria de Jonas tatildeo conhecida pela menor crianccedila da Escola Domi-nical eacute geralmente contextualizada e limitada ao milagre do profeta subsistir dentro do ventre de um grande peixe por trecircs dias e trecircs noites ou ao fator de sua desobediecircncia Este livro no entanto natildeo tem como prioridade mostrar a Jonas o peixe sua pregaccedilatildeo ou o povo de Niacutenive Ele guarda na sua linda histoacuteria revelaccedilotildees sobre a pessoa e caraacuteter de Deus O livro foi escrito para revelar um Deus que estaacute sobre noacutes que cuida que orienta que ama e que caminha conosco (DASILVA 2003 p 1)

Fabio (1991) aponta que Jonas vivera em um periacuteodo no qual Israel corria gra-ve risco de ser extinto como naccedilatildeo O autor aponta que em II Reis 1427 ldquoAinda natildeo falara o Senhor em apagar o nome do Israel de debaixo do ceacuteurdquo mas estava perto de tomar tal decisatildeo Na eacutepoca a pobreza era uma marca da sociedade e natildeo havia nem um homem escravizado nem um homem livre As classes sociais estavam praticamente unificadas com o desaparecimento completo da classe meacutedia e a diminuiccedilatildeo significativas da riqueza privada

Paradoxalmente era tremenda a expansatildeo militar e Israel atingira um niacutevel bastante estaacutevel de seguranccedila nacional Percebemos isso em II Reis 142528 atraveacutes das palavras ldquorestabeleceurdquo e ldquoconquistourdquo presentes no

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texto Estaacute dito ali que Jeroboatildeo II restabelece as fronteiras e conquista espaccedilos pela via das forccedilas armadas enquanto isso a anguacutestia social do povo era horriacutevel Natildeo havia o menor vislumbre ou esperanccedila de mu-danccedilas radicais pois natildeo se contava com ningueacutem que socorresse Israel (II Reis 1426) Em consequecircncia de tal situaccedilatildeo Jonas se transformou num profeta extremamente politizado por conseguinte ideologizado Ele tinha consciecircncia por exemplo de que nos seus dias a grande ameaccedila para Israel era a Assiacuteria cuja capital era Niacutenive (FABIO 1991 p 4-5)

Ora Jonas natildeo vivera e sua histoacuteria natildeo fora contada em um periacuteodo de prosperidade Niacutenive era considerada uma grande ameaccedila para Israel assim como a Assiacuteria em geral Erthal et al (2002) apontam que o tema do livro de Jonas concentra-se na misericoacuterdia divina Jonas eacute chamado por Deus para advertir Niacutenive sobre os fatos que seriam consumados como consequecircncia de seus pecados o principal propoacutesito de Deus nesse sentido era demonstrar a Israel e agraves naccedilotildees a magnitude da Sua misericoacuterdia e a Sua accedilatildeo atraveacutes da pregaccedilatildeo do arrependimento

Para Alencar (2010) Jonas eacute chamado por Deus para anunciar a conversatildeo na capital Niacutenive que se encontrava fora das fronteiras com Israel um reflexo do nacionalismo exclusivista do povo de Israel no poacutes-exiacutelio fundamentado na concepccedilatildeo de povo eleito e na visatildeo de Jerusaleacutem como o uacutenico lugar onde Deus manifestava-se Trata-se da comunicaccedilatildeo de Deus aleacutem da visatildeo do povo de Jerusaleacutem fazendo uso de Jonas como um instrumento de conversatildeo

Antes de aprofundar conhecimentos acerca da histoacuteria do livro de Jonas tendo-se jaacute abordado acerca da autoria desse livro cumpre aprofundar conhe-cimentos sobre a eacutepoca atribuiacuteda ao mesmo Ainda segundo Alencar (2010) a narrativa do livro de Jonas natildeo oferece nenhuma evidecircncia que possibilite datar o livro A existecircncia de um profeta que vivera sob o nome Jonas no seacuteculo XVIII natildeo representa que o livro tenha sido escrito nessa eacutepoca Para o autor existem elementos que sugerem uma dataccedilatildeo tardia ao livro de Jonas quais sejam

bull Vaacuterias palavras de origem aramaica satildeo observadas na narrativa de Jonas O aramaico tornara-se liacutengua oficial no periacuteodo persa As palavras que designam os marinheiros e o navio (Jonas 1 5) e o decreto do rei de Niacutenive (Jonas 37) advecircm da liacutengua aramaica

bull A histoacuteria de Jonas conforme observado em Jonas (3 7-8) faz alusatildeo aos costumes persas como por exemplo a participaccedilatildeo de animais nos rituais de penitecircncia

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bull Niacutenive era identificada como capital da Assiacuteria no tempo de Jonas de modo que a cidade soacute se tornara importante no templo de Senaqueribe em 704 aC O rei seria tratado como rei da Assiacuteria e natildeo rei de Niacutenive

bull Natildeo haacute influecircncia no livro de Jonas da eacutepoca heleniacutestica do tempo de Ale-xandre Magno e de seus sucessores como tambeacutem natildeo aparecem conflitos com samaritanos nem mesmo questotildees envolvendo casamentos com mulheres estrangeiras

Esses elementos segundo Alencar (2010 p 8) natildeo satildeo suficientes para que se precise a data na qual fora escrito o livro de Jonas entretanto ldquoeacute possiacutevel afirmar que o livro tenha sido escrito no final do seacuteculo IV ou no iniacutecio do seacuteculo III aC no periacuteodo persardquo

Segundo Dasilva (2003) Deus ordenou que Jonas se levantasse e fosse para a grande cidade de Niacutenive Jonas teria dito ldquonatildeordquo a Deus sabendo que a Assiacuteria era uma inimiga terriacutevel de Israel Na verdade ele temia que Niacutenive se arre-pendesse e fosse poupada por Deus da puniccedilatildeo e condenaccedilatildeo iminente Caso Niacutenive caiacutesse Israel de Jonas escaparia de suas investidas e de seus ataques assim convocado por Deus ele fugiu

Erthal et al (2002) apontam que logo que Jonas fugiu tomando um navio para Taacutersis Deus passou a agir mandando forte vento sobre o mar e criando uma grande tempestade Jonas dormia no poratildeo do navio e o capitatildeo perguntou-lhe por qual motivo dormia enquanto o medo e o pavor tomavam conta dos tripu-lantes que clamavam aos deuses pelo livramento O versiacuteculo seis do primeiro capiacutetulo do livro relata que Jonas tambeacutem clama a Deus

Os tripulantes do navio ficaram indignados quando Jonas responde que era hebreu que servia ao Deus do ceacuteu mas que estava fugindo dEle (18- 10) Por causa de sua atitude Jonas foi obrigado a enfrentar as con-sequumlecircncias e acabou por confessar sua transgressatildeo ldquoE ele lhes disse Levantai-me e lanccedilai-me ao mar e o mar se aquietaraacuterdquo (112) Jonas se sentia nesse momento culpado por ter desobedecido a Deus e por colocar a vida da tripulaccedilatildeo em perigo Apanharam Jonas e o lanccedilaram ao mar A tempestade parou milagrosamente (11415) O resultado contrastante nesta situaccedilatildeo foi a conversatildeo da tripulaccedilatildeo ldquoTemeram pois estes ho-mens ao Senhor com grande temor e ofereceram sacrifiacutecios ao Senhor e fizeram votosrdquo (116) (ERTHAL et al 2002 p 37)

O clamor de Jonas apesar de sua rebeldia fora atendido Jonas mostrou-se sincero e temente a Deus pedindo misericoacuterdia divina e livramento ou seja

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que sua vida fosse poupada Deus providenciou um grande peixe para salvar a vida de Jonas deixou-o vivo por trecircs dias dentro do ventre daquele peixe Em Jonas 210 observam-se sete milagres divinos a tempestade a sorte de Jonas a calmaria do mar o grande peixe a sobrevivecircncia de Jonas o peixe conduzido ateacute a praia e o fato de o peixe ter vomitado Jonas em terra seca por ordem divina (FABIO 1991)

Ora a noccedilatildeo principal do livro de Jonas diz respeito justamente agrave misericoacuterdia divina Deus pune na mesma medida em que salva Deus aproxima-se de seus filhos mesmo quando estes fogem desde que se arrependam verdadeiramente Essa eacute a concepccedilatildeo fundamental do livro de Jonas

2 EPISOacuteDIOS QUE DEMONSTRAM A OSCILACcedilAtildeO DA OBE-DIEcircNCIA E DESOBEDIEcircNCIA A DEUS AO LONGO DA ERA BIacute-BLICA

Jonas eacute apenas um exemplo da oscilaccedilatildeo entre a obediecircncia e desobediecircncia a Deus ao longo do percurso biacuteblico Esta parte do estudo relata outros episoacutedios biacuteblicos nos quais se verifica essa oscilaccedilatildeo

Talvez o mais conhecido episoacutedio que elucida tal questatildeo seja o de Gecircnesis quando Deus concedera tudo a Adatildeo menos que ele provasse o fruto da aacutervore do conhecimento do bem e do mal deixando claro que se ele comesse esse fruto certamente morreria (Gecircnesis 2 17) Deus ainda que misericordioso puniu Adatildeo lanccedilando-o para fora do jardim do Eacuteden para lavrar a terra da qual fora tomado (Gecircnesis 3 23)

Esse episoacutedio de Gecircnesis eacute um dos principais exemplos biacuteblicos acerca do arrependimento agrave desobediecircncia diante de Deus Em Romanos 519 tem-se que pela desobediecircncia de um soacute homem muitos foram feitos pecadores assim como pela obediecircncia de um muitos seratildeo constituiacutedos justos

A oscilaccedilatildeo entre a obediecircncia e a desobediecircncia a Deus tambeacutem eacute abordada em Romanos No versiacuteculo 30 do capiacutetulo 11 do livro tem-se que ldquoPois assim como voacutes outrora fostes desobedientes a Deus mas agora alcanccedilastes miseri-coacuterdia pela desobediecircncia delesrdquo Ora Deus natildeo premia os que obedecem apoacutes a desobediecircncia mas sim eacute misericordioso pelo arrependimento genuiacuteno e sincero

3 ATUALIDADE ALGUNS EPISOacuteDIOS EM NOSSA VIDA ATUAL QUE DEMONSTRAM A INSTABILIDADE DO SER HUMANO EM PERMANECER FIEL A DEUS

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O ser humano eacute falho e imperfeito por natureza Entretanto natildeo foi soacute nos tempos biacuteblicos que o homem demonstrou dificuldades em permanecer fiel e obediente a Deus De fato tal instabilidade tem sido observada durante toda a histoacuteria humana e pode ser amplamente observada em nossa conduta na atualidade Esta parte do estudo procura demonstrar e exemplificar esse fato

O primeiro mandamento biacuteblico propotildee que o homem ame a Deus sobre todas as coisas Entretanto observa-se que o ser humano em muito afasta-se de Deus Os constantes estiacutemulos e os desejos de acumular riqueza por parte do ser humano satildeo exemplos de elementos que afastam o homem de Deus Por vezes o homem daacute importacircncia demasiada ao dinheiro colocando-o como prioridade em sua vida acima de Deus ou ainda orando a Deus tatildeo somente pedindo riqueza material e natildeo riqueza espiritual

Ora nem mesmo o primeiro mandamento biacuteblico eacute uma tarefa faacutecil de ser alcanccedilada pelos servos de Deus Como natildeo eacute objeto de ostentaccedilatildeo Deus acaba sendo ldquodeixado de ladordquo pelas pessoas que passam a buscar sobretudo a riqueza material e a estabilidade financeira desalinhando-se dos preceitos e princiacutepios divinos

A principal fonte de instabilidade do homem em relaccedilatildeo agrave fidelidade a Deus satildeo os estiacutemulos presentes em nossa sociedade O dinheiro e a ideia de acuacutemulo da riqueza satildeo apenas alguns fatores que afastam o homem de Deus A sexualidade eacute outro exemplo claro de estiacutemulo que torna o homem infiel e desobediente aos olhos divinos

De fato o sexo tornou-se um produto de consumo na atualidade Consumir e almejaacute-lo de maneira desenfreada e irrestrita eacute caracteriacutestico da sociedade O sexo eacute objeto de desejo nos filmes muacutesicas revistas e amplamente presente no mundo virtual na internet como um todo O homem eacute ludibriado em um mundo que respira sexo natildeo mantendo a integridade sexual almejada por Deus peca constantemente contra a sexualidade cobiccedilando tambeacutem a mulher do proacuteximo

Todos os mandamentos de Deus podem ser colocados como desafios ou obstaacuteculos para que o homem permaneccedila fiel a Ele em diferentes niacuteveis O homem pecador por natureza cria obstaacuteculos em sua conduta diaacuteria caindo constantemente em tentaccedilatildeo de maneira semelhante a Adatildeo que sucumbiu agrave tentaccedilatildeo de contrariar a uacutenica imposiccedilatildeo que lhe fora feita por Deus

A cobiccedila eacute um dos grandes problemas enfrentados pelo homem para manter um relacionamento com Deus Natildeo se refere aqui apenas agrave cobiccedila desenfreada pelo dinheiro e pelo sexo mas tambeacutem pelas coisas alheias Os homens desejam

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o poder e o conseguem por meio do erro e do pecado A televisatildeo por exemplo vende a ideia daquelas vidas perfeitas dos bem sucedidos provocando que o homem cobice os bens e a proacutepria vida de terceiros desconsiderando-se a si proacuteprio e ao seu relacionamento iacutentimo com Deus

Entretanto o homem temente a Deus arrepende-se constantemente Confessa o seu pecado mas volta rapidamente a pecar sucumbindo aos mesmos erros que o fizeram pecar em outro momento novamente almeja o poder o sexo a riqueza financeira Deseja intensamente tudo aquilo que natildeo tem

Para suprir essa alarmante necessidade o homem faz uso de todos os meios e mecanismos possiacuteveis muitas vezes pouco se importando se atendecirc-los significa estar ainda mais distante do divino Roubar eacute uma praacutetica comum em nossa sociedade natildeo somente para sustentar um viacutecio em substacircncia mas tambeacutem pelo simples ideal de acumular riquezas uma praacutetica tatildeo repreendida por Deus

Assim o homem se vecirc diante de todo um contexto desfavoraacutevel para se manter fiel a Deus De fato a sociedade jaacute haacute muito tempo tem se afastado dos princiacutepios e preceitos divinos os homens natildeo demonstram mais arrependimento genuiacuteno ao cometerem pecados e insistindo em seus erros independentemente das liccedilotildees divinas jaacute aplicadas a eles

Pode-se equiparar o contexto atual ao que observamos na histoacuteria de Jonas cuja abordagem jaacute foi feita anteriormente neste artigo Jonas tambeacutem sabendo de suas funccedilotildees e da vontade de Deus disparou em fuga O homem atual tambeacutem conhece suas funccedilotildees e a vontade de Deus e mesmo assim ignora-as diante de seu egoiacutesmo sacrificando sua proacutepria alma por sentimentos e prazeres pueris

Somente quando sente falta da presenccedila de Deus o homem cogita o arre-pendimento Jonas aprendera sua liccedilatildeo ao permanecer trecircs dias no ventre do peixe clamando pela misericoacuterdia divina O homem atual entretanto parece natildeo aprender suas liccedilotildees Ele insiste no pecado e sucumbe a ele e aos estiacutemulos peca-minosos amplamente presentes em nossa sociedade Haacute pontos de aproximaccedilatildeo e de afastamento entre os episoacutedios relatados neste estudo e o contexto atual de vivecircncia do homem Entretanto permanece a dificuldade de se permanecer estavelmente fiel a Deus

4 ABORDAGEM DO VERDADEIRO ARREPENDIMENTOConforme apresentado o homem arrepende-se buscando a misericoacuterdia e

o perdatildeo de Deus O arrependimento segundo Delumeau (2003) eacute deixar o pecado e para que este seja abandonado o arrependimento deve ser verdadeiro

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buscando o perdatildeo divino e comprometendo-se a natildeo cometer o mesmo pecado

No item anterior abordaram-se aspectos da vida atual que sugerem a falta de arrependimento verdadeiro da parte do homem Jonas por exemplo arrependeu--se verdadeiramente ao reconhecer a soberania de Deus Arrependeu-se pri-meiramente ao observar a tempestade arrependeu-se quando estava em alto mar e durante os trecircs dias nos quais esteve dentro do ventre do peixe Jonas de fato arrependeu-se verdadeiramente de sua desobediecircncia a Deus e buscou corrigir suas falhas

Adatildeo no mesmo sentido mostrou-se desobediente ao divino e arrependeu-se gravemente colocando todos os homens em pecado Adatildeo buscava que Deus tivesse pena e piedade de si e de Eva concedendo-lhes meios para sustentar a vida Pode-se questionar o motivo que conduziu Adatildeo ao arrependimento mas natildeo se fora ou natildeo verdadeiro

O homem arrepende-se de suas falhas para com Deus fruto da instabilidade de seu relacionamento de obediecircncia para com o divino Entretanto o homem atual costuma repetir seus pecados arrepende-se com frequecircncia mas por medo de puniccedilotildees raramente se arrepende verdadeiramente O homem natildeo atribui culpa a si mesmo por seus pecados e quando o faz eacute de maneira displicente insistindo nos mesmos erros que antes cometera

Todavia isso diz respeito justamente agrave natureza pecaminosa do homem Mes-mo na Biacuteblia satildeo raros os casos de arrependimento verdadeiros (DELUMEAU 2003) Castro (2013) aponta que o arrependimento verdadeiro ou genuiacuteno con-siste na ideia por traacutes da desobediecircncia do homem em relaccedilatildeo a Deus seja por meio de uma ordem direta ou como eacute mais comum na atualidade por meio da desobediecircncia aos preceitos biacuteblicos

Um exemplo de arrependimento verdadeiro inquestionaacutevel na Biacuteblia encontra- se na histoacuteria de Davi

A oraccedilatildeo de Davi depois do maior erro de sua vida ilustra a natureza da verdadeira tristeza pelo pecado Seu arrependimento foi sincero e profundo Ele natildeo fez nenhum empenho por atenuar a culpa Natildeo foi o desejo de escapar ao juiacutezo que lhe inspirou a oraccedilatildeo Davi reconheceu a enormidade de sua transgressatildeo viu a contaminaccedilatildeo de seu ser e sentiu nojo do pecado Natildeo suplicava unicamente o perdatildeo mas tambeacutem um coraccedilatildeo puro Desejava a alegria da santidade e estar mais uma vez em harmonia com Deus (ENSINOS DE JESUS 2012 p 21)

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Ora levando-se em consideraccedilatildeo a histoacuteria de Davi compreende-se que o arrependimento verdadeiro eacute fruto de um genuiacuteno sentimento de tristeza do ser humano ao desapontar a Deus representado pela sinceridade e pela verdade aceitando o pecado que cometeu e natildeo negando-o Trata-se do desprezo pelo pecado propriamente dito

Souza (2009) aponta que o homem peca quando ele age contra aquilo que eacute imposto por Deus Com o pecado o homem e a mulher tornaram-se seres decadentes sendo o arrependimento a noccedilatildeo atraveacutes da qual eles podem ser sinceros com Deus assumindo sua culpa no pecado e demonstrando tristeza diante de sua desobediecircncia

O arrependimento verdadeiro aleacutem de tais caracteriacutesticas natildeo adveacutem de accedilatildeo humana mas sim de accedilatildeo divina uma vez que

Nenhum ser humano tem o poder de perdoar pecados Somente Deus por meio de Cristo aquele que nunca pecou pode nos conceder perdatildeo e paz de espiacuterito O ensino de que algum ser humano tem poder de perdoar pecados natildeo estaacute em harmonia com a Biacuteblia Nenhuma accedilatildeo humana eacute ca-paz de conseguir o perdatildeo Somente Deus em Jesus Cristo pode perdoar nossos pecados Por isso devemos nos aproximar Dele com o coraccedilatildeo verdadeiramente arrependido (ENSINOS DE JESUS 2012 p 21)

Assim o arrependimento verdadeiro eacute obtido tatildeo somente na comunhatildeo do pecador com Deus Ele deve manifestar com sinceridade o seu arrependimento pelo erro cometido independentemente das dimensotildees de seu pecado Em uma era na qual pecar eacute socialmente aceitaacutevel arrepender-se verdadeiramente eacute um dos difiacuteceis desafios do pecador

5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAISO presente estudo concentrou-se em uma abordagem clara e objetiva acerca do

livro de Jonas sobretudo no aspecto referente agrave conduta dele em relaccedilatildeo a Deus demonstrando sua desobediecircncia e a concepccedilatildeo de arrependimento verdadeiro a fim de que Jonas pudesse persistir no caminho traccedilado por Deus executando a funccedilatildeo divina que lhe fora incumbida

No mesmo sentido observou-se que o pecado sempre marcou o homem desde os tempos de Adatildeo ateacute a atualidade na qual os estiacutemulos pecaminosos estatildeo ain-da mais presentes Existe noccedilatildeo de arrependimento mas natildeo de arrependimento verdadeiro conforme ocorreu com Jonas e Davi Esse tipo de arrependimento se manifesta por uma verdadeira tristeza pelo cometimento do pecado sincera

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e profundamente sem o desejo de escapar da puniccedilatildeo mas curvando-se diante da superioridade de Deus

Este estudo natildeo buscou esgotar o assunto ou tornaacute-lo acabado mas tatildeo so-mente abordar concepccedilotildees acerca do verdadeiro arrependimento e das oscilaccedilotildees entre a obediecircncia e a desobediecircncia a Deus observadas tanto na era biacuteblica quanto na atualidade

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REFEREcircNCIAS ALENCAR J F Levanta-te e vai agrave grande cidade uma introduccedilatildeo ao livro de Jonas Revista Vida Pastoral ano 51 n 274 setembro-outubro 2010 p 6-13

BAZIOLI A J Graccedila Soberana Um Estudo do livro de Jonas copy Comunidade Presbiteriana Chaacutecara Primavera Ministeacuterio de Grupos Pequenos Abr2011

BIacuteBLIA SAGRADA Disponiacutevel em sanderleicombrPDFBibliaBiblia- Sagrada-Joao-Ferreira-de-Almeidapdf Acesso em 2 jul 2017

CASTRO D R Joatildeo Batista Profeta Do Amor Esponsal 1 ed ISBN 978-85-7784-077-9 copy Ediccedilotildees Shalom Aquiraz Brasil 2013

CLEMENTE M A Riqueza de Jonas Goiacircnia GO Editora RHJ 2008

DASILVA R E As Revelaccedilotildees Do Livro De Jonas Pulpito On-Line Forta Lauderdale 2003

DELUMEAU J O pecado e o medo ndash a culpabilizaccedilatildeo no ocidente (seacuteculos 13-18) Traduccedilatildeo Aacutelvaro Lorencini Bauru EDUSC 2003 2 v

ENSINO DE JESUS 2012 O que Jesus Ensinou sobre o Perdatildeo 6ordf liccedilatildeo Disponiacutevel em ltensinosdejesuscombrmateriaisestudosestudo-6pdfgt Acesso em 5 jul 2017

ERTHAL L A et al Profetas Menores Seminaacuterio Evangeacutelico para o aper-feiccediloamento de Disciacutepulos e obreiros do Reino ndash SEMEADOR Niteroacutei 2002

FAacuteBIO C Jonas O Sucesso do Fracasso Itajaiacute SC Editora Vinde 1991

SOUZA J N O destino do homem no plano de Deus uma anaacutelise da antropo-logia patriacutestica sobre a ldquoimagem e semelhanccedilardquo Rev Pistis Prax Teol Pastor Curitiba v 1 n 1 p 119-145 janjun 2009

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TRANSFORMACcedilAtildeO RELIGIOSA BRASILEIRA E CARACTERIacuteSTICAS DO NOVO PADRAtildeO RELIGIOSO

Joatildeo Boechat54

RESUMOO Brasil experimentou intensa transformaccedilatildeo religiosa nos uacuteltimos 40 anos

Essa mudanccedila caracterizou-se por trecircs pontos centrais a saber a) Queda da membresia Catoacutelica b) Crescimento dos indiviacuteduos que se consideram sem--religiatildeo e c) Crescimento Evangeacutelico A partir daiacute a sociedade brasileira apresenta uma nova configuraccedilatildeo religiosa Dessa forma surge a necessidade de natildeo apenas compreendermos essa nova configuraccedilatildeo como tambeacutem perce-bermos as relaccedilotildees entre esses grupos religiosos atraveacutes do tracircnsito religioso isto eacute como se daacute a formaccedilatildeo de cada grupo religioso e quanto essa formaccedilatildeo tem relaccedilatildeo com o ganho ou perda de membros antes ligados a outros grupos religiosos Este artigo apresenta a nova configuraccedilatildeo religiosa brasileira aleacutem de demonstrar como essa configuraccedilatildeo tem sido alterada nas uacuteltimas deacutecadas e por fim analisa como se daacute o tracircnsito religioso na sociedade brasileira

Palavras-Chave Transformaccedilatildeo Religiosa Configuraccedilatildeo Religiosa Cresci-mento Evangeacutelico

ABSTRACTIn the last 40 years Brazil has experienced intense religious transformation

Such change is characterized by three main points a) Decrease of Catholic mem-bership b) Increase of Non-Religious groups and c) Increase of the Evangelicals Thus Brazilian society presents a new religious setting Because of that there is the need of not only comprehend this new configuration but also understand the relationship among the religious groups using the analysis of the religious traffic in Brazil ie how each group is formed and how this formation is related to the adding or losing of individuals who were once members of other religious groups In this way this paper presents the new religious configuration in Brazil and discusses how said configuration has been altered in the last decades At last it analyzes how the religious traffic takes place in Brazilian society

54 Joatildeo Boechat eacute professor da Faculdade Batista do Rio de Janeiro aleacutem de pesquisador do Deutscher Akademischer Austauschdienst (DAAD) Eacute doutorando em Sociologia Poliacutetica pela Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF) com ecircnfase em Teologia pela Humboldt Universitaumlt zu Berlin na Alemanha Possui mestrado em Sociologia Poliacutetica pela UENF e especializaccedilatildeo em Ciecircncia da Religiatildeo aleacutem de graduaccedilatildeo em Teologia e Relaccedilotildees Internacionais

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Keywords Religious transformation Religious Configuration Evangelical Growth

INTRODUCcedilAtildeOA realidade do campo religioso brasileiro indica uma forte transformaccedilatildeo

na sociedade em que vivemos Esta percepccedilatildeo ocorre pois ainda que a religiatildeo seja uma espera proacutepria ela influencia e eacute influenciada pelas demais esferas sociais como a economia poliacutetica e ciecircncia Portanto eacute sine qua non para a profunda compreensatildeo teoloacutegica a forma pela qual a religiatildeo se relaciona com a realidade vigente

A palavra que define a realidade religiosa brasileira nas uacuteltimas deacutecadas eacute ldquotransformaccedilatildeordquo Especialmente a partir da deacutecada de 80 o campo religioso no Brasil observa uma intensa mudanccedila encabeccedilada pelo grande crescimento evangeacutelico que atua como principal combustiacutevel de tal transformaccedilatildeo que tambeacutem eacute caracterizada pelo crescimento dos sem-religiatildeo e pela queda catoacutelica

Nesse contexto este artigo procura analisar a transformaccedilatildeo religiosa na sociedade brasileira observando os dados dos censos das uacuteltimas deacutecadas bem como buscando compreender o tracircnsito religioso que ocorre por meio da anaacutelise de como se daacute a formaccedilatildeo das membresias religiosas Por fim apontam-se algumas razotildees que auxiliam na compreensatildeo da mudanccedila religiosa brasileira

Assim pretende-se colaborar para a compreensatildeo da realidade brasileira e de como a transformaccedilatildeo estaacute relacionada com questotildees que atingem a sociedade como um todo Tambeacutem pretende-se explicitar que a religiatildeo eacute uma esfera autocirc-noma que influencia e eacute influenciada pelas demais esferas sociais adaptando-se agraves demandas e necessidades de seus fieacuteis e provendo respostas que busquem atender a tais necessidades

1 PADRAtildeO RELIGIOSO BRASILEIROAs uacuteltimas deacutecadas demonstraram um ldquopadratildeo religiosordquo no Brasil Em

2020 o Instituto Datafolha lanccedilou os seguintes dados da configuraccedilatildeo religiosa brasileira

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Graacutefico 1 Configuraccedilatildeo Religiosa Brasileira

Fonte Datafolha (2020)

Atualmente 50 dos brasileiros se afirmam Catoacutelicos 31 Evangeacutelicos55 10 Sem-Religiatildeo e 9 adeptos de outras religiotildees

Os dados do Graacutefico 1 atuam em conformidade com os dados do Censo de 2010 realizado pelo IBGE56 os quais apontam que a configuraccedilatildeo religiosa no Brasil nas uacuteltimas deacutecadas possui trecircs caracteriacutesticas fundamentais a) intensa queda dos Catoacutelicos b) crescimento significativo dos Evangeacutelicos c) crescimento relevante dos sem-religiatildeo Considerando os dados levantados pelo IBGE eacute possiacutevel identificar tal configuraccedilatildeo

Graacutefico 2 Religiotildees no Brasil (2010)

Fonte Censo do IBGE 2010

55 Caso dividamos os Evangeacutelicos entre os principais subgrupos a formaccedilatildeo do campo brasileiro corres-ponde a 21 de Pentecostais 44 de Evangeacutelicos de Missatildeo e 45 de Evangeacutelicos Natildeo-Determinados56 2010 corresponde ao ano do uacuteltimo censo publicado pelo IBGE

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De acordo com os dados do uacuteltimo Censo do IBGE publicado em 2010 entre os brasileiros 646 se denominam Catoacutelicos 57 222 Evangeacutelicos 58 81 Sem- Religiatildeo 59 27 possuem outras religiotildees 60 21 satildeo adeptos do Espiritismo e 033 de religiotildees afro-brasileiras 61

De fato as religiotildees natildeo satildeo compostas por subgrupos homogecircneos com completa unidade doutrinaacuteria eclesial e praacutetica Tomemos como primeiro exemplo os Evangeacutelicos Para a real compreensatildeo desse grupo religioso no Brasil eacute relevante levar em conta suas divisotildees a fim de melhor entender sua configuraccedilatildeo uma vez que ela se expressa de forma mais variada do que as dos Catoacutelicos e dos Sem-religiatildeo Afinal entre os Catoacutelicos 994 satildeo Catoacutelicos Apostoacutelicos Romanos jaacute entre os Sem-Religiatildeo 952 natildeo possuem religiatildeo mas creem no transcendente ou seja apenas 48 satildeo ateus ou agnoacutesticos

Diferentemente dos Catoacutelicos e Sem-Religiatildeo cuja anaacutelise dividimos em dois subgrupos os Evangeacutelicos apresentam uma divisatildeo relevante em trecircs subgrupos os Pentecostais que correspondem a 60 dos Evangeacutelicos e 133 da populaccedilatildeo brasileira 62 os Evangeacutelicos Natildeo-Determinados correspondem a 212 dos Evangeacutelicos e 48 dos brasileiros 63 Por fim os Evangeacutelicos de Missatildeo ou Histoacutericos correspondem a 182 dos Evangeacutelicos e 44 da populaccedilatildeo brasileira 64

Com base no Graacutefico 2 dividimos a anaacutelise da evoluccedilatildeo do campo religioso brasileiro em duas fases de 1940 a 1980 e de 1980 a 2010 Essa divisatildeo ressalta

57 Entre os Catoacutelicos 994 satildeo Catoacutelicos Apostoacutelicos Romanos 45 Catoacutelicos Apostoacutelicos Brasileiros e 01 Catoacutelicos Ortodoxos58 Entre os Evangeacutelicos 60 satildeo Pentecostais 218 Natildeo-Determinados e 182 Evangeacutelicos de Missatildeo59 Entre os Sem-Religiatildeo 952 satildeo sem-religiatildeo 4 Ateus e 08 Agnoacutesticos60 Entre as outras religiotildees 333 satildeo adeptos de outras religiosidades cristatildes 317 satildeo Testemunhas de Jeovaacute 146 possuem muacuteltiplas religiosidades 55 satildeo Budistas 52 satildeo membros da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Uacuteltimos Dias 36 adeptos de outras religiosidade orientais 24 satildeo Judeus 17 adeptos do Esoterismo e 14 membros de religiotildees Indiacutegenas Haacute ainda grupos de outras religiotildees como o Hinduiacutesmo que correspondem a menos de 1 deste grupo61 Entre as Religiotildees Afro-brasileiras 692 pertencem agrave Umbanda 284 ao Candombleacute e 24 a outras religiotildees de matriz afro-brasileiras62 Os maiores grupos e igrejas pentecostais satildeo Assembleia de Deus (485 dos Pentecostais) Igrejas Pentecostais Independentes (208) Congregacional Cristatilde do Brasil (9) Igreja Universal do Reino de Deus (74) Igreja do Evangelho Quadrangular (71) Deus eacute Amor (33) e Maranata (14)63 Os Natildeo-Determinados satildeo assim denominados pois satildeo formados por igrejas independentes de teologia protestante sem viacutenculo histoacuterico com associaccedilotildees protestantes norte-americanas ou europeias como as Igrejas de Missatildeo64 Os Evangeacutelicos de Missatildeo satildeo assim chamados pois possuem teologia protestante e sua formaccedilatildeo estaacute vinculada agraves missotildees protestantes de igrejas histoacutericas norte-americanas ou europeias No Brasil as maiores igrejas ou associaccedilotildees satildeo Batistas (485 dos Evangeacutelicos de Missatildeo) Adventistas (203) Luterana (13) Presbiteriana (12) Metodista (44) Congregacional (14) e outras (04)

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como nas uacuteltimas trecircs deacutecadas houve relevante mudanccedila e uma nova padro-nizaccedilatildeo religiosa no paiacutes

Tabela 1 ndash Religiotildees no Brasil de 1940 a 2010 em porcentagem (MARIANO 2013)

Religiatildeo 1940 1950 1960 1970 1980 1990 2000 2010Catoacutelicos 952 937 931 911 892 833 738 646Evangeacutelicos 26 34 40 58 66 90 154 222Outras Religiotildees 19 24 24 23 25 29 35 50Sem Religiatildeo 02 05 05 08 16 48 73 81

Natildeo declarou 01 00 00 00 01 00 00 01

TOTAL 100 100 100 100 100 100 100 100Fonte Mariano 2013

De 1940 a 1980 o nuacutemero de Catoacutelicos no Brasil caiu de 952 para 892 passando de 39256972 para 108066311 adeptos65 Apesar do crescimento geral os Catoacutelicos declinaram em 6 nessas quatro deacutecadas Jaacute de 1980 a 2010 os Catoacutelicos caiacuteram de 892 para 646 da populaccedilatildeo do paiacutes totalizando 123228246 adeptos o que indica uma queda de 246 da membresia

Em 2020 o Instituto Datafolha66 publicou uma pesquisa cujos dados revelam que no Brasil os Catoacutelicos correspondem a 50 dos brasileiros o que confirma o ldquopadratildeo religiosordquo de queda da membresia catoacutelica67 Caso o Censo do IBGE de 2020 confirme os dados levantados pelo Datafolha haveria uma queda de 146 na membresia catoacutelica significando a maior perda de adeptos jaacute registrada em uma deacutecada

Por outro lado os Evangeacutelicos se moveram na direccedilatildeo contraacuteria dos Catoacutelicos De 1940 a 1980 aquele grupo cresceu de 26 para 66 da populaccedilatildeo brasilei-ra o que significa que em 40 anos os Evangeacutelicos saltaram de 1072144 para 7995938 adeptos Todavia se nessas quatro deacutecadas os Evangeacutelicos cresceram 4 nas deacutecadas seguintes houve um exponencial aumento dos adeptos entre 1980 e 2010 Nestas os Evangeacutelicos saltaram de 66 para 222 totalizando 42347787 adeptos Isso significa que nas uacuteltimas deacutecadas os Evangeacutelicos

65 De acordo com os dados do Censo do IBGE a populaccedilatildeo brasileira em 1940 era de 41236315 pessoas em 1980 121150573 e em 2010 190755799 pessoas66 Pesquisa Datafolha com 2948 entrevistas realizadas em 176 municiacutepios no paiacutes em 5 e 6 de dezembro de 2019 Margem de erro de 2 pontos percentuais para mais ou para menos e niacutevel de confianccedila de 9567 De acordo com a Pesquisa do Instituto Datafolha em Dezembro de 2019 a Religiatildeo do Brasileiro eacute dividida em 50 Catoacutelicos 31 Evangeacutelicos 10 Sem-Religiatildeo 3 Espiacuteritas 2 Afro-Brasileiros 2 Outras Religiotildees 1 Ateus 03 Judeus

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cresceram cinco vezes mais do que a populaccedilatildeo brasileira Enquanto de 1980 a 2010 a populaccedilatildeo brasileira cresceu 123 os Evangeacutelicos cresceram 62

O crescimento evangeacutelico eacute evidenciado pela pesquisa do Datafolha de acordo com a qual estes atingiram 31 da populaccedilatildeo em 2020 Conforme esses dados o periacuteodo de 2010 a 2020 aponta duas realidades opostas em relaccedilatildeo aos Catoacutelicos e Evangeacutelicos Por um lado os Catoacutelicos sofreram a maior perda de membresia jaacute registrada em uma deacutecada Por outro lado os Evangeacutelicos experimentaram de 2010 a 2020 o maior crescimento jaacute registrado em seu nuacutemero de adeptos

Portanto em 2010 os cristatildeos (Catoacutelicos e Evangeacutelicos)68 correspondiam a 868 dos brasileiros ou seja quase 9 em cada 10 brasileiros ainda se con-siderava cristatildeo De acordo com o Instituto Datafolha em 2020 esse nuacutemero corresponde a 81 dos brasileiros Issto indica que apesar do grande cresci-mento evangeacutelico a queda do nuacutemero de catoacutelicos foi expressiva a ponto haver reduccedilatildeo do nuacutemero de cristatildeos no paiacutes em mais de 5 pontos percentuais Ainda assim apesar do crescimento dos Sem-Religiatildeo (de 8 para 10) os ateus correspondem a apenas 1 da populaccedilatildeo brasileira

Assim os nuacutemeros do Censo permitem a formulaccedilatildeo do seguinte graacutefico

Graacutefico 3 Cristatildeos na populaccedilatildeo brasileira (1940-2020)

Fonte Censo do IBGE (1940-2010) Datafolha (2020)

Em conformidade com o crescimento evangeacutelico os Sem-Religiatildeo tambeacutem obtiveram consideraacutevel aumento Entre 1940 e 1980 eles passaram de 02 a 16 indo de 82473 para 1938409 indiviacuteduos que natildeo possuem religiatildeo Em 68 De fato os Espiacuteritas tambeacutem satildeo cristatildeos Mas como estamos considerando as principais mudanccedilas religiosas no paiacutes consideremos apenas Catoacutelicos e Evangeacutelicos como Cristatildeos Contudo apenas para a anaacutelise e natildeo como afirmaccedilatildeo teoloacutegica Considerando os Espiacuteritas os Cristatildeos atingiriam 2 da populaccedilatildeo em 2010 e 3 em 2020

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2010 esse grupo alcanccedilou 81 dos indiviacuteduos no Brasil totalizando 15451220 pessoas

Por outro lado considerando a pesquisa do Datafolha os Sem-Religiatildeo atin-giriam 10 havendo crescimento de cerca de 2 em nuacutemero Esse crescimento seria maior do aquele que ocorreu entre 2000 e 2010 (08) mas menor do que o ocorrido entre 1990 e 2000 (25)

Graacutefico 4 Cristatildeos x Sem-Religiatildeo no Brasil (1940-2020)

Fonte Censo do IBGE (1940-2010) Datafolha (2020)

Portanto se no fim do seacuteculo XIX apoacutes a Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica (1889) os Catoacutelicos concentravam praticamente 100 da populaccedilatildeo brasileira o seacuteculo XX eacute marcado pela constante queda dessa membresia ainda que ela fosse ampla maioria em 1970 (911) Todavia a partir da deacutecada de 1980 essa queda acelerou-se fazendo com que os Catoacutelicos perdessem quase 1 de sua membresia ao ano (-097)

Desse modo estabelecendo-se uma projeccedilatildeo linear em que os Catoacutelicos manteriam sua perda de 097 ao ano os Evangeacutelicos o seu crescimento de 069 aa e os Sem-Religiatildeo ganhando 017 o ldquopadratildeo religioso brasileirordquo apresentaria uma mudanccedila em relaccedilatildeo agrave hegemonia religiosa por volta de 2036 assim os Evangeacutelicos com 403 ultrapassaratildeo os Catoacutelicos com 394 Em 2040 os Evangeacutelicos teriam 43 e os Catoacutelicos 355 Nesse ano os cristatildeos corresponderiam a 785 da populaccedilatildeo brasileira enquanto os Sem-Religiatildeo formariam 132 da populaccedilatildeo brasileira

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Graacutefico 5 Religiotildees no Brasil (1940-2040)

De fato natildeo eacute possiacutevel afirmar que tal transformaccedilatildeo continuaraacute nesse ritmo Todavia ainda que haja desaceleraccedilatildeo na perda de Catoacutelicos ou no crescimento dos Evangeacutelicos o padratildeo religioso brasileiro eacute ratificado pela intensa mudanccedila ocorrida no cenaacuterio brasileiro nos uacuteltimos 150 anos

Assim os nuacutemeros das pesquisas mencionadas confirmam o ldquopadratildeo religio-sordquo brasileiro e demonstram que este tem se desenvolvido de forma estaacutevel nos uacuteltimos 40 anos Eacute relevante perceber contudo que o paiacutes natildeo passou nestas uacuteltimas deacutecadas por um processo de ldquodesligamento do transcendenterdquo ou seja a perda catoacutelica e o acreacutescimo dos sem-religiatildeo natildeo indicam necessariamente uma diminuiccedilatildeo da experiecircncia com o transcendente ou a perda da busca pelo sagrado A anaacutelise desse padratildeo ajuda a entender a transformaccedilatildeo no campo religioso ocorrida nas uacuteltimas deacutecadas

2 TRAcircNSITO RELIGIOSO BRASILEIRO De forma geral o padratildeo religioso brasileiro indica uma transformaccedilatildeo do

campo religioso marcado pelas transformaccedilotildees na direccedilatildeo da relaccedilatildeo com o divino e natildeo na negaccedilatildeo do divino Isso significa que o brasileiro natildeo deixou de crer no transcendente mas apenas alterou a forma como crecirc ou o caminho para acessar o divino De acordo com o IBGE em 2010 apenas 03 da populaccedilatildeo se denominava ldquoateurdquo ou seja 78 dos brasileiros se consideram sem-religiatildeo mas mantecircm a crenccedila no transcendente

Portanto a configuraccedilatildeo religiosa brasileira se constroacutei a partir das transfor-maccedilotildees inter-religiosas como demonstra a Tabela 2

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Tabela 2 ndash Religiatildeo atual e tracircnsito religioso (BARTZ 2012)

Religiatildeo atual Natildeo mudou Mudou populaccedilatildeoCatoacutelica 959 41 646Evangeacutelico de missatildeo 228 772 41Evangeacutelico pentecostal 144 856 133Outras religiotildees 107 893 50Sem-religiatildeo 197 803 81Meacutedia Total 683 235 100

Fonte Censo Demograacutefico do IBGE 2010

Agrave primeira vista a meacutedia total indica que o Brasil eacute um paiacutes no qual a maioria da populaccedilatildeo permanece na religiatildeo em que nasceu (683) enquanto uma minoria muda de religiatildeo durante a vida (235) Contudo analisando a tabela perceberemos que apenas os Catoacutelicos satildeo maioria entre os que natildeo mudaram de religiatildeo De fato em cada 100 Catoacutelicos 96 nasceram em ambientes Catoacutelicos e apenas 4 se converteram ao longo da vida Isso significa que o Catolicismo eacute no Brasil uma religiatildeo de nascidos e natildeo de convertidos

Se considerarmos os demais grupos religiosos como tambeacutem os sem-religiatildeo veremos que ateacute 2010 828 dos brasileiros jaacute mudaram de crenccedila religiosa durante a vida Com exceccedilatildeo do Catolicismo todos os demais grupos de crenccedila no Brasil satildeo formados majoritariamente por convertidos ou seja seus adeptos se tornaram membros ao longo da vida e natildeo nasceram em ambientes praticantes dessa religiatildeo Pelo menos trecircs quartos da populaccedilatildeo evangeacutelica ou dos que hoje se consideram ldquosem-religiatildeordquo jaacute estiveram em alguma outra religiatildeo antes de possuiacuterem o atual entendimento sobre o transcendente Por exemplo dos 139 da populaccedilatildeo de pentecostais 856 se converteram a essa vertente durante a vida e somente 144 satildeo filhos de pais pentecostais tratando-se portanto de uma religiatildeo majoritariamente de convertidos e natildeo de originaacuterios

Aleacutem disso quando observamos o tracircnsito religioso brasileiro comparando-se a religiatildeo atual e a religiatildeo anterior dos brasileiros percebemos como o fluxo religioso ocorre entre os ldquoconvertidosrdquo

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Tabela 3 ndash Religiatildeo atual x religiatildeo anterior (BARTZ 2012)

Religiatildeo AnteriorReligiatildeo Atual

CatoacutelicaEvangeacutelico Histoacuterico

Evangeacutelico Pentecostal

Outras Religiotildees

Sem-Religiatildeo

Catoacutelica 00 138 589 163 421Evangeacutelico de Missatildeo 269 213 507 11 57Evangeacutelico Pentecostal 187 402 408 04 239Outras Religiotildees 474 99 155 110 64Sem-religiatildeo 179 12 742 55 00Ateus 231 118 332 158 31

Fonte Bartz 2012

A Tabela 3 foi elaborada levando-se em conta os indiviacuteduos que jaacute mudaram de crenccedila religiosa ao longo da vida Assim ela natildeo demonstra a religiatildeo de origem desses indiviacuteduos mas aquelas pelas quais eles jaacute passaram em compa-raccedilatildeo com a atual religiatildeo Portanto a somatoacuteria de algumas supera os 100 uma vez que um indiviacuteduo que hoje eacute Evangeacutelico por exemplo pode ter passado por uma ou mais religiotildees

Com relaccedilatildeo aos Catoacutelicos eacute vaacutelido lembrar que apenas 41 dos adeptos satildeo convertidos Dentre estes 474 satildeo oriundos de famiacutelias que passaram por religiotildees de matriz africana ou orientais 269 foram Evangeacutelicos de Missatildeo e 187 Pentecostais Ademais 231 foram Ateus e 179 Sem-Religiatildeo

Os Evangeacutelicos satildeo o grupo que mais cresce no Brasil eacute uma religiatildeo de ldquocon-vertidosrdquo em que8 em cada 10 indiviacuteduos (82) aproximadamente tornaram-se adeptos ao longo de sua vida e natildeo nasceram em ambientes evangeacutelicos Entre os adeptos que se denominam ldquode Missatildeordquo 402 jaacute pertenceram ao Pentecosta-lismo Isso indica que entre os Evangeacutelicos de Missatildeo o principal fluxo ocorre dentro da esfera Evangeacutelica Ademais 213 dos Histoacutericos jaacute fizeram parte de outra instituiccedilatildeo evangeacutelica histoacuterica como por exemplo um Batista que jaacute foi membro de uma organizaccedilatildeo Metodista ou Presbiteriana Em continuidade 138 dos Evangeacutelicos de Missatildeo jaacute foram Catoacutelicos e 118 Ateus

Por outro lado se entre os Evangeacutelicos Histoacutericos ou de Missatildeo o principal fluxo eacute intrarreligioso entre os Pentecostais 742 foram Sem-Religiatildeo 589 jaacute foram Catoacutelicos e 332 Ateus De fato entre os Pentecostais a maior parte dos convertidos jaacute passou por outras religiotildees Ademais o fluxo intrarreligoso tambeacutem eacute consideraacutevel haja vista que 507 dos Pentecostais jaacute foram ldquoHistoacute-

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ricosrdquo e 408 jaacute passaram por outras organizaccedilotildees Pentecostais Por exemplo um membro da Assembleia de Deus Ministeacuterio Madureira jaacute foi membro da Assembleia de Deus Vitoacuteria em Cristo ou ainda da Igreja Universal do Reino de Deus

O grupo dos ldquosem-religiatildeordquo (78) representa o segundo maior contingente de pessoas que migraram de religiatildeo As igrejas evangeacutelicas pentecostais e os catoacutelicos satildeo os principais fornecedores para este grupo Observamos ainda que 421 dos ldquosem-religiatildeordquo declaram-se ter sido catoacutelicos 239 pentecostais 57 histoacutericos 64 declaram ter pertencido a outras religiotildees Haacute duas rotas portanto de migraccedilatildeo para os ldquosem-religiatildeordquo a primeira vai do catolicismo ou dos evangeacutelicos histoacutericos e a segunda do catolicismo ao pentecostalismo e entatildeo ao grupo ldquosem-religiatildeordquo

Assim o tracircnsito religioso brasileiro nos apresenta algumas caracteriacutesticas a) os Catoacutelicos satildeo os doadores universais b) os Evangeacutelicos satildeo receptores universais ainda que haja intenso fluxo intrarreligioso c) os Sem-Religiatildeo satildeo majoritariamente indiviacuteduos que mantecircm determinada espiritualidade e natildeo se tornam ateus

A fim de aprofundarmos o estudo da Religiatildeo no cenaacuterio brasileiro analisa-remos essas caracteriacutesticas observando possiacuteveis explicaccedilotildees para a formaccedilatildeo desse padratildeo

3 FORMACcedilAtildeO DO PADRAtildeO RELIGIOSO BRASILEIRODiversos trabalhos tecircm sido apresentados a fim de explicar as razotildees para

esse padratildeo apresentado a Teoria da Secularizaccedilatildeo se apresenta como uma valiosa ferramenta para a compreensatildeo dessa nova realidade (NERI 2011 ANDRADE 2012 ALTMANN 2012 GRACINO 2012 MARIANO 2013 CAMURCcedilA 2017)

Considerando que a esfera religiosa no mundo moderno eacute uma esfera como as demais que disputa espaccedilo e relevacircncia sociais pode-se destacar no caso brasileiro trecircs efeitos do processo de secularizaccedilatildeo sobre ela 1) a desmonopo-lizaccedilatildeo religiosa 2) a liberdade religiosa e 3) o pluralismo religioso

Apesar das mudanccedilas ocorridas no campo religioso brasileiro nas uacuteltimas deacutecadas a realidade religiosa brasileira ainda demonstra ser a del um paiacutes ma-joritariamente catoacutelico Apenas no fim do seacuteculo XIX com a proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica o Brasil se tornou oficialmente laico Todavia ainda assim a Igreja Catoacutelica manteve seus privileacutegios em relaccedilatildeo ao Estado secular Entretanto se

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durante os periacuteodos de colonizaccedilatildeo e impeacuterio para ser brasileiro era necessaacuterio ser catoacutelico a separaccedilatildeo entre Igreja e Estado resultou no fim da monopolizaccedilatildeo religiosa

A diferenciaccedilatildeo entre a esfera religiosa e as esferas poliacutetica e juriacutedica se aprofundou criando uma condiccedilatildeo secular que viria a ter efeitos estruturais tambeacutem sobre o modo de organizaccedilatildeo e atuaccedilatildeo das diferentes religiotildees

De acordo com os dados do IBGE em 1940 952 da populaccedilatildeo brasileira era catoacutelica Em 1980 o nuacutemero havia decrescido para 89 da populaccedilatildeo Esse nuacutemero passou para 73 em 2000 decrescendo para 646 da populaccedilatildeo de acordo com o Censo de 2010

O fim da monopolizaccedilatildeo religiosa ocorrida com o iniacutecio da Repuacuteblica no fim do seacuteculo XIX ocasionou tambeacutem maior liberdade religiosa Os dados do IBGE (2000) apontam que cerca de 40 dos catoacutelicos brasileiros eram natildeo praticantes ou seja natildeo participavam ativamente das atividades eclesiais A natildeo-participaccedilatildeo natildeo indica todavia uma falta de atividade religiosa Como ser brasileiro estaacute ligado a ser catoacutelico faz parte da cultura brasileira denominar--se catoacutelico enquanto participa de reuniotildees espiacuteritas ou frequenta cultos no Candombleacute e Umbanda O resultado dessa maior liberdade religiosa bem como a maior liberdade para se considerar como pertencente a outras religiotildees ou mesmo sem-religiatildeo pode ser observada nos Censos das uacuteltimas deacutecadas Enquanto o Catolicismo decresceu de 952 em 1940 para 646 em 2010 as ldquooutras religiotildeesrdquo cresceram de 19 para 5 da populaccedilatildeo os ldquosem-religiatildeordquo saltaram de 02 para 81 de 1940 a 2010 e os evangeacutelicos cresceram de 26 para 222 da populaccedilatildeo nos uacuteltimos 70 anos

Por fim a secularizaccedilatildeo abre espaccedilos para que natildeo soacute novas religiotildees como tambeacutem novas organizaccedilotildees religiosas busquem espaccedilo e concorram pela fide-lizaccedilatildeo religiosa dos indiviacuteduos

A concessatildeo da liberdade religiosa e a separaccedilatildeo Igreja-Estado romperam definitivamente o monopoacutelio catoacutelico abrindo caminho para que outros grupos religiosos pudessem ingressar e se formar no paiacutes disputar e conquistar novos espaccedilos na sociedade adquirir legitimidade social e consolidar sua presenccedila institucional (MARIANO 20033)

Com o fim do monopoacutelio religioso e consequentemente a abertura para novas organizaccedilotildees religiosas possibilita-se a formulaccedilatildeo de distintos interesses religiosos respondendo a distintos interesses sociais A religiatildeo agrave medida que vai se autonomizando como esfera social com loacutegica proacutepria atua como elabo-

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radora dos interesses religiosos a partir da mateacuteria-prima dos interesses sociais dos distintos grupos permitindo por exemplo que distintos interesses sociais estejam ligados a um mesmo interesse religioso Uma vez que as organizaccedilotildees consigam elaborar interesses religiosos comuns capazes de transcender em certa medida as fronteiras dos interesses sociais - embora sem nunca lograr uma completa desvinculaccedilatildeo desses interesses - torna-se provaacutevel a adesatildeo de distintos grupos sociais a essas organizaccedilotildees e especialistas a fim de realizar esses interesses religiosos

Para exemplificarmos o efeito do pluralismo religioso observemos o cresci-mento das igrejas evangeacutelicas no Brasil nos uacuteltimos anos Os dados do Instituto Brasileiro de Planejamento Tributaacuterio (IBPT) apontam que existem no Brasil mais de 179 mil organizaccedilotildees religiosas evangeacutelicas registradas Somente em 2013 doze igrejas foram abertas por dia no Brasil cerca de 4400 novas organi-zaccedilotildees religiosas evangeacutelicas ao longo do ano Esse nuacutemero apresentou em 2014 crescimento de 52869 As organizaccedilotildees religiosas evangeacutelicas apresentam um faturamento de cerca de R$20 bilhotildees ao ano oriundo de diacutezimos venda de produtos e aplicaccedilotildees financeiras70

Essa nova configuraccedilatildeo religiosa no Brasil abre oportunidades para a anaacutelise da religiatildeo sob novas perspectivas uma vez que novos interesses religiosos e sociais ganham espaccedilo nas disputas por atenccedilatildeo nas organizaccedilotildees e especialistas religiosos

Dessa forma a nova configuraccedilatildeo religiosa brasileira demonstra que as transformaccedilotildees religiosas acompanham as transformaccedilotildees sociais mas ocorrem tambeacutem por mudanccedilas na proacutepria esfera religiosa e na capacidade de diferentes religiotildees organizarem distintos interesses e atenderem distintas demandas dos indiviacuteduos

Portanto compreender a configuraccedilatildeo religiosa brasileira eacute funccedilatildeo importante de todo aquele que deseja analisar como a religiatildeo influencia tanto o indiviacuteduo como a sociedade brasileira ao passo que tambeacutem eacute influenciada por eles

69 Disponiacutevel em httpwwwempresometrocombrSiteMetodologia70 Para mais informaccedilotildees sobre a arrecadaccedilatildeo das organizaccedilotildees religiosas evangeacutelicas ver httpexameabrilcombrbrasilem-um-ano-arrecadacao-de-igrejas-passou-dos-r-20-bi

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AMEacuteM MUacuteLTIPLOS DERIVADOS O MESMO CONCEITOAs diferentes traduccedilotildees de uma mesma raiz

AMEN MULTIPLE DERIVATIVES THE SAME CONCEPTDifferent translations of the same word

Rawderson Rangel71

RESUMOHaacute diversas expressotildees que se encontram no Novo Testamento utilizadas

com muita frequecircncia ainda hoje nas igrejas cristatildes cuja origem eacute o hebraico A proposta do presente artigo eacute analisar a conhecida expressatildeo ldquoAmeacutemrdquo repe-tida em oraccedilotildees e muitas vezes como resposta da congregaccedilatildeo ao pregador ou dirigente do culto Atraveacutes do estudo de diferentes vocaacutebulos tendo esta palavra em sua raiz a investigaccedilatildeo apresentaraacute possiacuteveis significados e sentidos para a expressatildeo que de forma consensual eacute definida simplesmente por ldquoassim sejardquo

Palavras-chave Ameacutem Hebraico Raiz verbal

ABSTRACTMany expressions found in the New Testament often used even today in

Christian churches have their origin in the Hebrew The purpose of this article is to analyze the familiar expression ldquoAmenrdquo repeated in prayers and often as a congregation response of to the preacher or gospel service responsible Through the study of different words having this word in their root the research will present possible meanings for the expression usually simply defined by ldquoLet it be sordquo

Keywords Amen Hebrew Verbal root

71 Bacharel em Teologia pelo Seminaacuterio Teoloacutegico Batista do Sul do Brasil (atual Faculdade Batista do Rio de Janeiro) RJ Brasil revalidado pela Faculdade Teoloacutegica Batista do Paranaacute em Curitiba (atual FABAPAR) PR Brasil Poacutes-graduado em Antigo Testamento tambeacutem pela FABAPAR PR Mestre em Teologia pela Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Paranaacute Cursou Hebraico Biacuteblico pela Israel Biblical Institute of Studies acreditado pela Universidade Hebraica de Jerusaleacutem Israel atualmente eacute estudante de Grego Biacuteblico pela mesma instituiccedilatildeo Escritor professor de Teologia e idiomas biacuteblicos missionaacuterio da Junta de Missotildees Mun-diais da Convenccedilatildeo Batista Brasileira - JMM da CBB em Moccedilambique Eacute professor do Instituto Teoloacutegico Baptista da Beira Sofala e Instituto Biacuteblico de Sofala ndash Moccedilambique E-mail rawdersonhotmailcombr

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INTRODUCcedilAtildeO O hebraico biacuteblico por ser um idioma antigo apresenta-se bastante complexo

com determinados caracteres e algumas formas gramaticais que hoje natildeo satildeo mais utilizadas tal complexidade pode ser diminuiacuteda se o estudante estiver atento a alguns detalhes que satildeo extremamente uacuteteis no estudo da liacutengua e a anaacutelise a partir de determinadas raiacutezes eacute uma delas Haacute muitas palavras de tronco comum que uma vez entendidas ajudam na memorizaccedilatildeo delas na compreensatildeo do sentido de uma expressatildeo e ateacute mesmo de um verso biacuteblico

O vocabulaacuterio da Biacuteblia hebraica eacute de aproximadamente oito mil palavras72 sendo que duas mil delas aparecem apenas uma vez no texto desse modo um bom dicionaacuterio biacuteblico eacute indispensaacutevel no estudo do Antigo Testamento Ao mesmo tempo todo esse vocabulaacuterio pode ser reduzido a mil e trezentas raiacutezes73 e a polissemia desse idioma torna o estudo das palavras e seu significado original relevante pois facilita a compreensatildeo de determinadas palavras ou expressotildees no texto hebraico Ela tem sido vista como uma soluccedilatildeo para os muacuteltiplos significados representados por uma uacutenica palavra Ana Ceciacutelia Cruz defende essa relaccedilatildeo tanto graacutefica quanto foneacutetica segundo essa autora esta eacute ldquo() uma relaccedilatildeo metafoacuterica que amplia um sentido baacutesico para outros mais abstratosrdquo74

Miles Van Pelt afirma que as primeiras cinquenta palavras mais frequentes permitem ao estudante reconhecer um pouco mais da metade (55) do total de palavras que ocorrem no Antigo Testamento hebraico Dominar as 641 palavras que ocorrem cinquenta ou mais vezes permitiraacute identificar mais de 80 das palavras75 Uma das razotildees para isso eacute a relaccedilatildeo entre estas e as suas raiacutezes

A palavra que seraacute analisada neste artigo tambeacutem pode ter muacuteltiplas tradu-ccedilotildees embora um sentido baacutesico Analisar a origem e o significado de ldquoAmeacutemrdquo eacute bastante interessante embora natildeo menos complexo quando comparada agraves de-mais liacutenguas semiacuteticas76 Sabe-se que ela existe desde tempos remotos tanto em hebraico como tambeacutem em aacuterabe (rsquoĀmīn) ldquoAmeacutemrdquo eacute referecircncia nas trecircs grandes religiotildees que surgiram no Oriente Meacutedio cristianismo islamismo e judaiacutesmo Assim como ldquoAleluiardquo essa palavra tambeacutem natildeo se traduz em nenhum idioma sendo compreendida por todas as culturas sob a influecircncia de pelo menos uma das religiotildees mencionadas anteriormente

72 FRANCISCO Edson Faria de In Liacutengua Hebraica Aspectos Histoacutericos e Caracteriacutesticas (2010)73 JOUumlON P MURAOKA T (2007) Gramaacutetica del Hebreo Biacuteblico sect40 ndash nota74 CRUZ A d Estratificaccedilatildeo linguiacutestica ampliaccedilatildeo semacircntica e polissemia em hebraico Revista Veacutertices 11 2011 p 4275 PELT Miles Van The vocabulary guide to biblical Hebrew 2003 p ix76 WILLIAM B EERDMANS PUBLISHING COMPANY (1974) Theological Dictionary of The Old Testament (Vol I) Paacutegs 292293

53TeoloacutegicaRevista Brasileira de Teologia ISSN 1807-7056 nordm 8 outdez Rio de Janeiro 2020 p 51- 62

1 AMEacuteM EM DIVERSAS CULTURASA palavra tem algumas caracteriacutesticas particulares em cada uma dessas

religiotildees apesar de natildeo estar incluiacuteda no Alcoratildeo āmīn eacute uma das mais im-portantes na oraccedilatildeo islacircmica usada em diferentes contextos principalmente na sua conclusatildeo77 o rabino Chanina em 225 dC afirmou que ldquoameacutemrdquo eacute um acroacutestico - a palavra eacute composta por trecircs consoantes que em hebraico sintetizam a frase ldquoDeus Rei Fielrdquo rsquoel melek e nersquoeman78 Pronunciar essa palavra no final da prece eacute segundo esse raciociacutenio uma declaraccedilatildeo espiritual de que o proacuteprio Deus vai agir jaacute no cristianismo quando se pergunta o significado de ldquoAmeacutemrdquo logo vem a resposta ldquoassim sejardquo Tambeacutem no cristianismo ela tem um conceito de encerramento conclusatildeo teacutermino sendo esta uma das uacuteltimas palavras do Novo Testamento encontrada em Apocalipse 2220 21

Independentemente do que esteja acontecendo em um culto nas igrejas evan-geacutelicas eacute comum ouvir-se um ldquoameacutemrdquo Eacute tatildeo comum no linguajar cristatildeo que se tornou inclusive uma pergunta ldquoAmeacutem irmatildeosrdquo A resposta vem a seguir ldquoAmeacutemrdquo A depender do contexto tem o sentido de ldquopode ser assimrdquo ldquocon-cordamrdquo ou ateacute mesmo ldquoeacute assim ou natildeo eacuterdquo Quando aparentemente natildeo haacute um assunto definido ou o dirigente ainda estaacute se organizando no puacutelpito surge a pergunta ldquoAmeacutemrdquo A resposta da congregaccedilatildeo eacute repetir ldquoAmeacutemrdquo Resta analisar se foi criada uma nova semacircntica

Em diversos lugares do mundo o ldquoameacutemrdquo identifica-se com a feacute Quando se termina o momento devocional e de oraccedilatildeo a palavra eacute repetida imediatamente uma vez que tem sido ensinada como significado de ldquoassim sejardquo No Dicionaacuterio Internacional de Teologia do Antigo Testamento no entanto lecirc-se que

Esse conceito tatildeo importante da doutrina biacuteblica eacute prova clara do signi-ficado biacuteblico de ldquofeacuterdquo em contraste com muitos conceitos populares do termo No acircmago do sentido da raiz estaacute a ideia de certeza Isso eacute susten-tado pela definiccedilatildeo de feacute do NT encontrada em Hebreus 11179

Esse dicionaacuterio relaciona a expressatildeo pistis com certeza e feacute algo que tambeacutem acontece em alguns versos traduzidos do hebraico pela LXX cuja raiz da palavra eacute ldquoameacutemrdquo 80 embora natildeo com uniformidade 81

77 AKASOY 200978 Strack amp BILLERBECK 1922 paacuteg 464 Apud ZINKAND 1982 p 279 rsquoāmīn in HARRIS ARCHER JR e WALTKE 199880 Dt 3220 Jeremias 92 entre outros81 ZINKAND 1982 op cit paacuteg 4

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2 ʾmN e SeUS DeRivaDOS Partindo da anaacutelise da sua raiz (que neste caso eacute ʾmn) e de acordo com o

contexto eacute possiacutevel perceber que a palavra ameacutem tem um sentido que vai aleacutem do significado convencional ʾmn pode ser traduzido do texto hebraico82 de diferentes maneiras mas normalmente relacionado a ldquoconfiarrdquo e ldquoacreditarrdquo Esta eacute tambeacutem a tese defendida por Flor83 ainda que a raiz apareccedila como verbo ou adjetivo

Embora essa palavra aqui estudada seja mais conhecida como uma interjeiccedilatildeo ela tambeacutem se encontra no original tanto em raiacutezes verbais como tambeacutem em substantivos e adjetivos reafirmando o significado de confianccedila e estabilidade Eacute possiacutevel que haja alguma dificuldade para identificaacute-la especialmente pelas variaccedilotildees caracteriacutesticas da gramaacutetica hebraica No entanto ao reconhececirc-la o texto seraacute enriquecido com as possibilidades de interpretaccedilatildeo

21 ʾmN NaS RaiacutezeS veRBaiS

A primeira vez que a palavra aparece no texto do Antigo Testamento eacute na passagem de Gecircnesis 15 quando Deus percebe que Abratildeo colocava em duacutevida que ele teria descendecircncia direta Nesse episoacutedio o patriarca afirma esperar que a sua descendecircncia seria a de Eliezer mas Deus ldquoimediatamenterdquo (hinnēh - Gecircnesis 154) apresenta-lhe as suas intenccedilotildees convidando-o gentilmente84 a sair da sua tenda e ver a quantidade de estrelas no ceacuteu como um exemplo da quantidade de descendentes que ele teria

Apoacutes essa conversa diz o texto em Gecircnesis 156 ldquoEle creu [hě ěʾmin] no Se-nhor e isso lhe foi imputado para justiccedilardquo A raiz do verbo em destaque eacute ʾ mn85 Uma vez que se encontra em hifil pode ser traduzido por ldquoele acreditourdquo ou ldquoele se firmou por uma convicccedilatildeo internardquo A mudanccedila de sentimento de Abratildeo foi fundamental para o desenrolar da histoacuteria de Israel conforme apresentado no Antigo Testamento Essa passagem inclusive eacute confirmada no Novo Testamen-

82 Salvo nota indicando o contraacuterio todas as passagens biacuteblicas em portuguecircs apresentadas na presente investigaccedilatildeo foram extraiacutedas da versatildeo Revista e Atualizada da Sociedade Biacuteblica do Brasil 199983 FLOR E N (Novembro de 2000) ldquoAmenrdquo in Old Testament liturgical texts a study of its meaning and later development as a plea for ecumenical understanding p 784 Sobre a expressatildeo que demonstra esse tratamento cordial e respeitoso por parte de Deus nesta passagem ver RANGEL Rawderson ldquoNatildeo estou mandando estou pedindo a partiacutecula de Suacuteplicardquo in Revista Teoloacutegica nuacutemero 6 ago ndash dez 2018 pp 114-125 Filo afirma que a conversa natildeo foi em um niacutevel de Deus para o homem mas sim entre amigos in PAGE T E (Ed) Philo (Vol VI) London England William Heinemann Ltd Harvard University Pressp 311 85 Na LXX a traduccedilatildeo utiliza a palavra episteusen da mesma raiz da palavra feacute usada em Hebreus 11

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to 86 e nessas passagens todos os versos traduzem o ʾmn por pisteuo seguindo a LXX no aoristo enfatizando o fato da ocorrecircncia natildeo da sua natureza

Ainda como verbo no contexto de ldquoacreditarrdquo e ldquoconfiarrdquo na histoacuteria de Israel ʾmn tambeacutem aparece como uma negaccedilatildeo agrave feacute ou a crer Quando Moiseacutes estaacute diante de Deus no monte Sinai recebendo a missatildeo de libertar o povo de Israel do Egito ele pergunta ldquo[] Mas eis que natildeo creratildeo [yaʾmīnū] nem acudiratildeo agrave minha voz []rdquo (Ecircxodo 41) A falta de feacute ou confianccedila eacute tambeacutem evidenciada na passagem em que o povo de Israel teme entrar na terra prometida diante do testemunho dos espias que foram enviados a Canaatilde ldquo[] Ateacute quando me provocaraacute este povo e ateacute quando natildeo creraacute [lōʾ -yaʾ ămicircnucirc] em mim a despeito de todos os sinais que fiz no meio delerdquo87 (Nuacutemeros 1411)

O conhecido texto de Habacuque 24 eacute tambeacutem uma interessante passagem relacionada a crer e confiar ldquo() mas o justo em sua feacute [beʾ ĕmucircnāṯocirc] viveraacuterdquo [trad do autor] 88 Outra possibilidade para Habacuque 24 o justo por aquilo que ele crecirc viveraacute A feacute tem seu fundamento naquilo que estaacute estabelecido e por isso eacute digno de creacutedito

Isaiacuteas 79 apresenta um curioso jogo de palavras ldquo[] se o natildeo crerdes certamente natildeo permanecereisrdquo No hebraico os verbos crer e permanecer satildeo palavras homoacutegrafas e homoacutefonas taʾămicircnucirc e tēʾāmēnucirc reforccedilando a ideia Ambos com a raiz ʾmn tecircm o sentido de fidelidade feacute e acreditar

Acosta Rosales apresenta um estudo no qual apenas analisa essa palavra em qal 89 Mas haacute diversos outros exemplos na Biacuteblia que relacionam ʾmn com confianccedila no particiacutepio a palavra eacute usada para expressar a confianccedila de uma crianccedila nos braccedilos de sua matildee 90 ou de seus cuidadores (Nuacutemeros 1112 91 e 2Reis 101 92) em Isaiacuteas 604 93 no Nifal eacute possiacutevel tambeacutem relacionar-se o verbo a cuidadores com sentido de trazer seguranccedila e firmeza

86 Romanos 43 Gaacutelatas 36 Tiago 22387 A traduccedilatildeo correta seria creratildeo yarsquomīnū88 A palavra feacute em Habacuque 24 na LXX eacute traduzida por pistis no Genitivo singular feminino 89 ROSALES A D Re-discovering the semantics of ןמא in qal Theologica Xaveriana 67 (Grammar Philology Semantics) 431-46090 rsquoāman in WILLIAM B EERDMANS PUBLISHING COMPANY 197491 Nuacutemeros 1112 ldquoConcebi eu porventura todo este povo Dei-o eu agrave luz para que me digas Leva-o ao teu colo como a ama [particiacutepio] leva a crianccedila que mama agrave terra que sob juramento prometeste a seus paisrdquo 92 2Reis 101 ldquoAchando-se em Samaria setenta filhos de Acabe Jeuacute escreveu cartas e as enviou a Samaria aos chefes da cidade aos anciatildeos e aos tutores [particiacutepio] dos filhos de Acabe dizendordquo 93 Isaiacuteas 604 ldquoLevanta em redor os olhos e vecirc todos estes se ajuntam e vecircm ter contigo teus filhos chegam de longe e tuas filhas satildeo trazidas [Nifal imperfeito 3feminina plural] nos braccedilos

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22 ʾmN COmO SUBSTaNTivO e aDjeTivO

Ainda relacionada agrave credibilidade a palavra utilizada para nomear as vigas sobre as portas do templo que deram sustentaccedilatildeo agrave construccedilatildeo tem em sua raiz ʾmn em 2Reis 1816 encontramos a palavra traduzida por ombreiras 94 das portas do templo de Israel95 Na LXX a traduccedilatildeo eacute de uma palavra derivada de stērizō algo que daacute estabilidade Quando se avalia toda a estrutura do templo evidencia-se que tais ombreiras natildeo poderiam ser algo sem uma firmeza e que garantissem seguranccedila

Como sustentaccedilatildeo e credibilidade relacionadas a pessoas ʾmn encontra-se em Ecircxodo 1712 na conhecida passagem em que os filhos de Israel perdiam a batalha quando Moiseacutes baixava as suas matildeos Percebendo isso Aratildeo e Hur seguraram os seus braccedilos e ldquo() assim lhe ficaram as matildeos firmes [ʾ ĕmucircnacirc] ateacute ao pocircr-do-solrdquo96 Com a firmeza veio a certeza da vitoacuteria Novamente atraveacutes da raiz o texto atribui agrave atitude desses homens o sinocircnimo de seguranccedila e firmeza

Essa credibilidade se observa tambeacutem como sinocircnimos de guardas e segu-ranccedilas porteiros (1Crocircnicas 922) pessoas responsaacuteveis por atividades diversas em quem se depositou total confianccedila (1Crocircnicas 931 2Crocircnicas 3412)

Haacute vaacuterios substantivos que satildeo derivados da raiz ʾ mn e todos eles transmitem a ideia baacutesica de ldquosuporte firmezardquo ou ldquoconfirmaccedilatildeordquo Haacute variantes da palavra traduzidas por ldquopai adotivordquo algueacutem que apoia e nutre um grupo familiar dando-lhe estabilidade e firmeza A forma feminina com essa raiz ʾomenet significa ldquomatildee adotivardquo e inclui a ideia de ldquonutrirrdquo ldquofortalecerrdquo Outra palavra que demonstra essa firmeza agora na arte eacute ʾuman denota ldquoum operaacuterio habi-lidosordquo traduzido por ldquoartesatildeordquo97

O texto biacuteblico apresenta uma relaccedilatildeo curiosa entre o homem e ʾmn falando em termos da natureza humana ele eacute falho e inseguro pode vacilar Os adjetivos relacionados com ʾ mn atribuiacutedos aos seres humanos nunca englobam a sua tota-lidade mas sim aspectos e momentos pontuais que viveram Nem mesmo a Joacute que recebeu os elogios do Senhor por sua integridade eacute atribuiacutedo esse adjetivo

No entanto eacute a Deus que ʾ āman eacute atribuiacutedo Para Flor isso acontece especial-mente no livro de Salmos (mas natildeo soacute) porque Deus eacute imutaacutevel estaacutevel e firme

94 A mesma palavra pode ter dois significados diferentes um se refere a m ezuwzah (laterais) enquanto que a palavra de 2 Reis 1816 se refere agrave parte superior da porta A LXX traduz por estērigmena 95 2Reis 1816 ldquoFoi quando Ezequias arrancou das portas do templo do Senhor e das ombreiras o ouro de que ele rei de Judaacute as cobrira e o deu ao rei da Assiacuteriardquo96 A LXX traduz este texto com a mesma ideia97 FLOR E N op cit p 15

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enquanto o ser humano frequentemente eacute fraco instaacutevel e inconstante98 Por essa razatildeo acreditando nisso em Lamentaccedilotildees 323 se lecirc a respeito das misericoacuterdias de Deus ldquo() renovam-se cada manhatilde Grande eacute a tua fidelidade [ʾ ĕmucircnātekā]rdquo

A palavra do Senhor tambeacutem eacute tida por fiel e verdadeira digna de credibili-dade e aiacute tambeacutem se encontra a raiz da palavra em questatildeo O salmo 119 nos versos 75 86 90 138 o poeta homenageia a Lei de Deus qualificando-a de fiel e verdadeira

3 āʾmaN e ldquoaSSim Sejardquo

A palavra ldquoAmeacutemrdquo aparece vinte e quatro vezes no Antigo Testamento (doze delas apenas em Deuteronocircmio 2715ss) Devido agrave variedade de possibilidades torna-se difiacutecil identificar o seu real sentido no hebraico99

Haacute textos que sugerem a expressatildeo ldquoassim sejardquo em sua traduccedilatildeo com uma conotaccedilatildeo de confirmaccedilatildeo daquilo que estava sendo dito como nos versos de Jeremias 115100 286101 e 1Reis 136 37102 Nesses textos eacute possiacutevel interpretar que Deus daria a sua becircnccedilatildeo ao que jaacute havia sido planejado e dito Nessas passagens a referecircncia eacute feita aos oradores somente porque eles reconheceram o que jaacute havia sido determinado por YHVH e confirmaram a afirmaccedilatildeo Suas declaraccedilotildees podem significar ldquoPrecisamente Eu sinto o mesmo a respeito que Deus o faccedilardquo103 Eacute como uma aceitaccedilatildeo do que foi estabelecido natildeo uma esperanccedila em algo que aconteceria

Existem tambeacutem ao menos trecircs passagens nas quais a palavra ldquoameacutemrdquo estaacute em uma situaccedilatildeo diferente da mencionada anteriormente todas elas relacionadas a uma maldiccedilatildeo contra a pessoa envolvida em Deuteronocircmio 2715-26 (declara-ccedilatildeo de maldiccedilotildees no caso do natildeo cumprimento das leis e estatutos estabelecidos por Deus) em Nuacutemeros 522104 (declaraccedilatildeo solene acontecia no momento em que

98 ibidem p 1799 WILLIAM B EERDMANS PUBLISHING COMPANY op cit p 320100 Jeremias 115 ldquoPara que confirme o juramento que fiz a vossos pais de lhes dar uma terra que manasse leite e mel como se vecirc neste dia Entatildeo eu respondi e disse ameacutem oacute Senhorrdquo101 Jeremias 286 ldquoDisse pois Jeremias o profeta Ameacutem Assim faccedila o Senhor confirme o Senhor as tuas palavras com que profetizaste e torne ele a trazer da Babilocircnia a este lugar os utensiacutelios da Casa do Senhor e todos os exiladosrdquo102 1Reis 136 37 ldquoEntatildeo Benaia filho de Joiada respondeu ao rei e disse Ameacutem Assim o diga o Senhor Deus do rei meu senhor Como o Senhor foi com o rei meu senhor assim seja com Salomatildeo e faccedila que o trono deste seja maior do que o trono do rei Davi meu senhorrdquo103 WILLIAM B EEDERMANS PUBLISHING op cit pp 320104 Nuacutemeros 522 ldquoE esta aacutegua amaldiccediloante penetre nas tuas entranhas para te fazer inchar o ventre e te fazer descair a coxa Entatildeo a mulher diraacute Ameacutem Ameacutemrdquo

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a mulher era confrontada sobre o adulteacuterio) e em Neemias 513105 (compromisso contra a usura) Por serem maldiccedilotildees que recairiam sobre quem natildeo cumprisse a sua palavra ou imprecaccedilatildeo sobre a pessoa condenada a expressatildeo sugere uma declaraccedilatildeo solene de que aqueles castigos iriam acontecer106 Seria o conhecido ldquoassim sejardquo pronunciado em declaraccedilatildeo solene de aceitaccedilatildeo do castigo contra aquele que estava assumindo o compromisso

Em algum momento a expressatildeo passou a ser tambeacutem usada na Doxologia em resposta da congregaccedilatildeo diante de uma declaraccedilatildeo de Deus em Neemias 86 a congregaccedilatildeo diz ldquoameacutem ameacutemrdquo levantando as suas matildeos Natildeo se sabe dizer se este jaacute era um costume seguido (conforme 1Crocircnicas 1636) ou se passou a ser regular a partir daquele momento107 Sobre os cacircnticos do salteacuterio a palavra aparece no final dos primeiros quatro livros (Salmos 4113 7219 8952 10648)

CONCLUSAtildeO Os exemplos apresentados ilustram a importacircncia de o estudante do hebraico

biacuteblico analisar as palavras a partir de suas raiacutezes para poder interpretar melhor o texto biacuteblico sempre considerando prioritariamente o contexto que eacute deter-minante na interpretaccedilatildeo108 Dificilmente haveraacute um uacutenico significado oriundo de uma uacutenica raiz portanto conhecer os seus significados seraacute uma grande contribuiccedilatildeo no estudo do texto biacuteblico

Quando um hebreu ouvia as vaacuterias palavras derivadas da raiz ʾmn a ideia baacutesica que lhe vinha agrave mente era aparentemente ldquoconstacircnciardquo ldquoestabilidaderdquo Quando se referiam a objetos significavam ldquocontinuidaderdquo quando relacionadas a pessoas ldquoconfiabilidaderdquo Outros derivados da raiz satildeo ldquodurabilidaderdquo ldquoesta-bilidaderdquo ldquoverdaderdquo ldquofeacuterdquo ldquocompletuderdquo ldquoaquele que protegerdquo109 No entanto Deus eacute aquele que plenamente tem essas virtudes e atributos o ser humano tem essas qualidades ateacute certo ponto devido agrave sua limitaccedilatildeo e fragilidade

Quanto agrave palavra ldquoameacutemrdquo que proveacutem da raiz que expressa todas as qualida-des mencionadas anteriormente a expressatildeo tem o sentido de feacute e confianccedila em algo previamente estabelecido mas tambeacutem expressa uma certeza e confianccedila 105 Neemias 513 ldquoTambeacutem sacudi o meu regaccedilo e disse Assim o faccedila Deus sacuda de sua casa e de seu trabalho a todo homem que natildeo cumprir esta promessa seja sacudido e despojado E toda a congregaccedilatildeo respondeu Ameacutem E louvaram o Senhor e o povo fez segundo a sua promessardquo106 Barry J D Mangum D Brown D R Heiser et al Faithlife Study Bible (Dt 2715) Bellingham WA Lexham Press 2016107 WILLIAM B EEDERMANS PUBLISHING op cit pp 321108 Osborne (2009 paacutegs 101-139 especialmente as paacutegs 104-108) trata do exagero que muitos estudiosos da Biacuteblia datildeo agraves palavras analisadas de forma isolada descontextualizada109 WILLIAM B EEDERMANS PUBLISHING op cit pp 323

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quanto ao futuro Quando observada no Antigo Testamento ela eacute feita de forma solene e consciente e por isso mesmo raramente eacute encontrada no texto

A expressatildeo que sugere uma ratificaccedilatildeo eacute cuidadosamente aplicada nas paacutegi-nas da Biacuteblia natildeo sendo uma palavra dita em qualquer momento ou por qualquer situaccedilatildeo A conclusatildeo de Lande eacute que ldquoameacutemrdquo eacute usado como confirmaccedilatildeo de uma situaccedilatildeo muito especial e que a expressatildeo natildeo pertence agrave fala cotidiana110 Hulst expressa a mesma opiniatildeo ao afirmar ldquoA palavra ameacutem natildeo pertence agraves palavras do uso diaacuterio constante eacute mantido para uso em situaccedilotildees muito especiais e aleacutem disso raramente ocorre111 Por sua raridade no texto biacuteblico os personagens do Antigo Testamento tinham consciecircncia do seu sentido e o respeitavam

No AT a palavra eacute usada tanto pelo indiviacuteduo quanto pela comunidade para 1) confirmar a aceitaccedilatildeo de uma tarefa designada por homens mas a sua exe-cuccedilatildeo envolve a vontade de Deus (1Reis 136) 2) ratificar a aplicaccedilatildeo pessoal de uma ameaccedila ou maldiccedilatildeo divina (Nuacutemeros 522 Deuteronocircmio 2715ss Jeremias 115 Neemias 513) e 3) para declarar o louvor a Deus em resposta a uma doxologia (1Crocircnicas 1636 Neemias 86) como mostram os textos finais dos primeiros quatro livros dos Salmos (4113 7219 8952 10648)112

110 LANDE 1949 paacuteg 112 apud FLOR 2000 pp 16 17111 HULST 1953 p50 apud FLOR E N ldquoAmenrdquo in Old Testament liturgical texts a study of its meaning and later development as a plea for ecumenical understanding University of South Africa novembro de 2000 p17112 RENGSTORF ἀμήν in Wm B Eerdmans Publishing Co 1964 paacuteg 335

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A ANAacuteLISE DO DISCURSO NA INTERPRETACcedilAtildeO BIacuteBLICA

DISCOURSE ANALYSIS IN BIBLICAL INTERPRETATIONMe Thaiacutes de Oliveira Viriacutessimo113

Universidade Federal do Rio de Janeiro

RESUMO A Anaacutelise do Discurso tida como relevante para a interpretaccedilatildeo dos inuacutemeros

gecircneros textuais existentes eacute uma teoria linguiacutestica com extensiva abrangecircncia e aplicabilidade Sua importacircncia tem sido reconhecida inclusive por aqueles que manuseiam textos antigos entre os quais a Biacuteblia eacute encontrada Por ser ainda escassa a interaccedilatildeo entre estudos da linguagem e teologia no ambiente acadecircmico brasileiro objetiva-se neste artigo apresentar a Anaacutelise do Discurso como ferramenta possiacutevel de interpretaccedilatildeo biacuteblica Para isso interpretou-se Evangelho de Marcos 11-4 por meio do meacutetodo desenvolvido por Viriacutessimo (2018) sob os pressupostos da linguiacutestica textual (HORTA 1991 WALLACE 2009 GUTHRIE DUVALL 1998 OLSSON 2013) A pesquisa resultou na compilaccedilatildeo de informaccedilotildees criacuteticas acerca do texto biacuteblico

Palavras-chave Anaacutelise do Discurso Novo Testamento Grego koineacute Evan-gelho de Marcos

ABSTRACTConsidered as relevant for interpreting many existing textual genres Discour-

se Analysis is a linguistic theory with wide scope and applicability Even those who handle Ancient texts among which the Bible is found have recognized its importance As the interaction between studies in languages and Theology in Brazilian colleges is still rare this paper aims to present Discourse Analysis as a tool for biblical interpretation Using the method developed by Viriacutessimo (2018) the Gospel of Mark 11-4 was observed through linguistic assumptions (HORTA 1991 WALLACE 2009 GUTHRIE DUVALL 1998 OLSSON 2013) As a result it was developed a critical compilation of informations about the text

Keywords Discourse Analysis Biblical interpretation New Testament Koine Greek Gospel of Mark

113 Mestre em Letras Claacutessicas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro Possui tambeacutem os tiacutetulos de Licenciada em Portuguecircs-Grego pela supracitada instituiccedilatildeo e de Especialista em Antropologia Intercultural pelo Centro Universitaacuterio de Anaacutepolis (UniEvangeacutelica) Email virissimoprotonmailcom

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1 INTRODUCcedilAtildeOEacute lugar comum afirmar que nenhuma outra obra literaacuteria foi e permanece sen-

do tatildeo citada comentada traduzida e questionada na histoacuteria da humanidade como a Biacuteblia ndash coletacircnea de livros sagrados para o cristianismo e igualmente respeitada por outros segmentos religiosos globais114 A influecircncia da Biacuteblia eacute notoacuteria inclusive no que se refere agrave formaccedilatildeo cultural brasileira Suas histoacuterias inspiraram a arquitetura a exemplo do Redentor de braccedilos abertos sobre a Baiacutea de Guanabara a literatura como os personagens machadianos Esauacute e Jacoacute a muacutesica conforme a mistura dos amores poeacuteticos cantada por Renato Russo em seu Monte Castelo

Ainda assim a abordagem da Biacuteblia como um objeto de estudo suscetiacutevel ao escrutiacutenio por meacutetodos multidisciplinares continua sendo miacutenima no espaccedilo acadecircmico nacional Eacute certo que avanccedilos promissores precisam ser destacados nessa aacuterea como o recente ldquoEstudos Biacuteblicos em Foco I Congressordquo evento promovido pelo Instituto de Letras da UERJ em novembro de 2019 Contudo faz-se indispensaacutevel natildeo apenas a criaccedilatildeo mas a manutenccedilatildeo de iniciativas de pesquisas biacuteblicas fora dos ambientes confessionais de reflexatildeo

A promoccedilatildeo pois de uma metodologia de pesquisa ancorada na Anaacutelise do Discurso destacando-se a sua utilidade no ensino de liacutengua e teologia eacute a linha de chegada que se pretende alcanccedilar com esta publicaccedilatildeo Para tal o artigo foi organizado nas seguintes seccedilotildees 2 Anaacutelise do Discurso em que conceitos fundamentais acerca do assunto seratildeo apresentados 3 Metodologia em que o meacutetodo proposto seraacute passo a passo descrito numa siacutentese teoacuterica e exemplificado com sua aplicaccedilatildeo em Segundo Marcos 11-4 conforme os itens subsequentes ndash 31 Contextualizaccedilatildeo 32 Etapas de anaacutelise 33 Notas e 34 Interpretaccedilatildeo e 4 Consideraccedilotildees finais em que se registraraacute a importacircncia do diaacutelogo entre as Ciecircncias da Linguagem e a Teologia

2 ANAacuteLISE DO DISCURSOA Anaacutelise do Discurso (doravante AD) eacute um quadro teoacuterico com vaacuterias pos-

sibilidades de aplicaccedilatildeo visto que nele podem ser considerados na anaacutelise de

114 O islamismo por exemplo tem registrado no Alcoratildeo a validade da Toraacute e da Biacuteblia como escrituras inspiradas por Deus Alguns versiacuteculos em que isso pode ser percebido satildeo ldquoEle te revelou (oacute Mohammad) o Livro (paulatinamente) com a verdade corroborante dos anteriores assim como havia revelado a Toraacute e o Evangelhordquo (33) ldquoDize Cremos em Allah no que nos foi revelado no que foi revelado a Abraatildeo a Ismael a Isaac a Jacoacute e agraves tribos e no que do Senhor foi concedido a Moiseacutes a Jesus e aos profetas natildeo fazemos distinccedilatildeo alguma entre eles porque somos para Ele muccedilulmanosrdquo (384) ldquoE se tivessem sido observantes da Toraacute do Evangelho e de tudo quanto lhes foi revelado por seu Senhor alimentar-se-iam como que estaacute acima deles e do que se encontra sob seus peacutes [hellip]rdquo (566)

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um texto os seus aspectos extralinguiacutesticos (contexto de produccedilatildeo tipografia meio de apresentaccedilatildeo etc) paralinguiacutesticos (pontuaccedilatildeo entonaccedilatildeo atos de fala gecircnero textual etc) e linguiacutesticos (ordem lexical nominalizaccedilatildeo estilo etc) (LOUW 1992 p18) Mesmo textos antigos com sua exiguidade de formas podem ser observados agrave luz da AD quando definida como ldquoum processo de investigaccedilatildeo pelo qual algueacutem examina a forma e a funccedilatildeo de todas as partes e niacuteveis de um discurso escrito com o objetivo de melhor compreender tanto as partes como o todo daquele discursordquo (GUTHRIE 2001 p 255 traduccedilatildeo nossa)115 Contudo para melhor compreensatildeo do que eacute a AD faz-se necessaacuterio definir o que se entende como discurso

Funcionando ldquoao mesmo tempo como referindo objetos empiacutericos (lsquohaacute discursosrsquo) e como algo que transcende todo ato de comunicaccedilatildeo particular (lsquoo homem eacute submetido ao discursorsquo)rdquo (MAINGUENEAU 2015 p 23) ldquodiscursordquo eacute um termo polivalente Por um lado em associaccedilatildeo a ldquoobjetos empiacutericosrdquo refere-se a ldquoum conceito superordenador no que diz respeito agraves questotildees tradicionais dos filoacutelogos e dos literatosrdquo por abranger ldquotoda uma variedade de gecircneros literaacuterios de registros de niacuteveis de textualizaccedilatildeo das obras bem como as distinccedilotildees formais entre poesia e prosardquo (BONDARCZUK 2017 p 61) Por outro lado extrapolando o ato comunicativo discurso eacute ldquoum processo e natildeo um objeto apresentando um movimento que tem sua dinacircmica proacutepria (ou dyacutenamis) e que por sua vez envolve a negociaccedilatildeo de significado entre os interlocutoresrdquo (BONDARCZUK 2017 p 61) A proacutepria etimologia da palavra mostra que discurso ldquotem em si a ideia de curso de percurso de correr por de movimentordquo sendo assim ldquopalavra em movimento praacutetica de linguagem com o estudo do discurso observa-se o homem falandordquo (ORLANDI 2000 p 15)

Frente a tal complexidade a AD se configura como uma aacuterea de estudos da linguagem que perpassa procedimentos de anaacutelise linguiacutestica tradicionais chegando aos campos de atuaccedilatildeo das teorias linguiacutesticas modernas No que diz respeito aos estudos biacuteblicos somam-se deacutecadas de aplicaccedilatildeo da AD com propoacutesitos diversos ndash desde a traduccedilatildeo da Biacuteblia ateacute a interpretaccedilatildeo desta propriamente dita Porter (2015 p 134) identifica cinco tipologias de AD desen-volvidos para esses fins (1) a Sulafricana (2) a da Sociedade Internacional de Linguiacutestica (Summer Institute of Linguistics SIL) (3) uma abordadem ecleacutetica (4) a amparada na Linguiacutestica Sistecircmico-Funcional e (5) a Continental Euro-peia116 Como se veraacute adiante eacute nessa uacuteltima tipologia em que o meacutetodo a ser apresentado foi ancorado

115 ldquoa process of investigation by which one examines the form and function of all the parts and levels of a written discourse with the aim of better understanding both the parts and the whole of that discourserdquo116 Para maiores detalhes cf Breve histoacuterico entre Anaacutelise do Discurso e os estudos do Novo Testamento subcapiacutetulo da dissertaccedilatildeo de mestrado da presente autora (VIRIacuteSSIMO 2018)

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3 METODOLOGIAA Anaacutelise do Discurso Continental Europeia especificamente nos trabalhos

desenvolvidos pela escola escandinava eacute base dessa metodologia porque sendo sua ecircnfase o texto escrito o que com ela objetiva eacute o esclarecimento das relaccedilotildees de conteuacutedo entre as partes do texto explicando-as em termos da proacutepria liacutengua original Por isso eacute comum essa tipologia ser comparada agrave Linguiacutestica Textual e conforme o teoacutelogo e analista do discurso sueco Birger Olsson ldquouma anaacutelise linguiacutestico-textual eacute um componente baacutesico de todas as exegesesrdquo117 (OLSSON 1985 p 107 apud GUTHRIE 2001 p 256 traduccedilatildeo nossa)

Em suma na tipologia Continental Europeia segundo a elaboraccedilatildeo que Reed (1996) faz das formulaccedilotildees de David Hellholm professor emeacuterito da Faculdade de Teologia da Universidade de Oslo

a anaacutelise do discurso estaacute amplamente preocupada com a comunicaccedilatildeo (Ausdruck) dos signos (Zeichn) por um autorfalante (Sender) e o efeito (Appell) que eles tecircm em um leitorouvinte (Empfaumlnger) Tais signos representam arbitrariamente (Darstellung) coisas como objetos assunto e circunstacircncias (Gegenstaumlnde und Sachverhalte) dos mundos externo e interno dos textos Isso eacute basicamente o que a parte de anaacutelise do termo ldquoanaacutelise do discursordquo envolve (REED 1996 p 225 traduccedilatildeo nossa)118

Feitas tais consideraccedilotildees sobre a tipologia empregada cabe dizer que as subseccedilotildees a seguir estatildeo divididas em explicaccedilatildeo do processo e a aplicaccedilatildeo a fim de exemplificaacute-lo no corpus neotestamentaacuterio

31 CONTEXTUALIZACcedilAtildeO

O primeiro passo da contextualizaccedilatildeo do corpus eacute a leitura integral de uma traduccedilatildeo jaacute existente sempre que disponiacutevel da obra em que ele se encontra A versatildeo biacuteblica aqui consultada foi a Almeida Revista e Atualizada (seguidamente ARA) em funccedilatildeo de nela ser respeitada ldquona medida do possiacutevel a forma da liacutengua em que se encontra a mensagem originalrdquo (BARNWELL 2011 p 15) Ademais no estudo da Biacuteblia eacute oportuna a leitura em diferentes versotildees para comparaccedilatildeo ldquotraduccedilotildees entre as quais vocecirc consiga perceber os pontos de divergecircnciardquo (FEE STUART 2011 p 43) e caso o pesquisador assim queira

117 ldquoA text-linguistic analysis is a basic component of all exegesisrdquo118 ldquoDiscourse analysis is broadly concerned with the communication (Ausdruck) of signs (Zeichen) by an authorspeaker (Sender) and the effect (Appell) they have on a readerlistemer (Empfaumlnger) Such signs arbitrarily represent (Darstellung) such things as objects subject matter and circumstances (Gegenstaumlnde und Sachverhalte) of the external and internal worlds of the texts This is largely what the analysis part of the term lsquodiscouse analysisrsquo entailsrdquo

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fazer sugere-se que essa leitura comparativa esteja focada no corpus propria-mente dito

No mesmo passo da leitura realiza-se uma pesquisa histoacuterico-literaacuteria e formula-se uma redaccedilatildeo a respeito de questotildees gerais como autoria dataccedilatildeo gecircnero puacuteblico alvo entre outras informaccedilotildees que o pesquisador julgar perti-nentes Para este exemplar consultou-se o livro Introduccedilatildeo ao Novo Testamento (CARSON MOO MORRIS 1997) e a partir dele expandiu-se a bibliografia Eacute profiacutecuo que o pesquisador jaacute nessa etapa comece a estabelecer suas convicccedilotildees a respeito das questotildees gerais pontuando em seu texto quais variedades satildeo-lhe mais coerentes no todo conforme o resultado a seguir

ΚΑΤΑ ΜΑΡΚΟΝ como apresenta a 5ordf ediccedilatildeo de The Greek New Testament (ALAND 2014) traduzido como Segundo Marcos refere-se ao tiacutetulo atribuiacutedo pela tradiccedilatildeo eclesiaacutestica ao segundo evangelho da ordem canocircnica Contudo a nomenclatura mais popular para a obra eacute a de Evangelho de Marcos ou sim-plesmente Marcos isso por dois fatores Em primeiro lugar os quatro escritos dedicados agrave vida e ao serviccedilo de Jesus satildeo tradicionalmente tidos como ldquoevan-gelhordquo ndash palavra extraiacuteda justamente do primeiro versiacuteculo de Marcos Eacute vaacutelido dizer que Marcos esteve agrave margem dos estudos neotestamentaacuterios por muito tempo possivelmente em funccedilatildeo de ser esse o evangelho de menor extensatildeo (16 capiacutetulos em comparaccedilatildeo aos 28 de Mateus 24 de Lucas e 21 de Joatildeo) Jaacute nos dias atuais o relato tem ganhado proeminecircncia por ser o mais antigo de que se dispotildee acerca de Jesus tendo servido como base para os textos mateano e lucano (PAGOLA 2013 p 11)

A outra razatildeo pela qual a obra tem o tiacutetulo exposto deve-se ao fato de a primeira atribuiccedilatildeo de um suposto Marcos como autor do livro datar do II seacutec Euseacutebio historiador cristatildeo do IV seacutec dedica boas porccedilotildees de seu livro Histoacuteria Eclesiaacutestica (326 d C) discutindo a formaccedilatildeo do cacircnone evangeacutelico Ao escre-ver acerca de Segundo Marcos Euseacutebio primeiramente registra o depoimento de um presbiacutetero testemunhado por Papias bispo da Friacutegia por volta de 120 d C o qual dizia que embora natildeo tivesse ouvido e seguido diretamente a Jesus Marcos veio a escrever sobre suas accedilotildees por ter sido disciacutepulo e inteacuterprete do apoacutestolo Pedro (CESAREacuteIA III 39 15) Euseacutebio citaria ainda outros Pais da Igreja como Irineu (185 d C) e Clemente (195 d C) e justificaria a criaccedilatildeo do texto em muito pela insistecircncia da comunidade para que um relato evangeacutelico fosse escrito

A figura desse Marcos segundo o testemunho biacuteblico (TENNEY 2008 v 4 p 117) poderia ser construiacuteda a partir da fuga de Pedro da prisatildeo o apoacutestolo

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logo se dirigiu ldquoagrave casa de Maria matildee de Joatildeo tambeacutem chamado Marcos onde muita gente se havia reunido e estava orandordquo (Atos dos Apoacutestolos 1212 - ARA) Marcos cujo nome hebraico era Joatildeo parece ter sido um jovem financeiramente abastado levando-se em conta o fato de sua matildee acolher a receacutem-nascida co-munidade cristatilde em sua proacutepria casa pondo inclusive servos agrave disposiccedilatildeo dos seus integrantes (Atos dos Apoacutestolos 1213) Um detalhe interessante sobre a figura de Maria matildee de Marcos eacute seu provaacutevel status de viuacuteva uma vez que a propriedade era considerada como dela o que seria inconcebiacutevel agrave eacutepoca caso o marido ainda vivesse

O valor da mulher oriental no periacuteodo de Jesus estava ligado agrave fecundidade e ao lar natildeo se comparando ao homem na perspectiva da religiatildeo (JEREMIAS 1983 p 493) Contudo o papel desempenhado por Maria junto a essa comuni-dade cristatilde chama ainda a atenccedilatildeo para a importacircncia de natildeo se subestimar a atuaccedilatildeo das mulheres no ambiente cristatildeo natildeo apenas no sustento dos evange-lizadores mas sobretudo na divulgaccedilatildeo da mensagem de Jesus desde os dias em que o Nazareno iniciou sua missatildeo na Galileia Os registros evangeacutelicos mostram Jesus sempre disposto a posicionar a figura da mulher dentro do vindouro Reino de Deus dando-lhe voz e importacircncia ndash tanto por meio dos diaacutelogos estabelecidos com mulheres como por paraacutebolas contadas cujo enredo as tinha como personagens

Joatildeo Marcos tambeacutem possuiacutea parentesco com o proeminente liacuteder cristatildeo Barnabeacute (Colossenses 410) que o levou em sua primeira viagem missionaacuteria com Paulo (Atos dos Apoacutestolos 135) Entretanto agrave eacutepoca da empreitada Joatildeo acabou retornando a Jerusaleacutem (Atos dos Apoacutestolos 1313) Os motivos dessa desistecircncia satildeo desconhecidos sabe-se no entanto que eles foram prejudiciais a ponto de separar Paulo e Barnabeacute nas viagens posteriores (Atos dos Apoacutestolos 1537-39a) Tempos depois o jovem viria a ser considerado com respeito por Paulo aquele que antes o rejeitara (Colossenses 410 1Timoacuteteo 411 Filemom 24) Tambeacutem Pedro diria ldquoMarcos meu filhordquo (1Pedro 513) ao citaacute-lo como companheiro na chamada ldquoBabilocircniardquo ndash provavelmente Roma

Haacute quem infira ldquoassinaturas ao peacute do quadrordquo ou seja evidecircncias autorais textuais deixadas no proacuteprio evangelho (POHL 1998) Um exemplo eacute o excerto de Marcos 1017-22 o qual se refere ao encontro de Jesus com um homem rico tambeacutem relatado em Mateus 1916-22 e Lucas 1818-23 Para alguns estudiosos eacute sugerido um testemunho pessoal no versiacuteculo 21 ldquoJesus entatildeo tendo olhado para ele com olhos de amor []rdquo (traduccedilatildeo nossa) Uma informaccedilatildeo dessa natureza argumentam esses estudiosos somente poderia ser registrada pela pessoa presente em tal situaccedilatildeo ou seja o jovem e rico Joatildeo Marcos de Atos dos Apoacutestolos

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Ainda que haja consenso na Tradiccedilatildeo quanto agrave autoria de Segundo Marcos o mesmo natildeo se pode afirmar no que diz respeito ao local de publicaccedilatildeo embora a inclinaccedilatildeo da maioria seja Roma (CARSON MOO MORRIS 1997 p 107) Tambeacutem quanto agrave data de criaccedilatildeo do texto quatro satildeo as deacutecadas sugeridas Sendo a primeira delas os anos 40 d C jaacute se mostra evidente o texto escrito ser o produto de uma tradiccedilatildeo preacute-literaacuteria extensa jogando luz sobre o caraacutecter oral do evangelho Endossa-se aqui a suposiccedilatildeo da publicaccedilatildeo de Segundo Marcos ter ocorrido em meados dos anos 60 d C muito em funccedilatildeo de seu conteuacutedo e do que disseram os primeiros liacutederes acerca de sua produccedilatildeo

A principiante feacute cristatilde do I seacutec estava imersa em um amaacutelgama religioso que a ela fortemente se opunha Por um lado as pressotildees teoloacutegicas dos judeus como os escritos neotestamentaacuterios bem expotildeem por outro a repressatildeo do Im-peacuterio Romano a partir do governo de Nero (CAIRNS 1995 p 73) quando teve iniacutecio o grande massacre tanto de judeus como de cristatildeos crentes opositores agrave religiatildeo oficial sendo estes torturados como uma forma de entretenimento puacuteblico (GONZAacuteLEZ 1995 p 25) Justifica-se assim a feitura de Marcos como o apelo agrave firmeza em resposta a difiacuteceis tempos de perseguiccedilatildeo e martiacuterio e o combate ao sincretismo das divisotildees religiosas

Voltando ao evangelho como texto literaacuterio Marcos eacute parte do tetraeuangeacute-lion ldquoisto eacute os quatro Evangelhos vistos como um conjunto de documentos sal-viacuteficos que tinham o mesmo valor veio a ter ampla circulaccedilatildeo e reconhecimento como nos mostram os escritos de Irineu (bispo de Lyon por volta de 180 d C)rdquo (ALAND ALAND 2013 p 53) Seu gecircnero eacute ldquoevangelhordquo propriamente dito algo proacuteprio do cristianismo ou seja ldquoum modo de expressar-se uacutenico que natildeo pode ser identificado com nenhuma outra obra do tempo antigordquo (MARCON-CINI 2012 p 9) Embora haja quem veja semelhanccedilas dos escritos evangeacutelicos com os modelos das leituras feitas nas sinagogas ou que os vincule ldquoao gecircnero da biografia greco-romana e suas variantesrdquo (ZABATIEIRO LEONEL 2011 p 41) o objetivo dos evangelistas era divulgar a mensagem de Jesus particu-larmente para as pessoas natildeo radicadas na Palestina e a forma adotada para isso foi inovadora

A liacutengua de Marcos eacute o grego koineacute em sua variaccedilatildeo semiacuteticavulgar o que a torna fascinante Um livro escrito para o povo

[] composto de aproximadamente 95 narrativas com 11240 palavras 1345 vocaacutebulos 30 aacutepax ou seja vocaacutebulos natildeo usados em outros lugares do Novo Testamento A liacutengua eacute o grego popular da koineacute com semitismos (talithagrave kum effethacirc korbacircn Abbagrave) poreacutem natildeo de tal modo

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a justificar um original aramaico com alguns latinismos (praitoacuterion kentyrion) com estilo vivaz proacuteprio da liacutengua falada pouco cuidado gramatical e sintaticamente que privilegia a parataxe ou coordenaccedilatildeo assindeacutetica (cf 630-33) inclinado a empregar anacolutos (cerca de 20) com repeticcedilatildeo de frases Tudo evidencia o estilo do narrador atestado tambeacutem pelo frequente lsquologo em seguidarsquo e pelo presente histoacuterico (150 ocorrecircncias) [] (MARCONCINI 2012 p 90)

32 ETAPAS DE ANAacuteLISE

Esta eacute de longe a parte que exige maior dedicaccedilatildeo do pesquisador pois natildeo se resume a fichar autores mesmo que de maneira criacutetica Trata-se do exame deta-lhado do corpus em sua liacutengua original Nesse ponto faz-se sobretudo necessaacuteria a escolha consciente do texto grego que melhor ofereccedila subsiacutedios de consulta a respeito de sua formaccedilatildeo Por isso as opccedilotildees adotadas pela autora deste artigo satildeo continuamente as publicaccedilotildees da Sociedade Biacuteblica da Alemanha como a quinta ediccedilatildeo do Novo Testamento grego (ALAND 2014)

A periacutecope selecionada deve entatildeo ser lida em grego ndash ato imprescindiacutevel pois ldquoseja para a estrutura seja para a especificidade do ato de ler o texto natildeo oferece suporte a um significado inequiacutevoco mas eacute lsquoo lugar de possiacuteveis significadosrsquordquo (EGGER 1994 p 92) Isto feito o texto eacute quebrado em oraccedilotildees seus elementos analisados morfossintaticamente e todo o conjunto disposto em diagrama De fato a anaacutelise morfossintaacutetica natildeo eacute um fim em si mesma mas o meio pelo qual se poderaacute dispor o texto analiticamente dividindo-o em partes ainda menores na diagramaccedilatildeo semacircntico-gramatical 119 processo em que melhor se visualizam as relaccedilotildees de niacutevel estrutural

Na disposiccedilatildeo gramatical do texto podem-se observar todos os seus consti-tuintes linguiacutesticos e as regras que os coordenam (EGGER 1994 p 74) Jaacute na disposiccedilatildeo semacircntica satildeo retratadas ldquoas relaccedilotildees de significadofunccedilatildeo entre palavras frases oraccedilotildees sentenccedilas e ateacute mesmo paraacutegrafosrdquo 120 (DUVALL GUTHRIE 1998 p 40 traduccedilatildeo nossa) pois ldquosob o aspecto semacircntico o texto eacute visto como o conjunto de relaccedilotildees (estrutura) entre os seus elementos significantes forma um todo constituindo uma espeacutecie de lsquomicro-universo semacircnticorsquordquo (EGGER 1994 p 91)

119 Embora siga o modelo proposto por Guthrie e Duvall (1998) a diagramaccedilatildeo semacircntico-gramatical aqui empregada eacute uma adaptaccedilatildeo feita por Viriacutessimo (2018) Sendo uma ferramenta ainda em desenvolvimento ela eacute por isso amplamente passiacutevel de receber criacuteticas120 ldquothe meaningfunction relationships between the words phrases clauses sentences and even paragraphsrdquo

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O diagrama conteacutem o texto grego e uma traduccedilatildeo em portuguecircs de aparecircncia interlinear Esta traduccedilatildeo eacute preliminar vindo a sofrer sucessivas revisotildees ateacute que se constitua a proposta final Contudo ela eacute importante em funccedilatildeo de o texto original ter sido redigido em grego de modo que Wegner (1998 p 28) a considera o ldquoprimeiro passo a ser realizado na exegeserdquo Uma inovaccedilatildeo da dia-gramaccedilatildeo neste artigo eacute a numeraccedilatildeo para referenciaccedilatildeo sobrescrita antes dos termos aos quais se refere Como uacuteltimo passo tem-se a redaccedilatildeo do comentaacuterio das relaccedilotildees linguiacutesticas observadas

Exemplo

Marcos 11-4

Continua

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continuaccedilatildeo

O substantivo (1) introduz Marcos delimitando o tema de toda a obra sob a construccedilatildeo em genitivo propriamente dito (2 3 4) Haacute um sentido baacutesico de posse entre (2) (3) e (4) embora este natildeo tenha sido representado por setas Optou-se por deixar os modificadores juntos na mesma linha tanto (3) como (4) por eles funcionarem como uma unidade devendo por isso ser interpretados em conjunto Outro sentido passiacutevel de ser destacado tambeacutem natildeo exposto no

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diagrama eacute de especificaccedilatildeo entre os elementos em (3) e de relacionamento em (4)

Na parte a do versiacuteculo 2 o adveacuterbio (5) verifica ou seja fornece uma evidecircncia que comprove a validade da introduccedilatildeo por meio da foacutermula de invocaccedilatildeo veterotestamentaacuteria em perfeito resultativo (6) o qual se refere a ldquouma accedilatildeo inteiramente acabada e por conseguinte tambeacutem o resultado de uma accedilatildeo passada cujos efeitos perduram (ideia de estado)rdquo (HORTA 1991 p 208) O redobro (γε-) caracteriacutestico dos tempos passados marca esse grau de acabamento da accedilatildeo que na esfera expressa em (7) reforccedila ser o agora o momento do cumprimento de algo predito O autor pela obra metoniacutemia em (8) que ligada a (7) o especifica como ecircnfase ndash repeticcedilatildeo do artigo equivalendo a adjunto adnominal enfaacutetico Na parte b do versiacuteculo a partiacutecula demonstrativa (9) chama a atenccedilatildeo para a accedilatildeo que a segue (ROBINSON 2012 p 430) o verbo (10) prefixado pela preposiccedilatildeo que despede o objeto em (11) ldquopara determinado propoacutesitordquo (LOUW NIDA 2013 p 172) Esse objeto (11) tem sua natureza especificada em (15) e pertence a (12) Tambeacutem estaacute expressa a relaccedilatildeo de posse entre (13) e (14) (16) e (17)

No versiacuteculo seguinte a construccedilatildeo (18) e (19) explica como se deu a accedilatildeo (10) sobre o objeto (11) e qual foi a sua esfera (20) de ocorrecircncia Duas exortaccedilotildees entatildeo satildeo expressas e o contraste entre elas estaacute no tempo verbal Por um lado tem-se o imperativo aoristo (21) traduzindo ldquoordem particular e momentacircneardquo por outro haacute o imperativo presente (24) exprimindo ldquouma ordem geral que perdurardquo (HORTA 1991 p 282) Transmitem assim sob ilustraccedilatildeo a impressatildeo de grande urgecircncia e necessidade de permanecircncia tanto a forccedila de significado do verbo (19) como o seu discurso (21) e (24) A relaccedilatildeo de posse em (22) e (23) eacute um paralelismo com (16) e (17) especificando em (23) a figura do (17) Ainda outra relaccedilatildeo de posse haacute entre (25) e (26)

No versiacuteculo final sem preocupaccedilatildeo com o processo mas acompanhando o tempo da narraccedilatildeo histoacuterica o tempo aoristo em (27) expressa a accedilatildeo instantacircnea (WALLACE 2009 p 554) de chegada do sujeito (28) especificado em (29) ndash subjetivaccedilatildeo do particiacutepio Nota-se um paralelismo entre as esferas expressas em (20) e (30) de modo que (28) descreve (18) dando-lhe detalhes viacutevidos A accedilatildeo (27) entatildeo eacute ligada por (31) agrave maneira como aconteceu (32) ndash noccedilatildeo adverbial presente no modo particiacutepio A mensagem (33) dessa circunstacircncia eacute especiacutefica (34) para um fim (35)

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33 NOTAS

Esta parte do meacutetodo a seguir consiste na elaboraccedilatildeo de notas explicativas acerca de palavras-chave ou passiacuteveis de esclarecimento no corpus as quais acabam por compor um dicionaacuterio proacuteprio do pesquisador Segundo Egger (1994) o processo de compreensatildeo dos significados de um texto depende do repertoacuterio de conhecimentos preacutevios do leitor jaacute que sem o arcabouccedilo cultural necessaacuterio ele natildeo seraacute capaz de apreender os sentidos velados de um escrito especialmente se este for de tempos longiacutenquos Acerca do Novo Testamento demanda-se ldquoque se aproximem ao menos os principais paralelos do ambiente p ex os do AT e do mundo heleniacutestico contemporacircneordquo (EGGER 1994 p 92)

Os verbetes da anaacutelise que se segue foram escritos com base na Enciclopeacutedia da Biacuteblia (TENNEY 2008) e apresentados com o item a respeito do qual se pretende dissertar em negrito e em portuguecircs conforme a traduccedilatildeo interlinear seguido da forma grega em itaacutelico como aparece no corpus e introduzida pela abreviaccedilatildeo ldquogrrdquo Veja a seguir

Versiacuteculo 1

Evangelho gr εὐαγγελίου Vocaacutebulo que em sua origem ldquonatildeo se referia aos quatro escritos mas a anuacutencios proclamados oralmenterdquo (MARCONCINI 2012 p 5) Sob o advento messiacircnico significa o bom anuacutencio da possibilidade de recomeccedilo e renovaccedilatildeo Seu uso eacute encontrado no Antigo Testamento com o sentido religioso da comunicaccedilatildeo da mensagem profeacutetica (cf Isaiacuteas 527) bem como para a anunciaccedilatildeo feita em cenaacuterios de guerra ou por ocasiatildeo do nascimento de uma crianccedila (cf Jeremias 2015 1Samuel 319) Esse segundo uso estaacute conectado agrave forma de uso que os gregos faziam da palavra ndash a ideia da proclamaccedilatildeo de uma notiacutecia alegre de cunho poliacutetico ou pessoal referindo-se agrave recompensa dada ao mensageiro que proclamou tal ldquoboa novardquo Novamente trata-se de uma palavra associada a contextos basicamente orais

Jesus gr Ἰησοῦ A Jesus eacute atribuiacutedo o papel mais importante em todo o Novo Testamento sendo apresentado como a chave de interpretaccedilatildeo do Antigo Nos Evangelhos Ele eacute apresentado como um homem judeu nascido milagrosa-mente nos limites da Palestina (cf Mateus 21 Lucas 24-7) pela concepccedilatildeo espiritual de Maria virgem por ainda ser noiva de Joseacute na ocasiatildeo (cf Mateus 118 Lucas 127) Sabe-se pouco acerca de sua infacircncia (cf Mateus 219-23 Lucas 241-52 416) o relato de suas accedilotildees estatildeo concentrados em sua idade adulta (cf Lucas 323)

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Cristo gr Χριστοῦ Do hebraico mashiach aquele sobre o qual Deus der-ramou a autoridade sacerdotal e real do esperado messias dos judeus (STERN 2008 p 26) Esse tiacutetulo era concedido a reis e a sacerdotes ensejando portanto aleacutem da religiosa uma interpretaccedilatildeo poliacutetica sobre Jesus

[filho de Deus] gr [υἱοῦ θεοῦ] Pode ter sido parte original ou um acreacutescimo posterior ldquopara indicar que natildeo se tem certeza quanto ao texto original as palavras υἱοῦ θεοῦ aparecem no texto entre colchetesrdquo (OMANSON 2010 p 56) Opta-se aqui pela originalidade visto que a paternidade celestial dispen-sada sobre Jesus seraacute confirmada na forma de ilustraccedilatildeo no evangelho poucos versiacuteculos depois (Marcos 110-11) sendo o Jesus evangeacutelico uma percepccedilatildeo do evangelista Assim a expressatildeo deve ser entendida como a preocupaccedilatildeo de um autor que escreve para romanos acostumados a cultuar heroacuteis nacionais atribuiacutedos de caracteriacutesticas divinas por forccedila do arcabouccedilo miacutetico grego na religiatildeo imperial

evangelho de jesus Cristo filho de Deus gr τοῦ εὐαγγελίου Ἰησοῦ Χριστοῦ [υἱοῦ θεοῦ] Mais do que pertencer a Jesus o ldquoevangelhordquo eacute o designador da boa notiacutecia acerca daquele que se tornou ldquoportador de toda novidade sendo portador de si mesmordquo (MARCONCINI 2012 p 7)

Versiacuteculo 2

Isaiacuteas o profeta gr τῷ Ἠσαΐᾳ τῷ προφήτῃ Inspirado orador que previu a vinda do salvador e servo sofredor Jesus (Isaiacuteas 9 53) cerca de 700 anos antes de ela acontecer Foi um importante profeta veterotestamentaacuterio com clara influecircncia na esfera poliacutetico-religiosa de seu tempo (2Reis 191-7) Ao longo da histoacuteria o profetismo entre os hebreus assumiu um caraacuteter vocacional e natildeo institucional em contraste agrave profecia profissional cultual popular eou monaacuter-quica (FOHRER 1982 p 289) O que se quer dizer com isso eacute que os profetas profissionais perderam sua importacircncia para ldquoos grandes profetas individuais incluindo Amoacutes e Oseacuteias Isaiacuteas e Miqueacuteias Sofonias e Jeremias Ezequiel e em parte o Deuteroisaiacuteasrdquo (FOHRER 1982 p 291) agrave medida que o povo tomava consciecircncia de que estes estavam certos contrariamente aos profetas profissionais Foi dessa maneira que se deu iniacutecio agrave compilaccedilatildeo dos discursos dos grandes profetas individuais formando coleccedilotildees que posteriormente ficaram conhecidas como escritura sagrada (FOHRER 1982 p 291)

Eia envio meu mensageiro diante da tua face gr Ἰδοὺ ἀποστέλλω τὸν ἄγγελόν μου πρὸ προσώπου σου A citaccedilatildeo no versiacuteculo 2 pertence ao profeta

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Malaquias (Malaquias 31) enquanto a metoniacutemia enfatiza Isaiacuteas A Biacuteblia que os cristatildeos do primeiro seacuteculo liam e ouviam era a Septuaginta ndash a traduccedilatildeo grega do Antigo Testamento tradicionalmente atribuiacuteda a 72 filoacutelogos durante o periacuteodo poacutes-exiacutelico conhecida tambeacutem como LXX Grande parte das citaccedilotildees no NT era baseada nessa traduccedilatildeo e muitas vezes por meio da memoacuteria auditiva que se tinha das leituras feitas em voz alta durante as concentraccedilotildees populares Ao citar apenas Isaiacuteas Marcos parece ter cometido um ato falho que priorizou o profeta maior ou seja aquele que tinha a maior quantidade de escritos sob a influecircncia divina A seguir uma exposiccedilatildeo paralela da fonte na LXX (RAHLFS 1979) e da citaccedilatildeo em Marcos

LXX NTMalaquias 31 Marcos 12ἰ δ ο ὺ ἐ γ ὼ ἐξαποστέλλω τὸν ἄγγελόν μου καὶ ἐπιβλέψεται ὁδὸν π ρ ὸ π ρ ο σώ π ο υ μου καὶ ἐξαίφνης ἥξει εἰς τὸν ναὸν ἑαυτοῦ κ ύριος ὃν ὑμεῖς ζητεῖτε κ α ὶ ὁ ἄ γ γ ε λ ο ς τ ῆ ς δ ι α θ ή κ η ς ὃν ὑμεῖς θέλετε ἰ δ ο ὺ ἔ ρ χ ε τ α ι λ έ γ ε ι κ ύ ρ ι ο ς παντοκράτωρ

Καθὼς γέγραπται ἐν τῷ Ἠσαΐᾳ τῷ προφ ήτ ῃ Ἰδο ὺ ἀποστέλλω τὸν ἄγγελόν μου πρὸ προσώπου σου ὅς κατασκευάσει τὴν ὁδόν σου∙

Isaiacuteas 403 Marcos 13φ ω ν ὴ β ο ῶ ν τ ο ς ἐ ν τ ῇ ἐ ρ ή μ ῳ ῾Ετοιμάσατε τὴν ὁ δ ὸ ν κ υ ρ ί ο υ εὐθείας ποιε ῖτε τὰς τρίβους τοῦ θεοῦ ἡμῶν

φ ο ν ὴ β ο ῶ ν τ ο ς ἐ ν τ ῇ ἐ ρ ή μ ῳ Ἑτοιμάσατε τὴν ὁ δ ὸ ν κ υ ρ ί ο υ εὐθείας ποιε ῖτε τὰς τρίβους αὐτοῦ

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Versiacuteculo 3

Deserto gr τῇ ἐρήμῳ Frequente cenaacuterio no texto biacuteblico o deserto tinha grande influecircncia na vida e na cultura da Palestina (TENNEY 2008 v 2 p 95) Em Marcos Joatildeo estava proacuteximo ao rio Jordatildeo na altura de Nazareacute da Galileacuteia (cap 1 vv 5 e 9)

Senhor gr κυρίου Trata-se de um tiacutetulo dado a Deus e a Cristo com a ideia de ldquoaquele que governa a humanidade com autoridade sobrenaturalrdquo (LOUW NIDA 2010 p 126)

Versiacuteculo 4

Joatildeo o que batiza gr Ἰωάννης [ὁ] βαπτίζων Personagem neotestamentaacuterio tido como aquele que antecederia a vinda do Cristo (Mateus 3 Marcos 12-11 Lucas 31 15-17 21-22) Filho de sacerdote (Lucas 18-25 157-80) Joatildeo Batista rompeu com as expectativas eclesiaacutesticas de sua linhagem exercendo uma vocaccedilatildeo na medida dos profetas antigos sendo por vezes associado agrave figura de Elias (Mateus 117-14) ndash ldquoesse formidaacutevel asceta frequentador do deserto em sua vestimenta grosseira fazia reviver a imagem popular de um profeta inspirado e como os antigos profetas anunciava o iminente julgamento de Deus sobre um povo infielrdquo (DODD 1977 p 137)

Batismo gr βάπτισμα Vocaacutebulo que literalmente significa imersatildeo mas que na mentalidade judaica do seacutec I ldquopoderia incorporar ambas as realidades espirituais e os siacutembolos fiacutesicos Em outras palavras quando algueacutem falava de batismo comunicava ambas as ideias ndash a realidade e o ritualrdquo (WALLACE 2009 p 370 grifo do autor)

Batismo de arrependimento gr βάπτισμα μετανοίας Expressatildeo usada nos evangelhos (Marcos 14 Lucas 38) que revela uma das tarefas da missatildeo a qual Joatildeo estava atrelado No contexto da personagem parece que

o batismo de Joatildeo Batista reflete muito mais o costume dos banhos rituais entre os judeus do que o tipo de batismo praticado pelos cristatildeos que era um siacutembolo de iniciaccedilatildeo na comunidade cristatilde baseada na feacute em Jesus Cristo e na lealdade para com ele como Senhor e Salvador (LOUW NIDA 2013 p 479)

Libertaccedilatildeo gr ἄφεσις Consiste no ldquocancelamento da culpa do pecadordquo121 (BAUER 1979 p 125 traduccedilatildeo nossa)

121 ldquocancellation of the guilt of sinrdquo

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Pecados gr ἁμαρτιῶν A transgressatildeo da medida justa em que se deveria viver tanto conforme as coisas humanas como as divinas (BAUER 1979 p 43) Por medida justa na esfera biacuteblica o paracircmetro eacute o caraacuteter de Deus (Deu-teronocircmio 324 Salmos 117 Miqueacuteias 68) A humanidade criada agrave imagem e semelhanccedila de Deus (Gecircnesis 127) assim foi feita para viver e ser conforme seu Criador (Isaiacuteas 437 1 Coriacutentios 1031) O pecado consiste pois numa desconfiguraccedilatildeo do ser humano em referecircncia a Deus Em diferentes textos do Novo Testamento (Hebreus 1012 Gaacutelatas 14 1 Joatildeo 17) nota-se que a condiccedilatildeo pecaminosa da humanidade natildeo eacute um simples erro do alvo mas um estado de degradaccedilatildeo que soacute pocircde ser transposto por Jesus em sua entrega voluntaacuteria para morrer agrave semelhanccedila dos animais usados nos sacrifiacutecios judaicos

Perdatildeo dos pecados gr εἰς ἄφεσιν ἁμαρτιῶν O desconhecido autor da Epiacutestola aos Hebreus desenvolve a ideia de perdatildeo em comparaccedilatildeo com a lei mosaica Tratando-se de uma representaccedilatildeo do que haveria de vir (Hebreus 101) a lei teve em Jesus o seu cumprimento pois por ele foi ldquooferecido para sempre um uacutenico sacrifiacutecio pelos pecadosrdquo (Hebreus 1012) Os sacrifiacutecios de animais embora fossem aceitos por Deus dentro das condiccedilotildees estabelecidas natildeo eram suficientes para apagar a consciecircncia de pecado ou seja a culpa que reside sobre aquele que peca visto que vez apoacutes vez ao espiar o sangue de um cordeiro o indiviacuteduo se lembrava de sua condiccedilatildeo de portador da transgressatildeo (Hebreus 103) O perdatildeo dos pecados configura-se pois como aquilo que tem o poder que a lei natildeo tinha a anulaccedilatildeo total da culpa (Hebreus 10 17)

34 INTERPRETACcedilAtildeO

Eis a uacuteltima etapa do meacutetodo Nela satildeo encontradas a proposta definitiva de traduccedilatildeo amparada sobre o tripeacute exatidatildeo clareza e naturalidade (BARNWELL 2011 p 25) o esboccedilo do texto parcialmente formulado neste artigo conforme os tiacutetulos encontrados na obra Synopsis Quattuor Evangeliorum (ALAND 1967) e o comentaacuterio final em que se privilegiam apenas alguns aspectos de todo o material produzido respeitando-se as conclusotildees obtidas das relaccedilotildees intra e extra textuais dos elementos estruturantes do texto de maneira a explicitar o que seja relevante para dentro do escopo da pragmaacutetica Exemplo

Esboccedilo

11 O PROacuteLOGO12-4 JOAtildeO AQUELE QUE BATIZA

12-3 Profecia veterotestamentaacuteria14 O surgimento de Joatildeo

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Proposta de traduccedilatildeo

1 Iniacutecio do evangelho de Jesus Cristo Filho de Deus 2 Assim como perma-nece escrito em Isaiacuteas o profeta ldquoAtenccedilatildeo Despeccedilo antes de tua presenccedila o meu mensageiro o qual colocaraacute em ordem o teu caminho 3 Uma voz trovejante no deserto Preparai o caminho do Senhor fazei retas as suas veredasrdquo 4 Surgiu no deserto Joatildeo aquele que batiza anunciando o batismo de arrependimento para o perdatildeo dos pecados

Reflexatildeo

O primeiro versiacuteculo de Marcos uma sentenccedila que sendo incompleta em si funciona como o tiacutetulo a obra define os paracircmetros de leitura da histoacuteria que haacute de ser contada o evangelho pertence a Jesus Eacute esse personagem o iniacutecio da causa evangeacutelica bem como o tema do livro Sem a preocupaccedilatildeo de fornecer dados histoacutericos Marcos o apresenta como o libertador prometido e resume sua genealogia filho de Deus Ao se pensar nos primeiros leitores-ouvintes pessoas ansiosas por novos tempos de prosperidade e paz a imagem de um Jesus heroico e divino mais forte que a humanidade mortal cativa a atenccedilatildeo para o que haacute de ser dito

No versiacuteculo seguinte Marcos gera ainda mais expectativa em seu puacuteblico recorrendo agrave memoacuteria coletiva das profecias antigas para mostrar a validade de sua mensagem Ele assim o faz por meio da foacutermula ldquoconforme escritordquo mos-trando sua credencial de inspiraccedilatildeo Marcos inaugura a interpretaccedilatildeo evangeacutelica do Antigo Testamento Pode-se inferir que atribuindo a referecircncia somente a Isaiacuteas profeta de singular importacircncia o evangelista procura confirmar suas palavras como dotadas da mesma autoridade da tradiccedilatildeo profeacutetica de Israel E essa antiga profecia invocada por Marcos permanece presente enquanto o texto existir Surge entatildeo o mensageiro que haveria de ser enviado da parte de Deus

Antecedendo o Cristo esperado o mensageiro aparece sob a forma de um som uma voz que se faz ouvir no deserto Satildeo duas as exortaccedilotildees que essa voz traz agora eacute hora de preparar o caminho do Senhor e permanentemente se deve preparar as suas veredas Uma mensagem urgente e contiacutenua A voz entatildeo simplesmente aparece sob o nome de Joatildeo Do ponto de vista de quem ouve a voz tudo o que foi dito ateacute agora se afigura como o preluacutedio perfeito para a chegada do novo personagem ndash que natildeo eacute o messias mas possui grande importacircncia histoacuterica na tradiccedilatildeo profeacutetica

Eis uma obra prima a imagem desse Joatildeo que surge no ermo lugar como um som trovejante irrompendo e se transformando gradativamente em homem

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numa espeacutecie de efeito sinesteacutesico Joatildeo eacute o que batiza ou seja aquele que anuncia a outros a imersatildeo na mudanccedila da forma como se vecirc e se pensa a proacutepria existecircncia para assim se alcanccedilar a possibilidade de soltura das amarras que aprisionam O misteacuterio sendo revelado sobre a figura angelical faz com que a seacuteria narrativa assuma a delicadeza de uma contaccedilatildeo de histoacuterias sem contudo anular a forccedila das verdades para aqueles que nelas creem

CONSIDERACcedilOtildeES FINAISAs etapas de execuccedilatildeo neste artigo foram aqui descritas partindo de 2

Anaacutelise do Discurso em que se procurou elucidar essa aacuterea da linguiacutestica de maneira acessiacutevel a leitores especializados em outros saberes Em 3 Metodo-logia o meacutetodo foi explanado em detalhes nos toacutepicos subsequentes Em 31 Contextualizaccedilatildeo pretendeu-se a delimitaccedilatildeo dos sentidos de produccedilatildeo do texto Em 32 Etapas de Anaacutelise foi disposta a diagramaccedilatildeo semacircntico-gramatical desse texto e uma breve anaacutelise de suas relaccedilotildees linguiacutesticas Em seguida em 33 Notas houve a elucidaccedilatildeo de termos especiacuteficos constantes do fragmento examinado Por fim em 34 Interpretaccedilatildeo a autora pretendeu alcanccedilar uma compreensatildeo mais apurada do enredo

Conclui-se que o meacutetodo apresentado figura como um instrumental interes-sante de pesquisa e de ensino ndash objetivo primeiro para o qual foi desenvolvido ndash oferecendo subsiacutedios para os dispostos a se debruccedilar sobre o aprofundamento de sua praacutetica acadecircmica eou religiosa Num contexto de impressionante preconceito da Academia para com a Biacuteblia como objeto de estudo literaacuterio eacute essencial que o inteacuterprete do texto biacuteblico esteja disposto a reinventar sua praacutetica de pesquisa por meio da dialeacutetica multidisciplinar Existe uma instrumentalidade na diversidade das teorias cientiacuteficas e esta pode ser aproveitada sem que se extrapolem os possiacuteveis sentidos do texto

Como ressalta Egger (1994 p 9) ldquouma metodologia neotestamentaacuteria eacute antes de tudo uma introduccedilatildeo agrave correta leitura dos textos do Novo Testamentordquo As distacircncias existentes entre um texto antigo e o leitor atual constituem um grande desafio dada a imensa diferenccedila entre uma eacutepoca e outra natildeo raro se afigurando praticamente impossiacutevel o pleno resgate do entendimento do modo de pensar de um narradornarrataacuterio inserido no contexto originaacuterio e o leitorinteacuterprete atual voltado para a pesquisa na constante busca do conhecimento Tanto a liacutengua como a cultura em geral passam por mudanccedilas as mais variadas ao longo do tempo e caso o pesquisador tenha um compromisso confessional com o texto ele lhe imporaacute tambeacutem distanciamentos de ordem divina (LOPES 2004 p 25)

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O reconhecimento das aparentes barreiras exige o esforccedilo do estranhamento por parte desse leitorinteacuterprete que por um lado pode estar preso agrave familia-ridade encontrada no texto ou que por outro lado pode ler equivocadamente sob seu perspectivismo o que lhe eacute desconhecido Por isso trabalhar com textos da Antiguidade eacute tambeacutem uma provocaccedilatildeo das Ciecircncias Sociais Assim para ambas as situaccedilotildees supracitadas pode-se parafrasear o antropoacutelogo Gilberto Velho (1978 p 45) e dizer que eacute necessaacuterio ao que se propotildee agrave pesquisa o confronto intelectual e emocional de diferentes versotildees e interpretaccedilotildees do texto a fim de se tornar capaz de estranhaacute-lo Soacute assim se consegue alcanccedilar a erudiccedilatildeo prometida pela reflexatildeo cientiacutefica

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ldquoNO DIA DO SENHORrdquo ndash OS ATOS O EVENTO A AUTOEXPRESSAtildeO

Uma breve reflexatildeo sobre as tradiccedilotildees lituacutergicas e sobre os termos liturgia culto e adoraccedilatildeo

Theoacutegenes Eugecircnio Figueiredo122

RESUMO No presente artigo satildeo apresentados os nuacutecleos lituacutergicos herdados do cris-

tianismo primitivo que no decorrer dos seacuteculos tiveram em si alguns elementos agregados constituindo-se posteriormente em grandes famiacutelias lituacutergicas Os protestantes satildeo caracterizados historicamente pela diversidade lituacutergica por possuiacuterem nove famiacutelias lituacutergicas No Brasil os protestantes se caracterizam como igrejas livres que fogem das foacutermulas lituacutergicas preacute-fixadas Liturgia culto e adoraccedilatildeo satildeo conceitos abordados atraveacutes dos siacutembolos ldquoos atosrdquo ldquoo eventordquo e ldquoa autoexpressatildeordquo Comenta-se a criacutetica de Kierkgaard agrave inversatildeo das funccedilotildees dos partiacutecipes de um evento cultual O evento culto eacute definido como o trabalho do povo e o evento da ldquovisatildeo de Isaiacuteasrdquo eacute apresentado como um dos modelos cultuais

Palavras-chave Culto Liturgia Adoraccedilatildeo Famiacutelias lituacutergicas Batistas

ABSTRACTThis article presents the liturgical nuclei inherited from primitive Christianity

which over the centuries had some elements aggregated to later constituting large liturgical families Protestants are historically characterized by liturgical diversity as they have nine liturgical families In Brazil Protestants are charac-terized as free churches diverting from pre-fixed liturgical formulas Liturgy worship and adoration are concepts commented by the symbols ldquothe actsrdquo ldquothe eventrdquo and ldquoself-expressionrdquo Kierkgaardrsquos critique about the inversion of the roles of participants in a worship event is commented The worship event is defined as the job of the people and the event of the ldquovision of Isaiahrdquo is commented as one of the worship models

Keywords Worship service Liturgy Worship Liturgical families Baptist

122 Doutor em Ciecircncias da Religiatildeo pela UFJF e mestre em muacutesica pela UNIRIO Professor do Curso de Licenciatura em Muacutesica com Gestatildeo da Muacutesica Eclesiaacutestica da Faculdade Batista do Rio de Janeiro - STBSB

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1 AS FAMIacuteLIAS LITUacuteRGICAS ndash O LEGADOOs elementos lituacutergicos herdados do cristianismo primitivo formaram dois

nuacutecleos o nuacutecleo da Palavra (proveniente do culto judaico que passou a ser chamado de Liturgia da Palavra nas celebraccedilotildees da Igreja Catoacutelica) e o nuacutecleo da Ceia do Senhor ou da Eucaristia Este pode ser considerado ldquocomo uma marca genuinamente cristatilderdquo123 da liturgia

Ao longo dos seacuteculos alguns elementos foram agregados a esses dois nuacutecleos da liturgia da Igreja Cristatilde surgindo uma ordo124 isto eacute ldquoum conjunto de ele-mentos e formas usados para realizar o encontro entre Deus e a comunidade E eacute a partir desse processo que se constituiacuteram as grandes famiacutelias lituacutergicas que mantecircm os nuacutecleos baacutesicos comunsrdquo125

Essas famiacutelias satildeo centralizadas em

a) Alexandria (Egito) conhecida como a liturgia de Satildeo Marcos

b) Jerusaleacutem e Antioquia (Siacuteria Ocidental) conhecida como a liturgia de Satildeo Tiago

c) Siacuteria Oriental

d) Cesareia conhecida como a liturgia de Satildeo Basiacutelio

e) Constantinopla conhecida como a liturgia bizantina ou liturgia de Satildeo Crisoacutestomo

f) Roma conhecida como a liturgia de Satildeo Pedro que se encontra em uso mais amplo no catolicismo romano

g) a liturgia gaacutelica que compreende o clatilde ocidental natildeo-romano126

Os protestantes possuem nove famiacutelias lituacutergicas tendo desde o iniacutecio o culto protestante se caracterizado pela diversidade lituacutergica O diagrama a seguir mostra essas famiacutelias

123 MARTINI 200223124 Palavra latina que significa ordem significando uma disposiccedilatildeo metoacutedica um arranjo de coisas segundo certas relaccedilotildees uma boa disposiccedilatildeo um bom arranjo um arrumaccedilatildeo (Dicionaacuterio Aureacutelio)125 MARTINI 200224126 WHITE 199728

88 TeoloacutegicaRevista Brasileira de Teologia ISSN 1807-7056 nordm 8 outdez Rio de Janeiro 2020 p 86 - 97

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Diagrama 1127

Ala esquerda significa uma ruptura radical com a liturgia medieval tardia encontrando-se nela os Anabatistas que segundo uma corrente histoacuterica originou os Batistas atuais ala Centro significa os grupos mais moderados em relaccedilatildeo a uma ruptura com a liturgia histoacuterica e ala Direita mostra os grupos mais conservadores em termos de preservaccedilatildeo da liturgia histoacuterica

As igrejas de tradiccedilatildeo lituacutergica possuem os livros lituacutergicos que contecircm os ritos e as leituras de suas celebraccedilotildees Um deles eacute o Palavra do Senhor I ndash Lecionaacuterio dominical ABC que tem a sua imagem apresentada a seguir e a especificaccedilatildeo do seu conteuacutedo128

Lecionaacuterio dominicalConteacutemRito da Missa (partes fixas)Proacuteprio do tempo advento natal quaresma tempo comum etcProacuteprio dos santosVasta coleccedilatildeo de prefaacuteciosVaacuterias oraccedilotildees eucariacutesticasMissas rituais Batismo confirmaccedilatildeo profissatildeo religiosa etcMissas e oraccedilotildees para diversas necessidades pelo papa pelos bis-pos pelos governantes pela conservaccedilatildeo da paz e da justiccedila etcMissas votivas Santiacutessima Trindade Espiacuterito Santo Nossa Senhora etcMissas dos fieacuteis defuntosNo iniacutecio o Missal apresenta longa e preciosa introduccedilatildeo con-tendo a Instruccedilatildeo Geral sobre o Missal Romano e as Normas Universais para o Ano Lituacutergico e o Calendaacuterio1

127 WHITE 199729128 PERES 2018

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O Livro lituacutergico ldquoeacute um livro grande que conteacutem todo o formulaacuterio e todas as oraccedilotildees usadas nas celebraccedilotildees da missa para todo o ano lituacutergico Fitas marcadoras indicam as diversas partes da celebraccedilatildeo []rdquo129

11 OS BATISTAS BRASILEIROS E SUA TRADICcedilAtildeO LITUacuteRGICA

No Brasil o protestantismo de missatildeo chegou com suas tradiccedilotildees lituacutergicas tendo os batistas seguido a tradiccedilatildeo das ldquoigrejas livres da poacutes-Reforma e principalmente dos reavivamentos ingleses e americanos somados agraves formas de cultos das fronteiras da expansatildeo norte-americana para o oesterdquo130

O quadro a seguir mostra a data da chegada das diversas denominaccedilotildees protestantes em terra brasileira e sua linha lituacutergica

Protestantes Entrada no Brasil Igrejas livres (natildeo-lituacutergicas)Congregacionais 1855 SimPresbiterianos 1859 SimBatistas 1881 SimMetodistas 1886 SimEpiscopal 1898 Natildeo

Antonio Gouvecirca de Mendonccedila afirma que a liturgia dos batistas ldquoeacute uma das mais informaisrdquo131 isso significa dizer que os batistas tecircm uma praacutetica lituacutergica ldquoque foge a foacutermulas prefixadas aos rituais e aos aparato lituacutergico [] O culto e demais rituais preestabelecidos satildeo virtualmente condenados e quase sempre com a alegaccedilatildeo de que sugerem a missa catoacutelicardquo132 Donald P Hustad afirma que ldquoa heranccedila dos evangeacutelicos tiacutepicos eacute uma adoraccedilatildeo natildeo-liacutetuacutergica isto quer dizer eles rejeitam todas as formas ou liturgias estabelecidasrdquo133

Entatildeo se as igrejas batistas satildeo de tradiccedilatildeo lituacutergica livre as liturgias satildeo fundamentadas em quecirc

2 LITURGIA CULTO E ADORACcedilAtildeO ndash OS ATOS O EVEN-TO E A AUTOEXPRESSAtildeO CULTUAL

O termo liturgia eacute muitas vezes considerado sinocircnimo dos termos culto e adoraccedilatildeo Entretanto eacute necessaacuterio que se faccedila a distinccedilatildeo entre esses termos Os

129 PERES 2018130 MENDONCcedilA e VELASQUES FILHO 2002171 Grifo nosso131 MENDONCcedilA e VELASQUES FILHO 200244132 MENDONCcedilA e VELASQUES FILHO 2002156133 HUSTAD 1986166

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atos praticados durante o culto satildeo considerados liturgia culto eacute um evento total que abrange um conjunto de elementos lituacutergicos sendo um desses elementos a adoraccedilatildeo (em seu sentido estrito) a atitude do indiviacuteduo Adoraccedilatildeo eacute uma autoexpressatildeo em resposta agrave accedilatildeo divina

21 LITURGIA ndash OBRA DO POVO TRABALHO DO POVO OS ATOS CULTUAIS

Voltemos a nossa atenccedilatildeo ao termo liturgia e vejamos o que podemos de-preender do proacuteprio termo

Liturgia foi traduzida para o portuguecircs da palavra grega leitourgeo composta dos vocaacutebulos gregos LEITOSLAOS que significa povo e ERGON que significa trabalho Haacute um consenso entre os estudiosos do assunto que o significado seja ldquoobra do povordquo ldquotrabalho do povordquo

Essa ideia de trabalho do povo tambeacutem pode ser inferida da maioria dos vocaacutebulos originais da Septuaginta traduzidos para o idioma portuguecircs como liturgia Satildeo eles 134

Vocaacutebulo Significado Passagem biacuteblica

Leitourgiacutea (6 vezes)

Ministeacuterio Lc 123Assistecircncia 2 Co 912Serviccedilo Fp 217Socorro Fp 230Ministeacuterio Hb 86Serviccedilo Sagrado Hb 921

Leitourgoacutes (5 vezes)Ministro

Rm 136Rm 1516Hb 17Hb 82

Auxiliar Fp 225

Leitourgeacuteotilde (3 vezes)Servindo At 132Servi-los Rm 1527Serviccedilo Sagrado Hb 1011

Leitourgikoacutes (1 vez) Ministradores Hb 114

134 COSTA 198715-16

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Como visto o termo liturgia ocorre no Novo Testamento num total de quinze vezes tendo o seu significado se consolidado como ldquoo conjunto das falas e praacuteti-cas de culto dos seguidores de Jesusrdquo135 Essas praacuteticas de culto ou decorrentes do culto satildeo a assistecircncia o socorro o auxiacutelio o serviccedilo etc

22 CULTO O EVENTO CULTUAL TOTAL

Culto eacute uma reaccedilatildeo do humano agrave uma accedilatildeo divina Um bom exemplo eacute a atitude de Noeacute narrada em Gecircnesis 6-8 Depois do diluacutevio Noeacute ldquoconstruiu um altar dedicado ao Senhor e tomando alguns animais e aves puros ofereceu-os como holocausto []136 Liturgia no caso de Noeacute foi o evento constituiacutedo do ldquoconjunto de atos palavras e formas carregados de significado expressos de um certo jeito numa certa sequecircnciardquo137 realizados na reaccedilatildeo de Noeacute agrave bondade de Deus para consigo

23 A ADORACcedilAtildeO UMA AUTOEXPRESSAtildeO CULTUAL

Em relaccedilatildeo ao conceito de adoraccedilatildeo Bob Sorge em seu livro Exploring worship apresenta-nos dois exemplos que ajudam no entendimento dessa au-toexpressatildeo Satildeo os exemplos de Joacute e Abraatildeo

Joacute foi atingido por uma extrema calamidade perdendo todos os seus bens e perdendo todos os seus filhos

A resposta de Joacute eacute emocionante ldquoEntatildeo Joacute se levantou rasgou o manto e raspou a cabeccedila e ele caiu no chatildeo e adorourdquo (Joacute 120) Se concordamos que esta eacute a primeira menccedilatildeo de adoraccedilatildeo na Biacuteblia entatildeo podemos dizer que a adoraccedilatildeo eacute o que fazemos em face de grande trageacutedia e julgamento pessoal Adoraccedilatildeo em sua essecircncia natildeo eacute o que fazemos quando a vida eacute feliz e nos sentimos abenccediloados eacute o que fazemos quando perdemos as coisas que satildeo mais caras para noacutes o teste de adoraccedilatildeo natildeo eacute no domingo de manhatilde quando nos reunimos com o povo de Deus De manhatilde eacute faacutecil adorar Os crentes estatildeo reunidos em santa convocaccedilatildeo os liacutederes oram e estatildeo preparados para liderar o canto do Senhor comeccedila a surgir a presenccedila de Deus enche a casa Se vocecirc natildeo pode adorar no domingo de manhatilde vocecirc provavelmente estaacute morto138

135 MIRANDA 201239 Grifo nosso136 BIacuteBLIA ONLINE Gn 820137 MARTINI 200221 Grifo nosso138 SORGE 2018 cap 4 Grifo nosso

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Nesse ato de culto de Joacute a adoraccedilatildeo pode-se verificar uma expressatildeo original ndash uma autoexpressatildeo ndash que tem como essecircncia a espontaneidade da expressatildeo em resposta agrave percepccedilatildeo da trageacutedia ocorrida em sua vida

O conceito de autoexpressatildeo eacute definido como uma expressatildeo original que responde espontaneamente agrave percepccedilatildeo de algo A autoexpressatildeo acontece em resposta a um dado sensorial especiacutefico tendo como essecircncia a espontaneidade Contrariamente a expressatildeo pode ser um ato intencional servindo mais para demonstrar os sentimentos dos indiviacuteduos do que se apresentar como uma expressatildeo primaacuteria uma autoexpressatildeo139

O segundo exemplo citado por Sorge se encontra em Gecircnesis 225 passagem biacuteblica da narrativa de um episoacutedio muito marcante na vida de Abraatildeo que denota sua atitude de adorar mesmo quando Deus ordenara que sacrificasse o seu proacuteprio filho seu uacutenico herdeiro que o proacuteprio Deus tinha providenciado de forma milagrosa Mesmo naquela situaccedilatildeo desesperadora Abraatildeo teve a atitude de adorar a Deus Assim comenta Sorge

Quando Abraatildeo estava a caminho da montanha onde pretendia matar o seu uacutenico filho o que disse ele aos criados ldquoEntatildeo disse a seus servos Esperai aqui com o jumento eu e o rapaz iremos ateacute laacute e havendo ado-rado voltaremos para junto de voacutesrdquo (Gecircnesis 225) Na ansiedade mental de planejar matar o seu proacuteprio filho quando Deus sem duacutevida parecia estar a milhas de distacircncia Abraatildeo adorou Ele natildeo podia entender por-que Deus tinha ordenado que ele sacrificasse o seu uacutenico filho o uacutenico e verdadeiro herdeiro que Deus tinha providenciado milagrosamente Mas apesar da sua incapacidade em compreender as intenccedilotildees de Deus Abraatildeo adorou A sua adoraccedilatildeo natildeo teria sido completa sem a sua total obediecircncia140

139 FIGUEIREDO faz o seguinte comentaacuterio sobre a diferenciaccedilatildeo entre esses dois conceitos ndash autoexpres-satildeo e expressatildeo ldquouma autoexpressatildeo de juacutebilo realizada por um indiviacuteduo pela presenccedila apresentaccedilatildeo ou contemplaccedilatildeo de um ldquodeusrdquo ou de algum objeto que o represente pode resultar no nascimento de uma praacutetica ritual Nesse momento originaacuterio de um ritual a demonstraccedilatildeo de juacutebilo gradativamente se propaga agraves pessoas presentes e todos satildeo possuiacutedos do mesmo sentimento as emoccedilotildees humanas satildeo tocadas profundamente nesse momento Numa segunda ocasiatildeo tal demonstraccedilatildeo de juacutebilo eacute repetida mas agora sem aquele fator gerador da expressividade do grupo como ocorrido na primeira ocasiatildeo o segundo momento eacute realizado portanto como uma accedilatildeo intencional do grupo servindo mais para demonstrar os sentimentos dos indiviacuteduos do que uma autoexpressatildeo ou servindo para aliviar os sentimentos do grupo Neste caso ocorre a execuccedilatildeo de um ato supostamente expressivo porque natildeo possui a respectiva motivaccedilatildeo interior Eacute um ato ritual e natildeo um ato expressivo em sua essecircncia (um ato autoexpressivo) Sua suposta expressividade tem uma motivaccedilatildeo loacutegica racional intencional em contraposiccedilatildeo a um ato fisioloacutegico e espontacircneo caracteriacutestica daquele primeiro momento de juacutebilordquo (FIGUEIREDO 2010124-125) Leia mais sobre esse assunto em FIGUEIREDO 2010123-125140 SORGE 2018 cap 4 Grifo nosso

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Essa expressatildeo primaacuteriaoriginal de adoraccedilatildeo de Joacute e Abraatildeo em resposta agrave atuaccedilatildeo de Deus em suas vidas satildeo exemplos de autoexpressatildeo

3 CULTO UM EVENTO NO QUAL Eacute O POVO QUEM TRA-BALHA

Haacute uma criacutetica do filoacutesofo-teoacutelogo dinamarquecircs Soren Kierkgaard que aponta para a inversatildeo das funccedilotildees dos partiacutecipes nos atos de culto (liturgia) a qual deve ser levada em consideraccedilatildeo

Kierkgaard criticou a natildeo participaccedilatildeo ativa do povo da sua igreja lituacutergica luterana ldquoInsistiu em que na verdadeira adoraccedilatildeo a congregaccedilatildeo satildeo os atores o ministro e o coro satildeo os lsquopontosrsquo e Deus eacute o auditoacuteriordquo141 Kierkgaard afirma que ldquono sentido mais enfaacutetico Deus eacute o criacutetico frequentador de teatro que observa para ver como o texto eacute declamado e como ele eacute ouvido O orador portanto eacute o ponto e o ouvinte encontra-se abertamente diante de Deus O ouvinte se posso assim dizecirc-lo eacute o ator que verdadeiramente atua diante de Deus142

A sua criacutetica estava fundamentada nos fatos ocorridos na Idade Meacutedia quan-do ldquoa missa era essencialmente lsquoobra dos sacerdotesrsquo a congregaccedilatildeo natildeo era nem de bons espectadores visto que natildeo entendia as palavras [porque a missa era realizada no idioma latino] e em uma grande catedral natildeo conseguia nem ver a accedilatildeordquo143 Nos dias de hoje

em algumas situaccedilotildees evangeacutelicas parece claro tambeacutem que a adoraccedilatildeo eacute obra do ministro e do coro a congregaccedilatildeo eacute o ldquoauditoacuteriordquo o que suge-re que eles [fieacuteis] agem mais como ouvintes Em muitas situaccedilotildees eles [fieacuteis] nunca satildeo encorajados a falar uma soacute palavra nos cultos lendo as Escrituras ou participando das oraccedilotildees [] Indubitavelmente lhes eacute per-mitido cantar os hinos embora algumas vezes estes sejam bem poucos e ateacute mesmo esta oportunidade eacute ignorada por muitas pessoas em algumas congregaccedilotildees Eacute verdade que pode-se envolver na adoraccedilatildeo ndash pode-se ateacute falar com Deus ndash sem pronunciar nem um som audiacutevel mas cremos que eacute desejaacutevel ter o maacuteximo de participaccedilatildeo da congregaccedilatildeo tanto do que se fala como do que se canta e tambeacutem da accedilatildeo fiacutesica 144

141 HUSTAD 1986165142 HUSTAD 1986165143 HUSTAD 1986165144 HUSTAD 1986165

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Os encontros cultuais puacuteblicos devem priorizar portanto a participaccedilatildeo ativa do povo o trabalho do povo isto eacute os elementos lituacutergicos de um culto (adoraccedilatildeo leitura biacuteblica canto coletivo oraccedilatildeo testemunho mensagem muacutesica instrumental coro etc) devem propiciar a participaccedilatildeo plena do povo

Outro autor que trabalha esses dois termos ndash liturgia e culto ndash eacute o teoacutelogo Nelson Kirst Ele compara o momento do culto com o ldquorancho na roccedilardquo O culto eacute o encontro de Deus com a sua comunidade e a ldquoliturgia eacute o conjunto de elementos e focircrmas (espaccedilos lugares tempos objetos funccedilotildees gestos foacutermu-las histoacuterias instruccedilotildees olhares siacutembolos e significados) atraveacutes dos quais se realiza o encontro de Deus com sua comunidaderdquo145

Imagine-se uma famiacutelia de agricultores que sai para trabalhar um pedaccedilo de terra localizado a 1 ou 2 km de casa De manhatilde bem cedo potildeem-se todos a caminho de carroccedila levando enxadas foices facotildees arado e o cesto com o lanche Laacute chegando dividem as tarefas e se lanccedilam ao trabalho Mourejam por umas duas horas e entatildeo se recolhem para um descanso Em algum ponto daquela roccedila ergue-se o rancho construccedilatildeo tosca de trecircs paredes e um telhado em meia-aacuteguaEacute no aconchego do rancho na roccedila que a famiacutelia camponesa depois da primeira arrancada de enxada e arado se recolhe descansando o corpo fortalecendo-se de patildeo aacutegua fresca e conversa - para meia horinha depois voltar agrave enxada e ao arado e misturar seu suor agrave terra em outro tanto de jornada A famiacutelia vai da enxada para o rancho e sai fortalecida do rancho para a enxada A parada no rancho natildeo faz sentido sem o trabalho na roccedila E o trabalho na roccedila se esgota em agitaccedilatildeo e cansaccedilo sem a parada no rancho146

O culto entatildeo eacute o lugar para renovaccedilatildeo de energias espirituais lugar onde o povo busca ldquoalimentordquo espiritual atraveacutes dos atos de adoraccedilatildeo e louvor ao Deus criador ao Deus salvador Atos de enunciaccedilatildeo de suas alegrias e suas tristezas de exposiccedilatildeo suas ansiedades e vitoacuterias e o retorno para a vida ordinaacuteria das atividades seculares

O culto constituiacutedo pelo conjunto de elementos lituacutergicos eacute um evento total que possui situaccedilotildees momentacircneas cultuais diversas Qual eacute a origem desses momentos determinados constantes de uma liturgia

145 KIRST 1998119146 KIRST 1998119

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4 ldquoA VISAtildeO DE ISAIacuteASrdquo UM DOS MODELOS DE EVENTO CULTUAL

Apesar da origem natildeo-lituacutergica dos batistas sua liturgia segue alguns princiacutepios modelos Os atos lituacutergicos natildeo satildeo propostos aleatoriamente Entatildeo de onde vecircm esses princiacutepiosmodelos que norteiam uma liturgia

Esses elementos vecircm dos exemplos biacuteblicos de adoraccedilatildeo O teoacutelogo Romeu R Martini nos apresenta no seu livro Liturgia e culto o exemplo biacuteblico de Noeacute (Gn 6-8) e o teoacutelogo Russel P Shedd no seu livro Adoraccedilatildeo biacuteblica elenca vaacuterios exemplos biacuteblicos de adoraccedilatildeo afirmando que ldquoas sagradas letras satildeo o nosso manual de adoraccedilatildeordquo147

O salmista no Salmo 96 Enoque em Gn 522-24Hb 56 Jacoacute em Gn 3222ss Moiseacutes em Ex 3312-33 Isaiacuteas em Is 61-8 e Maria em Jo 121-8 satildeo os exemplos apresentados por Shedd

De todos esses exemplos biacuteblicos de adoraccedilatildeo haacute uma convergecircncia entre os teoacutelogos de que a experiecircncia de Isaiacuteas eacute a que mais detalhes apresenta sobre os diversos atos ocorrentes em um encontro de um ser humano com o Deus criador Do texto de Isaiacuteas 6-1-9a emergem os seguintes atos lituacutergicos

- Consciecircncia da presenccedila de Deus (Is 61) ndash Preluacutedio

- Adoraccedilatildeo (Is 62-3)

- Confissatildeo (Is 65)

- Perdatildeo (Is 66-7)

- Apelo (Is 68) ndash Palavra do SenhorEnsino

- Consagraccedilatildeo (Is 68) ndash Resposta do homem

- Disponibilidade para o serviccedilo (Is 69a) ndash Posluacutedio

Nelson Kirst fala de uma forma mais abrangente que a liturgia ndash a sequecircncia de atos elementos eventos ornamentos e momentos lituacutergicos ndash precisa ser moldada Utiliza o exemplo de uma casa com seus cocircmodos para o entendimento dessa questatildeo

Uma casa eacute composta de diversas dependecircncias Haacute certas dependecircncias que natildeo podem faltar numa casa p ex a cozinha ou o dormitoacuterio Satildeo imprescindiacuteveis Haacute outras partes que satildeo uacuteteis sem ser imprescindiacuteveis

147 SHEDD 1987113

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p ex a sala de estar a sala de jantar ou a varanda Assim tambeacutem a liturgia tem partes imprescindiacuteveis que nunca podem faltar e partes que satildeo uacuteteis mas podem faltar num cultoNa comparaccedilatildeo da liturgia com uma casa tambeacutem se aprende alguma coisa sobre a disposiccedilatildeo das diversas partes dentro do conjunto A entrada de uma casa geralmente vai ser pela sala de estar ou perto da sala de estar e natildeo pela cozinha ou pelo dormitoacuterio Por outro lado o banheiro pode localizar-se entre o dormitoacuterio e a sala ou entre o dormitoacuterio e a cozinha e a sala de estar pode encontrar-se do lado esquerdo ou do lado direito da entrada Assim tambeacutem na liturgia haacute certas partes que tecircm seu lugar fixo p ex o canto de entrada soacute pode estar no iniacutecio do culto e a interpretaccedilatildeo da Palavra soacute pode vir depois das leituras biacuteblicas E haacute outras partes que podem ser dispostas com certa flexibilidadeFinalmente haacute muita maleabilidade na maneira como satildeo configuradas as diversas dependecircncias de uma casa O material as cores as cortinas a decoraccedilatildeo dependeratildeo de quem haacute de utilizar essa casa para morar Assim tambeacutem haacute muita liberdade quanto agrave maneira ou ao estilo de se realizar as partes da liturgia148

5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAISFinalizando liturgia significa os atos ocorrentes no momento de culto isto

eacute os atos praticados pelos indiviacuteduos em reaccedilatildeo agrave accedilatildeo divina Os batistas satildeo uma igreja livre (natildeo-lituacutergica) em relaccedilatildeo agrave orientaccedilatildeo lituacutergica A liturgia dos batistas procura seguir os exemplos de adoraccedilatildeo encontrados na Biacuteblia sendo a experiecircncia de Isaiacuteas com Deus a mais ensinada nas casas teoloacutegicas como modelo de atos cultuais

Para que a liturgia natildeo se transforme em um ritual ndash uma monoacutetona repeticcedilatildeo de atos lituacutergicos ndash existe uma liberdade na sua elaboraccedilatildeo preservando-se alguns dos elementoseventos cultuais de adoraccedilatildeo biacuteblica bem como a omissatildeo de outros

Hustad afirma que em resumo a liturgia de um culto deve contemplar duas accedilotildees baacutesicas da adoraccedilatildeo ldquouma revelaccedilatildeo plena de Deus seus atos e sua vontade para noacutes e uma reaccedilatildeo dos homens e mulheres incluindo corpo emoccedilatildeo intelecto e vontaderdquo149

148 KIRST 1998125149 HUSTAD 1986166 Grifo nosso

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LITURGIA E IDENTIDADE RELIGIOSA NO APOCALIPSE DE JOAtildeO

Valtair A Miranda150

RESUMONosso propoacutesito neste artigo eacute analisar as peccedilas hiacutenicas descritas nos capiacutetulos

quatro e cinco do livro de Apocalipse e refletir sobre o papel que executam na construccedilatildeo e manutenccedilatildeo da identidade social e religiosa dos leitores e ouvintes desse livro no momento da sua produccedilatildeo Argumentamos que os hinos registrados nas obras do movimento de Jesus possuiacuteam um papel significativo na definiccedilatildeo da autodescriccedilatildeo dos membros das igrejas quer por representarem o que se cantava nas comunidades quer como sugestatildeo do que cantar Cantar entatildeo natildeo apenas descreve a pessoa de Deus ou o falar com ele mas propicia a quem canta um forte senso de identidade pessoal e social Nos hinos o fiel expressa o que ele se ainda natildeo eacute pelo menos gostaria de ser

Palavras-chave Apocalipse de Joatildeo Culto e ritual hino e liturgia Cristianismo antigo

ABSTRACTOur purpose in this article is to analyze the hymn pieces of Revelation 4 and

5 and to reflect on their role in building and maintaining the social and religious identity of the readers and listeners of this book at the time of its production We argue that the hymns recorded in the works of the Jesus movement had a signifi-cant role in defining the self-description of church members either because they represent what was sung in the communities or rather as a suggestion to sing Singing then not only describes God or speaks to him but gives the person who sings a strong sense of personal and social identity In the hymns the faithful express what he if he still is not at least would like to be

Keywords Revelation of John Worship and ritual worship and liturgy Ancient Christianity

150 Valtair Afonso Miranda eacute Doutor em Ciecircncias da Religiatildeo (UMESPSP) e Doutor em Histoacuteria (UFRJ) Eacute Diretor Acadecircmico da Faculdade Batista do Rio de Janeiro onde leciona Histoacuteria da Igreja e Exegese do Novo Testamento

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O capiacutetulo 4 de Apocalipse inicia uma longa seccedilatildeo descritiva de um tipo de culto celestial Aparentemente este livro poderia ser dividido em trecircs partes uma seccedilatildeo para descrever a visatildeo do Filho do Homem que aparece a Joatildeo para narrar sete cartas para sete igrejas (capiacutetulos 1 a 3) uma seccedilatildeo para descrever a visatildeo do rolo selado com sete selos (capiacutetulos 4 a 11) e uma uacuteltima para apresentar o conflito escatoloacutegico entre o Cordeiro e o Dragatildeo (capiacutetulos 12 a 22)151

Nesse sentido o capiacutetulo 4 seria o iniacutecio da segunda seccedilatildeo Sua narrativa co-meccedila com o ingresso do visionaacuterio por uma porta aberta no ceacuteu e o subsequente acesso ao Templo Celestial Na perspectiva da audiecircncia desse texto a cena elabora uma narrativa a partir de uma preacutevia experiecircncia extaacutetica Afinal Joatildeo continua na Ilha de Patmos apesar de o seu espiacuterito vislumbrar o trono divino e uma seacuterie de personagens que participam da liturgia celestial Embora se apresente como a narrativa de uma experiecircncia visionaacuteria entretanto o Apocalipse ecoa por meio dessa cena um conjunto de tradiccedilotildees e passagens provavelmente bem conhecidas de sua audiecircncia como Ecircxodo 249-11 Isaiacuteas 6 Ezequiel 126-28 Daniel 79-28 1Reis 2219-23 1Enoque 39 e 2 Enoque 20-22 entre outras

O primeiro versiacuteculo do capiacutetulo 4 apresenta um anjo convocando Joatildeo para subir ao ceacuteu Esse anjo promete mostrar ao visionaacuterio o que aconteceria ldquodepois destas coisasrdquo O cumprimento dessa promessa do anjo se daacute nos termos do relato quando o Cordeiro siacutembolo do Jesus crucificado rompe sete selos de um livro e provoca sete trombetas escatoloacutegicas Isso aparece no capiacutetulo 6 em diante jaacute que os dois primeiros capiacutetulos da seccedilatildeo (4 e 5) se dedicam ao ato lituacutergico em um ritmo muito lento apresentando as cenas e os atores do culto celestial

Nosso propoacutesito neste artigo eacute analisar as peccedilas hiacutenicas desses dois capiacutetulos do Apocalipse e refletir sobre o papel delas na construccedilatildeo e manutenccedilatildeo da identidade social e religiosa dos leitores e ouvintes do livro no seu momento de produccedilatildeo152

151 Para uma discussatildeo dessa estrutura no formato de trecircs seccedilotildees conferir o meu livro MIRANDA Valtair Afonso O caminho do Cordeiro representaccedilatildeo e construccedilatildeo de identidade no Apocalipse de Joatildeo Satildeo Paulo Paulus 2011152 Pressupomos que esta obra foi escrita no final do seacuteculo I e enviada para membros do movimento de Jesus na proviacutencia romana da Aacutesia especificamente para comunidades nas cidades de Eacutefeso Esmirna Peacutergamo Tiatira Saacuterdis Filadeacutelfia e Laodiceia Para uma anaacutelise mais ampla do contexto de produccedilatildeo do Apocalipse de Joatildeo conferir MIRANDA Valtair A Revisitando o contexto de produccedilatildeo do Apocalipse de Joatildeo Reflexus ano IX n 14 p 389-416 2015 FRIEDRICH Paulo Nestor Apocalipse 2ndash3 Sete cartas Uma anaacutelise literaacuteria Estudos de Religiatildeo Satildeo Bernado do Campo n 19 p 149-173 2000 WIKENHAUSER Alfred El Apocalipsis de San Juan p 25-34

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CELEBRANDO A CRIACcedilAtildeO O CULTO AO DEUS ENTRONI-ZADO

O capiacutetulo 4 do Apocalipse apresenta um trono no ceacuteu e em torno dele ele-mentos tiacutepicos de uma teofania da Escritura judaica (Is 61-4) Como na visatildeo de Isaiacuteas esse trono divino eacute uma peccedila central Tudo gira em torno dele Ao seu redor estatildeo quatro criaturas denominadas de Seres Viventes Aleacutem destes o relato apresenta tambeacutem vinte e quatro tronos menores nos quais se assentam vinte e quatro anciatildeos vestidos com roupas brancas tendo coroas de ouro na cabeccedila Independentemente da forma como os inteacuterpretes contemporacircneos interpretam esses personagens celestiais o essencial eacute que todos estatildeo envolvidos em atos lituacutergicos Eles adoram o anciatildeo que se assenta sobre o trono

Os Quatro Viventes especificamente tecircm como missatildeo sem descanso dia e noite expressar adoraccedilatildeo (Ap 48) Deles Joatildeo ouve ldquoSanto Santo Santo eacute o Senhor Deus o Todo-Poderoso aquele que era que eacute e que haacute de virrdquo O hino comeccedila com uma expressatildeo triacuteplice originada em Isaiacuteas 63 ldquoE clamavam uns para os outros dizendo Santo santo santo eacute o Senhor dos Exeacutercitos toda a terra estaacute cheia da sua gloacuteriardquo No texto de Isaiacuteas a canccedilatildeo eacute entoada por Serafins figuras parecidas com serpentes aladas Essa passagem foi largamente usada em textos apocaliacutepticos para compor as cenas do santuaacuterio celestial (1En 3012 2En 211 Ap Abr 16) Os grupos judaicos do segundo Templo frequentemente viam no triacuteplice ldquosantordquo a expressatildeo perfeita do culto dos anjos deduzindo daiacute um modelo para o culto na terra153

Eacute interessante comparar a versatildeo de Isaiacuteas com a LXX e o Apocalipse e assim verificar a forma como as tradiccedilotildees literaacuterias satildeo retomadas no Apo-calipse A LXX que normalmente traduz o termo tsabaoth por pantokrator dessa vez simplesmente transliterou o termo sabaoth Joatildeo entretanto de forma consistente continuou usando pantokrator no lugar de tsabaoth De qualquer forma ambas as expressotildees denotam um ser soberano sobre todos os outros deuses e senhores da terra Ele eacute o Senhor dos Exeacutercitos o Todo-poderoso o Senhor da terra toda Isso daacute ao conjunto da canccedilatildeo um tom de natureza poliacute-tica A acentuaccedilatildeo do ldquoSenhor Deus Todo-Poderosordquo eacute ainda maior porque o hino acrescenta agrave descriccedilatildeo divina a expressatildeo ldquoaquele que era que eacute e que haacute de virrdquo no que se configura uma afirmaccedilatildeo da eternidade imutabilidade e autonomia divinas uma evocaccedilatildeo do ldquoeu sourdquo de Ecircxodo 314 Um Deus eterno natildeo estaacute sujeito agraves variaccedilotildees do tempo ou agraves transiccedilotildees dos domiacutenios humanos

153 PRIGENTE P O Apocalipse p 104

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No momento em que os Quatro Viventes cantam o hino de Isaiacuteas denominado frequentemente de ldquokedushaacuterdquo os Vinte e Quatro Anciatildeos se prostram diante do que se assenta no trono depositando aos seus peacutes suas coroas de ouro Dessa vez satildeo eles que adoram ldquoTu eacutes digno Senhor e Deus nosso de receber a gloacuteria a honra e o poder porque todas as coisas tu criaste sim por causa da tua vontade vieram a existir e foram criadasrdquo (Ap 411)

A forma literaacuteria eacute de aclamaccedilatildeo mas configurada em expressatildeo hiacutenica no texto do visionaacuterio A estrutura do hino consiste do adjetivo ldquodignordquo seguido do verbo ser (na terceira pessoa do singular) mais uma seacuterie de atributos Esse eacute um hino de dignidade A divindade eacute adorada porque eacute digna e eacute digna em funccedilatildeo da sua obra de criaccedilatildeo

Esse hino tambeacutem levanta a questatildeo de quem eacute digno de ser adorado Possi-velmente eacute uma peccedila lituacutergica que surge em meio agrave disputa por adoraccedilatildeo Com um hino desse tipo o Apocalipse tenta apontar quem eacute digno de adoraccedilatildeo e consequentemente quem natildeo o eacute

Essas expressotildees querem responder agrave questatildeo ldquoquem eacute o verdadeiro senhor da terrardquo ou entatildeo quem eacute digno de ser A resposta do Apocalipse eacute clara o Senhor da terra eacute aquele que a criou A ele pertencem todas as coisas

Esses hinos poderiam atuar na identidade da audiecircncia de diversas maneiras mas destacamos aqui apenas trecircs Primeiramente ao ouvir tais hinos ou cantaacute--los a audiecircncia acompanha os seres celestiais declarando o senhorio exclusivo de Deus sobre o mundo154 Deus eacute o verdadeiro Senhor da Terra o que promove uma determinada filosofia da histoacuteria Um Deus Soberano estaacute acima dos poderes e governos do mundo Esse tipo de divindade tem poder para controlar e dirigir a histoacuteria da humanidade e o faraacute levando-a ateacute a instalaccedilatildeo efetiva do seu Reino sobre a terra (Ap 510) O olhar sobre esse futuro - mas iminente - reino alerta as comunidades de crentes que a vida que eles vivem no presente eacute circunstancial e peregrina O seu destino ainda natildeo chegou Um primeiro efeito plausiacutevel entatildeo se daria na postura poliacutetica dos fieis cantantes ao promover a perspectiva de oposiccedilatildeo agrave sociedade circundante155

Segundo ao afirmar que somente Deus eacute digno de receber adoraccedilatildeo honra poder o hino afirma a singularidade da figura divina diante das pretensotildees im-

154 BORTOLINI Joseacute Como ler o Apocalipse p 53155 Para uma reflexatildeo mais ampla sobre posturas de oposiccedilatildeo do movimento de Jesus agrave estrutura imperial romana cf MIRANDA Valtair A Religiatildeo e sociedade na Aacutesia romana Religare v13 n1 p150-179 2016 LAZIER Josueacute Adam A estrateacutegia cristatilde no contexto da Pax Romana Estudos Biacuteblicos n 36 p 37-40 1992 MESTER Carlos OROFINO Francisco A violecircncia do Impeacuterio Romano e a sua influecircncia na vida das comunidades cristatildes do fim do primeiro seacuteculo Estudos Biacuteblicos n 69 p 72-82 2001

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periais romanas E ao afirmar a singularidade de Deus o hino tambeacutem reforccedila a singularidade de seus adoradores Mesmo que experimentando o desprezo da sociedade romana os seguidores de Jesus se percebem como figuras especiais pois formam o povo de Deus na terra

Terceiro esse conhecimento do senhorio de Deus sobre o universo e da singu-laridade do seu povo eacute um conhecimento profundo que somente quem acessa as regiotildees celestiais conhece Ningueacutem consegue enxergar o que eles veem naquele momento Essa ldquovisatildeo profundardquo era dada aos seguidores do Cordeiro quando se reuniam em seus encontros de culto Dessa forma o culto se torna o espaccedilo privilegiado para o acesso a um ldquooutro mundordquo no interior ldquodeste mundordquo

CELEBRANDO A REDENCcedilAtildeO O CULTO AO CORDEIROO capiacutetulo 5 do Apocalipse apresenta uma crise Qual eacute a crise Joatildeo eacute infor-

mado de que haacute um rolo que ningueacutem pode abrir Ele comeccedila a chorar ateacute que algueacutem bate no seu ombro e diz ldquoNatildeo chores eis que o Leatildeo da tribo de Judaacute a Raiz de Davi venceu para abrir o livro e os seus sete selosrdquo (Ap 55) Ele ouve falar de um leatildeo mas quando olha o que vecirc eacute um cordeiro Eacute Jesus Cristo na forma simboacutelica de um cordeiro ensanguentado representando a centralidade do seu sacrifiacutecio na cruz no projeto de redenccedilatildeo divino Daqui em diante o Cordeiro Jesus Cristo jaacute com o rolo na matildeo vai comeccedilar a quebrar os selos do rolo um por um Agrave medida que cada selo eacute removido uma cena eacute testemunhada por Joatildeo

Jesus que jaacute aparecera antes na forma do Filho do Homem (Ap 113) agora eacute descrito como um cordeiro com aparecircncia de ter sido morto com sete chifres e sete olhos Satildeo imagens que devem ser menos entendidas e mais sentidas Chifres e olhos tecircm a ver com a presenccedila do poder e do espiacuterito de Deus Mas de onde vem a imagem do Cordeiro

Essa imagem tem analogia com o sacrifiacutecio e a morte Uma passagem relevante para estudar o significado de ldquocordeirordquo estaacute no Antigo Testamento especifica-mente em uma profecia de Jeremias 1119 ldquoEu era como manso cordeiro que eacute levado ao matadouro porque eu natildeo sabia que tramavam projetos contra mim dizendo Destruamos a aacutervore com seu fruto a ele cortemo-lo da terra dos vi-ventes e natildeo haja mais memoacuteria do seu nomerdquo O profeta fala de si mesmo como um cordeiro que eacute levado mansamente para a morte

A passagem mais proacutexima de Jeremias eacute Isaiacuteas 537 ldquoEle foi oprimido e humilhado mas natildeo abriu a boca como cordeiro foi levado ao matadouro e como ovelha muda perante os seus tosquiadores ele natildeo abriu a bocardquo O relato de Isaiacuteas 53 sobre o ldquoservo sofredorrdquo reaparece no Novo Testamento de diversas

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formas para falar do ministeacuterio de Jesus e sua morte (Lc 2237 At 832-33 1Pe 222) sendo muito importante para responder agrave questatildeo de como o sofrimento e a morte de Jesus poderiam ser explicados diante da sua natureza messiacircnica

Eacute exatamente isso que aparece quando o Apocalipse descreve Jesus como um Cordeiro Ele eacute o Messias pelo caminho do sacrifiacutecio Mais ainda o Cordeiro Jesus

- Eacute aquele que morreu e ressuscitou (Ap 56)

- Eacute adorado pelas figuras celestiais (Ap 581213)

- Eacute o que tem o poder de revelar os eventos celestiais (Ap 61)

- Eacute o que julgaraacute todas as pessoas (Ap 616 717) pois possui o Livro da Vida (2127)

- Eacute o que lavou as vestes dos salvos com o seu proacuteprio sangue (Ap 791014)

- Eacute o que vence o Dragatildeo em funccedilatildeo do seu sangue (Ap 1211)

- Venceraacute as bestas (Ap 1714)

- Se casaraacute com sua noiva a Nova Jerusaleacutem o povo de Deus (Ap 1979 219)

- Iluminaraacute a Nova Jerusaleacutem (Ap 2123)

A imagem do cordeiro sacrificial entatildeo no Apocalipse faz referecircncia natildeo apenas ao sofrimento e agrave morte mas tambeacutem agrave vitoacuteria reinado poder e gloacuteria Eacute a esse Cordeiro exaltado que toda a adoraccedilatildeo do capiacutetulo 5 se dirige Ele eacute digno de ser adorado porque segundo os vinte e quatro anciatildeos e os Quatro Viventes morreu e com seu sangue comprou pessoas de todas as naccedilotildees constituindo-as reino e sacerdotes para Deus (Ap 59-10) Os mesmos seres que adoraram a Deus no capiacutetulo 4 agora se rendem em adoraccedilatildeo ao Cordeiro de Deus no capiacutetulo 5 (Ap 59-10) ldquoDigno eacutes de tomar o livro e abrir-lhe os selos porque foste morto e compraste para Deus atraveacutes do teu sangue pessoas de toda tribo liacutengua povo e naccedilatildeo e os constituiacuteste para o nosso Deus reino e sacerdotes e reinaratildeo sobre a terrardquo

Adela Yarbro Collins estudiosa da Yale University (EUA) interpretou esse rolo como uma epiacutestola celestial na forma de um livro de destino Em outras palavras ele seria uma taacutebua de eventos futuros Os sete selos enfatizam simbolicamente a intensidade do segredo do conhecimento sobre os eventos futuros cujo conteuacutedo eacute dado na forma de duas seacuteries de sete visotildees (selos e trombetas)156 O Cordeiro seria o uacutenico digno de revelar para o visionaacuterio e sua comunidade o conhecimento escatoloacutegico A base dessa dignidade eacute a morte de Jesus Cristo

156 COLLINS Adela Yarbro The combath myth in the Book of Revelation p 25

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A imagem de um cordeiro imolado jaacute seria evocaccedilatildeo suficiente agrave morte de Jesus da mesma forma como sua posiccedilatildeo em relaccedilatildeo ao trono o afirma vivo e com poder para fazer especificamente duas coisas comprar para Deus um povo exclusivo e fazecirc-los reino e sacerdotes de Deus Essa afirmaccedilatildeo jaacute apareceu antes (Ap 15-6) na forma de um hino entoado pelo autor na primeira pessoa do plural ldquoAgravequele que nos ama e pelo seu sangue nos libertou dos nossos pecados e nos constituiu reino sacerdotes para o seu Deus e Pai a ele a gloacuteria e o domiacutenio pelos seacuteculos dos seacuteculos Ameacutemrdquo Jaacute nesse hino ao Cordeiro satildeo os Vinte e Quatro Anciatildeos diante do Trono no ceacuteu que declaram esta mesma realidade Seria uma maneira de indicar que os seres celestiais confirmam o status real e sacerdotal cantado pelos crentes na terra

A origem dessas pessoas como ldquode toda tribo liacutengua povo e naccedilatildeordquo afirma o caraacuteter natildeo mais eacutetnico do povo de Deus A filiaccedilatildeo natildeo seria mais uma questatildeo de sangue mas de compromisso com o Cordeiro

As formas verbais satildeo bem precisas Os seguidores do Cordeiro jaacute foram comprados e jaacute receberam a investidura real e sacerdotal Seriam accedilotildees realizadas por Jesus no momento de sua morte e ressurreiccedilatildeo Mesmo assim uma reserva escatoloacutegica se manifesta eles ainda reinaratildeo sobre a terra Eles jaacute fazem parte do reino de Deus e seu filho Jesus Cristo mas esse reino ainda natildeo eacute visto por quem natildeo faz parte dele O cacircntico expressa a esperanccedila entretanto somente na intervenccedilatildeo uacuteltima de Deus esse reinado se materializaraacute157

Os cantores desse hino de dignidade ao Cordeiro satildeo os Quatro Viventes e os Vinte e Quatro Anciatildeos A cena ganha proporccedilotildees ainda maiores quando apoacutes o hino anjos em nuacutemero de ldquomilhotildees de milhotildees e milhares de milharesrdquo tambeacutem cantam a mesma temaacutetica (Ap 512) ldquoDigno eacute o Cordeiro que foi morto de receber o poder e riqueza e sabedoria e forccedila e honra e gloacuteria e louvorrdquo

Enquanto a primeira canccedilatildeo de dignidade ao Cordeiro estaacute na segunda pessoa do singular (um hino que fala com o Cordeiro) a canccedilatildeo dos anjos estaacute na terceira pessoa do singular (um hino que fala do Cordeiro) Em ambas as canccedilotildees o objeto de adoraccedilatildeo eacute descrito numa linguagem poliacutetico-religiosa do antigo Israel

Ele eacute o Leatildeo da Tribo de Judaacute a raiz de Davi que conquistou e portanto eacute digno de abrir o rolo que Deus entregou em suas matildeos Mas eacute ao mesmo tempo um Cordeiro em peacute como se tivesse sido morto Eacute ele que tem o rolo na matildeo

157 Isto configura um determinado tipo de milenarismo como analisado em MIRANDA Valtair A Maacutertires e monges milenarismos antigos e medievais Santo Andreacute Kapenke 2018 p 43-72

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O Leatildeo era usado como siacutembolo de poder no mundo antigo (Pr 3030) e se tornou associado com o trono de Davi atraveacutes da caracterizaccedilatildeo de Judaacute feita por Jacoacute (Gn 499) A raiz de Davi eacute uma metaacutefora para a linhagem de Davi (Is 1110) e se tornou siacutembolo da restauraccedilatildeo da monarquia daviacutedica (Jr 235) Essas tradiccedilotildees do restabelecimento do reino de Deus como um ato de forccedila e poder eram tradicionais Mas essa natildeo eacute a perspectiva de Apocalipse que inverte a imagem O leatildeo se torna cordeiro Existe violecircncia sim mas contra o cordeiro natildeo do Cordeiro Ele tem poder e tem forccedila para conquistar mas seus atos de conquista passaram pela sua morte158

Se Deus eacute digno por causa de sua obra de criaccedilatildeo o Cordeiro eacute digno por causa da redenccedilatildeo Somente ele entatildeo eacute capaz de abrir os selos somente ele venceu a morte Ao inserir o tema da morte do Cordeiro na tradiccedilatildeo messiacircnica daviacutedica o visionaacuterio insere na esperanccedila messiacircnica poliacutetica os aspectos da tradiccedilatildeo sacrificial

As cenas de culto celestial natildeo eram novidades na apocaliacuteptica Entretanto a presenccedila do Cordeiro ldquocomo que mortordquo no Templo celestial participando ou mesmo recebendo o culto eacute uma grande novidade do Apocalipse de Joatildeo Um nuacutemero muito maior de epiacutetetos nesses hinos de dignidade eacute lanccedilado sobre o Cordeiro do que ao proacuteprio Anciatildeo que estava assentado sobre o trono central do Santuaacuterio

Apoacutes a adoraccedilatildeo ao Cordeiro o relato acrescenta que ldquotoda criatura que haacute no ceacuteu e sobre a terra debaixo da terra e sobre o mar e tudo o que neles haacuterdquo e se volta novamente para aquele que se assenta no trono A descriccedilatildeo do culto celestial assim extrapola os espaccedilos celestiais pois envolve tambeacutem o acircmbito da terra e do mar bem como todos os seus seres A natureza inteira aparece envolvida na adoraccedilatildeo celestial O que eles cantam eacute ldquoAo que se assenta sobre o trono e ao Cordeiro o louvor e a honra e a gloacuteria e o domiacutenio para os seacuteculos dos seacuteculosrdquo (Ap 513)

Finalmente ambos os personagens celebrados no culto celestial recebem simultaneamente a adoraccedilatildeo As claacuteusulas de dignidade se parecem com o hino dos anjos (Ap 512) e com o hino a Deus em Apocalipse 411 A gloacuteria e a honra aparecem nos trecircs hinos O poder eacute dado a Deus pelos Vinte e Quatro Anciatildeos e ao Cordeiro pelos anjos mas natildeo aparece na lista quando ambos satildeo louvados juntos Na adoraccedilatildeo a Deus e ao Cordeiro por sua vez ainda se manifestam o domiacutenio e o louvor que natildeo apareceram antes para Deus De qualquer forma todas

158 BARR David L Tales of the End p 70

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as dignidades de Deus pertencem tambeacutem ao Cordeiro que ainda suporta outras Somente Ele nesses trecircs hinos de dignidade teve celebrada a riqueza a sabedoria e a forccedila Esses elementos sinalizam que diferentemente das visotildees tradicionais do Templo celestial no Apocalipse de Joatildeo natildeo eacute Deus a figura principal mas sim o Cordeiro Ele eacute o personagem central da revelaccedilatildeo do visionaacuterio

Nos termos de Hurtado

judeus convertidos se reuniam para adorar em nome de Jesus oravam a ele cantavam para ele entendiam que ele estava em uma posiccedilatildeo celestial acima de toda a ordem angelical usaram para ele tiacutetulos e passagens das Escrituras judaicas originalmente usadas para Deus procuraram convencer outros judeus e tambeacutem gentios a reconhece-lo como o redentor messiacircnico escolhido por Deus e em geral redefiniam a devoccedilatildeo tradicional ao uacutenico Deus para incluir a veneraccedilatildeo a Jesus159

Ao apresentar a adoraccedilatildeo de elementos da natureza o visionaacuterio ainda demons-tra a possibilidade de elementos de fora do acircmbito celestial participarem de algu-ma maneira do culto no ceacuteu O que esses elementos celebram eacute a manifestaccedilatildeo do Reino de Deus e seu domiacutenio perpeacutetuo Os cantores desse hino representam toda a ordem da criaccedilatildeo que juntos adoram o que se assenta no trono e o Cordeiro160

Como um responsoacuterio coral a resposta vem daqueles que se encontram bem perto do trono os Quatro Viventes que respondem ldquoAmeacutemrdquo

A conclusatildeo da cena eacute um novo ato de prostraccedilatildeo e adoraccedilatildeo dos Anciatildeos (Ap 513-14) O verbo usado no Apocalipse para adoraccedilatildeo eacute predominantemente proskuneo Ele aparece 60 vezes no Novo Testamento mas em nenhum outro livro tem a importacircncia que tem no livro de Joatildeo no qual aparece 24 vezes indicando o quanto a questatildeo da adoraccedilatildeo eacute central para o visionaacuterio O termo denota prostraccedilatildeo postura de submissatildeo e homenagem atitude que seraacute repetida vaacuterias vezes no Apocalipse

Finalmente o culto ao Anciatildeo e ao Cordeiro dos capiacutetulos 4 e 5 de Apocalipse seraacute interrompido pela seacuterie de selos e trombetas mas apareceraacute novamente em vaacuterios outros lugares da obra

159 HURTADO Larry W One God One Lord p 17-18160 MESTER Carlos OROFINO Francisco Apocalipse de Joatildeo p 182-183

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CONCLUSAtildeORetomando a questatildeo inicial sobre o papel dos hinos dos capiacutetulos 4 e 5 de

Apocalipse na autocompreensatildeo religiosa e social da audiecircncia ali descrita acreditamos que eles funcionariam para afirmar um status exaltado dos segui-dores de Jesus que foram comprados para Deus e lhe pertencem agora Como propriedade exclusiva de Deus satildeo seus sacerdotes fazendo parte do reino de Deus e do Cordeiro jaacute no presente tempo Por isso eles jaacute podem cantar todas as expectativas que as antigas tradiccedilotildees judaicas esperavam para a intervenccedilatildeo escatoloacutegica divina

Profeticamente o reinado de Deus e seu ungido se manifestam jaacute no espaccedilo sagrado do culto O Templo celestial sede do reino de Deus tem seu equivalente na terra no ajuntamento da comunidade de fieacuteis em adoraccedilatildeo Assim separados da vida ordinaacuteria dentro do limite do tempo e espaccedilo ritual na assembleia de adoraccedilatildeo no dia do Senhor os seguidores de Jesus conseguiam ver o que ningueacutem mais via e mais do isso jaacute antecipavam prolepticamente sua participaccedilatildeo no Reino de Deus e seu Cordeiro

Como contraponto entretanto essa perspectiva identitaacuteria promoveria algum tipo de rejeiccedilatildeo agrave ordem social romana A grande pergunta que os capiacutetulos 4 e 5 de Apocalipse quer responder eacute Quem eacute digno de adoraccedilatildeo Muita gente na eacutepoca do Apocalipse dizia que o Imperador Romano era digno de adoraccedilatildeo Para aqueles que cantavam esses cacircnticos entretanto a sociedade romana paganizada estava equivocada

Eacute certo que os imperadores romanos eram pessoas muito poderosas Tatildeo poderosas que imaginavam poder receber honras e adoraccedilatildeo como se fossem divindades O culto imperial era efetivamente um problema para as comunidades receptoras do Apocalipse Entretanto em oposiccedilatildeo a essa estrutura religiosa imperial o Apocalipse responde com o convite para uma adoraccedilatildeo exclusiva a Deus e seu Cordeiro mesmo que o preccedilo para isso fosse o caminho do martiacuterio (Ap 1413)

Valtair Afonso MirandaRua Uruguai 514202

20510-060 ndash Rio de Janeiro RJvaltairmirandagmailcom

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MESTER Carlos OROFINO Francisco Apocalipse de Joatildeo a teimosia da feacute dos pequenos Petroacutepolis Vozes 2002

_________ A violecircncia do Impeacuterio Romano e a sua influecircncia na vida das comu-nidades cristatildes do fim do primeiro seacuteculo Estudos Biacuteblicos n 69 p 72-82 2001

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PRIGENT Pierre O Apocalipse Trad Luiz Joatildeo Barauacutena Satildeo Paulo Loyola 1993

WIKENHAUSER Alfred El Apocalipsis de San Juan Barcelona Editorial Herder 1969

Page 3: seminariodosul.com.br...O primeiro concílio da igreja é o mencionado no capítulo 15 de Atos dos Apóstolos, onde Lucas relata o Concílio de Jerusalém em 50 d.C., liderado por

Apresentaccedilatildeo

Este nuacutemero da Revista Brasileira de Teologia conta com sete participaccedilotildees de aacutereas diferentes da Teologia Essa natureza pluritemaacutetica tem marcado a publicaccedilatildeo da revista desde o iniacutecio A opccedilatildeo eacute por dar voz a eixos diferentes de produccedilatildeo em vez de focar temas especiacuteficos

Entre os sete textos dois partem de anaacutelises de textos biacuteblicos A professora Teresa Akil em coautoria com Evelise Cavalcanti escreveu o artigo O livro de Jonas e o arrependimento verdadeiro na Biacuteblia e na atualidade A partir da experiecircncia de Jonas as autoras buscam refletir acerca da instabilidade humana em relaccedilatildeo a Deus na Biacuteblia e na atualidade Outro artigo que analisou extratos da Biacuteblia eacute Liturgia e identidade religiosa no Apocalipse de Joatildeo do professor Valtair Afonso Miranda no qual o autor procura vincular as expressotildees lituacutergi-cas do uacuteltimo livro neotestamentaacuterio com as possiacuteveis expressotildees identitaacuterias de sua audiecircncia presumida

Aleacutem desses dois artigos que trataram da Biacuteblia haacute dois que se debruccedilaram sobre uma aacuterea teacutecnica da teologia qual seja o estudo das liacutenguas originais dos textos sagrados Um deles foi produzido por Rawderson Rangel sobre a expressatildeo ldquoameacutemrdquo presente no grego do Novo Testamento e ainda hoje repetida em oraccedilotildees e expressotildees no interior dos cultos O texto foi intitulado Ameacutem Muacuteltiplos derivados o mesmo conceito As diferentes traduccedilotildees de uma mesma raiz Por sua vez a autora Thaiacutes de Oliveira Viriacutessimo escreveu A anaacutelise do discurso na interpretaccedilatildeo biacuteblica um texto que discute o papel dessa ferramenta na praacutetica teoloacutegica

Cliff Iuri de Souza Gonccedilalves em coautoria com o professor Walter Ferreira da Silva Junior escreveu Decisotildees cristoloacutegicas dos sete conciacutelios ecumecircni-cos O texto promove uma siacutentese histoacuterica dos debates iniciais realizados em conciacutelios ditos universais no periacuteodo inicial da histoacuteria do Cristianismo Desse modo esse artigo pode ser classificado como parte da teologia histoacuterica

Na interface entre teologia sociologia e religiatildeo o professor Joatildeo Boechat apresenta com base em pesquisas a nova configuraccedilatildeo religiosa brasileira e demonstra como essa configuraccedilatildeo tem sido alterada nas uacuteltimas deacutecadas aleacutem disso analisa como se daacute o tracircnsito religioso na sociedade brasileira ao escrever o artigo Transformaccedilatildeo Religiosa Brasileira e caracteriacutesticas do novo padratildeo religioso

Por fim numa discussatildeo que vincula com muita propriedade Teologia e Muacutesica o professor Theoacutegenes Eugecircnio Figueiredo escreveu o artigo intitulado ldquoNo dia do Senhorrdquo ndash Os atos o evento a autoexpressatildeo Uma breve reflexatildeo sobre as tradiccedilotildees lituacutergicas e sobre os termos liturgia culto e adoraccedilatildeo Nesse artigo satildeo apresentados os nuacutecleos lituacutergicos herdados do cristianismo primitivo aos quais no decorrer dos seacuteculos alguns elementos foram agregados constituindo- se posteriormente em grandes famiacutelias lituacutergicas

Desejamos uma boa leitura Que nossa revista seja um instrumento para a reflexatildeo e a disseminaccedilatildeo da teologia no Brasil

REVISTA TEOLOacuteGICA REVISTA BRASILEIRA DE TEOLOGIARevista do Seminaacuterio Teoloacutegico Batista do Sul do Brasil

Faculdade Batista do Rio de Janeiro Nuacutemero 8 2020

SUMAacuteRIODECISOtildeES CRISTOLOacuteGICAS DOS SETE CONCIacuteLIOS ECUMEcircNICOSCliff Iuri de Souza Gonccedilalves Walter Ferreira da Silva Juacutenior 9

O LIVRO DE JONAS E O ARREPENDIMENTO VERDADEIRO NA BIacuteBLIA E NA ATUALIDADEEvelise Cavalcanti Teresa Akil 23

TRANSFORMACcedilAtildeO RELIGIOSA BRASILEIRA E CARACTERIacuteSTICAS DO NOVO PADRAtildeO RELIGIOSOJoatildeo Boechat 35

AMEacuteM MUacuteLTIPLOS DERIVADOS O MESMO CONCEITO AS DIFERENTES TRADUCcedilOtildeES DE UMA MESMA RAIZ Rawderson Rangel 51

A ANAacuteLISE DO DISCURSO NA INTERPRETACcedilAtildeO BIacuteBLICAThaiacutes de Oliveira Viriacutessimo 63

ldquoNO DIA DO SENHORrdquo ndash OS ATOS O EVENTO A AUTOEXPRESSAtildeO UMA BREVE REFLEXAtildeO SOBRE AS TRADICcedilOtildeES LITUacuteRGICAS E SOBRE OS TER-MOS LITURGIA CULTO E ADORACcedilAtildeOTheoacutegenes Eugecircnio Figueiredo 86

LITURGIA E IDENTIDADE RELIGIOSA NO APOCALIPSE DE JOAtildeOValtair A Miranda 98

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DECISOtildeES CRISTOLOacuteGICAS DOS SETE CONCIacuteLIOS ECUMEcircNICOS

Cliff Iuri de Souza Gonccedilalves1

Walter Ferreira da Silva Juacutenior2

RESUMO A palavra trindade natildeo aparece na Biacuteblia Sagrada mas eacute um tema que norteia

as bases de feacute da Igreja Cristatilde No credo apostoacutelico que foi editado ao longo dos tempos houve vaacuterios acreacutescimos e retiradas de termos sobre quem seria Jesus Deus e o proacuteprio Espiacuterito Santo ateacute chegar agrave forma conhecida atualmen-te Este eacute um dos temas muito trabalhado nos conciacutelios ecumecircnicos entre os seacuteculos IV-VIII e sobre o qual ateacute os dias atuais natildeo existe um consenso A tentativa de definir as trecircs pessoas da Trindade eacute uma tarefa aacuterdua e complexa Este trabalho portanto visa traccedilar um panorama desse recorte da histoacuteria do cristianismo enfatizando as principais decisotildees relacionadas a Cristo De Niceacuteia I (325) a Niceacuteia II (787) satildeo abordadas as principais heresias seus principais fundadores e as respostas dos conciacutelios para cada uma delas com as respectivas conclusotildees dos conciacutelios

Palavras-chave Decisotildees cristoloacutegicas Conciacutelios ecumecircnicos Heresias Trin-dade Histoacuteria do cristianismo

ABSTRACT The word trinity is a concept that does not appear in the Holy Bible but it

is a theme that guides the faith bases of the Christian Church The apostolic creed which has been edited throughout the ages has had several additions and withdrawals from terms about who Jesus God and the Holy Spirit would be until reaching the form known today This is one of the themes that has been widely worked on in the ecumenical councils between the 4th and 8th centuries and which to this day does not have a consensus The attempt to define the three persons of the Trinity is an arduous and complex task This work therefore aims to provide an overview of this section of the history of Christianity emphasizing

1 Bacharel em Engenharia de Petroacuteleo pela Universidade Tiradentes Mestre em Engenharia Quiacutemica pela Universidade Federal de Sergipe e Doutorando em Engenharia Quiacutemica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro Graduando em Teologia pelo Seminaacuterio Teoloacutegico Batista do Sul do Brasil 2 Graduado e Licenciatura em Histoacuteria Poacutes-Graduado em Teologia Atualmente eacute professor no Seminaacuterio Teoloacutegico Batista do Sul do Brasil

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the main decisions related to Christ From Nicaea I (325) to Nicaea II (787) the main heresies their main founders and the councilsrsquo responses to each of them are addressed with the respective council conclusions

Keywords Christological decisions Ecumenical councils Heresies Trinity History of Christianity

INTRODUCcedilAtildeOApoacutes a morte e a ressureiccedilatildeo de Cristo os apoacutestolos possuiacuteam uma grande

missatildeo em suas matildeos o questionamento sobre quem era Jesus Cristo pairava entre os adeptos do novo movimento (mais tarde denominado de cristianismo) e eles precisavam dar respostas Antes mesmo de sua morte Jesus Cristo havia perguntado aos seus disciacutepulos Ὑμεῖς δὲ τίνα με λέγετε εἶναι (ldquoHymeis de tiacutena me leacutegete einairdquo - Vocecircs no entanto quem vocecircs dizem que eu sou) Esta pergunta foi respondida por Pedro Τὸν Χριστὸν τοῦ Θεοῦ (ldquoTon Christon tou Theourdquo - O Cristo de Deus)

Mesmo sendo disciacutepulos para alguns ainda natildeo estava claro quem era Jesus Apoacutes a morte e ressureiccedilatildeo Tomeacute ainda precisou tocar em Jesus para ter certeza de que ali estava o Cristo ressuscitado Trezentos anos depois essa tarefa natildeo tinha ficado mais faacutecil Pelo contraacuterio se aqueles que estiveram com Cristo em carne natildeo haviam percebido como poderiam aqueles que natildeo andaram com Ele somente ouviram falar entender a ideia de Jesus como Deus Ou como Salvador

Portanto desde a fundaccedilatildeo do cristianismo a igreja tem lidado com contro-veacutersias no que diz respeito agrave aceitaccedilatildeo de Cristo como Deus ou como humano Muitas ideias surgiram principalmente entre os seacuteculos IV ndash VIII para tentar sistematizar o estudo da pessoa de Cristo comumente chamado de Cristologia Alguns desses pensamentos que contrastavam com as crenccedilas da igreja embora rotuladas de ldquohereacuteticasrdquo provocaram debates significativos sobre a pessoa de Cristo Esses debates convocados satildeo chamados de conciacutelios3

O primeiro conciacutelio da igreja eacute o mencionado no capiacutetulo 15 de Atos dos Apoacutestolos onde Lucas relata o Conciacutelio de Jerusaleacutem em 50 dC liderado por Tiago com o objetivo de discutir sobre a conversatildeo dos judeus ao cristianismo e a difusatildeo da Palavra aos gentios4 Depois apareceu a ameaccedila do gnosticismo

3 DIEgraveGUE Ricardo Christological controversies of the first four ecumenical councils B A Leavell College June 27 20144 KELLY Joseph F The Ecumenical Councils of the Catholic Church (Collegeville Minnesota Liturgical Press 2009)

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e de outras doutrinas semelhantes no seacuteculo III quando Cipriano era bispo de Cartago foi debatida a questatildeo da readmissatildeo dos que tinham caiacutedo5

Um fator limitante para que as discussotildees prosseguissem era a disponibili-dade dos envolvidos para isso pois muitos deles estavam sendo perseguidos ou fugindo Com o fim da perseguiccedilatildeo promovido por Constantino no iniacutecio do seacuteculo IV houve mais seguranccedila e liberdade para prosseguir o debate de controveacutersias teoloacutegicas Ideias controversas dentro do impeacuterio poderiam dividi- lo e Constantino natildeo queria ameaccedilar a unidade do impeacuterio Assim o primeiro conciacutelio ecumecircnico foi convocado6

Sete conciacutelios ecumecircnicos foram chamados no total entre os seacuteculos IV-VIII Dentre eles os quatro primeiros destacam-se por sua autoridade doutrinaacuteria e por sua importacircncia histoacuterica Niceacuteia I e Constantinopla I lanccedilam base para as questotildees da trindade enquanto Eacutefeso e Calcedocircnia tratam com mais afinco a questatildeo da encarnaccedilatildeo7

1 NICEacuteIA (325)O Primeiro Conciacutelio Ecumecircnico foi convocado pelo Imperador Constantino

o Grande em 325 em 20 de maio O Conselho reuniu-se em Niceacuteia na proviacutencia de Bitiacutenia na Aacutesia Menor e foi formalmente aberto pelo proacuteprio Constantino O Conselho aprovou 20 cacircnones incluindo o Credo Niceno o Cacircnon das Escrituras Sagradas (Biacuteblia Sagrada) e estabeleceu a celebraccedilatildeo da Pascha (Paacutescoa)

Aleacutem dessas questotildees a pessoa de Cristo foi debatida nesse conciacutelio A prin-cipal heresia debatida foi o arianismo Aacuterio era padre em Alexandria e no iniacutecio do seacuteculo IV seu paradigma de pensamento cristatildeo estava ganhando forccedila8 Em uma carta escrita a Euseacutebio bispo de Nicomeacutedia em 321 Aacuterio advertiu

[] mas natildeo podemos dar ouvidos nem mesmo pensar em debelar estas heresias sem que nos ameacem com mil mortes Noacutes pensamos e afir-mamos como temos pensado e continuamos a ensinar que o Filho natildeo eacute ingecircnito nem participa absolutamente do ingecircnito nem derivou de alguma substacircncia mas que por sua proacutepria vontade e decisatildeo existiu antes dos tempos e era inteiramente Deus unigecircnito e imutaacutevel Mas antes de ter sido gerado ou criado ou nomeado ou estabelecido ele natildeo

5 GONZAacuteLEZ Justo L Uma Histoacuteria Ilustrada do Cristianismo - Volume 1 Ed Vida Nova6 GONZAacuteLEZ Justo L Op cit 7 ALBERIGO Giuseppe (Ed) Historia de los concilios ecumeacutenicos Siacutegueme 19938 HASBROUCK Ryan The First Four Ecumenical Councils as Ineffective Means to Control the Rise and Spread of Heterodox Christian Ideologies Dept of History University of Colorado 2009

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existia pois ele natildeo era ingecircnito Somos perseguidos porque afirmamos que o Filho tem um iniacutecio enquanto Deus eacute sem iniacutecio9

A premissa fundamental de Aacuterio era que ele deduzia uma concepccedilatildeo da absoluta unidade e transcendecircncia de Deus somente Deus eacute ldquoprinciacutepio natildeo geradordquo e a essecircncia da divindade natildeo pode ser dividida nem ser comunicada a outros mesmo que o que existe tenha sido chamado a ser a partir do nada Um dos slogans mais ceacutelebres e discutidos sobre o Logos consistia precisamente na afirmaccedilatildeo segundo a qual ldquohavia um tempo em que ele natildeo erardquo slogan que comprometia a unicidade de Deus10

Na visatildeo dos anti-arianos eacute da proacutepria natureza do Pai gerar o Filho o Pai nunca foi outro senatildeo o Pai portanto o Filho e o Pai devem ter existido desde toda a eternidade o Pai gerando eternamente o Filho A frase de vital impor-tacircncia na resposta ortodoxa ao arianismo era ldquode uma substacircncia (homoousios) com o Pairdquo Esta frase afirma que o Filho compartilha o mesmo ser que o Pai e portanto eacute totalmente divino11 Assim nasce o credo Niceno que combatia as principais heresias arianas aleacutem de definir questotildees cristoloacutegicas

Conforme a tradiccedilatildeo dos Evangelhos e dos Apoacutestolos noacutes cremos em um soacute Deus Pai todo poderoso autor criador e ordenador providente do universo de quem todas as coisas adquirem existecircncia E num soacute Senhor Jesus Cristo seu filho Deus unigecircnito mediante o qual tudo existe o qual foi gerado pelo pai antes de todas as eacutepocas Deus de Deus tudo de tudo uacutenico de uacutenico completo de completo rei de rei senhor de senhor [] e se algueacutem disser que o Filho eacute uma criatura como qualquer outra ou uma prole como qualquer outra ou uma obra como qualquer outra seja anaacutetema12

Portanto atraveacutes desse conciacutelio fica decidido que Jesus eacute Deus verdadeiro com a mesma essecircncia (consubstancial) Assim trecircs foram as decisotildees do con-ciacutelio a primeira ediccedilatildeo do credo niceno o termo homoousios (ομοούσιος) e a condenaccedilatildeo de Aacuterio A carta que condena Aacuterio e seus disciacutepulos satildeo bem claras ao anatematizar suas opiniotildees classificando-as como blasfemas e dementes13

Examinou-se de iniacutecio perante Constantino nosso soberano mui amado de Deus a impiedade e irregularidade de Aacuterio e de seus disciacutepulos De-

9 BETTENSON H Documentos da Igreja Cristatilde Carta de Aacuterio a Euseacutebio bispo de Nicomeacutedia (c321) ASTE Satildeo Paulo 2011 10 ALBERIGO Giuseppe Op Cit 11 DAVIS Leo Donald The first seven ecumenical councils (325-787) Their History and Theology Collegeville Minnesota The Liturgical Press 198312 BETTENSON H Op cit O credo de dedicaccedilatildeo (341) ndash Atanaacutesio 13 SCHMELING Gaylin R The Christology of the Seven Ecumenical Councils

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cidiu-se por unanimidade que devem ser anatematizadas suas opiniotildees iacutempias e todas as suas afirmaccedilotildees e expressotildees blasfematoacuterias tal como estatildeo sendo emitidas e divulgadas tais como ldquoo Filho de Deus eacute do que natildeo eacuterdquo ldquohouve [um tempo] quando natildeo existiardquo ou afirmaccedilatildeo de que Filho de Deus em virtude de seu livre arbiacutetrio eacute capaz do bem e do mal ou de que pode ser chamado de criatura ou de feitura Todas essas afirmaccedilotildees anatematizadas pelo santo Siacutenodo que natildeo tolera declaraccedilotildees tatildeo iacutempias tatildeo dementes e blasfematoacuterias14

Entre os apoiadores de Aacuterio podem-se contar Atanaacutesio bispo de Anazarbus Narciso de Neronias Euseacutebio de Cesareia e Asterius Dos anti-arianos podem ser citados os Grandes Capadoacutecios (Basiacutelio o Grande Gregoacuterio de Nazianzus - irmatildeo mais novo de Basiacutelio e Gregoacuterio de Nissa) e Atanaacutesio de Alexandria sendo este de grande importacircncia para a histoacuteria do conciacutelio que sucedeu o de Niceacuteia15

2 CONSTANTINOPLA (381)Atanaacutesio era secretaacuterio de Alexandre o Bispo de Alexandria Quando Ale-

xandre morreu Atanaacutesio foi eleito bispo de Alexandria Euseacutebio de Nicomeacutedia um dirigente ariano que possuiacutea contato direto com Constantino fez declaraccedilotildees sobre Atanaacutesio as quais levaram esse rei a decretar o exiacutelio de Atanaacutesio em Treacuteveris no Ocidente16

Constantino adoeceu e morreu no ano 337 logo em seguida o trono foi assu-mido por seu filho Constacircncio que revogou todos os exiacutelios e Atanaacutesio retornou a Alexandria A mudanccedila de lideranccedila teve um profundo impacto na controveacutersia ariana pois Constacircncio tambeacutem proacuteximo de Euseacutebio de Nicomeacutedia tornou-o bispo de Constantinopla e simpatizou-se com as visotildees arianas17 Tentando combater o arianismo Apolinaacuterio acabou se excedendo em seu pensamento razatildeo por que sua teoria tornou-se uma heresia

Apolinaacuterio alegou que o nous (mente alma) de Cristo era essencialmente o Logos (divino) em uma forma glorificada e espiritualizada da humanidade (seu corpo)18 Ele acreditava que o Logos havia substituiacutedo a alma de Jesus Por ter uma ideia opressiva da natureza divina de Jesus Apolinaacuterio cancelou a natureza

14 BETTENSON H Op cit Carta do Siacutenodo de Niceacuteia (325) ndash Condenaccedilatildeo de Aacuterio15 DIEgraveGUE Ricardo Op cit16 GONZAacuteLEZ Justo L Op cit17 RUBENSTEIN Richard When Jesus Became God The Struggle to Define Christianity during the Last Days of Rome Orlando Harcourt Inc 200018 ANDERSON William P A Journey through Christian Theology Minneapolis MN Fortress Press 2nd edition 2010

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humana de Jesus19 Isso se chama Monofisismo do grego monos ldquoapenas umardquo e physis ldquonaturezardquo e eacute a crenccedila de que como resultado da encarnaccedilatildeo a huma-nidade de Jesus foi tatildeo infundida por Sua divindade que Ele tinha apenas uma natureza divina20 Estava formado o palco para o segundo conciacutelio ecumecircnico

Atanaacutesio foi um dos maiores apologista de Cristo durante o conciacutelio de Constantinopla Para combater o apolinarismo ele argumentou que Jesus era simultaneamente homem e Deus A fim de evidenciar sua posiccedilatildeo mostrou que foi a encarnaccedilatildeo que permitiu que Jesus cumprisse Seu papel pretendido na Terra Colocando seu argumento em termos negativos Atanaacutesio estaria dizendo que se Jesus natildeo tivesse nascido de uma mulher e portanto habitado um corpo humano e vivido uma vida humana Ele natildeo poderia ter concedido salvaccedilatildeo agrave humanidade atraveacutes de Sua morte21

No comeccedilo de seus discursos Atanaacutesio natildeo usou muito o homoousios niceno mas gradualmente viu toda a implicaccedilatildeo desse conceito e se tornou seu defen-sor mais resoluto A semelhanccedila e a unidade do Pai e da Palavra natildeo podem consistir apenas em harmonia e concordacircncia de mente e vontade mas devem respeitar a essecircncia (ουσία) A divindade do Pai eacute idecircntica agrave divindade do Logos O Logos eacute diferente do Pai porque Ele veio do Pai mas como Deus o Logos e o Pai satildeo um e o mesmo O que eacute dito do Pai eacute dito do Filho exceto que o Filho natildeo eacute chamado Pai Pode-se dizer que os seres humanos satildeo homoousioi porque compartilham a natureza humana mas natildeo podem possuir uma mesma substacircncia (υπόστασις) idecircntica22

Esse eacute o ponto para o qual o credo foi direcionado a palavra Deus conota precisamente a mesma verdade quando vocecirc fala de Deus o Pai como acontece quando vocecirc fala de Deus o Filho Conota a mesma verdade Se vocecirc contempla o Pai que eacute uma apresentaccedilatildeo distinta da divindade obteacutem uma visatildeo mental do uacutenico Deus verdadeiro Se vocecirc contempla o Filho ou o Espiacuterito obteacutem uma visatildeo do mesmo Deus embora a apresentaccedilatildeo seja diferente a realidade eacute idecircnticardquo23

Creio em um soacute Deus Pai Todo-Poderoso criador do ceacuteu e da terra de todas as coisas visiacuteveis e invisiacuteveis Creio em um soacute Senhor Jesus Cristo

19 BELLITTO Christopher M The General Councils A History of the Twenty-One Church Councils from Nicaea to Vatican II Mahwah NJ Paulist Press 200220 JOHNSON Douglas W The Great Jesus Debates 4 Early Church Battles about the Person and Work of Jesus Saint Louis MO Concordia Publishing House 200521 HASBROUCK Ryan Op cit 22 DAVIS Leo Donald Op cit23 DAVIS Leo Donald Op cit

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Filho Unigecircnito de Deus nascido do Pai antes de todos os seacuteculos Deus de Deus luz da luz Deus verdadeiro de Deus verdadeiro gerado natildeo criado consubstancial ao Pai Por ele todas as coisas foram feitas E por noacutes homens e para nossa salvaccedilatildeo desceu dos ceacuteus e se encarnou pelo Espiacuterito Santo no seio da Virgem Maria e se fez homem

A foacutermula proposta por Atanaacutesio resolveu temporariamente o dilema cris-toloacutegico que atormentava a igreja primitiva No entanto a maacute interpretaccedilatildeo do credo em uma capacidade diferente logo criou mais inquietaccedilatildeo e a necessidade de outro conselho ecumecircnico

3 EacuteFESO (431)Mesmo depois de Constantinopla I as questotildees voltaram a aparecer Como

poderia Jesus ser homem e Deus ao mesmo tempo Quais eram as implicaccedilotildees dessa afirmaccedilatildeo para Maria Era Jesus humano em algumas situaccedilotildees e Deus em outras Seria Maria matildee apenas da parte humana ou tambeacutem da parte divina Como fazer essa distinccedilatildeo24

O proacuteximo episoacutedio das controveacutersias cristoloacutegicas ocorreu por intermeacutedio de Nestoacuterio um partidaacuterio da escola de Antioquia que se tornou patriarca de Constantinopla em 428 Pelo fato de essa cidade ter sido declarada a capital do Impeacuterio Oriental Antioquia e Alexandria se tornaram rivais Cirilo que era bispo de Alexandria levantou-se para combater as ideias de Nestoacuterio25

O motivo imediato da controveacutersia foi o termo theotokos que era usado para Maria Theotokos geralmente traduzido por ldquomatildee de Deusrdquo literalmente quer dizer ldquogenitora de Deusrdquo Ao explicar sua oposiccedilatildeo a esse termo Nestoacuterio dizia que Deus em Jesus Cristo teria se unido a um ser humano Como Deus eacute uma pessoa e o ser humano eacute outra em Cristo devem estar presentes natildeo soacute duas naturezas mas tambeacutem duas pessoas O que nasceu de Maria foi a pessoa e natureza humana e natildeo a divina Por isso Maria eacute Christotokos (genitora de Cristo) e natildeo theotokos (genitora de Deus)26

Cirilo insistiu na unidade do divino e do humano a ponto de poder dizer que o Verbo sofreu por noacutes natildeo porque o divino sofreu (uma impossibilidade) mas que o divino e o humano se completaram na mesma pessoa27 As duas naturezas

24 BELLITTO Christopher M Histoacuteria dos 21 conciacutelios da Igreja de Niceacuteia ao Vaticano II Traduccedilatildeo de Claacuteudio Queiroz de Godoy Satildeo Paulo Loyola 201025 GONZAacuteLEZ Justo L Op cit26 GONZAacuteLEZ Justo L Op cit27 KELLY Joseph F

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que foram unidas a fim de formarem a verdadeira unidade (uniatildeo hipostaacutetica) eram diferentes mas de ambas houve um soacute Cristo e um soacute Filho Eacute nesse sentido que Cristo nasceu na expressatildeo biacuteblica da carne de mulher embora existisse e fosse gerado pelo Pai antes de todos os seacuteculos28

Cirilo escreveu doze anaacutetemas e enviou a Constantinopla juntamente com uma extensa carta que expunha sua doutrina Dentre os principais pontos eacute interessante ressaltar os pontos um e dois que falam sobre Maria e sobre a uniatildeo hipostaacutetica

Se algueacutem natildeo confessar que o Emanuel eacute verdadeiro Deus e que portan-to a Santa Virgem eacute Theotoacutekos porquanto deu agrave luz segunda a carne ao Verbo de Deus feito carne seja anaacutetema Se algueacutem natildeo confessar que o Verbo de Deus Pai estava unido pessoalmente [kathrsquohypoacutestasin] agrave carne sendo com ela propriamente um soacute Cristo ou seja um soacute e mesmo Deus e homem ao mesmo tempo seja anaacutetema29

Enquanto isso Nestoacuterio foi deposto e enviado a um mosteiro de Antioquia Mais tarde ele foi transferido para a distante cidade de Petra e por fim a um oaacutesis no deserto da Liacutebia onde passou o resto de seus dias30

4 CALCEDOcircNIA (451)Apoacutes o Conciacutelio de Eacutefeso o debate sobre as duas naturezas de Jesus estava

em andamento Eacute importante lembrar que com a Escola Alexandrina liderada por Cirilo a uniatildeo foi feita de tal maneira que o Logos substituiu a alma e portanto a divindade de Jesus submergiu agrave sua humanidade No entanto para a Escola de Antioquia a ldquouniatildeordquo foi feita com a distinccedilatildeo de ambas as naturezas que permaneceram separadas31

A controveacutersia cristoloacutegica de Eacutefeso culminou com a condenaccedilatildeo de Nestoacuterio e o seu envio para o exiacutelio No entanto quando Dioacutescoro substituiu Cirilo no patriarcado em Alexandria em 444 um novo embate estava para surgir Agora a heresia era liderada por Ecircutico um monge que morava em Constantinopla Os ideais pregados por Ecircutico eram apoiados por Dioacutescoro o que dava ao monge certa ousadia e arrogacircncia para falar Mal sabia ele que as intenccedilotildees de Dioacutescoro eram poliacuteticas ele esperava que Ecircutico fosse condenado no conciacutelio para poder ter uma causa a defender contra Flaviano o novo patriarca de Constantinopla32

28 BETTENSON H Op cit Exposiccedilatildeo de Cirilo29 BETTENSON H Op cit Anaacutetemas de Cirilo de Alexandria30 GONZAacuteLEZ Justo L Op cit31 BOKENKOTTER Thomas A Concise History of the Catholic Church New York DoubleDay 200432 GONZAacuteLEZ Justo L Op cit

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Dedicado agrave teologia de Cirilo e altamente ortodoxo Ecircutico comeccedilou a ensinar que antes da Encarnaccedilatildeo Cristo era de duas naturezas mas depois havia um Cristo um Filho um Senhor em uma hipoacutestase Ele repudiou a existecircncia de duas naturezas apoacutes a Encarnaccedilatildeo em oposiccedilatildeo agraves Escrituras e ao ensino dos Pais33

ldquoEu adorordquo ele insistiu ldquouma natureza a de Deus que se fez carne e se tornou homemrdquo No entanto admitiu que Cristo nasceu da Virgem portanto era subs-tancial conosco (humanos) e era Deus perfeito e homem perfeito No entanto a carne de Cristo natildeo era na opiniatildeo de Ecircutico consubstancial agrave carne humana comum mas reconheceu que a humanidade de Cristo era plena sem falta de uma alma racional como era para os apolinaristas A humanidade de Cristo tambeacutem natildeo era uma mera aparecircncia como era para os docetistas tampouco a Palavra e a carne foram fundidas em uma natureza mista Ainda assim ele repetiu obstinadamente que Cristo era de duas naturezas antes da Encarnaccedilatildeo e de apenas uma depois da encarnaccedilatildeo34

Leatildeo o grande foi o principal defensor da ortodoxia no conciacutelio de Calcedocirc-nia e sua defesa gerou o Tomo de Leatildeo A definiccedilatildeo desse conciacutelio portanto pode ser vista como proposiccedilotildees apologeacuteticas aos pensamentos do eutiquianismo

Fieacuteis aos santos pais todos noacutes perfeitamente unanimes ensinamos que se deve confessar um soacute e mesmo Filho nosso Senhor Jesus Cristo perfei-to quanto agrave divindade e perfeito quanto agrave humanidade verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem constando de alma racional e de corpo consubstancial [homooysios] ao Pai segundo a divindade e consubstan-cial a noacutes segundo a humanidade ldquoem todas as coisas semelhante a noacutes excetuando o pecadordquo gerado segundo a divindade antes dos seacuteculos pelo Pai e segundo a humanidade por noacutes e para nossa salvaccedilatildeo gerado da Virgem Maria matildee de Deus [Theotoacutekos] Um soacute e mesmo Cristo Filho Senhor Unigecircnito que se deve confessar em duas naturezas inconfundiacuteveis e imutaacuteveis conseparaacuteveis e indivisiacuteveis A distinccedilatildeo de naturezas de modo algum eacute anulada pela uniatildeo mas pelo contraacuterio as propriedades de cada natureza permanecem intactas concorrendo para formar uma soacute pessoa e subsistecircncia [hypoacutestasis] natildeo dividido ou separado em duas pessoas mas um soacute e mesmo Filho Unigecircnito Deus Verbo Jesus Cristo Senhor conforme os profetas outrora a seu respeito testemunharam e o mesmo Jesus Cristo nos ensinou e o credo dos pais nos transmitiu 35

33 DAVIS Leo Donald Op cit34 DAVIS Leo Donald Op cit35 BETTENSON H Op cit A definiccedilatildeo de Calcedocircnia (451)

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5 CONSTANTINOPLA II (553)O periacuteodo poacutes Calcedocircnia foi muito parecido com o de Niceacuteia em ambos os

conciacutelios uma soluccedilatildeo basicamente ocidental para um problema oriental havia sido introduzida na dieta teoloacutegica do Oriente Depois dos dois conciacutelios o Oriente empreendeu muito tempo e esforccedilo para digerir e assimilar tudo o que ficou decidido No caso de Niceacuteia o mundo romano gradualmente aceitou seu credo O arianismo permaneceu firme entre as tribos alematildes por um tempo mas muito lentamente sucumbiu a Niceacuteia No caso de Eacutefeso e Calcedocircnia seccedilotildees do mundo romano e aleacutem entraram em cisma em vez de aceitar suas decisotildees e assim continuam ateacute os nossos dias O conciacutelio de Constantinopla II foi um esforccedilo para mostrar aos (ateacute entatildeo) monofisitas cismaacuteticos que Calcedocircnia realmente preservava os valores teoloacutegicos36

Quando Justino morreu em 527 seu sobrinho Justiniano assumiu o impeacuterio Bizantino com o principal ideal de unir o impeacuterio No entanto ele precisaria reunificar uma igreja dividida pela questatildeo cristoloacutegica Justiniano achava que o conciacutelio de Calcedocircnia tinha se pronunciado corretamente com respeito agraves naturezas de Cristo mas ao mesmo tempo percebia que os monofisitas mais moderados tinham razatildeo ao apontar para os perigos que essa doutrina poderia trazer consigo 37

Assim o conciacutelio foi solicitado e aconteceu em 5 de maio de 553 no grande salatildeo anexo ao palaacutecio patriarcal em Constantinopla Estavam presentes os representantes do patriarca de Jerusaleacutem todos os 151 a 168 bispos incluindo seis a nove da Aacutefrica38

O objetivo de convocar o conciacutelio de Constantinopla II foi o de condenar as obras de trecircs homens a saber Teodoro de Mopsueacutestia Teodoreto de Cyr e Ibas de Edessa que tiveram suas declaraccedilotildees individuais agrupadas e chamadas de ldquotrecircs capiacutetulosrdquo Eles foram acusados de simpatizarem com o nestorianismo e de favorecerem o monofisismo ao afirmar que Jesus tinha uma soacute natureza o divino sobrepujando o humano Os ldquocapiacutetulosrdquo foram condenados nesse conciacutelio 39

Se algueacutem natildeo reconhece a uacutenica natureza ou substacircncia (oysia) do Pai Filho e Espiacuterito Santo sua uacutenica virtude e poder uma Trindade consubs-tancial seja anaacutetema Porque existe um soacute Deus e Pai do qual procedem

36 DAVIS Leo Donald Op cit37 GONZAacuteLEZ Justo L Op cit38 DAVIS Leo Donald Op cit39 BELLITTO Christopher M Op cit

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todas as coisas e um soacute Senhor Jesus Cristo atraveacutes do qual satildeo todas as cosias e um soacute Espiacuterito Santo no qual estatildeo todas as coisas 40

Portanto o Conciacutelio de Constantinopla II esclareceu mais uma vez os ensi-namentos da Igreja sobre as duas naturezas de Jesus unidas hipostaticamente em uma soacute pessoa Os padres natildeo soacute condenaram os hereacuteticos e as heresias como tambeacutem os que simpatizavam com elas 41

6 CONSTANTINOPLA III (680-681)Em 7 de novembro de 680 o conciacutelio de Constantinopla III abriu em uma

grande sala abobadada - o Trullus - no palaacutecio imperial com apenas quarenta e trecircs bispos presentes O proacuteprio imperador abriu o conciacutelio e presidiu as onze primeiras sessotildees O conciacutelio teve dezoito sessotildees separadas por longos inter-valos ateacute 16 de setembro de 68142

Os legados papais comeccedilaram exigindo que o clero de Constantinopla expli-casse seus ensinamentos sobre monoenergismo e monotelismo A convite do imperador Jorge de Constantinopla e Macaacuterio de Antioquia responderam que eles ensinavam apenas doutrinas definidas pelos conselhos Seguiu-se a leitura dos atos dos Conciacutelios de Eacutefeso Calcedocircnia e Constantinopla II43

O patriarca Seacutergio de Constantinopla depois de tentar sem sucesso vaacuterias maneiras de aproximar-se dos monofisitas propocircs a doutrina chamada de ldquomo-notelismordquo Essa palavra vem das raiacutezes gregas mono (um) e thelema (vontade) O que Seacutergio propunha eacute que em Cristo ao mesmo tempo em que havia duas naturezas a divina e a humana como o concilio de Calcedocircnia declarara havia uma soacute vontade Ao que parece o que Seacutergio queria dizer era que em Cristo natildeo havia outra vontade aleacutem da divina Quando perguntaram ao papa Honoacuterio o que ele pensava da foacutermula de Seacutergio o papa a aprovou Poreacutem a oposiccedilatildeo em vaacuterias regiotildees do Impeacuterio natildeo demorou a se manifestar 44

O teoacutelogo que mais se distinguiu nesse sentido foi Maacuteximo de Crisoacutepolis que eacute conhecido por Maacuteximo ldquoo Confessorrdquo Mais tarde em 648 a oposiccedilatildeo ao monotelismo chegou a tal ponto que o imperador Constante II proibiu qualquer discussatildeo sobre se em Cristo havia uma ou duas vontades Quando o imperador promulgou essa proibiccedilatildeo o Impeacuterio tinha perdido o interesse de se aproximar

40 BETTENSON H Op cit Os ldquotrecircs capiacutetulosrdquo ndash Os cacircnones do segundo conciacutelio de Constantinopla (553)41 BELLITTO Christopher M Op cit42 DAVIS Leo Donald Op cit43 GONZAacuteLEZ Justo L Op cit44 GONZAacuteLEZ Justo L Op cit

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dos monofisitas Siacuteria e Egito as regiotildees do Impeacuterio onde o monofisismo tinha a maior parte dos seus adeptos haviam sido conquistadas pouco antes pelos aacuterabes Tal fato significaria que a partir de entatildeo a corte de Constantinopla em vez de se preocupar com a boa vontade dos monofisitas de Egito e Siacuteria tinha de melhorar as suas relaccedilotildees com os cristatildeos calcedonenses que eram a maioria tanto nos territoacuterios que ainda pertenciam ao Impeacuterio como no Ocidente45

Em consequecircncia o sexto conciacutelio ecumecircnico que se reuniu em Constanti-nopla em 680 e 681 condenou o monotelismo e reafirmou a Definiccedilatildeo de feacute de Calcedocircnia Entre os monotelitas condenados especificamente pelo conciacutelio es-tava o papa Honoacuterio O caso de um papa condenado nominalmente como herege por um conciacutelio ecumecircnico foi uma das dificuldades que os catoacutelicos tiveram de enfrentar quando no seacuteculo XIX conseguiram que o conciacutelio Vaticano I promulgasse a infalibilidade papal46

7 NICEacuteIA II (787)A uacuteltima grande controveacutersia que atingiu a igreja durante o periacuteodo aqui

estudado (ateacute o seacuteculo VIII) questionava o uso de imagens no culto puacuteblico A igreja cristatilde antiga parecia natildeo se opor ao uso delas para decoraccedilatildeo como imagens alusivas a episoacutedios da Biacuteblia No entanto quanto mais pagatildeos se con-vertiam mais os liacutederes temiam que as imagens levassem agrave praacutetica da idolatria Alguns no entanto reforccedilavam o valor das imagens como ldquolivros iletradosrdquo uma vez que muitos natildeo sabiam ler Assim surgiram dois partidos que receberam o nome de ldquoiconoclastasrdquo (destruidores de imagens) e ldquoiconodulosrdquo (adoradores de imagens) 47

Os iconoclastas se baseavam em passagens biacuteblicas que proiacutebem a idolatria como Ecircxodo 204-5 Os iconodulos por sua vez relacionaram a discussatildeo com as controveacutersias cristoloacutegicas dos seacuteculos anteriores

A razatildeo pela qual eacute possiacutevel representar os misteacuterios divinos atraveacutes de imagens eacute que em Cristo o proacuteprio Deus nos deu sua imagem Natildeo deixar representar a Cristo equivaleria a negar a sua humanidade Se Cristo foi homem deve ser possiacutevel representaacute-lo assim como qualquer outro ho-mem pode ser representado Aleacutem disso o primeiro criador das imagens foi o proacuteprio Deus ao criar a humanidade agrave sua imagem48

45 GONZAacuteLEZ Justo L Op cit46 BELLITTO Christopher M Op cit47 GONZAacuteLEZ Justo L Op cit48 GONZAacuteLEZ Justo L Op cit

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Embora os bispos tivessem sido notavelmente longiacutenquos em seus debates eles foram bastante concisos em seu decreto Eles disseram que Cristo nos livrou da loucura idoacutelatra e sempre continua sustentando Sua Igreja mas alguns mes-mo os sacerdotes se desviaram deixando de ldquodistinguir entre santo e profano estilizando as imagens de Nosso Senhor e de Seus santos da mesma maneira como as estaacutetuas dos iacutedolos diaboacutelicosrdquo Os bispos acrescentaram a aceitaccedilatildeo dos seis conciacutelios ecumecircnicos anteriores especialmente o que se encontrava ldquona ilustre metroacutepole de Niceacuteiardquo49

Em seguida eles mantiveram inalteradas todas as tradiccedilotildees eclesiaacutesticas que foram transmitidas por escrito ou verbalmente uma das quais eacute a realizaccedilatildeo de representaccedilotildees pictoacutericas agradaacuteveis agrave histoacuteria da pregaccedilatildeo dos Evangelhos uma tradiccedilatildeo uacutetil em muitos aspectos mas especialmente em que a encarnaccedilatildeo da Palavra de Deus eacute mostrada como real e natildeo meramente fantaacutestica50 Em resumo o uso das imagens foi restaurado para veneraccedilatildeo (dulia) mas natildeo para adoraccedilatildeo (latria)51

CONSIDERACcedilOtildeES FINAISDiante de inuacutemeras controveacutersias e debates eacute interessante perceber como cada

decisatildeo tomada nos conciacutelios ajudou a entender temas cristoloacutegicos Percebe-se que desde o iniacutecio existe uma tentativa de explicar e sistematizar a natureza de Cristo de definir em quais momentos seu lado humano eou divino esteve em accedilatildeo As heresias debatidas foram importantes para que as respostas levantadas pela Igreja formassem ou pelo menos ajudassem a formar o pensamento que temos hoje sobre quem eacute Cristo e sua natureza Eacute inevitaacutevel que temas adja-centes aparecessem como a proacutepria natureza de Maria e a adoraccedilatildeo a imagens Estudar esse recorte da histoacuteria do cristianismo eacute portanto fundamental para compreender o pensamento da Igreja daqueles seacuteculos e qual a visatildeo que se tinha sobre quem eacute Jesus

O exerciacutecio mental que pode aqui ser realizado eacute o de comparar as mentali-dades e tentar perceber se muita coisa mudou em relaccedilatildeo aos nossos dias Outro exerciacutecio que pode ser feito eacute avaliar o quanto esse conjunto de pensamento do seacuteculo VIII nos influencia hoje

49 BELLITTO Christopher M Op cit50 BELLITTO Christopher M Op cit51 WILLIAMS Terri Cronologia da Histoacuteria Eclesiaacutestica em graacuteficos e mapas Satildeo Paulo Vida Nova 1993

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O LIVRO DE JONAS E O ARREPENDIMENTO VERDADEIRO NA BIacuteBLIA E NA ATUALIDADE

Evelise Cavalcanti52

Teresa Akil53

RESUMO O presente artigo busca analisar a relaccedilatildeo de instabilidade do homem com

o divino atraveacutes da obediecircncia e desobediecircncia desse homem em relaccedilatildeo a Deus bem como ao pecado Analisa-se o reflexo primordial de desobediecircncia a Deus na parte introdutoacuteria do Livro de Jonas contemplando o pecado em si e o relacionamento de Jonas com Deus para que seja pautada e estruturada a misericoacuterdia divina na vida desse profeta A partir dessa concepccedilatildeo busca-se refletir acerca da instabilidade do homem em relaccedilatildeo a Deus na Biacuteblia e na atualidade para traccedilar paracircmetros para que seja aprofundado o arrependimento verdadeiro do ser humano a partir da anaacutelise de Jonas e Davi

Palavras-chave Livro de Jonas Desobediecircncia ao divino Duacutevida Culpa Arrependimento verdadeiro

ABSTRACTThis scientific article seeks to analyze the relationship of manrsquos instability

with the divine through manrsquos obedience and disobedience in relation to God as well as sin In this study the primary reflection of disobedience to God is analyzed in the introductory part of the Book of Jonah contemplating sin itself and Jonahrsquos relationship with God so that divine mercy in Jonah is guided and structured From this conception we seek to reflect on the instability of man in relation to God in the Bible and nowadays to outline parameters so that the true repentance of the human being is deepened based on the analysis of Jonas and David

Keywords Book of Jonah Disobedience to the divine Doubt Guilt True repentance

52 Graduada em Direito (Unifeso)) Graduada em Teologia (Faceten) Poacutes-graduada em Exegese e Interpretaccedilatildeo da Biacuteblia (Fabat) em Histoacuteria de Israel (Kennedy) em Direito Processual Civil (Unican) 53 Doutora em Teologia (PUC-Rio) Mestre em Teologia Biacuteblica (STBSB) Graduada em Teologia (Faculdade Batista do Paranaacute) e em Comunicaccedilatildeo Social (Universidade Estaacutecio de Saacute) Docente das disciplinas da aacuterea biacuteblica (Antigo Testamento) e Exegese coordenadora do Grupo de Estudo e Pesquisa Biacuteblica nas Tradiccedilotildees de Israel

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INTRODUCcedilAtildeO A histoacuteria de Jonas tem sido contada desde a antiguidade Natildeo eacute incomum

encontrarmos em classes infantis ou nas mais altas patentes teoloacutegicas discus-sotildees calorosas sobre as peculiaridades desse personagem tatildeo conhecido

Vaacuterias abordagens tecircm sido temas infindaacuteveis de duacutevidas seria possiacutevel um homem permanecer trecircs dias na barriga de um peixe Seria uma baleia Em que eacutepoca se passou Seria Jonas um profeta desobediente e insensiacutevel Enfim vaacuterias questotildees pertinentes afloram em nosso entendimento

A mais importante e contextualizada questatildeo natildeo se trata da possibilidade material ou emocional da situaccedilatildeo A importacircncia espiritual da histoacuteria tatildeo bem narrada em um dos menores livros da Biacuteblia traz-nos a reflexatildeo sobre a limitaccedilatildeo do homem em qualquer eacutepoca de ser avaliado quanto ao seu verda-deiro arrependimento

A Biacuteblia narra diversos momentos nos mais antigos textos em que os povos inclusive o povo escolhido natildeo conseguiram se manter firmes aos mandamentos de YHWH Em Niacutenive nos parece natildeo ter sido diferente No momento em que a matildeo de Deus mostrou-se pesada o rei se humilha e recebe o perdatildeo poreacutem natildeo mais que uma geraccedilatildeo apoacutes esse mesmo povo se mostra como inimigo mortal de Israel

Haveria acontecido um verdadeiro arrependimento ou o medo e a derrota certa teriam levado os ninivitas a um momentacircneo reconhecimento de seu erro e a uma consequente submissatildeo forccedilada pela situaccedilatildeo Para as consideraccedilotildees e conclusotildees precisamos entender um pouco desse povo e de todo contexto que o envolve

1 JONAS EacutePOCA HISTOacuteRIA AUTORIAJonas eacute descrito de formas diferentes de acordo com a visatildeo de teoacutelogos

diversos Bazioli (2011 p 3) por exemplo descreve Jonas como ldquoo mais estra-nho dos profetasrdquo mas com uma mensagem que produzira efeitos ateacute mesmo naqueles que natildeo o ouviram diretamente Para o autor Jonas fora o mais bem sucedido pregador com um sermatildeo que impactava apenas por meio de palavras Na Biacuteblia conforme enunciado por Alencar (2010) o livro de Jonas faz parte da coleccedilatildeo de livros profeacuteticos situando-se entre os livros de Abdias e Miqueias

Natildeo haacute um consenso absoluto acerca da autoria do livro de Jonas uma vez que o livro natildeo declara o nome do autor Entretanto haacute a tese bastante aceita e estabelecida nos estudos de Erthal et al (2002 p 35) de que ldquoembora o livro

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natildeo declare o nome do autor seguramente foi o proacuteprio Jonas quem o escreveurdquo Para os autores Jonas tem o nome que significa ldquopombordquo sendo apresentado como filho de Amitai Nascera em Gate-Efer cidade situada proacutexima a Nazareacute

Alencar (2010 p 7) por sua vez aponta que eacute impossiacutevel precisar de quem fora a autoria do livro de Jonas visto que na eacutepoca um dos grupos responsaacuteveis pela educaccedilatildeo eram os sacerdotes cuja obrigaccedilatildeo consistia em ensinar ao povo a instruccedilatildeo como uma lei relacionada ao culto e sacrifiacutecio ldquoO autor do livro de Jonas pode ter sua origem entre os saacutebios de Israel pois conhecia bem a tradiccedilatildeo de seu povo bem como a de outros povos Ele devia manter contato com estrangeiros e os considerava com bons olhosrdquo

Para que seja possiacutevel compreender e aprofundar conhecimentos acerca de Jonas e do livro que recebeu o seu nome torna-se indispensaacutevel refletir acerca do contexto histoacuterico do mesmo Dasilva (2003) leciona que o livro de Jonas fora escrito um seacuteculo antes de Jesus proferir as palavras registradas em Mateus 1239-40 no relato de como Deus enviara um profeta judeu para levar sua mensagem de salvaccedilatildeo para uma naccedilatildeo gentiacutelica a Assiacuteria com a capital Niacutenive que possuiacutea uma populaccedilatildeo de mais de 120000 homens O autor ainda complementa que

A histoacuteria de Jonas tatildeo conhecida pela menor crianccedila da Escola Domi-nical eacute geralmente contextualizada e limitada ao milagre do profeta subsistir dentro do ventre de um grande peixe por trecircs dias e trecircs noites ou ao fator de sua desobediecircncia Este livro no entanto natildeo tem como prioridade mostrar a Jonas o peixe sua pregaccedilatildeo ou o povo de Niacutenive Ele guarda na sua linda histoacuteria revelaccedilotildees sobre a pessoa e caraacuteter de Deus O livro foi escrito para revelar um Deus que estaacute sobre noacutes que cuida que orienta que ama e que caminha conosco (DASILVA 2003 p 1)

Fabio (1991) aponta que Jonas vivera em um periacuteodo no qual Israel corria gra-ve risco de ser extinto como naccedilatildeo O autor aponta que em II Reis 1427 ldquoAinda natildeo falara o Senhor em apagar o nome do Israel de debaixo do ceacuteurdquo mas estava perto de tomar tal decisatildeo Na eacutepoca a pobreza era uma marca da sociedade e natildeo havia nem um homem escravizado nem um homem livre As classes sociais estavam praticamente unificadas com o desaparecimento completo da classe meacutedia e a diminuiccedilatildeo significativas da riqueza privada

Paradoxalmente era tremenda a expansatildeo militar e Israel atingira um niacutevel bastante estaacutevel de seguranccedila nacional Percebemos isso em II Reis 142528 atraveacutes das palavras ldquorestabeleceurdquo e ldquoconquistourdquo presentes no

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texto Estaacute dito ali que Jeroboatildeo II restabelece as fronteiras e conquista espaccedilos pela via das forccedilas armadas enquanto isso a anguacutestia social do povo era horriacutevel Natildeo havia o menor vislumbre ou esperanccedila de mu-danccedilas radicais pois natildeo se contava com ningueacutem que socorresse Israel (II Reis 1426) Em consequecircncia de tal situaccedilatildeo Jonas se transformou num profeta extremamente politizado por conseguinte ideologizado Ele tinha consciecircncia por exemplo de que nos seus dias a grande ameaccedila para Israel era a Assiacuteria cuja capital era Niacutenive (FABIO 1991 p 4-5)

Ora Jonas natildeo vivera e sua histoacuteria natildeo fora contada em um periacuteodo de prosperidade Niacutenive era considerada uma grande ameaccedila para Israel assim como a Assiacuteria em geral Erthal et al (2002) apontam que o tema do livro de Jonas concentra-se na misericoacuterdia divina Jonas eacute chamado por Deus para advertir Niacutenive sobre os fatos que seriam consumados como consequecircncia de seus pecados o principal propoacutesito de Deus nesse sentido era demonstrar a Israel e agraves naccedilotildees a magnitude da Sua misericoacuterdia e a Sua accedilatildeo atraveacutes da pregaccedilatildeo do arrependimento

Para Alencar (2010) Jonas eacute chamado por Deus para anunciar a conversatildeo na capital Niacutenive que se encontrava fora das fronteiras com Israel um reflexo do nacionalismo exclusivista do povo de Israel no poacutes-exiacutelio fundamentado na concepccedilatildeo de povo eleito e na visatildeo de Jerusaleacutem como o uacutenico lugar onde Deus manifestava-se Trata-se da comunicaccedilatildeo de Deus aleacutem da visatildeo do povo de Jerusaleacutem fazendo uso de Jonas como um instrumento de conversatildeo

Antes de aprofundar conhecimentos acerca da histoacuteria do livro de Jonas tendo-se jaacute abordado acerca da autoria desse livro cumpre aprofundar conhe-cimentos sobre a eacutepoca atribuiacuteda ao mesmo Ainda segundo Alencar (2010) a narrativa do livro de Jonas natildeo oferece nenhuma evidecircncia que possibilite datar o livro A existecircncia de um profeta que vivera sob o nome Jonas no seacuteculo XVIII natildeo representa que o livro tenha sido escrito nessa eacutepoca Para o autor existem elementos que sugerem uma dataccedilatildeo tardia ao livro de Jonas quais sejam

bull Vaacuterias palavras de origem aramaica satildeo observadas na narrativa de Jonas O aramaico tornara-se liacutengua oficial no periacuteodo persa As palavras que designam os marinheiros e o navio (Jonas 1 5) e o decreto do rei de Niacutenive (Jonas 37) advecircm da liacutengua aramaica

bull A histoacuteria de Jonas conforme observado em Jonas (3 7-8) faz alusatildeo aos costumes persas como por exemplo a participaccedilatildeo de animais nos rituais de penitecircncia

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bull Niacutenive era identificada como capital da Assiacuteria no tempo de Jonas de modo que a cidade soacute se tornara importante no templo de Senaqueribe em 704 aC O rei seria tratado como rei da Assiacuteria e natildeo rei de Niacutenive

bull Natildeo haacute influecircncia no livro de Jonas da eacutepoca heleniacutestica do tempo de Ale-xandre Magno e de seus sucessores como tambeacutem natildeo aparecem conflitos com samaritanos nem mesmo questotildees envolvendo casamentos com mulheres estrangeiras

Esses elementos segundo Alencar (2010 p 8) natildeo satildeo suficientes para que se precise a data na qual fora escrito o livro de Jonas entretanto ldquoeacute possiacutevel afirmar que o livro tenha sido escrito no final do seacuteculo IV ou no iniacutecio do seacuteculo III aC no periacuteodo persardquo

Segundo Dasilva (2003) Deus ordenou que Jonas se levantasse e fosse para a grande cidade de Niacutenive Jonas teria dito ldquonatildeordquo a Deus sabendo que a Assiacuteria era uma inimiga terriacutevel de Israel Na verdade ele temia que Niacutenive se arre-pendesse e fosse poupada por Deus da puniccedilatildeo e condenaccedilatildeo iminente Caso Niacutenive caiacutesse Israel de Jonas escaparia de suas investidas e de seus ataques assim convocado por Deus ele fugiu

Erthal et al (2002) apontam que logo que Jonas fugiu tomando um navio para Taacutersis Deus passou a agir mandando forte vento sobre o mar e criando uma grande tempestade Jonas dormia no poratildeo do navio e o capitatildeo perguntou-lhe por qual motivo dormia enquanto o medo e o pavor tomavam conta dos tripu-lantes que clamavam aos deuses pelo livramento O versiacuteculo seis do primeiro capiacutetulo do livro relata que Jonas tambeacutem clama a Deus

Os tripulantes do navio ficaram indignados quando Jonas responde que era hebreu que servia ao Deus do ceacuteu mas que estava fugindo dEle (18- 10) Por causa de sua atitude Jonas foi obrigado a enfrentar as con-sequumlecircncias e acabou por confessar sua transgressatildeo ldquoE ele lhes disse Levantai-me e lanccedilai-me ao mar e o mar se aquietaraacuterdquo (112) Jonas se sentia nesse momento culpado por ter desobedecido a Deus e por colocar a vida da tripulaccedilatildeo em perigo Apanharam Jonas e o lanccedilaram ao mar A tempestade parou milagrosamente (11415) O resultado contrastante nesta situaccedilatildeo foi a conversatildeo da tripulaccedilatildeo ldquoTemeram pois estes ho-mens ao Senhor com grande temor e ofereceram sacrifiacutecios ao Senhor e fizeram votosrdquo (116) (ERTHAL et al 2002 p 37)

O clamor de Jonas apesar de sua rebeldia fora atendido Jonas mostrou-se sincero e temente a Deus pedindo misericoacuterdia divina e livramento ou seja

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que sua vida fosse poupada Deus providenciou um grande peixe para salvar a vida de Jonas deixou-o vivo por trecircs dias dentro do ventre daquele peixe Em Jonas 210 observam-se sete milagres divinos a tempestade a sorte de Jonas a calmaria do mar o grande peixe a sobrevivecircncia de Jonas o peixe conduzido ateacute a praia e o fato de o peixe ter vomitado Jonas em terra seca por ordem divina (FABIO 1991)

Ora a noccedilatildeo principal do livro de Jonas diz respeito justamente agrave misericoacuterdia divina Deus pune na mesma medida em que salva Deus aproxima-se de seus filhos mesmo quando estes fogem desde que se arrependam verdadeiramente Essa eacute a concepccedilatildeo fundamental do livro de Jonas

2 EPISOacuteDIOS QUE DEMONSTRAM A OSCILACcedilAtildeO DA OBE-DIEcircNCIA E DESOBEDIEcircNCIA A DEUS AO LONGO DA ERA BIacute-BLICA

Jonas eacute apenas um exemplo da oscilaccedilatildeo entre a obediecircncia e desobediecircncia a Deus ao longo do percurso biacuteblico Esta parte do estudo relata outros episoacutedios biacuteblicos nos quais se verifica essa oscilaccedilatildeo

Talvez o mais conhecido episoacutedio que elucida tal questatildeo seja o de Gecircnesis quando Deus concedera tudo a Adatildeo menos que ele provasse o fruto da aacutervore do conhecimento do bem e do mal deixando claro que se ele comesse esse fruto certamente morreria (Gecircnesis 2 17) Deus ainda que misericordioso puniu Adatildeo lanccedilando-o para fora do jardim do Eacuteden para lavrar a terra da qual fora tomado (Gecircnesis 3 23)

Esse episoacutedio de Gecircnesis eacute um dos principais exemplos biacuteblicos acerca do arrependimento agrave desobediecircncia diante de Deus Em Romanos 519 tem-se que pela desobediecircncia de um soacute homem muitos foram feitos pecadores assim como pela obediecircncia de um muitos seratildeo constituiacutedos justos

A oscilaccedilatildeo entre a obediecircncia e a desobediecircncia a Deus tambeacutem eacute abordada em Romanos No versiacuteculo 30 do capiacutetulo 11 do livro tem-se que ldquoPois assim como voacutes outrora fostes desobedientes a Deus mas agora alcanccedilastes miseri-coacuterdia pela desobediecircncia delesrdquo Ora Deus natildeo premia os que obedecem apoacutes a desobediecircncia mas sim eacute misericordioso pelo arrependimento genuiacuteno e sincero

3 ATUALIDADE ALGUNS EPISOacuteDIOS EM NOSSA VIDA ATUAL QUE DEMONSTRAM A INSTABILIDADE DO SER HUMANO EM PERMANECER FIEL A DEUS

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O ser humano eacute falho e imperfeito por natureza Entretanto natildeo foi soacute nos tempos biacuteblicos que o homem demonstrou dificuldades em permanecer fiel e obediente a Deus De fato tal instabilidade tem sido observada durante toda a histoacuteria humana e pode ser amplamente observada em nossa conduta na atualidade Esta parte do estudo procura demonstrar e exemplificar esse fato

O primeiro mandamento biacuteblico propotildee que o homem ame a Deus sobre todas as coisas Entretanto observa-se que o ser humano em muito afasta-se de Deus Os constantes estiacutemulos e os desejos de acumular riqueza por parte do ser humano satildeo exemplos de elementos que afastam o homem de Deus Por vezes o homem daacute importacircncia demasiada ao dinheiro colocando-o como prioridade em sua vida acima de Deus ou ainda orando a Deus tatildeo somente pedindo riqueza material e natildeo riqueza espiritual

Ora nem mesmo o primeiro mandamento biacuteblico eacute uma tarefa faacutecil de ser alcanccedilada pelos servos de Deus Como natildeo eacute objeto de ostentaccedilatildeo Deus acaba sendo ldquodeixado de ladordquo pelas pessoas que passam a buscar sobretudo a riqueza material e a estabilidade financeira desalinhando-se dos preceitos e princiacutepios divinos

A principal fonte de instabilidade do homem em relaccedilatildeo agrave fidelidade a Deus satildeo os estiacutemulos presentes em nossa sociedade O dinheiro e a ideia de acuacutemulo da riqueza satildeo apenas alguns fatores que afastam o homem de Deus A sexualidade eacute outro exemplo claro de estiacutemulo que torna o homem infiel e desobediente aos olhos divinos

De fato o sexo tornou-se um produto de consumo na atualidade Consumir e almejaacute-lo de maneira desenfreada e irrestrita eacute caracteriacutestico da sociedade O sexo eacute objeto de desejo nos filmes muacutesicas revistas e amplamente presente no mundo virtual na internet como um todo O homem eacute ludibriado em um mundo que respira sexo natildeo mantendo a integridade sexual almejada por Deus peca constantemente contra a sexualidade cobiccedilando tambeacutem a mulher do proacuteximo

Todos os mandamentos de Deus podem ser colocados como desafios ou obstaacuteculos para que o homem permaneccedila fiel a Ele em diferentes niacuteveis O homem pecador por natureza cria obstaacuteculos em sua conduta diaacuteria caindo constantemente em tentaccedilatildeo de maneira semelhante a Adatildeo que sucumbiu agrave tentaccedilatildeo de contrariar a uacutenica imposiccedilatildeo que lhe fora feita por Deus

A cobiccedila eacute um dos grandes problemas enfrentados pelo homem para manter um relacionamento com Deus Natildeo se refere aqui apenas agrave cobiccedila desenfreada pelo dinheiro e pelo sexo mas tambeacutem pelas coisas alheias Os homens desejam

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o poder e o conseguem por meio do erro e do pecado A televisatildeo por exemplo vende a ideia daquelas vidas perfeitas dos bem sucedidos provocando que o homem cobice os bens e a proacutepria vida de terceiros desconsiderando-se a si proacuteprio e ao seu relacionamento iacutentimo com Deus

Entretanto o homem temente a Deus arrepende-se constantemente Confessa o seu pecado mas volta rapidamente a pecar sucumbindo aos mesmos erros que o fizeram pecar em outro momento novamente almeja o poder o sexo a riqueza financeira Deseja intensamente tudo aquilo que natildeo tem

Para suprir essa alarmante necessidade o homem faz uso de todos os meios e mecanismos possiacuteveis muitas vezes pouco se importando se atendecirc-los significa estar ainda mais distante do divino Roubar eacute uma praacutetica comum em nossa sociedade natildeo somente para sustentar um viacutecio em substacircncia mas tambeacutem pelo simples ideal de acumular riquezas uma praacutetica tatildeo repreendida por Deus

Assim o homem se vecirc diante de todo um contexto desfavoraacutevel para se manter fiel a Deus De fato a sociedade jaacute haacute muito tempo tem se afastado dos princiacutepios e preceitos divinos os homens natildeo demonstram mais arrependimento genuiacuteno ao cometerem pecados e insistindo em seus erros independentemente das liccedilotildees divinas jaacute aplicadas a eles

Pode-se equiparar o contexto atual ao que observamos na histoacuteria de Jonas cuja abordagem jaacute foi feita anteriormente neste artigo Jonas tambeacutem sabendo de suas funccedilotildees e da vontade de Deus disparou em fuga O homem atual tambeacutem conhece suas funccedilotildees e a vontade de Deus e mesmo assim ignora-as diante de seu egoiacutesmo sacrificando sua proacutepria alma por sentimentos e prazeres pueris

Somente quando sente falta da presenccedila de Deus o homem cogita o arre-pendimento Jonas aprendera sua liccedilatildeo ao permanecer trecircs dias no ventre do peixe clamando pela misericoacuterdia divina O homem atual entretanto parece natildeo aprender suas liccedilotildees Ele insiste no pecado e sucumbe a ele e aos estiacutemulos peca-minosos amplamente presentes em nossa sociedade Haacute pontos de aproximaccedilatildeo e de afastamento entre os episoacutedios relatados neste estudo e o contexto atual de vivecircncia do homem Entretanto permanece a dificuldade de se permanecer estavelmente fiel a Deus

4 ABORDAGEM DO VERDADEIRO ARREPENDIMENTOConforme apresentado o homem arrepende-se buscando a misericoacuterdia e

o perdatildeo de Deus O arrependimento segundo Delumeau (2003) eacute deixar o pecado e para que este seja abandonado o arrependimento deve ser verdadeiro

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buscando o perdatildeo divino e comprometendo-se a natildeo cometer o mesmo pecado

No item anterior abordaram-se aspectos da vida atual que sugerem a falta de arrependimento verdadeiro da parte do homem Jonas por exemplo arrependeu--se verdadeiramente ao reconhecer a soberania de Deus Arrependeu-se pri-meiramente ao observar a tempestade arrependeu-se quando estava em alto mar e durante os trecircs dias nos quais esteve dentro do ventre do peixe Jonas de fato arrependeu-se verdadeiramente de sua desobediecircncia a Deus e buscou corrigir suas falhas

Adatildeo no mesmo sentido mostrou-se desobediente ao divino e arrependeu-se gravemente colocando todos os homens em pecado Adatildeo buscava que Deus tivesse pena e piedade de si e de Eva concedendo-lhes meios para sustentar a vida Pode-se questionar o motivo que conduziu Adatildeo ao arrependimento mas natildeo se fora ou natildeo verdadeiro

O homem arrepende-se de suas falhas para com Deus fruto da instabilidade de seu relacionamento de obediecircncia para com o divino Entretanto o homem atual costuma repetir seus pecados arrepende-se com frequecircncia mas por medo de puniccedilotildees raramente se arrepende verdadeiramente O homem natildeo atribui culpa a si mesmo por seus pecados e quando o faz eacute de maneira displicente insistindo nos mesmos erros que antes cometera

Todavia isso diz respeito justamente agrave natureza pecaminosa do homem Mes-mo na Biacuteblia satildeo raros os casos de arrependimento verdadeiros (DELUMEAU 2003) Castro (2013) aponta que o arrependimento verdadeiro ou genuiacuteno con-siste na ideia por traacutes da desobediecircncia do homem em relaccedilatildeo a Deus seja por meio de uma ordem direta ou como eacute mais comum na atualidade por meio da desobediecircncia aos preceitos biacuteblicos

Um exemplo de arrependimento verdadeiro inquestionaacutevel na Biacuteblia encontra- se na histoacuteria de Davi

A oraccedilatildeo de Davi depois do maior erro de sua vida ilustra a natureza da verdadeira tristeza pelo pecado Seu arrependimento foi sincero e profundo Ele natildeo fez nenhum empenho por atenuar a culpa Natildeo foi o desejo de escapar ao juiacutezo que lhe inspirou a oraccedilatildeo Davi reconheceu a enormidade de sua transgressatildeo viu a contaminaccedilatildeo de seu ser e sentiu nojo do pecado Natildeo suplicava unicamente o perdatildeo mas tambeacutem um coraccedilatildeo puro Desejava a alegria da santidade e estar mais uma vez em harmonia com Deus (ENSINOS DE JESUS 2012 p 21)

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Ora levando-se em consideraccedilatildeo a histoacuteria de Davi compreende-se que o arrependimento verdadeiro eacute fruto de um genuiacuteno sentimento de tristeza do ser humano ao desapontar a Deus representado pela sinceridade e pela verdade aceitando o pecado que cometeu e natildeo negando-o Trata-se do desprezo pelo pecado propriamente dito

Souza (2009) aponta que o homem peca quando ele age contra aquilo que eacute imposto por Deus Com o pecado o homem e a mulher tornaram-se seres decadentes sendo o arrependimento a noccedilatildeo atraveacutes da qual eles podem ser sinceros com Deus assumindo sua culpa no pecado e demonstrando tristeza diante de sua desobediecircncia

O arrependimento verdadeiro aleacutem de tais caracteriacutesticas natildeo adveacutem de accedilatildeo humana mas sim de accedilatildeo divina uma vez que

Nenhum ser humano tem o poder de perdoar pecados Somente Deus por meio de Cristo aquele que nunca pecou pode nos conceder perdatildeo e paz de espiacuterito O ensino de que algum ser humano tem poder de perdoar pecados natildeo estaacute em harmonia com a Biacuteblia Nenhuma accedilatildeo humana eacute ca-paz de conseguir o perdatildeo Somente Deus em Jesus Cristo pode perdoar nossos pecados Por isso devemos nos aproximar Dele com o coraccedilatildeo verdadeiramente arrependido (ENSINOS DE JESUS 2012 p 21)

Assim o arrependimento verdadeiro eacute obtido tatildeo somente na comunhatildeo do pecador com Deus Ele deve manifestar com sinceridade o seu arrependimento pelo erro cometido independentemente das dimensotildees de seu pecado Em uma era na qual pecar eacute socialmente aceitaacutevel arrepender-se verdadeiramente eacute um dos difiacuteceis desafios do pecador

5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAISO presente estudo concentrou-se em uma abordagem clara e objetiva acerca do

livro de Jonas sobretudo no aspecto referente agrave conduta dele em relaccedilatildeo a Deus demonstrando sua desobediecircncia e a concepccedilatildeo de arrependimento verdadeiro a fim de que Jonas pudesse persistir no caminho traccedilado por Deus executando a funccedilatildeo divina que lhe fora incumbida

No mesmo sentido observou-se que o pecado sempre marcou o homem desde os tempos de Adatildeo ateacute a atualidade na qual os estiacutemulos pecaminosos estatildeo ain-da mais presentes Existe noccedilatildeo de arrependimento mas natildeo de arrependimento verdadeiro conforme ocorreu com Jonas e Davi Esse tipo de arrependimento se manifesta por uma verdadeira tristeza pelo cometimento do pecado sincera

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e profundamente sem o desejo de escapar da puniccedilatildeo mas curvando-se diante da superioridade de Deus

Este estudo natildeo buscou esgotar o assunto ou tornaacute-lo acabado mas tatildeo so-mente abordar concepccedilotildees acerca do verdadeiro arrependimento e das oscilaccedilotildees entre a obediecircncia e a desobediecircncia a Deus observadas tanto na era biacuteblica quanto na atualidade

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REFEREcircNCIAS ALENCAR J F Levanta-te e vai agrave grande cidade uma introduccedilatildeo ao livro de Jonas Revista Vida Pastoral ano 51 n 274 setembro-outubro 2010 p 6-13

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BIacuteBLIA SAGRADA Disponiacutevel em sanderleicombrPDFBibliaBiblia- Sagrada-Joao-Ferreira-de-Almeidapdf Acesso em 2 jul 2017

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CLEMENTE M A Riqueza de Jonas Goiacircnia GO Editora RHJ 2008

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DELUMEAU J O pecado e o medo ndash a culpabilizaccedilatildeo no ocidente (seacuteculos 13-18) Traduccedilatildeo Aacutelvaro Lorencini Bauru EDUSC 2003 2 v

ENSINO DE JESUS 2012 O que Jesus Ensinou sobre o Perdatildeo 6ordf liccedilatildeo Disponiacutevel em ltensinosdejesuscombrmateriaisestudosestudo-6pdfgt Acesso em 5 jul 2017

ERTHAL L A et al Profetas Menores Seminaacuterio Evangeacutelico para o aper-feiccediloamento de Disciacutepulos e obreiros do Reino ndash SEMEADOR Niteroacutei 2002

FAacuteBIO C Jonas O Sucesso do Fracasso Itajaiacute SC Editora Vinde 1991

SOUZA J N O destino do homem no plano de Deus uma anaacutelise da antropo-logia patriacutestica sobre a ldquoimagem e semelhanccedilardquo Rev Pistis Prax Teol Pastor Curitiba v 1 n 1 p 119-145 janjun 2009

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TRANSFORMACcedilAtildeO RELIGIOSA BRASILEIRA E CARACTERIacuteSTICAS DO NOVO PADRAtildeO RELIGIOSO

Joatildeo Boechat54

RESUMOO Brasil experimentou intensa transformaccedilatildeo religiosa nos uacuteltimos 40 anos

Essa mudanccedila caracterizou-se por trecircs pontos centrais a saber a) Queda da membresia Catoacutelica b) Crescimento dos indiviacuteduos que se consideram sem--religiatildeo e c) Crescimento Evangeacutelico A partir daiacute a sociedade brasileira apresenta uma nova configuraccedilatildeo religiosa Dessa forma surge a necessidade de natildeo apenas compreendermos essa nova configuraccedilatildeo como tambeacutem perce-bermos as relaccedilotildees entre esses grupos religiosos atraveacutes do tracircnsito religioso isto eacute como se daacute a formaccedilatildeo de cada grupo religioso e quanto essa formaccedilatildeo tem relaccedilatildeo com o ganho ou perda de membros antes ligados a outros grupos religiosos Este artigo apresenta a nova configuraccedilatildeo religiosa brasileira aleacutem de demonstrar como essa configuraccedilatildeo tem sido alterada nas uacuteltimas deacutecadas e por fim analisa como se daacute o tracircnsito religioso na sociedade brasileira

Palavras-Chave Transformaccedilatildeo Religiosa Configuraccedilatildeo Religiosa Cresci-mento Evangeacutelico

ABSTRACTIn the last 40 years Brazil has experienced intense religious transformation

Such change is characterized by three main points a) Decrease of Catholic mem-bership b) Increase of Non-Religious groups and c) Increase of the Evangelicals Thus Brazilian society presents a new religious setting Because of that there is the need of not only comprehend this new configuration but also understand the relationship among the religious groups using the analysis of the religious traffic in Brazil ie how each group is formed and how this formation is related to the adding or losing of individuals who were once members of other religious groups In this way this paper presents the new religious configuration in Brazil and discusses how said configuration has been altered in the last decades At last it analyzes how the religious traffic takes place in Brazilian society

54 Joatildeo Boechat eacute professor da Faculdade Batista do Rio de Janeiro aleacutem de pesquisador do Deutscher Akademischer Austauschdienst (DAAD) Eacute doutorando em Sociologia Poliacutetica pela Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF) com ecircnfase em Teologia pela Humboldt Universitaumlt zu Berlin na Alemanha Possui mestrado em Sociologia Poliacutetica pela UENF e especializaccedilatildeo em Ciecircncia da Religiatildeo aleacutem de graduaccedilatildeo em Teologia e Relaccedilotildees Internacionais

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Keywords Religious transformation Religious Configuration Evangelical Growth

INTRODUCcedilAtildeOA realidade do campo religioso brasileiro indica uma forte transformaccedilatildeo

na sociedade em que vivemos Esta percepccedilatildeo ocorre pois ainda que a religiatildeo seja uma espera proacutepria ela influencia e eacute influenciada pelas demais esferas sociais como a economia poliacutetica e ciecircncia Portanto eacute sine qua non para a profunda compreensatildeo teoloacutegica a forma pela qual a religiatildeo se relaciona com a realidade vigente

A palavra que define a realidade religiosa brasileira nas uacuteltimas deacutecadas eacute ldquotransformaccedilatildeordquo Especialmente a partir da deacutecada de 80 o campo religioso no Brasil observa uma intensa mudanccedila encabeccedilada pelo grande crescimento evangeacutelico que atua como principal combustiacutevel de tal transformaccedilatildeo que tambeacutem eacute caracterizada pelo crescimento dos sem-religiatildeo e pela queda catoacutelica

Nesse contexto este artigo procura analisar a transformaccedilatildeo religiosa na sociedade brasileira observando os dados dos censos das uacuteltimas deacutecadas bem como buscando compreender o tracircnsito religioso que ocorre por meio da anaacutelise de como se daacute a formaccedilatildeo das membresias religiosas Por fim apontam-se algumas razotildees que auxiliam na compreensatildeo da mudanccedila religiosa brasileira

Assim pretende-se colaborar para a compreensatildeo da realidade brasileira e de como a transformaccedilatildeo estaacute relacionada com questotildees que atingem a sociedade como um todo Tambeacutem pretende-se explicitar que a religiatildeo eacute uma esfera autocirc-noma que influencia e eacute influenciada pelas demais esferas sociais adaptando-se agraves demandas e necessidades de seus fieacuteis e provendo respostas que busquem atender a tais necessidades

1 PADRAtildeO RELIGIOSO BRASILEIROAs uacuteltimas deacutecadas demonstraram um ldquopadratildeo religiosordquo no Brasil Em

2020 o Instituto Datafolha lanccedilou os seguintes dados da configuraccedilatildeo religiosa brasileira

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Graacutefico 1 Configuraccedilatildeo Religiosa Brasileira

Fonte Datafolha (2020)

Atualmente 50 dos brasileiros se afirmam Catoacutelicos 31 Evangeacutelicos55 10 Sem-Religiatildeo e 9 adeptos de outras religiotildees

Os dados do Graacutefico 1 atuam em conformidade com os dados do Censo de 2010 realizado pelo IBGE56 os quais apontam que a configuraccedilatildeo religiosa no Brasil nas uacuteltimas deacutecadas possui trecircs caracteriacutesticas fundamentais a) intensa queda dos Catoacutelicos b) crescimento significativo dos Evangeacutelicos c) crescimento relevante dos sem-religiatildeo Considerando os dados levantados pelo IBGE eacute possiacutevel identificar tal configuraccedilatildeo

Graacutefico 2 Religiotildees no Brasil (2010)

Fonte Censo do IBGE 2010

55 Caso dividamos os Evangeacutelicos entre os principais subgrupos a formaccedilatildeo do campo brasileiro corres-ponde a 21 de Pentecostais 44 de Evangeacutelicos de Missatildeo e 45 de Evangeacutelicos Natildeo-Determinados56 2010 corresponde ao ano do uacuteltimo censo publicado pelo IBGE

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De acordo com os dados do uacuteltimo Censo do IBGE publicado em 2010 entre os brasileiros 646 se denominam Catoacutelicos 57 222 Evangeacutelicos 58 81 Sem- Religiatildeo 59 27 possuem outras religiotildees 60 21 satildeo adeptos do Espiritismo e 033 de religiotildees afro-brasileiras 61

De fato as religiotildees natildeo satildeo compostas por subgrupos homogecircneos com completa unidade doutrinaacuteria eclesial e praacutetica Tomemos como primeiro exemplo os Evangeacutelicos Para a real compreensatildeo desse grupo religioso no Brasil eacute relevante levar em conta suas divisotildees a fim de melhor entender sua configuraccedilatildeo uma vez que ela se expressa de forma mais variada do que as dos Catoacutelicos e dos Sem-religiatildeo Afinal entre os Catoacutelicos 994 satildeo Catoacutelicos Apostoacutelicos Romanos jaacute entre os Sem-Religiatildeo 952 natildeo possuem religiatildeo mas creem no transcendente ou seja apenas 48 satildeo ateus ou agnoacutesticos

Diferentemente dos Catoacutelicos e Sem-Religiatildeo cuja anaacutelise dividimos em dois subgrupos os Evangeacutelicos apresentam uma divisatildeo relevante em trecircs subgrupos os Pentecostais que correspondem a 60 dos Evangeacutelicos e 133 da populaccedilatildeo brasileira 62 os Evangeacutelicos Natildeo-Determinados correspondem a 212 dos Evangeacutelicos e 48 dos brasileiros 63 Por fim os Evangeacutelicos de Missatildeo ou Histoacutericos correspondem a 182 dos Evangeacutelicos e 44 da populaccedilatildeo brasileira 64

Com base no Graacutefico 2 dividimos a anaacutelise da evoluccedilatildeo do campo religioso brasileiro em duas fases de 1940 a 1980 e de 1980 a 2010 Essa divisatildeo ressalta

57 Entre os Catoacutelicos 994 satildeo Catoacutelicos Apostoacutelicos Romanos 45 Catoacutelicos Apostoacutelicos Brasileiros e 01 Catoacutelicos Ortodoxos58 Entre os Evangeacutelicos 60 satildeo Pentecostais 218 Natildeo-Determinados e 182 Evangeacutelicos de Missatildeo59 Entre os Sem-Religiatildeo 952 satildeo sem-religiatildeo 4 Ateus e 08 Agnoacutesticos60 Entre as outras religiotildees 333 satildeo adeptos de outras religiosidades cristatildes 317 satildeo Testemunhas de Jeovaacute 146 possuem muacuteltiplas religiosidades 55 satildeo Budistas 52 satildeo membros da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Uacuteltimos Dias 36 adeptos de outras religiosidade orientais 24 satildeo Judeus 17 adeptos do Esoterismo e 14 membros de religiotildees Indiacutegenas Haacute ainda grupos de outras religiotildees como o Hinduiacutesmo que correspondem a menos de 1 deste grupo61 Entre as Religiotildees Afro-brasileiras 692 pertencem agrave Umbanda 284 ao Candombleacute e 24 a outras religiotildees de matriz afro-brasileiras62 Os maiores grupos e igrejas pentecostais satildeo Assembleia de Deus (485 dos Pentecostais) Igrejas Pentecostais Independentes (208) Congregacional Cristatilde do Brasil (9) Igreja Universal do Reino de Deus (74) Igreja do Evangelho Quadrangular (71) Deus eacute Amor (33) e Maranata (14)63 Os Natildeo-Determinados satildeo assim denominados pois satildeo formados por igrejas independentes de teologia protestante sem viacutenculo histoacuterico com associaccedilotildees protestantes norte-americanas ou europeias como as Igrejas de Missatildeo64 Os Evangeacutelicos de Missatildeo satildeo assim chamados pois possuem teologia protestante e sua formaccedilatildeo estaacute vinculada agraves missotildees protestantes de igrejas histoacutericas norte-americanas ou europeias No Brasil as maiores igrejas ou associaccedilotildees satildeo Batistas (485 dos Evangeacutelicos de Missatildeo) Adventistas (203) Luterana (13) Presbiteriana (12) Metodista (44) Congregacional (14) e outras (04)

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como nas uacuteltimas trecircs deacutecadas houve relevante mudanccedila e uma nova padro-nizaccedilatildeo religiosa no paiacutes

Tabela 1 ndash Religiotildees no Brasil de 1940 a 2010 em porcentagem (MARIANO 2013)

Religiatildeo 1940 1950 1960 1970 1980 1990 2000 2010Catoacutelicos 952 937 931 911 892 833 738 646Evangeacutelicos 26 34 40 58 66 90 154 222Outras Religiotildees 19 24 24 23 25 29 35 50Sem Religiatildeo 02 05 05 08 16 48 73 81

Natildeo declarou 01 00 00 00 01 00 00 01

TOTAL 100 100 100 100 100 100 100 100Fonte Mariano 2013

De 1940 a 1980 o nuacutemero de Catoacutelicos no Brasil caiu de 952 para 892 passando de 39256972 para 108066311 adeptos65 Apesar do crescimento geral os Catoacutelicos declinaram em 6 nessas quatro deacutecadas Jaacute de 1980 a 2010 os Catoacutelicos caiacuteram de 892 para 646 da populaccedilatildeo do paiacutes totalizando 123228246 adeptos o que indica uma queda de 246 da membresia

Em 2020 o Instituto Datafolha66 publicou uma pesquisa cujos dados revelam que no Brasil os Catoacutelicos correspondem a 50 dos brasileiros o que confirma o ldquopadratildeo religiosordquo de queda da membresia catoacutelica67 Caso o Censo do IBGE de 2020 confirme os dados levantados pelo Datafolha haveria uma queda de 146 na membresia catoacutelica significando a maior perda de adeptos jaacute registrada em uma deacutecada

Por outro lado os Evangeacutelicos se moveram na direccedilatildeo contraacuteria dos Catoacutelicos De 1940 a 1980 aquele grupo cresceu de 26 para 66 da populaccedilatildeo brasilei-ra o que significa que em 40 anos os Evangeacutelicos saltaram de 1072144 para 7995938 adeptos Todavia se nessas quatro deacutecadas os Evangeacutelicos cresceram 4 nas deacutecadas seguintes houve um exponencial aumento dos adeptos entre 1980 e 2010 Nestas os Evangeacutelicos saltaram de 66 para 222 totalizando 42347787 adeptos Isso significa que nas uacuteltimas deacutecadas os Evangeacutelicos

65 De acordo com os dados do Censo do IBGE a populaccedilatildeo brasileira em 1940 era de 41236315 pessoas em 1980 121150573 e em 2010 190755799 pessoas66 Pesquisa Datafolha com 2948 entrevistas realizadas em 176 municiacutepios no paiacutes em 5 e 6 de dezembro de 2019 Margem de erro de 2 pontos percentuais para mais ou para menos e niacutevel de confianccedila de 9567 De acordo com a Pesquisa do Instituto Datafolha em Dezembro de 2019 a Religiatildeo do Brasileiro eacute dividida em 50 Catoacutelicos 31 Evangeacutelicos 10 Sem-Religiatildeo 3 Espiacuteritas 2 Afro-Brasileiros 2 Outras Religiotildees 1 Ateus 03 Judeus

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cresceram cinco vezes mais do que a populaccedilatildeo brasileira Enquanto de 1980 a 2010 a populaccedilatildeo brasileira cresceu 123 os Evangeacutelicos cresceram 62

O crescimento evangeacutelico eacute evidenciado pela pesquisa do Datafolha de acordo com a qual estes atingiram 31 da populaccedilatildeo em 2020 Conforme esses dados o periacuteodo de 2010 a 2020 aponta duas realidades opostas em relaccedilatildeo aos Catoacutelicos e Evangeacutelicos Por um lado os Catoacutelicos sofreram a maior perda de membresia jaacute registrada em uma deacutecada Por outro lado os Evangeacutelicos experimentaram de 2010 a 2020 o maior crescimento jaacute registrado em seu nuacutemero de adeptos

Portanto em 2010 os cristatildeos (Catoacutelicos e Evangeacutelicos)68 correspondiam a 868 dos brasileiros ou seja quase 9 em cada 10 brasileiros ainda se con-siderava cristatildeo De acordo com o Instituto Datafolha em 2020 esse nuacutemero corresponde a 81 dos brasileiros Issto indica que apesar do grande cresci-mento evangeacutelico a queda do nuacutemero de catoacutelicos foi expressiva a ponto haver reduccedilatildeo do nuacutemero de cristatildeos no paiacutes em mais de 5 pontos percentuais Ainda assim apesar do crescimento dos Sem-Religiatildeo (de 8 para 10) os ateus correspondem a apenas 1 da populaccedilatildeo brasileira

Assim os nuacutemeros do Censo permitem a formulaccedilatildeo do seguinte graacutefico

Graacutefico 3 Cristatildeos na populaccedilatildeo brasileira (1940-2020)

Fonte Censo do IBGE (1940-2010) Datafolha (2020)

Em conformidade com o crescimento evangeacutelico os Sem-Religiatildeo tambeacutem obtiveram consideraacutevel aumento Entre 1940 e 1980 eles passaram de 02 a 16 indo de 82473 para 1938409 indiviacuteduos que natildeo possuem religiatildeo Em 68 De fato os Espiacuteritas tambeacutem satildeo cristatildeos Mas como estamos considerando as principais mudanccedilas religiosas no paiacutes consideremos apenas Catoacutelicos e Evangeacutelicos como Cristatildeos Contudo apenas para a anaacutelise e natildeo como afirmaccedilatildeo teoloacutegica Considerando os Espiacuteritas os Cristatildeos atingiriam 2 da populaccedilatildeo em 2010 e 3 em 2020

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2010 esse grupo alcanccedilou 81 dos indiviacuteduos no Brasil totalizando 15451220 pessoas

Por outro lado considerando a pesquisa do Datafolha os Sem-Religiatildeo atin-giriam 10 havendo crescimento de cerca de 2 em nuacutemero Esse crescimento seria maior do aquele que ocorreu entre 2000 e 2010 (08) mas menor do que o ocorrido entre 1990 e 2000 (25)

Graacutefico 4 Cristatildeos x Sem-Religiatildeo no Brasil (1940-2020)

Fonte Censo do IBGE (1940-2010) Datafolha (2020)

Portanto se no fim do seacuteculo XIX apoacutes a Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica (1889) os Catoacutelicos concentravam praticamente 100 da populaccedilatildeo brasileira o seacuteculo XX eacute marcado pela constante queda dessa membresia ainda que ela fosse ampla maioria em 1970 (911) Todavia a partir da deacutecada de 1980 essa queda acelerou-se fazendo com que os Catoacutelicos perdessem quase 1 de sua membresia ao ano (-097)

Desse modo estabelecendo-se uma projeccedilatildeo linear em que os Catoacutelicos manteriam sua perda de 097 ao ano os Evangeacutelicos o seu crescimento de 069 aa e os Sem-Religiatildeo ganhando 017 o ldquopadratildeo religioso brasileirordquo apresentaria uma mudanccedila em relaccedilatildeo agrave hegemonia religiosa por volta de 2036 assim os Evangeacutelicos com 403 ultrapassaratildeo os Catoacutelicos com 394 Em 2040 os Evangeacutelicos teriam 43 e os Catoacutelicos 355 Nesse ano os cristatildeos corresponderiam a 785 da populaccedilatildeo brasileira enquanto os Sem-Religiatildeo formariam 132 da populaccedilatildeo brasileira

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Graacutefico 5 Religiotildees no Brasil (1940-2040)

De fato natildeo eacute possiacutevel afirmar que tal transformaccedilatildeo continuaraacute nesse ritmo Todavia ainda que haja desaceleraccedilatildeo na perda de Catoacutelicos ou no crescimento dos Evangeacutelicos o padratildeo religioso brasileiro eacute ratificado pela intensa mudanccedila ocorrida no cenaacuterio brasileiro nos uacuteltimos 150 anos

Assim os nuacutemeros das pesquisas mencionadas confirmam o ldquopadratildeo religio-sordquo brasileiro e demonstram que este tem se desenvolvido de forma estaacutevel nos uacuteltimos 40 anos Eacute relevante perceber contudo que o paiacutes natildeo passou nestas uacuteltimas deacutecadas por um processo de ldquodesligamento do transcendenterdquo ou seja a perda catoacutelica e o acreacutescimo dos sem-religiatildeo natildeo indicam necessariamente uma diminuiccedilatildeo da experiecircncia com o transcendente ou a perda da busca pelo sagrado A anaacutelise desse padratildeo ajuda a entender a transformaccedilatildeo no campo religioso ocorrida nas uacuteltimas deacutecadas

2 TRAcircNSITO RELIGIOSO BRASILEIRO De forma geral o padratildeo religioso brasileiro indica uma transformaccedilatildeo do

campo religioso marcado pelas transformaccedilotildees na direccedilatildeo da relaccedilatildeo com o divino e natildeo na negaccedilatildeo do divino Isso significa que o brasileiro natildeo deixou de crer no transcendente mas apenas alterou a forma como crecirc ou o caminho para acessar o divino De acordo com o IBGE em 2010 apenas 03 da populaccedilatildeo se denominava ldquoateurdquo ou seja 78 dos brasileiros se consideram sem-religiatildeo mas mantecircm a crenccedila no transcendente

Portanto a configuraccedilatildeo religiosa brasileira se constroacutei a partir das transfor-maccedilotildees inter-religiosas como demonstra a Tabela 2

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Tabela 2 ndash Religiatildeo atual e tracircnsito religioso (BARTZ 2012)

Religiatildeo atual Natildeo mudou Mudou populaccedilatildeoCatoacutelica 959 41 646Evangeacutelico de missatildeo 228 772 41Evangeacutelico pentecostal 144 856 133Outras religiotildees 107 893 50Sem-religiatildeo 197 803 81Meacutedia Total 683 235 100

Fonte Censo Demograacutefico do IBGE 2010

Agrave primeira vista a meacutedia total indica que o Brasil eacute um paiacutes no qual a maioria da populaccedilatildeo permanece na religiatildeo em que nasceu (683) enquanto uma minoria muda de religiatildeo durante a vida (235) Contudo analisando a tabela perceberemos que apenas os Catoacutelicos satildeo maioria entre os que natildeo mudaram de religiatildeo De fato em cada 100 Catoacutelicos 96 nasceram em ambientes Catoacutelicos e apenas 4 se converteram ao longo da vida Isso significa que o Catolicismo eacute no Brasil uma religiatildeo de nascidos e natildeo de convertidos

Se considerarmos os demais grupos religiosos como tambeacutem os sem-religiatildeo veremos que ateacute 2010 828 dos brasileiros jaacute mudaram de crenccedila religiosa durante a vida Com exceccedilatildeo do Catolicismo todos os demais grupos de crenccedila no Brasil satildeo formados majoritariamente por convertidos ou seja seus adeptos se tornaram membros ao longo da vida e natildeo nasceram em ambientes praticantes dessa religiatildeo Pelo menos trecircs quartos da populaccedilatildeo evangeacutelica ou dos que hoje se consideram ldquosem-religiatildeordquo jaacute estiveram em alguma outra religiatildeo antes de possuiacuterem o atual entendimento sobre o transcendente Por exemplo dos 139 da populaccedilatildeo de pentecostais 856 se converteram a essa vertente durante a vida e somente 144 satildeo filhos de pais pentecostais tratando-se portanto de uma religiatildeo majoritariamente de convertidos e natildeo de originaacuterios

Aleacutem disso quando observamos o tracircnsito religioso brasileiro comparando-se a religiatildeo atual e a religiatildeo anterior dos brasileiros percebemos como o fluxo religioso ocorre entre os ldquoconvertidosrdquo

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Tabela 3 ndash Religiatildeo atual x religiatildeo anterior (BARTZ 2012)

Religiatildeo AnteriorReligiatildeo Atual

CatoacutelicaEvangeacutelico Histoacuterico

Evangeacutelico Pentecostal

Outras Religiotildees

Sem-Religiatildeo

Catoacutelica 00 138 589 163 421Evangeacutelico de Missatildeo 269 213 507 11 57Evangeacutelico Pentecostal 187 402 408 04 239Outras Religiotildees 474 99 155 110 64Sem-religiatildeo 179 12 742 55 00Ateus 231 118 332 158 31

Fonte Bartz 2012

A Tabela 3 foi elaborada levando-se em conta os indiviacuteduos que jaacute mudaram de crenccedila religiosa ao longo da vida Assim ela natildeo demonstra a religiatildeo de origem desses indiviacuteduos mas aquelas pelas quais eles jaacute passaram em compa-raccedilatildeo com a atual religiatildeo Portanto a somatoacuteria de algumas supera os 100 uma vez que um indiviacuteduo que hoje eacute Evangeacutelico por exemplo pode ter passado por uma ou mais religiotildees

Com relaccedilatildeo aos Catoacutelicos eacute vaacutelido lembrar que apenas 41 dos adeptos satildeo convertidos Dentre estes 474 satildeo oriundos de famiacutelias que passaram por religiotildees de matriz africana ou orientais 269 foram Evangeacutelicos de Missatildeo e 187 Pentecostais Ademais 231 foram Ateus e 179 Sem-Religiatildeo

Os Evangeacutelicos satildeo o grupo que mais cresce no Brasil eacute uma religiatildeo de ldquocon-vertidosrdquo em que8 em cada 10 indiviacuteduos (82) aproximadamente tornaram-se adeptos ao longo de sua vida e natildeo nasceram em ambientes evangeacutelicos Entre os adeptos que se denominam ldquode Missatildeordquo 402 jaacute pertenceram ao Pentecosta-lismo Isso indica que entre os Evangeacutelicos de Missatildeo o principal fluxo ocorre dentro da esfera Evangeacutelica Ademais 213 dos Histoacutericos jaacute fizeram parte de outra instituiccedilatildeo evangeacutelica histoacuterica como por exemplo um Batista que jaacute foi membro de uma organizaccedilatildeo Metodista ou Presbiteriana Em continuidade 138 dos Evangeacutelicos de Missatildeo jaacute foram Catoacutelicos e 118 Ateus

Por outro lado se entre os Evangeacutelicos Histoacutericos ou de Missatildeo o principal fluxo eacute intrarreligioso entre os Pentecostais 742 foram Sem-Religiatildeo 589 jaacute foram Catoacutelicos e 332 Ateus De fato entre os Pentecostais a maior parte dos convertidos jaacute passou por outras religiotildees Ademais o fluxo intrarreligoso tambeacutem eacute consideraacutevel haja vista que 507 dos Pentecostais jaacute foram ldquoHistoacute-

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ricosrdquo e 408 jaacute passaram por outras organizaccedilotildees Pentecostais Por exemplo um membro da Assembleia de Deus Ministeacuterio Madureira jaacute foi membro da Assembleia de Deus Vitoacuteria em Cristo ou ainda da Igreja Universal do Reino de Deus

O grupo dos ldquosem-religiatildeordquo (78) representa o segundo maior contingente de pessoas que migraram de religiatildeo As igrejas evangeacutelicas pentecostais e os catoacutelicos satildeo os principais fornecedores para este grupo Observamos ainda que 421 dos ldquosem-religiatildeordquo declaram-se ter sido catoacutelicos 239 pentecostais 57 histoacutericos 64 declaram ter pertencido a outras religiotildees Haacute duas rotas portanto de migraccedilatildeo para os ldquosem-religiatildeordquo a primeira vai do catolicismo ou dos evangeacutelicos histoacutericos e a segunda do catolicismo ao pentecostalismo e entatildeo ao grupo ldquosem-religiatildeordquo

Assim o tracircnsito religioso brasileiro nos apresenta algumas caracteriacutesticas a) os Catoacutelicos satildeo os doadores universais b) os Evangeacutelicos satildeo receptores universais ainda que haja intenso fluxo intrarreligioso c) os Sem-Religiatildeo satildeo majoritariamente indiviacuteduos que mantecircm determinada espiritualidade e natildeo se tornam ateus

A fim de aprofundarmos o estudo da Religiatildeo no cenaacuterio brasileiro analisa-remos essas caracteriacutesticas observando possiacuteveis explicaccedilotildees para a formaccedilatildeo desse padratildeo

3 FORMACcedilAtildeO DO PADRAtildeO RELIGIOSO BRASILEIRODiversos trabalhos tecircm sido apresentados a fim de explicar as razotildees para

esse padratildeo apresentado a Teoria da Secularizaccedilatildeo se apresenta como uma valiosa ferramenta para a compreensatildeo dessa nova realidade (NERI 2011 ANDRADE 2012 ALTMANN 2012 GRACINO 2012 MARIANO 2013 CAMURCcedilA 2017)

Considerando que a esfera religiosa no mundo moderno eacute uma esfera como as demais que disputa espaccedilo e relevacircncia sociais pode-se destacar no caso brasileiro trecircs efeitos do processo de secularizaccedilatildeo sobre ela 1) a desmonopo-lizaccedilatildeo religiosa 2) a liberdade religiosa e 3) o pluralismo religioso

Apesar das mudanccedilas ocorridas no campo religioso brasileiro nas uacuteltimas deacutecadas a realidade religiosa brasileira ainda demonstra ser a del um paiacutes ma-joritariamente catoacutelico Apenas no fim do seacuteculo XIX com a proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica o Brasil se tornou oficialmente laico Todavia ainda assim a Igreja Catoacutelica manteve seus privileacutegios em relaccedilatildeo ao Estado secular Entretanto se

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durante os periacuteodos de colonizaccedilatildeo e impeacuterio para ser brasileiro era necessaacuterio ser catoacutelico a separaccedilatildeo entre Igreja e Estado resultou no fim da monopolizaccedilatildeo religiosa

A diferenciaccedilatildeo entre a esfera religiosa e as esferas poliacutetica e juriacutedica se aprofundou criando uma condiccedilatildeo secular que viria a ter efeitos estruturais tambeacutem sobre o modo de organizaccedilatildeo e atuaccedilatildeo das diferentes religiotildees

De acordo com os dados do IBGE em 1940 952 da populaccedilatildeo brasileira era catoacutelica Em 1980 o nuacutemero havia decrescido para 89 da populaccedilatildeo Esse nuacutemero passou para 73 em 2000 decrescendo para 646 da populaccedilatildeo de acordo com o Censo de 2010

O fim da monopolizaccedilatildeo religiosa ocorrida com o iniacutecio da Repuacuteblica no fim do seacuteculo XIX ocasionou tambeacutem maior liberdade religiosa Os dados do IBGE (2000) apontam que cerca de 40 dos catoacutelicos brasileiros eram natildeo praticantes ou seja natildeo participavam ativamente das atividades eclesiais A natildeo-participaccedilatildeo natildeo indica todavia uma falta de atividade religiosa Como ser brasileiro estaacute ligado a ser catoacutelico faz parte da cultura brasileira denominar--se catoacutelico enquanto participa de reuniotildees espiacuteritas ou frequenta cultos no Candombleacute e Umbanda O resultado dessa maior liberdade religiosa bem como a maior liberdade para se considerar como pertencente a outras religiotildees ou mesmo sem-religiatildeo pode ser observada nos Censos das uacuteltimas deacutecadas Enquanto o Catolicismo decresceu de 952 em 1940 para 646 em 2010 as ldquooutras religiotildeesrdquo cresceram de 19 para 5 da populaccedilatildeo os ldquosem-religiatildeordquo saltaram de 02 para 81 de 1940 a 2010 e os evangeacutelicos cresceram de 26 para 222 da populaccedilatildeo nos uacuteltimos 70 anos

Por fim a secularizaccedilatildeo abre espaccedilos para que natildeo soacute novas religiotildees como tambeacutem novas organizaccedilotildees religiosas busquem espaccedilo e concorram pela fide-lizaccedilatildeo religiosa dos indiviacuteduos

A concessatildeo da liberdade religiosa e a separaccedilatildeo Igreja-Estado romperam definitivamente o monopoacutelio catoacutelico abrindo caminho para que outros grupos religiosos pudessem ingressar e se formar no paiacutes disputar e conquistar novos espaccedilos na sociedade adquirir legitimidade social e consolidar sua presenccedila institucional (MARIANO 20033)

Com o fim do monopoacutelio religioso e consequentemente a abertura para novas organizaccedilotildees religiosas possibilita-se a formulaccedilatildeo de distintos interesses religiosos respondendo a distintos interesses sociais A religiatildeo agrave medida que vai se autonomizando como esfera social com loacutegica proacutepria atua como elabo-

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radora dos interesses religiosos a partir da mateacuteria-prima dos interesses sociais dos distintos grupos permitindo por exemplo que distintos interesses sociais estejam ligados a um mesmo interesse religioso Uma vez que as organizaccedilotildees consigam elaborar interesses religiosos comuns capazes de transcender em certa medida as fronteiras dos interesses sociais - embora sem nunca lograr uma completa desvinculaccedilatildeo desses interesses - torna-se provaacutevel a adesatildeo de distintos grupos sociais a essas organizaccedilotildees e especialistas a fim de realizar esses interesses religiosos

Para exemplificarmos o efeito do pluralismo religioso observemos o cresci-mento das igrejas evangeacutelicas no Brasil nos uacuteltimos anos Os dados do Instituto Brasileiro de Planejamento Tributaacuterio (IBPT) apontam que existem no Brasil mais de 179 mil organizaccedilotildees religiosas evangeacutelicas registradas Somente em 2013 doze igrejas foram abertas por dia no Brasil cerca de 4400 novas organi-zaccedilotildees religiosas evangeacutelicas ao longo do ano Esse nuacutemero apresentou em 2014 crescimento de 52869 As organizaccedilotildees religiosas evangeacutelicas apresentam um faturamento de cerca de R$20 bilhotildees ao ano oriundo de diacutezimos venda de produtos e aplicaccedilotildees financeiras70

Essa nova configuraccedilatildeo religiosa no Brasil abre oportunidades para a anaacutelise da religiatildeo sob novas perspectivas uma vez que novos interesses religiosos e sociais ganham espaccedilo nas disputas por atenccedilatildeo nas organizaccedilotildees e especialistas religiosos

Dessa forma a nova configuraccedilatildeo religiosa brasileira demonstra que as transformaccedilotildees religiosas acompanham as transformaccedilotildees sociais mas ocorrem tambeacutem por mudanccedilas na proacutepria esfera religiosa e na capacidade de diferentes religiotildees organizarem distintos interesses e atenderem distintas demandas dos indiviacuteduos

Portanto compreender a configuraccedilatildeo religiosa brasileira eacute funccedilatildeo importante de todo aquele que deseja analisar como a religiatildeo influencia tanto o indiviacuteduo como a sociedade brasileira ao passo que tambeacutem eacute influenciada por eles

69 Disponiacutevel em httpwwwempresometrocombrSiteMetodologia70 Para mais informaccedilotildees sobre a arrecadaccedilatildeo das organizaccedilotildees religiosas evangeacutelicas ver httpexameabrilcombrbrasilem-um-ano-arrecadacao-de-igrejas-passou-dos-r-20-bi

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AMEacuteM MUacuteLTIPLOS DERIVADOS O MESMO CONCEITOAs diferentes traduccedilotildees de uma mesma raiz

AMEN MULTIPLE DERIVATIVES THE SAME CONCEPTDifferent translations of the same word

Rawderson Rangel71

RESUMOHaacute diversas expressotildees que se encontram no Novo Testamento utilizadas

com muita frequecircncia ainda hoje nas igrejas cristatildes cuja origem eacute o hebraico A proposta do presente artigo eacute analisar a conhecida expressatildeo ldquoAmeacutemrdquo repe-tida em oraccedilotildees e muitas vezes como resposta da congregaccedilatildeo ao pregador ou dirigente do culto Atraveacutes do estudo de diferentes vocaacutebulos tendo esta palavra em sua raiz a investigaccedilatildeo apresentaraacute possiacuteveis significados e sentidos para a expressatildeo que de forma consensual eacute definida simplesmente por ldquoassim sejardquo

Palavras-chave Ameacutem Hebraico Raiz verbal

ABSTRACTMany expressions found in the New Testament often used even today in

Christian churches have their origin in the Hebrew The purpose of this article is to analyze the familiar expression ldquoAmenrdquo repeated in prayers and often as a congregation response of to the preacher or gospel service responsible Through the study of different words having this word in their root the research will present possible meanings for the expression usually simply defined by ldquoLet it be sordquo

Keywords Amen Hebrew Verbal root

71 Bacharel em Teologia pelo Seminaacuterio Teoloacutegico Batista do Sul do Brasil (atual Faculdade Batista do Rio de Janeiro) RJ Brasil revalidado pela Faculdade Teoloacutegica Batista do Paranaacute em Curitiba (atual FABAPAR) PR Brasil Poacutes-graduado em Antigo Testamento tambeacutem pela FABAPAR PR Mestre em Teologia pela Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Paranaacute Cursou Hebraico Biacuteblico pela Israel Biblical Institute of Studies acreditado pela Universidade Hebraica de Jerusaleacutem Israel atualmente eacute estudante de Grego Biacuteblico pela mesma instituiccedilatildeo Escritor professor de Teologia e idiomas biacuteblicos missionaacuterio da Junta de Missotildees Mun-diais da Convenccedilatildeo Batista Brasileira - JMM da CBB em Moccedilambique Eacute professor do Instituto Teoloacutegico Baptista da Beira Sofala e Instituto Biacuteblico de Sofala ndash Moccedilambique E-mail rawdersonhotmailcombr

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INTRODUCcedilAtildeO O hebraico biacuteblico por ser um idioma antigo apresenta-se bastante complexo

com determinados caracteres e algumas formas gramaticais que hoje natildeo satildeo mais utilizadas tal complexidade pode ser diminuiacuteda se o estudante estiver atento a alguns detalhes que satildeo extremamente uacuteteis no estudo da liacutengua e a anaacutelise a partir de determinadas raiacutezes eacute uma delas Haacute muitas palavras de tronco comum que uma vez entendidas ajudam na memorizaccedilatildeo delas na compreensatildeo do sentido de uma expressatildeo e ateacute mesmo de um verso biacuteblico

O vocabulaacuterio da Biacuteblia hebraica eacute de aproximadamente oito mil palavras72 sendo que duas mil delas aparecem apenas uma vez no texto desse modo um bom dicionaacuterio biacuteblico eacute indispensaacutevel no estudo do Antigo Testamento Ao mesmo tempo todo esse vocabulaacuterio pode ser reduzido a mil e trezentas raiacutezes73 e a polissemia desse idioma torna o estudo das palavras e seu significado original relevante pois facilita a compreensatildeo de determinadas palavras ou expressotildees no texto hebraico Ela tem sido vista como uma soluccedilatildeo para os muacuteltiplos significados representados por uma uacutenica palavra Ana Ceciacutelia Cruz defende essa relaccedilatildeo tanto graacutefica quanto foneacutetica segundo essa autora esta eacute ldquo() uma relaccedilatildeo metafoacuterica que amplia um sentido baacutesico para outros mais abstratosrdquo74

Miles Van Pelt afirma que as primeiras cinquenta palavras mais frequentes permitem ao estudante reconhecer um pouco mais da metade (55) do total de palavras que ocorrem no Antigo Testamento hebraico Dominar as 641 palavras que ocorrem cinquenta ou mais vezes permitiraacute identificar mais de 80 das palavras75 Uma das razotildees para isso eacute a relaccedilatildeo entre estas e as suas raiacutezes

A palavra que seraacute analisada neste artigo tambeacutem pode ter muacuteltiplas tradu-ccedilotildees embora um sentido baacutesico Analisar a origem e o significado de ldquoAmeacutemrdquo eacute bastante interessante embora natildeo menos complexo quando comparada agraves de-mais liacutenguas semiacuteticas76 Sabe-se que ela existe desde tempos remotos tanto em hebraico como tambeacutem em aacuterabe (rsquoĀmīn) ldquoAmeacutemrdquo eacute referecircncia nas trecircs grandes religiotildees que surgiram no Oriente Meacutedio cristianismo islamismo e judaiacutesmo Assim como ldquoAleluiardquo essa palavra tambeacutem natildeo se traduz em nenhum idioma sendo compreendida por todas as culturas sob a influecircncia de pelo menos uma das religiotildees mencionadas anteriormente

72 FRANCISCO Edson Faria de In Liacutengua Hebraica Aspectos Histoacutericos e Caracteriacutesticas (2010)73 JOUumlON P MURAOKA T (2007) Gramaacutetica del Hebreo Biacuteblico sect40 ndash nota74 CRUZ A d Estratificaccedilatildeo linguiacutestica ampliaccedilatildeo semacircntica e polissemia em hebraico Revista Veacutertices 11 2011 p 4275 PELT Miles Van The vocabulary guide to biblical Hebrew 2003 p ix76 WILLIAM B EERDMANS PUBLISHING COMPANY (1974) Theological Dictionary of The Old Testament (Vol I) Paacutegs 292293

53TeoloacutegicaRevista Brasileira de Teologia ISSN 1807-7056 nordm 8 outdez Rio de Janeiro 2020 p 51- 62

1 AMEacuteM EM DIVERSAS CULTURASA palavra tem algumas caracteriacutesticas particulares em cada uma dessas

religiotildees apesar de natildeo estar incluiacuteda no Alcoratildeo āmīn eacute uma das mais im-portantes na oraccedilatildeo islacircmica usada em diferentes contextos principalmente na sua conclusatildeo77 o rabino Chanina em 225 dC afirmou que ldquoameacutemrdquo eacute um acroacutestico - a palavra eacute composta por trecircs consoantes que em hebraico sintetizam a frase ldquoDeus Rei Fielrdquo rsquoel melek e nersquoeman78 Pronunciar essa palavra no final da prece eacute segundo esse raciociacutenio uma declaraccedilatildeo espiritual de que o proacuteprio Deus vai agir jaacute no cristianismo quando se pergunta o significado de ldquoAmeacutemrdquo logo vem a resposta ldquoassim sejardquo Tambeacutem no cristianismo ela tem um conceito de encerramento conclusatildeo teacutermino sendo esta uma das uacuteltimas palavras do Novo Testamento encontrada em Apocalipse 2220 21

Independentemente do que esteja acontecendo em um culto nas igrejas evan-geacutelicas eacute comum ouvir-se um ldquoameacutemrdquo Eacute tatildeo comum no linguajar cristatildeo que se tornou inclusive uma pergunta ldquoAmeacutem irmatildeosrdquo A resposta vem a seguir ldquoAmeacutemrdquo A depender do contexto tem o sentido de ldquopode ser assimrdquo ldquocon-cordamrdquo ou ateacute mesmo ldquoeacute assim ou natildeo eacuterdquo Quando aparentemente natildeo haacute um assunto definido ou o dirigente ainda estaacute se organizando no puacutelpito surge a pergunta ldquoAmeacutemrdquo A resposta da congregaccedilatildeo eacute repetir ldquoAmeacutemrdquo Resta analisar se foi criada uma nova semacircntica

Em diversos lugares do mundo o ldquoameacutemrdquo identifica-se com a feacute Quando se termina o momento devocional e de oraccedilatildeo a palavra eacute repetida imediatamente uma vez que tem sido ensinada como significado de ldquoassim sejardquo No Dicionaacuterio Internacional de Teologia do Antigo Testamento no entanto lecirc-se que

Esse conceito tatildeo importante da doutrina biacuteblica eacute prova clara do signi-ficado biacuteblico de ldquofeacuterdquo em contraste com muitos conceitos populares do termo No acircmago do sentido da raiz estaacute a ideia de certeza Isso eacute susten-tado pela definiccedilatildeo de feacute do NT encontrada em Hebreus 11179

Esse dicionaacuterio relaciona a expressatildeo pistis com certeza e feacute algo que tambeacutem acontece em alguns versos traduzidos do hebraico pela LXX cuja raiz da palavra eacute ldquoameacutemrdquo 80 embora natildeo com uniformidade 81

77 AKASOY 200978 Strack amp BILLERBECK 1922 paacuteg 464 Apud ZINKAND 1982 p 279 rsquoāmīn in HARRIS ARCHER JR e WALTKE 199880 Dt 3220 Jeremias 92 entre outros81 ZINKAND 1982 op cit paacuteg 4

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2 ʾmN e SeUS DeRivaDOS Partindo da anaacutelise da sua raiz (que neste caso eacute ʾmn) e de acordo com o

contexto eacute possiacutevel perceber que a palavra ameacutem tem um sentido que vai aleacutem do significado convencional ʾmn pode ser traduzido do texto hebraico82 de diferentes maneiras mas normalmente relacionado a ldquoconfiarrdquo e ldquoacreditarrdquo Esta eacute tambeacutem a tese defendida por Flor83 ainda que a raiz apareccedila como verbo ou adjetivo

Embora essa palavra aqui estudada seja mais conhecida como uma interjeiccedilatildeo ela tambeacutem se encontra no original tanto em raiacutezes verbais como tambeacutem em substantivos e adjetivos reafirmando o significado de confianccedila e estabilidade Eacute possiacutevel que haja alguma dificuldade para identificaacute-la especialmente pelas variaccedilotildees caracteriacutesticas da gramaacutetica hebraica No entanto ao reconhececirc-la o texto seraacute enriquecido com as possibilidades de interpretaccedilatildeo

21 ʾmN NaS RaiacutezeS veRBaiS

A primeira vez que a palavra aparece no texto do Antigo Testamento eacute na passagem de Gecircnesis 15 quando Deus percebe que Abratildeo colocava em duacutevida que ele teria descendecircncia direta Nesse episoacutedio o patriarca afirma esperar que a sua descendecircncia seria a de Eliezer mas Deus ldquoimediatamenterdquo (hinnēh - Gecircnesis 154) apresenta-lhe as suas intenccedilotildees convidando-o gentilmente84 a sair da sua tenda e ver a quantidade de estrelas no ceacuteu como um exemplo da quantidade de descendentes que ele teria

Apoacutes essa conversa diz o texto em Gecircnesis 156 ldquoEle creu [hě ěʾmin] no Se-nhor e isso lhe foi imputado para justiccedilardquo A raiz do verbo em destaque eacute ʾ mn85 Uma vez que se encontra em hifil pode ser traduzido por ldquoele acreditourdquo ou ldquoele se firmou por uma convicccedilatildeo internardquo A mudanccedila de sentimento de Abratildeo foi fundamental para o desenrolar da histoacuteria de Israel conforme apresentado no Antigo Testamento Essa passagem inclusive eacute confirmada no Novo Testamen-

82 Salvo nota indicando o contraacuterio todas as passagens biacuteblicas em portuguecircs apresentadas na presente investigaccedilatildeo foram extraiacutedas da versatildeo Revista e Atualizada da Sociedade Biacuteblica do Brasil 199983 FLOR E N (Novembro de 2000) ldquoAmenrdquo in Old Testament liturgical texts a study of its meaning and later development as a plea for ecumenical understanding p 784 Sobre a expressatildeo que demonstra esse tratamento cordial e respeitoso por parte de Deus nesta passagem ver RANGEL Rawderson ldquoNatildeo estou mandando estou pedindo a partiacutecula de Suacuteplicardquo in Revista Teoloacutegica nuacutemero 6 ago ndash dez 2018 pp 114-125 Filo afirma que a conversa natildeo foi em um niacutevel de Deus para o homem mas sim entre amigos in PAGE T E (Ed) Philo (Vol VI) London England William Heinemann Ltd Harvard University Pressp 311 85 Na LXX a traduccedilatildeo utiliza a palavra episteusen da mesma raiz da palavra feacute usada em Hebreus 11

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to 86 e nessas passagens todos os versos traduzem o ʾmn por pisteuo seguindo a LXX no aoristo enfatizando o fato da ocorrecircncia natildeo da sua natureza

Ainda como verbo no contexto de ldquoacreditarrdquo e ldquoconfiarrdquo na histoacuteria de Israel ʾmn tambeacutem aparece como uma negaccedilatildeo agrave feacute ou a crer Quando Moiseacutes estaacute diante de Deus no monte Sinai recebendo a missatildeo de libertar o povo de Israel do Egito ele pergunta ldquo[] Mas eis que natildeo creratildeo [yaʾmīnū] nem acudiratildeo agrave minha voz []rdquo (Ecircxodo 41) A falta de feacute ou confianccedila eacute tambeacutem evidenciada na passagem em que o povo de Israel teme entrar na terra prometida diante do testemunho dos espias que foram enviados a Canaatilde ldquo[] Ateacute quando me provocaraacute este povo e ateacute quando natildeo creraacute [lōʾ -yaʾ ămicircnucirc] em mim a despeito de todos os sinais que fiz no meio delerdquo87 (Nuacutemeros 1411)

O conhecido texto de Habacuque 24 eacute tambeacutem uma interessante passagem relacionada a crer e confiar ldquo() mas o justo em sua feacute [beʾ ĕmucircnāṯocirc] viveraacuterdquo [trad do autor] 88 Outra possibilidade para Habacuque 24 o justo por aquilo que ele crecirc viveraacute A feacute tem seu fundamento naquilo que estaacute estabelecido e por isso eacute digno de creacutedito

Isaiacuteas 79 apresenta um curioso jogo de palavras ldquo[] se o natildeo crerdes certamente natildeo permanecereisrdquo No hebraico os verbos crer e permanecer satildeo palavras homoacutegrafas e homoacutefonas taʾămicircnucirc e tēʾāmēnucirc reforccedilando a ideia Ambos com a raiz ʾmn tecircm o sentido de fidelidade feacute e acreditar

Acosta Rosales apresenta um estudo no qual apenas analisa essa palavra em qal 89 Mas haacute diversos outros exemplos na Biacuteblia que relacionam ʾmn com confianccedila no particiacutepio a palavra eacute usada para expressar a confianccedila de uma crianccedila nos braccedilos de sua matildee 90 ou de seus cuidadores (Nuacutemeros 1112 91 e 2Reis 101 92) em Isaiacuteas 604 93 no Nifal eacute possiacutevel tambeacutem relacionar-se o verbo a cuidadores com sentido de trazer seguranccedila e firmeza

86 Romanos 43 Gaacutelatas 36 Tiago 22387 A traduccedilatildeo correta seria creratildeo yarsquomīnū88 A palavra feacute em Habacuque 24 na LXX eacute traduzida por pistis no Genitivo singular feminino 89 ROSALES A D Re-discovering the semantics of ןמא in qal Theologica Xaveriana 67 (Grammar Philology Semantics) 431-46090 rsquoāman in WILLIAM B EERDMANS PUBLISHING COMPANY 197491 Nuacutemeros 1112 ldquoConcebi eu porventura todo este povo Dei-o eu agrave luz para que me digas Leva-o ao teu colo como a ama [particiacutepio] leva a crianccedila que mama agrave terra que sob juramento prometeste a seus paisrdquo 92 2Reis 101 ldquoAchando-se em Samaria setenta filhos de Acabe Jeuacute escreveu cartas e as enviou a Samaria aos chefes da cidade aos anciatildeos e aos tutores [particiacutepio] dos filhos de Acabe dizendordquo 93 Isaiacuteas 604 ldquoLevanta em redor os olhos e vecirc todos estes se ajuntam e vecircm ter contigo teus filhos chegam de longe e tuas filhas satildeo trazidas [Nifal imperfeito 3feminina plural] nos braccedilos

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22 ʾmN COmO SUBSTaNTivO e aDjeTivO

Ainda relacionada agrave credibilidade a palavra utilizada para nomear as vigas sobre as portas do templo que deram sustentaccedilatildeo agrave construccedilatildeo tem em sua raiz ʾmn em 2Reis 1816 encontramos a palavra traduzida por ombreiras 94 das portas do templo de Israel95 Na LXX a traduccedilatildeo eacute de uma palavra derivada de stērizō algo que daacute estabilidade Quando se avalia toda a estrutura do templo evidencia-se que tais ombreiras natildeo poderiam ser algo sem uma firmeza e que garantissem seguranccedila

Como sustentaccedilatildeo e credibilidade relacionadas a pessoas ʾmn encontra-se em Ecircxodo 1712 na conhecida passagem em que os filhos de Israel perdiam a batalha quando Moiseacutes baixava as suas matildeos Percebendo isso Aratildeo e Hur seguraram os seus braccedilos e ldquo() assim lhe ficaram as matildeos firmes [ʾ ĕmucircnacirc] ateacute ao pocircr-do-solrdquo96 Com a firmeza veio a certeza da vitoacuteria Novamente atraveacutes da raiz o texto atribui agrave atitude desses homens o sinocircnimo de seguranccedila e firmeza

Essa credibilidade se observa tambeacutem como sinocircnimos de guardas e segu-ranccedilas porteiros (1Crocircnicas 922) pessoas responsaacuteveis por atividades diversas em quem se depositou total confianccedila (1Crocircnicas 931 2Crocircnicas 3412)

Haacute vaacuterios substantivos que satildeo derivados da raiz ʾ mn e todos eles transmitem a ideia baacutesica de ldquosuporte firmezardquo ou ldquoconfirmaccedilatildeordquo Haacute variantes da palavra traduzidas por ldquopai adotivordquo algueacutem que apoia e nutre um grupo familiar dando-lhe estabilidade e firmeza A forma feminina com essa raiz ʾomenet significa ldquomatildee adotivardquo e inclui a ideia de ldquonutrirrdquo ldquofortalecerrdquo Outra palavra que demonstra essa firmeza agora na arte eacute ʾuman denota ldquoum operaacuterio habi-lidosordquo traduzido por ldquoartesatildeordquo97

O texto biacuteblico apresenta uma relaccedilatildeo curiosa entre o homem e ʾmn falando em termos da natureza humana ele eacute falho e inseguro pode vacilar Os adjetivos relacionados com ʾ mn atribuiacutedos aos seres humanos nunca englobam a sua tota-lidade mas sim aspectos e momentos pontuais que viveram Nem mesmo a Joacute que recebeu os elogios do Senhor por sua integridade eacute atribuiacutedo esse adjetivo

No entanto eacute a Deus que ʾ āman eacute atribuiacutedo Para Flor isso acontece especial-mente no livro de Salmos (mas natildeo soacute) porque Deus eacute imutaacutevel estaacutevel e firme

94 A mesma palavra pode ter dois significados diferentes um se refere a m ezuwzah (laterais) enquanto que a palavra de 2 Reis 1816 se refere agrave parte superior da porta A LXX traduz por estērigmena 95 2Reis 1816 ldquoFoi quando Ezequias arrancou das portas do templo do Senhor e das ombreiras o ouro de que ele rei de Judaacute as cobrira e o deu ao rei da Assiacuteriardquo96 A LXX traduz este texto com a mesma ideia97 FLOR E N op cit p 15

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enquanto o ser humano frequentemente eacute fraco instaacutevel e inconstante98 Por essa razatildeo acreditando nisso em Lamentaccedilotildees 323 se lecirc a respeito das misericoacuterdias de Deus ldquo() renovam-se cada manhatilde Grande eacute a tua fidelidade [ʾ ĕmucircnātekā]rdquo

A palavra do Senhor tambeacutem eacute tida por fiel e verdadeira digna de credibili-dade e aiacute tambeacutem se encontra a raiz da palavra em questatildeo O salmo 119 nos versos 75 86 90 138 o poeta homenageia a Lei de Deus qualificando-a de fiel e verdadeira

3 āʾmaN e ldquoaSSim Sejardquo

A palavra ldquoAmeacutemrdquo aparece vinte e quatro vezes no Antigo Testamento (doze delas apenas em Deuteronocircmio 2715ss) Devido agrave variedade de possibilidades torna-se difiacutecil identificar o seu real sentido no hebraico99

Haacute textos que sugerem a expressatildeo ldquoassim sejardquo em sua traduccedilatildeo com uma conotaccedilatildeo de confirmaccedilatildeo daquilo que estava sendo dito como nos versos de Jeremias 115100 286101 e 1Reis 136 37102 Nesses textos eacute possiacutevel interpretar que Deus daria a sua becircnccedilatildeo ao que jaacute havia sido planejado e dito Nessas passagens a referecircncia eacute feita aos oradores somente porque eles reconheceram o que jaacute havia sido determinado por YHVH e confirmaram a afirmaccedilatildeo Suas declaraccedilotildees podem significar ldquoPrecisamente Eu sinto o mesmo a respeito que Deus o faccedilardquo103 Eacute como uma aceitaccedilatildeo do que foi estabelecido natildeo uma esperanccedila em algo que aconteceria

Existem tambeacutem ao menos trecircs passagens nas quais a palavra ldquoameacutemrdquo estaacute em uma situaccedilatildeo diferente da mencionada anteriormente todas elas relacionadas a uma maldiccedilatildeo contra a pessoa envolvida em Deuteronocircmio 2715-26 (declara-ccedilatildeo de maldiccedilotildees no caso do natildeo cumprimento das leis e estatutos estabelecidos por Deus) em Nuacutemeros 522104 (declaraccedilatildeo solene acontecia no momento em que

98 ibidem p 1799 WILLIAM B EERDMANS PUBLISHING COMPANY op cit p 320100 Jeremias 115 ldquoPara que confirme o juramento que fiz a vossos pais de lhes dar uma terra que manasse leite e mel como se vecirc neste dia Entatildeo eu respondi e disse ameacutem oacute Senhorrdquo101 Jeremias 286 ldquoDisse pois Jeremias o profeta Ameacutem Assim faccedila o Senhor confirme o Senhor as tuas palavras com que profetizaste e torne ele a trazer da Babilocircnia a este lugar os utensiacutelios da Casa do Senhor e todos os exiladosrdquo102 1Reis 136 37 ldquoEntatildeo Benaia filho de Joiada respondeu ao rei e disse Ameacutem Assim o diga o Senhor Deus do rei meu senhor Como o Senhor foi com o rei meu senhor assim seja com Salomatildeo e faccedila que o trono deste seja maior do que o trono do rei Davi meu senhorrdquo103 WILLIAM B EEDERMANS PUBLISHING op cit pp 320104 Nuacutemeros 522 ldquoE esta aacutegua amaldiccediloante penetre nas tuas entranhas para te fazer inchar o ventre e te fazer descair a coxa Entatildeo a mulher diraacute Ameacutem Ameacutemrdquo

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a mulher era confrontada sobre o adulteacuterio) e em Neemias 513105 (compromisso contra a usura) Por serem maldiccedilotildees que recairiam sobre quem natildeo cumprisse a sua palavra ou imprecaccedilatildeo sobre a pessoa condenada a expressatildeo sugere uma declaraccedilatildeo solene de que aqueles castigos iriam acontecer106 Seria o conhecido ldquoassim sejardquo pronunciado em declaraccedilatildeo solene de aceitaccedilatildeo do castigo contra aquele que estava assumindo o compromisso

Em algum momento a expressatildeo passou a ser tambeacutem usada na Doxologia em resposta da congregaccedilatildeo diante de uma declaraccedilatildeo de Deus em Neemias 86 a congregaccedilatildeo diz ldquoameacutem ameacutemrdquo levantando as suas matildeos Natildeo se sabe dizer se este jaacute era um costume seguido (conforme 1Crocircnicas 1636) ou se passou a ser regular a partir daquele momento107 Sobre os cacircnticos do salteacuterio a palavra aparece no final dos primeiros quatro livros (Salmos 4113 7219 8952 10648)

CONCLUSAtildeO Os exemplos apresentados ilustram a importacircncia de o estudante do hebraico

biacuteblico analisar as palavras a partir de suas raiacutezes para poder interpretar melhor o texto biacuteblico sempre considerando prioritariamente o contexto que eacute deter-minante na interpretaccedilatildeo108 Dificilmente haveraacute um uacutenico significado oriundo de uma uacutenica raiz portanto conhecer os seus significados seraacute uma grande contribuiccedilatildeo no estudo do texto biacuteblico

Quando um hebreu ouvia as vaacuterias palavras derivadas da raiz ʾmn a ideia baacutesica que lhe vinha agrave mente era aparentemente ldquoconstacircnciardquo ldquoestabilidaderdquo Quando se referiam a objetos significavam ldquocontinuidaderdquo quando relacionadas a pessoas ldquoconfiabilidaderdquo Outros derivados da raiz satildeo ldquodurabilidaderdquo ldquoesta-bilidaderdquo ldquoverdaderdquo ldquofeacuterdquo ldquocompletuderdquo ldquoaquele que protegerdquo109 No entanto Deus eacute aquele que plenamente tem essas virtudes e atributos o ser humano tem essas qualidades ateacute certo ponto devido agrave sua limitaccedilatildeo e fragilidade

Quanto agrave palavra ldquoameacutemrdquo que proveacutem da raiz que expressa todas as qualida-des mencionadas anteriormente a expressatildeo tem o sentido de feacute e confianccedila em algo previamente estabelecido mas tambeacutem expressa uma certeza e confianccedila 105 Neemias 513 ldquoTambeacutem sacudi o meu regaccedilo e disse Assim o faccedila Deus sacuda de sua casa e de seu trabalho a todo homem que natildeo cumprir esta promessa seja sacudido e despojado E toda a congregaccedilatildeo respondeu Ameacutem E louvaram o Senhor e o povo fez segundo a sua promessardquo106 Barry J D Mangum D Brown D R Heiser et al Faithlife Study Bible (Dt 2715) Bellingham WA Lexham Press 2016107 WILLIAM B EEDERMANS PUBLISHING op cit pp 321108 Osborne (2009 paacutegs 101-139 especialmente as paacutegs 104-108) trata do exagero que muitos estudiosos da Biacuteblia datildeo agraves palavras analisadas de forma isolada descontextualizada109 WILLIAM B EEDERMANS PUBLISHING op cit pp 323

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quanto ao futuro Quando observada no Antigo Testamento ela eacute feita de forma solene e consciente e por isso mesmo raramente eacute encontrada no texto

A expressatildeo que sugere uma ratificaccedilatildeo eacute cuidadosamente aplicada nas paacutegi-nas da Biacuteblia natildeo sendo uma palavra dita em qualquer momento ou por qualquer situaccedilatildeo A conclusatildeo de Lande eacute que ldquoameacutemrdquo eacute usado como confirmaccedilatildeo de uma situaccedilatildeo muito especial e que a expressatildeo natildeo pertence agrave fala cotidiana110 Hulst expressa a mesma opiniatildeo ao afirmar ldquoA palavra ameacutem natildeo pertence agraves palavras do uso diaacuterio constante eacute mantido para uso em situaccedilotildees muito especiais e aleacutem disso raramente ocorre111 Por sua raridade no texto biacuteblico os personagens do Antigo Testamento tinham consciecircncia do seu sentido e o respeitavam

No AT a palavra eacute usada tanto pelo indiviacuteduo quanto pela comunidade para 1) confirmar a aceitaccedilatildeo de uma tarefa designada por homens mas a sua exe-cuccedilatildeo envolve a vontade de Deus (1Reis 136) 2) ratificar a aplicaccedilatildeo pessoal de uma ameaccedila ou maldiccedilatildeo divina (Nuacutemeros 522 Deuteronocircmio 2715ss Jeremias 115 Neemias 513) e 3) para declarar o louvor a Deus em resposta a uma doxologia (1Crocircnicas 1636 Neemias 86) como mostram os textos finais dos primeiros quatro livros dos Salmos (4113 7219 8952 10648)112

110 LANDE 1949 paacuteg 112 apud FLOR 2000 pp 16 17111 HULST 1953 p50 apud FLOR E N ldquoAmenrdquo in Old Testament liturgical texts a study of its meaning and later development as a plea for ecumenical understanding University of South Africa novembro de 2000 p17112 RENGSTORF ἀμήν in Wm B Eerdmans Publishing Co 1964 paacuteg 335

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A ANAacuteLISE DO DISCURSO NA INTERPRETACcedilAtildeO BIacuteBLICA

DISCOURSE ANALYSIS IN BIBLICAL INTERPRETATIONMe Thaiacutes de Oliveira Viriacutessimo113

Universidade Federal do Rio de Janeiro

RESUMO A Anaacutelise do Discurso tida como relevante para a interpretaccedilatildeo dos inuacutemeros

gecircneros textuais existentes eacute uma teoria linguiacutestica com extensiva abrangecircncia e aplicabilidade Sua importacircncia tem sido reconhecida inclusive por aqueles que manuseiam textos antigos entre os quais a Biacuteblia eacute encontrada Por ser ainda escassa a interaccedilatildeo entre estudos da linguagem e teologia no ambiente acadecircmico brasileiro objetiva-se neste artigo apresentar a Anaacutelise do Discurso como ferramenta possiacutevel de interpretaccedilatildeo biacuteblica Para isso interpretou-se Evangelho de Marcos 11-4 por meio do meacutetodo desenvolvido por Viriacutessimo (2018) sob os pressupostos da linguiacutestica textual (HORTA 1991 WALLACE 2009 GUTHRIE DUVALL 1998 OLSSON 2013) A pesquisa resultou na compilaccedilatildeo de informaccedilotildees criacuteticas acerca do texto biacuteblico

Palavras-chave Anaacutelise do Discurso Novo Testamento Grego koineacute Evan-gelho de Marcos

ABSTRACTConsidered as relevant for interpreting many existing textual genres Discour-

se Analysis is a linguistic theory with wide scope and applicability Even those who handle Ancient texts among which the Bible is found have recognized its importance As the interaction between studies in languages and Theology in Brazilian colleges is still rare this paper aims to present Discourse Analysis as a tool for biblical interpretation Using the method developed by Viriacutessimo (2018) the Gospel of Mark 11-4 was observed through linguistic assumptions (HORTA 1991 WALLACE 2009 GUTHRIE DUVALL 1998 OLSSON 2013) As a result it was developed a critical compilation of informations about the text

Keywords Discourse Analysis Biblical interpretation New Testament Koine Greek Gospel of Mark

113 Mestre em Letras Claacutessicas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro Possui tambeacutem os tiacutetulos de Licenciada em Portuguecircs-Grego pela supracitada instituiccedilatildeo e de Especialista em Antropologia Intercultural pelo Centro Universitaacuterio de Anaacutepolis (UniEvangeacutelica) Email virissimoprotonmailcom

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1 INTRODUCcedilAtildeOEacute lugar comum afirmar que nenhuma outra obra literaacuteria foi e permanece sen-

do tatildeo citada comentada traduzida e questionada na histoacuteria da humanidade como a Biacuteblia ndash coletacircnea de livros sagrados para o cristianismo e igualmente respeitada por outros segmentos religiosos globais114 A influecircncia da Biacuteblia eacute notoacuteria inclusive no que se refere agrave formaccedilatildeo cultural brasileira Suas histoacuterias inspiraram a arquitetura a exemplo do Redentor de braccedilos abertos sobre a Baiacutea de Guanabara a literatura como os personagens machadianos Esauacute e Jacoacute a muacutesica conforme a mistura dos amores poeacuteticos cantada por Renato Russo em seu Monte Castelo

Ainda assim a abordagem da Biacuteblia como um objeto de estudo suscetiacutevel ao escrutiacutenio por meacutetodos multidisciplinares continua sendo miacutenima no espaccedilo acadecircmico nacional Eacute certo que avanccedilos promissores precisam ser destacados nessa aacuterea como o recente ldquoEstudos Biacuteblicos em Foco I Congressordquo evento promovido pelo Instituto de Letras da UERJ em novembro de 2019 Contudo faz-se indispensaacutevel natildeo apenas a criaccedilatildeo mas a manutenccedilatildeo de iniciativas de pesquisas biacuteblicas fora dos ambientes confessionais de reflexatildeo

A promoccedilatildeo pois de uma metodologia de pesquisa ancorada na Anaacutelise do Discurso destacando-se a sua utilidade no ensino de liacutengua e teologia eacute a linha de chegada que se pretende alcanccedilar com esta publicaccedilatildeo Para tal o artigo foi organizado nas seguintes seccedilotildees 2 Anaacutelise do Discurso em que conceitos fundamentais acerca do assunto seratildeo apresentados 3 Metodologia em que o meacutetodo proposto seraacute passo a passo descrito numa siacutentese teoacuterica e exemplificado com sua aplicaccedilatildeo em Segundo Marcos 11-4 conforme os itens subsequentes ndash 31 Contextualizaccedilatildeo 32 Etapas de anaacutelise 33 Notas e 34 Interpretaccedilatildeo e 4 Consideraccedilotildees finais em que se registraraacute a importacircncia do diaacutelogo entre as Ciecircncias da Linguagem e a Teologia

2 ANAacuteLISE DO DISCURSOA Anaacutelise do Discurso (doravante AD) eacute um quadro teoacuterico com vaacuterias pos-

sibilidades de aplicaccedilatildeo visto que nele podem ser considerados na anaacutelise de

114 O islamismo por exemplo tem registrado no Alcoratildeo a validade da Toraacute e da Biacuteblia como escrituras inspiradas por Deus Alguns versiacuteculos em que isso pode ser percebido satildeo ldquoEle te revelou (oacute Mohammad) o Livro (paulatinamente) com a verdade corroborante dos anteriores assim como havia revelado a Toraacute e o Evangelhordquo (33) ldquoDize Cremos em Allah no que nos foi revelado no que foi revelado a Abraatildeo a Ismael a Isaac a Jacoacute e agraves tribos e no que do Senhor foi concedido a Moiseacutes a Jesus e aos profetas natildeo fazemos distinccedilatildeo alguma entre eles porque somos para Ele muccedilulmanosrdquo (384) ldquoE se tivessem sido observantes da Toraacute do Evangelho e de tudo quanto lhes foi revelado por seu Senhor alimentar-se-iam como que estaacute acima deles e do que se encontra sob seus peacutes [hellip]rdquo (566)

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um texto os seus aspectos extralinguiacutesticos (contexto de produccedilatildeo tipografia meio de apresentaccedilatildeo etc) paralinguiacutesticos (pontuaccedilatildeo entonaccedilatildeo atos de fala gecircnero textual etc) e linguiacutesticos (ordem lexical nominalizaccedilatildeo estilo etc) (LOUW 1992 p18) Mesmo textos antigos com sua exiguidade de formas podem ser observados agrave luz da AD quando definida como ldquoum processo de investigaccedilatildeo pelo qual algueacutem examina a forma e a funccedilatildeo de todas as partes e niacuteveis de um discurso escrito com o objetivo de melhor compreender tanto as partes como o todo daquele discursordquo (GUTHRIE 2001 p 255 traduccedilatildeo nossa)115 Contudo para melhor compreensatildeo do que eacute a AD faz-se necessaacuterio definir o que se entende como discurso

Funcionando ldquoao mesmo tempo como referindo objetos empiacutericos (lsquohaacute discursosrsquo) e como algo que transcende todo ato de comunicaccedilatildeo particular (lsquoo homem eacute submetido ao discursorsquo)rdquo (MAINGUENEAU 2015 p 23) ldquodiscursordquo eacute um termo polivalente Por um lado em associaccedilatildeo a ldquoobjetos empiacutericosrdquo refere-se a ldquoum conceito superordenador no que diz respeito agraves questotildees tradicionais dos filoacutelogos e dos literatosrdquo por abranger ldquotoda uma variedade de gecircneros literaacuterios de registros de niacuteveis de textualizaccedilatildeo das obras bem como as distinccedilotildees formais entre poesia e prosardquo (BONDARCZUK 2017 p 61) Por outro lado extrapolando o ato comunicativo discurso eacute ldquoum processo e natildeo um objeto apresentando um movimento que tem sua dinacircmica proacutepria (ou dyacutenamis) e que por sua vez envolve a negociaccedilatildeo de significado entre os interlocutoresrdquo (BONDARCZUK 2017 p 61) A proacutepria etimologia da palavra mostra que discurso ldquotem em si a ideia de curso de percurso de correr por de movimentordquo sendo assim ldquopalavra em movimento praacutetica de linguagem com o estudo do discurso observa-se o homem falandordquo (ORLANDI 2000 p 15)

Frente a tal complexidade a AD se configura como uma aacuterea de estudos da linguagem que perpassa procedimentos de anaacutelise linguiacutestica tradicionais chegando aos campos de atuaccedilatildeo das teorias linguiacutesticas modernas No que diz respeito aos estudos biacuteblicos somam-se deacutecadas de aplicaccedilatildeo da AD com propoacutesitos diversos ndash desde a traduccedilatildeo da Biacuteblia ateacute a interpretaccedilatildeo desta propriamente dita Porter (2015 p 134) identifica cinco tipologias de AD desen-volvidos para esses fins (1) a Sulafricana (2) a da Sociedade Internacional de Linguiacutestica (Summer Institute of Linguistics SIL) (3) uma abordadem ecleacutetica (4) a amparada na Linguiacutestica Sistecircmico-Funcional e (5) a Continental Euro-peia116 Como se veraacute adiante eacute nessa uacuteltima tipologia em que o meacutetodo a ser apresentado foi ancorado

115 ldquoa process of investigation by which one examines the form and function of all the parts and levels of a written discourse with the aim of better understanding both the parts and the whole of that discourserdquo116 Para maiores detalhes cf Breve histoacuterico entre Anaacutelise do Discurso e os estudos do Novo Testamento subcapiacutetulo da dissertaccedilatildeo de mestrado da presente autora (VIRIacuteSSIMO 2018)

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3 METODOLOGIAA Anaacutelise do Discurso Continental Europeia especificamente nos trabalhos

desenvolvidos pela escola escandinava eacute base dessa metodologia porque sendo sua ecircnfase o texto escrito o que com ela objetiva eacute o esclarecimento das relaccedilotildees de conteuacutedo entre as partes do texto explicando-as em termos da proacutepria liacutengua original Por isso eacute comum essa tipologia ser comparada agrave Linguiacutestica Textual e conforme o teoacutelogo e analista do discurso sueco Birger Olsson ldquouma anaacutelise linguiacutestico-textual eacute um componente baacutesico de todas as exegesesrdquo117 (OLSSON 1985 p 107 apud GUTHRIE 2001 p 256 traduccedilatildeo nossa)

Em suma na tipologia Continental Europeia segundo a elaboraccedilatildeo que Reed (1996) faz das formulaccedilotildees de David Hellholm professor emeacuterito da Faculdade de Teologia da Universidade de Oslo

a anaacutelise do discurso estaacute amplamente preocupada com a comunicaccedilatildeo (Ausdruck) dos signos (Zeichn) por um autorfalante (Sender) e o efeito (Appell) que eles tecircm em um leitorouvinte (Empfaumlnger) Tais signos representam arbitrariamente (Darstellung) coisas como objetos assunto e circunstacircncias (Gegenstaumlnde und Sachverhalte) dos mundos externo e interno dos textos Isso eacute basicamente o que a parte de anaacutelise do termo ldquoanaacutelise do discursordquo envolve (REED 1996 p 225 traduccedilatildeo nossa)118

Feitas tais consideraccedilotildees sobre a tipologia empregada cabe dizer que as subseccedilotildees a seguir estatildeo divididas em explicaccedilatildeo do processo e a aplicaccedilatildeo a fim de exemplificaacute-lo no corpus neotestamentaacuterio

31 CONTEXTUALIZACcedilAtildeO

O primeiro passo da contextualizaccedilatildeo do corpus eacute a leitura integral de uma traduccedilatildeo jaacute existente sempre que disponiacutevel da obra em que ele se encontra A versatildeo biacuteblica aqui consultada foi a Almeida Revista e Atualizada (seguidamente ARA) em funccedilatildeo de nela ser respeitada ldquona medida do possiacutevel a forma da liacutengua em que se encontra a mensagem originalrdquo (BARNWELL 2011 p 15) Ademais no estudo da Biacuteblia eacute oportuna a leitura em diferentes versotildees para comparaccedilatildeo ldquotraduccedilotildees entre as quais vocecirc consiga perceber os pontos de divergecircnciardquo (FEE STUART 2011 p 43) e caso o pesquisador assim queira

117 ldquoA text-linguistic analysis is a basic component of all exegesisrdquo118 ldquoDiscourse analysis is broadly concerned with the communication (Ausdruck) of signs (Zeichen) by an authorspeaker (Sender) and the effect (Appell) they have on a readerlistemer (Empfaumlnger) Such signs arbitrarily represent (Darstellung) such things as objects subject matter and circumstances (Gegenstaumlnde und Sachverhalte) of the external and internal worlds of the texts This is largely what the analysis part of the term lsquodiscouse analysisrsquo entailsrdquo

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fazer sugere-se que essa leitura comparativa esteja focada no corpus propria-mente dito

No mesmo passo da leitura realiza-se uma pesquisa histoacuterico-literaacuteria e formula-se uma redaccedilatildeo a respeito de questotildees gerais como autoria dataccedilatildeo gecircnero puacuteblico alvo entre outras informaccedilotildees que o pesquisador julgar perti-nentes Para este exemplar consultou-se o livro Introduccedilatildeo ao Novo Testamento (CARSON MOO MORRIS 1997) e a partir dele expandiu-se a bibliografia Eacute profiacutecuo que o pesquisador jaacute nessa etapa comece a estabelecer suas convicccedilotildees a respeito das questotildees gerais pontuando em seu texto quais variedades satildeo-lhe mais coerentes no todo conforme o resultado a seguir

ΚΑΤΑ ΜΑΡΚΟΝ como apresenta a 5ordf ediccedilatildeo de The Greek New Testament (ALAND 2014) traduzido como Segundo Marcos refere-se ao tiacutetulo atribuiacutedo pela tradiccedilatildeo eclesiaacutestica ao segundo evangelho da ordem canocircnica Contudo a nomenclatura mais popular para a obra eacute a de Evangelho de Marcos ou sim-plesmente Marcos isso por dois fatores Em primeiro lugar os quatro escritos dedicados agrave vida e ao serviccedilo de Jesus satildeo tradicionalmente tidos como ldquoevan-gelhordquo ndash palavra extraiacuteda justamente do primeiro versiacuteculo de Marcos Eacute vaacutelido dizer que Marcos esteve agrave margem dos estudos neotestamentaacuterios por muito tempo possivelmente em funccedilatildeo de ser esse o evangelho de menor extensatildeo (16 capiacutetulos em comparaccedilatildeo aos 28 de Mateus 24 de Lucas e 21 de Joatildeo) Jaacute nos dias atuais o relato tem ganhado proeminecircncia por ser o mais antigo de que se dispotildee acerca de Jesus tendo servido como base para os textos mateano e lucano (PAGOLA 2013 p 11)

A outra razatildeo pela qual a obra tem o tiacutetulo exposto deve-se ao fato de a primeira atribuiccedilatildeo de um suposto Marcos como autor do livro datar do II seacutec Euseacutebio historiador cristatildeo do IV seacutec dedica boas porccedilotildees de seu livro Histoacuteria Eclesiaacutestica (326 d C) discutindo a formaccedilatildeo do cacircnone evangeacutelico Ao escre-ver acerca de Segundo Marcos Euseacutebio primeiramente registra o depoimento de um presbiacutetero testemunhado por Papias bispo da Friacutegia por volta de 120 d C o qual dizia que embora natildeo tivesse ouvido e seguido diretamente a Jesus Marcos veio a escrever sobre suas accedilotildees por ter sido disciacutepulo e inteacuterprete do apoacutestolo Pedro (CESAREacuteIA III 39 15) Euseacutebio citaria ainda outros Pais da Igreja como Irineu (185 d C) e Clemente (195 d C) e justificaria a criaccedilatildeo do texto em muito pela insistecircncia da comunidade para que um relato evangeacutelico fosse escrito

A figura desse Marcos segundo o testemunho biacuteblico (TENNEY 2008 v 4 p 117) poderia ser construiacuteda a partir da fuga de Pedro da prisatildeo o apoacutestolo

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logo se dirigiu ldquoagrave casa de Maria matildee de Joatildeo tambeacutem chamado Marcos onde muita gente se havia reunido e estava orandordquo (Atos dos Apoacutestolos 1212 - ARA) Marcos cujo nome hebraico era Joatildeo parece ter sido um jovem financeiramente abastado levando-se em conta o fato de sua matildee acolher a receacutem-nascida co-munidade cristatilde em sua proacutepria casa pondo inclusive servos agrave disposiccedilatildeo dos seus integrantes (Atos dos Apoacutestolos 1213) Um detalhe interessante sobre a figura de Maria matildee de Marcos eacute seu provaacutevel status de viuacuteva uma vez que a propriedade era considerada como dela o que seria inconcebiacutevel agrave eacutepoca caso o marido ainda vivesse

O valor da mulher oriental no periacuteodo de Jesus estava ligado agrave fecundidade e ao lar natildeo se comparando ao homem na perspectiva da religiatildeo (JEREMIAS 1983 p 493) Contudo o papel desempenhado por Maria junto a essa comuni-dade cristatilde chama ainda a atenccedilatildeo para a importacircncia de natildeo se subestimar a atuaccedilatildeo das mulheres no ambiente cristatildeo natildeo apenas no sustento dos evange-lizadores mas sobretudo na divulgaccedilatildeo da mensagem de Jesus desde os dias em que o Nazareno iniciou sua missatildeo na Galileia Os registros evangeacutelicos mostram Jesus sempre disposto a posicionar a figura da mulher dentro do vindouro Reino de Deus dando-lhe voz e importacircncia ndash tanto por meio dos diaacutelogos estabelecidos com mulheres como por paraacutebolas contadas cujo enredo as tinha como personagens

Joatildeo Marcos tambeacutem possuiacutea parentesco com o proeminente liacuteder cristatildeo Barnabeacute (Colossenses 410) que o levou em sua primeira viagem missionaacuteria com Paulo (Atos dos Apoacutestolos 135) Entretanto agrave eacutepoca da empreitada Joatildeo acabou retornando a Jerusaleacutem (Atos dos Apoacutestolos 1313) Os motivos dessa desistecircncia satildeo desconhecidos sabe-se no entanto que eles foram prejudiciais a ponto de separar Paulo e Barnabeacute nas viagens posteriores (Atos dos Apoacutestolos 1537-39a) Tempos depois o jovem viria a ser considerado com respeito por Paulo aquele que antes o rejeitara (Colossenses 410 1Timoacuteteo 411 Filemom 24) Tambeacutem Pedro diria ldquoMarcos meu filhordquo (1Pedro 513) ao citaacute-lo como companheiro na chamada ldquoBabilocircniardquo ndash provavelmente Roma

Haacute quem infira ldquoassinaturas ao peacute do quadrordquo ou seja evidecircncias autorais textuais deixadas no proacuteprio evangelho (POHL 1998) Um exemplo eacute o excerto de Marcos 1017-22 o qual se refere ao encontro de Jesus com um homem rico tambeacutem relatado em Mateus 1916-22 e Lucas 1818-23 Para alguns estudiosos eacute sugerido um testemunho pessoal no versiacuteculo 21 ldquoJesus entatildeo tendo olhado para ele com olhos de amor []rdquo (traduccedilatildeo nossa) Uma informaccedilatildeo dessa natureza argumentam esses estudiosos somente poderia ser registrada pela pessoa presente em tal situaccedilatildeo ou seja o jovem e rico Joatildeo Marcos de Atos dos Apoacutestolos

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Ainda que haja consenso na Tradiccedilatildeo quanto agrave autoria de Segundo Marcos o mesmo natildeo se pode afirmar no que diz respeito ao local de publicaccedilatildeo embora a inclinaccedilatildeo da maioria seja Roma (CARSON MOO MORRIS 1997 p 107) Tambeacutem quanto agrave data de criaccedilatildeo do texto quatro satildeo as deacutecadas sugeridas Sendo a primeira delas os anos 40 d C jaacute se mostra evidente o texto escrito ser o produto de uma tradiccedilatildeo preacute-literaacuteria extensa jogando luz sobre o caraacutecter oral do evangelho Endossa-se aqui a suposiccedilatildeo da publicaccedilatildeo de Segundo Marcos ter ocorrido em meados dos anos 60 d C muito em funccedilatildeo de seu conteuacutedo e do que disseram os primeiros liacutederes acerca de sua produccedilatildeo

A principiante feacute cristatilde do I seacutec estava imersa em um amaacutelgama religioso que a ela fortemente se opunha Por um lado as pressotildees teoloacutegicas dos judeus como os escritos neotestamentaacuterios bem expotildeem por outro a repressatildeo do Im-peacuterio Romano a partir do governo de Nero (CAIRNS 1995 p 73) quando teve iniacutecio o grande massacre tanto de judeus como de cristatildeos crentes opositores agrave religiatildeo oficial sendo estes torturados como uma forma de entretenimento puacuteblico (GONZAacuteLEZ 1995 p 25) Justifica-se assim a feitura de Marcos como o apelo agrave firmeza em resposta a difiacuteceis tempos de perseguiccedilatildeo e martiacuterio e o combate ao sincretismo das divisotildees religiosas

Voltando ao evangelho como texto literaacuterio Marcos eacute parte do tetraeuangeacute-lion ldquoisto eacute os quatro Evangelhos vistos como um conjunto de documentos sal-viacuteficos que tinham o mesmo valor veio a ter ampla circulaccedilatildeo e reconhecimento como nos mostram os escritos de Irineu (bispo de Lyon por volta de 180 d C)rdquo (ALAND ALAND 2013 p 53) Seu gecircnero eacute ldquoevangelhordquo propriamente dito algo proacuteprio do cristianismo ou seja ldquoum modo de expressar-se uacutenico que natildeo pode ser identificado com nenhuma outra obra do tempo antigordquo (MARCON-CINI 2012 p 9) Embora haja quem veja semelhanccedilas dos escritos evangeacutelicos com os modelos das leituras feitas nas sinagogas ou que os vincule ldquoao gecircnero da biografia greco-romana e suas variantesrdquo (ZABATIEIRO LEONEL 2011 p 41) o objetivo dos evangelistas era divulgar a mensagem de Jesus particu-larmente para as pessoas natildeo radicadas na Palestina e a forma adotada para isso foi inovadora

A liacutengua de Marcos eacute o grego koineacute em sua variaccedilatildeo semiacuteticavulgar o que a torna fascinante Um livro escrito para o povo

[] composto de aproximadamente 95 narrativas com 11240 palavras 1345 vocaacutebulos 30 aacutepax ou seja vocaacutebulos natildeo usados em outros lugares do Novo Testamento A liacutengua eacute o grego popular da koineacute com semitismos (talithagrave kum effethacirc korbacircn Abbagrave) poreacutem natildeo de tal modo

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a justificar um original aramaico com alguns latinismos (praitoacuterion kentyrion) com estilo vivaz proacuteprio da liacutengua falada pouco cuidado gramatical e sintaticamente que privilegia a parataxe ou coordenaccedilatildeo assindeacutetica (cf 630-33) inclinado a empregar anacolutos (cerca de 20) com repeticcedilatildeo de frases Tudo evidencia o estilo do narrador atestado tambeacutem pelo frequente lsquologo em seguidarsquo e pelo presente histoacuterico (150 ocorrecircncias) [] (MARCONCINI 2012 p 90)

32 ETAPAS DE ANAacuteLISE

Esta eacute de longe a parte que exige maior dedicaccedilatildeo do pesquisador pois natildeo se resume a fichar autores mesmo que de maneira criacutetica Trata-se do exame deta-lhado do corpus em sua liacutengua original Nesse ponto faz-se sobretudo necessaacuteria a escolha consciente do texto grego que melhor ofereccedila subsiacutedios de consulta a respeito de sua formaccedilatildeo Por isso as opccedilotildees adotadas pela autora deste artigo satildeo continuamente as publicaccedilotildees da Sociedade Biacuteblica da Alemanha como a quinta ediccedilatildeo do Novo Testamento grego (ALAND 2014)

A periacutecope selecionada deve entatildeo ser lida em grego ndash ato imprescindiacutevel pois ldquoseja para a estrutura seja para a especificidade do ato de ler o texto natildeo oferece suporte a um significado inequiacutevoco mas eacute lsquoo lugar de possiacuteveis significadosrsquordquo (EGGER 1994 p 92) Isto feito o texto eacute quebrado em oraccedilotildees seus elementos analisados morfossintaticamente e todo o conjunto disposto em diagrama De fato a anaacutelise morfossintaacutetica natildeo eacute um fim em si mesma mas o meio pelo qual se poderaacute dispor o texto analiticamente dividindo-o em partes ainda menores na diagramaccedilatildeo semacircntico-gramatical 119 processo em que melhor se visualizam as relaccedilotildees de niacutevel estrutural

Na disposiccedilatildeo gramatical do texto podem-se observar todos os seus consti-tuintes linguiacutesticos e as regras que os coordenam (EGGER 1994 p 74) Jaacute na disposiccedilatildeo semacircntica satildeo retratadas ldquoas relaccedilotildees de significadofunccedilatildeo entre palavras frases oraccedilotildees sentenccedilas e ateacute mesmo paraacutegrafosrdquo 120 (DUVALL GUTHRIE 1998 p 40 traduccedilatildeo nossa) pois ldquosob o aspecto semacircntico o texto eacute visto como o conjunto de relaccedilotildees (estrutura) entre os seus elementos significantes forma um todo constituindo uma espeacutecie de lsquomicro-universo semacircnticorsquordquo (EGGER 1994 p 91)

119 Embora siga o modelo proposto por Guthrie e Duvall (1998) a diagramaccedilatildeo semacircntico-gramatical aqui empregada eacute uma adaptaccedilatildeo feita por Viriacutessimo (2018) Sendo uma ferramenta ainda em desenvolvimento ela eacute por isso amplamente passiacutevel de receber criacuteticas120 ldquothe meaningfunction relationships between the words phrases clauses sentences and even paragraphsrdquo

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O diagrama conteacutem o texto grego e uma traduccedilatildeo em portuguecircs de aparecircncia interlinear Esta traduccedilatildeo eacute preliminar vindo a sofrer sucessivas revisotildees ateacute que se constitua a proposta final Contudo ela eacute importante em funccedilatildeo de o texto original ter sido redigido em grego de modo que Wegner (1998 p 28) a considera o ldquoprimeiro passo a ser realizado na exegeserdquo Uma inovaccedilatildeo da dia-gramaccedilatildeo neste artigo eacute a numeraccedilatildeo para referenciaccedilatildeo sobrescrita antes dos termos aos quais se refere Como uacuteltimo passo tem-se a redaccedilatildeo do comentaacuterio das relaccedilotildees linguiacutesticas observadas

Exemplo

Marcos 11-4

Continua

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continuaccedilatildeo

O substantivo (1) introduz Marcos delimitando o tema de toda a obra sob a construccedilatildeo em genitivo propriamente dito (2 3 4) Haacute um sentido baacutesico de posse entre (2) (3) e (4) embora este natildeo tenha sido representado por setas Optou-se por deixar os modificadores juntos na mesma linha tanto (3) como (4) por eles funcionarem como uma unidade devendo por isso ser interpretados em conjunto Outro sentido passiacutevel de ser destacado tambeacutem natildeo exposto no

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diagrama eacute de especificaccedilatildeo entre os elementos em (3) e de relacionamento em (4)

Na parte a do versiacuteculo 2 o adveacuterbio (5) verifica ou seja fornece uma evidecircncia que comprove a validade da introduccedilatildeo por meio da foacutermula de invocaccedilatildeo veterotestamentaacuteria em perfeito resultativo (6) o qual se refere a ldquouma accedilatildeo inteiramente acabada e por conseguinte tambeacutem o resultado de uma accedilatildeo passada cujos efeitos perduram (ideia de estado)rdquo (HORTA 1991 p 208) O redobro (γε-) caracteriacutestico dos tempos passados marca esse grau de acabamento da accedilatildeo que na esfera expressa em (7) reforccedila ser o agora o momento do cumprimento de algo predito O autor pela obra metoniacutemia em (8) que ligada a (7) o especifica como ecircnfase ndash repeticcedilatildeo do artigo equivalendo a adjunto adnominal enfaacutetico Na parte b do versiacuteculo a partiacutecula demonstrativa (9) chama a atenccedilatildeo para a accedilatildeo que a segue (ROBINSON 2012 p 430) o verbo (10) prefixado pela preposiccedilatildeo que despede o objeto em (11) ldquopara determinado propoacutesitordquo (LOUW NIDA 2013 p 172) Esse objeto (11) tem sua natureza especificada em (15) e pertence a (12) Tambeacutem estaacute expressa a relaccedilatildeo de posse entre (13) e (14) (16) e (17)

No versiacuteculo seguinte a construccedilatildeo (18) e (19) explica como se deu a accedilatildeo (10) sobre o objeto (11) e qual foi a sua esfera (20) de ocorrecircncia Duas exortaccedilotildees entatildeo satildeo expressas e o contraste entre elas estaacute no tempo verbal Por um lado tem-se o imperativo aoristo (21) traduzindo ldquoordem particular e momentacircneardquo por outro haacute o imperativo presente (24) exprimindo ldquouma ordem geral que perdurardquo (HORTA 1991 p 282) Transmitem assim sob ilustraccedilatildeo a impressatildeo de grande urgecircncia e necessidade de permanecircncia tanto a forccedila de significado do verbo (19) como o seu discurso (21) e (24) A relaccedilatildeo de posse em (22) e (23) eacute um paralelismo com (16) e (17) especificando em (23) a figura do (17) Ainda outra relaccedilatildeo de posse haacute entre (25) e (26)

No versiacuteculo final sem preocupaccedilatildeo com o processo mas acompanhando o tempo da narraccedilatildeo histoacuterica o tempo aoristo em (27) expressa a accedilatildeo instantacircnea (WALLACE 2009 p 554) de chegada do sujeito (28) especificado em (29) ndash subjetivaccedilatildeo do particiacutepio Nota-se um paralelismo entre as esferas expressas em (20) e (30) de modo que (28) descreve (18) dando-lhe detalhes viacutevidos A accedilatildeo (27) entatildeo eacute ligada por (31) agrave maneira como aconteceu (32) ndash noccedilatildeo adverbial presente no modo particiacutepio A mensagem (33) dessa circunstacircncia eacute especiacutefica (34) para um fim (35)

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33 NOTAS

Esta parte do meacutetodo a seguir consiste na elaboraccedilatildeo de notas explicativas acerca de palavras-chave ou passiacuteveis de esclarecimento no corpus as quais acabam por compor um dicionaacuterio proacuteprio do pesquisador Segundo Egger (1994) o processo de compreensatildeo dos significados de um texto depende do repertoacuterio de conhecimentos preacutevios do leitor jaacute que sem o arcabouccedilo cultural necessaacuterio ele natildeo seraacute capaz de apreender os sentidos velados de um escrito especialmente se este for de tempos longiacutenquos Acerca do Novo Testamento demanda-se ldquoque se aproximem ao menos os principais paralelos do ambiente p ex os do AT e do mundo heleniacutestico contemporacircneordquo (EGGER 1994 p 92)

Os verbetes da anaacutelise que se segue foram escritos com base na Enciclopeacutedia da Biacuteblia (TENNEY 2008) e apresentados com o item a respeito do qual se pretende dissertar em negrito e em portuguecircs conforme a traduccedilatildeo interlinear seguido da forma grega em itaacutelico como aparece no corpus e introduzida pela abreviaccedilatildeo ldquogrrdquo Veja a seguir

Versiacuteculo 1

Evangelho gr εὐαγγελίου Vocaacutebulo que em sua origem ldquonatildeo se referia aos quatro escritos mas a anuacutencios proclamados oralmenterdquo (MARCONCINI 2012 p 5) Sob o advento messiacircnico significa o bom anuacutencio da possibilidade de recomeccedilo e renovaccedilatildeo Seu uso eacute encontrado no Antigo Testamento com o sentido religioso da comunicaccedilatildeo da mensagem profeacutetica (cf Isaiacuteas 527) bem como para a anunciaccedilatildeo feita em cenaacuterios de guerra ou por ocasiatildeo do nascimento de uma crianccedila (cf Jeremias 2015 1Samuel 319) Esse segundo uso estaacute conectado agrave forma de uso que os gregos faziam da palavra ndash a ideia da proclamaccedilatildeo de uma notiacutecia alegre de cunho poliacutetico ou pessoal referindo-se agrave recompensa dada ao mensageiro que proclamou tal ldquoboa novardquo Novamente trata-se de uma palavra associada a contextos basicamente orais

Jesus gr Ἰησοῦ A Jesus eacute atribuiacutedo o papel mais importante em todo o Novo Testamento sendo apresentado como a chave de interpretaccedilatildeo do Antigo Nos Evangelhos Ele eacute apresentado como um homem judeu nascido milagrosa-mente nos limites da Palestina (cf Mateus 21 Lucas 24-7) pela concepccedilatildeo espiritual de Maria virgem por ainda ser noiva de Joseacute na ocasiatildeo (cf Mateus 118 Lucas 127) Sabe-se pouco acerca de sua infacircncia (cf Mateus 219-23 Lucas 241-52 416) o relato de suas accedilotildees estatildeo concentrados em sua idade adulta (cf Lucas 323)

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Cristo gr Χριστοῦ Do hebraico mashiach aquele sobre o qual Deus der-ramou a autoridade sacerdotal e real do esperado messias dos judeus (STERN 2008 p 26) Esse tiacutetulo era concedido a reis e a sacerdotes ensejando portanto aleacutem da religiosa uma interpretaccedilatildeo poliacutetica sobre Jesus

[filho de Deus] gr [υἱοῦ θεοῦ] Pode ter sido parte original ou um acreacutescimo posterior ldquopara indicar que natildeo se tem certeza quanto ao texto original as palavras υἱοῦ θεοῦ aparecem no texto entre colchetesrdquo (OMANSON 2010 p 56) Opta-se aqui pela originalidade visto que a paternidade celestial dispen-sada sobre Jesus seraacute confirmada na forma de ilustraccedilatildeo no evangelho poucos versiacuteculos depois (Marcos 110-11) sendo o Jesus evangeacutelico uma percepccedilatildeo do evangelista Assim a expressatildeo deve ser entendida como a preocupaccedilatildeo de um autor que escreve para romanos acostumados a cultuar heroacuteis nacionais atribuiacutedos de caracteriacutesticas divinas por forccedila do arcabouccedilo miacutetico grego na religiatildeo imperial

evangelho de jesus Cristo filho de Deus gr τοῦ εὐαγγελίου Ἰησοῦ Χριστοῦ [υἱοῦ θεοῦ] Mais do que pertencer a Jesus o ldquoevangelhordquo eacute o designador da boa notiacutecia acerca daquele que se tornou ldquoportador de toda novidade sendo portador de si mesmordquo (MARCONCINI 2012 p 7)

Versiacuteculo 2

Isaiacuteas o profeta gr τῷ Ἠσαΐᾳ τῷ προφήτῃ Inspirado orador que previu a vinda do salvador e servo sofredor Jesus (Isaiacuteas 9 53) cerca de 700 anos antes de ela acontecer Foi um importante profeta veterotestamentaacuterio com clara influecircncia na esfera poliacutetico-religiosa de seu tempo (2Reis 191-7) Ao longo da histoacuteria o profetismo entre os hebreus assumiu um caraacuteter vocacional e natildeo institucional em contraste agrave profecia profissional cultual popular eou monaacuter-quica (FOHRER 1982 p 289) O que se quer dizer com isso eacute que os profetas profissionais perderam sua importacircncia para ldquoos grandes profetas individuais incluindo Amoacutes e Oseacuteias Isaiacuteas e Miqueacuteias Sofonias e Jeremias Ezequiel e em parte o Deuteroisaiacuteasrdquo (FOHRER 1982 p 291) agrave medida que o povo tomava consciecircncia de que estes estavam certos contrariamente aos profetas profissionais Foi dessa maneira que se deu iniacutecio agrave compilaccedilatildeo dos discursos dos grandes profetas individuais formando coleccedilotildees que posteriormente ficaram conhecidas como escritura sagrada (FOHRER 1982 p 291)

Eia envio meu mensageiro diante da tua face gr Ἰδοὺ ἀποστέλλω τὸν ἄγγελόν μου πρὸ προσώπου σου A citaccedilatildeo no versiacuteculo 2 pertence ao profeta

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Malaquias (Malaquias 31) enquanto a metoniacutemia enfatiza Isaiacuteas A Biacuteblia que os cristatildeos do primeiro seacuteculo liam e ouviam era a Septuaginta ndash a traduccedilatildeo grega do Antigo Testamento tradicionalmente atribuiacuteda a 72 filoacutelogos durante o periacuteodo poacutes-exiacutelico conhecida tambeacutem como LXX Grande parte das citaccedilotildees no NT era baseada nessa traduccedilatildeo e muitas vezes por meio da memoacuteria auditiva que se tinha das leituras feitas em voz alta durante as concentraccedilotildees populares Ao citar apenas Isaiacuteas Marcos parece ter cometido um ato falho que priorizou o profeta maior ou seja aquele que tinha a maior quantidade de escritos sob a influecircncia divina A seguir uma exposiccedilatildeo paralela da fonte na LXX (RAHLFS 1979) e da citaccedilatildeo em Marcos

LXX NTMalaquias 31 Marcos 12ἰ δ ο ὺ ἐ γ ὼ ἐξαποστέλλω τὸν ἄγγελόν μου καὶ ἐπιβλέψεται ὁδὸν π ρ ὸ π ρ ο σώ π ο υ μου καὶ ἐξαίφνης ἥξει εἰς τὸν ναὸν ἑαυτοῦ κ ύριος ὃν ὑμεῖς ζητεῖτε κ α ὶ ὁ ἄ γ γ ε λ ο ς τ ῆ ς δ ι α θ ή κ η ς ὃν ὑμεῖς θέλετε ἰ δ ο ὺ ἔ ρ χ ε τ α ι λ έ γ ε ι κ ύ ρ ι ο ς παντοκράτωρ

Καθὼς γέγραπται ἐν τῷ Ἠσαΐᾳ τῷ προφ ήτ ῃ Ἰδο ὺ ἀποστέλλω τὸν ἄγγελόν μου πρὸ προσώπου σου ὅς κατασκευάσει τὴν ὁδόν σου∙

Isaiacuteas 403 Marcos 13φ ω ν ὴ β ο ῶ ν τ ο ς ἐ ν τ ῇ ἐ ρ ή μ ῳ ῾Ετοιμάσατε τὴν ὁ δ ὸ ν κ υ ρ ί ο υ εὐθείας ποιε ῖτε τὰς τρίβους τοῦ θεοῦ ἡμῶν

φ ο ν ὴ β ο ῶ ν τ ο ς ἐ ν τ ῇ ἐ ρ ή μ ῳ Ἑτοιμάσατε τὴν ὁ δ ὸ ν κ υ ρ ί ο υ εὐθείας ποιε ῖτε τὰς τρίβους αὐτοῦ

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Versiacuteculo 3

Deserto gr τῇ ἐρήμῳ Frequente cenaacuterio no texto biacuteblico o deserto tinha grande influecircncia na vida e na cultura da Palestina (TENNEY 2008 v 2 p 95) Em Marcos Joatildeo estava proacuteximo ao rio Jordatildeo na altura de Nazareacute da Galileacuteia (cap 1 vv 5 e 9)

Senhor gr κυρίου Trata-se de um tiacutetulo dado a Deus e a Cristo com a ideia de ldquoaquele que governa a humanidade com autoridade sobrenaturalrdquo (LOUW NIDA 2010 p 126)

Versiacuteculo 4

Joatildeo o que batiza gr Ἰωάννης [ὁ] βαπτίζων Personagem neotestamentaacuterio tido como aquele que antecederia a vinda do Cristo (Mateus 3 Marcos 12-11 Lucas 31 15-17 21-22) Filho de sacerdote (Lucas 18-25 157-80) Joatildeo Batista rompeu com as expectativas eclesiaacutesticas de sua linhagem exercendo uma vocaccedilatildeo na medida dos profetas antigos sendo por vezes associado agrave figura de Elias (Mateus 117-14) ndash ldquoesse formidaacutevel asceta frequentador do deserto em sua vestimenta grosseira fazia reviver a imagem popular de um profeta inspirado e como os antigos profetas anunciava o iminente julgamento de Deus sobre um povo infielrdquo (DODD 1977 p 137)

Batismo gr βάπτισμα Vocaacutebulo que literalmente significa imersatildeo mas que na mentalidade judaica do seacutec I ldquopoderia incorporar ambas as realidades espirituais e os siacutembolos fiacutesicos Em outras palavras quando algueacutem falava de batismo comunicava ambas as ideias ndash a realidade e o ritualrdquo (WALLACE 2009 p 370 grifo do autor)

Batismo de arrependimento gr βάπτισμα μετανοίας Expressatildeo usada nos evangelhos (Marcos 14 Lucas 38) que revela uma das tarefas da missatildeo a qual Joatildeo estava atrelado No contexto da personagem parece que

o batismo de Joatildeo Batista reflete muito mais o costume dos banhos rituais entre os judeus do que o tipo de batismo praticado pelos cristatildeos que era um siacutembolo de iniciaccedilatildeo na comunidade cristatilde baseada na feacute em Jesus Cristo e na lealdade para com ele como Senhor e Salvador (LOUW NIDA 2013 p 479)

Libertaccedilatildeo gr ἄφεσις Consiste no ldquocancelamento da culpa do pecadordquo121 (BAUER 1979 p 125 traduccedilatildeo nossa)

121 ldquocancellation of the guilt of sinrdquo

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Pecados gr ἁμαρτιῶν A transgressatildeo da medida justa em que se deveria viver tanto conforme as coisas humanas como as divinas (BAUER 1979 p 43) Por medida justa na esfera biacuteblica o paracircmetro eacute o caraacuteter de Deus (Deu-teronocircmio 324 Salmos 117 Miqueacuteias 68) A humanidade criada agrave imagem e semelhanccedila de Deus (Gecircnesis 127) assim foi feita para viver e ser conforme seu Criador (Isaiacuteas 437 1 Coriacutentios 1031) O pecado consiste pois numa desconfiguraccedilatildeo do ser humano em referecircncia a Deus Em diferentes textos do Novo Testamento (Hebreus 1012 Gaacutelatas 14 1 Joatildeo 17) nota-se que a condiccedilatildeo pecaminosa da humanidade natildeo eacute um simples erro do alvo mas um estado de degradaccedilatildeo que soacute pocircde ser transposto por Jesus em sua entrega voluntaacuteria para morrer agrave semelhanccedila dos animais usados nos sacrifiacutecios judaicos

Perdatildeo dos pecados gr εἰς ἄφεσιν ἁμαρτιῶν O desconhecido autor da Epiacutestola aos Hebreus desenvolve a ideia de perdatildeo em comparaccedilatildeo com a lei mosaica Tratando-se de uma representaccedilatildeo do que haveria de vir (Hebreus 101) a lei teve em Jesus o seu cumprimento pois por ele foi ldquooferecido para sempre um uacutenico sacrifiacutecio pelos pecadosrdquo (Hebreus 1012) Os sacrifiacutecios de animais embora fossem aceitos por Deus dentro das condiccedilotildees estabelecidas natildeo eram suficientes para apagar a consciecircncia de pecado ou seja a culpa que reside sobre aquele que peca visto que vez apoacutes vez ao espiar o sangue de um cordeiro o indiviacuteduo se lembrava de sua condiccedilatildeo de portador da transgressatildeo (Hebreus 103) O perdatildeo dos pecados configura-se pois como aquilo que tem o poder que a lei natildeo tinha a anulaccedilatildeo total da culpa (Hebreus 10 17)

34 INTERPRETACcedilAtildeO

Eis a uacuteltima etapa do meacutetodo Nela satildeo encontradas a proposta definitiva de traduccedilatildeo amparada sobre o tripeacute exatidatildeo clareza e naturalidade (BARNWELL 2011 p 25) o esboccedilo do texto parcialmente formulado neste artigo conforme os tiacutetulos encontrados na obra Synopsis Quattuor Evangeliorum (ALAND 1967) e o comentaacuterio final em que se privilegiam apenas alguns aspectos de todo o material produzido respeitando-se as conclusotildees obtidas das relaccedilotildees intra e extra textuais dos elementos estruturantes do texto de maneira a explicitar o que seja relevante para dentro do escopo da pragmaacutetica Exemplo

Esboccedilo

11 O PROacuteLOGO12-4 JOAtildeO AQUELE QUE BATIZA

12-3 Profecia veterotestamentaacuteria14 O surgimento de Joatildeo

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Proposta de traduccedilatildeo

1 Iniacutecio do evangelho de Jesus Cristo Filho de Deus 2 Assim como perma-nece escrito em Isaiacuteas o profeta ldquoAtenccedilatildeo Despeccedilo antes de tua presenccedila o meu mensageiro o qual colocaraacute em ordem o teu caminho 3 Uma voz trovejante no deserto Preparai o caminho do Senhor fazei retas as suas veredasrdquo 4 Surgiu no deserto Joatildeo aquele que batiza anunciando o batismo de arrependimento para o perdatildeo dos pecados

Reflexatildeo

O primeiro versiacuteculo de Marcos uma sentenccedila que sendo incompleta em si funciona como o tiacutetulo a obra define os paracircmetros de leitura da histoacuteria que haacute de ser contada o evangelho pertence a Jesus Eacute esse personagem o iniacutecio da causa evangeacutelica bem como o tema do livro Sem a preocupaccedilatildeo de fornecer dados histoacutericos Marcos o apresenta como o libertador prometido e resume sua genealogia filho de Deus Ao se pensar nos primeiros leitores-ouvintes pessoas ansiosas por novos tempos de prosperidade e paz a imagem de um Jesus heroico e divino mais forte que a humanidade mortal cativa a atenccedilatildeo para o que haacute de ser dito

No versiacuteculo seguinte Marcos gera ainda mais expectativa em seu puacuteblico recorrendo agrave memoacuteria coletiva das profecias antigas para mostrar a validade de sua mensagem Ele assim o faz por meio da foacutermula ldquoconforme escritordquo mos-trando sua credencial de inspiraccedilatildeo Marcos inaugura a interpretaccedilatildeo evangeacutelica do Antigo Testamento Pode-se inferir que atribuindo a referecircncia somente a Isaiacuteas profeta de singular importacircncia o evangelista procura confirmar suas palavras como dotadas da mesma autoridade da tradiccedilatildeo profeacutetica de Israel E essa antiga profecia invocada por Marcos permanece presente enquanto o texto existir Surge entatildeo o mensageiro que haveria de ser enviado da parte de Deus

Antecedendo o Cristo esperado o mensageiro aparece sob a forma de um som uma voz que se faz ouvir no deserto Satildeo duas as exortaccedilotildees que essa voz traz agora eacute hora de preparar o caminho do Senhor e permanentemente se deve preparar as suas veredas Uma mensagem urgente e contiacutenua A voz entatildeo simplesmente aparece sob o nome de Joatildeo Do ponto de vista de quem ouve a voz tudo o que foi dito ateacute agora se afigura como o preluacutedio perfeito para a chegada do novo personagem ndash que natildeo eacute o messias mas possui grande importacircncia histoacuterica na tradiccedilatildeo profeacutetica

Eis uma obra prima a imagem desse Joatildeo que surge no ermo lugar como um som trovejante irrompendo e se transformando gradativamente em homem

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numa espeacutecie de efeito sinesteacutesico Joatildeo eacute o que batiza ou seja aquele que anuncia a outros a imersatildeo na mudanccedila da forma como se vecirc e se pensa a proacutepria existecircncia para assim se alcanccedilar a possibilidade de soltura das amarras que aprisionam O misteacuterio sendo revelado sobre a figura angelical faz com que a seacuteria narrativa assuma a delicadeza de uma contaccedilatildeo de histoacuterias sem contudo anular a forccedila das verdades para aqueles que nelas creem

CONSIDERACcedilOtildeES FINAISAs etapas de execuccedilatildeo neste artigo foram aqui descritas partindo de 2

Anaacutelise do Discurso em que se procurou elucidar essa aacuterea da linguiacutestica de maneira acessiacutevel a leitores especializados em outros saberes Em 3 Metodo-logia o meacutetodo foi explanado em detalhes nos toacutepicos subsequentes Em 31 Contextualizaccedilatildeo pretendeu-se a delimitaccedilatildeo dos sentidos de produccedilatildeo do texto Em 32 Etapas de Anaacutelise foi disposta a diagramaccedilatildeo semacircntico-gramatical desse texto e uma breve anaacutelise de suas relaccedilotildees linguiacutesticas Em seguida em 33 Notas houve a elucidaccedilatildeo de termos especiacuteficos constantes do fragmento examinado Por fim em 34 Interpretaccedilatildeo a autora pretendeu alcanccedilar uma compreensatildeo mais apurada do enredo

Conclui-se que o meacutetodo apresentado figura como um instrumental interes-sante de pesquisa e de ensino ndash objetivo primeiro para o qual foi desenvolvido ndash oferecendo subsiacutedios para os dispostos a se debruccedilar sobre o aprofundamento de sua praacutetica acadecircmica eou religiosa Num contexto de impressionante preconceito da Academia para com a Biacuteblia como objeto de estudo literaacuterio eacute essencial que o inteacuterprete do texto biacuteblico esteja disposto a reinventar sua praacutetica de pesquisa por meio da dialeacutetica multidisciplinar Existe uma instrumentalidade na diversidade das teorias cientiacuteficas e esta pode ser aproveitada sem que se extrapolem os possiacuteveis sentidos do texto

Como ressalta Egger (1994 p 9) ldquouma metodologia neotestamentaacuteria eacute antes de tudo uma introduccedilatildeo agrave correta leitura dos textos do Novo Testamentordquo As distacircncias existentes entre um texto antigo e o leitor atual constituem um grande desafio dada a imensa diferenccedila entre uma eacutepoca e outra natildeo raro se afigurando praticamente impossiacutevel o pleno resgate do entendimento do modo de pensar de um narradornarrataacuterio inserido no contexto originaacuterio e o leitorinteacuterprete atual voltado para a pesquisa na constante busca do conhecimento Tanto a liacutengua como a cultura em geral passam por mudanccedilas as mais variadas ao longo do tempo e caso o pesquisador tenha um compromisso confessional com o texto ele lhe imporaacute tambeacutem distanciamentos de ordem divina (LOPES 2004 p 25)

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O reconhecimento das aparentes barreiras exige o esforccedilo do estranhamento por parte desse leitorinteacuterprete que por um lado pode estar preso agrave familia-ridade encontrada no texto ou que por outro lado pode ler equivocadamente sob seu perspectivismo o que lhe eacute desconhecido Por isso trabalhar com textos da Antiguidade eacute tambeacutem uma provocaccedilatildeo das Ciecircncias Sociais Assim para ambas as situaccedilotildees supracitadas pode-se parafrasear o antropoacutelogo Gilberto Velho (1978 p 45) e dizer que eacute necessaacuterio ao que se propotildee agrave pesquisa o confronto intelectual e emocional de diferentes versotildees e interpretaccedilotildees do texto a fim de se tornar capaz de estranhaacute-lo Soacute assim se consegue alcanccedilar a erudiccedilatildeo prometida pela reflexatildeo cientiacutefica

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ldquoNO DIA DO SENHORrdquo ndash OS ATOS O EVENTO A AUTOEXPRESSAtildeO

Uma breve reflexatildeo sobre as tradiccedilotildees lituacutergicas e sobre os termos liturgia culto e adoraccedilatildeo

Theoacutegenes Eugecircnio Figueiredo122

RESUMO No presente artigo satildeo apresentados os nuacutecleos lituacutergicos herdados do cris-

tianismo primitivo que no decorrer dos seacuteculos tiveram em si alguns elementos agregados constituindo-se posteriormente em grandes famiacutelias lituacutergicas Os protestantes satildeo caracterizados historicamente pela diversidade lituacutergica por possuiacuterem nove famiacutelias lituacutergicas No Brasil os protestantes se caracterizam como igrejas livres que fogem das foacutermulas lituacutergicas preacute-fixadas Liturgia culto e adoraccedilatildeo satildeo conceitos abordados atraveacutes dos siacutembolos ldquoos atosrdquo ldquoo eventordquo e ldquoa autoexpressatildeordquo Comenta-se a criacutetica de Kierkgaard agrave inversatildeo das funccedilotildees dos partiacutecipes de um evento cultual O evento culto eacute definido como o trabalho do povo e o evento da ldquovisatildeo de Isaiacuteasrdquo eacute apresentado como um dos modelos cultuais

Palavras-chave Culto Liturgia Adoraccedilatildeo Famiacutelias lituacutergicas Batistas

ABSTRACTThis article presents the liturgical nuclei inherited from primitive Christianity

which over the centuries had some elements aggregated to later constituting large liturgical families Protestants are historically characterized by liturgical diversity as they have nine liturgical families In Brazil Protestants are charac-terized as free churches diverting from pre-fixed liturgical formulas Liturgy worship and adoration are concepts commented by the symbols ldquothe actsrdquo ldquothe eventrdquo and ldquoself-expressionrdquo Kierkgaardrsquos critique about the inversion of the roles of participants in a worship event is commented The worship event is defined as the job of the people and the event of the ldquovision of Isaiahrdquo is commented as one of the worship models

Keywords Worship service Liturgy Worship Liturgical families Baptist

122 Doutor em Ciecircncias da Religiatildeo pela UFJF e mestre em muacutesica pela UNIRIO Professor do Curso de Licenciatura em Muacutesica com Gestatildeo da Muacutesica Eclesiaacutestica da Faculdade Batista do Rio de Janeiro - STBSB

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1 AS FAMIacuteLIAS LITUacuteRGICAS ndash O LEGADOOs elementos lituacutergicos herdados do cristianismo primitivo formaram dois

nuacutecleos o nuacutecleo da Palavra (proveniente do culto judaico que passou a ser chamado de Liturgia da Palavra nas celebraccedilotildees da Igreja Catoacutelica) e o nuacutecleo da Ceia do Senhor ou da Eucaristia Este pode ser considerado ldquocomo uma marca genuinamente cristatilderdquo123 da liturgia

Ao longo dos seacuteculos alguns elementos foram agregados a esses dois nuacutecleos da liturgia da Igreja Cristatilde surgindo uma ordo124 isto eacute ldquoum conjunto de ele-mentos e formas usados para realizar o encontro entre Deus e a comunidade E eacute a partir desse processo que se constituiacuteram as grandes famiacutelias lituacutergicas que mantecircm os nuacutecleos baacutesicos comunsrdquo125

Essas famiacutelias satildeo centralizadas em

a) Alexandria (Egito) conhecida como a liturgia de Satildeo Marcos

b) Jerusaleacutem e Antioquia (Siacuteria Ocidental) conhecida como a liturgia de Satildeo Tiago

c) Siacuteria Oriental

d) Cesareia conhecida como a liturgia de Satildeo Basiacutelio

e) Constantinopla conhecida como a liturgia bizantina ou liturgia de Satildeo Crisoacutestomo

f) Roma conhecida como a liturgia de Satildeo Pedro que se encontra em uso mais amplo no catolicismo romano

g) a liturgia gaacutelica que compreende o clatilde ocidental natildeo-romano126

Os protestantes possuem nove famiacutelias lituacutergicas tendo desde o iniacutecio o culto protestante se caracterizado pela diversidade lituacutergica O diagrama a seguir mostra essas famiacutelias

123 MARTINI 200223124 Palavra latina que significa ordem significando uma disposiccedilatildeo metoacutedica um arranjo de coisas segundo certas relaccedilotildees uma boa disposiccedilatildeo um bom arranjo um arrumaccedilatildeo (Dicionaacuterio Aureacutelio)125 MARTINI 200224126 WHITE 199728

88 TeoloacutegicaRevista Brasileira de Teologia ISSN 1807-7056 nordm 8 outdez Rio de Janeiro 2020 p 86 - 97

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Diagrama 1127

Ala esquerda significa uma ruptura radical com a liturgia medieval tardia encontrando-se nela os Anabatistas que segundo uma corrente histoacuterica originou os Batistas atuais ala Centro significa os grupos mais moderados em relaccedilatildeo a uma ruptura com a liturgia histoacuterica e ala Direita mostra os grupos mais conservadores em termos de preservaccedilatildeo da liturgia histoacuterica

As igrejas de tradiccedilatildeo lituacutergica possuem os livros lituacutergicos que contecircm os ritos e as leituras de suas celebraccedilotildees Um deles eacute o Palavra do Senhor I ndash Lecionaacuterio dominical ABC que tem a sua imagem apresentada a seguir e a especificaccedilatildeo do seu conteuacutedo128

Lecionaacuterio dominicalConteacutemRito da Missa (partes fixas)Proacuteprio do tempo advento natal quaresma tempo comum etcProacuteprio dos santosVasta coleccedilatildeo de prefaacuteciosVaacuterias oraccedilotildees eucariacutesticasMissas rituais Batismo confirmaccedilatildeo profissatildeo religiosa etcMissas e oraccedilotildees para diversas necessidades pelo papa pelos bis-pos pelos governantes pela conservaccedilatildeo da paz e da justiccedila etcMissas votivas Santiacutessima Trindade Espiacuterito Santo Nossa Senhora etcMissas dos fieacuteis defuntosNo iniacutecio o Missal apresenta longa e preciosa introduccedilatildeo con-tendo a Instruccedilatildeo Geral sobre o Missal Romano e as Normas Universais para o Ano Lituacutergico e o Calendaacuterio1

127 WHITE 199729128 PERES 2018

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O Livro lituacutergico ldquoeacute um livro grande que conteacutem todo o formulaacuterio e todas as oraccedilotildees usadas nas celebraccedilotildees da missa para todo o ano lituacutergico Fitas marcadoras indicam as diversas partes da celebraccedilatildeo []rdquo129

11 OS BATISTAS BRASILEIROS E SUA TRADICcedilAtildeO LITUacuteRGICA

No Brasil o protestantismo de missatildeo chegou com suas tradiccedilotildees lituacutergicas tendo os batistas seguido a tradiccedilatildeo das ldquoigrejas livres da poacutes-Reforma e principalmente dos reavivamentos ingleses e americanos somados agraves formas de cultos das fronteiras da expansatildeo norte-americana para o oesterdquo130

O quadro a seguir mostra a data da chegada das diversas denominaccedilotildees protestantes em terra brasileira e sua linha lituacutergica

Protestantes Entrada no Brasil Igrejas livres (natildeo-lituacutergicas)Congregacionais 1855 SimPresbiterianos 1859 SimBatistas 1881 SimMetodistas 1886 SimEpiscopal 1898 Natildeo

Antonio Gouvecirca de Mendonccedila afirma que a liturgia dos batistas ldquoeacute uma das mais informaisrdquo131 isso significa dizer que os batistas tecircm uma praacutetica lituacutergica ldquoque foge a foacutermulas prefixadas aos rituais e aos aparato lituacutergico [] O culto e demais rituais preestabelecidos satildeo virtualmente condenados e quase sempre com a alegaccedilatildeo de que sugerem a missa catoacutelicardquo132 Donald P Hustad afirma que ldquoa heranccedila dos evangeacutelicos tiacutepicos eacute uma adoraccedilatildeo natildeo-liacutetuacutergica isto quer dizer eles rejeitam todas as formas ou liturgias estabelecidasrdquo133

Entatildeo se as igrejas batistas satildeo de tradiccedilatildeo lituacutergica livre as liturgias satildeo fundamentadas em quecirc

2 LITURGIA CULTO E ADORACcedilAtildeO ndash OS ATOS O EVEN-TO E A AUTOEXPRESSAtildeO CULTUAL

O termo liturgia eacute muitas vezes considerado sinocircnimo dos termos culto e adoraccedilatildeo Entretanto eacute necessaacuterio que se faccedila a distinccedilatildeo entre esses termos Os

129 PERES 2018130 MENDONCcedilA e VELASQUES FILHO 2002171 Grifo nosso131 MENDONCcedilA e VELASQUES FILHO 200244132 MENDONCcedilA e VELASQUES FILHO 2002156133 HUSTAD 1986166

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atos praticados durante o culto satildeo considerados liturgia culto eacute um evento total que abrange um conjunto de elementos lituacutergicos sendo um desses elementos a adoraccedilatildeo (em seu sentido estrito) a atitude do indiviacuteduo Adoraccedilatildeo eacute uma autoexpressatildeo em resposta agrave accedilatildeo divina

21 LITURGIA ndash OBRA DO POVO TRABALHO DO POVO OS ATOS CULTUAIS

Voltemos a nossa atenccedilatildeo ao termo liturgia e vejamos o que podemos de-preender do proacuteprio termo

Liturgia foi traduzida para o portuguecircs da palavra grega leitourgeo composta dos vocaacutebulos gregos LEITOSLAOS que significa povo e ERGON que significa trabalho Haacute um consenso entre os estudiosos do assunto que o significado seja ldquoobra do povordquo ldquotrabalho do povordquo

Essa ideia de trabalho do povo tambeacutem pode ser inferida da maioria dos vocaacutebulos originais da Septuaginta traduzidos para o idioma portuguecircs como liturgia Satildeo eles 134

Vocaacutebulo Significado Passagem biacuteblica

Leitourgiacutea (6 vezes)

Ministeacuterio Lc 123Assistecircncia 2 Co 912Serviccedilo Fp 217Socorro Fp 230Ministeacuterio Hb 86Serviccedilo Sagrado Hb 921

Leitourgoacutes (5 vezes)Ministro

Rm 136Rm 1516Hb 17Hb 82

Auxiliar Fp 225

Leitourgeacuteotilde (3 vezes)Servindo At 132Servi-los Rm 1527Serviccedilo Sagrado Hb 1011

Leitourgikoacutes (1 vez) Ministradores Hb 114

134 COSTA 198715-16

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Como visto o termo liturgia ocorre no Novo Testamento num total de quinze vezes tendo o seu significado se consolidado como ldquoo conjunto das falas e praacuteti-cas de culto dos seguidores de Jesusrdquo135 Essas praacuteticas de culto ou decorrentes do culto satildeo a assistecircncia o socorro o auxiacutelio o serviccedilo etc

22 CULTO O EVENTO CULTUAL TOTAL

Culto eacute uma reaccedilatildeo do humano agrave uma accedilatildeo divina Um bom exemplo eacute a atitude de Noeacute narrada em Gecircnesis 6-8 Depois do diluacutevio Noeacute ldquoconstruiu um altar dedicado ao Senhor e tomando alguns animais e aves puros ofereceu-os como holocausto []136 Liturgia no caso de Noeacute foi o evento constituiacutedo do ldquoconjunto de atos palavras e formas carregados de significado expressos de um certo jeito numa certa sequecircnciardquo137 realizados na reaccedilatildeo de Noeacute agrave bondade de Deus para consigo

23 A ADORACcedilAtildeO UMA AUTOEXPRESSAtildeO CULTUAL

Em relaccedilatildeo ao conceito de adoraccedilatildeo Bob Sorge em seu livro Exploring worship apresenta-nos dois exemplos que ajudam no entendimento dessa au-toexpressatildeo Satildeo os exemplos de Joacute e Abraatildeo

Joacute foi atingido por uma extrema calamidade perdendo todos os seus bens e perdendo todos os seus filhos

A resposta de Joacute eacute emocionante ldquoEntatildeo Joacute se levantou rasgou o manto e raspou a cabeccedila e ele caiu no chatildeo e adorourdquo (Joacute 120) Se concordamos que esta eacute a primeira menccedilatildeo de adoraccedilatildeo na Biacuteblia entatildeo podemos dizer que a adoraccedilatildeo eacute o que fazemos em face de grande trageacutedia e julgamento pessoal Adoraccedilatildeo em sua essecircncia natildeo eacute o que fazemos quando a vida eacute feliz e nos sentimos abenccediloados eacute o que fazemos quando perdemos as coisas que satildeo mais caras para noacutes o teste de adoraccedilatildeo natildeo eacute no domingo de manhatilde quando nos reunimos com o povo de Deus De manhatilde eacute faacutecil adorar Os crentes estatildeo reunidos em santa convocaccedilatildeo os liacutederes oram e estatildeo preparados para liderar o canto do Senhor comeccedila a surgir a presenccedila de Deus enche a casa Se vocecirc natildeo pode adorar no domingo de manhatilde vocecirc provavelmente estaacute morto138

135 MIRANDA 201239 Grifo nosso136 BIacuteBLIA ONLINE Gn 820137 MARTINI 200221 Grifo nosso138 SORGE 2018 cap 4 Grifo nosso

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Nesse ato de culto de Joacute a adoraccedilatildeo pode-se verificar uma expressatildeo original ndash uma autoexpressatildeo ndash que tem como essecircncia a espontaneidade da expressatildeo em resposta agrave percepccedilatildeo da trageacutedia ocorrida em sua vida

O conceito de autoexpressatildeo eacute definido como uma expressatildeo original que responde espontaneamente agrave percepccedilatildeo de algo A autoexpressatildeo acontece em resposta a um dado sensorial especiacutefico tendo como essecircncia a espontaneidade Contrariamente a expressatildeo pode ser um ato intencional servindo mais para demonstrar os sentimentos dos indiviacuteduos do que se apresentar como uma expressatildeo primaacuteria uma autoexpressatildeo139

O segundo exemplo citado por Sorge se encontra em Gecircnesis 225 passagem biacuteblica da narrativa de um episoacutedio muito marcante na vida de Abraatildeo que denota sua atitude de adorar mesmo quando Deus ordenara que sacrificasse o seu proacuteprio filho seu uacutenico herdeiro que o proacuteprio Deus tinha providenciado de forma milagrosa Mesmo naquela situaccedilatildeo desesperadora Abraatildeo teve a atitude de adorar a Deus Assim comenta Sorge

Quando Abraatildeo estava a caminho da montanha onde pretendia matar o seu uacutenico filho o que disse ele aos criados ldquoEntatildeo disse a seus servos Esperai aqui com o jumento eu e o rapaz iremos ateacute laacute e havendo ado-rado voltaremos para junto de voacutesrdquo (Gecircnesis 225) Na ansiedade mental de planejar matar o seu proacuteprio filho quando Deus sem duacutevida parecia estar a milhas de distacircncia Abraatildeo adorou Ele natildeo podia entender por-que Deus tinha ordenado que ele sacrificasse o seu uacutenico filho o uacutenico e verdadeiro herdeiro que Deus tinha providenciado milagrosamente Mas apesar da sua incapacidade em compreender as intenccedilotildees de Deus Abraatildeo adorou A sua adoraccedilatildeo natildeo teria sido completa sem a sua total obediecircncia140

139 FIGUEIREDO faz o seguinte comentaacuterio sobre a diferenciaccedilatildeo entre esses dois conceitos ndash autoexpres-satildeo e expressatildeo ldquouma autoexpressatildeo de juacutebilo realizada por um indiviacuteduo pela presenccedila apresentaccedilatildeo ou contemplaccedilatildeo de um ldquodeusrdquo ou de algum objeto que o represente pode resultar no nascimento de uma praacutetica ritual Nesse momento originaacuterio de um ritual a demonstraccedilatildeo de juacutebilo gradativamente se propaga agraves pessoas presentes e todos satildeo possuiacutedos do mesmo sentimento as emoccedilotildees humanas satildeo tocadas profundamente nesse momento Numa segunda ocasiatildeo tal demonstraccedilatildeo de juacutebilo eacute repetida mas agora sem aquele fator gerador da expressividade do grupo como ocorrido na primeira ocasiatildeo o segundo momento eacute realizado portanto como uma accedilatildeo intencional do grupo servindo mais para demonstrar os sentimentos dos indiviacuteduos do que uma autoexpressatildeo ou servindo para aliviar os sentimentos do grupo Neste caso ocorre a execuccedilatildeo de um ato supostamente expressivo porque natildeo possui a respectiva motivaccedilatildeo interior Eacute um ato ritual e natildeo um ato expressivo em sua essecircncia (um ato autoexpressivo) Sua suposta expressividade tem uma motivaccedilatildeo loacutegica racional intencional em contraposiccedilatildeo a um ato fisioloacutegico e espontacircneo caracteriacutestica daquele primeiro momento de juacutebilordquo (FIGUEIREDO 2010124-125) Leia mais sobre esse assunto em FIGUEIREDO 2010123-125140 SORGE 2018 cap 4 Grifo nosso

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Essa expressatildeo primaacuteriaoriginal de adoraccedilatildeo de Joacute e Abraatildeo em resposta agrave atuaccedilatildeo de Deus em suas vidas satildeo exemplos de autoexpressatildeo

3 CULTO UM EVENTO NO QUAL Eacute O POVO QUEM TRA-BALHA

Haacute uma criacutetica do filoacutesofo-teoacutelogo dinamarquecircs Soren Kierkgaard que aponta para a inversatildeo das funccedilotildees dos partiacutecipes nos atos de culto (liturgia) a qual deve ser levada em consideraccedilatildeo

Kierkgaard criticou a natildeo participaccedilatildeo ativa do povo da sua igreja lituacutergica luterana ldquoInsistiu em que na verdadeira adoraccedilatildeo a congregaccedilatildeo satildeo os atores o ministro e o coro satildeo os lsquopontosrsquo e Deus eacute o auditoacuteriordquo141 Kierkgaard afirma que ldquono sentido mais enfaacutetico Deus eacute o criacutetico frequentador de teatro que observa para ver como o texto eacute declamado e como ele eacute ouvido O orador portanto eacute o ponto e o ouvinte encontra-se abertamente diante de Deus O ouvinte se posso assim dizecirc-lo eacute o ator que verdadeiramente atua diante de Deus142

A sua criacutetica estava fundamentada nos fatos ocorridos na Idade Meacutedia quan-do ldquoa missa era essencialmente lsquoobra dos sacerdotesrsquo a congregaccedilatildeo natildeo era nem de bons espectadores visto que natildeo entendia as palavras [porque a missa era realizada no idioma latino] e em uma grande catedral natildeo conseguia nem ver a accedilatildeordquo143 Nos dias de hoje

em algumas situaccedilotildees evangeacutelicas parece claro tambeacutem que a adoraccedilatildeo eacute obra do ministro e do coro a congregaccedilatildeo eacute o ldquoauditoacuteriordquo o que suge-re que eles [fieacuteis] agem mais como ouvintes Em muitas situaccedilotildees eles [fieacuteis] nunca satildeo encorajados a falar uma soacute palavra nos cultos lendo as Escrituras ou participando das oraccedilotildees [] Indubitavelmente lhes eacute per-mitido cantar os hinos embora algumas vezes estes sejam bem poucos e ateacute mesmo esta oportunidade eacute ignorada por muitas pessoas em algumas congregaccedilotildees Eacute verdade que pode-se envolver na adoraccedilatildeo ndash pode-se ateacute falar com Deus ndash sem pronunciar nem um som audiacutevel mas cremos que eacute desejaacutevel ter o maacuteximo de participaccedilatildeo da congregaccedilatildeo tanto do que se fala como do que se canta e tambeacutem da accedilatildeo fiacutesica 144

141 HUSTAD 1986165142 HUSTAD 1986165143 HUSTAD 1986165144 HUSTAD 1986165

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Os encontros cultuais puacuteblicos devem priorizar portanto a participaccedilatildeo ativa do povo o trabalho do povo isto eacute os elementos lituacutergicos de um culto (adoraccedilatildeo leitura biacuteblica canto coletivo oraccedilatildeo testemunho mensagem muacutesica instrumental coro etc) devem propiciar a participaccedilatildeo plena do povo

Outro autor que trabalha esses dois termos ndash liturgia e culto ndash eacute o teoacutelogo Nelson Kirst Ele compara o momento do culto com o ldquorancho na roccedilardquo O culto eacute o encontro de Deus com a sua comunidade e a ldquoliturgia eacute o conjunto de elementos e focircrmas (espaccedilos lugares tempos objetos funccedilotildees gestos foacutermu-las histoacuterias instruccedilotildees olhares siacutembolos e significados) atraveacutes dos quais se realiza o encontro de Deus com sua comunidaderdquo145

Imagine-se uma famiacutelia de agricultores que sai para trabalhar um pedaccedilo de terra localizado a 1 ou 2 km de casa De manhatilde bem cedo potildeem-se todos a caminho de carroccedila levando enxadas foices facotildees arado e o cesto com o lanche Laacute chegando dividem as tarefas e se lanccedilam ao trabalho Mourejam por umas duas horas e entatildeo se recolhem para um descanso Em algum ponto daquela roccedila ergue-se o rancho construccedilatildeo tosca de trecircs paredes e um telhado em meia-aacuteguaEacute no aconchego do rancho na roccedila que a famiacutelia camponesa depois da primeira arrancada de enxada e arado se recolhe descansando o corpo fortalecendo-se de patildeo aacutegua fresca e conversa - para meia horinha depois voltar agrave enxada e ao arado e misturar seu suor agrave terra em outro tanto de jornada A famiacutelia vai da enxada para o rancho e sai fortalecida do rancho para a enxada A parada no rancho natildeo faz sentido sem o trabalho na roccedila E o trabalho na roccedila se esgota em agitaccedilatildeo e cansaccedilo sem a parada no rancho146

O culto entatildeo eacute o lugar para renovaccedilatildeo de energias espirituais lugar onde o povo busca ldquoalimentordquo espiritual atraveacutes dos atos de adoraccedilatildeo e louvor ao Deus criador ao Deus salvador Atos de enunciaccedilatildeo de suas alegrias e suas tristezas de exposiccedilatildeo suas ansiedades e vitoacuterias e o retorno para a vida ordinaacuteria das atividades seculares

O culto constituiacutedo pelo conjunto de elementos lituacutergicos eacute um evento total que possui situaccedilotildees momentacircneas cultuais diversas Qual eacute a origem desses momentos determinados constantes de uma liturgia

145 KIRST 1998119146 KIRST 1998119

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4 ldquoA VISAtildeO DE ISAIacuteASrdquo UM DOS MODELOS DE EVENTO CULTUAL

Apesar da origem natildeo-lituacutergica dos batistas sua liturgia segue alguns princiacutepios modelos Os atos lituacutergicos natildeo satildeo propostos aleatoriamente Entatildeo de onde vecircm esses princiacutepiosmodelos que norteiam uma liturgia

Esses elementos vecircm dos exemplos biacuteblicos de adoraccedilatildeo O teoacutelogo Romeu R Martini nos apresenta no seu livro Liturgia e culto o exemplo biacuteblico de Noeacute (Gn 6-8) e o teoacutelogo Russel P Shedd no seu livro Adoraccedilatildeo biacuteblica elenca vaacuterios exemplos biacuteblicos de adoraccedilatildeo afirmando que ldquoas sagradas letras satildeo o nosso manual de adoraccedilatildeordquo147

O salmista no Salmo 96 Enoque em Gn 522-24Hb 56 Jacoacute em Gn 3222ss Moiseacutes em Ex 3312-33 Isaiacuteas em Is 61-8 e Maria em Jo 121-8 satildeo os exemplos apresentados por Shedd

De todos esses exemplos biacuteblicos de adoraccedilatildeo haacute uma convergecircncia entre os teoacutelogos de que a experiecircncia de Isaiacuteas eacute a que mais detalhes apresenta sobre os diversos atos ocorrentes em um encontro de um ser humano com o Deus criador Do texto de Isaiacuteas 6-1-9a emergem os seguintes atos lituacutergicos

- Consciecircncia da presenccedila de Deus (Is 61) ndash Preluacutedio

- Adoraccedilatildeo (Is 62-3)

- Confissatildeo (Is 65)

- Perdatildeo (Is 66-7)

- Apelo (Is 68) ndash Palavra do SenhorEnsino

- Consagraccedilatildeo (Is 68) ndash Resposta do homem

- Disponibilidade para o serviccedilo (Is 69a) ndash Posluacutedio

Nelson Kirst fala de uma forma mais abrangente que a liturgia ndash a sequecircncia de atos elementos eventos ornamentos e momentos lituacutergicos ndash precisa ser moldada Utiliza o exemplo de uma casa com seus cocircmodos para o entendimento dessa questatildeo

Uma casa eacute composta de diversas dependecircncias Haacute certas dependecircncias que natildeo podem faltar numa casa p ex a cozinha ou o dormitoacuterio Satildeo imprescindiacuteveis Haacute outras partes que satildeo uacuteteis sem ser imprescindiacuteveis

147 SHEDD 1987113

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p ex a sala de estar a sala de jantar ou a varanda Assim tambeacutem a liturgia tem partes imprescindiacuteveis que nunca podem faltar e partes que satildeo uacuteteis mas podem faltar num cultoNa comparaccedilatildeo da liturgia com uma casa tambeacutem se aprende alguma coisa sobre a disposiccedilatildeo das diversas partes dentro do conjunto A entrada de uma casa geralmente vai ser pela sala de estar ou perto da sala de estar e natildeo pela cozinha ou pelo dormitoacuterio Por outro lado o banheiro pode localizar-se entre o dormitoacuterio e a sala ou entre o dormitoacuterio e a cozinha e a sala de estar pode encontrar-se do lado esquerdo ou do lado direito da entrada Assim tambeacutem na liturgia haacute certas partes que tecircm seu lugar fixo p ex o canto de entrada soacute pode estar no iniacutecio do culto e a interpretaccedilatildeo da Palavra soacute pode vir depois das leituras biacuteblicas E haacute outras partes que podem ser dispostas com certa flexibilidadeFinalmente haacute muita maleabilidade na maneira como satildeo configuradas as diversas dependecircncias de uma casa O material as cores as cortinas a decoraccedilatildeo dependeratildeo de quem haacute de utilizar essa casa para morar Assim tambeacutem haacute muita liberdade quanto agrave maneira ou ao estilo de se realizar as partes da liturgia148

5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAISFinalizando liturgia significa os atos ocorrentes no momento de culto isto

eacute os atos praticados pelos indiviacuteduos em reaccedilatildeo agrave accedilatildeo divina Os batistas satildeo uma igreja livre (natildeo-lituacutergica) em relaccedilatildeo agrave orientaccedilatildeo lituacutergica A liturgia dos batistas procura seguir os exemplos de adoraccedilatildeo encontrados na Biacuteblia sendo a experiecircncia de Isaiacuteas com Deus a mais ensinada nas casas teoloacutegicas como modelo de atos cultuais

Para que a liturgia natildeo se transforme em um ritual ndash uma monoacutetona repeticcedilatildeo de atos lituacutergicos ndash existe uma liberdade na sua elaboraccedilatildeo preservando-se alguns dos elementoseventos cultuais de adoraccedilatildeo biacuteblica bem como a omissatildeo de outros

Hustad afirma que em resumo a liturgia de um culto deve contemplar duas accedilotildees baacutesicas da adoraccedilatildeo ldquouma revelaccedilatildeo plena de Deus seus atos e sua vontade para noacutes e uma reaccedilatildeo dos homens e mulheres incluindo corpo emoccedilatildeo intelecto e vontaderdquo149

148 KIRST 1998125149 HUSTAD 1986166 Grifo nosso

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LITURGIA E IDENTIDADE RELIGIOSA NO APOCALIPSE DE JOAtildeO

Valtair A Miranda150

RESUMONosso propoacutesito neste artigo eacute analisar as peccedilas hiacutenicas descritas nos capiacutetulos

quatro e cinco do livro de Apocalipse e refletir sobre o papel que executam na construccedilatildeo e manutenccedilatildeo da identidade social e religiosa dos leitores e ouvintes desse livro no momento da sua produccedilatildeo Argumentamos que os hinos registrados nas obras do movimento de Jesus possuiacuteam um papel significativo na definiccedilatildeo da autodescriccedilatildeo dos membros das igrejas quer por representarem o que se cantava nas comunidades quer como sugestatildeo do que cantar Cantar entatildeo natildeo apenas descreve a pessoa de Deus ou o falar com ele mas propicia a quem canta um forte senso de identidade pessoal e social Nos hinos o fiel expressa o que ele se ainda natildeo eacute pelo menos gostaria de ser

Palavras-chave Apocalipse de Joatildeo Culto e ritual hino e liturgia Cristianismo antigo

ABSTRACTOur purpose in this article is to analyze the hymn pieces of Revelation 4 and

5 and to reflect on their role in building and maintaining the social and religious identity of the readers and listeners of this book at the time of its production We argue that the hymns recorded in the works of the Jesus movement had a signifi-cant role in defining the self-description of church members either because they represent what was sung in the communities or rather as a suggestion to sing Singing then not only describes God or speaks to him but gives the person who sings a strong sense of personal and social identity In the hymns the faithful express what he if he still is not at least would like to be

Keywords Revelation of John Worship and ritual worship and liturgy Ancient Christianity

150 Valtair Afonso Miranda eacute Doutor em Ciecircncias da Religiatildeo (UMESPSP) e Doutor em Histoacuteria (UFRJ) Eacute Diretor Acadecircmico da Faculdade Batista do Rio de Janeiro onde leciona Histoacuteria da Igreja e Exegese do Novo Testamento

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O capiacutetulo 4 de Apocalipse inicia uma longa seccedilatildeo descritiva de um tipo de culto celestial Aparentemente este livro poderia ser dividido em trecircs partes uma seccedilatildeo para descrever a visatildeo do Filho do Homem que aparece a Joatildeo para narrar sete cartas para sete igrejas (capiacutetulos 1 a 3) uma seccedilatildeo para descrever a visatildeo do rolo selado com sete selos (capiacutetulos 4 a 11) e uma uacuteltima para apresentar o conflito escatoloacutegico entre o Cordeiro e o Dragatildeo (capiacutetulos 12 a 22)151

Nesse sentido o capiacutetulo 4 seria o iniacutecio da segunda seccedilatildeo Sua narrativa co-meccedila com o ingresso do visionaacuterio por uma porta aberta no ceacuteu e o subsequente acesso ao Templo Celestial Na perspectiva da audiecircncia desse texto a cena elabora uma narrativa a partir de uma preacutevia experiecircncia extaacutetica Afinal Joatildeo continua na Ilha de Patmos apesar de o seu espiacuterito vislumbrar o trono divino e uma seacuterie de personagens que participam da liturgia celestial Embora se apresente como a narrativa de uma experiecircncia visionaacuteria entretanto o Apocalipse ecoa por meio dessa cena um conjunto de tradiccedilotildees e passagens provavelmente bem conhecidas de sua audiecircncia como Ecircxodo 249-11 Isaiacuteas 6 Ezequiel 126-28 Daniel 79-28 1Reis 2219-23 1Enoque 39 e 2 Enoque 20-22 entre outras

O primeiro versiacuteculo do capiacutetulo 4 apresenta um anjo convocando Joatildeo para subir ao ceacuteu Esse anjo promete mostrar ao visionaacuterio o que aconteceria ldquodepois destas coisasrdquo O cumprimento dessa promessa do anjo se daacute nos termos do relato quando o Cordeiro siacutembolo do Jesus crucificado rompe sete selos de um livro e provoca sete trombetas escatoloacutegicas Isso aparece no capiacutetulo 6 em diante jaacute que os dois primeiros capiacutetulos da seccedilatildeo (4 e 5) se dedicam ao ato lituacutergico em um ritmo muito lento apresentando as cenas e os atores do culto celestial

Nosso propoacutesito neste artigo eacute analisar as peccedilas hiacutenicas desses dois capiacutetulos do Apocalipse e refletir sobre o papel delas na construccedilatildeo e manutenccedilatildeo da identidade social e religiosa dos leitores e ouvintes do livro no seu momento de produccedilatildeo152

151 Para uma discussatildeo dessa estrutura no formato de trecircs seccedilotildees conferir o meu livro MIRANDA Valtair Afonso O caminho do Cordeiro representaccedilatildeo e construccedilatildeo de identidade no Apocalipse de Joatildeo Satildeo Paulo Paulus 2011152 Pressupomos que esta obra foi escrita no final do seacuteculo I e enviada para membros do movimento de Jesus na proviacutencia romana da Aacutesia especificamente para comunidades nas cidades de Eacutefeso Esmirna Peacutergamo Tiatira Saacuterdis Filadeacutelfia e Laodiceia Para uma anaacutelise mais ampla do contexto de produccedilatildeo do Apocalipse de Joatildeo conferir MIRANDA Valtair A Revisitando o contexto de produccedilatildeo do Apocalipse de Joatildeo Reflexus ano IX n 14 p 389-416 2015 FRIEDRICH Paulo Nestor Apocalipse 2ndash3 Sete cartas Uma anaacutelise literaacuteria Estudos de Religiatildeo Satildeo Bernado do Campo n 19 p 149-173 2000 WIKENHAUSER Alfred El Apocalipsis de San Juan p 25-34

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CELEBRANDO A CRIACcedilAtildeO O CULTO AO DEUS ENTRONI-ZADO

O capiacutetulo 4 do Apocalipse apresenta um trono no ceacuteu e em torno dele ele-mentos tiacutepicos de uma teofania da Escritura judaica (Is 61-4) Como na visatildeo de Isaiacuteas esse trono divino eacute uma peccedila central Tudo gira em torno dele Ao seu redor estatildeo quatro criaturas denominadas de Seres Viventes Aleacutem destes o relato apresenta tambeacutem vinte e quatro tronos menores nos quais se assentam vinte e quatro anciatildeos vestidos com roupas brancas tendo coroas de ouro na cabeccedila Independentemente da forma como os inteacuterpretes contemporacircneos interpretam esses personagens celestiais o essencial eacute que todos estatildeo envolvidos em atos lituacutergicos Eles adoram o anciatildeo que se assenta sobre o trono

Os Quatro Viventes especificamente tecircm como missatildeo sem descanso dia e noite expressar adoraccedilatildeo (Ap 48) Deles Joatildeo ouve ldquoSanto Santo Santo eacute o Senhor Deus o Todo-Poderoso aquele que era que eacute e que haacute de virrdquo O hino comeccedila com uma expressatildeo triacuteplice originada em Isaiacuteas 63 ldquoE clamavam uns para os outros dizendo Santo santo santo eacute o Senhor dos Exeacutercitos toda a terra estaacute cheia da sua gloacuteriardquo No texto de Isaiacuteas a canccedilatildeo eacute entoada por Serafins figuras parecidas com serpentes aladas Essa passagem foi largamente usada em textos apocaliacutepticos para compor as cenas do santuaacuterio celestial (1En 3012 2En 211 Ap Abr 16) Os grupos judaicos do segundo Templo frequentemente viam no triacuteplice ldquosantordquo a expressatildeo perfeita do culto dos anjos deduzindo daiacute um modelo para o culto na terra153

Eacute interessante comparar a versatildeo de Isaiacuteas com a LXX e o Apocalipse e assim verificar a forma como as tradiccedilotildees literaacuterias satildeo retomadas no Apo-calipse A LXX que normalmente traduz o termo tsabaoth por pantokrator dessa vez simplesmente transliterou o termo sabaoth Joatildeo entretanto de forma consistente continuou usando pantokrator no lugar de tsabaoth De qualquer forma ambas as expressotildees denotam um ser soberano sobre todos os outros deuses e senhores da terra Ele eacute o Senhor dos Exeacutercitos o Todo-poderoso o Senhor da terra toda Isso daacute ao conjunto da canccedilatildeo um tom de natureza poliacute-tica A acentuaccedilatildeo do ldquoSenhor Deus Todo-Poderosordquo eacute ainda maior porque o hino acrescenta agrave descriccedilatildeo divina a expressatildeo ldquoaquele que era que eacute e que haacute de virrdquo no que se configura uma afirmaccedilatildeo da eternidade imutabilidade e autonomia divinas uma evocaccedilatildeo do ldquoeu sourdquo de Ecircxodo 314 Um Deus eterno natildeo estaacute sujeito agraves variaccedilotildees do tempo ou agraves transiccedilotildees dos domiacutenios humanos

153 PRIGENTE P O Apocalipse p 104

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No momento em que os Quatro Viventes cantam o hino de Isaiacuteas denominado frequentemente de ldquokedushaacuterdquo os Vinte e Quatro Anciatildeos se prostram diante do que se assenta no trono depositando aos seus peacutes suas coroas de ouro Dessa vez satildeo eles que adoram ldquoTu eacutes digno Senhor e Deus nosso de receber a gloacuteria a honra e o poder porque todas as coisas tu criaste sim por causa da tua vontade vieram a existir e foram criadasrdquo (Ap 411)

A forma literaacuteria eacute de aclamaccedilatildeo mas configurada em expressatildeo hiacutenica no texto do visionaacuterio A estrutura do hino consiste do adjetivo ldquodignordquo seguido do verbo ser (na terceira pessoa do singular) mais uma seacuterie de atributos Esse eacute um hino de dignidade A divindade eacute adorada porque eacute digna e eacute digna em funccedilatildeo da sua obra de criaccedilatildeo

Esse hino tambeacutem levanta a questatildeo de quem eacute digno de ser adorado Possi-velmente eacute uma peccedila lituacutergica que surge em meio agrave disputa por adoraccedilatildeo Com um hino desse tipo o Apocalipse tenta apontar quem eacute digno de adoraccedilatildeo e consequentemente quem natildeo o eacute

Essas expressotildees querem responder agrave questatildeo ldquoquem eacute o verdadeiro senhor da terrardquo ou entatildeo quem eacute digno de ser A resposta do Apocalipse eacute clara o Senhor da terra eacute aquele que a criou A ele pertencem todas as coisas

Esses hinos poderiam atuar na identidade da audiecircncia de diversas maneiras mas destacamos aqui apenas trecircs Primeiramente ao ouvir tais hinos ou cantaacute--los a audiecircncia acompanha os seres celestiais declarando o senhorio exclusivo de Deus sobre o mundo154 Deus eacute o verdadeiro Senhor da Terra o que promove uma determinada filosofia da histoacuteria Um Deus Soberano estaacute acima dos poderes e governos do mundo Esse tipo de divindade tem poder para controlar e dirigir a histoacuteria da humanidade e o faraacute levando-a ateacute a instalaccedilatildeo efetiva do seu Reino sobre a terra (Ap 510) O olhar sobre esse futuro - mas iminente - reino alerta as comunidades de crentes que a vida que eles vivem no presente eacute circunstancial e peregrina O seu destino ainda natildeo chegou Um primeiro efeito plausiacutevel entatildeo se daria na postura poliacutetica dos fieis cantantes ao promover a perspectiva de oposiccedilatildeo agrave sociedade circundante155

Segundo ao afirmar que somente Deus eacute digno de receber adoraccedilatildeo honra poder o hino afirma a singularidade da figura divina diante das pretensotildees im-

154 BORTOLINI Joseacute Como ler o Apocalipse p 53155 Para uma reflexatildeo mais ampla sobre posturas de oposiccedilatildeo do movimento de Jesus agrave estrutura imperial romana cf MIRANDA Valtair A Religiatildeo e sociedade na Aacutesia romana Religare v13 n1 p150-179 2016 LAZIER Josueacute Adam A estrateacutegia cristatilde no contexto da Pax Romana Estudos Biacuteblicos n 36 p 37-40 1992 MESTER Carlos OROFINO Francisco A violecircncia do Impeacuterio Romano e a sua influecircncia na vida das comunidades cristatildes do fim do primeiro seacuteculo Estudos Biacuteblicos n 69 p 72-82 2001

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periais romanas E ao afirmar a singularidade de Deus o hino tambeacutem reforccedila a singularidade de seus adoradores Mesmo que experimentando o desprezo da sociedade romana os seguidores de Jesus se percebem como figuras especiais pois formam o povo de Deus na terra

Terceiro esse conhecimento do senhorio de Deus sobre o universo e da singu-laridade do seu povo eacute um conhecimento profundo que somente quem acessa as regiotildees celestiais conhece Ningueacutem consegue enxergar o que eles veem naquele momento Essa ldquovisatildeo profundardquo era dada aos seguidores do Cordeiro quando se reuniam em seus encontros de culto Dessa forma o culto se torna o espaccedilo privilegiado para o acesso a um ldquooutro mundordquo no interior ldquodeste mundordquo

CELEBRANDO A REDENCcedilAtildeO O CULTO AO CORDEIROO capiacutetulo 5 do Apocalipse apresenta uma crise Qual eacute a crise Joatildeo eacute infor-

mado de que haacute um rolo que ningueacutem pode abrir Ele comeccedila a chorar ateacute que algueacutem bate no seu ombro e diz ldquoNatildeo chores eis que o Leatildeo da tribo de Judaacute a Raiz de Davi venceu para abrir o livro e os seus sete selosrdquo (Ap 55) Ele ouve falar de um leatildeo mas quando olha o que vecirc eacute um cordeiro Eacute Jesus Cristo na forma simboacutelica de um cordeiro ensanguentado representando a centralidade do seu sacrifiacutecio na cruz no projeto de redenccedilatildeo divino Daqui em diante o Cordeiro Jesus Cristo jaacute com o rolo na matildeo vai comeccedilar a quebrar os selos do rolo um por um Agrave medida que cada selo eacute removido uma cena eacute testemunhada por Joatildeo

Jesus que jaacute aparecera antes na forma do Filho do Homem (Ap 113) agora eacute descrito como um cordeiro com aparecircncia de ter sido morto com sete chifres e sete olhos Satildeo imagens que devem ser menos entendidas e mais sentidas Chifres e olhos tecircm a ver com a presenccedila do poder e do espiacuterito de Deus Mas de onde vem a imagem do Cordeiro

Essa imagem tem analogia com o sacrifiacutecio e a morte Uma passagem relevante para estudar o significado de ldquocordeirordquo estaacute no Antigo Testamento especifica-mente em uma profecia de Jeremias 1119 ldquoEu era como manso cordeiro que eacute levado ao matadouro porque eu natildeo sabia que tramavam projetos contra mim dizendo Destruamos a aacutervore com seu fruto a ele cortemo-lo da terra dos vi-ventes e natildeo haja mais memoacuteria do seu nomerdquo O profeta fala de si mesmo como um cordeiro que eacute levado mansamente para a morte

A passagem mais proacutexima de Jeremias eacute Isaiacuteas 537 ldquoEle foi oprimido e humilhado mas natildeo abriu a boca como cordeiro foi levado ao matadouro e como ovelha muda perante os seus tosquiadores ele natildeo abriu a bocardquo O relato de Isaiacuteas 53 sobre o ldquoservo sofredorrdquo reaparece no Novo Testamento de diversas

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formas para falar do ministeacuterio de Jesus e sua morte (Lc 2237 At 832-33 1Pe 222) sendo muito importante para responder agrave questatildeo de como o sofrimento e a morte de Jesus poderiam ser explicados diante da sua natureza messiacircnica

Eacute exatamente isso que aparece quando o Apocalipse descreve Jesus como um Cordeiro Ele eacute o Messias pelo caminho do sacrifiacutecio Mais ainda o Cordeiro Jesus

- Eacute aquele que morreu e ressuscitou (Ap 56)

- Eacute adorado pelas figuras celestiais (Ap 581213)

- Eacute o que tem o poder de revelar os eventos celestiais (Ap 61)

- Eacute o que julgaraacute todas as pessoas (Ap 616 717) pois possui o Livro da Vida (2127)

- Eacute o que lavou as vestes dos salvos com o seu proacuteprio sangue (Ap 791014)

- Eacute o que vence o Dragatildeo em funccedilatildeo do seu sangue (Ap 1211)

- Venceraacute as bestas (Ap 1714)

- Se casaraacute com sua noiva a Nova Jerusaleacutem o povo de Deus (Ap 1979 219)

- Iluminaraacute a Nova Jerusaleacutem (Ap 2123)

A imagem do cordeiro sacrificial entatildeo no Apocalipse faz referecircncia natildeo apenas ao sofrimento e agrave morte mas tambeacutem agrave vitoacuteria reinado poder e gloacuteria Eacute a esse Cordeiro exaltado que toda a adoraccedilatildeo do capiacutetulo 5 se dirige Ele eacute digno de ser adorado porque segundo os vinte e quatro anciatildeos e os Quatro Viventes morreu e com seu sangue comprou pessoas de todas as naccedilotildees constituindo-as reino e sacerdotes para Deus (Ap 59-10) Os mesmos seres que adoraram a Deus no capiacutetulo 4 agora se rendem em adoraccedilatildeo ao Cordeiro de Deus no capiacutetulo 5 (Ap 59-10) ldquoDigno eacutes de tomar o livro e abrir-lhe os selos porque foste morto e compraste para Deus atraveacutes do teu sangue pessoas de toda tribo liacutengua povo e naccedilatildeo e os constituiacuteste para o nosso Deus reino e sacerdotes e reinaratildeo sobre a terrardquo

Adela Yarbro Collins estudiosa da Yale University (EUA) interpretou esse rolo como uma epiacutestola celestial na forma de um livro de destino Em outras palavras ele seria uma taacutebua de eventos futuros Os sete selos enfatizam simbolicamente a intensidade do segredo do conhecimento sobre os eventos futuros cujo conteuacutedo eacute dado na forma de duas seacuteries de sete visotildees (selos e trombetas)156 O Cordeiro seria o uacutenico digno de revelar para o visionaacuterio e sua comunidade o conhecimento escatoloacutegico A base dessa dignidade eacute a morte de Jesus Cristo

156 COLLINS Adela Yarbro The combath myth in the Book of Revelation p 25

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A imagem de um cordeiro imolado jaacute seria evocaccedilatildeo suficiente agrave morte de Jesus da mesma forma como sua posiccedilatildeo em relaccedilatildeo ao trono o afirma vivo e com poder para fazer especificamente duas coisas comprar para Deus um povo exclusivo e fazecirc-los reino e sacerdotes de Deus Essa afirmaccedilatildeo jaacute apareceu antes (Ap 15-6) na forma de um hino entoado pelo autor na primeira pessoa do plural ldquoAgravequele que nos ama e pelo seu sangue nos libertou dos nossos pecados e nos constituiu reino sacerdotes para o seu Deus e Pai a ele a gloacuteria e o domiacutenio pelos seacuteculos dos seacuteculos Ameacutemrdquo Jaacute nesse hino ao Cordeiro satildeo os Vinte e Quatro Anciatildeos diante do Trono no ceacuteu que declaram esta mesma realidade Seria uma maneira de indicar que os seres celestiais confirmam o status real e sacerdotal cantado pelos crentes na terra

A origem dessas pessoas como ldquode toda tribo liacutengua povo e naccedilatildeordquo afirma o caraacuteter natildeo mais eacutetnico do povo de Deus A filiaccedilatildeo natildeo seria mais uma questatildeo de sangue mas de compromisso com o Cordeiro

As formas verbais satildeo bem precisas Os seguidores do Cordeiro jaacute foram comprados e jaacute receberam a investidura real e sacerdotal Seriam accedilotildees realizadas por Jesus no momento de sua morte e ressurreiccedilatildeo Mesmo assim uma reserva escatoloacutegica se manifesta eles ainda reinaratildeo sobre a terra Eles jaacute fazem parte do reino de Deus e seu filho Jesus Cristo mas esse reino ainda natildeo eacute visto por quem natildeo faz parte dele O cacircntico expressa a esperanccedila entretanto somente na intervenccedilatildeo uacuteltima de Deus esse reinado se materializaraacute157

Os cantores desse hino de dignidade ao Cordeiro satildeo os Quatro Viventes e os Vinte e Quatro Anciatildeos A cena ganha proporccedilotildees ainda maiores quando apoacutes o hino anjos em nuacutemero de ldquomilhotildees de milhotildees e milhares de milharesrdquo tambeacutem cantam a mesma temaacutetica (Ap 512) ldquoDigno eacute o Cordeiro que foi morto de receber o poder e riqueza e sabedoria e forccedila e honra e gloacuteria e louvorrdquo

Enquanto a primeira canccedilatildeo de dignidade ao Cordeiro estaacute na segunda pessoa do singular (um hino que fala com o Cordeiro) a canccedilatildeo dos anjos estaacute na terceira pessoa do singular (um hino que fala do Cordeiro) Em ambas as canccedilotildees o objeto de adoraccedilatildeo eacute descrito numa linguagem poliacutetico-religiosa do antigo Israel

Ele eacute o Leatildeo da Tribo de Judaacute a raiz de Davi que conquistou e portanto eacute digno de abrir o rolo que Deus entregou em suas matildeos Mas eacute ao mesmo tempo um Cordeiro em peacute como se tivesse sido morto Eacute ele que tem o rolo na matildeo

157 Isto configura um determinado tipo de milenarismo como analisado em MIRANDA Valtair A Maacutertires e monges milenarismos antigos e medievais Santo Andreacute Kapenke 2018 p 43-72

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O Leatildeo era usado como siacutembolo de poder no mundo antigo (Pr 3030) e se tornou associado com o trono de Davi atraveacutes da caracterizaccedilatildeo de Judaacute feita por Jacoacute (Gn 499) A raiz de Davi eacute uma metaacutefora para a linhagem de Davi (Is 1110) e se tornou siacutembolo da restauraccedilatildeo da monarquia daviacutedica (Jr 235) Essas tradiccedilotildees do restabelecimento do reino de Deus como um ato de forccedila e poder eram tradicionais Mas essa natildeo eacute a perspectiva de Apocalipse que inverte a imagem O leatildeo se torna cordeiro Existe violecircncia sim mas contra o cordeiro natildeo do Cordeiro Ele tem poder e tem forccedila para conquistar mas seus atos de conquista passaram pela sua morte158

Se Deus eacute digno por causa de sua obra de criaccedilatildeo o Cordeiro eacute digno por causa da redenccedilatildeo Somente ele entatildeo eacute capaz de abrir os selos somente ele venceu a morte Ao inserir o tema da morte do Cordeiro na tradiccedilatildeo messiacircnica daviacutedica o visionaacuterio insere na esperanccedila messiacircnica poliacutetica os aspectos da tradiccedilatildeo sacrificial

As cenas de culto celestial natildeo eram novidades na apocaliacuteptica Entretanto a presenccedila do Cordeiro ldquocomo que mortordquo no Templo celestial participando ou mesmo recebendo o culto eacute uma grande novidade do Apocalipse de Joatildeo Um nuacutemero muito maior de epiacutetetos nesses hinos de dignidade eacute lanccedilado sobre o Cordeiro do que ao proacuteprio Anciatildeo que estava assentado sobre o trono central do Santuaacuterio

Apoacutes a adoraccedilatildeo ao Cordeiro o relato acrescenta que ldquotoda criatura que haacute no ceacuteu e sobre a terra debaixo da terra e sobre o mar e tudo o que neles haacuterdquo e se volta novamente para aquele que se assenta no trono A descriccedilatildeo do culto celestial assim extrapola os espaccedilos celestiais pois envolve tambeacutem o acircmbito da terra e do mar bem como todos os seus seres A natureza inteira aparece envolvida na adoraccedilatildeo celestial O que eles cantam eacute ldquoAo que se assenta sobre o trono e ao Cordeiro o louvor e a honra e a gloacuteria e o domiacutenio para os seacuteculos dos seacuteculosrdquo (Ap 513)

Finalmente ambos os personagens celebrados no culto celestial recebem simultaneamente a adoraccedilatildeo As claacuteusulas de dignidade se parecem com o hino dos anjos (Ap 512) e com o hino a Deus em Apocalipse 411 A gloacuteria e a honra aparecem nos trecircs hinos O poder eacute dado a Deus pelos Vinte e Quatro Anciatildeos e ao Cordeiro pelos anjos mas natildeo aparece na lista quando ambos satildeo louvados juntos Na adoraccedilatildeo a Deus e ao Cordeiro por sua vez ainda se manifestam o domiacutenio e o louvor que natildeo apareceram antes para Deus De qualquer forma todas

158 BARR David L Tales of the End p 70

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as dignidades de Deus pertencem tambeacutem ao Cordeiro que ainda suporta outras Somente Ele nesses trecircs hinos de dignidade teve celebrada a riqueza a sabedoria e a forccedila Esses elementos sinalizam que diferentemente das visotildees tradicionais do Templo celestial no Apocalipse de Joatildeo natildeo eacute Deus a figura principal mas sim o Cordeiro Ele eacute o personagem central da revelaccedilatildeo do visionaacuterio

Nos termos de Hurtado

judeus convertidos se reuniam para adorar em nome de Jesus oravam a ele cantavam para ele entendiam que ele estava em uma posiccedilatildeo celestial acima de toda a ordem angelical usaram para ele tiacutetulos e passagens das Escrituras judaicas originalmente usadas para Deus procuraram convencer outros judeus e tambeacutem gentios a reconhece-lo como o redentor messiacircnico escolhido por Deus e em geral redefiniam a devoccedilatildeo tradicional ao uacutenico Deus para incluir a veneraccedilatildeo a Jesus159

Ao apresentar a adoraccedilatildeo de elementos da natureza o visionaacuterio ainda demons-tra a possibilidade de elementos de fora do acircmbito celestial participarem de algu-ma maneira do culto no ceacuteu O que esses elementos celebram eacute a manifestaccedilatildeo do Reino de Deus e seu domiacutenio perpeacutetuo Os cantores desse hino representam toda a ordem da criaccedilatildeo que juntos adoram o que se assenta no trono e o Cordeiro160

Como um responsoacuterio coral a resposta vem daqueles que se encontram bem perto do trono os Quatro Viventes que respondem ldquoAmeacutemrdquo

A conclusatildeo da cena eacute um novo ato de prostraccedilatildeo e adoraccedilatildeo dos Anciatildeos (Ap 513-14) O verbo usado no Apocalipse para adoraccedilatildeo eacute predominantemente proskuneo Ele aparece 60 vezes no Novo Testamento mas em nenhum outro livro tem a importacircncia que tem no livro de Joatildeo no qual aparece 24 vezes indicando o quanto a questatildeo da adoraccedilatildeo eacute central para o visionaacuterio O termo denota prostraccedilatildeo postura de submissatildeo e homenagem atitude que seraacute repetida vaacuterias vezes no Apocalipse

Finalmente o culto ao Anciatildeo e ao Cordeiro dos capiacutetulos 4 e 5 de Apocalipse seraacute interrompido pela seacuterie de selos e trombetas mas apareceraacute novamente em vaacuterios outros lugares da obra

159 HURTADO Larry W One God One Lord p 17-18160 MESTER Carlos OROFINO Francisco Apocalipse de Joatildeo p 182-183

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CONCLUSAtildeORetomando a questatildeo inicial sobre o papel dos hinos dos capiacutetulos 4 e 5 de

Apocalipse na autocompreensatildeo religiosa e social da audiecircncia ali descrita acreditamos que eles funcionariam para afirmar um status exaltado dos segui-dores de Jesus que foram comprados para Deus e lhe pertencem agora Como propriedade exclusiva de Deus satildeo seus sacerdotes fazendo parte do reino de Deus e do Cordeiro jaacute no presente tempo Por isso eles jaacute podem cantar todas as expectativas que as antigas tradiccedilotildees judaicas esperavam para a intervenccedilatildeo escatoloacutegica divina

Profeticamente o reinado de Deus e seu ungido se manifestam jaacute no espaccedilo sagrado do culto O Templo celestial sede do reino de Deus tem seu equivalente na terra no ajuntamento da comunidade de fieacuteis em adoraccedilatildeo Assim separados da vida ordinaacuteria dentro do limite do tempo e espaccedilo ritual na assembleia de adoraccedilatildeo no dia do Senhor os seguidores de Jesus conseguiam ver o que ningueacutem mais via e mais do isso jaacute antecipavam prolepticamente sua participaccedilatildeo no Reino de Deus e seu Cordeiro

Como contraponto entretanto essa perspectiva identitaacuteria promoveria algum tipo de rejeiccedilatildeo agrave ordem social romana A grande pergunta que os capiacutetulos 4 e 5 de Apocalipse quer responder eacute Quem eacute digno de adoraccedilatildeo Muita gente na eacutepoca do Apocalipse dizia que o Imperador Romano era digno de adoraccedilatildeo Para aqueles que cantavam esses cacircnticos entretanto a sociedade romana paganizada estava equivocada

Eacute certo que os imperadores romanos eram pessoas muito poderosas Tatildeo poderosas que imaginavam poder receber honras e adoraccedilatildeo como se fossem divindades O culto imperial era efetivamente um problema para as comunidades receptoras do Apocalipse Entretanto em oposiccedilatildeo a essa estrutura religiosa imperial o Apocalipse responde com o convite para uma adoraccedilatildeo exclusiva a Deus e seu Cordeiro mesmo que o preccedilo para isso fosse o caminho do martiacuterio (Ap 1413)

Valtair Afonso MirandaRua Uruguai 514202

20510-060 ndash Rio de Janeiro RJvaltairmirandagmailcom

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MESTER Carlos OROFINO Francisco Apocalipse de Joatildeo a teimosia da feacute dos pequenos Petroacutepolis Vozes 2002

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_________ Religiatildeo e sociedade na Aacutesia romana Religare v13 n1 p150-179 2016

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WIKENHAUSER Alfred El Apocalipsis de San Juan Barcelona Editorial Herder 1969

Page 4: seminariodosul.com.br...O primeiro concílio da igreja é o mencionado no capítulo 15 de Atos dos Apóstolos, onde Lucas relata o Concílio de Jerusalém em 50 d.C., liderado por

Por fim numa discussatildeo que vincula com muita propriedade Teologia e Muacutesica o professor Theoacutegenes Eugecircnio Figueiredo escreveu o artigo intitulado ldquoNo dia do Senhorrdquo ndash Os atos o evento a autoexpressatildeo Uma breve reflexatildeo sobre as tradiccedilotildees lituacutergicas e sobre os termos liturgia culto e adoraccedilatildeo Nesse artigo satildeo apresentados os nuacutecleos lituacutergicos herdados do cristianismo primitivo aos quais no decorrer dos seacuteculos alguns elementos foram agregados constituindo- se posteriormente em grandes famiacutelias lituacutergicas

Desejamos uma boa leitura Que nossa revista seja um instrumento para a reflexatildeo e a disseminaccedilatildeo da teologia no Brasil

REVISTA TEOLOacuteGICA REVISTA BRASILEIRA DE TEOLOGIARevista do Seminaacuterio Teoloacutegico Batista do Sul do Brasil

Faculdade Batista do Rio de Janeiro Nuacutemero 8 2020

SUMAacuteRIODECISOtildeES CRISTOLOacuteGICAS DOS SETE CONCIacuteLIOS ECUMEcircNICOSCliff Iuri de Souza Gonccedilalves Walter Ferreira da Silva Juacutenior 9

O LIVRO DE JONAS E O ARREPENDIMENTO VERDADEIRO NA BIacuteBLIA E NA ATUALIDADEEvelise Cavalcanti Teresa Akil 23

TRANSFORMACcedilAtildeO RELIGIOSA BRASILEIRA E CARACTERIacuteSTICAS DO NOVO PADRAtildeO RELIGIOSOJoatildeo Boechat 35

AMEacuteM MUacuteLTIPLOS DERIVADOS O MESMO CONCEITO AS DIFERENTES TRADUCcedilOtildeES DE UMA MESMA RAIZ Rawderson Rangel 51

A ANAacuteLISE DO DISCURSO NA INTERPRETACcedilAtildeO BIacuteBLICAThaiacutes de Oliveira Viriacutessimo 63

ldquoNO DIA DO SENHORrdquo ndash OS ATOS O EVENTO A AUTOEXPRESSAtildeO UMA BREVE REFLEXAtildeO SOBRE AS TRADICcedilOtildeES LITUacuteRGICAS E SOBRE OS TER-MOS LITURGIA CULTO E ADORACcedilAtildeOTheoacutegenes Eugecircnio Figueiredo 86

LITURGIA E IDENTIDADE RELIGIOSA NO APOCALIPSE DE JOAtildeOValtair A Miranda 98

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DECISOtildeES CRISTOLOacuteGICAS DOS SETE CONCIacuteLIOS ECUMEcircNICOS

Cliff Iuri de Souza Gonccedilalves1

Walter Ferreira da Silva Juacutenior2

RESUMO A palavra trindade natildeo aparece na Biacuteblia Sagrada mas eacute um tema que norteia

as bases de feacute da Igreja Cristatilde No credo apostoacutelico que foi editado ao longo dos tempos houve vaacuterios acreacutescimos e retiradas de termos sobre quem seria Jesus Deus e o proacuteprio Espiacuterito Santo ateacute chegar agrave forma conhecida atualmen-te Este eacute um dos temas muito trabalhado nos conciacutelios ecumecircnicos entre os seacuteculos IV-VIII e sobre o qual ateacute os dias atuais natildeo existe um consenso A tentativa de definir as trecircs pessoas da Trindade eacute uma tarefa aacuterdua e complexa Este trabalho portanto visa traccedilar um panorama desse recorte da histoacuteria do cristianismo enfatizando as principais decisotildees relacionadas a Cristo De Niceacuteia I (325) a Niceacuteia II (787) satildeo abordadas as principais heresias seus principais fundadores e as respostas dos conciacutelios para cada uma delas com as respectivas conclusotildees dos conciacutelios

Palavras-chave Decisotildees cristoloacutegicas Conciacutelios ecumecircnicos Heresias Trin-dade Histoacuteria do cristianismo

ABSTRACT The word trinity is a concept that does not appear in the Holy Bible but it

is a theme that guides the faith bases of the Christian Church The apostolic creed which has been edited throughout the ages has had several additions and withdrawals from terms about who Jesus God and the Holy Spirit would be until reaching the form known today This is one of the themes that has been widely worked on in the ecumenical councils between the 4th and 8th centuries and which to this day does not have a consensus The attempt to define the three persons of the Trinity is an arduous and complex task This work therefore aims to provide an overview of this section of the history of Christianity emphasizing

1 Bacharel em Engenharia de Petroacuteleo pela Universidade Tiradentes Mestre em Engenharia Quiacutemica pela Universidade Federal de Sergipe e Doutorando em Engenharia Quiacutemica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro Graduando em Teologia pelo Seminaacuterio Teoloacutegico Batista do Sul do Brasil 2 Graduado e Licenciatura em Histoacuteria Poacutes-Graduado em Teologia Atualmente eacute professor no Seminaacuterio Teoloacutegico Batista do Sul do Brasil

10 TeoloacutegicaRevista Brasileira de Teologia ISSN 1807-7056 nordm 8 outdez Rio de Janeiro 2020 p 9-22

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the main decisions related to Christ From Nicaea I (325) to Nicaea II (787) the main heresies their main founders and the councilsrsquo responses to each of them are addressed with the respective council conclusions

Keywords Christological decisions Ecumenical councils Heresies Trinity History of Christianity

INTRODUCcedilAtildeOApoacutes a morte e a ressureiccedilatildeo de Cristo os apoacutestolos possuiacuteam uma grande

missatildeo em suas matildeos o questionamento sobre quem era Jesus Cristo pairava entre os adeptos do novo movimento (mais tarde denominado de cristianismo) e eles precisavam dar respostas Antes mesmo de sua morte Jesus Cristo havia perguntado aos seus disciacutepulos Ὑμεῖς δὲ τίνα με λέγετε εἶναι (ldquoHymeis de tiacutena me leacutegete einairdquo - Vocecircs no entanto quem vocecircs dizem que eu sou) Esta pergunta foi respondida por Pedro Τὸν Χριστὸν τοῦ Θεοῦ (ldquoTon Christon tou Theourdquo - O Cristo de Deus)

Mesmo sendo disciacutepulos para alguns ainda natildeo estava claro quem era Jesus Apoacutes a morte e ressureiccedilatildeo Tomeacute ainda precisou tocar em Jesus para ter certeza de que ali estava o Cristo ressuscitado Trezentos anos depois essa tarefa natildeo tinha ficado mais faacutecil Pelo contraacuterio se aqueles que estiveram com Cristo em carne natildeo haviam percebido como poderiam aqueles que natildeo andaram com Ele somente ouviram falar entender a ideia de Jesus como Deus Ou como Salvador

Portanto desde a fundaccedilatildeo do cristianismo a igreja tem lidado com contro-veacutersias no que diz respeito agrave aceitaccedilatildeo de Cristo como Deus ou como humano Muitas ideias surgiram principalmente entre os seacuteculos IV ndash VIII para tentar sistematizar o estudo da pessoa de Cristo comumente chamado de Cristologia Alguns desses pensamentos que contrastavam com as crenccedilas da igreja embora rotuladas de ldquohereacuteticasrdquo provocaram debates significativos sobre a pessoa de Cristo Esses debates convocados satildeo chamados de conciacutelios3

O primeiro conciacutelio da igreja eacute o mencionado no capiacutetulo 15 de Atos dos Apoacutestolos onde Lucas relata o Conciacutelio de Jerusaleacutem em 50 dC liderado por Tiago com o objetivo de discutir sobre a conversatildeo dos judeus ao cristianismo e a difusatildeo da Palavra aos gentios4 Depois apareceu a ameaccedila do gnosticismo

3 DIEgraveGUE Ricardo Christological controversies of the first four ecumenical councils B A Leavell College June 27 20144 KELLY Joseph F The Ecumenical Councils of the Catholic Church (Collegeville Minnesota Liturgical Press 2009)

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e de outras doutrinas semelhantes no seacuteculo III quando Cipriano era bispo de Cartago foi debatida a questatildeo da readmissatildeo dos que tinham caiacutedo5

Um fator limitante para que as discussotildees prosseguissem era a disponibili-dade dos envolvidos para isso pois muitos deles estavam sendo perseguidos ou fugindo Com o fim da perseguiccedilatildeo promovido por Constantino no iniacutecio do seacuteculo IV houve mais seguranccedila e liberdade para prosseguir o debate de controveacutersias teoloacutegicas Ideias controversas dentro do impeacuterio poderiam dividi- lo e Constantino natildeo queria ameaccedilar a unidade do impeacuterio Assim o primeiro conciacutelio ecumecircnico foi convocado6

Sete conciacutelios ecumecircnicos foram chamados no total entre os seacuteculos IV-VIII Dentre eles os quatro primeiros destacam-se por sua autoridade doutrinaacuteria e por sua importacircncia histoacuterica Niceacuteia I e Constantinopla I lanccedilam base para as questotildees da trindade enquanto Eacutefeso e Calcedocircnia tratam com mais afinco a questatildeo da encarnaccedilatildeo7

1 NICEacuteIA (325)O Primeiro Conciacutelio Ecumecircnico foi convocado pelo Imperador Constantino

o Grande em 325 em 20 de maio O Conselho reuniu-se em Niceacuteia na proviacutencia de Bitiacutenia na Aacutesia Menor e foi formalmente aberto pelo proacuteprio Constantino O Conselho aprovou 20 cacircnones incluindo o Credo Niceno o Cacircnon das Escrituras Sagradas (Biacuteblia Sagrada) e estabeleceu a celebraccedilatildeo da Pascha (Paacutescoa)

Aleacutem dessas questotildees a pessoa de Cristo foi debatida nesse conciacutelio A prin-cipal heresia debatida foi o arianismo Aacuterio era padre em Alexandria e no iniacutecio do seacuteculo IV seu paradigma de pensamento cristatildeo estava ganhando forccedila8 Em uma carta escrita a Euseacutebio bispo de Nicomeacutedia em 321 Aacuterio advertiu

[] mas natildeo podemos dar ouvidos nem mesmo pensar em debelar estas heresias sem que nos ameacem com mil mortes Noacutes pensamos e afir-mamos como temos pensado e continuamos a ensinar que o Filho natildeo eacute ingecircnito nem participa absolutamente do ingecircnito nem derivou de alguma substacircncia mas que por sua proacutepria vontade e decisatildeo existiu antes dos tempos e era inteiramente Deus unigecircnito e imutaacutevel Mas antes de ter sido gerado ou criado ou nomeado ou estabelecido ele natildeo

5 GONZAacuteLEZ Justo L Uma Histoacuteria Ilustrada do Cristianismo - Volume 1 Ed Vida Nova6 GONZAacuteLEZ Justo L Op cit 7 ALBERIGO Giuseppe (Ed) Historia de los concilios ecumeacutenicos Siacutegueme 19938 HASBROUCK Ryan The First Four Ecumenical Councils as Ineffective Means to Control the Rise and Spread of Heterodox Christian Ideologies Dept of History University of Colorado 2009

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existia pois ele natildeo era ingecircnito Somos perseguidos porque afirmamos que o Filho tem um iniacutecio enquanto Deus eacute sem iniacutecio9

A premissa fundamental de Aacuterio era que ele deduzia uma concepccedilatildeo da absoluta unidade e transcendecircncia de Deus somente Deus eacute ldquoprinciacutepio natildeo geradordquo e a essecircncia da divindade natildeo pode ser dividida nem ser comunicada a outros mesmo que o que existe tenha sido chamado a ser a partir do nada Um dos slogans mais ceacutelebres e discutidos sobre o Logos consistia precisamente na afirmaccedilatildeo segundo a qual ldquohavia um tempo em que ele natildeo erardquo slogan que comprometia a unicidade de Deus10

Na visatildeo dos anti-arianos eacute da proacutepria natureza do Pai gerar o Filho o Pai nunca foi outro senatildeo o Pai portanto o Filho e o Pai devem ter existido desde toda a eternidade o Pai gerando eternamente o Filho A frase de vital impor-tacircncia na resposta ortodoxa ao arianismo era ldquode uma substacircncia (homoousios) com o Pairdquo Esta frase afirma que o Filho compartilha o mesmo ser que o Pai e portanto eacute totalmente divino11 Assim nasce o credo Niceno que combatia as principais heresias arianas aleacutem de definir questotildees cristoloacutegicas

Conforme a tradiccedilatildeo dos Evangelhos e dos Apoacutestolos noacutes cremos em um soacute Deus Pai todo poderoso autor criador e ordenador providente do universo de quem todas as coisas adquirem existecircncia E num soacute Senhor Jesus Cristo seu filho Deus unigecircnito mediante o qual tudo existe o qual foi gerado pelo pai antes de todas as eacutepocas Deus de Deus tudo de tudo uacutenico de uacutenico completo de completo rei de rei senhor de senhor [] e se algueacutem disser que o Filho eacute uma criatura como qualquer outra ou uma prole como qualquer outra ou uma obra como qualquer outra seja anaacutetema12

Portanto atraveacutes desse conciacutelio fica decidido que Jesus eacute Deus verdadeiro com a mesma essecircncia (consubstancial) Assim trecircs foram as decisotildees do con-ciacutelio a primeira ediccedilatildeo do credo niceno o termo homoousios (ομοούσιος) e a condenaccedilatildeo de Aacuterio A carta que condena Aacuterio e seus disciacutepulos satildeo bem claras ao anatematizar suas opiniotildees classificando-as como blasfemas e dementes13

Examinou-se de iniacutecio perante Constantino nosso soberano mui amado de Deus a impiedade e irregularidade de Aacuterio e de seus disciacutepulos De-

9 BETTENSON H Documentos da Igreja Cristatilde Carta de Aacuterio a Euseacutebio bispo de Nicomeacutedia (c321) ASTE Satildeo Paulo 2011 10 ALBERIGO Giuseppe Op Cit 11 DAVIS Leo Donald The first seven ecumenical councils (325-787) Their History and Theology Collegeville Minnesota The Liturgical Press 198312 BETTENSON H Op cit O credo de dedicaccedilatildeo (341) ndash Atanaacutesio 13 SCHMELING Gaylin R The Christology of the Seven Ecumenical Councils

13TeoloacutegicaRevista Brasileira de Teologia ISSN 1807-7056 nordm 8 outdez Rio de Janeiro 2020 p 9-22

cidiu-se por unanimidade que devem ser anatematizadas suas opiniotildees iacutempias e todas as suas afirmaccedilotildees e expressotildees blasfematoacuterias tal como estatildeo sendo emitidas e divulgadas tais como ldquoo Filho de Deus eacute do que natildeo eacuterdquo ldquohouve [um tempo] quando natildeo existiardquo ou afirmaccedilatildeo de que Filho de Deus em virtude de seu livre arbiacutetrio eacute capaz do bem e do mal ou de que pode ser chamado de criatura ou de feitura Todas essas afirmaccedilotildees anatematizadas pelo santo Siacutenodo que natildeo tolera declaraccedilotildees tatildeo iacutempias tatildeo dementes e blasfematoacuterias14

Entre os apoiadores de Aacuterio podem-se contar Atanaacutesio bispo de Anazarbus Narciso de Neronias Euseacutebio de Cesareia e Asterius Dos anti-arianos podem ser citados os Grandes Capadoacutecios (Basiacutelio o Grande Gregoacuterio de Nazianzus - irmatildeo mais novo de Basiacutelio e Gregoacuterio de Nissa) e Atanaacutesio de Alexandria sendo este de grande importacircncia para a histoacuteria do conciacutelio que sucedeu o de Niceacuteia15

2 CONSTANTINOPLA (381)Atanaacutesio era secretaacuterio de Alexandre o Bispo de Alexandria Quando Ale-

xandre morreu Atanaacutesio foi eleito bispo de Alexandria Euseacutebio de Nicomeacutedia um dirigente ariano que possuiacutea contato direto com Constantino fez declaraccedilotildees sobre Atanaacutesio as quais levaram esse rei a decretar o exiacutelio de Atanaacutesio em Treacuteveris no Ocidente16

Constantino adoeceu e morreu no ano 337 logo em seguida o trono foi assu-mido por seu filho Constacircncio que revogou todos os exiacutelios e Atanaacutesio retornou a Alexandria A mudanccedila de lideranccedila teve um profundo impacto na controveacutersia ariana pois Constacircncio tambeacutem proacuteximo de Euseacutebio de Nicomeacutedia tornou-o bispo de Constantinopla e simpatizou-se com as visotildees arianas17 Tentando combater o arianismo Apolinaacuterio acabou se excedendo em seu pensamento razatildeo por que sua teoria tornou-se uma heresia

Apolinaacuterio alegou que o nous (mente alma) de Cristo era essencialmente o Logos (divino) em uma forma glorificada e espiritualizada da humanidade (seu corpo)18 Ele acreditava que o Logos havia substituiacutedo a alma de Jesus Por ter uma ideia opressiva da natureza divina de Jesus Apolinaacuterio cancelou a natureza

14 BETTENSON H Op cit Carta do Siacutenodo de Niceacuteia (325) ndash Condenaccedilatildeo de Aacuterio15 DIEgraveGUE Ricardo Op cit16 GONZAacuteLEZ Justo L Op cit17 RUBENSTEIN Richard When Jesus Became God The Struggle to Define Christianity during the Last Days of Rome Orlando Harcourt Inc 200018 ANDERSON William P A Journey through Christian Theology Minneapolis MN Fortress Press 2nd edition 2010

14 TeoloacutegicaRevista Brasileira de Teologia ISSN 1807-7056 nordm 8 outdez Rio de Janeiro 2020 p 9-22

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humana de Jesus19 Isso se chama Monofisismo do grego monos ldquoapenas umardquo e physis ldquonaturezardquo e eacute a crenccedila de que como resultado da encarnaccedilatildeo a huma-nidade de Jesus foi tatildeo infundida por Sua divindade que Ele tinha apenas uma natureza divina20 Estava formado o palco para o segundo conciacutelio ecumecircnico

Atanaacutesio foi um dos maiores apologista de Cristo durante o conciacutelio de Constantinopla Para combater o apolinarismo ele argumentou que Jesus era simultaneamente homem e Deus A fim de evidenciar sua posiccedilatildeo mostrou que foi a encarnaccedilatildeo que permitiu que Jesus cumprisse Seu papel pretendido na Terra Colocando seu argumento em termos negativos Atanaacutesio estaria dizendo que se Jesus natildeo tivesse nascido de uma mulher e portanto habitado um corpo humano e vivido uma vida humana Ele natildeo poderia ter concedido salvaccedilatildeo agrave humanidade atraveacutes de Sua morte21

No comeccedilo de seus discursos Atanaacutesio natildeo usou muito o homoousios niceno mas gradualmente viu toda a implicaccedilatildeo desse conceito e se tornou seu defen-sor mais resoluto A semelhanccedila e a unidade do Pai e da Palavra natildeo podem consistir apenas em harmonia e concordacircncia de mente e vontade mas devem respeitar a essecircncia (ουσία) A divindade do Pai eacute idecircntica agrave divindade do Logos O Logos eacute diferente do Pai porque Ele veio do Pai mas como Deus o Logos e o Pai satildeo um e o mesmo O que eacute dito do Pai eacute dito do Filho exceto que o Filho natildeo eacute chamado Pai Pode-se dizer que os seres humanos satildeo homoousioi porque compartilham a natureza humana mas natildeo podem possuir uma mesma substacircncia (υπόστασις) idecircntica22

Esse eacute o ponto para o qual o credo foi direcionado a palavra Deus conota precisamente a mesma verdade quando vocecirc fala de Deus o Pai como acontece quando vocecirc fala de Deus o Filho Conota a mesma verdade Se vocecirc contempla o Pai que eacute uma apresentaccedilatildeo distinta da divindade obteacutem uma visatildeo mental do uacutenico Deus verdadeiro Se vocecirc contempla o Filho ou o Espiacuterito obteacutem uma visatildeo do mesmo Deus embora a apresentaccedilatildeo seja diferente a realidade eacute idecircnticardquo23

Creio em um soacute Deus Pai Todo-Poderoso criador do ceacuteu e da terra de todas as coisas visiacuteveis e invisiacuteveis Creio em um soacute Senhor Jesus Cristo

19 BELLITTO Christopher M The General Councils A History of the Twenty-One Church Councils from Nicaea to Vatican II Mahwah NJ Paulist Press 200220 JOHNSON Douglas W The Great Jesus Debates 4 Early Church Battles about the Person and Work of Jesus Saint Louis MO Concordia Publishing House 200521 HASBROUCK Ryan Op cit 22 DAVIS Leo Donald Op cit23 DAVIS Leo Donald Op cit

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Filho Unigecircnito de Deus nascido do Pai antes de todos os seacuteculos Deus de Deus luz da luz Deus verdadeiro de Deus verdadeiro gerado natildeo criado consubstancial ao Pai Por ele todas as coisas foram feitas E por noacutes homens e para nossa salvaccedilatildeo desceu dos ceacuteus e se encarnou pelo Espiacuterito Santo no seio da Virgem Maria e se fez homem

A foacutermula proposta por Atanaacutesio resolveu temporariamente o dilema cris-toloacutegico que atormentava a igreja primitiva No entanto a maacute interpretaccedilatildeo do credo em uma capacidade diferente logo criou mais inquietaccedilatildeo e a necessidade de outro conselho ecumecircnico

3 EacuteFESO (431)Mesmo depois de Constantinopla I as questotildees voltaram a aparecer Como

poderia Jesus ser homem e Deus ao mesmo tempo Quais eram as implicaccedilotildees dessa afirmaccedilatildeo para Maria Era Jesus humano em algumas situaccedilotildees e Deus em outras Seria Maria matildee apenas da parte humana ou tambeacutem da parte divina Como fazer essa distinccedilatildeo24

O proacuteximo episoacutedio das controveacutersias cristoloacutegicas ocorreu por intermeacutedio de Nestoacuterio um partidaacuterio da escola de Antioquia que se tornou patriarca de Constantinopla em 428 Pelo fato de essa cidade ter sido declarada a capital do Impeacuterio Oriental Antioquia e Alexandria se tornaram rivais Cirilo que era bispo de Alexandria levantou-se para combater as ideias de Nestoacuterio25

O motivo imediato da controveacutersia foi o termo theotokos que era usado para Maria Theotokos geralmente traduzido por ldquomatildee de Deusrdquo literalmente quer dizer ldquogenitora de Deusrdquo Ao explicar sua oposiccedilatildeo a esse termo Nestoacuterio dizia que Deus em Jesus Cristo teria se unido a um ser humano Como Deus eacute uma pessoa e o ser humano eacute outra em Cristo devem estar presentes natildeo soacute duas naturezas mas tambeacutem duas pessoas O que nasceu de Maria foi a pessoa e natureza humana e natildeo a divina Por isso Maria eacute Christotokos (genitora de Cristo) e natildeo theotokos (genitora de Deus)26

Cirilo insistiu na unidade do divino e do humano a ponto de poder dizer que o Verbo sofreu por noacutes natildeo porque o divino sofreu (uma impossibilidade) mas que o divino e o humano se completaram na mesma pessoa27 As duas naturezas

24 BELLITTO Christopher M Histoacuteria dos 21 conciacutelios da Igreja de Niceacuteia ao Vaticano II Traduccedilatildeo de Claacuteudio Queiroz de Godoy Satildeo Paulo Loyola 201025 GONZAacuteLEZ Justo L Op cit26 GONZAacuteLEZ Justo L Op cit27 KELLY Joseph F

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que foram unidas a fim de formarem a verdadeira unidade (uniatildeo hipostaacutetica) eram diferentes mas de ambas houve um soacute Cristo e um soacute Filho Eacute nesse sentido que Cristo nasceu na expressatildeo biacuteblica da carne de mulher embora existisse e fosse gerado pelo Pai antes de todos os seacuteculos28

Cirilo escreveu doze anaacutetemas e enviou a Constantinopla juntamente com uma extensa carta que expunha sua doutrina Dentre os principais pontos eacute interessante ressaltar os pontos um e dois que falam sobre Maria e sobre a uniatildeo hipostaacutetica

Se algueacutem natildeo confessar que o Emanuel eacute verdadeiro Deus e que portan-to a Santa Virgem eacute Theotoacutekos porquanto deu agrave luz segunda a carne ao Verbo de Deus feito carne seja anaacutetema Se algueacutem natildeo confessar que o Verbo de Deus Pai estava unido pessoalmente [kathrsquohypoacutestasin] agrave carne sendo com ela propriamente um soacute Cristo ou seja um soacute e mesmo Deus e homem ao mesmo tempo seja anaacutetema29

Enquanto isso Nestoacuterio foi deposto e enviado a um mosteiro de Antioquia Mais tarde ele foi transferido para a distante cidade de Petra e por fim a um oaacutesis no deserto da Liacutebia onde passou o resto de seus dias30

4 CALCEDOcircNIA (451)Apoacutes o Conciacutelio de Eacutefeso o debate sobre as duas naturezas de Jesus estava

em andamento Eacute importante lembrar que com a Escola Alexandrina liderada por Cirilo a uniatildeo foi feita de tal maneira que o Logos substituiu a alma e portanto a divindade de Jesus submergiu agrave sua humanidade No entanto para a Escola de Antioquia a ldquouniatildeordquo foi feita com a distinccedilatildeo de ambas as naturezas que permaneceram separadas31

A controveacutersia cristoloacutegica de Eacutefeso culminou com a condenaccedilatildeo de Nestoacuterio e o seu envio para o exiacutelio No entanto quando Dioacutescoro substituiu Cirilo no patriarcado em Alexandria em 444 um novo embate estava para surgir Agora a heresia era liderada por Ecircutico um monge que morava em Constantinopla Os ideais pregados por Ecircutico eram apoiados por Dioacutescoro o que dava ao monge certa ousadia e arrogacircncia para falar Mal sabia ele que as intenccedilotildees de Dioacutescoro eram poliacuteticas ele esperava que Ecircutico fosse condenado no conciacutelio para poder ter uma causa a defender contra Flaviano o novo patriarca de Constantinopla32

28 BETTENSON H Op cit Exposiccedilatildeo de Cirilo29 BETTENSON H Op cit Anaacutetemas de Cirilo de Alexandria30 GONZAacuteLEZ Justo L Op cit31 BOKENKOTTER Thomas A Concise History of the Catholic Church New York DoubleDay 200432 GONZAacuteLEZ Justo L Op cit

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Dedicado agrave teologia de Cirilo e altamente ortodoxo Ecircutico comeccedilou a ensinar que antes da Encarnaccedilatildeo Cristo era de duas naturezas mas depois havia um Cristo um Filho um Senhor em uma hipoacutestase Ele repudiou a existecircncia de duas naturezas apoacutes a Encarnaccedilatildeo em oposiccedilatildeo agraves Escrituras e ao ensino dos Pais33

ldquoEu adorordquo ele insistiu ldquouma natureza a de Deus que se fez carne e se tornou homemrdquo No entanto admitiu que Cristo nasceu da Virgem portanto era subs-tancial conosco (humanos) e era Deus perfeito e homem perfeito No entanto a carne de Cristo natildeo era na opiniatildeo de Ecircutico consubstancial agrave carne humana comum mas reconheceu que a humanidade de Cristo era plena sem falta de uma alma racional como era para os apolinaristas A humanidade de Cristo tambeacutem natildeo era uma mera aparecircncia como era para os docetistas tampouco a Palavra e a carne foram fundidas em uma natureza mista Ainda assim ele repetiu obstinadamente que Cristo era de duas naturezas antes da Encarnaccedilatildeo e de apenas uma depois da encarnaccedilatildeo34

Leatildeo o grande foi o principal defensor da ortodoxia no conciacutelio de Calcedocirc-nia e sua defesa gerou o Tomo de Leatildeo A definiccedilatildeo desse conciacutelio portanto pode ser vista como proposiccedilotildees apologeacuteticas aos pensamentos do eutiquianismo

Fieacuteis aos santos pais todos noacutes perfeitamente unanimes ensinamos que se deve confessar um soacute e mesmo Filho nosso Senhor Jesus Cristo perfei-to quanto agrave divindade e perfeito quanto agrave humanidade verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem constando de alma racional e de corpo consubstancial [homooysios] ao Pai segundo a divindade e consubstan-cial a noacutes segundo a humanidade ldquoem todas as coisas semelhante a noacutes excetuando o pecadordquo gerado segundo a divindade antes dos seacuteculos pelo Pai e segundo a humanidade por noacutes e para nossa salvaccedilatildeo gerado da Virgem Maria matildee de Deus [Theotoacutekos] Um soacute e mesmo Cristo Filho Senhor Unigecircnito que se deve confessar em duas naturezas inconfundiacuteveis e imutaacuteveis conseparaacuteveis e indivisiacuteveis A distinccedilatildeo de naturezas de modo algum eacute anulada pela uniatildeo mas pelo contraacuterio as propriedades de cada natureza permanecem intactas concorrendo para formar uma soacute pessoa e subsistecircncia [hypoacutestasis] natildeo dividido ou separado em duas pessoas mas um soacute e mesmo Filho Unigecircnito Deus Verbo Jesus Cristo Senhor conforme os profetas outrora a seu respeito testemunharam e o mesmo Jesus Cristo nos ensinou e o credo dos pais nos transmitiu 35

33 DAVIS Leo Donald Op cit34 DAVIS Leo Donald Op cit35 BETTENSON H Op cit A definiccedilatildeo de Calcedocircnia (451)

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5 CONSTANTINOPLA II (553)O periacuteodo poacutes Calcedocircnia foi muito parecido com o de Niceacuteia em ambos os

conciacutelios uma soluccedilatildeo basicamente ocidental para um problema oriental havia sido introduzida na dieta teoloacutegica do Oriente Depois dos dois conciacutelios o Oriente empreendeu muito tempo e esforccedilo para digerir e assimilar tudo o que ficou decidido No caso de Niceacuteia o mundo romano gradualmente aceitou seu credo O arianismo permaneceu firme entre as tribos alematildes por um tempo mas muito lentamente sucumbiu a Niceacuteia No caso de Eacutefeso e Calcedocircnia seccedilotildees do mundo romano e aleacutem entraram em cisma em vez de aceitar suas decisotildees e assim continuam ateacute os nossos dias O conciacutelio de Constantinopla II foi um esforccedilo para mostrar aos (ateacute entatildeo) monofisitas cismaacuteticos que Calcedocircnia realmente preservava os valores teoloacutegicos36

Quando Justino morreu em 527 seu sobrinho Justiniano assumiu o impeacuterio Bizantino com o principal ideal de unir o impeacuterio No entanto ele precisaria reunificar uma igreja dividida pela questatildeo cristoloacutegica Justiniano achava que o conciacutelio de Calcedocircnia tinha se pronunciado corretamente com respeito agraves naturezas de Cristo mas ao mesmo tempo percebia que os monofisitas mais moderados tinham razatildeo ao apontar para os perigos que essa doutrina poderia trazer consigo 37

Assim o conciacutelio foi solicitado e aconteceu em 5 de maio de 553 no grande salatildeo anexo ao palaacutecio patriarcal em Constantinopla Estavam presentes os representantes do patriarca de Jerusaleacutem todos os 151 a 168 bispos incluindo seis a nove da Aacutefrica38

O objetivo de convocar o conciacutelio de Constantinopla II foi o de condenar as obras de trecircs homens a saber Teodoro de Mopsueacutestia Teodoreto de Cyr e Ibas de Edessa que tiveram suas declaraccedilotildees individuais agrupadas e chamadas de ldquotrecircs capiacutetulosrdquo Eles foram acusados de simpatizarem com o nestorianismo e de favorecerem o monofisismo ao afirmar que Jesus tinha uma soacute natureza o divino sobrepujando o humano Os ldquocapiacutetulosrdquo foram condenados nesse conciacutelio 39

Se algueacutem natildeo reconhece a uacutenica natureza ou substacircncia (oysia) do Pai Filho e Espiacuterito Santo sua uacutenica virtude e poder uma Trindade consubs-tancial seja anaacutetema Porque existe um soacute Deus e Pai do qual procedem

36 DAVIS Leo Donald Op cit37 GONZAacuteLEZ Justo L Op cit38 DAVIS Leo Donald Op cit39 BELLITTO Christopher M Op cit

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todas as coisas e um soacute Senhor Jesus Cristo atraveacutes do qual satildeo todas as cosias e um soacute Espiacuterito Santo no qual estatildeo todas as coisas 40

Portanto o Conciacutelio de Constantinopla II esclareceu mais uma vez os ensi-namentos da Igreja sobre as duas naturezas de Jesus unidas hipostaticamente em uma soacute pessoa Os padres natildeo soacute condenaram os hereacuteticos e as heresias como tambeacutem os que simpatizavam com elas 41

6 CONSTANTINOPLA III (680-681)Em 7 de novembro de 680 o conciacutelio de Constantinopla III abriu em uma

grande sala abobadada - o Trullus - no palaacutecio imperial com apenas quarenta e trecircs bispos presentes O proacuteprio imperador abriu o conciacutelio e presidiu as onze primeiras sessotildees O conciacutelio teve dezoito sessotildees separadas por longos inter-valos ateacute 16 de setembro de 68142

Os legados papais comeccedilaram exigindo que o clero de Constantinopla expli-casse seus ensinamentos sobre monoenergismo e monotelismo A convite do imperador Jorge de Constantinopla e Macaacuterio de Antioquia responderam que eles ensinavam apenas doutrinas definidas pelos conselhos Seguiu-se a leitura dos atos dos Conciacutelios de Eacutefeso Calcedocircnia e Constantinopla II43

O patriarca Seacutergio de Constantinopla depois de tentar sem sucesso vaacuterias maneiras de aproximar-se dos monofisitas propocircs a doutrina chamada de ldquomo-notelismordquo Essa palavra vem das raiacutezes gregas mono (um) e thelema (vontade) O que Seacutergio propunha eacute que em Cristo ao mesmo tempo em que havia duas naturezas a divina e a humana como o concilio de Calcedocircnia declarara havia uma soacute vontade Ao que parece o que Seacutergio queria dizer era que em Cristo natildeo havia outra vontade aleacutem da divina Quando perguntaram ao papa Honoacuterio o que ele pensava da foacutermula de Seacutergio o papa a aprovou Poreacutem a oposiccedilatildeo em vaacuterias regiotildees do Impeacuterio natildeo demorou a se manifestar 44

O teoacutelogo que mais se distinguiu nesse sentido foi Maacuteximo de Crisoacutepolis que eacute conhecido por Maacuteximo ldquoo Confessorrdquo Mais tarde em 648 a oposiccedilatildeo ao monotelismo chegou a tal ponto que o imperador Constante II proibiu qualquer discussatildeo sobre se em Cristo havia uma ou duas vontades Quando o imperador promulgou essa proibiccedilatildeo o Impeacuterio tinha perdido o interesse de se aproximar

40 BETTENSON H Op cit Os ldquotrecircs capiacutetulosrdquo ndash Os cacircnones do segundo conciacutelio de Constantinopla (553)41 BELLITTO Christopher M Op cit42 DAVIS Leo Donald Op cit43 GONZAacuteLEZ Justo L Op cit44 GONZAacuteLEZ Justo L Op cit

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dos monofisitas Siacuteria e Egito as regiotildees do Impeacuterio onde o monofisismo tinha a maior parte dos seus adeptos haviam sido conquistadas pouco antes pelos aacuterabes Tal fato significaria que a partir de entatildeo a corte de Constantinopla em vez de se preocupar com a boa vontade dos monofisitas de Egito e Siacuteria tinha de melhorar as suas relaccedilotildees com os cristatildeos calcedonenses que eram a maioria tanto nos territoacuterios que ainda pertenciam ao Impeacuterio como no Ocidente45

Em consequecircncia o sexto conciacutelio ecumecircnico que se reuniu em Constanti-nopla em 680 e 681 condenou o monotelismo e reafirmou a Definiccedilatildeo de feacute de Calcedocircnia Entre os monotelitas condenados especificamente pelo conciacutelio es-tava o papa Honoacuterio O caso de um papa condenado nominalmente como herege por um conciacutelio ecumecircnico foi uma das dificuldades que os catoacutelicos tiveram de enfrentar quando no seacuteculo XIX conseguiram que o conciacutelio Vaticano I promulgasse a infalibilidade papal46

7 NICEacuteIA II (787)A uacuteltima grande controveacutersia que atingiu a igreja durante o periacuteodo aqui

estudado (ateacute o seacuteculo VIII) questionava o uso de imagens no culto puacuteblico A igreja cristatilde antiga parecia natildeo se opor ao uso delas para decoraccedilatildeo como imagens alusivas a episoacutedios da Biacuteblia No entanto quanto mais pagatildeos se con-vertiam mais os liacutederes temiam que as imagens levassem agrave praacutetica da idolatria Alguns no entanto reforccedilavam o valor das imagens como ldquolivros iletradosrdquo uma vez que muitos natildeo sabiam ler Assim surgiram dois partidos que receberam o nome de ldquoiconoclastasrdquo (destruidores de imagens) e ldquoiconodulosrdquo (adoradores de imagens) 47

Os iconoclastas se baseavam em passagens biacuteblicas que proiacutebem a idolatria como Ecircxodo 204-5 Os iconodulos por sua vez relacionaram a discussatildeo com as controveacutersias cristoloacutegicas dos seacuteculos anteriores

A razatildeo pela qual eacute possiacutevel representar os misteacuterios divinos atraveacutes de imagens eacute que em Cristo o proacuteprio Deus nos deu sua imagem Natildeo deixar representar a Cristo equivaleria a negar a sua humanidade Se Cristo foi homem deve ser possiacutevel representaacute-lo assim como qualquer outro ho-mem pode ser representado Aleacutem disso o primeiro criador das imagens foi o proacuteprio Deus ao criar a humanidade agrave sua imagem48

45 GONZAacuteLEZ Justo L Op cit46 BELLITTO Christopher M Op cit47 GONZAacuteLEZ Justo L Op cit48 GONZAacuteLEZ Justo L Op cit

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Embora os bispos tivessem sido notavelmente longiacutenquos em seus debates eles foram bastante concisos em seu decreto Eles disseram que Cristo nos livrou da loucura idoacutelatra e sempre continua sustentando Sua Igreja mas alguns mes-mo os sacerdotes se desviaram deixando de ldquodistinguir entre santo e profano estilizando as imagens de Nosso Senhor e de Seus santos da mesma maneira como as estaacutetuas dos iacutedolos diaboacutelicosrdquo Os bispos acrescentaram a aceitaccedilatildeo dos seis conciacutelios ecumecircnicos anteriores especialmente o que se encontrava ldquona ilustre metroacutepole de Niceacuteiardquo49

Em seguida eles mantiveram inalteradas todas as tradiccedilotildees eclesiaacutesticas que foram transmitidas por escrito ou verbalmente uma das quais eacute a realizaccedilatildeo de representaccedilotildees pictoacutericas agradaacuteveis agrave histoacuteria da pregaccedilatildeo dos Evangelhos uma tradiccedilatildeo uacutetil em muitos aspectos mas especialmente em que a encarnaccedilatildeo da Palavra de Deus eacute mostrada como real e natildeo meramente fantaacutestica50 Em resumo o uso das imagens foi restaurado para veneraccedilatildeo (dulia) mas natildeo para adoraccedilatildeo (latria)51

CONSIDERACcedilOtildeES FINAISDiante de inuacutemeras controveacutersias e debates eacute interessante perceber como cada

decisatildeo tomada nos conciacutelios ajudou a entender temas cristoloacutegicos Percebe-se que desde o iniacutecio existe uma tentativa de explicar e sistematizar a natureza de Cristo de definir em quais momentos seu lado humano eou divino esteve em accedilatildeo As heresias debatidas foram importantes para que as respostas levantadas pela Igreja formassem ou pelo menos ajudassem a formar o pensamento que temos hoje sobre quem eacute Cristo e sua natureza Eacute inevitaacutevel que temas adja-centes aparecessem como a proacutepria natureza de Maria e a adoraccedilatildeo a imagens Estudar esse recorte da histoacuteria do cristianismo eacute portanto fundamental para compreender o pensamento da Igreja daqueles seacuteculos e qual a visatildeo que se tinha sobre quem eacute Jesus

O exerciacutecio mental que pode aqui ser realizado eacute o de comparar as mentali-dades e tentar perceber se muita coisa mudou em relaccedilatildeo aos nossos dias Outro exerciacutecio que pode ser feito eacute avaliar o quanto esse conjunto de pensamento do seacuteculo VIII nos influencia hoje

49 BELLITTO Christopher M Op cit50 BELLITTO Christopher M Op cit51 WILLIAMS Terri Cronologia da Histoacuteria Eclesiaacutestica em graacuteficos e mapas Satildeo Paulo Vida Nova 1993

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HASBROUCK Ryan The First Four Ecumenical Councils as Ineffective Means to Control the Rise and Spread of Heterodox Christian Ideologies Un-dergraduate Research Journal at UCCS v 2 n 1 Spring 2009 University of Colorado 2009

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WILLIAMS Terri Cronologia da Histoacuteria Eclesiaacutestica em graacuteficos e mapas Satildeo Paulo Vida Nova 1993

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O LIVRO DE JONAS E O ARREPENDIMENTO VERDADEIRO NA BIacuteBLIA E NA ATUALIDADE

Evelise Cavalcanti52

Teresa Akil53

RESUMO O presente artigo busca analisar a relaccedilatildeo de instabilidade do homem com

o divino atraveacutes da obediecircncia e desobediecircncia desse homem em relaccedilatildeo a Deus bem como ao pecado Analisa-se o reflexo primordial de desobediecircncia a Deus na parte introdutoacuteria do Livro de Jonas contemplando o pecado em si e o relacionamento de Jonas com Deus para que seja pautada e estruturada a misericoacuterdia divina na vida desse profeta A partir dessa concepccedilatildeo busca-se refletir acerca da instabilidade do homem em relaccedilatildeo a Deus na Biacuteblia e na atualidade para traccedilar paracircmetros para que seja aprofundado o arrependimento verdadeiro do ser humano a partir da anaacutelise de Jonas e Davi

Palavras-chave Livro de Jonas Desobediecircncia ao divino Duacutevida Culpa Arrependimento verdadeiro

ABSTRACTThis scientific article seeks to analyze the relationship of manrsquos instability

with the divine through manrsquos obedience and disobedience in relation to God as well as sin In this study the primary reflection of disobedience to God is analyzed in the introductory part of the Book of Jonah contemplating sin itself and Jonahrsquos relationship with God so that divine mercy in Jonah is guided and structured From this conception we seek to reflect on the instability of man in relation to God in the Bible and nowadays to outline parameters so that the true repentance of the human being is deepened based on the analysis of Jonas and David

Keywords Book of Jonah Disobedience to the divine Doubt Guilt True repentance

52 Graduada em Direito (Unifeso)) Graduada em Teologia (Faceten) Poacutes-graduada em Exegese e Interpretaccedilatildeo da Biacuteblia (Fabat) em Histoacuteria de Israel (Kennedy) em Direito Processual Civil (Unican) 53 Doutora em Teologia (PUC-Rio) Mestre em Teologia Biacuteblica (STBSB) Graduada em Teologia (Faculdade Batista do Paranaacute) e em Comunicaccedilatildeo Social (Universidade Estaacutecio de Saacute) Docente das disciplinas da aacuterea biacuteblica (Antigo Testamento) e Exegese coordenadora do Grupo de Estudo e Pesquisa Biacuteblica nas Tradiccedilotildees de Israel

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INTRODUCcedilAtildeO A histoacuteria de Jonas tem sido contada desde a antiguidade Natildeo eacute incomum

encontrarmos em classes infantis ou nas mais altas patentes teoloacutegicas discus-sotildees calorosas sobre as peculiaridades desse personagem tatildeo conhecido

Vaacuterias abordagens tecircm sido temas infindaacuteveis de duacutevidas seria possiacutevel um homem permanecer trecircs dias na barriga de um peixe Seria uma baleia Em que eacutepoca se passou Seria Jonas um profeta desobediente e insensiacutevel Enfim vaacuterias questotildees pertinentes afloram em nosso entendimento

A mais importante e contextualizada questatildeo natildeo se trata da possibilidade material ou emocional da situaccedilatildeo A importacircncia espiritual da histoacuteria tatildeo bem narrada em um dos menores livros da Biacuteblia traz-nos a reflexatildeo sobre a limitaccedilatildeo do homem em qualquer eacutepoca de ser avaliado quanto ao seu verda-deiro arrependimento

A Biacuteblia narra diversos momentos nos mais antigos textos em que os povos inclusive o povo escolhido natildeo conseguiram se manter firmes aos mandamentos de YHWH Em Niacutenive nos parece natildeo ter sido diferente No momento em que a matildeo de Deus mostrou-se pesada o rei se humilha e recebe o perdatildeo poreacutem natildeo mais que uma geraccedilatildeo apoacutes esse mesmo povo se mostra como inimigo mortal de Israel

Haveria acontecido um verdadeiro arrependimento ou o medo e a derrota certa teriam levado os ninivitas a um momentacircneo reconhecimento de seu erro e a uma consequente submissatildeo forccedilada pela situaccedilatildeo Para as consideraccedilotildees e conclusotildees precisamos entender um pouco desse povo e de todo contexto que o envolve

1 JONAS EacutePOCA HISTOacuteRIA AUTORIAJonas eacute descrito de formas diferentes de acordo com a visatildeo de teoacutelogos

diversos Bazioli (2011 p 3) por exemplo descreve Jonas como ldquoo mais estra-nho dos profetasrdquo mas com uma mensagem que produzira efeitos ateacute mesmo naqueles que natildeo o ouviram diretamente Para o autor Jonas fora o mais bem sucedido pregador com um sermatildeo que impactava apenas por meio de palavras Na Biacuteblia conforme enunciado por Alencar (2010) o livro de Jonas faz parte da coleccedilatildeo de livros profeacuteticos situando-se entre os livros de Abdias e Miqueias

Natildeo haacute um consenso absoluto acerca da autoria do livro de Jonas uma vez que o livro natildeo declara o nome do autor Entretanto haacute a tese bastante aceita e estabelecida nos estudos de Erthal et al (2002 p 35) de que ldquoembora o livro

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natildeo declare o nome do autor seguramente foi o proacuteprio Jonas quem o escreveurdquo Para os autores Jonas tem o nome que significa ldquopombordquo sendo apresentado como filho de Amitai Nascera em Gate-Efer cidade situada proacutexima a Nazareacute

Alencar (2010 p 7) por sua vez aponta que eacute impossiacutevel precisar de quem fora a autoria do livro de Jonas visto que na eacutepoca um dos grupos responsaacuteveis pela educaccedilatildeo eram os sacerdotes cuja obrigaccedilatildeo consistia em ensinar ao povo a instruccedilatildeo como uma lei relacionada ao culto e sacrifiacutecio ldquoO autor do livro de Jonas pode ter sua origem entre os saacutebios de Israel pois conhecia bem a tradiccedilatildeo de seu povo bem como a de outros povos Ele devia manter contato com estrangeiros e os considerava com bons olhosrdquo

Para que seja possiacutevel compreender e aprofundar conhecimentos acerca de Jonas e do livro que recebeu o seu nome torna-se indispensaacutevel refletir acerca do contexto histoacuterico do mesmo Dasilva (2003) leciona que o livro de Jonas fora escrito um seacuteculo antes de Jesus proferir as palavras registradas em Mateus 1239-40 no relato de como Deus enviara um profeta judeu para levar sua mensagem de salvaccedilatildeo para uma naccedilatildeo gentiacutelica a Assiacuteria com a capital Niacutenive que possuiacutea uma populaccedilatildeo de mais de 120000 homens O autor ainda complementa que

A histoacuteria de Jonas tatildeo conhecida pela menor crianccedila da Escola Domi-nical eacute geralmente contextualizada e limitada ao milagre do profeta subsistir dentro do ventre de um grande peixe por trecircs dias e trecircs noites ou ao fator de sua desobediecircncia Este livro no entanto natildeo tem como prioridade mostrar a Jonas o peixe sua pregaccedilatildeo ou o povo de Niacutenive Ele guarda na sua linda histoacuteria revelaccedilotildees sobre a pessoa e caraacuteter de Deus O livro foi escrito para revelar um Deus que estaacute sobre noacutes que cuida que orienta que ama e que caminha conosco (DASILVA 2003 p 1)

Fabio (1991) aponta que Jonas vivera em um periacuteodo no qual Israel corria gra-ve risco de ser extinto como naccedilatildeo O autor aponta que em II Reis 1427 ldquoAinda natildeo falara o Senhor em apagar o nome do Israel de debaixo do ceacuteurdquo mas estava perto de tomar tal decisatildeo Na eacutepoca a pobreza era uma marca da sociedade e natildeo havia nem um homem escravizado nem um homem livre As classes sociais estavam praticamente unificadas com o desaparecimento completo da classe meacutedia e a diminuiccedilatildeo significativas da riqueza privada

Paradoxalmente era tremenda a expansatildeo militar e Israel atingira um niacutevel bastante estaacutevel de seguranccedila nacional Percebemos isso em II Reis 142528 atraveacutes das palavras ldquorestabeleceurdquo e ldquoconquistourdquo presentes no

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texto Estaacute dito ali que Jeroboatildeo II restabelece as fronteiras e conquista espaccedilos pela via das forccedilas armadas enquanto isso a anguacutestia social do povo era horriacutevel Natildeo havia o menor vislumbre ou esperanccedila de mu-danccedilas radicais pois natildeo se contava com ningueacutem que socorresse Israel (II Reis 1426) Em consequecircncia de tal situaccedilatildeo Jonas se transformou num profeta extremamente politizado por conseguinte ideologizado Ele tinha consciecircncia por exemplo de que nos seus dias a grande ameaccedila para Israel era a Assiacuteria cuja capital era Niacutenive (FABIO 1991 p 4-5)

Ora Jonas natildeo vivera e sua histoacuteria natildeo fora contada em um periacuteodo de prosperidade Niacutenive era considerada uma grande ameaccedila para Israel assim como a Assiacuteria em geral Erthal et al (2002) apontam que o tema do livro de Jonas concentra-se na misericoacuterdia divina Jonas eacute chamado por Deus para advertir Niacutenive sobre os fatos que seriam consumados como consequecircncia de seus pecados o principal propoacutesito de Deus nesse sentido era demonstrar a Israel e agraves naccedilotildees a magnitude da Sua misericoacuterdia e a Sua accedilatildeo atraveacutes da pregaccedilatildeo do arrependimento

Para Alencar (2010) Jonas eacute chamado por Deus para anunciar a conversatildeo na capital Niacutenive que se encontrava fora das fronteiras com Israel um reflexo do nacionalismo exclusivista do povo de Israel no poacutes-exiacutelio fundamentado na concepccedilatildeo de povo eleito e na visatildeo de Jerusaleacutem como o uacutenico lugar onde Deus manifestava-se Trata-se da comunicaccedilatildeo de Deus aleacutem da visatildeo do povo de Jerusaleacutem fazendo uso de Jonas como um instrumento de conversatildeo

Antes de aprofundar conhecimentos acerca da histoacuteria do livro de Jonas tendo-se jaacute abordado acerca da autoria desse livro cumpre aprofundar conhe-cimentos sobre a eacutepoca atribuiacuteda ao mesmo Ainda segundo Alencar (2010) a narrativa do livro de Jonas natildeo oferece nenhuma evidecircncia que possibilite datar o livro A existecircncia de um profeta que vivera sob o nome Jonas no seacuteculo XVIII natildeo representa que o livro tenha sido escrito nessa eacutepoca Para o autor existem elementos que sugerem uma dataccedilatildeo tardia ao livro de Jonas quais sejam

bull Vaacuterias palavras de origem aramaica satildeo observadas na narrativa de Jonas O aramaico tornara-se liacutengua oficial no periacuteodo persa As palavras que designam os marinheiros e o navio (Jonas 1 5) e o decreto do rei de Niacutenive (Jonas 37) advecircm da liacutengua aramaica

bull A histoacuteria de Jonas conforme observado em Jonas (3 7-8) faz alusatildeo aos costumes persas como por exemplo a participaccedilatildeo de animais nos rituais de penitecircncia

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bull Niacutenive era identificada como capital da Assiacuteria no tempo de Jonas de modo que a cidade soacute se tornara importante no templo de Senaqueribe em 704 aC O rei seria tratado como rei da Assiacuteria e natildeo rei de Niacutenive

bull Natildeo haacute influecircncia no livro de Jonas da eacutepoca heleniacutestica do tempo de Ale-xandre Magno e de seus sucessores como tambeacutem natildeo aparecem conflitos com samaritanos nem mesmo questotildees envolvendo casamentos com mulheres estrangeiras

Esses elementos segundo Alencar (2010 p 8) natildeo satildeo suficientes para que se precise a data na qual fora escrito o livro de Jonas entretanto ldquoeacute possiacutevel afirmar que o livro tenha sido escrito no final do seacuteculo IV ou no iniacutecio do seacuteculo III aC no periacuteodo persardquo

Segundo Dasilva (2003) Deus ordenou que Jonas se levantasse e fosse para a grande cidade de Niacutenive Jonas teria dito ldquonatildeordquo a Deus sabendo que a Assiacuteria era uma inimiga terriacutevel de Israel Na verdade ele temia que Niacutenive se arre-pendesse e fosse poupada por Deus da puniccedilatildeo e condenaccedilatildeo iminente Caso Niacutenive caiacutesse Israel de Jonas escaparia de suas investidas e de seus ataques assim convocado por Deus ele fugiu

Erthal et al (2002) apontam que logo que Jonas fugiu tomando um navio para Taacutersis Deus passou a agir mandando forte vento sobre o mar e criando uma grande tempestade Jonas dormia no poratildeo do navio e o capitatildeo perguntou-lhe por qual motivo dormia enquanto o medo e o pavor tomavam conta dos tripu-lantes que clamavam aos deuses pelo livramento O versiacuteculo seis do primeiro capiacutetulo do livro relata que Jonas tambeacutem clama a Deus

Os tripulantes do navio ficaram indignados quando Jonas responde que era hebreu que servia ao Deus do ceacuteu mas que estava fugindo dEle (18- 10) Por causa de sua atitude Jonas foi obrigado a enfrentar as con-sequumlecircncias e acabou por confessar sua transgressatildeo ldquoE ele lhes disse Levantai-me e lanccedilai-me ao mar e o mar se aquietaraacuterdquo (112) Jonas se sentia nesse momento culpado por ter desobedecido a Deus e por colocar a vida da tripulaccedilatildeo em perigo Apanharam Jonas e o lanccedilaram ao mar A tempestade parou milagrosamente (11415) O resultado contrastante nesta situaccedilatildeo foi a conversatildeo da tripulaccedilatildeo ldquoTemeram pois estes ho-mens ao Senhor com grande temor e ofereceram sacrifiacutecios ao Senhor e fizeram votosrdquo (116) (ERTHAL et al 2002 p 37)

O clamor de Jonas apesar de sua rebeldia fora atendido Jonas mostrou-se sincero e temente a Deus pedindo misericoacuterdia divina e livramento ou seja

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que sua vida fosse poupada Deus providenciou um grande peixe para salvar a vida de Jonas deixou-o vivo por trecircs dias dentro do ventre daquele peixe Em Jonas 210 observam-se sete milagres divinos a tempestade a sorte de Jonas a calmaria do mar o grande peixe a sobrevivecircncia de Jonas o peixe conduzido ateacute a praia e o fato de o peixe ter vomitado Jonas em terra seca por ordem divina (FABIO 1991)

Ora a noccedilatildeo principal do livro de Jonas diz respeito justamente agrave misericoacuterdia divina Deus pune na mesma medida em que salva Deus aproxima-se de seus filhos mesmo quando estes fogem desde que se arrependam verdadeiramente Essa eacute a concepccedilatildeo fundamental do livro de Jonas

2 EPISOacuteDIOS QUE DEMONSTRAM A OSCILACcedilAtildeO DA OBE-DIEcircNCIA E DESOBEDIEcircNCIA A DEUS AO LONGO DA ERA BIacute-BLICA

Jonas eacute apenas um exemplo da oscilaccedilatildeo entre a obediecircncia e desobediecircncia a Deus ao longo do percurso biacuteblico Esta parte do estudo relata outros episoacutedios biacuteblicos nos quais se verifica essa oscilaccedilatildeo

Talvez o mais conhecido episoacutedio que elucida tal questatildeo seja o de Gecircnesis quando Deus concedera tudo a Adatildeo menos que ele provasse o fruto da aacutervore do conhecimento do bem e do mal deixando claro que se ele comesse esse fruto certamente morreria (Gecircnesis 2 17) Deus ainda que misericordioso puniu Adatildeo lanccedilando-o para fora do jardim do Eacuteden para lavrar a terra da qual fora tomado (Gecircnesis 3 23)

Esse episoacutedio de Gecircnesis eacute um dos principais exemplos biacuteblicos acerca do arrependimento agrave desobediecircncia diante de Deus Em Romanos 519 tem-se que pela desobediecircncia de um soacute homem muitos foram feitos pecadores assim como pela obediecircncia de um muitos seratildeo constituiacutedos justos

A oscilaccedilatildeo entre a obediecircncia e a desobediecircncia a Deus tambeacutem eacute abordada em Romanos No versiacuteculo 30 do capiacutetulo 11 do livro tem-se que ldquoPois assim como voacutes outrora fostes desobedientes a Deus mas agora alcanccedilastes miseri-coacuterdia pela desobediecircncia delesrdquo Ora Deus natildeo premia os que obedecem apoacutes a desobediecircncia mas sim eacute misericordioso pelo arrependimento genuiacuteno e sincero

3 ATUALIDADE ALGUNS EPISOacuteDIOS EM NOSSA VIDA ATUAL QUE DEMONSTRAM A INSTABILIDADE DO SER HUMANO EM PERMANECER FIEL A DEUS

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O ser humano eacute falho e imperfeito por natureza Entretanto natildeo foi soacute nos tempos biacuteblicos que o homem demonstrou dificuldades em permanecer fiel e obediente a Deus De fato tal instabilidade tem sido observada durante toda a histoacuteria humana e pode ser amplamente observada em nossa conduta na atualidade Esta parte do estudo procura demonstrar e exemplificar esse fato

O primeiro mandamento biacuteblico propotildee que o homem ame a Deus sobre todas as coisas Entretanto observa-se que o ser humano em muito afasta-se de Deus Os constantes estiacutemulos e os desejos de acumular riqueza por parte do ser humano satildeo exemplos de elementos que afastam o homem de Deus Por vezes o homem daacute importacircncia demasiada ao dinheiro colocando-o como prioridade em sua vida acima de Deus ou ainda orando a Deus tatildeo somente pedindo riqueza material e natildeo riqueza espiritual

Ora nem mesmo o primeiro mandamento biacuteblico eacute uma tarefa faacutecil de ser alcanccedilada pelos servos de Deus Como natildeo eacute objeto de ostentaccedilatildeo Deus acaba sendo ldquodeixado de ladordquo pelas pessoas que passam a buscar sobretudo a riqueza material e a estabilidade financeira desalinhando-se dos preceitos e princiacutepios divinos

A principal fonte de instabilidade do homem em relaccedilatildeo agrave fidelidade a Deus satildeo os estiacutemulos presentes em nossa sociedade O dinheiro e a ideia de acuacutemulo da riqueza satildeo apenas alguns fatores que afastam o homem de Deus A sexualidade eacute outro exemplo claro de estiacutemulo que torna o homem infiel e desobediente aos olhos divinos

De fato o sexo tornou-se um produto de consumo na atualidade Consumir e almejaacute-lo de maneira desenfreada e irrestrita eacute caracteriacutestico da sociedade O sexo eacute objeto de desejo nos filmes muacutesicas revistas e amplamente presente no mundo virtual na internet como um todo O homem eacute ludibriado em um mundo que respira sexo natildeo mantendo a integridade sexual almejada por Deus peca constantemente contra a sexualidade cobiccedilando tambeacutem a mulher do proacuteximo

Todos os mandamentos de Deus podem ser colocados como desafios ou obstaacuteculos para que o homem permaneccedila fiel a Ele em diferentes niacuteveis O homem pecador por natureza cria obstaacuteculos em sua conduta diaacuteria caindo constantemente em tentaccedilatildeo de maneira semelhante a Adatildeo que sucumbiu agrave tentaccedilatildeo de contrariar a uacutenica imposiccedilatildeo que lhe fora feita por Deus

A cobiccedila eacute um dos grandes problemas enfrentados pelo homem para manter um relacionamento com Deus Natildeo se refere aqui apenas agrave cobiccedila desenfreada pelo dinheiro e pelo sexo mas tambeacutem pelas coisas alheias Os homens desejam

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o poder e o conseguem por meio do erro e do pecado A televisatildeo por exemplo vende a ideia daquelas vidas perfeitas dos bem sucedidos provocando que o homem cobice os bens e a proacutepria vida de terceiros desconsiderando-se a si proacuteprio e ao seu relacionamento iacutentimo com Deus

Entretanto o homem temente a Deus arrepende-se constantemente Confessa o seu pecado mas volta rapidamente a pecar sucumbindo aos mesmos erros que o fizeram pecar em outro momento novamente almeja o poder o sexo a riqueza financeira Deseja intensamente tudo aquilo que natildeo tem

Para suprir essa alarmante necessidade o homem faz uso de todos os meios e mecanismos possiacuteveis muitas vezes pouco se importando se atendecirc-los significa estar ainda mais distante do divino Roubar eacute uma praacutetica comum em nossa sociedade natildeo somente para sustentar um viacutecio em substacircncia mas tambeacutem pelo simples ideal de acumular riquezas uma praacutetica tatildeo repreendida por Deus

Assim o homem se vecirc diante de todo um contexto desfavoraacutevel para se manter fiel a Deus De fato a sociedade jaacute haacute muito tempo tem se afastado dos princiacutepios e preceitos divinos os homens natildeo demonstram mais arrependimento genuiacuteno ao cometerem pecados e insistindo em seus erros independentemente das liccedilotildees divinas jaacute aplicadas a eles

Pode-se equiparar o contexto atual ao que observamos na histoacuteria de Jonas cuja abordagem jaacute foi feita anteriormente neste artigo Jonas tambeacutem sabendo de suas funccedilotildees e da vontade de Deus disparou em fuga O homem atual tambeacutem conhece suas funccedilotildees e a vontade de Deus e mesmo assim ignora-as diante de seu egoiacutesmo sacrificando sua proacutepria alma por sentimentos e prazeres pueris

Somente quando sente falta da presenccedila de Deus o homem cogita o arre-pendimento Jonas aprendera sua liccedilatildeo ao permanecer trecircs dias no ventre do peixe clamando pela misericoacuterdia divina O homem atual entretanto parece natildeo aprender suas liccedilotildees Ele insiste no pecado e sucumbe a ele e aos estiacutemulos peca-minosos amplamente presentes em nossa sociedade Haacute pontos de aproximaccedilatildeo e de afastamento entre os episoacutedios relatados neste estudo e o contexto atual de vivecircncia do homem Entretanto permanece a dificuldade de se permanecer estavelmente fiel a Deus

4 ABORDAGEM DO VERDADEIRO ARREPENDIMENTOConforme apresentado o homem arrepende-se buscando a misericoacuterdia e

o perdatildeo de Deus O arrependimento segundo Delumeau (2003) eacute deixar o pecado e para que este seja abandonado o arrependimento deve ser verdadeiro

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buscando o perdatildeo divino e comprometendo-se a natildeo cometer o mesmo pecado

No item anterior abordaram-se aspectos da vida atual que sugerem a falta de arrependimento verdadeiro da parte do homem Jonas por exemplo arrependeu--se verdadeiramente ao reconhecer a soberania de Deus Arrependeu-se pri-meiramente ao observar a tempestade arrependeu-se quando estava em alto mar e durante os trecircs dias nos quais esteve dentro do ventre do peixe Jonas de fato arrependeu-se verdadeiramente de sua desobediecircncia a Deus e buscou corrigir suas falhas

Adatildeo no mesmo sentido mostrou-se desobediente ao divino e arrependeu-se gravemente colocando todos os homens em pecado Adatildeo buscava que Deus tivesse pena e piedade de si e de Eva concedendo-lhes meios para sustentar a vida Pode-se questionar o motivo que conduziu Adatildeo ao arrependimento mas natildeo se fora ou natildeo verdadeiro

O homem arrepende-se de suas falhas para com Deus fruto da instabilidade de seu relacionamento de obediecircncia para com o divino Entretanto o homem atual costuma repetir seus pecados arrepende-se com frequecircncia mas por medo de puniccedilotildees raramente se arrepende verdadeiramente O homem natildeo atribui culpa a si mesmo por seus pecados e quando o faz eacute de maneira displicente insistindo nos mesmos erros que antes cometera

Todavia isso diz respeito justamente agrave natureza pecaminosa do homem Mes-mo na Biacuteblia satildeo raros os casos de arrependimento verdadeiros (DELUMEAU 2003) Castro (2013) aponta que o arrependimento verdadeiro ou genuiacuteno con-siste na ideia por traacutes da desobediecircncia do homem em relaccedilatildeo a Deus seja por meio de uma ordem direta ou como eacute mais comum na atualidade por meio da desobediecircncia aos preceitos biacuteblicos

Um exemplo de arrependimento verdadeiro inquestionaacutevel na Biacuteblia encontra- se na histoacuteria de Davi

A oraccedilatildeo de Davi depois do maior erro de sua vida ilustra a natureza da verdadeira tristeza pelo pecado Seu arrependimento foi sincero e profundo Ele natildeo fez nenhum empenho por atenuar a culpa Natildeo foi o desejo de escapar ao juiacutezo que lhe inspirou a oraccedilatildeo Davi reconheceu a enormidade de sua transgressatildeo viu a contaminaccedilatildeo de seu ser e sentiu nojo do pecado Natildeo suplicava unicamente o perdatildeo mas tambeacutem um coraccedilatildeo puro Desejava a alegria da santidade e estar mais uma vez em harmonia com Deus (ENSINOS DE JESUS 2012 p 21)

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Ora levando-se em consideraccedilatildeo a histoacuteria de Davi compreende-se que o arrependimento verdadeiro eacute fruto de um genuiacuteno sentimento de tristeza do ser humano ao desapontar a Deus representado pela sinceridade e pela verdade aceitando o pecado que cometeu e natildeo negando-o Trata-se do desprezo pelo pecado propriamente dito

Souza (2009) aponta que o homem peca quando ele age contra aquilo que eacute imposto por Deus Com o pecado o homem e a mulher tornaram-se seres decadentes sendo o arrependimento a noccedilatildeo atraveacutes da qual eles podem ser sinceros com Deus assumindo sua culpa no pecado e demonstrando tristeza diante de sua desobediecircncia

O arrependimento verdadeiro aleacutem de tais caracteriacutesticas natildeo adveacutem de accedilatildeo humana mas sim de accedilatildeo divina uma vez que

Nenhum ser humano tem o poder de perdoar pecados Somente Deus por meio de Cristo aquele que nunca pecou pode nos conceder perdatildeo e paz de espiacuterito O ensino de que algum ser humano tem poder de perdoar pecados natildeo estaacute em harmonia com a Biacuteblia Nenhuma accedilatildeo humana eacute ca-paz de conseguir o perdatildeo Somente Deus em Jesus Cristo pode perdoar nossos pecados Por isso devemos nos aproximar Dele com o coraccedilatildeo verdadeiramente arrependido (ENSINOS DE JESUS 2012 p 21)

Assim o arrependimento verdadeiro eacute obtido tatildeo somente na comunhatildeo do pecador com Deus Ele deve manifestar com sinceridade o seu arrependimento pelo erro cometido independentemente das dimensotildees de seu pecado Em uma era na qual pecar eacute socialmente aceitaacutevel arrepender-se verdadeiramente eacute um dos difiacuteceis desafios do pecador

5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAISO presente estudo concentrou-se em uma abordagem clara e objetiva acerca do

livro de Jonas sobretudo no aspecto referente agrave conduta dele em relaccedilatildeo a Deus demonstrando sua desobediecircncia e a concepccedilatildeo de arrependimento verdadeiro a fim de que Jonas pudesse persistir no caminho traccedilado por Deus executando a funccedilatildeo divina que lhe fora incumbida

No mesmo sentido observou-se que o pecado sempre marcou o homem desde os tempos de Adatildeo ateacute a atualidade na qual os estiacutemulos pecaminosos estatildeo ain-da mais presentes Existe noccedilatildeo de arrependimento mas natildeo de arrependimento verdadeiro conforme ocorreu com Jonas e Davi Esse tipo de arrependimento se manifesta por uma verdadeira tristeza pelo cometimento do pecado sincera

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e profundamente sem o desejo de escapar da puniccedilatildeo mas curvando-se diante da superioridade de Deus

Este estudo natildeo buscou esgotar o assunto ou tornaacute-lo acabado mas tatildeo so-mente abordar concepccedilotildees acerca do verdadeiro arrependimento e das oscilaccedilotildees entre a obediecircncia e a desobediecircncia a Deus observadas tanto na era biacuteblica quanto na atualidade

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REFEREcircNCIAS ALENCAR J F Levanta-te e vai agrave grande cidade uma introduccedilatildeo ao livro de Jonas Revista Vida Pastoral ano 51 n 274 setembro-outubro 2010 p 6-13

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BIacuteBLIA SAGRADA Disponiacutevel em sanderleicombrPDFBibliaBiblia- Sagrada-Joao-Ferreira-de-Almeidapdf Acesso em 2 jul 2017

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CLEMENTE M A Riqueza de Jonas Goiacircnia GO Editora RHJ 2008

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DELUMEAU J O pecado e o medo ndash a culpabilizaccedilatildeo no ocidente (seacuteculos 13-18) Traduccedilatildeo Aacutelvaro Lorencini Bauru EDUSC 2003 2 v

ENSINO DE JESUS 2012 O que Jesus Ensinou sobre o Perdatildeo 6ordf liccedilatildeo Disponiacutevel em ltensinosdejesuscombrmateriaisestudosestudo-6pdfgt Acesso em 5 jul 2017

ERTHAL L A et al Profetas Menores Seminaacuterio Evangeacutelico para o aper-feiccediloamento de Disciacutepulos e obreiros do Reino ndash SEMEADOR Niteroacutei 2002

FAacuteBIO C Jonas O Sucesso do Fracasso Itajaiacute SC Editora Vinde 1991

SOUZA J N O destino do homem no plano de Deus uma anaacutelise da antropo-logia patriacutestica sobre a ldquoimagem e semelhanccedilardquo Rev Pistis Prax Teol Pastor Curitiba v 1 n 1 p 119-145 janjun 2009

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TRANSFORMACcedilAtildeO RELIGIOSA BRASILEIRA E CARACTERIacuteSTICAS DO NOVO PADRAtildeO RELIGIOSO

Joatildeo Boechat54

RESUMOO Brasil experimentou intensa transformaccedilatildeo religiosa nos uacuteltimos 40 anos

Essa mudanccedila caracterizou-se por trecircs pontos centrais a saber a) Queda da membresia Catoacutelica b) Crescimento dos indiviacuteduos que se consideram sem--religiatildeo e c) Crescimento Evangeacutelico A partir daiacute a sociedade brasileira apresenta uma nova configuraccedilatildeo religiosa Dessa forma surge a necessidade de natildeo apenas compreendermos essa nova configuraccedilatildeo como tambeacutem perce-bermos as relaccedilotildees entre esses grupos religiosos atraveacutes do tracircnsito religioso isto eacute como se daacute a formaccedilatildeo de cada grupo religioso e quanto essa formaccedilatildeo tem relaccedilatildeo com o ganho ou perda de membros antes ligados a outros grupos religiosos Este artigo apresenta a nova configuraccedilatildeo religiosa brasileira aleacutem de demonstrar como essa configuraccedilatildeo tem sido alterada nas uacuteltimas deacutecadas e por fim analisa como se daacute o tracircnsito religioso na sociedade brasileira

Palavras-Chave Transformaccedilatildeo Religiosa Configuraccedilatildeo Religiosa Cresci-mento Evangeacutelico

ABSTRACTIn the last 40 years Brazil has experienced intense religious transformation

Such change is characterized by three main points a) Decrease of Catholic mem-bership b) Increase of Non-Religious groups and c) Increase of the Evangelicals Thus Brazilian society presents a new religious setting Because of that there is the need of not only comprehend this new configuration but also understand the relationship among the religious groups using the analysis of the religious traffic in Brazil ie how each group is formed and how this formation is related to the adding or losing of individuals who were once members of other religious groups In this way this paper presents the new religious configuration in Brazil and discusses how said configuration has been altered in the last decades At last it analyzes how the religious traffic takes place in Brazilian society

54 Joatildeo Boechat eacute professor da Faculdade Batista do Rio de Janeiro aleacutem de pesquisador do Deutscher Akademischer Austauschdienst (DAAD) Eacute doutorando em Sociologia Poliacutetica pela Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF) com ecircnfase em Teologia pela Humboldt Universitaumlt zu Berlin na Alemanha Possui mestrado em Sociologia Poliacutetica pela UENF e especializaccedilatildeo em Ciecircncia da Religiatildeo aleacutem de graduaccedilatildeo em Teologia e Relaccedilotildees Internacionais

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Keywords Religious transformation Religious Configuration Evangelical Growth

INTRODUCcedilAtildeOA realidade do campo religioso brasileiro indica uma forte transformaccedilatildeo

na sociedade em que vivemos Esta percepccedilatildeo ocorre pois ainda que a religiatildeo seja uma espera proacutepria ela influencia e eacute influenciada pelas demais esferas sociais como a economia poliacutetica e ciecircncia Portanto eacute sine qua non para a profunda compreensatildeo teoloacutegica a forma pela qual a religiatildeo se relaciona com a realidade vigente

A palavra que define a realidade religiosa brasileira nas uacuteltimas deacutecadas eacute ldquotransformaccedilatildeordquo Especialmente a partir da deacutecada de 80 o campo religioso no Brasil observa uma intensa mudanccedila encabeccedilada pelo grande crescimento evangeacutelico que atua como principal combustiacutevel de tal transformaccedilatildeo que tambeacutem eacute caracterizada pelo crescimento dos sem-religiatildeo e pela queda catoacutelica

Nesse contexto este artigo procura analisar a transformaccedilatildeo religiosa na sociedade brasileira observando os dados dos censos das uacuteltimas deacutecadas bem como buscando compreender o tracircnsito religioso que ocorre por meio da anaacutelise de como se daacute a formaccedilatildeo das membresias religiosas Por fim apontam-se algumas razotildees que auxiliam na compreensatildeo da mudanccedila religiosa brasileira

Assim pretende-se colaborar para a compreensatildeo da realidade brasileira e de como a transformaccedilatildeo estaacute relacionada com questotildees que atingem a sociedade como um todo Tambeacutem pretende-se explicitar que a religiatildeo eacute uma esfera autocirc-noma que influencia e eacute influenciada pelas demais esferas sociais adaptando-se agraves demandas e necessidades de seus fieacuteis e provendo respostas que busquem atender a tais necessidades

1 PADRAtildeO RELIGIOSO BRASILEIROAs uacuteltimas deacutecadas demonstraram um ldquopadratildeo religiosordquo no Brasil Em

2020 o Instituto Datafolha lanccedilou os seguintes dados da configuraccedilatildeo religiosa brasileira

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Graacutefico 1 Configuraccedilatildeo Religiosa Brasileira

Fonte Datafolha (2020)

Atualmente 50 dos brasileiros se afirmam Catoacutelicos 31 Evangeacutelicos55 10 Sem-Religiatildeo e 9 adeptos de outras religiotildees

Os dados do Graacutefico 1 atuam em conformidade com os dados do Censo de 2010 realizado pelo IBGE56 os quais apontam que a configuraccedilatildeo religiosa no Brasil nas uacuteltimas deacutecadas possui trecircs caracteriacutesticas fundamentais a) intensa queda dos Catoacutelicos b) crescimento significativo dos Evangeacutelicos c) crescimento relevante dos sem-religiatildeo Considerando os dados levantados pelo IBGE eacute possiacutevel identificar tal configuraccedilatildeo

Graacutefico 2 Religiotildees no Brasil (2010)

Fonte Censo do IBGE 2010

55 Caso dividamos os Evangeacutelicos entre os principais subgrupos a formaccedilatildeo do campo brasileiro corres-ponde a 21 de Pentecostais 44 de Evangeacutelicos de Missatildeo e 45 de Evangeacutelicos Natildeo-Determinados56 2010 corresponde ao ano do uacuteltimo censo publicado pelo IBGE

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De acordo com os dados do uacuteltimo Censo do IBGE publicado em 2010 entre os brasileiros 646 se denominam Catoacutelicos 57 222 Evangeacutelicos 58 81 Sem- Religiatildeo 59 27 possuem outras religiotildees 60 21 satildeo adeptos do Espiritismo e 033 de religiotildees afro-brasileiras 61

De fato as religiotildees natildeo satildeo compostas por subgrupos homogecircneos com completa unidade doutrinaacuteria eclesial e praacutetica Tomemos como primeiro exemplo os Evangeacutelicos Para a real compreensatildeo desse grupo religioso no Brasil eacute relevante levar em conta suas divisotildees a fim de melhor entender sua configuraccedilatildeo uma vez que ela se expressa de forma mais variada do que as dos Catoacutelicos e dos Sem-religiatildeo Afinal entre os Catoacutelicos 994 satildeo Catoacutelicos Apostoacutelicos Romanos jaacute entre os Sem-Religiatildeo 952 natildeo possuem religiatildeo mas creem no transcendente ou seja apenas 48 satildeo ateus ou agnoacutesticos

Diferentemente dos Catoacutelicos e Sem-Religiatildeo cuja anaacutelise dividimos em dois subgrupos os Evangeacutelicos apresentam uma divisatildeo relevante em trecircs subgrupos os Pentecostais que correspondem a 60 dos Evangeacutelicos e 133 da populaccedilatildeo brasileira 62 os Evangeacutelicos Natildeo-Determinados correspondem a 212 dos Evangeacutelicos e 48 dos brasileiros 63 Por fim os Evangeacutelicos de Missatildeo ou Histoacutericos correspondem a 182 dos Evangeacutelicos e 44 da populaccedilatildeo brasileira 64

Com base no Graacutefico 2 dividimos a anaacutelise da evoluccedilatildeo do campo religioso brasileiro em duas fases de 1940 a 1980 e de 1980 a 2010 Essa divisatildeo ressalta

57 Entre os Catoacutelicos 994 satildeo Catoacutelicos Apostoacutelicos Romanos 45 Catoacutelicos Apostoacutelicos Brasileiros e 01 Catoacutelicos Ortodoxos58 Entre os Evangeacutelicos 60 satildeo Pentecostais 218 Natildeo-Determinados e 182 Evangeacutelicos de Missatildeo59 Entre os Sem-Religiatildeo 952 satildeo sem-religiatildeo 4 Ateus e 08 Agnoacutesticos60 Entre as outras religiotildees 333 satildeo adeptos de outras religiosidades cristatildes 317 satildeo Testemunhas de Jeovaacute 146 possuem muacuteltiplas religiosidades 55 satildeo Budistas 52 satildeo membros da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Uacuteltimos Dias 36 adeptos de outras religiosidade orientais 24 satildeo Judeus 17 adeptos do Esoterismo e 14 membros de religiotildees Indiacutegenas Haacute ainda grupos de outras religiotildees como o Hinduiacutesmo que correspondem a menos de 1 deste grupo61 Entre as Religiotildees Afro-brasileiras 692 pertencem agrave Umbanda 284 ao Candombleacute e 24 a outras religiotildees de matriz afro-brasileiras62 Os maiores grupos e igrejas pentecostais satildeo Assembleia de Deus (485 dos Pentecostais) Igrejas Pentecostais Independentes (208) Congregacional Cristatilde do Brasil (9) Igreja Universal do Reino de Deus (74) Igreja do Evangelho Quadrangular (71) Deus eacute Amor (33) e Maranata (14)63 Os Natildeo-Determinados satildeo assim denominados pois satildeo formados por igrejas independentes de teologia protestante sem viacutenculo histoacuterico com associaccedilotildees protestantes norte-americanas ou europeias como as Igrejas de Missatildeo64 Os Evangeacutelicos de Missatildeo satildeo assim chamados pois possuem teologia protestante e sua formaccedilatildeo estaacute vinculada agraves missotildees protestantes de igrejas histoacutericas norte-americanas ou europeias No Brasil as maiores igrejas ou associaccedilotildees satildeo Batistas (485 dos Evangeacutelicos de Missatildeo) Adventistas (203) Luterana (13) Presbiteriana (12) Metodista (44) Congregacional (14) e outras (04)

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como nas uacuteltimas trecircs deacutecadas houve relevante mudanccedila e uma nova padro-nizaccedilatildeo religiosa no paiacutes

Tabela 1 ndash Religiotildees no Brasil de 1940 a 2010 em porcentagem (MARIANO 2013)

Religiatildeo 1940 1950 1960 1970 1980 1990 2000 2010Catoacutelicos 952 937 931 911 892 833 738 646Evangeacutelicos 26 34 40 58 66 90 154 222Outras Religiotildees 19 24 24 23 25 29 35 50Sem Religiatildeo 02 05 05 08 16 48 73 81

Natildeo declarou 01 00 00 00 01 00 00 01

TOTAL 100 100 100 100 100 100 100 100Fonte Mariano 2013

De 1940 a 1980 o nuacutemero de Catoacutelicos no Brasil caiu de 952 para 892 passando de 39256972 para 108066311 adeptos65 Apesar do crescimento geral os Catoacutelicos declinaram em 6 nessas quatro deacutecadas Jaacute de 1980 a 2010 os Catoacutelicos caiacuteram de 892 para 646 da populaccedilatildeo do paiacutes totalizando 123228246 adeptos o que indica uma queda de 246 da membresia

Em 2020 o Instituto Datafolha66 publicou uma pesquisa cujos dados revelam que no Brasil os Catoacutelicos correspondem a 50 dos brasileiros o que confirma o ldquopadratildeo religiosordquo de queda da membresia catoacutelica67 Caso o Censo do IBGE de 2020 confirme os dados levantados pelo Datafolha haveria uma queda de 146 na membresia catoacutelica significando a maior perda de adeptos jaacute registrada em uma deacutecada

Por outro lado os Evangeacutelicos se moveram na direccedilatildeo contraacuteria dos Catoacutelicos De 1940 a 1980 aquele grupo cresceu de 26 para 66 da populaccedilatildeo brasilei-ra o que significa que em 40 anos os Evangeacutelicos saltaram de 1072144 para 7995938 adeptos Todavia se nessas quatro deacutecadas os Evangeacutelicos cresceram 4 nas deacutecadas seguintes houve um exponencial aumento dos adeptos entre 1980 e 2010 Nestas os Evangeacutelicos saltaram de 66 para 222 totalizando 42347787 adeptos Isso significa que nas uacuteltimas deacutecadas os Evangeacutelicos

65 De acordo com os dados do Censo do IBGE a populaccedilatildeo brasileira em 1940 era de 41236315 pessoas em 1980 121150573 e em 2010 190755799 pessoas66 Pesquisa Datafolha com 2948 entrevistas realizadas em 176 municiacutepios no paiacutes em 5 e 6 de dezembro de 2019 Margem de erro de 2 pontos percentuais para mais ou para menos e niacutevel de confianccedila de 9567 De acordo com a Pesquisa do Instituto Datafolha em Dezembro de 2019 a Religiatildeo do Brasileiro eacute dividida em 50 Catoacutelicos 31 Evangeacutelicos 10 Sem-Religiatildeo 3 Espiacuteritas 2 Afro-Brasileiros 2 Outras Religiotildees 1 Ateus 03 Judeus

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cresceram cinco vezes mais do que a populaccedilatildeo brasileira Enquanto de 1980 a 2010 a populaccedilatildeo brasileira cresceu 123 os Evangeacutelicos cresceram 62

O crescimento evangeacutelico eacute evidenciado pela pesquisa do Datafolha de acordo com a qual estes atingiram 31 da populaccedilatildeo em 2020 Conforme esses dados o periacuteodo de 2010 a 2020 aponta duas realidades opostas em relaccedilatildeo aos Catoacutelicos e Evangeacutelicos Por um lado os Catoacutelicos sofreram a maior perda de membresia jaacute registrada em uma deacutecada Por outro lado os Evangeacutelicos experimentaram de 2010 a 2020 o maior crescimento jaacute registrado em seu nuacutemero de adeptos

Portanto em 2010 os cristatildeos (Catoacutelicos e Evangeacutelicos)68 correspondiam a 868 dos brasileiros ou seja quase 9 em cada 10 brasileiros ainda se con-siderava cristatildeo De acordo com o Instituto Datafolha em 2020 esse nuacutemero corresponde a 81 dos brasileiros Issto indica que apesar do grande cresci-mento evangeacutelico a queda do nuacutemero de catoacutelicos foi expressiva a ponto haver reduccedilatildeo do nuacutemero de cristatildeos no paiacutes em mais de 5 pontos percentuais Ainda assim apesar do crescimento dos Sem-Religiatildeo (de 8 para 10) os ateus correspondem a apenas 1 da populaccedilatildeo brasileira

Assim os nuacutemeros do Censo permitem a formulaccedilatildeo do seguinte graacutefico

Graacutefico 3 Cristatildeos na populaccedilatildeo brasileira (1940-2020)

Fonte Censo do IBGE (1940-2010) Datafolha (2020)

Em conformidade com o crescimento evangeacutelico os Sem-Religiatildeo tambeacutem obtiveram consideraacutevel aumento Entre 1940 e 1980 eles passaram de 02 a 16 indo de 82473 para 1938409 indiviacuteduos que natildeo possuem religiatildeo Em 68 De fato os Espiacuteritas tambeacutem satildeo cristatildeos Mas como estamos considerando as principais mudanccedilas religiosas no paiacutes consideremos apenas Catoacutelicos e Evangeacutelicos como Cristatildeos Contudo apenas para a anaacutelise e natildeo como afirmaccedilatildeo teoloacutegica Considerando os Espiacuteritas os Cristatildeos atingiriam 2 da populaccedilatildeo em 2010 e 3 em 2020

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2010 esse grupo alcanccedilou 81 dos indiviacuteduos no Brasil totalizando 15451220 pessoas

Por outro lado considerando a pesquisa do Datafolha os Sem-Religiatildeo atin-giriam 10 havendo crescimento de cerca de 2 em nuacutemero Esse crescimento seria maior do aquele que ocorreu entre 2000 e 2010 (08) mas menor do que o ocorrido entre 1990 e 2000 (25)

Graacutefico 4 Cristatildeos x Sem-Religiatildeo no Brasil (1940-2020)

Fonte Censo do IBGE (1940-2010) Datafolha (2020)

Portanto se no fim do seacuteculo XIX apoacutes a Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica (1889) os Catoacutelicos concentravam praticamente 100 da populaccedilatildeo brasileira o seacuteculo XX eacute marcado pela constante queda dessa membresia ainda que ela fosse ampla maioria em 1970 (911) Todavia a partir da deacutecada de 1980 essa queda acelerou-se fazendo com que os Catoacutelicos perdessem quase 1 de sua membresia ao ano (-097)

Desse modo estabelecendo-se uma projeccedilatildeo linear em que os Catoacutelicos manteriam sua perda de 097 ao ano os Evangeacutelicos o seu crescimento de 069 aa e os Sem-Religiatildeo ganhando 017 o ldquopadratildeo religioso brasileirordquo apresentaria uma mudanccedila em relaccedilatildeo agrave hegemonia religiosa por volta de 2036 assim os Evangeacutelicos com 403 ultrapassaratildeo os Catoacutelicos com 394 Em 2040 os Evangeacutelicos teriam 43 e os Catoacutelicos 355 Nesse ano os cristatildeos corresponderiam a 785 da populaccedilatildeo brasileira enquanto os Sem-Religiatildeo formariam 132 da populaccedilatildeo brasileira

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Graacutefico 5 Religiotildees no Brasil (1940-2040)

De fato natildeo eacute possiacutevel afirmar que tal transformaccedilatildeo continuaraacute nesse ritmo Todavia ainda que haja desaceleraccedilatildeo na perda de Catoacutelicos ou no crescimento dos Evangeacutelicos o padratildeo religioso brasileiro eacute ratificado pela intensa mudanccedila ocorrida no cenaacuterio brasileiro nos uacuteltimos 150 anos

Assim os nuacutemeros das pesquisas mencionadas confirmam o ldquopadratildeo religio-sordquo brasileiro e demonstram que este tem se desenvolvido de forma estaacutevel nos uacuteltimos 40 anos Eacute relevante perceber contudo que o paiacutes natildeo passou nestas uacuteltimas deacutecadas por um processo de ldquodesligamento do transcendenterdquo ou seja a perda catoacutelica e o acreacutescimo dos sem-religiatildeo natildeo indicam necessariamente uma diminuiccedilatildeo da experiecircncia com o transcendente ou a perda da busca pelo sagrado A anaacutelise desse padratildeo ajuda a entender a transformaccedilatildeo no campo religioso ocorrida nas uacuteltimas deacutecadas

2 TRAcircNSITO RELIGIOSO BRASILEIRO De forma geral o padratildeo religioso brasileiro indica uma transformaccedilatildeo do

campo religioso marcado pelas transformaccedilotildees na direccedilatildeo da relaccedilatildeo com o divino e natildeo na negaccedilatildeo do divino Isso significa que o brasileiro natildeo deixou de crer no transcendente mas apenas alterou a forma como crecirc ou o caminho para acessar o divino De acordo com o IBGE em 2010 apenas 03 da populaccedilatildeo se denominava ldquoateurdquo ou seja 78 dos brasileiros se consideram sem-religiatildeo mas mantecircm a crenccedila no transcendente

Portanto a configuraccedilatildeo religiosa brasileira se constroacutei a partir das transfor-maccedilotildees inter-religiosas como demonstra a Tabela 2

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Tabela 2 ndash Religiatildeo atual e tracircnsito religioso (BARTZ 2012)

Religiatildeo atual Natildeo mudou Mudou populaccedilatildeoCatoacutelica 959 41 646Evangeacutelico de missatildeo 228 772 41Evangeacutelico pentecostal 144 856 133Outras religiotildees 107 893 50Sem-religiatildeo 197 803 81Meacutedia Total 683 235 100

Fonte Censo Demograacutefico do IBGE 2010

Agrave primeira vista a meacutedia total indica que o Brasil eacute um paiacutes no qual a maioria da populaccedilatildeo permanece na religiatildeo em que nasceu (683) enquanto uma minoria muda de religiatildeo durante a vida (235) Contudo analisando a tabela perceberemos que apenas os Catoacutelicos satildeo maioria entre os que natildeo mudaram de religiatildeo De fato em cada 100 Catoacutelicos 96 nasceram em ambientes Catoacutelicos e apenas 4 se converteram ao longo da vida Isso significa que o Catolicismo eacute no Brasil uma religiatildeo de nascidos e natildeo de convertidos

Se considerarmos os demais grupos religiosos como tambeacutem os sem-religiatildeo veremos que ateacute 2010 828 dos brasileiros jaacute mudaram de crenccedila religiosa durante a vida Com exceccedilatildeo do Catolicismo todos os demais grupos de crenccedila no Brasil satildeo formados majoritariamente por convertidos ou seja seus adeptos se tornaram membros ao longo da vida e natildeo nasceram em ambientes praticantes dessa religiatildeo Pelo menos trecircs quartos da populaccedilatildeo evangeacutelica ou dos que hoje se consideram ldquosem-religiatildeordquo jaacute estiveram em alguma outra religiatildeo antes de possuiacuterem o atual entendimento sobre o transcendente Por exemplo dos 139 da populaccedilatildeo de pentecostais 856 se converteram a essa vertente durante a vida e somente 144 satildeo filhos de pais pentecostais tratando-se portanto de uma religiatildeo majoritariamente de convertidos e natildeo de originaacuterios

Aleacutem disso quando observamos o tracircnsito religioso brasileiro comparando-se a religiatildeo atual e a religiatildeo anterior dos brasileiros percebemos como o fluxo religioso ocorre entre os ldquoconvertidosrdquo

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Tabela 3 ndash Religiatildeo atual x religiatildeo anterior (BARTZ 2012)

Religiatildeo AnteriorReligiatildeo Atual

CatoacutelicaEvangeacutelico Histoacuterico

Evangeacutelico Pentecostal

Outras Religiotildees

Sem-Religiatildeo

Catoacutelica 00 138 589 163 421Evangeacutelico de Missatildeo 269 213 507 11 57Evangeacutelico Pentecostal 187 402 408 04 239Outras Religiotildees 474 99 155 110 64Sem-religiatildeo 179 12 742 55 00Ateus 231 118 332 158 31

Fonte Bartz 2012

A Tabela 3 foi elaborada levando-se em conta os indiviacuteduos que jaacute mudaram de crenccedila religiosa ao longo da vida Assim ela natildeo demonstra a religiatildeo de origem desses indiviacuteduos mas aquelas pelas quais eles jaacute passaram em compa-raccedilatildeo com a atual religiatildeo Portanto a somatoacuteria de algumas supera os 100 uma vez que um indiviacuteduo que hoje eacute Evangeacutelico por exemplo pode ter passado por uma ou mais religiotildees

Com relaccedilatildeo aos Catoacutelicos eacute vaacutelido lembrar que apenas 41 dos adeptos satildeo convertidos Dentre estes 474 satildeo oriundos de famiacutelias que passaram por religiotildees de matriz africana ou orientais 269 foram Evangeacutelicos de Missatildeo e 187 Pentecostais Ademais 231 foram Ateus e 179 Sem-Religiatildeo

Os Evangeacutelicos satildeo o grupo que mais cresce no Brasil eacute uma religiatildeo de ldquocon-vertidosrdquo em que8 em cada 10 indiviacuteduos (82) aproximadamente tornaram-se adeptos ao longo de sua vida e natildeo nasceram em ambientes evangeacutelicos Entre os adeptos que se denominam ldquode Missatildeordquo 402 jaacute pertenceram ao Pentecosta-lismo Isso indica que entre os Evangeacutelicos de Missatildeo o principal fluxo ocorre dentro da esfera Evangeacutelica Ademais 213 dos Histoacutericos jaacute fizeram parte de outra instituiccedilatildeo evangeacutelica histoacuterica como por exemplo um Batista que jaacute foi membro de uma organizaccedilatildeo Metodista ou Presbiteriana Em continuidade 138 dos Evangeacutelicos de Missatildeo jaacute foram Catoacutelicos e 118 Ateus

Por outro lado se entre os Evangeacutelicos Histoacutericos ou de Missatildeo o principal fluxo eacute intrarreligioso entre os Pentecostais 742 foram Sem-Religiatildeo 589 jaacute foram Catoacutelicos e 332 Ateus De fato entre os Pentecostais a maior parte dos convertidos jaacute passou por outras religiotildees Ademais o fluxo intrarreligoso tambeacutem eacute consideraacutevel haja vista que 507 dos Pentecostais jaacute foram ldquoHistoacute-

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ricosrdquo e 408 jaacute passaram por outras organizaccedilotildees Pentecostais Por exemplo um membro da Assembleia de Deus Ministeacuterio Madureira jaacute foi membro da Assembleia de Deus Vitoacuteria em Cristo ou ainda da Igreja Universal do Reino de Deus

O grupo dos ldquosem-religiatildeordquo (78) representa o segundo maior contingente de pessoas que migraram de religiatildeo As igrejas evangeacutelicas pentecostais e os catoacutelicos satildeo os principais fornecedores para este grupo Observamos ainda que 421 dos ldquosem-religiatildeordquo declaram-se ter sido catoacutelicos 239 pentecostais 57 histoacutericos 64 declaram ter pertencido a outras religiotildees Haacute duas rotas portanto de migraccedilatildeo para os ldquosem-religiatildeordquo a primeira vai do catolicismo ou dos evangeacutelicos histoacutericos e a segunda do catolicismo ao pentecostalismo e entatildeo ao grupo ldquosem-religiatildeordquo

Assim o tracircnsito religioso brasileiro nos apresenta algumas caracteriacutesticas a) os Catoacutelicos satildeo os doadores universais b) os Evangeacutelicos satildeo receptores universais ainda que haja intenso fluxo intrarreligioso c) os Sem-Religiatildeo satildeo majoritariamente indiviacuteduos que mantecircm determinada espiritualidade e natildeo se tornam ateus

A fim de aprofundarmos o estudo da Religiatildeo no cenaacuterio brasileiro analisa-remos essas caracteriacutesticas observando possiacuteveis explicaccedilotildees para a formaccedilatildeo desse padratildeo

3 FORMACcedilAtildeO DO PADRAtildeO RELIGIOSO BRASILEIRODiversos trabalhos tecircm sido apresentados a fim de explicar as razotildees para

esse padratildeo apresentado a Teoria da Secularizaccedilatildeo se apresenta como uma valiosa ferramenta para a compreensatildeo dessa nova realidade (NERI 2011 ANDRADE 2012 ALTMANN 2012 GRACINO 2012 MARIANO 2013 CAMURCcedilA 2017)

Considerando que a esfera religiosa no mundo moderno eacute uma esfera como as demais que disputa espaccedilo e relevacircncia sociais pode-se destacar no caso brasileiro trecircs efeitos do processo de secularizaccedilatildeo sobre ela 1) a desmonopo-lizaccedilatildeo religiosa 2) a liberdade religiosa e 3) o pluralismo religioso

Apesar das mudanccedilas ocorridas no campo religioso brasileiro nas uacuteltimas deacutecadas a realidade religiosa brasileira ainda demonstra ser a del um paiacutes ma-joritariamente catoacutelico Apenas no fim do seacuteculo XIX com a proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica o Brasil se tornou oficialmente laico Todavia ainda assim a Igreja Catoacutelica manteve seus privileacutegios em relaccedilatildeo ao Estado secular Entretanto se

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durante os periacuteodos de colonizaccedilatildeo e impeacuterio para ser brasileiro era necessaacuterio ser catoacutelico a separaccedilatildeo entre Igreja e Estado resultou no fim da monopolizaccedilatildeo religiosa

A diferenciaccedilatildeo entre a esfera religiosa e as esferas poliacutetica e juriacutedica se aprofundou criando uma condiccedilatildeo secular que viria a ter efeitos estruturais tambeacutem sobre o modo de organizaccedilatildeo e atuaccedilatildeo das diferentes religiotildees

De acordo com os dados do IBGE em 1940 952 da populaccedilatildeo brasileira era catoacutelica Em 1980 o nuacutemero havia decrescido para 89 da populaccedilatildeo Esse nuacutemero passou para 73 em 2000 decrescendo para 646 da populaccedilatildeo de acordo com o Censo de 2010

O fim da monopolizaccedilatildeo religiosa ocorrida com o iniacutecio da Repuacuteblica no fim do seacuteculo XIX ocasionou tambeacutem maior liberdade religiosa Os dados do IBGE (2000) apontam que cerca de 40 dos catoacutelicos brasileiros eram natildeo praticantes ou seja natildeo participavam ativamente das atividades eclesiais A natildeo-participaccedilatildeo natildeo indica todavia uma falta de atividade religiosa Como ser brasileiro estaacute ligado a ser catoacutelico faz parte da cultura brasileira denominar--se catoacutelico enquanto participa de reuniotildees espiacuteritas ou frequenta cultos no Candombleacute e Umbanda O resultado dessa maior liberdade religiosa bem como a maior liberdade para se considerar como pertencente a outras religiotildees ou mesmo sem-religiatildeo pode ser observada nos Censos das uacuteltimas deacutecadas Enquanto o Catolicismo decresceu de 952 em 1940 para 646 em 2010 as ldquooutras religiotildeesrdquo cresceram de 19 para 5 da populaccedilatildeo os ldquosem-religiatildeordquo saltaram de 02 para 81 de 1940 a 2010 e os evangeacutelicos cresceram de 26 para 222 da populaccedilatildeo nos uacuteltimos 70 anos

Por fim a secularizaccedilatildeo abre espaccedilos para que natildeo soacute novas religiotildees como tambeacutem novas organizaccedilotildees religiosas busquem espaccedilo e concorram pela fide-lizaccedilatildeo religiosa dos indiviacuteduos

A concessatildeo da liberdade religiosa e a separaccedilatildeo Igreja-Estado romperam definitivamente o monopoacutelio catoacutelico abrindo caminho para que outros grupos religiosos pudessem ingressar e se formar no paiacutes disputar e conquistar novos espaccedilos na sociedade adquirir legitimidade social e consolidar sua presenccedila institucional (MARIANO 20033)

Com o fim do monopoacutelio religioso e consequentemente a abertura para novas organizaccedilotildees religiosas possibilita-se a formulaccedilatildeo de distintos interesses religiosos respondendo a distintos interesses sociais A religiatildeo agrave medida que vai se autonomizando como esfera social com loacutegica proacutepria atua como elabo-

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radora dos interesses religiosos a partir da mateacuteria-prima dos interesses sociais dos distintos grupos permitindo por exemplo que distintos interesses sociais estejam ligados a um mesmo interesse religioso Uma vez que as organizaccedilotildees consigam elaborar interesses religiosos comuns capazes de transcender em certa medida as fronteiras dos interesses sociais - embora sem nunca lograr uma completa desvinculaccedilatildeo desses interesses - torna-se provaacutevel a adesatildeo de distintos grupos sociais a essas organizaccedilotildees e especialistas a fim de realizar esses interesses religiosos

Para exemplificarmos o efeito do pluralismo religioso observemos o cresci-mento das igrejas evangeacutelicas no Brasil nos uacuteltimos anos Os dados do Instituto Brasileiro de Planejamento Tributaacuterio (IBPT) apontam que existem no Brasil mais de 179 mil organizaccedilotildees religiosas evangeacutelicas registradas Somente em 2013 doze igrejas foram abertas por dia no Brasil cerca de 4400 novas organi-zaccedilotildees religiosas evangeacutelicas ao longo do ano Esse nuacutemero apresentou em 2014 crescimento de 52869 As organizaccedilotildees religiosas evangeacutelicas apresentam um faturamento de cerca de R$20 bilhotildees ao ano oriundo de diacutezimos venda de produtos e aplicaccedilotildees financeiras70

Essa nova configuraccedilatildeo religiosa no Brasil abre oportunidades para a anaacutelise da religiatildeo sob novas perspectivas uma vez que novos interesses religiosos e sociais ganham espaccedilo nas disputas por atenccedilatildeo nas organizaccedilotildees e especialistas religiosos

Dessa forma a nova configuraccedilatildeo religiosa brasileira demonstra que as transformaccedilotildees religiosas acompanham as transformaccedilotildees sociais mas ocorrem tambeacutem por mudanccedilas na proacutepria esfera religiosa e na capacidade de diferentes religiotildees organizarem distintos interesses e atenderem distintas demandas dos indiviacuteduos

Portanto compreender a configuraccedilatildeo religiosa brasileira eacute funccedilatildeo importante de todo aquele que deseja analisar como a religiatildeo influencia tanto o indiviacuteduo como a sociedade brasileira ao passo que tambeacutem eacute influenciada por eles

69 Disponiacutevel em httpwwwempresometrocombrSiteMetodologia70 Para mais informaccedilotildees sobre a arrecadaccedilatildeo das organizaccedilotildees religiosas evangeacutelicas ver httpexameabrilcombrbrasilem-um-ano-arrecadacao-de-igrejas-passou-dos-r-20-bi

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CAMPOS Bernardo Da Reforma protestante agrave Pentecostalidade da Igreja Satildeo Leopoldo e Quito Sinodal e Clai 2002

CAMPOS Leonildo Silveira Pentecostalismo e Protestantismo Histoacuterico no Brasil um seacuteculo de conflitos assimilaccedilatildeo e mudanccedilas Horizonte v 9 n 22 Belo Horizonte 2011

CAMURCcedilA Marcelo Ayres A Religiatildeo e o Censo enfoques metodoloacutegicos Uma reflexatildeo a partir das consultorias do ISER ao IBGE sobre o dado religioso nos censos Comunicaccedilotildees do ISER v 69 2014 p 04-152

DUTRA Roberto A Universalidade da Condiccedilatildeo Secular Religiatildeo e Socieda-de Rio de Janeiro 36(1) 151-174 2016

DUTRA Roberto BOECHAT Joatildeo Diferenciaccedilatildeo funcional e organizaccedilotildees religiosas na modernidade uma anaacutelise teoacuterica com base no pentecostalismo no Brasil Revista de Ciecircncias Sociais v 49 n 2 2018

GIUMBELLI Emerson A vontade do saber terminologias e classificaccedilotildees sobre o protestantismo brasileiro Religiatildeo e Sociedade Rio de Janeiro n 1

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GONCcedilALVES Delmo Neopentecostalismo Nascimento desenvolvimento e contemporaneidade Uma anaacutelise da IURD e seus elementos eacutetnico-religiosos Novas Ediccedilotildees Acadecircmicas 2015

GRACINO JR Paulo A visatildeo aeacuterea e do nadador reflexotildees sobre catoacutelicos e pentecostais no censo de 2010 Horizonte Revista de Estudos de Teologia e Ciecircncias da Religiatildeo 10(28) nov 2008

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MARIANO Ricardo Neopentecostais sociologia do novo pentecostalismo Brasileiro Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 1999

MARIANO Ricardo Sociologia do Crescimento Pentecostal um balanccedilo Perspectiva Teoloacutegica ano 43 n 119 Belo Horizonte 2011

MARIZ Ceciacutelia L A Renovaccedilatildeo Carismaacutetica Catoacutelica uma igreja dentro da Igreja Civitas ndash Revista de Ciecircncias Sociais v 3 n 1 Porto Alegre 2003

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NOVAES Regina Jovens sem religiatildeo sinais de outros tempos In TEIXEIRA Faustino MENEZES Renata (Org) Religiotildees em movimento o Censo de 2010 Petroacutepolis Editora Vozes 2013

OLSON Roger E Teologia Arminiana mitos e realidades Satildeo Paulo Editora Reflexatildeo 2013

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PIERUCCI Antocircnio F ldquoBye bye Brasilrdquo ndash o decliacutenio das religiotildees tradicionais no Censo 2000 Estudos Avanccedilados 18 (52) 2004

RODRIGUES Denise dos Santos Os sem religiatildeo nos censos brasileiros sinal de uma crise de pertencimento institucional Horizonte v 10 2012 p 1130-1152

SILVEIRA Marcelo O discurso da Teologia da Prosperidade em Igrejas Evangeacutelicas Estudo da Retoacuterica e da Argumentaccedilatildeo no culto religioso Tese (Doutorado em Ciecircncias Sociais) Universidade de Satildeo Paulo-USP Satildeo Paulo 2007

SOUZA Carlos O Protestantismo Histoacuterico e a ldquoPentecostalizaccedilatildeordquo Novos contornos da identidade evangeacutelica Ciecircncias da Religiatildeo histoacuteria e sociedade Satildeo Paulo v 12 n 2 2014

STEIL Carlos Alberto Pluralismo modernidade e tradicao ndash transformaccedilotildees do campo religioso Ciencias Sociales y ReligionCiencias Sociais e Religiao Porto Alegre ano 3 no 3 2001

WEBER Max A Eacutetica Protestante e o Espiacuterito do Capitalismo Trad Maacuterio Moraes Satildeo Paulo Martin Claret 2013

WEBER MAX Economia e Sociedade fundamentos da sociologia com-preensiva Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 2000 2009 (reimpressatildeo)

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AMEacuteM MUacuteLTIPLOS DERIVADOS O MESMO CONCEITOAs diferentes traduccedilotildees de uma mesma raiz

AMEN MULTIPLE DERIVATIVES THE SAME CONCEPTDifferent translations of the same word

Rawderson Rangel71

RESUMOHaacute diversas expressotildees que se encontram no Novo Testamento utilizadas

com muita frequecircncia ainda hoje nas igrejas cristatildes cuja origem eacute o hebraico A proposta do presente artigo eacute analisar a conhecida expressatildeo ldquoAmeacutemrdquo repe-tida em oraccedilotildees e muitas vezes como resposta da congregaccedilatildeo ao pregador ou dirigente do culto Atraveacutes do estudo de diferentes vocaacutebulos tendo esta palavra em sua raiz a investigaccedilatildeo apresentaraacute possiacuteveis significados e sentidos para a expressatildeo que de forma consensual eacute definida simplesmente por ldquoassim sejardquo

Palavras-chave Ameacutem Hebraico Raiz verbal

ABSTRACTMany expressions found in the New Testament often used even today in

Christian churches have their origin in the Hebrew The purpose of this article is to analyze the familiar expression ldquoAmenrdquo repeated in prayers and often as a congregation response of to the preacher or gospel service responsible Through the study of different words having this word in their root the research will present possible meanings for the expression usually simply defined by ldquoLet it be sordquo

Keywords Amen Hebrew Verbal root

71 Bacharel em Teologia pelo Seminaacuterio Teoloacutegico Batista do Sul do Brasil (atual Faculdade Batista do Rio de Janeiro) RJ Brasil revalidado pela Faculdade Teoloacutegica Batista do Paranaacute em Curitiba (atual FABAPAR) PR Brasil Poacutes-graduado em Antigo Testamento tambeacutem pela FABAPAR PR Mestre em Teologia pela Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Paranaacute Cursou Hebraico Biacuteblico pela Israel Biblical Institute of Studies acreditado pela Universidade Hebraica de Jerusaleacutem Israel atualmente eacute estudante de Grego Biacuteblico pela mesma instituiccedilatildeo Escritor professor de Teologia e idiomas biacuteblicos missionaacuterio da Junta de Missotildees Mun-diais da Convenccedilatildeo Batista Brasileira - JMM da CBB em Moccedilambique Eacute professor do Instituto Teoloacutegico Baptista da Beira Sofala e Instituto Biacuteblico de Sofala ndash Moccedilambique E-mail rawdersonhotmailcombr

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INTRODUCcedilAtildeO O hebraico biacuteblico por ser um idioma antigo apresenta-se bastante complexo

com determinados caracteres e algumas formas gramaticais que hoje natildeo satildeo mais utilizadas tal complexidade pode ser diminuiacuteda se o estudante estiver atento a alguns detalhes que satildeo extremamente uacuteteis no estudo da liacutengua e a anaacutelise a partir de determinadas raiacutezes eacute uma delas Haacute muitas palavras de tronco comum que uma vez entendidas ajudam na memorizaccedilatildeo delas na compreensatildeo do sentido de uma expressatildeo e ateacute mesmo de um verso biacuteblico

O vocabulaacuterio da Biacuteblia hebraica eacute de aproximadamente oito mil palavras72 sendo que duas mil delas aparecem apenas uma vez no texto desse modo um bom dicionaacuterio biacuteblico eacute indispensaacutevel no estudo do Antigo Testamento Ao mesmo tempo todo esse vocabulaacuterio pode ser reduzido a mil e trezentas raiacutezes73 e a polissemia desse idioma torna o estudo das palavras e seu significado original relevante pois facilita a compreensatildeo de determinadas palavras ou expressotildees no texto hebraico Ela tem sido vista como uma soluccedilatildeo para os muacuteltiplos significados representados por uma uacutenica palavra Ana Ceciacutelia Cruz defende essa relaccedilatildeo tanto graacutefica quanto foneacutetica segundo essa autora esta eacute ldquo() uma relaccedilatildeo metafoacuterica que amplia um sentido baacutesico para outros mais abstratosrdquo74

Miles Van Pelt afirma que as primeiras cinquenta palavras mais frequentes permitem ao estudante reconhecer um pouco mais da metade (55) do total de palavras que ocorrem no Antigo Testamento hebraico Dominar as 641 palavras que ocorrem cinquenta ou mais vezes permitiraacute identificar mais de 80 das palavras75 Uma das razotildees para isso eacute a relaccedilatildeo entre estas e as suas raiacutezes

A palavra que seraacute analisada neste artigo tambeacutem pode ter muacuteltiplas tradu-ccedilotildees embora um sentido baacutesico Analisar a origem e o significado de ldquoAmeacutemrdquo eacute bastante interessante embora natildeo menos complexo quando comparada agraves de-mais liacutenguas semiacuteticas76 Sabe-se que ela existe desde tempos remotos tanto em hebraico como tambeacutem em aacuterabe (rsquoĀmīn) ldquoAmeacutemrdquo eacute referecircncia nas trecircs grandes religiotildees que surgiram no Oriente Meacutedio cristianismo islamismo e judaiacutesmo Assim como ldquoAleluiardquo essa palavra tambeacutem natildeo se traduz em nenhum idioma sendo compreendida por todas as culturas sob a influecircncia de pelo menos uma das religiotildees mencionadas anteriormente

72 FRANCISCO Edson Faria de In Liacutengua Hebraica Aspectos Histoacutericos e Caracteriacutesticas (2010)73 JOUumlON P MURAOKA T (2007) Gramaacutetica del Hebreo Biacuteblico sect40 ndash nota74 CRUZ A d Estratificaccedilatildeo linguiacutestica ampliaccedilatildeo semacircntica e polissemia em hebraico Revista Veacutertices 11 2011 p 4275 PELT Miles Van The vocabulary guide to biblical Hebrew 2003 p ix76 WILLIAM B EERDMANS PUBLISHING COMPANY (1974) Theological Dictionary of The Old Testament (Vol I) Paacutegs 292293

53TeoloacutegicaRevista Brasileira de Teologia ISSN 1807-7056 nordm 8 outdez Rio de Janeiro 2020 p 51- 62

1 AMEacuteM EM DIVERSAS CULTURASA palavra tem algumas caracteriacutesticas particulares em cada uma dessas

religiotildees apesar de natildeo estar incluiacuteda no Alcoratildeo āmīn eacute uma das mais im-portantes na oraccedilatildeo islacircmica usada em diferentes contextos principalmente na sua conclusatildeo77 o rabino Chanina em 225 dC afirmou que ldquoameacutemrdquo eacute um acroacutestico - a palavra eacute composta por trecircs consoantes que em hebraico sintetizam a frase ldquoDeus Rei Fielrdquo rsquoel melek e nersquoeman78 Pronunciar essa palavra no final da prece eacute segundo esse raciociacutenio uma declaraccedilatildeo espiritual de que o proacuteprio Deus vai agir jaacute no cristianismo quando se pergunta o significado de ldquoAmeacutemrdquo logo vem a resposta ldquoassim sejardquo Tambeacutem no cristianismo ela tem um conceito de encerramento conclusatildeo teacutermino sendo esta uma das uacuteltimas palavras do Novo Testamento encontrada em Apocalipse 2220 21

Independentemente do que esteja acontecendo em um culto nas igrejas evan-geacutelicas eacute comum ouvir-se um ldquoameacutemrdquo Eacute tatildeo comum no linguajar cristatildeo que se tornou inclusive uma pergunta ldquoAmeacutem irmatildeosrdquo A resposta vem a seguir ldquoAmeacutemrdquo A depender do contexto tem o sentido de ldquopode ser assimrdquo ldquocon-cordamrdquo ou ateacute mesmo ldquoeacute assim ou natildeo eacuterdquo Quando aparentemente natildeo haacute um assunto definido ou o dirigente ainda estaacute se organizando no puacutelpito surge a pergunta ldquoAmeacutemrdquo A resposta da congregaccedilatildeo eacute repetir ldquoAmeacutemrdquo Resta analisar se foi criada uma nova semacircntica

Em diversos lugares do mundo o ldquoameacutemrdquo identifica-se com a feacute Quando se termina o momento devocional e de oraccedilatildeo a palavra eacute repetida imediatamente uma vez que tem sido ensinada como significado de ldquoassim sejardquo No Dicionaacuterio Internacional de Teologia do Antigo Testamento no entanto lecirc-se que

Esse conceito tatildeo importante da doutrina biacuteblica eacute prova clara do signi-ficado biacuteblico de ldquofeacuterdquo em contraste com muitos conceitos populares do termo No acircmago do sentido da raiz estaacute a ideia de certeza Isso eacute susten-tado pela definiccedilatildeo de feacute do NT encontrada em Hebreus 11179

Esse dicionaacuterio relaciona a expressatildeo pistis com certeza e feacute algo que tambeacutem acontece em alguns versos traduzidos do hebraico pela LXX cuja raiz da palavra eacute ldquoameacutemrdquo 80 embora natildeo com uniformidade 81

77 AKASOY 200978 Strack amp BILLERBECK 1922 paacuteg 464 Apud ZINKAND 1982 p 279 rsquoāmīn in HARRIS ARCHER JR e WALTKE 199880 Dt 3220 Jeremias 92 entre outros81 ZINKAND 1982 op cit paacuteg 4

54 TeoloacutegicaRevista Brasileira de Teologia ISSN 1807-7056 nordm 8 outdez Rio de Janeiro 2020 p 51-62

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2 ʾmN e SeUS DeRivaDOS Partindo da anaacutelise da sua raiz (que neste caso eacute ʾmn) e de acordo com o

contexto eacute possiacutevel perceber que a palavra ameacutem tem um sentido que vai aleacutem do significado convencional ʾmn pode ser traduzido do texto hebraico82 de diferentes maneiras mas normalmente relacionado a ldquoconfiarrdquo e ldquoacreditarrdquo Esta eacute tambeacutem a tese defendida por Flor83 ainda que a raiz apareccedila como verbo ou adjetivo

Embora essa palavra aqui estudada seja mais conhecida como uma interjeiccedilatildeo ela tambeacutem se encontra no original tanto em raiacutezes verbais como tambeacutem em substantivos e adjetivos reafirmando o significado de confianccedila e estabilidade Eacute possiacutevel que haja alguma dificuldade para identificaacute-la especialmente pelas variaccedilotildees caracteriacutesticas da gramaacutetica hebraica No entanto ao reconhececirc-la o texto seraacute enriquecido com as possibilidades de interpretaccedilatildeo

21 ʾmN NaS RaiacutezeS veRBaiS

A primeira vez que a palavra aparece no texto do Antigo Testamento eacute na passagem de Gecircnesis 15 quando Deus percebe que Abratildeo colocava em duacutevida que ele teria descendecircncia direta Nesse episoacutedio o patriarca afirma esperar que a sua descendecircncia seria a de Eliezer mas Deus ldquoimediatamenterdquo (hinnēh - Gecircnesis 154) apresenta-lhe as suas intenccedilotildees convidando-o gentilmente84 a sair da sua tenda e ver a quantidade de estrelas no ceacuteu como um exemplo da quantidade de descendentes que ele teria

Apoacutes essa conversa diz o texto em Gecircnesis 156 ldquoEle creu [hě ěʾmin] no Se-nhor e isso lhe foi imputado para justiccedilardquo A raiz do verbo em destaque eacute ʾ mn85 Uma vez que se encontra em hifil pode ser traduzido por ldquoele acreditourdquo ou ldquoele se firmou por uma convicccedilatildeo internardquo A mudanccedila de sentimento de Abratildeo foi fundamental para o desenrolar da histoacuteria de Israel conforme apresentado no Antigo Testamento Essa passagem inclusive eacute confirmada no Novo Testamen-

82 Salvo nota indicando o contraacuterio todas as passagens biacuteblicas em portuguecircs apresentadas na presente investigaccedilatildeo foram extraiacutedas da versatildeo Revista e Atualizada da Sociedade Biacuteblica do Brasil 199983 FLOR E N (Novembro de 2000) ldquoAmenrdquo in Old Testament liturgical texts a study of its meaning and later development as a plea for ecumenical understanding p 784 Sobre a expressatildeo que demonstra esse tratamento cordial e respeitoso por parte de Deus nesta passagem ver RANGEL Rawderson ldquoNatildeo estou mandando estou pedindo a partiacutecula de Suacuteplicardquo in Revista Teoloacutegica nuacutemero 6 ago ndash dez 2018 pp 114-125 Filo afirma que a conversa natildeo foi em um niacutevel de Deus para o homem mas sim entre amigos in PAGE T E (Ed) Philo (Vol VI) London England William Heinemann Ltd Harvard University Pressp 311 85 Na LXX a traduccedilatildeo utiliza a palavra episteusen da mesma raiz da palavra feacute usada em Hebreus 11

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to 86 e nessas passagens todos os versos traduzem o ʾmn por pisteuo seguindo a LXX no aoristo enfatizando o fato da ocorrecircncia natildeo da sua natureza

Ainda como verbo no contexto de ldquoacreditarrdquo e ldquoconfiarrdquo na histoacuteria de Israel ʾmn tambeacutem aparece como uma negaccedilatildeo agrave feacute ou a crer Quando Moiseacutes estaacute diante de Deus no monte Sinai recebendo a missatildeo de libertar o povo de Israel do Egito ele pergunta ldquo[] Mas eis que natildeo creratildeo [yaʾmīnū] nem acudiratildeo agrave minha voz []rdquo (Ecircxodo 41) A falta de feacute ou confianccedila eacute tambeacutem evidenciada na passagem em que o povo de Israel teme entrar na terra prometida diante do testemunho dos espias que foram enviados a Canaatilde ldquo[] Ateacute quando me provocaraacute este povo e ateacute quando natildeo creraacute [lōʾ -yaʾ ămicircnucirc] em mim a despeito de todos os sinais que fiz no meio delerdquo87 (Nuacutemeros 1411)

O conhecido texto de Habacuque 24 eacute tambeacutem uma interessante passagem relacionada a crer e confiar ldquo() mas o justo em sua feacute [beʾ ĕmucircnāṯocirc] viveraacuterdquo [trad do autor] 88 Outra possibilidade para Habacuque 24 o justo por aquilo que ele crecirc viveraacute A feacute tem seu fundamento naquilo que estaacute estabelecido e por isso eacute digno de creacutedito

Isaiacuteas 79 apresenta um curioso jogo de palavras ldquo[] se o natildeo crerdes certamente natildeo permanecereisrdquo No hebraico os verbos crer e permanecer satildeo palavras homoacutegrafas e homoacutefonas taʾămicircnucirc e tēʾāmēnucirc reforccedilando a ideia Ambos com a raiz ʾmn tecircm o sentido de fidelidade feacute e acreditar

Acosta Rosales apresenta um estudo no qual apenas analisa essa palavra em qal 89 Mas haacute diversos outros exemplos na Biacuteblia que relacionam ʾmn com confianccedila no particiacutepio a palavra eacute usada para expressar a confianccedila de uma crianccedila nos braccedilos de sua matildee 90 ou de seus cuidadores (Nuacutemeros 1112 91 e 2Reis 101 92) em Isaiacuteas 604 93 no Nifal eacute possiacutevel tambeacutem relacionar-se o verbo a cuidadores com sentido de trazer seguranccedila e firmeza

86 Romanos 43 Gaacutelatas 36 Tiago 22387 A traduccedilatildeo correta seria creratildeo yarsquomīnū88 A palavra feacute em Habacuque 24 na LXX eacute traduzida por pistis no Genitivo singular feminino 89 ROSALES A D Re-discovering the semantics of ןמא in qal Theologica Xaveriana 67 (Grammar Philology Semantics) 431-46090 rsquoāman in WILLIAM B EERDMANS PUBLISHING COMPANY 197491 Nuacutemeros 1112 ldquoConcebi eu porventura todo este povo Dei-o eu agrave luz para que me digas Leva-o ao teu colo como a ama [particiacutepio] leva a crianccedila que mama agrave terra que sob juramento prometeste a seus paisrdquo 92 2Reis 101 ldquoAchando-se em Samaria setenta filhos de Acabe Jeuacute escreveu cartas e as enviou a Samaria aos chefes da cidade aos anciatildeos e aos tutores [particiacutepio] dos filhos de Acabe dizendordquo 93 Isaiacuteas 604 ldquoLevanta em redor os olhos e vecirc todos estes se ajuntam e vecircm ter contigo teus filhos chegam de longe e tuas filhas satildeo trazidas [Nifal imperfeito 3feminina plural] nos braccedilos

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22 ʾmN COmO SUBSTaNTivO e aDjeTivO

Ainda relacionada agrave credibilidade a palavra utilizada para nomear as vigas sobre as portas do templo que deram sustentaccedilatildeo agrave construccedilatildeo tem em sua raiz ʾmn em 2Reis 1816 encontramos a palavra traduzida por ombreiras 94 das portas do templo de Israel95 Na LXX a traduccedilatildeo eacute de uma palavra derivada de stērizō algo que daacute estabilidade Quando se avalia toda a estrutura do templo evidencia-se que tais ombreiras natildeo poderiam ser algo sem uma firmeza e que garantissem seguranccedila

Como sustentaccedilatildeo e credibilidade relacionadas a pessoas ʾmn encontra-se em Ecircxodo 1712 na conhecida passagem em que os filhos de Israel perdiam a batalha quando Moiseacutes baixava as suas matildeos Percebendo isso Aratildeo e Hur seguraram os seus braccedilos e ldquo() assim lhe ficaram as matildeos firmes [ʾ ĕmucircnacirc] ateacute ao pocircr-do-solrdquo96 Com a firmeza veio a certeza da vitoacuteria Novamente atraveacutes da raiz o texto atribui agrave atitude desses homens o sinocircnimo de seguranccedila e firmeza

Essa credibilidade se observa tambeacutem como sinocircnimos de guardas e segu-ranccedilas porteiros (1Crocircnicas 922) pessoas responsaacuteveis por atividades diversas em quem se depositou total confianccedila (1Crocircnicas 931 2Crocircnicas 3412)

Haacute vaacuterios substantivos que satildeo derivados da raiz ʾ mn e todos eles transmitem a ideia baacutesica de ldquosuporte firmezardquo ou ldquoconfirmaccedilatildeordquo Haacute variantes da palavra traduzidas por ldquopai adotivordquo algueacutem que apoia e nutre um grupo familiar dando-lhe estabilidade e firmeza A forma feminina com essa raiz ʾomenet significa ldquomatildee adotivardquo e inclui a ideia de ldquonutrirrdquo ldquofortalecerrdquo Outra palavra que demonstra essa firmeza agora na arte eacute ʾuman denota ldquoum operaacuterio habi-lidosordquo traduzido por ldquoartesatildeordquo97

O texto biacuteblico apresenta uma relaccedilatildeo curiosa entre o homem e ʾmn falando em termos da natureza humana ele eacute falho e inseguro pode vacilar Os adjetivos relacionados com ʾ mn atribuiacutedos aos seres humanos nunca englobam a sua tota-lidade mas sim aspectos e momentos pontuais que viveram Nem mesmo a Joacute que recebeu os elogios do Senhor por sua integridade eacute atribuiacutedo esse adjetivo

No entanto eacute a Deus que ʾ āman eacute atribuiacutedo Para Flor isso acontece especial-mente no livro de Salmos (mas natildeo soacute) porque Deus eacute imutaacutevel estaacutevel e firme

94 A mesma palavra pode ter dois significados diferentes um se refere a m ezuwzah (laterais) enquanto que a palavra de 2 Reis 1816 se refere agrave parte superior da porta A LXX traduz por estērigmena 95 2Reis 1816 ldquoFoi quando Ezequias arrancou das portas do templo do Senhor e das ombreiras o ouro de que ele rei de Judaacute as cobrira e o deu ao rei da Assiacuteriardquo96 A LXX traduz este texto com a mesma ideia97 FLOR E N op cit p 15

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enquanto o ser humano frequentemente eacute fraco instaacutevel e inconstante98 Por essa razatildeo acreditando nisso em Lamentaccedilotildees 323 se lecirc a respeito das misericoacuterdias de Deus ldquo() renovam-se cada manhatilde Grande eacute a tua fidelidade [ʾ ĕmucircnātekā]rdquo

A palavra do Senhor tambeacutem eacute tida por fiel e verdadeira digna de credibili-dade e aiacute tambeacutem se encontra a raiz da palavra em questatildeo O salmo 119 nos versos 75 86 90 138 o poeta homenageia a Lei de Deus qualificando-a de fiel e verdadeira

3 āʾmaN e ldquoaSSim Sejardquo

A palavra ldquoAmeacutemrdquo aparece vinte e quatro vezes no Antigo Testamento (doze delas apenas em Deuteronocircmio 2715ss) Devido agrave variedade de possibilidades torna-se difiacutecil identificar o seu real sentido no hebraico99

Haacute textos que sugerem a expressatildeo ldquoassim sejardquo em sua traduccedilatildeo com uma conotaccedilatildeo de confirmaccedilatildeo daquilo que estava sendo dito como nos versos de Jeremias 115100 286101 e 1Reis 136 37102 Nesses textos eacute possiacutevel interpretar que Deus daria a sua becircnccedilatildeo ao que jaacute havia sido planejado e dito Nessas passagens a referecircncia eacute feita aos oradores somente porque eles reconheceram o que jaacute havia sido determinado por YHVH e confirmaram a afirmaccedilatildeo Suas declaraccedilotildees podem significar ldquoPrecisamente Eu sinto o mesmo a respeito que Deus o faccedilardquo103 Eacute como uma aceitaccedilatildeo do que foi estabelecido natildeo uma esperanccedila em algo que aconteceria

Existem tambeacutem ao menos trecircs passagens nas quais a palavra ldquoameacutemrdquo estaacute em uma situaccedilatildeo diferente da mencionada anteriormente todas elas relacionadas a uma maldiccedilatildeo contra a pessoa envolvida em Deuteronocircmio 2715-26 (declara-ccedilatildeo de maldiccedilotildees no caso do natildeo cumprimento das leis e estatutos estabelecidos por Deus) em Nuacutemeros 522104 (declaraccedilatildeo solene acontecia no momento em que

98 ibidem p 1799 WILLIAM B EERDMANS PUBLISHING COMPANY op cit p 320100 Jeremias 115 ldquoPara que confirme o juramento que fiz a vossos pais de lhes dar uma terra que manasse leite e mel como se vecirc neste dia Entatildeo eu respondi e disse ameacutem oacute Senhorrdquo101 Jeremias 286 ldquoDisse pois Jeremias o profeta Ameacutem Assim faccedila o Senhor confirme o Senhor as tuas palavras com que profetizaste e torne ele a trazer da Babilocircnia a este lugar os utensiacutelios da Casa do Senhor e todos os exiladosrdquo102 1Reis 136 37 ldquoEntatildeo Benaia filho de Joiada respondeu ao rei e disse Ameacutem Assim o diga o Senhor Deus do rei meu senhor Como o Senhor foi com o rei meu senhor assim seja com Salomatildeo e faccedila que o trono deste seja maior do que o trono do rei Davi meu senhorrdquo103 WILLIAM B EEDERMANS PUBLISHING op cit pp 320104 Nuacutemeros 522 ldquoE esta aacutegua amaldiccediloante penetre nas tuas entranhas para te fazer inchar o ventre e te fazer descair a coxa Entatildeo a mulher diraacute Ameacutem Ameacutemrdquo

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a mulher era confrontada sobre o adulteacuterio) e em Neemias 513105 (compromisso contra a usura) Por serem maldiccedilotildees que recairiam sobre quem natildeo cumprisse a sua palavra ou imprecaccedilatildeo sobre a pessoa condenada a expressatildeo sugere uma declaraccedilatildeo solene de que aqueles castigos iriam acontecer106 Seria o conhecido ldquoassim sejardquo pronunciado em declaraccedilatildeo solene de aceitaccedilatildeo do castigo contra aquele que estava assumindo o compromisso

Em algum momento a expressatildeo passou a ser tambeacutem usada na Doxologia em resposta da congregaccedilatildeo diante de uma declaraccedilatildeo de Deus em Neemias 86 a congregaccedilatildeo diz ldquoameacutem ameacutemrdquo levantando as suas matildeos Natildeo se sabe dizer se este jaacute era um costume seguido (conforme 1Crocircnicas 1636) ou se passou a ser regular a partir daquele momento107 Sobre os cacircnticos do salteacuterio a palavra aparece no final dos primeiros quatro livros (Salmos 4113 7219 8952 10648)

CONCLUSAtildeO Os exemplos apresentados ilustram a importacircncia de o estudante do hebraico

biacuteblico analisar as palavras a partir de suas raiacutezes para poder interpretar melhor o texto biacuteblico sempre considerando prioritariamente o contexto que eacute deter-minante na interpretaccedilatildeo108 Dificilmente haveraacute um uacutenico significado oriundo de uma uacutenica raiz portanto conhecer os seus significados seraacute uma grande contribuiccedilatildeo no estudo do texto biacuteblico

Quando um hebreu ouvia as vaacuterias palavras derivadas da raiz ʾmn a ideia baacutesica que lhe vinha agrave mente era aparentemente ldquoconstacircnciardquo ldquoestabilidaderdquo Quando se referiam a objetos significavam ldquocontinuidaderdquo quando relacionadas a pessoas ldquoconfiabilidaderdquo Outros derivados da raiz satildeo ldquodurabilidaderdquo ldquoesta-bilidaderdquo ldquoverdaderdquo ldquofeacuterdquo ldquocompletuderdquo ldquoaquele que protegerdquo109 No entanto Deus eacute aquele que plenamente tem essas virtudes e atributos o ser humano tem essas qualidades ateacute certo ponto devido agrave sua limitaccedilatildeo e fragilidade

Quanto agrave palavra ldquoameacutemrdquo que proveacutem da raiz que expressa todas as qualida-des mencionadas anteriormente a expressatildeo tem o sentido de feacute e confianccedila em algo previamente estabelecido mas tambeacutem expressa uma certeza e confianccedila 105 Neemias 513 ldquoTambeacutem sacudi o meu regaccedilo e disse Assim o faccedila Deus sacuda de sua casa e de seu trabalho a todo homem que natildeo cumprir esta promessa seja sacudido e despojado E toda a congregaccedilatildeo respondeu Ameacutem E louvaram o Senhor e o povo fez segundo a sua promessardquo106 Barry J D Mangum D Brown D R Heiser et al Faithlife Study Bible (Dt 2715) Bellingham WA Lexham Press 2016107 WILLIAM B EEDERMANS PUBLISHING op cit pp 321108 Osborne (2009 paacutegs 101-139 especialmente as paacutegs 104-108) trata do exagero que muitos estudiosos da Biacuteblia datildeo agraves palavras analisadas de forma isolada descontextualizada109 WILLIAM B EEDERMANS PUBLISHING op cit pp 323

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quanto ao futuro Quando observada no Antigo Testamento ela eacute feita de forma solene e consciente e por isso mesmo raramente eacute encontrada no texto

A expressatildeo que sugere uma ratificaccedilatildeo eacute cuidadosamente aplicada nas paacutegi-nas da Biacuteblia natildeo sendo uma palavra dita em qualquer momento ou por qualquer situaccedilatildeo A conclusatildeo de Lande eacute que ldquoameacutemrdquo eacute usado como confirmaccedilatildeo de uma situaccedilatildeo muito especial e que a expressatildeo natildeo pertence agrave fala cotidiana110 Hulst expressa a mesma opiniatildeo ao afirmar ldquoA palavra ameacutem natildeo pertence agraves palavras do uso diaacuterio constante eacute mantido para uso em situaccedilotildees muito especiais e aleacutem disso raramente ocorre111 Por sua raridade no texto biacuteblico os personagens do Antigo Testamento tinham consciecircncia do seu sentido e o respeitavam

No AT a palavra eacute usada tanto pelo indiviacuteduo quanto pela comunidade para 1) confirmar a aceitaccedilatildeo de uma tarefa designada por homens mas a sua exe-cuccedilatildeo envolve a vontade de Deus (1Reis 136) 2) ratificar a aplicaccedilatildeo pessoal de uma ameaccedila ou maldiccedilatildeo divina (Nuacutemeros 522 Deuteronocircmio 2715ss Jeremias 115 Neemias 513) e 3) para declarar o louvor a Deus em resposta a uma doxologia (1Crocircnicas 1636 Neemias 86) como mostram os textos finais dos primeiros quatro livros dos Salmos (4113 7219 8952 10648)112

110 LANDE 1949 paacuteg 112 apud FLOR 2000 pp 16 17111 HULST 1953 p50 apud FLOR E N ldquoAmenrdquo in Old Testament liturgical texts a study of its meaning and later development as a plea for ecumenical understanding University of South Africa novembro de 2000 p17112 RENGSTORF ἀμήν in Wm B Eerdmans Publishing Co 1964 paacuteg 335

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A ANAacuteLISE DO DISCURSO NA INTERPRETACcedilAtildeO BIacuteBLICA

DISCOURSE ANALYSIS IN BIBLICAL INTERPRETATIONMe Thaiacutes de Oliveira Viriacutessimo113

Universidade Federal do Rio de Janeiro

RESUMO A Anaacutelise do Discurso tida como relevante para a interpretaccedilatildeo dos inuacutemeros

gecircneros textuais existentes eacute uma teoria linguiacutestica com extensiva abrangecircncia e aplicabilidade Sua importacircncia tem sido reconhecida inclusive por aqueles que manuseiam textos antigos entre os quais a Biacuteblia eacute encontrada Por ser ainda escassa a interaccedilatildeo entre estudos da linguagem e teologia no ambiente acadecircmico brasileiro objetiva-se neste artigo apresentar a Anaacutelise do Discurso como ferramenta possiacutevel de interpretaccedilatildeo biacuteblica Para isso interpretou-se Evangelho de Marcos 11-4 por meio do meacutetodo desenvolvido por Viriacutessimo (2018) sob os pressupostos da linguiacutestica textual (HORTA 1991 WALLACE 2009 GUTHRIE DUVALL 1998 OLSSON 2013) A pesquisa resultou na compilaccedilatildeo de informaccedilotildees criacuteticas acerca do texto biacuteblico

Palavras-chave Anaacutelise do Discurso Novo Testamento Grego koineacute Evan-gelho de Marcos

ABSTRACTConsidered as relevant for interpreting many existing textual genres Discour-

se Analysis is a linguistic theory with wide scope and applicability Even those who handle Ancient texts among which the Bible is found have recognized its importance As the interaction between studies in languages and Theology in Brazilian colleges is still rare this paper aims to present Discourse Analysis as a tool for biblical interpretation Using the method developed by Viriacutessimo (2018) the Gospel of Mark 11-4 was observed through linguistic assumptions (HORTA 1991 WALLACE 2009 GUTHRIE DUVALL 1998 OLSSON 2013) As a result it was developed a critical compilation of informations about the text

Keywords Discourse Analysis Biblical interpretation New Testament Koine Greek Gospel of Mark

113 Mestre em Letras Claacutessicas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro Possui tambeacutem os tiacutetulos de Licenciada em Portuguecircs-Grego pela supracitada instituiccedilatildeo e de Especialista em Antropologia Intercultural pelo Centro Universitaacuterio de Anaacutepolis (UniEvangeacutelica) Email virissimoprotonmailcom

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1 INTRODUCcedilAtildeOEacute lugar comum afirmar que nenhuma outra obra literaacuteria foi e permanece sen-

do tatildeo citada comentada traduzida e questionada na histoacuteria da humanidade como a Biacuteblia ndash coletacircnea de livros sagrados para o cristianismo e igualmente respeitada por outros segmentos religiosos globais114 A influecircncia da Biacuteblia eacute notoacuteria inclusive no que se refere agrave formaccedilatildeo cultural brasileira Suas histoacuterias inspiraram a arquitetura a exemplo do Redentor de braccedilos abertos sobre a Baiacutea de Guanabara a literatura como os personagens machadianos Esauacute e Jacoacute a muacutesica conforme a mistura dos amores poeacuteticos cantada por Renato Russo em seu Monte Castelo

Ainda assim a abordagem da Biacuteblia como um objeto de estudo suscetiacutevel ao escrutiacutenio por meacutetodos multidisciplinares continua sendo miacutenima no espaccedilo acadecircmico nacional Eacute certo que avanccedilos promissores precisam ser destacados nessa aacuterea como o recente ldquoEstudos Biacuteblicos em Foco I Congressordquo evento promovido pelo Instituto de Letras da UERJ em novembro de 2019 Contudo faz-se indispensaacutevel natildeo apenas a criaccedilatildeo mas a manutenccedilatildeo de iniciativas de pesquisas biacuteblicas fora dos ambientes confessionais de reflexatildeo

A promoccedilatildeo pois de uma metodologia de pesquisa ancorada na Anaacutelise do Discurso destacando-se a sua utilidade no ensino de liacutengua e teologia eacute a linha de chegada que se pretende alcanccedilar com esta publicaccedilatildeo Para tal o artigo foi organizado nas seguintes seccedilotildees 2 Anaacutelise do Discurso em que conceitos fundamentais acerca do assunto seratildeo apresentados 3 Metodologia em que o meacutetodo proposto seraacute passo a passo descrito numa siacutentese teoacuterica e exemplificado com sua aplicaccedilatildeo em Segundo Marcos 11-4 conforme os itens subsequentes ndash 31 Contextualizaccedilatildeo 32 Etapas de anaacutelise 33 Notas e 34 Interpretaccedilatildeo e 4 Consideraccedilotildees finais em que se registraraacute a importacircncia do diaacutelogo entre as Ciecircncias da Linguagem e a Teologia

2 ANAacuteLISE DO DISCURSOA Anaacutelise do Discurso (doravante AD) eacute um quadro teoacuterico com vaacuterias pos-

sibilidades de aplicaccedilatildeo visto que nele podem ser considerados na anaacutelise de

114 O islamismo por exemplo tem registrado no Alcoratildeo a validade da Toraacute e da Biacuteblia como escrituras inspiradas por Deus Alguns versiacuteculos em que isso pode ser percebido satildeo ldquoEle te revelou (oacute Mohammad) o Livro (paulatinamente) com a verdade corroborante dos anteriores assim como havia revelado a Toraacute e o Evangelhordquo (33) ldquoDize Cremos em Allah no que nos foi revelado no que foi revelado a Abraatildeo a Ismael a Isaac a Jacoacute e agraves tribos e no que do Senhor foi concedido a Moiseacutes a Jesus e aos profetas natildeo fazemos distinccedilatildeo alguma entre eles porque somos para Ele muccedilulmanosrdquo (384) ldquoE se tivessem sido observantes da Toraacute do Evangelho e de tudo quanto lhes foi revelado por seu Senhor alimentar-se-iam como que estaacute acima deles e do que se encontra sob seus peacutes [hellip]rdquo (566)

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um texto os seus aspectos extralinguiacutesticos (contexto de produccedilatildeo tipografia meio de apresentaccedilatildeo etc) paralinguiacutesticos (pontuaccedilatildeo entonaccedilatildeo atos de fala gecircnero textual etc) e linguiacutesticos (ordem lexical nominalizaccedilatildeo estilo etc) (LOUW 1992 p18) Mesmo textos antigos com sua exiguidade de formas podem ser observados agrave luz da AD quando definida como ldquoum processo de investigaccedilatildeo pelo qual algueacutem examina a forma e a funccedilatildeo de todas as partes e niacuteveis de um discurso escrito com o objetivo de melhor compreender tanto as partes como o todo daquele discursordquo (GUTHRIE 2001 p 255 traduccedilatildeo nossa)115 Contudo para melhor compreensatildeo do que eacute a AD faz-se necessaacuterio definir o que se entende como discurso

Funcionando ldquoao mesmo tempo como referindo objetos empiacutericos (lsquohaacute discursosrsquo) e como algo que transcende todo ato de comunicaccedilatildeo particular (lsquoo homem eacute submetido ao discursorsquo)rdquo (MAINGUENEAU 2015 p 23) ldquodiscursordquo eacute um termo polivalente Por um lado em associaccedilatildeo a ldquoobjetos empiacutericosrdquo refere-se a ldquoum conceito superordenador no que diz respeito agraves questotildees tradicionais dos filoacutelogos e dos literatosrdquo por abranger ldquotoda uma variedade de gecircneros literaacuterios de registros de niacuteveis de textualizaccedilatildeo das obras bem como as distinccedilotildees formais entre poesia e prosardquo (BONDARCZUK 2017 p 61) Por outro lado extrapolando o ato comunicativo discurso eacute ldquoum processo e natildeo um objeto apresentando um movimento que tem sua dinacircmica proacutepria (ou dyacutenamis) e que por sua vez envolve a negociaccedilatildeo de significado entre os interlocutoresrdquo (BONDARCZUK 2017 p 61) A proacutepria etimologia da palavra mostra que discurso ldquotem em si a ideia de curso de percurso de correr por de movimentordquo sendo assim ldquopalavra em movimento praacutetica de linguagem com o estudo do discurso observa-se o homem falandordquo (ORLANDI 2000 p 15)

Frente a tal complexidade a AD se configura como uma aacuterea de estudos da linguagem que perpassa procedimentos de anaacutelise linguiacutestica tradicionais chegando aos campos de atuaccedilatildeo das teorias linguiacutesticas modernas No que diz respeito aos estudos biacuteblicos somam-se deacutecadas de aplicaccedilatildeo da AD com propoacutesitos diversos ndash desde a traduccedilatildeo da Biacuteblia ateacute a interpretaccedilatildeo desta propriamente dita Porter (2015 p 134) identifica cinco tipologias de AD desen-volvidos para esses fins (1) a Sulafricana (2) a da Sociedade Internacional de Linguiacutestica (Summer Institute of Linguistics SIL) (3) uma abordadem ecleacutetica (4) a amparada na Linguiacutestica Sistecircmico-Funcional e (5) a Continental Euro-peia116 Como se veraacute adiante eacute nessa uacuteltima tipologia em que o meacutetodo a ser apresentado foi ancorado

115 ldquoa process of investigation by which one examines the form and function of all the parts and levels of a written discourse with the aim of better understanding both the parts and the whole of that discourserdquo116 Para maiores detalhes cf Breve histoacuterico entre Anaacutelise do Discurso e os estudos do Novo Testamento subcapiacutetulo da dissertaccedilatildeo de mestrado da presente autora (VIRIacuteSSIMO 2018)

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3 METODOLOGIAA Anaacutelise do Discurso Continental Europeia especificamente nos trabalhos

desenvolvidos pela escola escandinava eacute base dessa metodologia porque sendo sua ecircnfase o texto escrito o que com ela objetiva eacute o esclarecimento das relaccedilotildees de conteuacutedo entre as partes do texto explicando-as em termos da proacutepria liacutengua original Por isso eacute comum essa tipologia ser comparada agrave Linguiacutestica Textual e conforme o teoacutelogo e analista do discurso sueco Birger Olsson ldquouma anaacutelise linguiacutestico-textual eacute um componente baacutesico de todas as exegesesrdquo117 (OLSSON 1985 p 107 apud GUTHRIE 2001 p 256 traduccedilatildeo nossa)

Em suma na tipologia Continental Europeia segundo a elaboraccedilatildeo que Reed (1996) faz das formulaccedilotildees de David Hellholm professor emeacuterito da Faculdade de Teologia da Universidade de Oslo

a anaacutelise do discurso estaacute amplamente preocupada com a comunicaccedilatildeo (Ausdruck) dos signos (Zeichn) por um autorfalante (Sender) e o efeito (Appell) que eles tecircm em um leitorouvinte (Empfaumlnger) Tais signos representam arbitrariamente (Darstellung) coisas como objetos assunto e circunstacircncias (Gegenstaumlnde und Sachverhalte) dos mundos externo e interno dos textos Isso eacute basicamente o que a parte de anaacutelise do termo ldquoanaacutelise do discursordquo envolve (REED 1996 p 225 traduccedilatildeo nossa)118

Feitas tais consideraccedilotildees sobre a tipologia empregada cabe dizer que as subseccedilotildees a seguir estatildeo divididas em explicaccedilatildeo do processo e a aplicaccedilatildeo a fim de exemplificaacute-lo no corpus neotestamentaacuterio

31 CONTEXTUALIZACcedilAtildeO

O primeiro passo da contextualizaccedilatildeo do corpus eacute a leitura integral de uma traduccedilatildeo jaacute existente sempre que disponiacutevel da obra em que ele se encontra A versatildeo biacuteblica aqui consultada foi a Almeida Revista e Atualizada (seguidamente ARA) em funccedilatildeo de nela ser respeitada ldquona medida do possiacutevel a forma da liacutengua em que se encontra a mensagem originalrdquo (BARNWELL 2011 p 15) Ademais no estudo da Biacuteblia eacute oportuna a leitura em diferentes versotildees para comparaccedilatildeo ldquotraduccedilotildees entre as quais vocecirc consiga perceber os pontos de divergecircnciardquo (FEE STUART 2011 p 43) e caso o pesquisador assim queira

117 ldquoA text-linguistic analysis is a basic component of all exegesisrdquo118 ldquoDiscourse analysis is broadly concerned with the communication (Ausdruck) of signs (Zeichen) by an authorspeaker (Sender) and the effect (Appell) they have on a readerlistemer (Empfaumlnger) Such signs arbitrarily represent (Darstellung) such things as objects subject matter and circumstances (Gegenstaumlnde und Sachverhalte) of the external and internal worlds of the texts This is largely what the analysis part of the term lsquodiscouse analysisrsquo entailsrdquo

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fazer sugere-se que essa leitura comparativa esteja focada no corpus propria-mente dito

No mesmo passo da leitura realiza-se uma pesquisa histoacuterico-literaacuteria e formula-se uma redaccedilatildeo a respeito de questotildees gerais como autoria dataccedilatildeo gecircnero puacuteblico alvo entre outras informaccedilotildees que o pesquisador julgar perti-nentes Para este exemplar consultou-se o livro Introduccedilatildeo ao Novo Testamento (CARSON MOO MORRIS 1997) e a partir dele expandiu-se a bibliografia Eacute profiacutecuo que o pesquisador jaacute nessa etapa comece a estabelecer suas convicccedilotildees a respeito das questotildees gerais pontuando em seu texto quais variedades satildeo-lhe mais coerentes no todo conforme o resultado a seguir

ΚΑΤΑ ΜΑΡΚΟΝ como apresenta a 5ordf ediccedilatildeo de The Greek New Testament (ALAND 2014) traduzido como Segundo Marcos refere-se ao tiacutetulo atribuiacutedo pela tradiccedilatildeo eclesiaacutestica ao segundo evangelho da ordem canocircnica Contudo a nomenclatura mais popular para a obra eacute a de Evangelho de Marcos ou sim-plesmente Marcos isso por dois fatores Em primeiro lugar os quatro escritos dedicados agrave vida e ao serviccedilo de Jesus satildeo tradicionalmente tidos como ldquoevan-gelhordquo ndash palavra extraiacuteda justamente do primeiro versiacuteculo de Marcos Eacute vaacutelido dizer que Marcos esteve agrave margem dos estudos neotestamentaacuterios por muito tempo possivelmente em funccedilatildeo de ser esse o evangelho de menor extensatildeo (16 capiacutetulos em comparaccedilatildeo aos 28 de Mateus 24 de Lucas e 21 de Joatildeo) Jaacute nos dias atuais o relato tem ganhado proeminecircncia por ser o mais antigo de que se dispotildee acerca de Jesus tendo servido como base para os textos mateano e lucano (PAGOLA 2013 p 11)

A outra razatildeo pela qual a obra tem o tiacutetulo exposto deve-se ao fato de a primeira atribuiccedilatildeo de um suposto Marcos como autor do livro datar do II seacutec Euseacutebio historiador cristatildeo do IV seacutec dedica boas porccedilotildees de seu livro Histoacuteria Eclesiaacutestica (326 d C) discutindo a formaccedilatildeo do cacircnone evangeacutelico Ao escre-ver acerca de Segundo Marcos Euseacutebio primeiramente registra o depoimento de um presbiacutetero testemunhado por Papias bispo da Friacutegia por volta de 120 d C o qual dizia que embora natildeo tivesse ouvido e seguido diretamente a Jesus Marcos veio a escrever sobre suas accedilotildees por ter sido disciacutepulo e inteacuterprete do apoacutestolo Pedro (CESAREacuteIA III 39 15) Euseacutebio citaria ainda outros Pais da Igreja como Irineu (185 d C) e Clemente (195 d C) e justificaria a criaccedilatildeo do texto em muito pela insistecircncia da comunidade para que um relato evangeacutelico fosse escrito

A figura desse Marcos segundo o testemunho biacuteblico (TENNEY 2008 v 4 p 117) poderia ser construiacuteda a partir da fuga de Pedro da prisatildeo o apoacutestolo

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logo se dirigiu ldquoagrave casa de Maria matildee de Joatildeo tambeacutem chamado Marcos onde muita gente se havia reunido e estava orandordquo (Atos dos Apoacutestolos 1212 - ARA) Marcos cujo nome hebraico era Joatildeo parece ter sido um jovem financeiramente abastado levando-se em conta o fato de sua matildee acolher a receacutem-nascida co-munidade cristatilde em sua proacutepria casa pondo inclusive servos agrave disposiccedilatildeo dos seus integrantes (Atos dos Apoacutestolos 1213) Um detalhe interessante sobre a figura de Maria matildee de Marcos eacute seu provaacutevel status de viuacuteva uma vez que a propriedade era considerada como dela o que seria inconcebiacutevel agrave eacutepoca caso o marido ainda vivesse

O valor da mulher oriental no periacuteodo de Jesus estava ligado agrave fecundidade e ao lar natildeo se comparando ao homem na perspectiva da religiatildeo (JEREMIAS 1983 p 493) Contudo o papel desempenhado por Maria junto a essa comuni-dade cristatilde chama ainda a atenccedilatildeo para a importacircncia de natildeo se subestimar a atuaccedilatildeo das mulheres no ambiente cristatildeo natildeo apenas no sustento dos evange-lizadores mas sobretudo na divulgaccedilatildeo da mensagem de Jesus desde os dias em que o Nazareno iniciou sua missatildeo na Galileia Os registros evangeacutelicos mostram Jesus sempre disposto a posicionar a figura da mulher dentro do vindouro Reino de Deus dando-lhe voz e importacircncia ndash tanto por meio dos diaacutelogos estabelecidos com mulheres como por paraacutebolas contadas cujo enredo as tinha como personagens

Joatildeo Marcos tambeacutem possuiacutea parentesco com o proeminente liacuteder cristatildeo Barnabeacute (Colossenses 410) que o levou em sua primeira viagem missionaacuteria com Paulo (Atos dos Apoacutestolos 135) Entretanto agrave eacutepoca da empreitada Joatildeo acabou retornando a Jerusaleacutem (Atos dos Apoacutestolos 1313) Os motivos dessa desistecircncia satildeo desconhecidos sabe-se no entanto que eles foram prejudiciais a ponto de separar Paulo e Barnabeacute nas viagens posteriores (Atos dos Apoacutestolos 1537-39a) Tempos depois o jovem viria a ser considerado com respeito por Paulo aquele que antes o rejeitara (Colossenses 410 1Timoacuteteo 411 Filemom 24) Tambeacutem Pedro diria ldquoMarcos meu filhordquo (1Pedro 513) ao citaacute-lo como companheiro na chamada ldquoBabilocircniardquo ndash provavelmente Roma

Haacute quem infira ldquoassinaturas ao peacute do quadrordquo ou seja evidecircncias autorais textuais deixadas no proacuteprio evangelho (POHL 1998) Um exemplo eacute o excerto de Marcos 1017-22 o qual se refere ao encontro de Jesus com um homem rico tambeacutem relatado em Mateus 1916-22 e Lucas 1818-23 Para alguns estudiosos eacute sugerido um testemunho pessoal no versiacuteculo 21 ldquoJesus entatildeo tendo olhado para ele com olhos de amor []rdquo (traduccedilatildeo nossa) Uma informaccedilatildeo dessa natureza argumentam esses estudiosos somente poderia ser registrada pela pessoa presente em tal situaccedilatildeo ou seja o jovem e rico Joatildeo Marcos de Atos dos Apoacutestolos

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Ainda que haja consenso na Tradiccedilatildeo quanto agrave autoria de Segundo Marcos o mesmo natildeo se pode afirmar no que diz respeito ao local de publicaccedilatildeo embora a inclinaccedilatildeo da maioria seja Roma (CARSON MOO MORRIS 1997 p 107) Tambeacutem quanto agrave data de criaccedilatildeo do texto quatro satildeo as deacutecadas sugeridas Sendo a primeira delas os anos 40 d C jaacute se mostra evidente o texto escrito ser o produto de uma tradiccedilatildeo preacute-literaacuteria extensa jogando luz sobre o caraacutecter oral do evangelho Endossa-se aqui a suposiccedilatildeo da publicaccedilatildeo de Segundo Marcos ter ocorrido em meados dos anos 60 d C muito em funccedilatildeo de seu conteuacutedo e do que disseram os primeiros liacutederes acerca de sua produccedilatildeo

A principiante feacute cristatilde do I seacutec estava imersa em um amaacutelgama religioso que a ela fortemente se opunha Por um lado as pressotildees teoloacutegicas dos judeus como os escritos neotestamentaacuterios bem expotildeem por outro a repressatildeo do Im-peacuterio Romano a partir do governo de Nero (CAIRNS 1995 p 73) quando teve iniacutecio o grande massacre tanto de judeus como de cristatildeos crentes opositores agrave religiatildeo oficial sendo estes torturados como uma forma de entretenimento puacuteblico (GONZAacuteLEZ 1995 p 25) Justifica-se assim a feitura de Marcos como o apelo agrave firmeza em resposta a difiacuteceis tempos de perseguiccedilatildeo e martiacuterio e o combate ao sincretismo das divisotildees religiosas

Voltando ao evangelho como texto literaacuterio Marcos eacute parte do tetraeuangeacute-lion ldquoisto eacute os quatro Evangelhos vistos como um conjunto de documentos sal-viacuteficos que tinham o mesmo valor veio a ter ampla circulaccedilatildeo e reconhecimento como nos mostram os escritos de Irineu (bispo de Lyon por volta de 180 d C)rdquo (ALAND ALAND 2013 p 53) Seu gecircnero eacute ldquoevangelhordquo propriamente dito algo proacuteprio do cristianismo ou seja ldquoum modo de expressar-se uacutenico que natildeo pode ser identificado com nenhuma outra obra do tempo antigordquo (MARCON-CINI 2012 p 9) Embora haja quem veja semelhanccedilas dos escritos evangeacutelicos com os modelos das leituras feitas nas sinagogas ou que os vincule ldquoao gecircnero da biografia greco-romana e suas variantesrdquo (ZABATIEIRO LEONEL 2011 p 41) o objetivo dos evangelistas era divulgar a mensagem de Jesus particu-larmente para as pessoas natildeo radicadas na Palestina e a forma adotada para isso foi inovadora

A liacutengua de Marcos eacute o grego koineacute em sua variaccedilatildeo semiacuteticavulgar o que a torna fascinante Um livro escrito para o povo

[] composto de aproximadamente 95 narrativas com 11240 palavras 1345 vocaacutebulos 30 aacutepax ou seja vocaacutebulos natildeo usados em outros lugares do Novo Testamento A liacutengua eacute o grego popular da koineacute com semitismos (talithagrave kum effethacirc korbacircn Abbagrave) poreacutem natildeo de tal modo

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a justificar um original aramaico com alguns latinismos (praitoacuterion kentyrion) com estilo vivaz proacuteprio da liacutengua falada pouco cuidado gramatical e sintaticamente que privilegia a parataxe ou coordenaccedilatildeo assindeacutetica (cf 630-33) inclinado a empregar anacolutos (cerca de 20) com repeticcedilatildeo de frases Tudo evidencia o estilo do narrador atestado tambeacutem pelo frequente lsquologo em seguidarsquo e pelo presente histoacuterico (150 ocorrecircncias) [] (MARCONCINI 2012 p 90)

32 ETAPAS DE ANAacuteLISE

Esta eacute de longe a parte que exige maior dedicaccedilatildeo do pesquisador pois natildeo se resume a fichar autores mesmo que de maneira criacutetica Trata-se do exame deta-lhado do corpus em sua liacutengua original Nesse ponto faz-se sobretudo necessaacuteria a escolha consciente do texto grego que melhor ofereccedila subsiacutedios de consulta a respeito de sua formaccedilatildeo Por isso as opccedilotildees adotadas pela autora deste artigo satildeo continuamente as publicaccedilotildees da Sociedade Biacuteblica da Alemanha como a quinta ediccedilatildeo do Novo Testamento grego (ALAND 2014)

A periacutecope selecionada deve entatildeo ser lida em grego ndash ato imprescindiacutevel pois ldquoseja para a estrutura seja para a especificidade do ato de ler o texto natildeo oferece suporte a um significado inequiacutevoco mas eacute lsquoo lugar de possiacuteveis significadosrsquordquo (EGGER 1994 p 92) Isto feito o texto eacute quebrado em oraccedilotildees seus elementos analisados morfossintaticamente e todo o conjunto disposto em diagrama De fato a anaacutelise morfossintaacutetica natildeo eacute um fim em si mesma mas o meio pelo qual se poderaacute dispor o texto analiticamente dividindo-o em partes ainda menores na diagramaccedilatildeo semacircntico-gramatical 119 processo em que melhor se visualizam as relaccedilotildees de niacutevel estrutural

Na disposiccedilatildeo gramatical do texto podem-se observar todos os seus consti-tuintes linguiacutesticos e as regras que os coordenam (EGGER 1994 p 74) Jaacute na disposiccedilatildeo semacircntica satildeo retratadas ldquoas relaccedilotildees de significadofunccedilatildeo entre palavras frases oraccedilotildees sentenccedilas e ateacute mesmo paraacutegrafosrdquo 120 (DUVALL GUTHRIE 1998 p 40 traduccedilatildeo nossa) pois ldquosob o aspecto semacircntico o texto eacute visto como o conjunto de relaccedilotildees (estrutura) entre os seus elementos significantes forma um todo constituindo uma espeacutecie de lsquomicro-universo semacircnticorsquordquo (EGGER 1994 p 91)

119 Embora siga o modelo proposto por Guthrie e Duvall (1998) a diagramaccedilatildeo semacircntico-gramatical aqui empregada eacute uma adaptaccedilatildeo feita por Viriacutessimo (2018) Sendo uma ferramenta ainda em desenvolvimento ela eacute por isso amplamente passiacutevel de receber criacuteticas120 ldquothe meaningfunction relationships between the words phrases clauses sentences and even paragraphsrdquo

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O diagrama conteacutem o texto grego e uma traduccedilatildeo em portuguecircs de aparecircncia interlinear Esta traduccedilatildeo eacute preliminar vindo a sofrer sucessivas revisotildees ateacute que se constitua a proposta final Contudo ela eacute importante em funccedilatildeo de o texto original ter sido redigido em grego de modo que Wegner (1998 p 28) a considera o ldquoprimeiro passo a ser realizado na exegeserdquo Uma inovaccedilatildeo da dia-gramaccedilatildeo neste artigo eacute a numeraccedilatildeo para referenciaccedilatildeo sobrescrita antes dos termos aos quais se refere Como uacuteltimo passo tem-se a redaccedilatildeo do comentaacuterio das relaccedilotildees linguiacutesticas observadas

Exemplo

Marcos 11-4

Continua

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continuaccedilatildeo

O substantivo (1) introduz Marcos delimitando o tema de toda a obra sob a construccedilatildeo em genitivo propriamente dito (2 3 4) Haacute um sentido baacutesico de posse entre (2) (3) e (4) embora este natildeo tenha sido representado por setas Optou-se por deixar os modificadores juntos na mesma linha tanto (3) como (4) por eles funcionarem como uma unidade devendo por isso ser interpretados em conjunto Outro sentido passiacutevel de ser destacado tambeacutem natildeo exposto no

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diagrama eacute de especificaccedilatildeo entre os elementos em (3) e de relacionamento em (4)

Na parte a do versiacuteculo 2 o adveacuterbio (5) verifica ou seja fornece uma evidecircncia que comprove a validade da introduccedilatildeo por meio da foacutermula de invocaccedilatildeo veterotestamentaacuteria em perfeito resultativo (6) o qual se refere a ldquouma accedilatildeo inteiramente acabada e por conseguinte tambeacutem o resultado de uma accedilatildeo passada cujos efeitos perduram (ideia de estado)rdquo (HORTA 1991 p 208) O redobro (γε-) caracteriacutestico dos tempos passados marca esse grau de acabamento da accedilatildeo que na esfera expressa em (7) reforccedila ser o agora o momento do cumprimento de algo predito O autor pela obra metoniacutemia em (8) que ligada a (7) o especifica como ecircnfase ndash repeticcedilatildeo do artigo equivalendo a adjunto adnominal enfaacutetico Na parte b do versiacuteculo a partiacutecula demonstrativa (9) chama a atenccedilatildeo para a accedilatildeo que a segue (ROBINSON 2012 p 430) o verbo (10) prefixado pela preposiccedilatildeo que despede o objeto em (11) ldquopara determinado propoacutesitordquo (LOUW NIDA 2013 p 172) Esse objeto (11) tem sua natureza especificada em (15) e pertence a (12) Tambeacutem estaacute expressa a relaccedilatildeo de posse entre (13) e (14) (16) e (17)

No versiacuteculo seguinte a construccedilatildeo (18) e (19) explica como se deu a accedilatildeo (10) sobre o objeto (11) e qual foi a sua esfera (20) de ocorrecircncia Duas exortaccedilotildees entatildeo satildeo expressas e o contraste entre elas estaacute no tempo verbal Por um lado tem-se o imperativo aoristo (21) traduzindo ldquoordem particular e momentacircneardquo por outro haacute o imperativo presente (24) exprimindo ldquouma ordem geral que perdurardquo (HORTA 1991 p 282) Transmitem assim sob ilustraccedilatildeo a impressatildeo de grande urgecircncia e necessidade de permanecircncia tanto a forccedila de significado do verbo (19) como o seu discurso (21) e (24) A relaccedilatildeo de posse em (22) e (23) eacute um paralelismo com (16) e (17) especificando em (23) a figura do (17) Ainda outra relaccedilatildeo de posse haacute entre (25) e (26)

No versiacuteculo final sem preocupaccedilatildeo com o processo mas acompanhando o tempo da narraccedilatildeo histoacuterica o tempo aoristo em (27) expressa a accedilatildeo instantacircnea (WALLACE 2009 p 554) de chegada do sujeito (28) especificado em (29) ndash subjetivaccedilatildeo do particiacutepio Nota-se um paralelismo entre as esferas expressas em (20) e (30) de modo que (28) descreve (18) dando-lhe detalhes viacutevidos A accedilatildeo (27) entatildeo eacute ligada por (31) agrave maneira como aconteceu (32) ndash noccedilatildeo adverbial presente no modo particiacutepio A mensagem (33) dessa circunstacircncia eacute especiacutefica (34) para um fim (35)

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33 NOTAS

Esta parte do meacutetodo a seguir consiste na elaboraccedilatildeo de notas explicativas acerca de palavras-chave ou passiacuteveis de esclarecimento no corpus as quais acabam por compor um dicionaacuterio proacuteprio do pesquisador Segundo Egger (1994) o processo de compreensatildeo dos significados de um texto depende do repertoacuterio de conhecimentos preacutevios do leitor jaacute que sem o arcabouccedilo cultural necessaacuterio ele natildeo seraacute capaz de apreender os sentidos velados de um escrito especialmente se este for de tempos longiacutenquos Acerca do Novo Testamento demanda-se ldquoque se aproximem ao menos os principais paralelos do ambiente p ex os do AT e do mundo heleniacutestico contemporacircneordquo (EGGER 1994 p 92)

Os verbetes da anaacutelise que se segue foram escritos com base na Enciclopeacutedia da Biacuteblia (TENNEY 2008) e apresentados com o item a respeito do qual se pretende dissertar em negrito e em portuguecircs conforme a traduccedilatildeo interlinear seguido da forma grega em itaacutelico como aparece no corpus e introduzida pela abreviaccedilatildeo ldquogrrdquo Veja a seguir

Versiacuteculo 1

Evangelho gr εὐαγγελίου Vocaacutebulo que em sua origem ldquonatildeo se referia aos quatro escritos mas a anuacutencios proclamados oralmenterdquo (MARCONCINI 2012 p 5) Sob o advento messiacircnico significa o bom anuacutencio da possibilidade de recomeccedilo e renovaccedilatildeo Seu uso eacute encontrado no Antigo Testamento com o sentido religioso da comunicaccedilatildeo da mensagem profeacutetica (cf Isaiacuteas 527) bem como para a anunciaccedilatildeo feita em cenaacuterios de guerra ou por ocasiatildeo do nascimento de uma crianccedila (cf Jeremias 2015 1Samuel 319) Esse segundo uso estaacute conectado agrave forma de uso que os gregos faziam da palavra ndash a ideia da proclamaccedilatildeo de uma notiacutecia alegre de cunho poliacutetico ou pessoal referindo-se agrave recompensa dada ao mensageiro que proclamou tal ldquoboa novardquo Novamente trata-se de uma palavra associada a contextos basicamente orais

Jesus gr Ἰησοῦ A Jesus eacute atribuiacutedo o papel mais importante em todo o Novo Testamento sendo apresentado como a chave de interpretaccedilatildeo do Antigo Nos Evangelhos Ele eacute apresentado como um homem judeu nascido milagrosa-mente nos limites da Palestina (cf Mateus 21 Lucas 24-7) pela concepccedilatildeo espiritual de Maria virgem por ainda ser noiva de Joseacute na ocasiatildeo (cf Mateus 118 Lucas 127) Sabe-se pouco acerca de sua infacircncia (cf Mateus 219-23 Lucas 241-52 416) o relato de suas accedilotildees estatildeo concentrados em sua idade adulta (cf Lucas 323)

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Cristo gr Χριστοῦ Do hebraico mashiach aquele sobre o qual Deus der-ramou a autoridade sacerdotal e real do esperado messias dos judeus (STERN 2008 p 26) Esse tiacutetulo era concedido a reis e a sacerdotes ensejando portanto aleacutem da religiosa uma interpretaccedilatildeo poliacutetica sobre Jesus

[filho de Deus] gr [υἱοῦ θεοῦ] Pode ter sido parte original ou um acreacutescimo posterior ldquopara indicar que natildeo se tem certeza quanto ao texto original as palavras υἱοῦ θεοῦ aparecem no texto entre colchetesrdquo (OMANSON 2010 p 56) Opta-se aqui pela originalidade visto que a paternidade celestial dispen-sada sobre Jesus seraacute confirmada na forma de ilustraccedilatildeo no evangelho poucos versiacuteculos depois (Marcos 110-11) sendo o Jesus evangeacutelico uma percepccedilatildeo do evangelista Assim a expressatildeo deve ser entendida como a preocupaccedilatildeo de um autor que escreve para romanos acostumados a cultuar heroacuteis nacionais atribuiacutedos de caracteriacutesticas divinas por forccedila do arcabouccedilo miacutetico grego na religiatildeo imperial

evangelho de jesus Cristo filho de Deus gr τοῦ εὐαγγελίου Ἰησοῦ Χριστοῦ [υἱοῦ θεοῦ] Mais do que pertencer a Jesus o ldquoevangelhordquo eacute o designador da boa notiacutecia acerca daquele que se tornou ldquoportador de toda novidade sendo portador de si mesmordquo (MARCONCINI 2012 p 7)

Versiacuteculo 2

Isaiacuteas o profeta gr τῷ Ἠσαΐᾳ τῷ προφήτῃ Inspirado orador que previu a vinda do salvador e servo sofredor Jesus (Isaiacuteas 9 53) cerca de 700 anos antes de ela acontecer Foi um importante profeta veterotestamentaacuterio com clara influecircncia na esfera poliacutetico-religiosa de seu tempo (2Reis 191-7) Ao longo da histoacuteria o profetismo entre os hebreus assumiu um caraacuteter vocacional e natildeo institucional em contraste agrave profecia profissional cultual popular eou monaacuter-quica (FOHRER 1982 p 289) O que se quer dizer com isso eacute que os profetas profissionais perderam sua importacircncia para ldquoos grandes profetas individuais incluindo Amoacutes e Oseacuteias Isaiacuteas e Miqueacuteias Sofonias e Jeremias Ezequiel e em parte o Deuteroisaiacuteasrdquo (FOHRER 1982 p 291) agrave medida que o povo tomava consciecircncia de que estes estavam certos contrariamente aos profetas profissionais Foi dessa maneira que se deu iniacutecio agrave compilaccedilatildeo dos discursos dos grandes profetas individuais formando coleccedilotildees que posteriormente ficaram conhecidas como escritura sagrada (FOHRER 1982 p 291)

Eia envio meu mensageiro diante da tua face gr Ἰδοὺ ἀποστέλλω τὸν ἄγγελόν μου πρὸ προσώπου σου A citaccedilatildeo no versiacuteculo 2 pertence ao profeta

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Malaquias (Malaquias 31) enquanto a metoniacutemia enfatiza Isaiacuteas A Biacuteblia que os cristatildeos do primeiro seacuteculo liam e ouviam era a Septuaginta ndash a traduccedilatildeo grega do Antigo Testamento tradicionalmente atribuiacuteda a 72 filoacutelogos durante o periacuteodo poacutes-exiacutelico conhecida tambeacutem como LXX Grande parte das citaccedilotildees no NT era baseada nessa traduccedilatildeo e muitas vezes por meio da memoacuteria auditiva que se tinha das leituras feitas em voz alta durante as concentraccedilotildees populares Ao citar apenas Isaiacuteas Marcos parece ter cometido um ato falho que priorizou o profeta maior ou seja aquele que tinha a maior quantidade de escritos sob a influecircncia divina A seguir uma exposiccedilatildeo paralela da fonte na LXX (RAHLFS 1979) e da citaccedilatildeo em Marcos

LXX NTMalaquias 31 Marcos 12ἰ δ ο ὺ ἐ γ ὼ ἐξαποστέλλω τὸν ἄγγελόν μου καὶ ἐπιβλέψεται ὁδὸν π ρ ὸ π ρ ο σώ π ο υ μου καὶ ἐξαίφνης ἥξει εἰς τὸν ναὸν ἑαυτοῦ κ ύριος ὃν ὑμεῖς ζητεῖτε κ α ὶ ὁ ἄ γ γ ε λ ο ς τ ῆ ς δ ι α θ ή κ η ς ὃν ὑμεῖς θέλετε ἰ δ ο ὺ ἔ ρ χ ε τ α ι λ έ γ ε ι κ ύ ρ ι ο ς παντοκράτωρ

Καθὼς γέγραπται ἐν τῷ Ἠσαΐᾳ τῷ προφ ήτ ῃ Ἰδο ὺ ἀποστέλλω τὸν ἄγγελόν μου πρὸ προσώπου σου ὅς κατασκευάσει τὴν ὁδόν σου∙

Isaiacuteas 403 Marcos 13φ ω ν ὴ β ο ῶ ν τ ο ς ἐ ν τ ῇ ἐ ρ ή μ ῳ ῾Ετοιμάσατε τὴν ὁ δ ὸ ν κ υ ρ ί ο υ εὐθείας ποιε ῖτε τὰς τρίβους τοῦ θεοῦ ἡμῶν

φ ο ν ὴ β ο ῶ ν τ ο ς ἐ ν τ ῇ ἐ ρ ή μ ῳ Ἑτοιμάσατε τὴν ὁ δ ὸ ν κ υ ρ ί ο υ εὐθείας ποιε ῖτε τὰς τρίβους αὐτοῦ

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Versiacuteculo 3

Deserto gr τῇ ἐρήμῳ Frequente cenaacuterio no texto biacuteblico o deserto tinha grande influecircncia na vida e na cultura da Palestina (TENNEY 2008 v 2 p 95) Em Marcos Joatildeo estava proacuteximo ao rio Jordatildeo na altura de Nazareacute da Galileacuteia (cap 1 vv 5 e 9)

Senhor gr κυρίου Trata-se de um tiacutetulo dado a Deus e a Cristo com a ideia de ldquoaquele que governa a humanidade com autoridade sobrenaturalrdquo (LOUW NIDA 2010 p 126)

Versiacuteculo 4

Joatildeo o que batiza gr Ἰωάννης [ὁ] βαπτίζων Personagem neotestamentaacuterio tido como aquele que antecederia a vinda do Cristo (Mateus 3 Marcos 12-11 Lucas 31 15-17 21-22) Filho de sacerdote (Lucas 18-25 157-80) Joatildeo Batista rompeu com as expectativas eclesiaacutesticas de sua linhagem exercendo uma vocaccedilatildeo na medida dos profetas antigos sendo por vezes associado agrave figura de Elias (Mateus 117-14) ndash ldquoesse formidaacutevel asceta frequentador do deserto em sua vestimenta grosseira fazia reviver a imagem popular de um profeta inspirado e como os antigos profetas anunciava o iminente julgamento de Deus sobre um povo infielrdquo (DODD 1977 p 137)

Batismo gr βάπτισμα Vocaacutebulo que literalmente significa imersatildeo mas que na mentalidade judaica do seacutec I ldquopoderia incorporar ambas as realidades espirituais e os siacutembolos fiacutesicos Em outras palavras quando algueacutem falava de batismo comunicava ambas as ideias ndash a realidade e o ritualrdquo (WALLACE 2009 p 370 grifo do autor)

Batismo de arrependimento gr βάπτισμα μετανοίας Expressatildeo usada nos evangelhos (Marcos 14 Lucas 38) que revela uma das tarefas da missatildeo a qual Joatildeo estava atrelado No contexto da personagem parece que

o batismo de Joatildeo Batista reflete muito mais o costume dos banhos rituais entre os judeus do que o tipo de batismo praticado pelos cristatildeos que era um siacutembolo de iniciaccedilatildeo na comunidade cristatilde baseada na feacute em Jesus Cristo e na lealdade para com ele como Senhor e Salvador (LOUW NIDA 2013 p 479)

Libertaccedilatildeo gr ἄφεσις Consiste no ldquocancelamento da culpa do pecadordquo121 (BAUER 1979 p 125 traduccedilatildeo nossa)

121 ldquocancellation of the guilt of sinrdquo

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Pecados gr ἁμαρτιῶν A transgressatildeo da medida justa em que se deveria viver tanto conforme as coisas humanas como as divinas (BAUER 1979 p 43) Por medida justa na esfera biacuteblica o paracircmetro eacute o caraacuteter de Deus (Deu-teronocircmio 324 Salmos 117 Miqueacuteias 68) A humanidade criada agrave imagem e semelhanccedila de Deus (Gecircnesis 127) assim foi feita para viver e ser conforme seu Criador (Isaiacuteas 437 1 Coriacutentios 1031) O pecado consiste pois numa desconfiguraccedilatildeo do ser humano em referecircncia a Deus Em diferentes textos do Novo Testamento (Hebreus 1012 Gaacutelatas 14 1 Joatildeo 17) nota-se que a condiccedilatildeo pecaminosa da humanidade natildeo eacute um simples erro do alvo mas um estado de degradaccedilatildeo que soacute pocircde ser transposto por Jesus em sua entrega voluntaacuteria para morrer agrave semelhanccedila dos animais usados nos sacrifiacutecios judaicos

Perdatildeo dos pecados gr εἰς ἄφεσιν ἁμαρτιῶν O desconhecido autor da Epiacutestola aos Hebreus desenvolve a ideia de perdatildeo em comparaccedilatildeo com a lei mosaica Tratando-se de uma representaccedilatildeo do que haveria de vir (Hebreus 101) a lei teve em Jesus o seu cumprimento pois por ele foi ldquooferecido para sempre um uacutenico sacrifiacutecio pelos pecadosrdquo (Hebreus 1012) Os sacrifiacutecios de animais embora fossem aceitos por Deus dentro das condiccedilotildees estabelecidas natildeo eram suficientes para apagar a consciecircncia de pecado ou seja a culpa que reside sobre aquele que peca visto que vez apoacutes vez ao espiar o sangue de um cordeiro o indiviacuteduo se lembrava de sua condiccedilatildeo de portador da transgressatildeo (Hebreus 103) O perdatildeo dos pecados configura-se pois como aquilo que tem o poder que a lei natildeo tinha a anulaccedilatildeo total da culpa (Hebreus 10 17)

34 INTERPRETACcedilAtildeO

Eis a uacuteltima etapa do meacutetodo Nela satildeo encontradas a proposta definitiva de traduccedilatildeo amparada sobre o tripeacute exatidatildeo clareza e naturalidade (BARNWELL 2011 p 25) o esboccedilo do texto parcialmente formulado neste artigo conforme os tiacutetulos encontrados na obra Synopsis Quattuor Evangeliorum (ALAND 1967) e o comentaacuterio final em que se privilegiam apenas alguns aspectos de todo o material produzido respeitando-se as conclusotildees obtidas das relaccedilotildees intra e extra textuais dos elementos estruturantes do texto de maneira a explicitar o que seja relevante para dentro do escopo da pragmaacutetica Exemplo

Esboccedilo

11 O PROacuteLOGO12-4 JOAtildeO AQUELE QUE BATIZA

12-3 Profecia veterotestamentaacuteria14 O surgimento de Joatildeo

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Proposta de traduccedilatildeo

1 Iniacutecio do evangelho de Jesus Cristo Filho de Deus 2 Assim como perma-nece escrito em Isaiacuteas o profeta ldquoAtenccedilatildeo Despeccedilo antes de tua presenccedila o meu mensageiro o qual colocaraacute em ordem o teu caminho 3 Uma voz trovejante no deserto Preparai o caminho do Senhor fazei retas as suas veredasrdquo 4 Surgiu no deserto Joatildeo aquele que batiza anunciando o batismo de arrependimento para o perdatildeo dos pecados

Reflexatildeo

O primeiro versiacuteculo de Marcos uma sentenccedila que sendo incompleta em si funciona como o tiacutetulo a obra define os paracircmetros de leitura da histoacuteria que haacute de ser contada o evangelho pertence a Jesus Eacute esse personagem o iniacutecio da causa evangeacutelica bem como o tema do livro Sem a preocupaccedilatildeo de fornecer dados histoacutericos Marcos o apresenta como o libertador prometido e resume sua genealogia filho de Deus Ao se pensar nos primeiros leitores-ouvintes pessoas ansiosas por novos tempos de prosperidade e paz a imagem de um Jesus heroico e divino mais forte que a humanidade mortal cativa a atenccedilatildeo para o que haacute de ser dito

No versiacuteculo seguinte Marcos gera ainda mais expectativa em seu puacuteblico recorrendo agrave memoacuteria coletiva das profecias antigas para mostrar a validade de sua mensagem Ele assim o faz por meio da foacutermula ldquoconforme escritordquo mos-trando sua credencial de inspiraccedilatildeo Marcos inaugura a interpretaccedilatildeo evangeacutelica do Antigo Testamento Pode-se inferir que atribuindo a referecircncia somente a Isaiacuteas profeta de singular importacircncia o evangelista procura confirmar suas palavras como dotadas da mesma autoridade da tradiccedilatildeo profeacutetica de Israel E essa antiga profecia invocada por Marcos permanece presente enquanto o texto existir Surge entatildeo o mensageiro que haveria de ser enviado da parte de Deus

Antecedendo o Cristo esperado o mensageiro aparece sob a forma de um som uma voz que se faz ouvir no deserto Satildeo duas as exortaccedilotildees que essa voz traz agora eacute hora de preparar o caminho do Senhor e permanentemente se deve preparar as suas veredas Uma mensagem urgente e contiacutenua A voz entatildeo simplesmente aparece sob o nome de Joatildeo Do ponto de vista de quem ouve a voz tudo o que foi dito ateacute agora se afigura como o preluacutedio perfeito para a chegada do novo personagem ndash que natildeo eacute o messias mas possui grande importacircncia histoacuterica na tradiccedilatildeo profeacutetica

Eis uma obra prima a imagem desse Joatildeo que surge no ermo lugar como um som trovejante irrompendo e se transformando gradativamente em homem

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numa espeacutecie de efeito sinesteacutesico Joatildeo eacute o que batiza ou seja aquele que anuncia a outros a imersatildeo na mudanccedila da forma como se vecirc e se pensa a proacutepria existecircncia para assim se alcanccedilar a possibilidade de soltura das amarras que aprisionam O misteacuterio sendo revelado sobre a figura angelical faz com que a seacuteria narrativa assuma a delicadeza de uma contaccedilatildeo de histoacuterias sem contudo anular a forccedila das verdades para aqueles que nelas creem

CONSIDERACcedilOtildeES FINAISAs etapas de execuccedilatildeo neste artigo foram aqui descritas partindo de 2

Anaacutelise do Discurso em que se procurou elucidar essa aacuterea da linguiacutestica de maneira acessiacutevel a leitores especializados em outros saberes Em 3 Metodo-logia o meacutetodo foi explanado em detalhes nos toacutepicos subsequentes Em 31 Contextualizaccedilatildeo pretendeu-se a delimitaccedilatildeo dos sentidos de produccedilatildeo do texto Em 32 Etapas de Anaacutelise foi disposta a diagramaccedilatildeo semacircntico-gramatical desse texto e uma breve anaacutelise de suas relaccedilotildees linguiacutesticas Em seguida em 33 Notas houve a elucidaccedilatildeo de termos especiacuteficos constantes do fragmento examinado Por fim em 34 Interpretaccedilatildeo a autora pretendeu alcanccedilar uma compreensatildeo mais apurada do enredo

Conclui-se que o meacutetodo apresentado figura como um instrumental interes-sante de pesquisa e de ensino ndash objetivo primeiro para o qual foi desenvolvido ndash oferecendo subsiacutedios para os dispostos a se debruccedilar sobre o aprofundamento de sua praacutetica acadecircmica eou religiosa Num contexto de impressionante preconceito da Academia para com a Biacuteblia como objeto de estudo literaacuterio eacute essencial que o inteacuterprete do texto biacuteblico esteja disposto a reinventar sua praacutetica de pesquisa por meio da dialeacutetica multidisciplinar Existe uma instrumentalidade na diversidade das teorias cientiacuteficas e esta pode ser aproveitada sem que se extrapolem os possiacuteveis sentidos do texto

Como ressalta Egger (1994 p 9) ldquouma metodologia neotestamentaacuteria eacute antes de tudo uma introduccedilatildeo agrave correta leitura dos textos do Novo Testamentordquo As distacircncias existentes entre um texto antigo e o leitor atual constituem um grande desafio dada a imensa diferenccedila entre uma eacutepoca e outra natildeo raro se afigurando praticamente impossiacutevel o pleno resgate do entendimento do modo de pensar de um narradornarrataacuterio inserido no contexto originaacuterio e o leitorinteacuterprete atual voltado para a pesquisa na constante busca do conhecimento Tanto a liacutengua como a cultura em geral passam por mudanccedilas as mais variadas ao longo do tempo e caso o pesquisador tenha um compromisso confessional com o texto ele lhe imporaacute tambeacutem distanciamentos de ordem divina (LOPES 2004 p 25)

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O reconhecimento das aparentes barreiras exige o esforccedilo do estranhamento por parte desse leitorinteacuterprete que por um lado pode estar preso agrave familia-ridade encontrada no texto ou que por outro lado pode ler equivocadamente sob seu perspectivismo o que lhe eacute desconhecido Por isso trabalhar com textos da Antiguidade eacute tambeacutem uma provocaccedilatildeo das Ciecircncias Sociais Assim para ambas as situaccedilotildees supracitadas pode-se parafrasear o antropoacutelogo Gilberto Velho (1978 p 45) e dizer que eacute necessaacuterio ao que se propotildee agrave pesquisa o confronto intelectual e emocional de diferentes versotildees e interpretaccedilotildees do texto a fim de se tornar capaz de estranhaacute-lo Soacute assim se consegue alcanccedilar a erudiccedilatildeo prometida pela reflexatildeo cientiacutefica

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ldquoNO DIA DO SENHORrdquo ndash OS ATOS O EVENTO A AUTOEXPRESSAtildeO

Uma breve reflexatildeo sobre as tradiccedilotildees lituacutergicas e sobre os termos liturgia culto e adoraccedilatildeo

Theoacutegenes Eugecircnio Figueiredo122

RESUMO No presente artigo satildeo apresentados os nuacutecleos lituacutergicos herdados do cris-

tianismo primitivo que no decorrer dos seacuteculos tiveram em si alguns elementos agregados constituindo-se posteriormente em grandes famiacutelias lituacutergicas Os protestantes satildeo caracterizados historicamente pela diversidade lituacutergica por possuiacuterem nove famiacutelias lituacutergicas No Brasil os protestantes se caracterizam como igrejas livres que fogem das foacutermulas lituacutergicas preacute-fixadas Liturgia culto e adoraccedilatildeo satildeo conceitos abordados atraveacutes dos siacutembolos ldquoos atosrdquo ldquoo eventordquo e ldquoa autoexpressatildeordquo Comenta-se a criacutetica de Kierkgaard agrave inversatildeo das funccedilotildees dos partiacutecipes de um evento cultual O evento culto eacute definido como o trabalho do povo e o evento da ldquovisatildeo de Isaiacuteasrdquo eacute apresentado como um dos modelos cultuais

Palavras-chave Culto Liturgia Adoraccedilatildeo Famiacutelias lituacutergicas Batistas

ABSTRACTThis article presents the liturgical nuclei inherited from primitive Christianity

which over the centuries had some elements aggregated to later constituting large liturgical families Protestants are historically characterized by liturgical diversity as they have nine liturgical families In Brazil Protestants are charac-terized as free churches diverting from pre-fixed liturgical formulas Liturgy worship and adoration are concepts commented by the symbols ldquothe actsrdquo ldquothe eventrdquo and ldquoself-expressionrdquo Kierkgaardrsquos critique about the inversion of the roles of participants in a worship event is commented The worship event is defined as the job of the people and the event of the ldquovision of Isaiahrdquo is commented as one of the worship models

Keywords Worship service Liturgy Worship Liturgical families Baptist

122 Doutor em Ciecircncias da Religiatildeo pela UFJF e mestre em muacutesica pela UNIRIO Professor do Curso de Licenciatura em Muacutesica com Gestatildeo da Muacutesica Eclesiaacutestica da Faculdade Batista do Rio de Janeiro - STBSB

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1 AS FAMIacuteLIAS LITUacuteRGICAS ndash O LEGADOOs elementos lituacutergicos herdados do cristianismo primitivo formaram dois

nuacutecleos o nuacutecleo da Palavra (proveniente do culto judaico que passou a ser chamado de Liturgia da Palavra nas celebraccedilotildees da Igreja Catoacutelica) e o nuacutecleo da Ceia do Senhor ou da Eucaristia Este pode ser considerado ldquocomo uma marca genuinamente cristatilderdquo123 da liturgia

Ao longo dos seacuteculos alguns elementos foram agregados a esses dois nuacutecleos da liturgia da Igreja Cristatilde surgindo uma ordo124 isto eacute ldquoum conjunto de ele-mentos e formas usados para realizar o encontro entre Deus e a comunidade E eacute a partir desse processo que se constituiacuteram as grandes famiacutelias lituacutergicas que mantecircm os nuacutecleos baacutesicos comunsrdquo125

Essas famiacutelias satildeo centralizadas em

a) Alexandria (Egito) conhecida como a liturgia de Satildeo Marcos

b) Jerusaleacutem e Antioquia (Siacuteria Ocidental) conhecida como a liturgia de Satildeo Tiago

c) Siacuteria Oriental

d) Cesareia conhecida como a liturgia de Satildeo Basiacutelio

e) Constantinopla conhecida como a liturgia bizantina ou liturgia de Satildeo Crisoacutestomo

f) Roma conhecida como a liturgia de Satildeo Pedro que se encontra em uso mais amplo no catolicismo romano

g) a liturgia gaacutelica que compreende o clatilde ocidental natildeo-romano126

Os protestantes possuem nove famiacutelias lituacutergicas tendo desde o iniacutecio o culto protestante se caracterizado pela diversidade lituacutergica O diagrama a seguir mostra essas famiacutelias

123 MARTINI 200223124 Palavra latina que significa ordem significando uma disposiccedilatildeo metoacutedica um arranjo de coisas segundo certas relaccedilotildees uma boa disposiccedilatildeo um bom arranjo um arrumaccedilatildeo (Dicionaacuterio Aureacutelio)125 MARTINI 200224126 WHITE 199728

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Diagrama 1127

Ala esquerda significa uma ruptura radical com a liturgia medieval tardia encontrando-se nela os Anabatistas que segundo uma corrente histoacuterica originou os Batistas atuais ala Centro significa os grupos mais moderados em relaccedilatildeo a uma ruptura com a liturgia histoacuterica e ala Direita mostra os grupos mais conservadores em termos de preservaccedilatildeo da liturgia histoacuterica

As igrejas de tradiccedilatildeo lituacutergica possuem os livros lituacutergicos que contecircm os ritos e as leituras de suas celebraccedilotildees Um deles eacute o Palavra do Senhor I ndash Lecionaacuterio dominical ABC que tem a sua imagem apresentada a seguir e a especificaccedilatildeo do seu conteuacutedo128

Lecionaacuterio dominicalConteacutemRito da Missa (partes fixas)Proacuteprio do tempo advento natal quaresma tempo comum etcProacuteprio dos santosVasta coleccedilatildeo de prefaacuteciosVaacuterias oraccedilotildees eucariacutesticasMissas rituais Batismo confirmaccedilatildeo profissatildeo religiosa etcMissas e oraccedilotildees para diversas necessidades pelo papa pelos bis-pos pelos governantes pela conservaccedilatildeo da paz e da justiccedila etcMissas votivas Santiacutessima Trindade Espiacuterito Santo Nossa Senhora etcMissas dos fieacuteis defuntosNo iniacutecio o Missal apresenta longa e preciosa introduccedilatildeo con-tendo a Instruccedilatildeo Geral sobre o Missal Romano e as Normas Universais para o Ano Lituacutergico e o Calendaacuterio1

127 WHITE 199729128 PERES 2018

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O Livro lituacutergico ldquoeacute um livro grande que conteacutem todo o formulaacuterio e todas as oraccedilotildees usadas nas celebraccedilotildees da missa para todo o ano lituacutergico Fitas marcadoras indicam as diversas partes da celebraccedilatildeo []rdquo129

11 OS BATISTAS BRASILEIROS E SUA TRADICcedilAtildeO LITUacuteRGICA

No Brasil o protestantismo de missatildeo chegou com suas tradiccedilotildees lituacutergicas tendo os batistas seguido a tradiccedilatildeo das ldquoigrejas livres da poacutes-Reforma e principalmente dos reavivamentos ingleses e americanos somados agraves formas de cultos das fronteiras da expansatildeo norte-americana para o oesterdquo130

O quadro a seguir mostra a data da chegada das diversas denominaccedilotildees protestantes em terra brasileira e sua linha lituacutergica

Protestantes Entrada no Brasil Igrejas livres (natildeo-lituacutergicas)Congregacionais 1855 SimPresbiterianos 1859 SimBatistas 1881 SimMetodistas 1886 SimEpiscopal 1898 Natildeo

Antonio Gouvecirca de Mendonccedila afirma que a liturgia dos batistas ldquoeacute uma das mais informaisrdquo131 isso significa dizer que os batistas tecircm uma praacutetica lituacutergica ldquoque foge a foacutermulas prefixadas aos rituais e aos aparato lituacutergico [] O culto e demais rituais preestabelecidos satildeo virtualmente condenados e quase sempre com a alegaccedilatildeo de que sugerem a missa catoacutelicardquo132 Donald P Hustad afirma que ldquoa heranccedila dos evangeacutelicos tiacutepicos eacute uma adoraccedilatildeo natildeo-liacutetuacutergica isto quer dizer eles rejeitam todas as formas ou liturgias estabelecidasrdquo133

Entatildeo se as igrejas batistas satildeo de tradiccedilatildeo lituacutergica livre as liturgias satildeo fundamentadas em quecirc

2 LITURGIA CULTO E ADORACcedilAtildeO ndash OS ATOS O EVEN-TO E A AUTOEXPRESSAtildeO CULTUAL

O termo liturgia eacute muitas vezes considerado sinocircnimo dos termos culto e adoraccedilatildeo Entretanto eacute necessaacuterio que se faccedila a distinccedilatildeo entre esses termos Os

129 PERES 2018130 MENDONCcedilA e VELASQUES FILHO 2002171 Grifo nosso131 MENDONCcedilA e VELASQUES FILHO 200244132 MENDONCcedilA e VELASQUES FILHO 2002156133 HUSTAD 1986166

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atos praticados durante o culto satildeo considerados liturgia culto eacute um evento total que abrange um conjunto de elementos lituacutergicos sendo um desses elementos a adoraccedilatildeo (em seu sentido estrito) a atitude do indiviacuteduo Adoraccedilatildeo eacute uma autoexpressatildeo em resposta agrave accedilatildeo divina

21 LITURGIA ndash OBRA DO POVO TRABALHO DO POVO OS ATOS CULTUAIS

Voltemos a nossa atenccedilatildeo ao termo liturgia e vejamos o que podemos de-preender do proacuteprio termo

Liturgia foi traduzida para o portuguecircs da palavra grega leitourgeo composta dos vocaacutebulos gregos LEITOSLAOS que significa povo e ERGON que significa trabalho Haacute um consenso entre os estudiosos do assunto que o significado seja ldquoobra do povordquo ldquotrabalho do povordquo

Essa ideia de trabalho do povo tambeacutem pode ser inferida da maioria dos vocaacutebulos originais da Septuaginta traduzidos para o idioma portuguecircs como liturgia Satildeo eles 134

Vocaacutebulo Significado Passagem biacuteblica

Leitourgiacutea (6 vezes)

Ministeacuterio Lc 123Assistecircncia 2 Co 912Serviccedilo Fp 217Socorro Fp 230Ministeacuterio Hb 86Serviccedilo Sagrado Hb 921

Leitourgoacutes (5 vezes)Ministro

Rm 136Rm 1516Hb 17Hb 82

Auxiliar Fp 225

Leitourgeacuteotilde (3 vezes)Servindo At 132Servi-los Rm 1527Serviccedilo Sagrado Hb 1011

Leitourgikoacutes (1 vez) Ministradores Hb 114

134 COSTA 198715-16

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Como visto o termo liturgia ocorre no Novo Testamento num total de quinze vezes tendo o seu significado se consolidado como ldquoo conjunto das falas e praacuteti-cas de culto dos seguidores de Jesusrdquo135 Essas praacuteticas de culto ou decorrentes do culto satildeo a assistecircncia o socorro o auxiacutelio o serviccedilo etc

22 CULTO O EVENTO CULTUAL TOTAL

Culto eacute uma reaccedilatildeo do humano agrave uma accedilatildeo divina Um bom exemplo eacute a atitude de Noeacute narrada em Gecircnesis 6-8 Depois do diluacutevio Noeacute ldquoconstruiu um altar dedicado ao Senhor e tomando alguns animais e aves puros ofereceu-os como holocausto []136 Liturgia no caso de Noeacute foi o evento constituiacutedo do ldquoconjunto de atos palavras e formas carregados de significado expressos de um certo jeito numa certa sequecircnciardquo137 realizados na reaccedilatildeo de Noeacute agrave bondade de Deus para consigo

23 A ADORACcedilAtildeO UMA AUTOEXPRESSAtildeO CULTUAL

Em relaccedilatildeo ao conceito de adoraccedilatildeo Bob Sorge em seu livro Exploring worship apresenta-nos dois exemplos que ajudam no entendimento dessa au-toexpressatildeo Satildeo os exemplos de Joacute e Abraatildeo

Joacute foi atingido por uma extrema calamidade perdendo todos os seus bens e perdendo todos os seus filhos

A resposta de Joacute eacute emocionante ldquoEntatildeo Joacute se levantou rasgou o manto e raspou a cabeccedila e ele caiu no chatildeo e adorourdquo (Joacute 120) Se concordamos que esta eacute a primeira menccedilatildeo de adoraccedilatildeo na Biacuteblia entatildeo podemos dizer que a adoraccedilatildeo eacute o que fazemos em face de grande trageacutedia e julgamento pessoal Adoraccedilatildeo em sua essecircncia natildeo eacute o que fazemos quando a vida eacute feliz e nos sentimos abenccediloados eacute o que fazemos quando perdemos as coisas que satildeo mais caras para noacutes o teste de adoraccedilatildeo natildeo eacute no domingo de manhatilde quando nos reunimos com o povo de Deus De manhatilde eacute faacutecil adorar Os crentes estatildeo reunidos em santa convocaccedilatildeo os liacutederes oram e estatildeo preparados para liderar o canto do Senhor comeccedila a surgir a presenccedila de Deus enche a casa Se vocecirc natildeo pode adorar no domingo de manhatilde vocecirc provavelmente estaacute morto138

135 MIRANDA 201239 Grifo nosso136 BIacuteBLIA ONLINE Gn 820137 MARTINI 200221 Grifo nosso138 SORGE 2018 cap 4 Grifo nosso

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Nesse ato de culto de Joacute a adoraccedilatildeo pode-se verificar uma expressatildeo original ndash uma autoexpressatildeo ndash que tem como essecircncia a espontaneidade da expressatildeo em resposta agrave percepccedilatildeo da trageacutedia ocorrida em sua vida

O conceito de autoexpressatildeo eacute definido como uma expressatildeo original que responde espontaneamente agrave percepccedilatildeo de algo A autoexpressatildeo acontece em resposta a um dado sensorial especiacutefico tendo como essecircncia a espontaneidade Contrariamente a expressatildeo pode ser um ato intencional servindo mais para demonstrar os sentimentos dos indiviacuteduos do que se apresentar como uma expressatildeo primaacuteria uma autoexpressatildeo139

O segundo exemplo citado por Sorge se encontra em Gecircnesis 225 passagem biacuteblica da narrativa de um episoacutedio muito marcante na vida de Abraatildeo que denota sua atitude de adorar mesmo quando Deus ordenara que sacrificasse o seu proacuteprio filho seu uacutenico herdeiro que o proacuteprio Deus tinha providenciado de forma milagrosa Mesmo naquela situaccedilatildeo desesperadora Abraatildeo teve a atitude de adorar a Deus Assim comenta Sorge

Quando Abraatildeo estava a caminho da montanha onde pretendia matar o seu uacutenico filho o que disse ele aos criados ldquoEntatildeo disse a seus servos Esperai aqui com o jumento eu e o rapaz iremos ateacute laacute e havendo ado-rado voltaremos para junto de voacutesrdquo (Gecircnesis 225) Na ansiedade mental de planejar matar o seu proacuteprio filho quando Deus sem duacutevida parecia estar a milhas de distacircncia Abraatildeo adorou Ele natildeo podia entender por-que Deus tinha ordenado que ele sacrificasse o seu uacutenico filho o uacutenico e verdadeiro herdeiro que Deus tinha providenciado milagrosamente Mas apesar da sua incapacidade em compreender as intenccedilotildees de Deus Abraatildeo adorou A sua adoraccedilatildeo natildeo teria sido completa sem a sua total obediecircncia140

139 FIGUEIREDO faz o seguinte comentaacuterio sobre a diferenciaccedilatildeo entre esses dois conceitos ndash autoexpres-satildeo e expressatildeo ldquouma autoexpressatildeo de juacutebilo realizada por um indiviacuteduo pela presenccedila apresentaccedilatildeo ou contemplaccedilatildeo de um ldquodeusrdquo ou de algum objeto que o represente pode resultar no nascimento de uma praacutetica ritual Nesse momento originaacuterio de um ritual a demonstraccedilatildeo de juacutebilo gradativamente se propaga agraves pessoas presentes e todos satildeo possuiacutedos do mesmo sentimento as emoccedilotildees humanas satildeo tocadas profundamente nesse momento Numa segunda ocasiatildeo tal demonstraccedilatildeo de juacutebilo eacute repetida mas agora sem aquele fator gerador da expressividade do grupo como ocorrido na primeira ocasiatildeo o segundo momento eacute realizado portanto como uma accedilatildeo intencional do grupo servindo mais para demonstrar os sentimentos dos indiviacuteduos do que uma autoexpressatildeo ou servindo para aliviar os sentimentos do grupo Neste caso ocorre a execuccedilatildeo de um ato supostamente expressivo porque natildeo possui a respectiva motivaccedilatildeo interior Eacute um ato ritual e natildeo um ato expressivo em sua essecircncia (um ato autoexpressivo) Sua suposta expressividade tem uma motivaccedilatildeo loacutegica racional intencional em contraposiccedilatildeo a um ato fisioloacutegico e espontacircneo caracteriacutestica daquele primeiro momento de juacutebilordquo (FIGUEIREDO 2010124-125) Leia mais sobre esse assunto em FIGUEIREDO 2010123-125140 SORGE 2018 cap 4 Grifo nosso

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Essa expressatildeo primaacuteriaoriginal de adoraccedilatildeo de Joacute e Abraatildeo em resposta agrave atuaccedilatildeo de Deus em suas vidas satildeo exemplos de autoexpressatildeo

3 CULTO UM EVENTO NO QUAL Eacute O POVO QUEM TRA-BALHA

Haacute uma criacutetica do filoacutesofo-teoacutelogo dinamarquecircs Soren Kierkgaard que aponta para a inversatildeo das funccedilotildees dos partiacutecipes nos atos de culto (liturgia) a qual deve ser levada em consideraccedilatildeo

Kierkgaard criticou a natildeo participaccedilatildeo ativa do povo da sua igreja lituacutergica luterana ldquoInsistiu em que na verdadeira adoraccedilatildeo a congregaccedilatildeo satildeo os atores o ministro e o coro satildeo os lsquopontosrsquo e Deus eacute o auditoacuteriordquo141 Kierkgaard afirma que ldquono sentido mais enfaacutetico Deus eacute o criacutetico frequentador de teatro que observa para ver como o texto eacute declamado e como ele eacute ouvido O orador portanto eacute o ponto e o ouvinte encontra-se abertamente diante de Deus O ouvinte se posso assim dizecirc-lo eacute o ator que verdadeiramente atua diante de Deus142

A sua criacutetica estava fundamentada nos fatos ocorridos na Idade Meacutedia quan-do ldquoa missa era essencialmente lsquoobra dos sacerdotesrsquo a congregaccedilatildeo natildeo era nem de bons espectadores visto que natildeo entendia as palavras [porque a missa era realizada no idioma latino] e em uma grande catedral natildeo conseguia nem ver a accedilatildeordquo143 Nos dias de hoje

em algumas situaccedilotildees evangeacutelicas parece claro tambeacutem que a adoraccedilatildeo eacute obra do ministro e do coro a congregaccedilatildeo eacute o ldquoauditoacuteriordquo o que suge-re que eles [fieacuteis] agem mais como ouvintes Em muitas situaccedilotildees eles [fieacuteis] nunca satildeo encorajados a falar uma soacute palavra nos cultos lendo as Escrituras ou participando das oraccedilotildees [] Indubitavelmente lhes eacute per-mitido cantar os hinos embora algumas vezes estes sejam bem poucos e ateacute mesmo esta oportunidade eacute ignorada por muitas pessoas em algumas congregaccedilotildees Eacute verdade que pode-se envolver na adoraccedilatildeo ndash pode-se ateacute falar com Deus ndash sem pronunciar nem um som audiacutevel mas cremos que eacute desejaacutevel ter o maacuteximo de participaccedilatildeo da congregaccedilatildeo tanto do que se fala como do que se canta e tambeacutem da accedilatildeo fiacutesica 144

141 HUSTAD 1986165142 HUSTAD 1986165143 HUSTAD 1986165144 HUSTAD 1986165

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Os encontros cultuais puacuteblicos devem priorizar portanto a participaccedilatildeo ativa do povo o trabalho do povo isto eacute os elementos lituacutergicos de um culto (adoraccedilatildeo leitura biacuteblica canto coletivo oraccedilatildeo testemunho mensagem muacutesica instrumental coro etc) devem propiciar a participaccedilatildeo plena do povo

Outro autor que trabalha esses dois termos ndash liturgia e culto ndash eacute o teoacutelogo Nelson Kirst Ele compara o momento do culto com o ldquorancho na roccedilardquo O culto eacute o encontro de Deus com a sua comunidade e a ldquoliturgia eacute o conjunto de elementos e focircrmas (espaccedilos lugares tempos objetos funccedilotildees gestos foacutermu-las histoacuterias instruccedilotildees olhares siacutembolos e significados) atraveacutes dos quais se realiza o encontro de Deus com sua comunidaderdquo145

Imagine-se uma famiacutelia de agricultores que sai para trabalhar um pedaccedilo de terra localizado a 1 ou 2 km de casa De manhatilde bem cedo potildeem-se todos a caminho de carroccedila levando enxadas foices facotildees arado e o cesto com o lanche Laacute chegando dividem as tarefas e se lanccedilam ao trabalho Mourejam por umas duas horas e entatildeo se recolhem para um descanso Em algum ponto daquela roccedila ergue-se o rancho construccedilatildeo tosca de trecircs paredes e um telhado em meia-aacuteguaEacute no aconchego do rancho na roccedila que a famiacutelia camponesa depois da primeira arrancada de enxada e arado se recolhe descansando o corpo fortalecendo-se de patildeo aacutegua fresca e conversa - para meia horinha depois voltar agrave enxada e ao arado e misturar seu suor agrave terra em outro tanto de jornada A famiacutelia vai da enxada para o rancho e sai fortalecida do rancho para a enxada A parada no rancho natildeo faz sentido sem o trabalho na roccedila E o trabalho na roccedila se esgota em agitaccedilatildeo e cansaccedilo sem a parada no rancho146

O culto entatildeo eacute o lugar para renovaccedilatildeo de energias espirituais lugar onde o povo busca ldquoalimentordquo espiritual atraveacutes dos atos de adoraccedilatildeo e louvor ao Deus criador ao Deus salvador Atos de enunciaccedilatildeo de suas alegrias e suas tristezas de exposiccedilatildeo suas ansiedades e vitoacuterias e o retorno para a vida ordinaacuteria das atividades seculares

O culto constituiacutedo pelo conjunto de elementos lituacutergicos eacute um evento total que possui situaccedilotildees momentacircneas cultuais diversas Qual eacute a origem desses momentos determinados constantes de uma liturgia

145 KIRST 1998119146 KIRST 1998119

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4 ldquoA VISAtildeO DE ISAIacuteASrdquo UM DOS MODELOS DE EVENTO CULTUAL

Apesar da origem natildeo-lituacutergica dos batistas sua liturgia segue alguns princiacutepios modelos Os atos lituacutergicos natildeo satildeo propostos aleatoriamente Entatildeo de onde vecircm esses princiacutepiosmodelos que norteiam uma liturgia

Esses elementos vecircm dos exemplos biacuteblicos de adoraccedilatildeo O teoacutelogo Romeu R Martini nos apresenta no seu livro Liturgia e culto o exemplo biacuteblico de Noeacute (Gn 6-8) e o teoacutelogo Russel P Shedd no seu livro Adoraccedilatildeo biacuteblica elenca vaacuterios exemplos biacuteblicos de adoraccedilatildeo afirmando que ldquoas sagradas letras satildeo o nosso manual de adoraccedilatildeordquo147

O salmista no Salmo 96 Enoque em Gn 522-24Hb 56 Jacoacute em Gn 3222ss Moiseacutes em Ex 3312-33 Isaiacuteas em Is 61-8 e Maria em Jo 121-8 satildeo os exemplos apresentados por Shedd

De todos esses exemplos biacuteblicos de adoraccedilatildeo haacute uma convergecircncia entre os teoacutelogos de que a experiecircncia de Isaiacuteas eacute a que mais detalhes apresenta sobre os diversos atos ocorrentes em um encontro de um ser humano com o Deus criador Do texto de Isaiacuteas 6-1-9a emergem os seguintes atos lituacutergicos

- Consciecircncia da presenccedila de Deus (Is 61) ndash Preluacutedio

- Adoraccedilatildeo (Is 62-3)

- Confissatildeo (Is 65)

- Perdatildeo (Is 66-7)

- Apelo (Is 68) ndash Palavra do SenhorEnsino

- Consagraccedilatildeo (Is 68) ndash Resposta do homem

- Disponibilidade para o serviccedilo (Is 69a) ndash Posluacutedio

Nelson Kirst fala de uma forma mais abrangente que a liturgia ndash a sequecircncia de atos elementos eventos ornamentos e momentos lituacutergicos ndash precisa ser moldada Utiliza o exemplo de uma casa com seus cocircmodos para o entendimento dessa questatildeo

Uma casa eacute composta de diversas dependecircncias Haacute certas dependecircncias que natildeo podem faltar numa casa p ex a cozinha ou o dormitoacuterio Satildeo imprescindiacuteveis Haacute outras partes que satildeo uacuteteis sem ser imprescindiacuteveis

147 SHEDD 1987113

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p ex a sala de estar a sala de jantar ou a varanda Assim tambeacutem a liturgia tem partes imprescindiacuteveis que nunca podem faltar e partes que satildeo uacuteteis mas podem faltar num cultoNa comparaccedilatildeo da liturgia com uma casa tambeacutem se aprende alguma coisa sobre a disposiccedilatildeo das diversas partes dentro do conjunto A entrada de uma casa geralmente vai ser pela sala de estar ou perto da sala de estar e natildeo pela cozinha ou pelo dormitoacuterio Por outro lado o banheiro pode localizar-se entre o dormitoacuterio e a sala ou entre o dormitoacuterio e a cozinha e a sala de estar pode encontrar-se do lado esquerdo ou do lado direito da entrada Assim tambeacutem na liturgia haacute certas partes que tecircm seu lugar fixo p ex o canto de entrada soacute pode estar no iniacutecio do culto e a interpretaccedilatildeo da Palavra soacute pode vir depois das leituras biacuteblicas E haacute outras partes que podem ser dispostas com certa flexibilidadeFinalmente haacute muita maleabilidade na maneira como satildeo configuradas as diversas dependecircncias de uma casa O material as cores as cortinas a decoraccedilatildeo dependeratildeo de quem haacute de utilizar essa casa para morar Assim tambeacutem haacute muita liberdade quanto agrave maneira ou ao estilo de se realizar as partes da liturgia148

5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAISFinalizando liturgia significa os atos ocorrentes no momento de culto isto

eacute os atos praticados pelos indiviacuteduos em reaccedilatildeo agrave accedilatildeo divina Os batistas satildeo uma igreja livre (natildeo-lituacutergica) em relaccedilatildeo agrave orientaccedilatildeo lituacutergica A liturgia dos batistas procura seguir os exemplos de adoraccedilatildeo encontrados na Biacuteblia sendo a experiecircncia de Isaiacuteas com Deus a mais ensinada nas casas teoloacutegicas como modelo de atos cultuais

Para que a liturgia natildeo se transforme em um ritual ndash uma monoacutetona repeticcedilatildeo de atos lituacutergicos ndash existe uma liberdade na sua elaboraccedilatildeo preservando-se alguns dos elementoseventos cultuais de adoraccedilatildeo biacuteblica bem como a omissatildeo de outros

Hustad afirma que em resumo a liturgia de um culto deve contemplar duas accedilotildees baacutesicas da adoraccedilatildeo ldquouma revelaccedilatildeo plena de Deus seus atos e sua vontade para noacutes e uma reaccedilatildeo dos homens e mulheres incluindo corpo emoccedilatildeo intelecto e vontaderdquo149

148 KIRST 1998125149 HUSTAD 1986166 Grifo nosso

97TeoloacutegicaRevista Brasileira de Teologia ISSN 1807-7056 nordm 8 outdez Rio de Janeiro 2020 p 86 - 97

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WHITE J F Introduccedilatildeo ao culto cristatildeo Satildeo Leopoldo Sinodal 1997

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LITURGIA E IDENTIDADE RELIGIOSA NO APOCALIPSE DE JOAtildeO

Valtair A Miranda150

RESUMONosso propoacutesito neste artigo eacute analisar as peccedilas hiacutenicas descritas nos capiacutetulos

quatro e cinco do livro de Apocalipse e refletir sobre o papel que executam na construccedilatildeo e manutenccedilatildeo da identidade social e religiosa dos leitores e ouvintes desse livro no momento da sua produccedilatildeo Argumentamos que os hinos registrados nas obras do movimento de Jesus possuiacuteam um papel significativo na definiccedilatildeo da autodescriccedilatildeo dos membros das igrejas quer por representarem o que se cantava nas comunidades quer como sugestatildeo do que cantar Cantar entatildeo natildeo apenas descreve a pessoa de Deus ou o falar com ele mas propicia a quem canta um forte senso de identidade pessoal e social Nos hinos o fiel expressa o que ele se ainda natildeo eacute pelo menos gostaria de ser

Palavras-chave Apocalipse de Joatildeo Culto e ritual hino e liturgia Cristianismo antigo

ABSTRACTOur purpose in this article is to analyze the hymn pieces of Revelation 4 and

5 and to reflect on their role in building and maintaining the social and religious identity of the readers and listeners of this book at the time of its production We argue that the hymns recorded in the works of the Jesus movement had a signifi-cant role in defining the self-description of church members either because they represent what was sung in the communities or rather as a suggestion to sing Singing then not only describes God or speaks to him but gives the person who sings a strong sense of personal and social identity In the hymns the faithful express what he if he still is not at least would like to be

Keywords Revelation of John Worship and ritual worship and liturgy Ancient Christianity

150 Valtair Afonso Miranda eacute Doutor em Ciecircncias da Religiatildeo (UMESPSP) e Doutor em Histoacuteria (UFRJ) Eacute Diretor Acadecircmico da Faculdade Batista do Rio de Janeiro onde leciona Histoacuteria da Igreja e Exegese do Novo Testamento

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O capiacutetulo 4 de Apocalipse inicia uma longa seccedilatildeo descritiva de um tipo de culto celestial Aparentemente este livro poderia ser dividido em trecircs partes uma seccedilatildeo para descrever a visatildeo do Filho do Homem que aparece a Joatildeo para narrar sete cartas para sete igrejas (capiacutetulos 1 a 3) uma seccedilatildeo para descrever a visatildeo do rolo selado com sete selos (capiacutetulos 4 a 11) e uma uacuteltima para apresentar o conflito escatoloacutegico entre o Cordeiro e o Dragatildeo (capiacutetulos 12 a 22)151

Nesse sentido o capiacutetulo 4 seria o iniacutecio da segunda seccedilatildeo Sua narrativa co-meccedila com o ingresso do visionaacuterio por uma porta aberta no ceacuteu e o subsequente acesso ao Templo Celestial Na perspectiva da audiecircncia desse texto a cena elabora uma narrativa a partir de uma preacutevia experiecircncia extaacutetica Afinal Joatildeo continua na Ilha de Patmos apesar de o seu espiacuterito vislumbrar o trono divino e uma seacuterie de personagens que participam da liturgia celestial Embora se apresente como a narrativa de uma experiecircncia visionaacuteria entretanto o Apocalipse ecoa por meio dessa cena um conjunto de tradiccedilotildees e passagens provavelmente bem conhecidas de sua audiecircncia como Ecircxodo 249-11 Isaiacuteas 6 Ezequiel 126-28 Daniel 79-28 1Reis 2219-23 1Enoque 39 e 2 Enoque 20-22 entre outras

O primeiro versiacuteculo do capiacutetulo 4 apresenta um anjo convocando Joatildeo para subir ao ceacuteu Esse anjo promete mostrar ao visionaacuterio o que aconteceria ldquodepois destas coisasrdquo O cumprimento dessa promessa do anjo se daacute nos termos do relato quando o Cordeiro siacutembolo do Jesus crucificado rompe sete selos de um livro e provoca sete trombetas escatoloacutegicas Isso aparece no capiacutetulo 6 em diante jaacute que os dois primeiros capiacutetulos da seccedilatildeo (4 e 5) se dedicam ao ato lituacutergico em um ritmo muito lento apresentando as cenas e os atores do culto celestial

Nosso propoacutesito neste artigo eacute analisar as peccedilas hiacutenicas desses dois capiacutetulos do Apocalipse e refletir sobre o papel delas na construccedilatildeo e manutenccedilatildeo da identidade social e religiosa dos leitores e ouvintes do livro no seu momento de produccedilatildeo152

151 Para uma discussatildeo dessa estrutura no formato de trecircs seccedilotildees conferir o meu livro MIRANDA Valtair Afonso O caminho do Cordeiro representaccedilatildeo e construccedilatildeo de identidade no Apocalipse de Joatildeo Satildeo Paulo Paulus 2011152 Pressupomos que esta obra foi escrita no final do seacuteculo I e enviada para membros do movimento de Jesus na proviacutencia romana da Aacutesia especificamente para comunidades nas cidades de Eacutefeso Esmirna Peacutergamo Tiatira Saacuterdis Filadeacutelfia e Laodiceia Para uma anaacutelise mais ampla do contexto de produccedilatildeo do Apocalipse de Joatildeo conferir MIRANDA Valtair A Revisitando o contexto de produccedilatildeo do Apocalipse de Joatildeo Reflexus ano IX n 14 p 389-416 2015 FRIEDRICH Paulo Nestor Apocalipse 2ndash3 Sete cartas Uma anaacutelise literaacuteria Estudos de Religiatildeo Satildeo Bernado do Campo n 19 p 149-173 2000 WIKENHAUSER Alfred El Apocalipsis de San Juan p 25-34

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CELEBRANDO A CRIACcedilAtildeO O CULTO AO DEUS ENTRONI-ZADO

O capiacutetulo 4 do Apocalipse apresenta um trono no ceacuteu e em torno dele ele-mentos tiacutepicos de uma teofania da Escritura judaica (Is 61-4) Como na visatildeo de Isaiacuteas esse trono divino eacute uma peccedila central Tudo gira em torno dele Ao seu redor estatildeo quatro criaturas denominadas de Seres Viventes Aleacutem destes o relato apresenta tambeacutem vinte e quatro tronos menores nos quais se assentam vinte e quatro anciatildeos vestidos com roupas brancas tendo coroas de ouro na cabeccedila Independentemente da forma como os inteacuterpretes contemporacircneos interpretam esses personagens celestiais o essencial eacute que todos estatildeo envolvidos em atos lituacutergicos Eles adoram o anciatildeo que se assenta sobre o trono

Os Quatro Viventes especificamente tecircm como missatildeo sem descanso dia e noite expressar adoraccedilatildeo (Ap 48) Deles Joatildeo ouve ldquoSanto Santo Santo eacute o Senhor Deus o Todo-Poderoso aquele que era que eacute e que haacute de virrdquo O hino comeccedila com uma expressatildeo triacuteplice originada em Isaiacuteas 63 ldquoE clamavam uns para os outros dizendo Santo santo santo eacute o Senhor dos Exeacutercitos toda a terra estaacute cheia da sua gloacuteriardquo No texto de Isaiacuteas a canccedilatildeo eacute entoada por Serafins figuras parecidas com serpentes aladas Essa passagem foi largamente usada em textos apocaliacutepticos para compor as cenas do santuaacuterio celestial (1En 3012 2En 211 Ap Abr 16) Os grupos judaicos do segundo Templo frequentemente viam no triacuteplice ldquosantordquo a expressatildeo perfeita do culto dos anjos deduzindo daiacute um modelo para o culto na terra153

Eacute interessante comparar a versatildeo de Isaiacuteas com a LXX e o Apocalipse e assim verificar a forma como as tradiccedilotildees literaacuterias satildeo retomadas no Apo-calipse A LXX que normalmente traduz o termo tsabaoth por pantokrator dessa vez simplesmente transliterou o termo sabaoth Joatildeo entretanto de forma consistente continuou usando pantokrator no lugar de tsabaoth De qualquer forma ambas as expressotildees denotam um ser soberano sobre todos os outros deuses e senhores da terra Ele eacute o Senhor dos Exeacutercitos o Todo-poderoso o Senhor da terra toda Isso daacute ao conjunto da canccedilatildeo um tom de natureza poliacute-tica A acentuaccedilatildeo do ldquoSenhor Deus Todo-Poderosordquo eacute ainda maior porque o hino acrescenta agrave descriccedilatildeo divina a expressatildeo ldquoaquele que era que eacute e que haacute de virrdquo no que se configura uma afirmaccedilatildeo da eternidade imutabilidade e autonomia divinas uma evocaccedilatildeo do ldquoeu sourdquo de Ecircxodo 314 Um Deus eterno natildeo estaacute sujeito agraves variaccedilotildees do tempo ou agraves transiccedilotildees dos domiacutenios humanos

153 PRIGENTE P O Apocalipse p 104

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No momento em que os Quatro Viventes cantam o hino de Isaiacuteas denominado frequentemente de ldquokedushaacuterdquo os Vinte e Quatro Anciatildeos se prostram diante do que se assenta no trono depositando aos seus peacutes suas coroas de ouro Dessa vez satildeo eles que adoram ldquoTu eacutes digno Senhor e Deus nosso de receber a gloacuteria a honra e o poder porque todas as coisas tu criaste sim por causa da tua vontade vieram a existir e foram criadasrdquo (Ap 411)

A forma literaacuteria eacute de aclamaccedilatildeo mas configurada em expressatildeo hiacutenica no texto do visionaacuterio A estrutura do hino consiste do adjetivo ldquodignordquo seguido do verbo ser (na terceira pessoa do singular) mais uma seacuterie de atributos Esse eacute um hino de dignidade A divindade eacute adorada porque eacute digna e eacute digna em funccedilatildeo da sua obra de criaccedilatildeo

Esse hino tambeacutem levanta a questatildeo de quem eacute digno de ser adorado Possi-velmente eacute uma peccedila lituacutergica que surge em meio agrave disputa por adoraccedilatildeo Com um hino desse tipo o Apocalipse tenta apontar quem eacute digno de adoraccedilatildeo e consequentemente quem natildeo o eacute

Essas expressotildees querem responder agrave questatildeo ldquoquem eacute o verdadeiro senhor da terrardquo ou entatildeo quem eacute digno de ser A resposta do Apocalipse eacute clara o Senhor da terra eacute aquele que a criou A ele pertencem todas as coisas

Esses hinos poderiam atuar na identidade da audiecircncia de diversas maneiras mas destacamos aqui apenas trecircs Primeiramente ao ouvir tais hinos ou cantaacute--los a audiecircncia acompanha os seres celestiais declarando o senhorio exclusivo de Deus sobre o mundo154 Deus eacute o verdadeiro Senhor da Terra o que promove uma determinada filosofia da histoacuteria Um Deus Soberano estaacute acima dos poderes e governos do mundo Esse tipo de divindade tem poder para controlar e dirigir a histoacuteria da humanidade e o faraacute levando-a ateacute a instalaccedilatildeo efetiva do seu Reino sobre a terra (Ap 510) O olhar sobre esse futuro - mas iminente - reino alerta as comunidades de crentes que a vida que eles vivem no presente eacute circunstancial e peregrina O seu destino ainda natildeo chegou Um primeiro efeito plausiacutevel entatildeo se daria na postura poliacutetica dos fieis cantantes ao promover a perspectiva de oposiccedilatildeo agrave sociedade circundante155

Segundo ao afirmar que somente Deus eacute digno de receber adoraccedilatildeo honra poder o hino afirma a singularidade da figura divina diante das pretensotildees im-

154 BORTOLINI Joseacute Como ler o Apocalipse p 53155 Para uma reflexatildeo mais ampla sobre posturas de oposiccedilatildeo do movimento de Jesus agrave estrutura imperial romana cf MIRANDA Valtair A Religiatildeo e sociedade na Aacutesia romana Religare v13 n1 p150-179 2016 LAZIER Josueacute Adam A estrateacutegia cristatilde no contexto da Pax Romana Estudos Biacuteblicos n 36 p 37-40 1992 MESTER Carlos OROFINO Francisco A violecircncia do Impeacuterio Romano e a sua influecircncia na vida das comunidades cristatildes do fim do primeiro seacuteculo Estudos Biacuteblicos n 69 p 72-82 2001

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periais romanas E ao afirmar a singularidade de Deus o hino tambeacutem reforccedila a singularidade de seus adoradores Mesmo que experimentando o desprezo da sociedade romana os seguidores de Jesus se percebem como figuras especiais pois formam o povo de Deus na terra

Terceiro esse conhecimento do senhorio de Deus sobre o universo e da singu-laridade do seu povo eacute um conhecimento profundo que somente quem acessa as regiotildees celestiais conhece Ningueacutem consegue enxergar o que eles veem naquele momento Essa ldquovisatildeo profundardquo era dada aos seguidores do Cordeiro quando se reuniam em seus encontros de culto Dessa forma o culto se torna o espaccedilo privilegiado para o acesso a um ldquooutro mundordquo no interior ldquodeste mundordquo

CELEBRANDO A REDENCcedilAtildeO O CULTO AO CORDEIROO capiacutetulo 5 do Apocalipse apresenta uma crise Qual eacute a crise Joatildeo eacute infor-

mado de que haacute um rolo que ningueacutem pode abrir Ele comeccedila a chorar ateacute que algueacutem bate no seu ombro e diz ldquoNatildeo chores eis que o Leatildeo da tribo de Judaacute a Raiz de Davi venceu para abrir o livro e os seus sete selosrdquo (Ap 55) Ele ouve falar de um leatildeo mas quando olha o que vecirc eacute um cordeiro Eacute Jesus Cristo na forma simboacutelica de um cordeiro ensanguentado representando a centralidade do seu sacrifiacutecio na cruz no projeto de redenccedilatildeo divino Daqui em diante o Cordeiro Jesus Cristo jaacute com o rolo na matildeo vai comeccedilar a quebrar os selos do rolo um por um Agrave medida que cada selo eacute removido uma cena eacute testemunhada por Joatildeo

Jesus que jaacute aparecera antes na forma do Filho do Homem (Ap 113) agora eacute descrito como um cordeiro com aparecircncia de ter sido morto com sete chifres e sete olhos Satildeo imagens que devem ser menos entendidas e mais sentidas Chifres e olhos tecircm a ver com a presenccedila do poder e do espiacuterito de Deus Mas de onde vem a imagem do Cordeiro

Essa imagem tem analogia com o sacrifiacutecio e a morte Uma passagem relevante para estudar o significado de ldquocordeirordquo estaacute no Antigo Testamento especifica-mente em uma profecia de Jeremias 1119 ldquoEu era como manso cordeiro que eacute levado ao matadouro porque eu natildeo sabia que tramavam projetos contra mim dizendo Destruamos a aacutervore com seu fruto a ele cortemo-lo da terra dos vi-ventes e natildeo haja mais memoacuteria do seu nomerdquo O profeta fala de si mesmo como um cordeiro que eacute levado mansamente para a morte

A passagem mais proacutexima de Jeremias eacute Isaiacuteas 537 ldquoEle foi oprimido e humilhado mas natildeo abriu a boca como cordeiro foi levado ao matadouro e como ovelha muda perante os seus tosquiadores ele natildeo abriu a bocardquo O relato de Isaiacuteas 53 sobre o ldquoservo sofredorrdquo reaparece no Novo Testamento de diversas

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formas para falar do ministeacuterio de Jesus e sua morte (Lc 2237 At 832-33 1Pe 222) sendo muito importante para responder agrave questatildeo de como o sofrimento e a morte de Jesus poderiam ser explicados diante da sua natureza messiacircnica

Eacute exatamente isso que aparece quando o Apocalipse descreve Jesus como um Cordeiro Ele eacute o Messias pelo caminho do sacrifiacutecio Mais ainda o Cordeiro Jesus

- Eacute aquele que morreu e ressuscitou (Ap 56)

- Eacute adorado pelas figuras celestiais (Ap 581213)

- Eacute o que tem o poder de revelar os eventos celestiais (Ap 61)

- Eacute o que julgaraacute todas as pessoas (Ap 616 717) pois possui o Livro da Vida (2127)

- Eacute o que lavou as vestes dos salvos com o seu proacuteprio sangue (Ap 791014)

- Eacute o que vence o Dragatildeo em funccedilatildeo do seu sangue (Ap 1211)

- Venceraacute as bestas (Ap 1714)

- Se casaraacute com sua noiva a Nova Jerusaleacutem o povo de Deus (Ap 1979 219)

- Iluminaraacute a Nova Jerusaleacutem (Ap 2123)

A imagem do cordeiro sacrificial entatildeo no Apocalipse faz referecircncia natildeo apenas ao sofrimento e agrave morte mas tambeacutem agrave vitoacuteria reinado poder e gloacuteria Eacute a esse Cordeiro exaltado que toda a adoraccedilatildeo do capiacutetulo 5 se dirige Ele eacute digno de ser adorado porque segundo os vinte e quatro anciatildeos e os Quatro Viventes morreu e com seu sangue comprou pessoas de todas as naccedilotildees constituindo-as reino e sacerdotes para Deus (Ap 59-10) Os mesmos seres que adoraram a Deus no capiacutetulo 4 agora se rendem em adoraccedilatildeo ao Cordeiro de Deus no capiacutetulo 5 (Ap 59-10) ldquoDigno eacutes de tomar o livro e abrir-lhe os selos porque foste morto e compraste para Deus atraveacutes do teu sangue pessoas de toda tribo liacutengua povo e naccedilatildeo e os constituiacuteste para o nosso Deus reino e sacerdotes e reinaratildeo sobre a terrardquo

Adela Yarbro Collins estudiosa da Yale University (EUA) interpretou esse rolo como uma epiacutestola celestial na forma de um livro de destino Em outras palavras ele seria uma taacutebua de eventos futuros Os sete selos enfatizam simbolicamente a intensidade do segredo do conhecimento sobre os eventos futuros cujo conteuacutedo eacute dado na forma de duas seacuteries de sete visotildees (selos e trombetas)156 O Cordeiro seria o uacutenico digno de revelar para o visionaacuterio e sua comunidade o conhecimento escatoloacutegico A base dessa dignidade eacute a morte de Jesus Cristo

156 COLLINS Adela Yarbro The combath myth in the Book of Revelation p 25

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A imagem de um cordeiro imolado jaacute seria evocaccedilatildeo suficiente agrave morte de Jesus da mesma forma como sua posiccedilatildeo em relaccedilatildeo ao trono o afirma vivo e com poder para fazer especificamente duas coisas comprar para Deus um povo exclusivo e fazecirc-los reino e sacerdotes de Deus Essa afirmaccedilatildeo jaacute apareceu antes (Ap 15-6) na forma de um hino entoado pelo autor na primeira pessoa do plural ldquoAgravequele que nos ama e pelo seu sangue nos libertou dos nossos pecados e nos constituiu reino sacerdotes para o seu Deus e Pai a ele a gloacuteria e o domiacutenio pelos seacuteculos dos seacuteculos Ameacutemrdquo Jaacute nesse hino ao Cordeiro satildeo os Vinte e Quatro Anciatildeos diante do Trono no ceacuteu que declaram esta mesma realidade Seria uma maneira de indicar que os seres celestiais confirmam o status real e sacerdotal cantado pelos crentes na terra

A origem dessas pessoas como ldquode toda tribo liacutengua povo e naccedilatildeordquo afirma o caraacuteter natildeo mais eacutetnico do povo de Deus A filiaccedilatildeo natildeo seria mais uma questatildeo de sangue mas de compromisso com o Cordeiro

As formas verbais satildeo bem precisas Os seguidores do Cordeiro jaacute foram comprados e jaacute receberam a investidura real e sacerdotal Seriam accedilotildees realizadas por Jesus no momento de sua morte e ressurreiccedilatildeo Mesmo assim uma reserva escatoloacutegica se manifesta eles ainda reinaratildeo sobre a terra Eles jaacute fazem parte do reino de Deus e seu filho Jesus Cristo mas esse reino ainda natildeo eacute visto por quem natildeo faz parte dele O cacircntico expressa a esperanccedila entretanto somente na intervenccedilatildeo uacuteltima de Deus esse reinado se materializaraacute157

Os cantores desse hino de dignidade ao Cordeiro satildeo os Quatro Viventes e os Vinte e Quatro Anciatildeos A cena ganha proporccedilotildees ainda maiores quando apoacutes o hino anjos em nuacutemero de ldquomilhotildees de milhotildees e milhares de milharesrdquo tambeacutem cantam a mesma temaacutetica (Ap 512) ldquoDigno eacute o Cordeiro que foi morto de receber o poder e riqueza e sabedoria e forccedila e honra e gloacuteria e louvorrdquo

Enquanto a primeira canccedilatildeo de dignidade ao Cordeiro estaacute na segunda pessoa do singular (um hino que fala com o Cordeiro) a canccedilatildeo dos anjos estaacute na terceira pessoa do singular (um hino que fala do Cordeiro) Em ambas as canccedilotildees o objeto de adoraccedilatildeo eacute descrito numa linguagem poliacutetico-religiosa do antigo Israel

Ele eacute o Leatildeo da Tribo de Judaacute a raiz de Davi que conquistou e portanto eacute digno de abrir o rolo que Deus entregou em suas matildeos Mas eacute ao mesmo tempo um Cordeiro em peacute como se tivesse sido morto Eacute ele que tem o rolo na matildeo

157 Isto configura um determinado tipo de milenarismo como analisado em MIRANDA Valtair A Maacutertires e monges milenarismos antigos e medievais Santo Andreacute Kapenke 2018 p 43-72

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O Leatildeo era usado como siacutembolo de poder no mundo antigo (Pr 3030) e se tornou associado com o trono de Davi atraveacutes da caracterizaccedilatildeo de Judaacute feita por Jacoacute (Gn 499) A raiz de Davi eacute uma metaacutefora para a linhagem de Davi (Is 1110) e se tornou siacutembolo da restauraccedilatildeo da monarquia daviacutedica (Jr 235) Essas tradiccedilotildees do restabelecimento do reino de Deus como um ato de forccedila e poder eram tradicionais Mas essa natildeo eacute a perspectiva de Apocalipse que inverte a imagem O leatildeo se torna cordeiro Existe violecircncia sim mas contra o cordeiro natildeo do Cordeiro Ele tem poder e tem forccedila para conquistar mas seus atos de conquista passaram pela sua morte158

Se Deus eacute digno por causa de sua obra de criaccedilatildeo o Cordeiro eacute digno por causa da redenccedilatildeo Somente ele entatildeo eacute capaz de abrir os selos somente ele venceu a morte Ao inserir o tema da morte do Cordeiro na tradiccedilatildeo messiacircnica daviacutedica o visionaacuterio insere na esperanccedila messiacircnica poliacutetica os aspectos da tradiccedilatildeo sacrificial

As cenas de culto celestial natildeo eram novidades na apocaliacuteptica Entretanto a presenccedila do Cordeiro ldquocomo que mortordquo no Templo celestial participando ou mesmo recebendo o culto eacute uma grande novidade do Apocalipse de Joatildeo Um nuacutemero muito maior de epiacutetetos nesses hinos de dignidade eacute lanccedilado sobre o Cordeiro do que ao proacuteprio Anciatildeo que estava assentado sobre o trono central do Santuaacuterio

Apoacutes a adoraccedilatildeo ao Cordeiro o relato acrescenta que ldquotoda criatura que haacute no ceacuteu e sobre a terra debaixo da terra e sobre o mar e tudo o que neles haacuterdquo e se volta novamente para aquele que se assenta no trono A descriccedilatildeo do culto celestial assim extrapola os espaccedilos celestiais pois envolve tambeacutem o acircmbito da terra e do mar bem como todos os seus seres A natureza inteira aparece envolvida na adoraccedilatildeo celestial O que eles cantam eacute ldquoAo que se assenta sobre o trono e ao Cordeiro o louvor e a honra e a gloacuteria e o domiacutenio para os seacuteculos dos seacuteculosrdquo (Ap 513)

Finalmente ambos os personagens celebrados no culto celestial recebem simultaneamente a adoraccedilatildeo As claacuteusulas de dignidade se parecem com o hino dos anjos (Ap 512) e com o hino a Deus em Apocalipse 411 A gloacuteria e a honra aparecem nos trecircs hinos O poder eacute dado a Deus pelos Vinte e Quatro Anciatildeos e ao Cordeiro pelos anjos mas natildeo aparece na lista quando ambos satildeo louvados juntos Na adoraccedilatildeo a Deus e ao Cordeiro por sua vez ainda se manifestam o domiacutenio e o louvor que natildeo apareceram antes para Deus De qualquer forma todas

158 BARR David L Tales of the End p 70

106 TeoloacutegicaRevista Brasileira de Teologia ISSN 1807-7056 nordm 8 outdez Rio de Janeiro 2020 p 98 - 108

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as dignidades de Deus pertencem tambeacutem ao Cordeiro que ainda suporta outras Somente Ele nesses trecircs hinos de dignidade teve celebrada a riqueza a sabedoria e a forccedila Esses elementos sinalizam que diferentemente das visotildees tradicionais do Templo celestial no Apocalipse de Joatildeo natildeo eacute Deus a figura principal mas sim o Cordeiro Ele eacute o personagem central da revelaccedilatildeo do visionaacuterio

Nos termos de Hurtado

judeus convertidos se reuniam para adorar em nome de Jesus oravam a ele cantavam para ele entendiam que ele estava em uma posiccedilatildeo celestial acima de toda a ordem angelical usaram para ele tiacutetulos e passagens das Escrituras judaicas originalmente usadas para Deus procuraram convencer outros judeus e tambeacutem gentios a reconhece-lo como o redentor messiacircnico escolhido por Deus e em geral redefiniam a devoccedilatildeo tradicional ao uacutenico Deus para incluir a veneraccedilatildeo a Jesus159

Ao apresentar a adoraccedilatildeo de elementos da natureza o visionaacuterio ainda demons-tra a possibilidade de elementos de fora do acircmbito celestial participarem de algu-ma maneira do culto no ceacuteu O que esses elementos celebram eacute a manifestaccedilatildeo do Reino de Deus e seu domiacutenio perpeacutetuo Os cantores desse hino representam toda a ordem da criaccedilatildeo que juntos adoram o que se assenta no trono e o Cordeiro160

Como um responsoacuterio coral a resposta vem daqueles que se encontram bem perto do trono os Quatro Viventes que respondem ldquoAmeacutemrdquo

A conclusatildeo da cena eacute um novo ato de prostraccedilatildeo e adoraccedilatildeo dos Anciatildeos (Ap 513-14) O verbo usado no Apocalipse para adoraccedilatildeo eacute predominantemente proskuneo Ele aparece 60 vezes no Novo Testamento mas em nenhum outro livro tem a importacircncia que tem no livro de Joatildeo no qual aparece 24 vezes indicando o quanto a questatildeo da adoraccedilatildeo eacute central para o visionaacuterio O termo denota prostraccedilatildeo postura de submissatildeo e homenagem atitude que seraacute repetida vaacuterias vezes no Apocalipse

Finalmente o culto ao Anciatildeo e ao Cordeiro dos capiacutetulos 4 e 5 de Apocalipse seraacute interrompido pela seacuterie de selos e trombetas mas apareceraacute novamente em vaacuterios outros lugares da obra

159 HURTADO Larry W One God One Lord p 17-18160 MESTER Carlos OROFINO Francisco Apocalipse de Joatildeo p 182-183

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CONCLUSAtildeORetomando a questatildeo inicial sobre o papel dos hinos dos capiacutetulos 4 e 5 de

Apocalipse na autocompreensatildeo religiosa e social da audiecircncia ali descrita acreditamos que eles funcionariam para afirmar um status exaltado dos segui-dores de Jesus que foram comprados para Deus e lhe pertencem agora Como propriedade exclusiva de Deus satildeo seus sacerdotes fazendo parte do reino de Deus e do Cordeiro jaacute no presente tempo Por isso eles jaacute podem cantar todas as expectativas que as antigas tradiccedilotildees judaicas esperavam para a intervenccedilatildeo escatoloacutegica divina

Profeticamente o reinado de Deus e seu ungido se manifestam jaacute no espaccedilo sagrado do culto O Templo celestial sede do reino de Deus tem seu equivalente na terra no ajuntamento da comunidade de fieacuteis em adoraccedilatildeo Assim separados da vida ordinaacuteria dentro do limite do tempo e espaccedilo ritual na assembleia de adoraccedilatildeo no dia do Senhor os seguidores de Jesus conseguiam ver o que ningueacutem mais via e mais do isso jaacute antecipavam prolepticamente sua participaccedilatildeo no Reino de Deus e seu Cordeiro

Como contraponto entretanto essa perspectiva identitaacuteria promoveria algum tipo de rejeiccedilatildeo agrave ordem social romana A grande pergunta que os capiacutetulos 4 e 5 de Apocalipse quer responder eacute Quem eacute digno de adoraccedilatildeo Muita gente na eacutepoca do Apocalipse dizia que o Imperador Romano era digno de adoraccedilatildeo Para aqueles que cantavam esses cacircnticos entretanto a sociedade romana paganizada estava equivocada

Eacute certo que os imperadores romanos eram pessoas muito poderosas Tatildeo poderosas que imaginavam poder receber honras e adoraccedilatildeo como se fossem divindades O culto imperial era efetivamente um problema para as comunidades receptoras do Apocalipse Entretanto em oposiccedilatildeo a essa estrutura religiosa imperial o Apocalipse responde com o convite para uma adoraccedilatildeo exclusiva a Deus e seu Cordeiro mesmo que o preccedilo para isso fosse o caminho do martiacuterio (Ap 1413)

Valtair Afonso MirandaRua Uruguai 514202

20510-060 ndash Rio de Janeiro RJvaltairmirandagmailcom

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WIKENHAUSER Alfred El Apocalipsis de San Juan Barcelona Editorial Herder 1969

Page 5: seminariodosul.com.br...O primeiro concílio da igreja é o mencionado no capítulo 15 de Atos dos Apóstolos, onde Lucas relata o Concílio de Jerusalém em 50 d.C., liderado por

REVISTA TEOLOacuteGICA REVISTA BRASILEIRA DE TEOLOGIARevista do Seminaacuterio Teoloacutegico Batista do Sul do Brasil

Faculdade Batista do Rio de Janeiro Nuacutemero 8 2020

SUMAacuteRIODECISOtildeES CRISTOLOacuteGICAS DOS SETE CONCIacuteLIOS ECUMEcircNICOSCliff Iuri de Souza Gonccedilalves Walter Ferreira da Silva Juacutenior 9

O LIVRO DE JONAS E O ARREPENDIMENTO VERDADEIRO NA BIacuteBLIA E NA ATUALIDADEEvelise Cavalcanti Teresa Akil 23

TRANSFORMACcedilAtildeO RELIGIOSA BRASILEIRA E CARACTERIacuteSTICAS DO NOVO PADRAtildeO RELIGIOSOJoatildeo Boechat 35

AMEacuteM MUacuteLTIPLOS DERIVADOS O MESMO CONCEITO AS DIFERENTES TRADUCcedilOtildeES DE UMA MESMA RAIZ Rawderson Rangel 51

A ANAacuteLISE DO DISCURSO NA INTERPRETACcedilAtildeO BIacuteBLICAThaiacutes de Oliveira Viriacutessimo 63

ldquoNO DIA DO SENHORrdquo ndash OS ATOS O EVENTO A AUTOEXPRESSAtildeO UMA BREVE REFLEXAtildeO SOBRE AS TRADICcedilOtildeES LITUacuteRGICAS E SOBRE OS TER-MOS LITURGIA CULTO E ADORACcedilAtildeOTheoacutegenes Eugecircnio Figueiredo 86

LITURGIA E IDENTIDADE RELIGIOSA NO APOCALIPSE DE JOAtildeOValtair A Miranda 98

9TeoloacutegicaRevista Brasileira de Teologia ISSN 1807-7056 nordm 8 outdez Rio de Janeiro 2020 p 9-22

DECISOtildeES CRISTOLOacuteGICAS DOS SETE CONCIacuteLIOS ECUMEcircNICOS

Cliff Iuri de Souza Gonccedilalves1

Walter Ferreira da Silva Juacutenior2

RESUMO A palavra trindade natildeo aparece na Biacuteblia Sagrada mas eacute um tema que norteia

as bases de feacute da Igreja Cristatilde No credo apostoacutelico que foi editado ao longo dos tempos houve vaacuterios acreacutescimos e retiradas de termos sobre quem seria Jesus Deus e o proacuteprio Espiacuterito Santo ateacute chegar agrave forma conhecida atualmen-te Este eacute um dos temas muito trabalhado nos conciacutelios ecumecircnicos entre os seacuteculos IV-VIII e sobre o qual ateacute os dias atuais natildeo existe um consenso A tentativa de definir as trecircs pessoas da Trindade eacute uma tarefa aacuterdua e complexa Este trabalho portanto visa traccedilar um panorama desse recorte da histoacuteria do cristianismo enfatizando as principais decisotildees relacionadas a Cristo De Niceacuteia I (325) a Niceacuteia II (787) satildeo abordadas as principais heresias seus principais fundadores e as respostas dos conciacutelios para cada uma delas com as respectivas conclusotildees dos conciacutelios

Palavras-chave Decisotildees cristoloacutegicas Conciacutelios ecumecircnicos Heresias Trin-dade Histoacuteria do cristianismo

ABSTRACT The word trinity is a concept that does not appear in the Holy Bible but it

is a theme that guides the faith bases of the Christian Church The apostolic creed which has been edited throughout the ages has had several additions and withdrawals from terms about who Jesus God and the Holy Spirit would be until reaching the form known today This is one of the themes that has been widely worked on in the ecumenical councils between the 4th and 8th centuries and which to this day does not have a consensus The attempt to define the three persons of the Trinity is an arduous and complex task This work therefore aims to provide an overview of this section of the history of Christianity emphasizing

1 Bacharel em Engenharia de Petroacuteleo pela Universidade Tiradentes Mestre em Engenharia Quiacutemica pela Universidade Federal de Sergipe e Doutorando em Engenharia Quiacutemica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro Graduando em Teologia pelo Seminaacuterio Teoloacutegico Batista do Sul do Brasil 2 Graduado e Licenciatura em Histoacuteria Poacutes-Graduado em Teologia Atualmente eacute professor no Seminaacuterio Teoloacutegico Batista do Sul do Brasil

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the main decisions related to Christ From Nicaea I (325) to Nicaea II (787) the main heresies their main founders and the councilsrsquo responses to each of them are addressed with the respective council conclusions

Keywords Christological decisions Ecumenical councils Heresies Trinity History of Christianity

INTRODUCcedilAtildeOApoacutes a morte e a ressureiccedilatildeo de Cristo os apoacutestolos possuiacuteam uma grande

missatildeo em suas matildeos o questionamento sobre quem era Jesus Cristo pairava entre os adeptos do novo movimento (mais tarde denominado de cristianismo) e eles precisavam dar respostas Antes mesmo de sua morte Jesus Cristo havia perguntado aos seus disciacutepulos Ὑμεῖς δὲ τίνα με λέγετε εἶναι (ldquoHymeis de tiacutena me leacutegete einairdquo - Vocecircs no entanto quem vocecircs dizem que eu sou) Esta pergunta foi respondida por Pedro Τὸν Χριστὸν τοῦ Θεοῦ (ldquoTon Christon tou Theourdquo - O Cristo de Deus)

Mesmo sendo disciacutepulos para alguns ainda natildeo estava claro quem era Jesus Apoacutes a morte e ressureiccedilatildeo Tomeacute ainda precisou tocar em Jesus para ter certeza de que ali estava o Cristo ressuscitado Trezentos anos depois essa tarefa natildeo tinha ficado mais faacutecil Pelo contraacuterio se aqueles que estiveram com Cristo em carne natildeo haviam percebido como poderiam aqueles que natildeo andaram com Ele somente ouviram falar entender a ideia de Jesus como Deus Ou como Salvador

Portanto desde a fundaccedilatildeo do cristianismo a igreja tem lidado com contro-veacutersias no que diz respeito agrave aceitaccedilatildeo de Cristo como Deus ou como humano Muitas ideias surgiram principalmente entre os seacuteculos IV ndash VIII para tentar sistematizar o estudo da pessoa de Cristo comumente chamado de Cristologia Alguns desses pensamentos que contrastavam com as crenccedilas da igreja embora rotuladas de ldquohereacuteticasrdquo provocaram debates significativos sobre a pessoa de Cristo Esses debates convocados satildeo chamados de conciacutelios3

O primeiro conciacutelio da igreja eacute o mencionado no capiacutetulo 15 de Atos dos Apoacutestolos onde Lucas relata o Conciacutelio de Jerusaleacutem em 50 dC liderado por Tiago com o objetivo de discutir sobre a conversatildeo dos judeus ao cristianismo e a difusatildeo da Palavra aos gentios4 Depois apareceu a ameaccedila do gnosticismo

3 DIEgraveGUE Ricardo Christological controversies of the first four ecumenical councils B A Leavell College June 27 20144 KELLY Joseph F The Ecumenical Councils of the Catholic Church (Collegeville Minnesota Liturgical Press 2009)

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e de outras doutrinas semelhantes no seacuteculo III quando Cipriano era bispo de Cartago foi debatida a questatildeo da readmissatildeo dos que tinham caiacutedo5

Um fator limitante para que as discussotildees prosseguissem era a disponibili-dade dos envolvidos para isso pois muitos deles estavam sendo perseguidos ou fugindo Com o fim da perseguiccedilatildeo promovido por Constantino no iniacutecio do seacuteculo IV houve mais seguranccedila e liberdade para prosseguir o debate de controveacutersias teoloacutegicas Ideias controversas dentro do impeacuterio poderiam dividi- lo e Constantino natildeo queria ameaccedilar a unidade do impeacuterio Assim o primeiro conciacutelio ecumecircnico foi convocado6

Sete conciacutelios ecumecircnicos foram chamados no total entre os seacuteculos IV-VIII Dentre eles os quatro primeiros destacam-se por sua autoridade doutrinaacuteria e por sua importacircncia histoacuterica Niceacuteia I e Constantinopla I lanccedilam base para as questotildees da trindade enquanto Eacutefeso e Calcedocircnia tratam com mais afinco a questatildeo da encarnaccedilatildeo7

1 NICEacuteIA (325)O Primeiro Conciacutelio Ecumecircnico foi convocado pelo Imperador Constantino

o Grande em 325 em 20 de maio O Conselho reuniu-se em Niceacuteia na proviacutencia de Bitiacutenia na Aacutesia Menor e foi formalmente aberto pelo proacuteprio Constantino O Conselho aprovou 20 cacircnones incluindo o Credo Niceno o Cacircnon das Escrituras Sagradas (Biacuteblia Sagrada) e estabeleceu a celebraccedilatildeo da Pascha (Paacutescoa)

Aleacutem dessas questotildees a pessoa de Cristo foi debatida nesse conciacutelio A prin-cipal heresia debatida foi o arianismo Aacuterio era padre em Alexandria e no iniacutecio do seacuteculo IV seu paradigma de pensamento cristatildeo estava ganhando forccedila8 Em uma carta escrita a Euseacutebio bispo de Nicomeacutedia em 321 Aacuterio advertiu

[] mas natildeo podemos dar ouvidos nem mesmo pensar em debelar estas heresias sem que nos ameacem com mil mortes Noacutes pensamos e afir-mamos como temos pensado e continuamos a ensinar que o Filho natildeo eacute ingecircnito nem participa absolutamente do ingecircnito nem derivou de alguma substacircncia mas que por sua proacutepria vontade e decisatildeo existiu antes dos tempos e era inteiramente Deus unigecircnito e imutaacutevel Mas antes de ter sido gerado ou criado ou nomeado ou estabelecido ele natildeo

5 GONZAacuteLEZ Justo L Uma Histoacuteria Ilustrada do Cristianismo - Volume 1 Ed Vida Nova6 GONZAacuteLEZ Justo L Op cit 7 ALBERIGO Giuseppe (Ed) Historia de los concilios ecumeacutenicos Siacutegueme 19938 HASBROUCK Ryan The First Four Ecumenical Councils as Ineffective Means to Control the Rise and Spread of Heterodox Christian Ideologies Dept of History University of Colorado 2009

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existia pois ele natildeo era ingecircnito Somos perseguidos porque afirmamos que o Filho tem um iniacutecio enquanto Deus eacute sem iniacutecio9

A premissa fundamental de Aacuterio era que ele deduzia uma concepccedilatildeo da absoluta unidade e transcendecircncia de Deus somente Deus eacute ldquoprinciacutepio natildeo geradordquo e a essecircncia da divindade natildeo pode ser dividida nem ser comunicada a outros mesmo que o que existe tenha sido chamado a ser a partir do nada Um dos slogans mais ceacutelebres e discutidos sobre o Logos consistia precisamente na afirmaccedilatildeo segundo a qual ldquohavia um tempo em que ele natildeo erardquo slogan que comprometia a unicidade de Deus10

Na visatildeo dos anti-arianos eacute da proacutepria natureza do Pai gerar o Filho o Pai nunca foi outro senatildeo o Pai portanto o Filho e o Pai devem ter existido desde toda a eternidade o Pai gerando eternamente o Filho A frase de vital impor-tacircncia na resposta ortodoxa ao arianismo era ldquode uma substacircncia (homoousios) com o Pairdquo Esta frase afirma que o Filho compartilha o mesmo ser que o Pai e portanto eacute totalmente divino11 Assim nasce o credo Niceno que combatia as principais heresias arianas aleacutem de definir questotildees cristoloacutegicas

Conforme a tradiccedilatildeo dos Evangelhos e dos Apoacutestolos noacutes cremos em um soacute Deus Pai todo poderoso autor criador e ordenador providente do universo de quem todas as coisas adquirem existecircncia E num soacute Senhor Jesus Cristo seu filho Deus unigecircnito mediante o qual tudo existe o qual foi gerado pelo pai antes de todas as eacutepocas Deus de Deus tudo de tudo uacutenico de uacutenico completo de completo rei de rei senhor de senhor [] e se algueacutem disser que o Filho eacute uma criatura como qualquer outra ou uma prole como qualquer outra ou uma obra como qualquer outra seja anaacutetema12

Portanto atraveacutes desse conciacutelio fica decidido que Jesus eacute Deus verdadeiro com a mesma essecircncia (consubstancial) Assim trecircs foram as decisotildees do con-ciacutelio a primeira ediccedilatildeo do credo niceno o termo homoousios (ομοούσιος) e a condenaccedilatildeo de Aacuterio A carta que condena Aacuterio e seus disciacutepulos satildeo bem claras ao anatematizar suas opiniotildees classificando-as como blasfemas e dementes13

Examinou-se de iniacutecio perante Constantino nosso soberano mui amado de Deus a impiedade e irregularidade de Aacuterio e de seus disciacutepulos De-

9 BETTENSON H Documentos da Igreja Cristatilde Carta de Aacuterio a Euseacutebio bispo de Nicomeacutedia (c321) ASTE Satildeo Paulo 2011 10 ALBERIGO Giuseppe Op Cit 11 DAVIS Leo Donald The first seven ecumenical councils (325-787) Their History and Theology Collegeville Minnesota The Liturgical Press 198312 BETTENSON H Op cit O credo de dedicaccedilatildeo (341) ndash Atanaacutesio 13 SCHMELING Gaylin R The Christology of the Seven Ecumenical Councils

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cidiu-se por unanimidade que devem ser anatematizadas suas opiniotildees iacutempias e todas as suas afirmaccedilotildees e expressotildees blasfematoacuterias tal como estatildeo sendo emitidas e divulgadas tais como ldquoo Filho de Deus eacute do que natildeo eacuterdquo ldquohouve [um tempo] quando natildeo existiardquo ou afirmaccedilatildeo de que Filho de Deus em virtude de seu livre arbiacutetrio eacute capaz do bem e do mal ou de que pode ser chamado de criatura ou de feitura Todas essas afirmaccedilotildees anatematizadas pelo santo Siacutenodo que natildeo tolera declaraccedilotildees tatildeo iacutempias tatildeo dementes e blasfematoacuterias14

Entre os apoiadores de Aacuterio podem-se contar Atanaacutesio bispo de Anazarbus Narciso de Neronias Euseacutebio de Cesareia e Asterius Dos anti-arianos podem ser citados os Grandes Capadoacutecios (Basiacutelio o Grande Gregoacuterio de Nazianzus - irmatildeo mais novo de Basiacutelio e Gregoacuterio de Nissa) e Atanaacutesio de Alexandria sendo este de grande importacircncia para a histoacuteria do conciacutelio que sucedeu o de Niceacuteia15

2 CONSTANTINOPLA (381)Atanaacutesio era secretaacuterio de Alexandre o Bispo de Alexandria Quando Ale-

xandre morreu Atanaacutesio foi eleito bispo de Alexandria Euseacutebio de Nicomeacutedia um dirigente ariano que possuiacutea contato direto com Constantino fez declaraccedilotildees sobre Atanaacutesio as quais levaram esse rei a decretar o exiacutelio de Atanaacutesio em Treacuteveris no Ocidente16

Constantino adoeceu e morreu no ano 337 logo em seguida o trono foi assu-mido por seu filho Constacircncio que revogou todos os exiacutelios e Atanaacutesio retornou a Alexandria A mudanccedila de lideranccedila teve um profundo impacto na controveacutersia ariana pois Constacircncio tambeacutem proacuteximo de Euseacutebio de Nicomeacutedia tornou-o bispo de Constantinopla e simpatizou-se com as visotildees arianas17 Tentando combater o arianismo Apolinaacuterio acabou se excedendo em seu pensamento razatildeo por que sua teoria tornou-se uma heresia

Apolinaacuterio alegou que o nous (mente alma) de Cristo era essencialmente o Logos (divino) em uma forma glorificada e espiritualizada da humanidade (seu corpo)18 Ele acreditava que o Logos havia substituiacutedo a alma de Jesus Por ter uma ideia opressiva da natureza divina de Jesus Apolinaacuterio cancelou a natureza

14 BETTENSON H Op cit Carta do Siacutenodo de Niceacuteia (325) ndash Condenaccedilatildeo de Aacuterio15 DIEgraveGUE Ricardo Op cit16 GONZAacuteLEZ Justo L Op cit17 RUBENSTEIN Richard When Jesus Became God The Struggle to Define Christianity during the Last Days of Rome Orlando Harcourt Inc 200018 ANDERSON William P A Journey through Christian Theology Minneapolis MN Fortress Press 2nd edition 2010

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humana de Jesus19 Isso se chama Monofisismo do grego monos ldquoapenas umardquo e physis ldquonaturezardquo e eacute a crenccedila de que como resultado da encarnaccedilatildeo a huma-nidade de Jesus foi tatildeo infundida por Sua divindade que Ele tinha apenas uma natureza divina20 Estava formado o palco para o segundo conciacutelio ecumecircnico

Atanaacutesio foi um dos maiores apologista de Cristo durante o conciacutelio de Constantinopla Para combater o apolinarismo ele argumentou que Jesus era simultaneamente homem e Deus A fim de evidenciar sua posiccedilatildeo mostrou que foi a encarnaccedilatildeo que permitiu que Jesus cumprisse Seu papel pretendido na Terra Colocando seu argumento em termos negativos Atanaacutesio estaria dizendo que se Jesus natildeo tivesse nascido de uma mulher e portanto habitado um corpo humano e vivido uma vida humana Ele natildeo poderia ter concedido salvaccedilatildeo agrave humanidade atraveacutes de Sua morte21

No comeccedilo de seus discursos Atanaacutesio natildeo usou muito o homoousios niceno mas gradualmente viu toda a implicaccedilatildeo desse conceito e se tornou seu defen-sor mais resoluto A semelhanccedila e a unidade do Pai e da Palavra natildeo podem consistir apenas em harmonia e concordacircncia de mente e vontade mas devem respeitar a essecircncia (ουσία) A divindade do Pai eacute idecircntica agrave divindade do Logos O Logos eacute diferente do Pai porque Ele veio do Pai mas como Deus o Logos e o Pai satildeo um e o mesmo O que eacute dito do Pai eacute dito do Filho exceto que o Filho natildeo eacute chamado Pai Pode-se dizer que os seres humanos satildeo homoousioi porque compartilham a natureza humana mas natildeo podem possuir uma mesma substacircncia (υπόστασις) idecircntica22

Esse eacute o ponto para o qual o credo foi direcionado a palavra Deus conota precisamente a mesma verdade quando vocecirc fala de Deus o Pai como acontece quando vocecirc fala de Deus o Filho Conota a mesma verdade Se vocecirc contempla o Pai que eacute uma apresentaccedilatildeo distinta da divindade obteacutem uma visatildeo mental do uacutenico Deus verdadeiro Se vocecirc contempla o Filho ou o Espiacuterito obteacutem uma visatildeo do mesmo Deus embora a apresentaccedilatildeo seja diferente a realidade eacute idecircnticardquo23

Creio em um soacute Deus Pai Todo-Poderoso criador do ceacuteu e da terra de todas as coisas visiacuteveis e invisiacuteveis Creio em um soacute Senhor Jesus Cristo

19 BELLITTO Christopher M The General Councils A History of the Twenty-One Church Councils from Nicaea to Vatican II Mahwah NJ Paulist Press 200220 JOHNSON Douglas W The Great Jesus Debates 4 Early Church Battles about the Person and Work of Jesus Saint Louis MO Concordia Publishing House 200521 HASBROUCK Ryan Op cit 22 DAVIS Leo Donald Op cit23 DAVIS Leo Donald Op cit

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Filho Unigecircnito de Deus nascido do Pai antes de todos os seacuteculos Deus de Deus luz da luz Deus verdadeiro de Deus verdadeiro gerado natildeo criado consubstancial ao Pai Por ele todas as coisas foram feitas E por noacutes homens e para nossa salvaccedilatildeo desceu dos ceacuteus e se encarnou pelo Espiacuterito Santo no seio da Virgem Maria e se fez homem

A foacutermula proposta por Atanaacutesio resolveu temporariamente o dilema cris-toloacutegico que atormentava a igreja primitiva No entanto a maacute interpretaccedilatildeo do credo em uma capacidade diferente logo criou mais inquietaccedilatildeo e a necessidade de outro conselho ecumecircnico

3 EacuteFESO (431)Mesmo depois de Constantinopla I as questotildees voltaram a aparecer Como

poderia Jesus ser homem e Deus ao mesmo tempo Quais eram as implicaccedilotildees dessa afirmaccedilatildeo para Maria Era Jesus humano em algumas situaccedilotildees e Deus em outras Seria Maria matildee apenas da parte humana ou tambeacutem da parte divina Como fazer essa distinccedilatildeo24

O proacuteximo episoacutedio das controveacutersias cristoloacutegicas ocorreu por intermeacutedio de Nestoacuterio um partidaacuterio da escola de Antioquia que se tornou patriarca de Constantinopla em 428 Pelo fato de essa cidade ter sido declarada a capital do Impeacuterio Oriental Antioquia e Alexandria se tornaram rivais Cirilo que era bispo de Alexandria levantou-se para combater as ideias de Nestoacuterio25

O motivo imediato da controveacutersia foi o termo theotokos que era usado para Maria Theotokos geralmente traduzido por ldquomatildee de Deusrdquo literalmente quer dizer ldquogenitora de Deusrdquo Ao explicar sua oposiccedilatildeo a esse termo Nestoacuterio dizia que Deus em Jesus Cristo teria se unido a um ser humano Como Deus eacute uma pessoa e o ser humano eacute outra em Cristo devem estar presentes natildeo soacute duas naturezas mas tambeacutem duas pessoas O que nasceu de Maria foi a pessoa e natureza humana e natildeo a divina Por isso Maria eacute Christotokos (genitora de Cristo) e natildeo theotokos (genitora de Deus)26

Cirilo insistiu na unidade do divino e do humano a ponto de poder dizer que o Verbo sofreu por noacutes natildeo porque o divino sofreu (uma impossibilidade) mas que o divino e o humano se completaram na mesma pessoa27 As duas naturezas

24 BELLITTO Christopher M Histoacuteria dos 21 conciacutelios da Igreja de Niceacuteia ao Vaticano II Traduccedilatildeo de Claacuteudio Queiroz de Godoy Satildeo Paulo Loyola 201025 GONZAacuteLEZ Justo L Op cit26 GONZAacuteLEZ Justo L Op cit27 KELLY Joseph F

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que foram unidas a fim de formarem a verdadeira unidade (uniatildeo hipostaacutetica) eram diferentes mas de ambas houve um soacute Cristo e um soacute Filho Eacute nesse sentido que Cristo nasceu na expressatildeo biacuteblica da carne de mulher embora existisse e fosse gerado pelo Pai antes de todos os seacuteculos28

Cirilo escreveu doze anaacutetemas e enviou a Constantinopla juntamente com uma extensa carta que expunha sua doutrina Dentre os principais pontos eacute interessante ressaltar os pontos um e dois que falam sobre Maria e sobre a uniatildeo hipostaacutetica

Se algueacutem natildeo confessar que o Emanuel eacute verdadeiro Deus e que portan-to a Santa Virgem eacute Theotoacutekos porquanto deu agrave luz segunda a carne ao Verbo de Deus feito carne seja anaacutetema Se algueacutem natildeo confessar que o Verbo de Deus Pai estava unido pessoalmente [kathrsquohypoacutestasin] agrave carne sendo com ela propriamente um soacute Cristo ou seja um soacute e mesmo Deus e homem ao mesmo tempo seja anaacutetema29

Enquanto isso Nestoacuterio foi deposto e enviado a um mosteiro de Antioquia Mais tarde ele foi transferido para a distante cidade de Petra e por fim a um oaacutesis no deserto da Liacutebia onde passou o resto de seus dias30

4 CALCEDOcircNIA (451)Apoacutes o Conciacutelio de Eacutefeso o debate sobre as duas naturezas de Jesus estava

em andamento Eacute importante lembrar que com a Escola Alexandrina liderada por Cirilo a uniatildeo foi feita de tal maneira que o Logos substituiu a alma e portanto a divindade de Jesus submergiu agrave sua humanidade No entanto para a Escola de Antioquia a ldquouniatildeordquo foi feita com a distinccedilatildeo de ambas as naturezas que permaneceram separadas31

A controveacutersia cristoloacutegica de Eacutefeso culminou com a condenaccedilatildeo de Nestoacuterio e o seu envio para o exiacutelio No entanto quando Dioacutescoro substituiu Cirilo no patriarcado em Alexandria em 444 um novo embate estava para surgir Agora a heresia era liderada por Ecircutico um monge que morava em Constantinopla Os ideais pregados por Ecircutico eram apoiados por Dioacutescoro o que dava ao monge certa ousadia e arrogacircncia para falar Mal sabia ele que as intenccedilotildees de Dioacutescoro eram poliacuteticas ele esperava que Ecircutico fosse condenado no conciacutelio para poder ter uma causa a defender contra Flaviano o novo patriarca de Constantinopla32

28 BETTENSON H Op cit Exposiccedilatildeo de Cirilo29 BETTENSON H Op cit Anaacutetemas de Cirilo de Alexandria30 GONZAacuteLEZ Justo L Op cit31 BOKENKOTTER Thomas A Concise History of the Catholic Church New York DoubleDay 200432 GONZAacuteLEZ Justo L Op cit

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Dedicado agrave teologia de Cirilo e altamente ortodoxo Ecircutico comeccedilou a ensinar que antes da Encarnaccedilatildeo Cristo era de duas naturezas mas depois havia um Cristo um Filho um Senhor em uma hipoacutestase Ele repudiou a existecircncia de duas naturezas apoacutes a Encarnaccedilatildeo em oposiccedilatildeo agraves Escrituras e ao ensino dos Pais33

ldquoEu adorordquo ele insistiu ldquouma natureza a de Deus que se fez carne e se tornou homemrdquo No entanto admitiu que Cristo nasceu da Virgem portanto era subs-tancial conosco (humanos) e era Deus perfeito e homem perfeito No entanto a carne de Cristo natildeo era na opiniatildeo de Ecircutico consubstancial agrave carne humana comum mas reconheceu que a humanidade de Cristo era plena sem falta de uma alma racional como era para os apolinaristas A humanidade de Cristo tambeacutem natildeo era uma mera aparecircncia como era para os docetistas tampouco a Palavra e a carne foram fundidas em uma natureza mista Ainda assim ele repetiu obstinadamente que Cristo era de duas naturezas antes da Encarnaccedilatildeo e de apenas uma depois da encarnaccedilatildeo34

Leatildeo o grande foi o principal defensor da ortodoxia no conciacutelio de Calcedocirc-nia e sua defesa gerou o Tomo de Leatildeo A definiccedilatildeo desse conciacutelio portanto pode ser vista como proposiccedilotildees apologeacuteticas aos pensamentos do eutiquianismo

Fieacuteis aos santos pais todos noacutes perfeitamente unanimes ensinamos que se deve confessar um soacute e mesmo Filho nosso Senhor Jesus Cristo perfei-to quanto agrave divindade e perfeito quanto agrave humanidade verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem constando de alma racional e de corpo consubstancial [homooysios] ao Pai segundo a divindade e consubstan-cial a noacutes segundo a humanidade ldquoem todas as coisas semelhante a noacutes excetuando o pecadordquo gerado segundo a divindade antes dos seacuteculos pelo Pai e segundo a humanidade por noacutes e para nossa salvaccedilatildeo gerado da Virgem Maria matildee de Deus [Theotoacutekos] Um soacute e mesmo Cristo Filho Senhor Unigecircnito que se deve confessar em duas naturezas inconfundiacuteveis e imutaacuteveis conseparaacuteveis e indivisiacuteveis A distinccedilatildeo de naturezas de modo algum eacute anulada pela uniatildeo mas pelo contraacuterio as propriedades de cada natureza permanecem intactas concorrendo para formar uma soacute pessoa e subsistecircncia [hypoacutestasis] natildeo dividido ou separado em duas pessoas mas um soacute e mesmo Filho Unigecircnito Deus Verbo Jesus Cristo Senhor conforme os profetas outrora a seu respeito testemunharam e o mesmo Jesus Cristo nos ensinou e o credo dos pais nos transmitiu 35

33 DAVIS Leo Donald Op cit34 DAVIS Leo Donald Op cit35 BETTENSON H Op cit A definiccedilatildeo de Calcedocircnia (451)

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5 CONSTANTINOPLA II (553)O periacuteodo poacutes Calcedocircnia foi muito parecido com o de Niceacuteia em ambos os

conciacutelios uma soluccedilatildeo basicamente ocidental para um problema oriental havia sido introduzida na dieta teoloacutegica do Oriente Depois dos dois conciacutelios o Oriente empreendeu muito tempo e esforccedilo para digerir e assimilar tudo o que ficou decidido No caso de Niceacuteia o mundo romano gradualmente aceitou seu credo O arianismo permaneceu firme entre as tribos alematildes por um tempo mas muito lentamente sucumbiu a Niceacuteia No caso de Eacutefeso e Calcedocircnia seccedilotildees do mundo romano e aleacutem entraram em cisma em vez de aceitar suas decisotildees e assim continuam ateacute os nossos dias O conciacutelio de Constantinopla II foi um esforccedilo para mostrar aos (ateacute entatildeo) monofisitas cismaacuteticos que Calcedocircnia realmente preservava os valores teoloacutegicos36

Quando Justino morreu em 527 seu sobrinho Justiniano assumiu o impeacuterio Bizantino com o principal ideal de unir o impeacuterio No entanto ele precisaria reunificar uma igreja dividida pela questatildeo cristoloacutegica Justiniano achava que o conciacutelio de Calcedocircnia tinha se pronunciado corretamente com respeito agraves naturezas de Cristo mas ao mesmo tempo percebia que os monofisitas mais moderados tinham razatildeo ao apontar para os perigos que essa doutrina poderia trazer consigo 37

Assim o conciacutelio foi solicitado e aconteceu em 5 de maio de 553 no grande salatildeo anexo ao palaacutecio patriarcal em Constantinopla Estavam presentes os representantes do patriarca de Jerusaleacutem todos os 151 a 168 bispos incluindo seis a nove da Aacutefrica38

O objetivo de convocar o conciacutelio de Constantinopla II foi o de condenar as obras de trecircs homens a saber Teodoro de Mopsueacutestia Teodoreto de Cyr e Ibas de Edessa que tiveram suas declaraccedilotildees individuais agrupadas e chamadas de ldquotrecircs capiacutetulosrdquo Eles foram acusados de simpatizarem com o nestorianismo e de favorecerem o monofisismo ao afirmar que Jesus tinha uma soacute natureza o divino sobrepujando o humano Os ldquocapiacutetulosrdquo foram condenados nesse conciacutelio 39

Se algueacutem natildeo reconhece a uacutenica natureza ou substacircncia (oysia) do Pai Filho e Espiacuterito Santo sua uacutenica virtude e poder uma Trindade consubs-tancial seja anaacutetema Porque existe um soacute Deus e Pai do qual procedem

36 DAVIS Leo Donald Op cit37 GONZAacuteLEZ Justo L Op cit38 DAVIS Leo Donald Op cit39 BELLITTO Christopher M Op cit

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todas as coisas e um soacute Senhor Jesus Cristo atraveacutes do qual satildeo todas as cosias e um soacute Espiacuterito Santo no qual estatildeo todas as coisas 40

Portanto o Conciacutelio de Constantinopla II esclareceu mais uma vez os ensi-namentos da Igreja sobre as duas naturezas de Jesus unidas hipostaticamente em uma soacute pessoa Os padres natildeo soacute condenaram os hereacuteticos e as heresias como tambeacutem os que simpatizavam com elas 41

6 CONSTANTINOPLA III (680-681)Em 7 de novembro de 680 o conciacutelio de Constantinopla III abriu em uma

grande sala abobadada - o Trullus - no palaacutecio imperial com apenas quarenta e trecircs bispos presentes O proacuteprio imperador abriu o conciacutelio e presidiu as onze primeiras sessotildees O conciacutelio teve dezoito sessotildees separadas por longos inter-valos ateacute 16 de setembro de 68142

Os legados papais comeccedilaram exigindo que o clero de Constantinopla expli-casse seus ensinamentos sobre monoenergismo e monotelismo A convite do imperador Jorge de Constantinopla e Macaacuterio de Antioquia responderam que eles ensinavam apenas doutrinas definidas pelos conselhos Seguiu-se a leitura dos atos dos Conciacutelios de Eacutefeso Calcedocircnia e Constantinopla II43

O patriarca Seacutergio de Constantinopla depois de tentar sem sucesso vaacuterias maneiras de aproximar-se dos monofisitas propocircs a doutrina chamada de ldquomo-notelismordquo Essa palavra vem das raiacutezes gregas mono (um) e thelema (vontade) O que Seacutergio propunha eacute que em Cristo ao mesmo tempo em que havia duas naturezas a divina e a humana como o concilio de Calcedocircnia declarara havia uma soacute vontade Ao que parece o que Seacutergio queria dizer era que em Cristo natildeo havia outra vontade aleacutem da divina Quando perguntaram ao papa Honoacuterio o que ele pensava da foacutermula de Seacutergio o papa a aprovou Poreacutem a oposiccedilatildeo em vaacuterias regiotildees do Impeacuterio natildeo demorou a se manifestar 44

O teoacutelogo que mais se distinguiu nesse sentido foi Maacuteximo de Crisoacutepolis que eacute conhecido por Maacuteximo ldquoo Confessorrdquo Mais tarde em 648 a oposiccedilatildeo ao monotelismo chegou a tal ponto que o imperador Constante II proibiu qualquer discussatildeo sobre se em Cristo havia uma ou duas vontades Quando o imperador promulgou essa proibiccedilatildeo o Impeacuterio tinha perdido o interesse de se aproximar

40 BETTENSON H Op cit Os ldquotrecircs capiacutetulosrdquo ndash Os cacircnones do segundo conciacutelio de Constantinopla (553)41 BELLITTO Christopher M Op cit42 DAVIS Leo Donald Op cit43 GONZAacuteLEZ Justo L Op cit44 GONZAacuteLEZ Justo L Op cit

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dos monofisitas Siacuteria e Egito as regiotildees do Impeacuterio onde o monofisismo tinha a maior parte dos seus adeptos haviam sido conquistadas pouco antes pelos aacuterabes Tal fato significaria que a partir de entatildeo a corte de Constantinopla em vez de se preocupar com a boa vontade dos monofisitas de Egito e Siacuteria tinha de melhorar as suas relaccedilotildees com os cristatildeos calcedonenses que eram a maioria tanto nos territoacuterios que ainda pertenciam ao Impeacuterio como no Ocidente45

Em consequecircncia o sexto conciacutelio ecumecircnico que se reuniu em Constanti-nopla em 680 e 681 condenou o monotelismo e reafirmou a Definiccedilatildeo de feacute de Calcedocircnia Entre os monotelitas condenados especificamente pelo conciacutelio es-tava o papa Honoacuterio O caso de um papa condenado nominalmente como herege por um conciacutelio ecumecircnico foi uma das dificuldades que os catoacutelicos tiveram de enfrentar quando no seacuteculo XIX conseguiram que o conciacutelio Vaticano I promulgasse a infalibilidade papal46

7 NICEacuteIA II (787)A uacuteltima grande controveacutersia que atingiu a igreja durante o periacuteodo aqui

estudado (ateacute o seacuteculo VIII) questionava o uso de imagens no culto puacuteblico A igreja cristatilde antiga parecia natildeo se opor ao uso delas para decoraccedilatildeo como imagens alusivas a episoacutedios da Biacuteblia No entanto quanto mais pagatildeos se con-vertiam mais os liacutederes temiam que as imagens levassem agrave praacutetica da idolatria Alguns no entanto reforccedilavam o valor das imagens como ldquolivros iletradosrdquo uma vez que muitos natildeo sabiam ler Assim surgiram dois partidos que receberam o nome de ldquoiconoclastasrdquo (destruidores de imagens) e ldquoiconodulosrdquo (adoradores de imagens) 47

Os iconoclastas se baseavam em passagens biacuteblicas que proiacutebem a idolatria como Ecircxodo 204-5 Os iconodulos por sua vez relacionaram a discussatildeo com as controveacutersias cristoloacutegicas dos seacuteculos anteriores

A razatildeo pela qual eacute possiacutevel representar os misteacuterios divinos atraveacutes de imagens eacute que em Cristo o proacuteprio Deus nos deu sua imagem Natildeo deixar representar a Cristo equivaleria a negar a sua humanidade Se Cristo foi homem deve ser possiacutevel representaacute-lo assim como qualquer outro ho-mem pode ser representado Aleacutem disso o primeiro criador das imagens foi o proacuteprio Deus ao criar a humanidade agrave sua imagem48

45 GONZAacuteLEZ Justo L Op cit46 BELLITTO Christopher M Op cit47 GONZAacuteLEZ Justo L Op cit48 GONZAacuteLEZ Justo L Op cit

21TeoloacutegicaRevista Brasileira de Teologia ISSN 1807-7056 nordm 8 outdez Rio de Janeiro 2020 p 9-22

Embora os bispos tivessem sido notavelmente longiacutenquos em seus debates eles foram bastante concisos em seu decreto Eles disseram que Cristo nos livrou da loucura idoacutelatra e sempre continua sustentando Sua Igreja mas alguns mes-mo os sacerdotes se desviaram deixando de ldquodistinguir entre santo e profano estilizando as imagens de Nosso Senhor e de Seus santos da mesma maneira como as estaacutetuas dos iacutedolos diaboacutelicosrdquo Os bispos acrescentaram a aceitaccedilatildeo dos seis conciacutelios ecumecircnicos anteriores especialmente o que se encontrava ldquona ilustre metroacutepole de Niceacuteiardquo49

Em seguida eles mantiveram inalteradas todas as tradiccedilotildees eclesiaacutesticas que foram transmitidas por escrito ou verbalmente uma das quais eacute a realizaccedilatildeo de representaccedilotildees pictoacutericas agradaacuteveis agrave histoacuteria da pregaccedilatildeo dos Evangelhos uma tradiccedilatildeo uacutetil em muitos aspectos mas especialmente em que a encarnaccedilatildeo da Palavra de Deus eacute mostrada como real e natildeo meramente fantaacutestica50 Em resumo o uso das imagens foi restaurado para veneraccedilatildeo (dulia) mas natildeo para adoraccedilatildeo (latria)51

CONSIDERACcedilOtildeES FINAISDiante de inuacutemeras controveacutersias e debates eacute interessante perceber como cada

decisatildeo tomada nos conciacutelios ajudou a entender temas cristoloacutegicos Percebe-se que desde o iniacutecio existe uma tentativa de explicar e sistematizar a natureza de Cristo de definir em quais momentos seu lado humano eou divino esteve em accedilatildeo As heresias debatidas foram importantes para que as respostas levantadas pela Igreja formassem ou pelo menos ajudassem a formar o pensamento que temos hoje sobre quem eacute Cristo e sua natureza Eacute inevitaacutevel que temas adja-centes aparecessem como a proacutepria natureza de Maria e a adoraccedilatildeo a imagens Estudar esse recorte da histoacuteria do cristianismo eacute portanto fundamental para compreender o pensamento da Igreja daqueles seacuteculos e qual a visatildeo que se tinha sobre quem eacute Jesus

O exerciacutecio mental que pode aqui ser realizado eacute o de comparar as mentali-dades e tentar perceber se muita coisa mudou em relaccedilatildeo aos nossos dias Outro exerciacutecio que pode ser feito eacute avaliar o quanto esse conjunto de pensamento do seacuteculo VIII nos influencia hoje

49 BELLITTO Christopher M Op cit50 BELLITTO Christopher M Op cit51 WILLIAMS Terri Cronologia da Histoacuteria Eclesiaacutestica em graacuteficos e mapas Satildeo Paulo Vida Nova 1993

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O LIVRO DE JONAS E O ARREPENDIMENTO VERDADEIRO NA BIacuteBLIA E NA ATUALIDADE

Evelise Cavalcanti52

Teresa Akil53

RESUMO O presente artigo busca analisar a relaccedilatildeo de instabilidade do homem com

o divino atraveacutes da obediecircncia e desobediecircncia desse homem em relaccedilatildeo a Deus bem como ao pecado Analisa-se o reflexo primordial de desobediecircncia a Deus na parte introdutoacuteria do Livro de Jonas contemplando o pecado em si e o relacionamento de Jonas com Deus para que seja pautada e estruturada a misericoacuterdia divina na vida desse profeta A partir dessa concepccedilatildeo busca-se refletir acerca da instabilidade do homem em relaccedilatildeo a Deus na Biacuteblia e na atualidade para traccedilar paracircmetros para que seja aprofundado o arrependimento verdadeiro do ser humano a partir da anaacutelise de Jonas e Davi

Palavras-chave Livro de Jonas Desobediecircncia ao divino Duacutevida Culpa Arrependimento verdadeiro

ABSTRACTThis scientific article seeks to analyze the relationship of manrsquos instability

with the divine through manrsquos obedience and disobedience in relation to God as well as sin In this study the primary reflection of disobedience to God is analyzed in the introductory part of the Book of Jonah contemplating sin itself and Jonahrsquos relationship with God so that divine mercy in Jonah is guided and structured From this conception we seek to reflect on the instability of man in relation to God in the Bible and nowadays to outline parameters so that the true repentance of the human being is deepened based on the analysis of Jonas and David

Keywords Book of Jonah Disobedience to the divine Doubt Guilt True repentance

52 Graduada em Direito (Unifeso)) Graduada em Teologia (Faceten) Poacutes-graduada em Exegese e Interpretaccedilatildeo da Biacuteblia (Fabat) em Histoacuteria de Israel (Kennedy) em Direito Processual Civil (Unican) 53 Doutora em Teologia (PUC-Rio) Mestre em Teologia Biacuteblica (STBSB) Graduada em Teologia (Faculdade Batista do Paranaacute) e em Comunicaccedilatildeo Social (Universidade Estaacutecio de Saacute) Docente das disciplinas da aacuterea biacuteblica (Antigo Testamento) e Exegese coordenadora do Grupo de Estudo e Pesquisa Biacuteblica nas Tradiccedilotildees de Israel

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INTRODUCcedilAtildeO A histoacuteria de Jonas tem sido contada desde a antiguidade Natildeo eacute incomum

encontrarmos em classes infantis ou nas mais altas patentes teoloacutegicas discus-sotildees calorosas sobre as peculiaridades desse personagem tatildeo conhecido

Vaacuterias abordagens tecircm sido temas infindaacuteveis de duacutevidas seria possiacutevel um homem permanecer trecircs dias na barriga de um peixe Seria uma baleia Em que eacutepoca se passou Seria Jonas um profeta desobediente e insensiacutevel Enfim vaacuterias questotildees pertinentes afloram em nosso entendimento

A mais importante e contextualizada questatildeo natildeo se trata da possibilidade material ou emocional da situaccedilatildeo A importacircncia espiritual da histoacuteria tatildeo bem narrada em um dos menores livros da Biacuteblia traz-nos a reflexatildeo sobre a limitaccedilatildeo do homem em qualquer eacutepoca de ser avaliado quanto ao seu verda-deiro arrependimento

A Biacuteblia narra diversos momentos nos mais antigos textos em que os povos inclusive o povo escolhido natildeo conseguiram se manter firmes aos mandamentos de YHWH Em Niacutenive nos parece natildeo ter sido diferente No momento em que a matildeo de Deus mostrou-se pesada o rei se humilha e recebe o perdatildeo poreacutem natildeo mais que uma geraccedilatildeo apoacutes esse mesmo povo se mostra como inimigo mortal de Israel

Haveria acontecido um verdadeiro arrependimento ou o medo e a derrota certa teriam levado os ninivitas a um momentacircneo reconhecimento de seu erro e a uma consequente submissatildeo forccedilada pela situaccedilatildeo Para as consideraccedilotildees e conclusotildees precisamos entender um pouco desse povo e de todo contexto que o envolve

1 JONAS EacutePOCA HISTOacuteRIA AUTORIAJonas eacute descrito de formas diferentes de acordo com a visatildeo de teoacutelogos

diversos Bazioli (2011 p 3) por exemplo descreve Jonas como ldquoo mais estra-nho dos profetasrdquo mas com uma mensagem que produzira efeitos ateacute mesmo naqueles que natildeo o ouviram diretamente Para o autor Jonas fora o mais bem sucedido pregador com um sermatildeo que impactava apenas por meio de palavras Na Biacuteblia conforme enunciado por Alencar (2010) o livro de Jonas faz parte da coleccedilatildeo de livros profeacuteticos situando-se entre os livros de Abdias e Miqueias

Natildeo haacute um consenso absoluto acerca da autoria do livro de Jonas uma vez que o livro natildeo declara o nome do autor Entretanto haacute a tese bastante aceita e estabelecida nos estudos de Erthal et al (2002 p 35) de que ldquoembora o livro

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natildeo declare o nome do autor seguramente foi o proacuteprio Jonas quem o escreveurdquo Para os autores Jonas tem o nome que significa ldquopombordquo sendo apresentado como filho de Amitai Nascera em Gate-Efer cidade situada proacutexima a Nazareacute

Alencar (2010 p 7) por sua vez aponta que eacute impossiacutevel precisar de quem fora a autoria do livro de Jonas visto que na eacutepoca um dos grupos responsaacuteveis pela educaccedilatildeo eram os sacerdotes cuja obrigaccedilatildeo consistia em ensinar ao povo a instruccedilatildeo como uma lei relacionada ao culto e sacrifiacutecio ldquoO autor do livro de Jonas pode ter sua origem entre os saacutebios de Israel pois conhecia bem a tradiccedilatildeo de seu povo bem como a de outros povos Ele devia manter contato com estrangeiros e os considerava com bons olhosrdquo

Para que seja possiacutevel compreender e aprofundar conhecimentos acerca de Jonas e do livro que recebeu o seu nome torna-se indispensaacutevel refletir acerca do contexto histoacuterico do mesmo Dasilva (2003) leciona que o livro de Jonas fora escrito um seacuteculo antes de Jesus proferir as palavras registradas em Mateus 1239-40 no relato de como Deus enviara um profeta judeu para levar sua mensagem de salvaccedilatildeo para uma naccedilatildeo gentiacutelica a Assiacuteria com a capital Niacutenive que possuiacutea uma populaccedilatildeo de mais de 120000 homens O autor ainda complementa que

A histoacuteria de Jonas tatildeo conhecida pela menor crianccedila da Escola Domi-nical eacute geralmente contextualizada e limitada ao milagre do profeta subsistir dentro do ventre de um grande peixe por trecircs dias e trecircs noites ou ao fator de sua desobediecircncia Este livro no entanto natildeo tem como prioridade mostrar a Jonas o peixe sua pregaccedilatildeo ou o povo de Niacutenive Ele guarda na sua linda histoacuteria revelaccedilotildees sobre a pessoa e caraacuteter de Deus O livro foi escrito para revelar um Deus que estaacute sobre noacutes que cuida que orienta que ama e que caminha conosco (DASILVA 2003 p 1)

Fabio (1991) aponta que Jonas vivera em um periacuteodo no qual Israel corria gra-ve risco de ser extinto como naccedilatildeo O autor aponta que em II Reis 1427 ldquoAinda natildeo falara o Senhor em apagar o nome do Israel de debaixo do ceacuteurdquo mas estava perto de tomar tal decisatildeo Na eacutepoca a pobreza era uma marca da sociedade e natildeo havia nem um homem escravizado nem um homem livre As classes sociais estavam praticamente unificadas com o desaparecimento completo da classe meacutedia e a diminuiccedilatildeo significativas da riqueza privada

Paradoxalmente era tremenda a expansatildeo militar e Israel atingira um niacutevel bastante estaacutevel de seguranccedila nacional Percebemos isso em II Reis 142528 atraveacutes das palavras ldquorestabeleceurdquo e ldquoconquistourdquo presentes no

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texto Estaacute dito ali que Jeroboatildeo II restabelece as fronteiras e conquista espaccedilos pela via das forccedilas armadas enquanto isso a anguacutestia social do povo era horriacutevel Natildeo havia o menor vislumbre ou esperanccedila de mu-danccedilas radicais pois natildeo se contava com ningueacutem que socorresse Israel (II Reis 1426) Em consequecircncia de tal situaccedilatildeo Jonas se transformou num profeta extremamente politizado por conseguinte ideologizado Ele tinha consciecircncia por exemplo de que nos seus dias a grande ameaccedila para Israel era a Assiacuteria cuja capital era Niacutenive (FABIO 1991 p 4-5)

Ora Jonas natildeo vivera e sua histoacuteria natildeo fora contada em um periacuteodo de prosperidade Niacutenive era considerada uma grande ameaccedila para Israel assim como a Assiacuteria em geral Erthal et al (2002) apontam que o tema do livro de Jonas concentra-se na misericoacuterdia divina Jonas eacute chamado por Deus para advertir Niacutenive sobre os fatos que seriam consumados como consequecircncia de seus pecados o principal propoacutesito de Deus nesse sentido era demonstrar a Israel e agraves naccedilotildees a magnitude da Sua misericoacuterdia e a Sua accedilatildeo atraveacutes da pregaccedilatildeo do arrependimento

Para Alencar (2010) Jonas eacute chamado por Deus para anunciar a conversatildeo na capital Niacutenive que se encontrava fora das fronteiras com Israel um reflexo do nacionalismo exclusivista do povo de Israel no poacutes-exiacutelio fundamentado na concepccedilatildeo de povo eleito e na visatildeo de Jerusaleacutem como o uacutenico lugar onde Deus manifestava-se Trata-se da comunicaccedilatildeo de Deus aleacutem da visatildeo do povo de Jerusaleacutem fazendo uso de Jonas como um instrumento de conversatildeo

Antes de aprofundar conhecimentos acerca da histoacuteria do livro de Jonas tendo-se jaacute abordado acerca da autoria desse livro cumpre aprofundar conhe-cimentos sobre a eacutepoca atribuiacuteda ao mesmo Ainda segundo Alencar (2010) a narrativa do livro de Jonas natildeo oferece nenhuma evidecircncia que possibilite datar o livro A existecircncia de um profeta que vivera sob o nome Jonas no seacuteculo XVIII natildeo representa que o livro tenha sido escrito nessa eacutepoca Para o autor existem elementos que sugerem uma dataccedilatildeo tardia ao livro de Jonas quais sejam

bull Vaacuterias palavras de origem aramaica satildeo observadas na narrativa de Jonas O aramaico tornara-se liacutengua oficial no periacuteodo persa As palavras que designam os marinheiros e o navio (Jonas 1 5) e o decreto do rei de Niacutenive (Jonas 37) advecircm da liacutengua aramaica

bull A histoacuteria de Jonas conforme observado em Jonas (3 7-8) faz alusatildeo aos costumes persas como por exemplo a participaccedilatildeo de animais nos rituais de penitecircncia

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bull Niacutenive era identificada como capital da Assiacuteria no tempo de Jonas de modo que a cidade soacute se tornara importante no templo de Senaqueribe em 704 aC O rei seria tratado como rei da Assiacuteria e natildeo rei de Niacutenive

bull Natildeo haacute influecircncia no livro de Jonas da eacutepoca heleniacutestica do tempo de Ale-xandre Magno e de seus sucessores como tambeacutem natildeo aparecem conflitos com samaritanos nem mesmo questotildees envolvendo casamentos com mulheres estrangeiras

Esses elementos segundo Alencar (2010 p 8) natildeo satildeo suficientes para que se precise a data na qual fora escrito o livro de Jonas entretanto ldquoeacute possiacutevel afirmar que o livro tenha sido escrito no final do seacuteculo IV ou no iniacutecio do seacuteculo III aC no periacuteodo persardquo

Segundo Dasilva (2003) Deus ordenou que Jonas se levantasse e fosse para a grande cidade de Niacutenive Jonas teria dito ldquonatildeordquo a Deus sabendo que a Assiacuteria era uma inimiga terriacutevel de Israel Na verdade ele temia que Niacutenive se arre-pendesse e fosse poupada por Deus da puniccedilatildeo e condenaccedilatildeo iminente Caso Niacutenive caiacutesse Israel de Jonas escaparia de suas investidas e de seus ataques assim convocado por Deus ele fugiu

Erthal et al (2002) apontam que logo que Jonas fugiu tomando um navio para Taacutersis Deus passou a agir mandando forte vento sobre o mar e criando uma grande tempestade Jonas dormia no poratildeo do navio e o capitatildeo perguntou-lhe por qual motivo dormia enquanto o medo e o pavor tomavam conta dos tripu-lantes que clamavam aos deuses pelo livramento O versiacuteculo seis do primeiro capiacutetulo do livro relata que Jonas tambeacutem clama a Deus

Os tripulantes do navio ficaram indignados quando Jonas responde que era hebreu que servia ao Deus do ceacuteu mas que estava fugindo dEle (18- 10) Por causa de sua atitude Jonas foi obrigado a enfrentar as con-sequumlecircncias e acabou por confessar sua transgressatildeo ldquoE ele lhes disse Levantai-me e lanccedilai-me ao mar e o mar se aquietaraacuterdquo (112) Jonas se sentia nesse momento culpado por ter desobedecido a Deus e por colocar a vida da tripulaccedilatildeo em perigo Apanharam Jonas e o lanccedilaram ao mar A tempestade parou milagrosamente (11415) O resultado contrastante nesta situaccedilatildeo foi a conversatildeo da tripulaccedilatildeo ldquoTemeram pois estes ho-mens ao Senhor com grande temor e ofereceram sacrifiacutecios ao Senhor e fizeram votosrdquo (116) (ERTHAL et al 2002 p 37)

O clamor de Jonas apesar de sua rebeldia fora atendido Jonas mostrou-se sincero e temente a Deus pedindo misericoacuterdia divina e livramento ou seja

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que sua vida fosse poupada Deus providenciou um grande peixe para salvar a vida de Jonas deixou-o vivo por trecircs dias dentro do ventre daquele peixe Em Jonas 210 observam-se sete milagres divinos a tempestade a sorte de Jonas a calmaria do mar o grande peixe a sobrevivecircncia de Jonas o peixe conduzido ateacute a praia e o fato de o peixe ter vomitado Jonas em terra seca por ordem divina (FABIO 1991)

Ora a noccedilatildeo principal do livro de Jonas diz respeito justamente agrave misericoacuterdia divina Deus pune na mesma medida em que salva Deus aproxima-se de seus filhos mesmo quando estes fogem desde que se arrependam verdadeiramente Essa eacute a concepccedilatildeo fundamental do livro de Jonas

2 EPISOacuteDIOS QUE DEMONSTRAM A OSCILACcedilAtildeO DA OBE-DIEcircNCIA E DESOBEDIEcircNCIA A DEUS AO LONGO DA ERA BIacute-BLICA

Jonas eacute apenas um exemplo da oscilaccedilatildeo entre a obediecircncia e desobediecircncia a Deus ao longo do percurso biacuteblico Esta parte do estudo relata outros episoacutedios biacuteblicos nos quais se verifica essa oscilaccedilatildeo

Talvez o mais conhecido episoacutedio que elucida tal questatildeo seja o de Gecircnesis quando Deus concedera tudo a Adatildeo menos que ele provasse o fruto da aacutervore do conhecimento do bem e do mal deixando claro que se ele comesse esse fruto certamente morreria (Gecircnesis 2 17) Deus ainda que misericordioso puniu Adatildeo lanccedilando-o para fora do jardim do Eacuteden para lavrar a terra da qual fora tomado (Gecircnesis 3 23)

Esse episoacutedio de Gecircnesis eacute um dos principais exemplos biacuteblicos acerca do arrependimento agrave desobediecircncia diante de Deus Em Romanos 519 tem-se que pela desobediecircncia de um soacute homem muitos foram feitos pecadores assim como pela obediecircncia de um muitos seratildeo constituiacutedos justos

A oscilaccedilatildeo entre a obediecircncia e a desobediecircncia a Deus tambeacutem eacute abordada em Romanos No versiacuteculo 30 do capiacutetulo 11 do livro tem-se que ldquoPois assim como voacutes outrora fostes desobedientes a Deus mas agora alcanccedilastes miseri-coacuterdia pela desobediecircncia delesrdquo Ora Deus natildeo premia os que obedecem apoacutes a desobediecircncia mas sim eacute misericordioso pelo arrependimento genuiacuteno e sincero

3 ATUALIDADE ALGUNS EPISOacuteDIOS EM NOSSA VIDA ATUAL QUE DEMONSTRAM A INSTABILIDADE DO SER HUMANO EM PERMANECER FIEL A DEUS

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O ser humano eacute falho e imperfeito por natureza Entretanto natildeo foi soacute nos tempos biacuteblicos que o homem demonstrou dificuldades em permanecer fiel e obediente a Deus De fato tal instabilidade tem sido observada durante toda a histoacuteria humana e pode ser amplamente observada em nossa conduta na atualidade Esta parte do estudo procura demonstrar e exemplificar esse fato

O primeiro mandamento biacuteblico propotildee que o homem ame a Deus sobre todas as coisas Entretanto observa-se que o ser humano em muito afasta-se de Deus Os constantes estiacutemulos e os desejos de acumular riqueza por parte do ser humano satildeo exemplos de elementos que afastam o homem de Deus Por vezes o homem daacute importacircncia demasiada ao dinheiro colocando-o como prioridade em sua vida acima de Deus ou ainda orando a Deus tatildeo somente pedindo riqueza material e natildeo riqueza espiritual

Ora nem mesmo o primeiro mandamento biacuteblico eacute uma tarefa faacutecil de ser alcanccedilada pelos servos de Deus Como natildeo eacute objeto de ostentaccedilatildeo Deus acaba sendo ldquodeixado de ladordquo pelas pessoas que passam a buscar sobretudo a riqueza material e a estabilidade financeira desalinhando-se dos preceitos e princiacutepios divinos

A principal fonte de instabilidade do homem em relaccedilatildeo agrave fidelidade a Deus satildeo os estiacutemulos presentes em nossa sociedade O dinheiro e a ideia de acuacutemulo da riqueza satildeo apenas alguns fatores que afastam o homem de Deus A sexualidade eacute outro exemplo claro de estiacutemulo que torna o homem infiel e desobediente aos olhos divinos

De fato o sexo tornou-se um produto de consumo na atualidade Consumir e almejaacute-lo de maneira desenfreada e irrestrita eacute caracteriacutestico da sociedade O sexo eacute objeto de desejo nos filmes muacutesicas revistas e amplamente presente no mundo virtual na internet como um todo O homem eacute ludibriado em um mundo que respira sexo natildeo mantendo a integridade sexual almejada por Deus peca constantemente contra a sexualidade cobiccedilando tambeacutem a mulher do proacuteximo

Todos os mandamentos de Deus podem ser colocados como desafios ou obstaacuteculos para que o homem permaneccedila fiel a Ele em diferentes niacuteveis O homem pecador por natureza cria obstaacuteculos em sua conduta diaacuteria caindo constantemente em tentaccedilatildeo de maneira semelhante a Adatildeo que sucumbiu agrave tentaccedilatildeo de contrariar a uacutenica imposiccedilatildeo que lhe fora feita por Deus

A cobiccedila eacute um dos grandes problemas enfrentados pelo homem para manter um relacionamento com Deus Natildeo se refere aqui apenas agrave cobiccedila desenfreada pelo dinheiro e pelo sexo mas tambeacutem pelas coisas alheias Os homens desejam

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o poder e o conseguem por meio do erro e do pecado A televisatildeo por exemplo vende a ideia daquelas vidas perfeitas dos bem sucedidos provocando que o homem cobice os bens e a proacutepria vida de terceiros desconsiderando-se a si proacuteprio e ao seu relacionamento iacutentimo com Deus

Entretanto o homem temente a Deus arrepende-se constantemente Confessa o seu pecado mas volta rapidamente a pecar sucumbindo aos mesmos erros que o fizeram pecar em outro momento novamente almeja o poder o sexo a riqueza financeira Deseja intensamente tudo aquilo que natildeo tem

Para suprir essa alarmante necessidade o homem faz uso de todos os meios e mecanismos possiacuteveis muitas vezes pouco se importando se atendecirc-los significa estar ainda mais distante do divino Roubar eacute uma praacutetica comum em nossa sociedade natildeo somente para sustentar um viacutecio em substacircncia mas tambeacutem pelo simples ideal de acumular riquezas uma praacutetica tatildeo repreendida por Deus

Assim o homem se vecirc diante de todo um contexto desfavoraacutevel para se manter fiel a Deus De fato a sociedade jaacute haacute muito tempo tem se afastado dos princiacutepios e preceitos divinos os homens natildeo demonstram mais arrependimento genuiacuteno ao cometerem pecados e insistindo em seus erros independentemente das liccedilotildees divinas jaacute aplicadas a eles

Pode-se equiparar o contexto atual ao que observamos na histoacuteria de Jonas cuja abordagem jaacute foi feita anteriormente neste artigo Jonas tambeacutem sabendo de suas funccedilotildees e da vontade de Deus disparou em fuga O homem atual tambeacutem conhece suas funccedilotildees e a vontade de Deus e mesmo assim ignora-as diante de seu egoiacutesmo sacrificando sua proacutepria alma por sentimentos e prazeres pueris

Somente quando sente falta da presenccedila de Deus o homem cogita o arre-pendimento Jonas aprendera sua liccedilatildeo ao permanecer trecircs dias no ventre do peixe clamando pela misericoacuterdia divina O homem atual entretanto parece natildeo aprender suas liccedilotildees Ele insiste no pecado e sucumbe a ele e aos estiacutemulos peca-minosos amplamente presentes em nossa sociedade Haacute pontos de aproximaccedilatildeo e de afastamento entre os episoacutedios relatados neste estudo e o contexto atual de vivecircncia do homem Entretanto permanece a dificuldade de se permanecer estavelmente fiel a Deus

4 ABORDAGEM DO VERDADEIRO ARREPENDIMENTOConforme apresentado o homem arrepende-se buscando a misericoacuterdia e

o perdatildeo de Deus O arrependimento segundo Delumeau (2003) eacute deixar o pecado e para que este seja abandonado o arrependimento deve ser verdadeiro

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buscando o perdatildeo divino e comprometendo-se a natildeo cometer o mesmo pecado

No item anterior abordaram-se aspectos da vida atual que sugerem a falta de arrependimento verdadeiro da parte do homem Jonas por exemplo arrependeu--se verdadeiramente ao reconhecer a soberania de Deus Arrependeu-se pri-meiramente ao observar a tempestade arrependeu-se quando estava em alto mar e durante os trecircs dias nos quais esteve dentro do ventre do peixe Jonas de fato arrependeu-se verdadeiramente de sua desobediecircncia a Deus e buscou corrigir suas falhas

Adatildeo no mesmo sentido mostrou-se desobediente ao divino e arrependeu-se gravemente colocando todos os homens em pecado Adatildeo buscava que Deus tivesse pena e piedade de si e de Eva concedendo-lhes meios para sustentar a vida Pode-se questionar o motivo que conduziu Adatildeo ao arrependimento mas natildeo se fora ou natildeo verdadeiro

O homem arrepende-se de suas falhas para com Deus fruto da instabilidade de seu relacionamento de obediecircncia para com o divino Entretanto o homem atual costuma repetir seus pecados arrepende-se com frequecircncia mas por medo de puniccedilotildees raramente se arrepende verdadeiramente O homem natildeo atribui culpa a si mesmo por seus pecados e quando o faz eacute de maneira displicente insistindo nos mesmos erros que antes cometera

Todavia isso diz respeito justamente agrave natureza pecaminosa do homem Mes-mo na Biacuteblia satildeo raros os casos de arrependimento verdadeiros (DELUMEAU 2003) Castro (2013) aponta que o arrependimento verdadeiro ou genuiacuteno con-siste na ideia por traacutes da desobediecircncia do homem em relaccedilatildeo a Deus seja por meio de uma ordem direta ou como eacute mais comum na atualidade por meio da desobediecircncia aos preceitos biacuteblicos

Um exemplo de arrependimento verdadeiro inquestionaacutevel na Biacuteblia encontra- se na histoacuteria de Davi

A oraccedilatildeo de Davi depois do maior erro de sua vida ilustra a natureza da verdadeira tristeza pelo pecado Seu arrependimento foi sincero e profundo Ele natildeo fez nenhum empenho por atenuar a culpa Natildeo foi o desejo de escapar ao juiacutezo que lhe inspirou a oraccedilatildeo Davi reconheceu a enormidade de sua transgressatildeo viu a contaminaccedilatildeo de seu ser e sentiu nojo do pecado Natildeo suplicava unicamente o perdatildeo mas tambeacutem um coraccedilatildeo puro Desejava a alegria da santidade e estar mais uma vez em harmonia com Deus (ENSINOS DE JESUS 2012 p 21)

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Ora levando-se em consideraccedilatildeo a histoacuteria de Davi compreende-se que o arrependimento verdadeiro eacute fruto de um genuiacuteno sentimento de tristeza do ser humano ao desapontar a Deus representado pela sinceridade e pela verdade aceitando o pecado que cometeu e natildeo negando-o Trata-se do desprezo pelo pecado propriamente dito

Souza (2009) aponta que o homem peca quando ele age contra aquilo que eacute imposto por Deus Com o pecado o homem e a mulher tornaram-se seres decadentes sendo o arrependimento a noccedilatildeo atraveacutes da qual eles podem ser sinceros com Deus assumindo sua culpa no pecado e demonstrando tristeza diante de sua desobediecircncia

O arrependimento verdadeiro aleacutem de tais caracteriacutesticas natildeo adveacutem de accedilatildeo humana mas sim de accedilatildeo divina uma vez que

Nenhum ser humano tem o poder de perdoar pecados Somente Deus por meio de Cristo aquele que nunca pecou pode nos conceder perdatildeo e paz de espiacuterito O ensino de que algum ser humano tem poder de perdoar pecados natildeo estaacute em harmonia com a Biacuteblia Nenhuma accedilatildeo humana eacute ca-paz de conseguir o perdatildeo Somente Deus em Jesus Cristo pode perdoar nossos pecados Por isso devemos nos aproximar Dele com o coraccedilatildeo verdadeiramente arrependido (ENSINOS DE JESUS 2012 p 21)

Assim o arrependimento verdadeiro eacute obtido tatildeo somente na comunhatildeo do pecador com Deus Ele deve manifestar com sinceridade o seu arrependimento pelo erro cometido independentemente das dimensotildees de seu pecado Em uma era na qual pecar eacute socialmente aceitaacutevel arrepender-se verdadeiramente eacute um dos difiacuteceis desafios do pecador

5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAISO presente estudo concentrou-se em uma abordagem clara e objetiva acerca do

livro de Jonas sobretudo no aspecto referente agrave conduta dele em relaccedilatildeo a Deus demonstrando sua desobediecircncia e a concepccedilatildeo de arrependimento verdadeiro a fim de que Jonas pudesse persistir no caminho traccedilado por Deus executando a funccedilatildeo divina que lhe fora incumbida

No mesmo sentido observou-se que o pecado sempre marcou o homem desde os tempos de Adatildeo ateacute a atualidade na qual os estiacutemulos pecaminosos estatildeo ain-da mais presentes Existe noccedilatildeo de arrependimento mas natildeo de arrependimento verdadeiro conforme ocorreu com Jonas e Davi Esse tipo de arrependimento se manifesta por uma verdadeira tristeza pelo cometimento do pecado sincera

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e profundamente sem o desejo de escapar da puniccedilatildeo mas curvando-se diante da superioridade de Deus

Este estudo natildeo buscou esgotar o assunto ou tornaacute-lo acabado mas tatildeo so-mente abordar concepccedilotildees acerca do verdadeiro arrependimento e das oscilaccedilotildees entre a obediecircncia e a desobediecircncia a Deus observadas tanto na era biacuteblica quanto na atualidade

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REFEREcircNCIAS ALENCAR J F Levanta-te e vai agrave grande cidade uma introduccedilatildeo ao livro de Jonas Revista Vida Pastoral ano 51 n 274 setembro-outubro 2010 p 6-13

BAZIOLI A J Graccedila Soberana Um Estudo do livro de Jonas copy Comunidade Presbiteriana Chaacutecara Primavera Ministeacuterio de Grupos Pequenos Abr2011

BIacuteBLIA SAGRADA Disponiacutevel em sanderleicombrPDFBibliaBiblia- Sagrada-Joao-Ferreira-de-Almeidapdf Acesso em 2 jul 2017

CASTRO D R Joatildeo Batista Profeta Do Amor Esponsal 1 ed ISBN 978-85-7784-077-9 copy Ediccedilotildees Shalom Aquiraz Brasil 2013

CLEMENTE M A Riqueza de Jonas Goiacircnia GO Editora RHJ 2008

DASILVA R E As Revelaccedilotildees Do Livro De Jonas Pulpito On-Line Forta Lauderdale 2003

DELUMEAU J O pecado e o medo ndash a culpabilizaccedilatildeo no ocidente (seacuteculos 13-18) Traduccedilatildeo Aacutelvaro Lorencini Bauru EDUSC 2003 2 v

ENSINO DE JESUS 2012 O que Jesus Ensinou sobre o Perdatildeo 6ordf liccedilatildeo Disponiacutevel em ltensinosdejesuscombrmateriaisestudosestudo-6pdfgt Acesso em 5 jul 2017

ERTHAL L A et al Profetas Menores Seminaacuterio Evangeacutelico para o aper-feiccediloamento de Disciacutepulos e obreiros do Reino ndash SEMEADOR Niteroacutei 2002

FAacuteBIO C Jonas O Sucesso do Fracasso Itajaiacute SC Editora Vinde 1991

SOUZA J N O destino do homem no plano de Deus uma anaacutelise da antropo-logia patriacutestica sobre a ldquoimagem e semelhanccedilardquo Rev Pistis Prax Teol Pastor Curitiba v 1 n 1 p 119-145 janjun 2009

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TRANSFORMACcedilAtildeO RELIGIOSA BRASILEIRA E CARACTERIacuteSTICAS DO NOVO PADRAtildeO RELIGIOSO

Joatildeo Boechat54

RESUMOO Brasil experimentou intensa transformaccedilatildeo religiosa nos uacuteltimos 40 anos

Essa mudanccedila caracterizou-se por trecircs pontos centrais a saber a) Queda da membresia Catoacutelica b) Crescimento dos indiviacuteduos que se consideram sem--religiatildeo e c) Crescimento Evangeacutelico A partir daiacute a sociedade brasileira apresenta uma nova configuraccedilatildeo religiosa Dessa forma surge a necessidade de natildeo apenas compreendermos essa nova configuraccedilatildeo como tambeacutem perce-bermos as relaccedilotildees entre esses grupos religiosos atraveacutes do tracircnsito religioso isto eacute como se daacute a formaccedilatildeo de cada grupo religioso e quanto essa formaccedilatildeo tem relaccedilatildeo com o ganho ou perda de membros antes ligados a outros grupos religiosos Este artigo apresenta a nova configuraccedilatildeo religiosa brasileira aleacutem de demonstrar como essa configuraccedilatildeo tem sido alterada nas uacuteltimas deacutecadas e por fim analisa como se daacute o tracircnsito religioso na sociedade brasileira

Palavras-Chave Transformaccedilatildeo Religiosa Configuraccedilatildeo Religiosa Cresci-mento Evangeacutelico

ABSTRACTIn the last 40 years Brazil has experienced intense religious transformation

Such change is characterized by three main points a) Decrease of Catholic mem-bership b) Increase of Non-Religious groups and c) Increase of the Evangelicals Thus Brazilian society presents a new religious setting Because of that there is the need of not only comprehend this new configuration but also understand the relationship among the religious groups using the analysis of the religious traffic in Brazil ie how each group is formed and how this formation is related to the adding or losing of individuals who were once members of other religious groups In this way this paper presents the new religious configuration in Brazil and discusses how said configuration has been altered in the last decades At last it analyzes how the religious traffic takes place in Brazilian society

54 Joatildeo Boechat eacute professor da Faculdade Batista do Rio de Janeiro aleacutem de pesquisador do Deutscher Akademischer Austauschdienst (DAAD) Eacute doutorando em Sociologia Poliacutetica pela Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF) com ecircnfase em Teologia pela Humboldt Universitaumlt zu Berlin na Alemanha Possui mestrado em Sociologia Poliacutetica pela UENF e especializaccedilatildeo em Ciecircncia da Religiatildeo aleacutem de graduaccedilatildeo em Teologia e Relaccedilotildees Internacionais

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Keywords Religious transformation Religious Configuration Evangelical Growth

INTRODUCcedilAtildeOA realidade do campo religioso brasileiro indica uma forte transformaccedilatildeo

na sociedade em que vivemos Esta percepccedilatildeo ocorre pois ainda que a religiatildeo seja uma espera proacutepria ela influencia e eacute influenciada pelas demais esferas sociais como a economia poliacutetica e ciecircncia Portanto eacute sine qua non para a profunda compreensatildeo teoloacutegica a forma pela qual a religiatildeo se relaciona com a realidade vigente

A palavra que define a realidade religiosa brasileira nas uacuteltimas deacutecadas eacute ldquotransformaccedilatildeordquo Especialmente a partir da deacutecada de 80 o campo religioso no Brasil observa uma intensa mudanccedila encabeccedilada pelo grande crescimento evangeacutelico que atua como principal combustiacutevel de tal transformaccedilatildeo que tambeacutem eacute caracterizada pelo crescimento dos sem-religiatildeo e pela queda catoacutelica

Nesse contexto este artigo procura analisar a transformaccedilatildeo religiosa na sociedade brasileira observando os dados dos censos das uacuteltimas deacutecadas bem como buscando compreender o tracircnsito religioso que ocorre por meio da anaacutelise de como se daacute a formaccedilatildeo das membresias religiosas Por fim apontam-se algumas razotildees que auxiliam na compreensatildeo da mudanccedila religiosa brasileira

Assim pretende-se colaborar para a compreensatildeo da realidade brasileira e de como a transformaccedilatildeo estaacute relacionada com questotildees que atingem a sociedade como um todo Tambeacutem pretende-se explicitar que a religiatildeo eacute uma esfera autocirc-noma que influencia e eacute influenciada pelas demais esferas sociais adaptando-se agraves demandas e necessidades de seus fieacuteis e provendo respostas que busquem atender a tais necessidades

1 PADRAtildeO RELIGIOSO BRASILEIROAs uacuteltimas deacutecadas demonstraram um ldquopadratildeo religiosordquo no Brasil Em

2020 o Instituto Datafolha lanccedilou os seguintes dados da configuraccedilatildeo religiosa brasileira

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Graacutefico 1 Configuraccedilatildeo Religiosa Brasileira

Fonte Datafolha (2020)

Atualmente 50 dos brasileiros se afirmam Catoacutelicos 31 Evangeacutelicos55 10 Sem-Religiatildeo e 9 adeptos de outras religiotildees

Os dados do Graacutefico 1 atuam em conformidade com os dados do Censo de 2010 realizado pelo IBGE56 os quais apontam que a configuraccedilatildeo religiosa no Brasil nas uacuteltimas deacutecadas possui trecircs caracteriacutesticas fundamentais a) intensa queda dos Catoacutelicos b) crescimento significativo dos Evangeacutelicos c) crescimento relevante dos sem-religiatildeo Considerando os dados levantados pelo IBGE eacute possiacutevel identificar tal configuraccedilatildeo

Graacutefico 2 Religiotildees no Brasil (2010)

Fonte Censo do IBGE 2010

55 Caso dividamos os Evangeacutelicos entre os principais subgrupos a formaccedilatildeo do campo brasileiro corres-ponde a 21 de Pentecostais 44 de Evangeacutelicos de Missatildeo e 45 de Evangeacutelicos Natildeo-Determinados56 2010 corresponde ao ano do uacuteltimo censo publicado pelo IBGE

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De acordo com os dados do uacuteltimo Censo do IBGE publicado em 2010 entre os brasileiros 646 se denominam Catoacutelicos 57 222 Evangeacutelicos 58 81 Sem- Religiatildeo 59 27 possuem outras religiotildees 60 21 satildeo adeptos do Espiritismo e 033 de religiotildees afro-brasileiras 61

De fato as religiotildees natildeo satildeo compostas por subgrupos homogecircneos com completa unidade doutrinaacuteria eclesial e praacutetica Tomemos como primeiro exemplo os Evangeacutelicos Para a real compreensatildeo desse grupo religioso no Brasil eacute relevante levar em conta suas divisotildees a fim de melhor entender sua configuraccedilatildeo uma vez que ela se expressa de forma mais variada do que as dos Catoacutelicos e dos Sem-religiatildeo Afinal entre os Catoacutelicos 994 satildeo Catoacutelicos Apostoacutelicos Romanos jaacute entre os Sem-Religiatildeo 952 natildeo possuem religiatildeo mas creem no transcendente ou seja apenas 48 satildeo ateus ou agnoacutesticos

Diferentemente dos Catoacutelicos e Sem-Religiatildeo cuja anaacutelise dividimos em dois subgrupos os Evangeacutelicos apresentam uma divisatildeo relevante em trecircs subgrupos os Pentecostais que correspondem a 60 dos Evangeacutelicos e 133 da populaccedilatildeo brasileira 62 os Evangeacutelicos Natildeo-Determinados correspondem a 212 dos Evangeacutelicos e 48 dos brasileiros 63 Por fim os Evangeacutelicos de Missatildeo ou Histoacutericos correspondem a 182 dos Evangeacutelicos e 44 da populaccedilatildeo brasileira 64

Com base no Graacutefico 2 dividimos a anaacutelise da evoluccedilatildeo do campo religioso brasileiro em duas fases de 1940 a 1980 e de 1980 a 2010 Essa divisatildeo ressalta

57 Entre os Catoacutelicos 994 satildeo Catoacutelicos Apostoacutelicos Romanos 45 Catoacutelicos Apostoacutelicos Brasileiros e 01 Catoacutelicos Ortodoxos58 Entre os Evangeacutelicos 60 satildeo Pentecostais 218 Natildeo-Determinados e 182 Evangeacutelicos de Missatildeo59 Entre os Sem-Religiatildeo 952 satildeo sem-religiatildeo 4 Ateus e 08 Agnoacutesticos60 Entre as outras religiotildees 333 satildeo adeptos de outras religiosidades cristatildes 317 satildeo Testemunhas de Jeovaacute 146 possuem muacuteltiplas religiosidades 55 satildeo Budistas 52 satildeo membros da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Uacuteltimos Dias 36 adeptos de outras religiosidade orientais 24 satildeo Judeus 17 adeptos do Esoterismo e 14 membros de religiotildees Indiacutegenas Haacute ainda grupos de outras religiotildees como o Hinduiacutesmo que correspondem a menos de 1 deste grupo61 Entre as Religiotildees Afro-brasileiras 692 pertencem agrave Umbanda 284 ao Candombleacute e 24 a outras religiotildees de matriz afro-brasileiras62 Os maiores grupos e igrejas pentecostais satildeo Assembleia de Deus (485 dos Pentecostais) Igrejas Pentecostais Independentes (208) Congregacional Cristatilde do Brasil (9) Igreja Universal do Reino de Deus (74) Igreja do Evangelho Quadrangular (71) Deus eacute Amor (33) e Maranata (14)63 Os Natildeo-Determinados satildeo assim denominados pois satildeo formados por igrejas independentes de teologia protestante sem viacutenculo histoacuterico com associaccedilotildees protestantes norte-americanas ou europeias como as Igrejas de Missatildeo64 Os Evangeacutelicos de Missatildeo satildeo assim chamados pois possuem teologia protestante e sua formaccedilatildeo estaacute vinculada agraves missotildees protestantes de igrejas histoacutericas norte-americanas ou europeias No Brasil as maiores igrejas ou associaccedilotildees satildeo Batistas (485 dos Evangeacutelicos de Missatildeo) Adventistas (203) Luterana (13) Presbiteriana (12) Metodista (44) Congregacional (14) e outras (04)

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como nas uacuteltimas trecircs deacutecadas houve relevante mudanccedila e uma nova padro-nizaccedilatildeo religiosa no paiacutes

Tabela 1 ndash Religiotildees no Brasil de 1940 a 2010 em porcentagem (MARIANO 2013)

Religiatildeo 1940 1950 1960 1970 1980 1990 2000 2010Catoacutelicos 952 937 931 911 892 833 738 646Evangeacutelicos 26 34 40 58 66 90 154 222Outras Religiotildees 19 24 24 23 25 29 35 50Sem Religiatildeo 02 05 05 08 16 48 73 81

Natildeo declarou 01 00 00 00 01 00 00 01

TOTAL 100 100 100 100 100 100 100 100Fonte Mariano 2013

De 1940 a 1980 o nuacutemero de Catoacutelicos no Brasil caiu de 952 para 892 passando de 39256972 para 108066311 adeptos65 Apesar do crescimento geral os Catoacutelicos declinaram em 6 nessas quatro deacutecadas Jaacute de 1980 a 2010 os Catoacutelicos caiacuteram de 892 para 646 da populaccedilatildeo do paiacutes totalizando 123228246 adeptos o que indica uma queda de 246 da membresia

Em 2020 o Instituto Datafolha66 publicou uma pesquisa cujos dados revelam que no Brasil os Catoacutelicos correspondem a 50 dos brasileiros o que confirma o ldquopadratildeo religiosordquo de queda da membresia catoacutelica67 Caso o Censo do IBGE de 2020 confirme os dados levantados pelo Datafolha haveria uma queda de 146 na membresia catoacutelica significando a maior perda de adeptos jaacute registrada em uma deacutecada

Por outro lado os Evangeacutelicos se moveram na direccedilatildeo contraacuteria dos Catoacutelicos De 1940 a 1980 aquele grupo cresceu de 26 para 66 da populaccedilatildeo brasilei-ra o que significa que em 40 anos os Evangeacutelicos saltaram de 1072144 para 7995938 adeptos Todavia se nessas quatro deacutecadas os Evangeacutelicos cresceram 4 nas deacutecadas seguintes houve um exponencial aumento dos adeptos entre 1980 e 2010 Nestas os Evangeacutelicos saltaram de 66 para 222 totalizando 42347787 adeptos Isso significa que nas uacuteltimas deacutecadas os Evangeacutelicos

65 De acordo com os dados do Censo do IBGE a populaccedilatildeo brasileira em 1940 era de 41236315 pessoas em 1980 121150573 e em 2010 190755799 pessoas66 Pesquisa Datafolha com 2948 entrevistas realizadas em 176 municiacutepios no paiacutes em 5 e 6 de dezembro de 2019 Margem de erro de 2 pontos percentuais para mais ou para menos e niacutevel de confianccedila de 9567 De acordo com a Pesquisa do Instituto Datafolha em Dezembro de 2019 a Religiatildeo do Brasileiro eacute dividida em 50 Catoacutelicos 31 Evangeacutelicos 10 Sem-Religiatildeo 3 Espiacuteritas 2 Afro-Brasileiros 2 Outras Religiotildees 1 Ateus 03 Judeus

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cresceram cinco vezes mais do que a populaccedilatildeo brasileira Enquanto de 1980 a 2010 a populaccedilatildeo brasileira cresceu 123 os Evangeacutelicos cresceram 62

O crescimento evangeacutelico eacute evidenciado pela pesquisa do Datafolha de acordo com a qual estes atingiram 31 da populaccedilatildeo em 2020 Conforme esses dados o periacuteodo de 2010 a 2020 aponta duas realidades opostas em relaccedilatildeo aos Catoacutelicos e Evangeacutelicos Por um lado os Catoacutelicos sofreram a maior perda de membresia jaacute registrada em uma deacutecada Por outro lado os Evangeacutelicos experimentaram de 2010 a 2020 o maior crescimento jaacute registrado em seu nuacutemero de adeptos

Portanto em 2010 os cristatildeos (Catoacutelicos e Evangeacutelicos)68 correspondiam a 868 dos brasileiros ou seja quase 9 em cada 10 brasileiros ainda se con-siderava cristatildeo De acordo com o Instituto Datafolha em 2020 esse nuacutemero corresponde a 81 dos brasileiros Issto indica que apesar do grande cresci-mento evangeacutelico a queda do nuacutemero de catoacutelicos foi expressiva a ponto haver reduccedilatildeo do nuacutemero de cristatildeos no paiacutes em mais de 5 pontos percentuais Ainda assim apesar do crescimento dos Sem-Religiatildeo (de 8 para 10) os ateus correspondem a apenas 1 da populaccedilatildeo brasileira

Assim os nuacutemeros do Censo permitem a formulaccedilatildeo do seguinte graacutefico

Graacutefico 3 Cristatildeos na populaccedilatildeo brasileira (1940-2020)

Fonte Censo do IBGE (1940-2010) Datafolha (2020)

Em conformidade com o crescimento evangeacutelico os Sem-Religiatildeo tambeacutem obtiveram consideraacutevel aumento Entre 1940 e 1980 eles passaram de 02 a 16 indo de 82473 para 1938409 indiviacuteduos que natildeo possuem religiatildeo Em 68 De fato os Espiacuteritas tambeacutem satildeo cristatildeos Mas como estamos considerando as principais mudanccedilas religiosas no paiacutes consideremos apenas Catoacutelicos e Evangeacutelicos como Cristatildeos Contudo apenas para a anaacutelise e natildeo como afirmaccedilatildeo teoloacutegica Considerando os Espiacuteritas os Cristatildeos atingiriam 2 da populaccedilatildeo em 2010 e 3 em 2020

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2010 esse grupo alcanccedilou 81 dos indiviacuteduos no Brasil totalizando 15451220 pessoas

Por outro lado considerando a pesquisa do Datafolha os Sem-Religiatildeo atin-giriam 10 havendo crescimento de cerca de 2 em nuacutemero Esse crescimento seria maior do aquele que ocorreu entre 2000 e 2010 (08) mas menor do que o ocorrido entre 1990 e 2000 (25)

Graacutefico 4 Cristatildeos x Sem-Religiatildeo no Brasil (1940-2020)

Fonte Censo do IBGE (1940-2010) Datafolha (2020)

Portanto se no fim do seacuteculo XIX apoacutes a Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica (1889) os Catoacutelicos concentravam praticamente 100 da populaccedilatildeo brasileira o seacuteculo XX eacute marcado pela constante queda dessa membresia ainda que ela fosse ampla maioria em 1970 (911) Todavia a partir da deacutecada de 1980 essa queda acelerou-se fazendo com que os Catoacutelicos perdessem quase 1 de sua membresia ao ano (-097)

Desse modo estabelecendo-se uma projeccedilatildeo linear em que os Catoacutelicos manteriam sua perda de 097 ao ano os Evangeacutelicos o seu crescimento de 069 aa e os Sem-Religiatildeo ganhando 017 o ldquopadratildeo religioso brasileirordquo apresentaria uma mudanccedila em relaccedilatildeo agrave hegemonia religiosa por volta de 2036 assim os Evangeacutelicos com 403 ultrapassaratildeo os Catoacutelicos com 394 Em 2040 os Evangeacutelicos teriam 43 e os Catoacutelicos 355 Nesse ano os cristatildeos corresponderiam a 785 da populaccedilatildeo brasileira enquanto os Sem-Religiatildeo formariam 132 da populaccedilatildeo brasileira

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Graacutefico 5 Religiotildees no Brasil (1940-2040)

De fato natildeo eacute possiacutevel afirmar que tal transformaccedilatildeo continuaraacute nesse ritmo Todavia ainda que haja desaceleraccedilatildeo na perda de Catoacutelicos ou no crescimento dos Evangeacutelicos o padratildeo religioso brasileiro eacute ratificado pela intensa mudanccedila ocorrida no cenaacuterio brasileiro nos uacuteltimos 150 anos

Assim os nuacutemeros das pesquisas mencionadas confirmam o ldquopadratildeo religio-sordquo brasileiro e demonstram que este tem se desenvolvido de forma estaacutevel nos uacuteltimos 40 anos Eacute relevante perceber contudo que o paiacutes natildeo passou nestas uacuteltimas deacutecadas por um processo de ldquodesligamento do transcendenterdquo ou seja a perda catoacutelica e o acreacutescimo dos sem-religiatildeo natildeo indicam necessariamente uma diminuiccedilatildeo da experiecircncia com o transcendente ou a perda da busca pelo sagrado A anaacutelise desse padratildeo ajuda a entender a transformaccedilatildeo no campo religioso ocorrida nas uacuteltimas deacutecadas

2 TRAcircNSITO RELIGIOSO BRASILEIRO De forma geral o padratildeo religioso brasileiro indica uma transformaccedilatildeo do

campo religioso marcado pelas transformaccedilotildees na direccedilatildeo da relaccedilatildeo com o divino e natildeo na negaccedilatildeo do divino Isso significa que o brasileiro natildeo deixou de crer no transcendente mas apenas alterou a forma como crecirc ou o caminho para acessar o divino De acordo com o IBGE em 2010 apenas 03 da populaccedilatildeo se denominava ldquoateurdquo ou seja 78 dos brasileiros se consideram sem-religiatildeo mas mantecircm a crenccedila no transcendente

Portanto a configuraccedilatildeo religiosa brasileira se constroacutei a partir das transfor-maccedilotildees inter-religiosas como demonstra a Tabela 2

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Tabela 2 ndash Religiatildeo atual e tracircnsito religioso (BARTZ 2012)

Religiatildeo atual Natildeo mudou Mudou populaccedilatildeoCatoacutelica 959 41 646Evangeacutelico de missatildeo 228 772 41Evangeacutelico pentecostal 144 856 133Outras religiotildees 107 893 50Sem-religiatildeo 197 803 81Meacutedia Total 683 235 100

Fonte Censo Demograacutefico do IBGE 2010

Agrave primeira vista a meacutedia total indica que o Brasil eacute um paiacutes no qual a maioria da populaccedilatildeo permanece na religiatildeo em que nasceu (683) enquanto uma minoria muda de religiatildeo durante a vida (235) Contudo analisando a tabela perceberemos que apenas os Catoacutelicos satildeo maioria entre os que natildeo mudaram de religiatildeo De fato em cada 100 Catoacutelicos 96 nasceram em ambientes Catoacutelicos e apenas 4 se converteram ao longo da vida Isso significa que o Catolicismo eacute no Brasil uma religiatildeo de nascidos e natildeo de convertidos

Se considerarmos os demais grupos religiosos como tambeacutem os sem-religiatildeo veremos que ateacute 2010 828 dos brasileiros jaacute mudaram de crenccedila religiosa durante a vida Com exceccedilatildeo do Catolicismo todos os demais grupos de crenccedila no Brasil satildeo formados majoritariamente por convertidos ou seja seus adeptos se tornaram membros ao longo da vida e natildeo nasceram em ambientes praticantes dessa religiatildeo Pelo menos trecircs quartos da populaccedilatildeo evangeacutelica ou dos que hoje se consideram ldquosem-religiatildeordquo jaacute estiveram em alguma outra religiatildeo antes de possuiacuterem o atual entendimento sobre o transcendente Por exemplo dos 139 da populaccedilatildeo de pentecostais 856 se converteram a essa vertente durante a vida e somente 144 satildeo filhos de pais pentecostais tratando-se portanto de uma religiatildeo majoritariamente de convertidos e natildeo de originaacuterios

Aleacutem disso quando observamos o tracircnsito religioso brasileiro comparando-se a religiatildeo atual e a religiatildeo anterior dos brasileiros percebemos como o fluxo religioso ocorre entre os ldquoconvertidosrdquo

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Tabela 3 ndash Religiatildeo atual x religiatildeo anterior (BARTZ 2012)

Religiatildeo AnteriorReligiatildeo Atual

CatoacutelicaEvangeacutelico Histoacuterico

Evangeacutelico Pentecostal

Outras Religiotildees

Sem-Religiatildeo

Catoacutelica 00 138 589 163 421Evangeacutelico de Missatildeo 269 213 507 11 57Evangeacutelico Pentecostal 187 402 408 04 239Outras Religiotildees 474 99 155 110 64Sem-religiatildeo 179 12 742 55 00Ateus 231 118 332 158 31

Fonte Bartz 2012

A Tabela 3 foi elaborada levando-se em conta os indiviacuteduos que jaacute mudaram de crenccedila religiosa ao longo da vida Assim ela natildeo demonstra a religiatildeo de origem desses indiviacuteduos mas aquelas pelas quais eles jaacute passaram em compa-raccedilatildeo com a atual religiatildeo Portanto a somatoacuteria de algumas supera os 100 uma vez que um indiviacuteduo que hoje eacute Evangeacutelico por exemplo pode ter passado por uma ou mais religiotildees

Com relaccedilatildeo aos Catoacutelicos eacute vaacutelido lembrar que apenas 41 dos adeptos satildeo convertidos Dentre estes 474 satildeo oriundos de famiacutelias que passaram por religiotildees de matriz africana ou orientais 269 foram Evangeacutelicos de Missatildeo e 187 Pentecostais Ademais 231 foram Ateus e 179 Sem-Religiatildeo

Os Evangeacutelicos satildeo o grupo que mais cresce no Brasil eacute uma religiatildeo de ldquocon-vertidosrdquo em que8 em cada 10 indiviacuteduos (82) aproximadamente tornaram-se adeptos ao longo de sua vida e natildeo nasceram em ambientes evangeacutelicos Entre os adeptos que se denominam ldquode Missatildeordquo 402 jaacute pertenceram ao Pentecosta-lismo Isso indica que entre os Evangeacutelicos de Missatildeo o principal fluxo ocorre dentro da esfera Evangeacutelica Ademais 213 dos Histoacutericos jaacute fizeram parte de outra instituiccedilatildeo evangeacutelica histoacuterica como por exemplo um Batista que jaacute foi membro de uma organizaccedilatildeo Metodista ou Presbiteriana Em continuidade 138 dos Evangeacutelicos de Missatildeo jaacute foram Catoacutelicos e 118 Ateus

Por outro lado se entre os Evangeacutelicos Histoacutericos ou de Missatildeo o principal fluxo eacute intrarreligioso entre os Pentecostais 742 foram Sem-Religiatildeo 589 jaacute foram Catoacutelicos e 332 Ateus De fato entre os Pentecostais a maior parte dos convertidos jaacute passou por outras religiotildees Ademais o fluxo intrarreligoso tambeacutem eacute consideraacutevel haja vista que 507 dos Pentecostais jaacute foram ldquoHistoacute-

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ricosrdquo e 408 jaacute passaram por outras organizaccedilotildees Pentecostais Por exemplo um membro da Assembleia de Deus Ministeacuterio Madureira jaacute foi membro da Assembleia de Deus Vitoacuteria em Cristo ou ainda da Igreja Universal do Reino de Deus

O grupo dos ldquosem-religiatildeordquo (78) representa o segundo maior contingente de pessoas que migraram de religiatildeo As igrejas evangeacutelicas pentecostais e os catoacutelicos satildeo os principais fornecedores para este grupo Observamos ainda que 421 dos ldquosem-religiatildeordquo declaram-se ter sido catoacutelicos 239 pentecostais 57 histoacutericos 64 declaram ter pertencido a outras religiotildees Haacute duas rotas portanto de migraccedilatildeo para os ldquosem-religiatildeordquo a primeira vai do catolicismo ou dos evangeacutelicos histoacutericos e a segunda do catolicismo ao pentecostalismo e entatildeo ao grupo ldquosem-religiatildeordquo

Assim o tracircnsito religioso brasileiro nos apresenta algumas caracteriacutesticas a) os Catoacutelicos satildeo os doadores universais b) os Evangeacutelicos satildeo receptores universais ainda que haja intenso fluxo intrarreligioso c) os Sem-Religiatildeo satildeo majoritariamente indiviacuteduos que mantecircm determinada espiritualidade e natildeo se tornam ateus

A fim de aprofundarmos o estudo da Religiatildeo no cenaacuterio brasileiro analisa-remos essas caracteriacutesticas observando possiacuteveis explicaccedilotildees para a formaccedilatildeo desse padratildeo

3 FORMACcedilAtildeO DO PADRAtildeO RELIGIOSO BRASILEIRODiversos trabalhos tecircm sido apresentados a fim de explicar as razotildees para

esse padratildeo apresentado a Teoria da Secularizaccedilatildeo se apresenta como uma valiosa ferramenta para a compreensatildeo dessa nova realidade (NERI 2011 ANDRADE 2012 ALTMANN 2012 GRACINO 2012 MARIANO 2013 CAMURCcedilA 2017)

Considerando que a esfera religiosa no mundo moderno eacute uma esfera como as demais que disputa espaccedilo e relevacircncia sociais pode-se destacar no caso brasileiro trecircs efeitos do processo de secularizaccedilatildeo sobre ela 1) a desmonopo-lizaccedilatildeo religiosa 2) a liberdade religiosa e 3) o pluralismo religioso

Apesar das mudanccedilas ocorridas no campo religioso brasileiro nas uacuteltimas deacutecadas a realidade religiosa brasileira ainda demonstra ser a del um paiacutes ma-joritariamente catoacutelico Apenas no fim do seacuteculo XIX com a proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica o Brasil se tornou oficialmente laico Todavia ainda assim a Igreja Catoacutelica manteve seus privileacutegios em relaccedilatildeo ao Estado secular Entretanto se

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durante os periacuteodos de colonizaccedilatildeo e impeacuterio para ser brasileiro era necessaacuterio ser catoacutelico a separaccedilatildeo entre Igreja e Estado resultou no fim da monopolizaccedilatildeo religiosa

A diferenciaccedilatildeo entre a esfera religiosa e as esferas poliacutetica e juriacutedica se aprofundou criando uma condiccedilatildeo secular que viria a ter efeitos estruturais tambeacutem sobre o modo de organizaccedilatildeo e atuaccedilatildeo das diferentes religiotildees

De acordo com os dados do IBGE em 1940 952 da populaccedilatildeo brasileira era catoacutelica Em 1980 o nuacutemero havia decrescido para 89 da populaccedilatildeo Esse nuacutemero passou para 73 em 2000 decrescendo para 646 da populaccedilatildeo de acordo com o Censo de 2010

O fim da monopolizaccedilatildeo religiosa ocorrida com o iniacutecio da Repuacuteblica no fim do seacuteculo XIX ocasionou tambeacutem maior liberdade religiosa Os dados do IBGE (2000) apontam que cerca de 40 dos catoacutelicos brasileiros eram natildeo praticantes ou seja natildeo participavam ativamente das atividades eclesiais A natildeo-participaccedilatildeo natildeo indica todavia uma falta de atividade religiosa Como ser brasileiro estaacute ligado a ser catoacutelico faz parte da cultura brasileira denominar--se catoacutelico enquanto participa de reuniotildees espiacuteritas ou frequenta cultos no Candombleacute e Umbanda O resultado dessa maior liberdade religiosa bem como a maior liberdade para se considerar como pertencente a outras religiotildees ou mesmo sem-religiatildeo pode ser observada nos Censos das uacuteltimas deacutecadas Enquanto o Catolicismo decresceu de 952 em 1940 para 646 em 2010 as ldquooutras religiotildeesrdquo cresceram de 19 para 5 da populaccedilatildeo os ldquosem-religiatildeordquo saltaram de 02 para 81 de 1940 a 2010 e os evangeacutelicos cresceram de 26 para 222 da populaccedilatildeo nos uacuteltimos 70 anos

Por fim a secularizaccedilatildeo abre espaccedilos para que natildeo soacute novas religiotildees como tambeacutem novas organizaccedilotildees religiosas busquem espaccedilo e concorram pela fide-lizaccedilatildeo religiosa dos indiviacuteduos

A concessatildeo da liberdade religiosa e a separaccedilatildeo Igreja-Estado romperam definitivamente o monopoacutelio catoacutelico abrindo caminho para que outros grupos religiosos pudessem ingressar e se formar no paiacutes disputar e conquistar novos espaccedilos na sociedade adquirir legitimidade social e consolidar sua presenccedila institucional (MARIANO 20033)

Com o fim do monopoacutelio religioso e consequentemente a abertura para novas organizaccedilotildees religiosas possibilita-se a formulaccedilatildeo de distintos interesses religiosos respondendo a distintos interesses sociais A religiatildeo agrave medida que vai se autonomizando como esfera social com loacutegica proacutepria atua como elabo-

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radora dos interesses religiosos a partir da mateacuteria-prima dos interesses sociais dos distintos grupos permitindo por exemplo que distintos interesses sociais estejam ligados a um mesmo interesse religioso Uma vez que as organizaccedilotildees consigam elaborar interesses religiosos comuns capazes de transcender em certa medida as fronteiras dos interesses sociais - embora sem nunca lograr uma completa desvinculaccedilatildeo desses interesses - torna-se provaacutevel a adesatildeo de distintos grupos sociais a essas organizaccedilotildees e especialistas a fim de realizar esses interesses religiosos

Para exemplificarmos o efeito do pluralismo religioso observemos o cresci-mento das igrejas evangeacutelicas no Brasil nos uacuteltimos anos Os dados do Instituto Brasileiro de Planejamento Tributaacuterio (IBPT) apontam que existem no Brasil mais de 179 mil organizaccedilotildees religiosas evangeacutelicas registradas Somente em 2013 doze igrejas foram abertas por dia no Brasil cerca de 4400 novas organi-zaccedilotildees religiosas evangeacutelicas ao longo do ano Esse nuacutemero apresentou em 2014 crescimento de 52869 As organizaccedilotildees religiosas evangeacutelicas apresentam um faturamento de cerca de R$20 bilhotildees ao ano oriundo de diacutezimos venda de produtos e aplicaccedilotildees financeiras70

Essa nova configuraccedilatildeo religiosa no Brasil abre oportunidades para a anaacutelise da religiatildeo sob novas perspectivas uma vez que novos interesses religiosos e sociais ganham espaccedilo nas disputas por atenccedilatildeo nas organizaccedilotildees e especialistas religiosos

Dessa forma a nova configuraccedilatildeo religiosa brasileira demonstra que as transformaccedilotildees religiosas acompanham as transformaccedilotildees sociais mas ocorrem tambeacutem por mudanccedilas na proacutepria esfera religiosa e na capacidade de diferentes religiotildees organizarem distintos interesses e atenderem distintas demandas dos indiviacuteduos

Portanto compreender a configuraccedilatildeo religiosa brasileira eacute funccedilatildeo importante de todo aquele que deseja analisar como a religiatildeo influencia tanto o indiviacuteduo como a sociedade brasileira ao passo que tambeacutem eacute influenciada por eles

69 Disponiacutevel em httpwwwempresometrocombrSiteMetodologia70 Para mais informaccedilotildees sobre a arrecadaccedilatildeo das organizaccedilotildees religiosas evangeacutelicas ver httpexameabrilcombrbrasilem-um-ano-arrecadacao-de-igrejas-passou-dos-r-20-bi

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BERGER Peter L Muacuteltiplos altares da Modernidade Petroacutepolis Vozes 2016

BOECHAT Joatildeo Religiatildeo e Classe Social uma anaacutelise dos especialistas reli-giosos de diferentes segmentos evangeacutelicos sob a influecircncia do Pentecostalismo Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Sociologia Poliacutetica) Universidade Estadual do Norte Fluminense RJ Campos dos Goytacazes 2017

CAMPOS Bernardo Da Reforma protestante agrave Pentecostalidade da Igreja Satildeo Leopoldo e Quito Sinodal e Clai 2002

CAMPOS Leonildo Silveira Pentecostalismo e Protestantismo Histoacuterico no Brasil um seacuteculo de conflitos assimilaccedilatildeo e mudanccedilas Horizonte v 9 n 22 Belo Horizonte 2011

CAMURCcedilA Marcelo Ayres A Religiatildeo e o Censo enfoques metodoloacutegicos Uma reflexatildeo a partir das consultorias do ISER ao IBGE sobre o dado religioso nos censos Comunicaccedilotildees do ISER v 69 2014 p 04-152

DUTRA Roberto A Universalidade da Condiccedilatildeo Secular Religiatildeo e Socieda-de Rio de Janeiro 36(1) 151-174 2016

DUTRA Roberto BOECHAT Joatildeo Diferenciaccedilatildeo funcional e organizaccedilotildees religiosas na modernidade uma anaacutelise teoacuterica com base no pentecostalismo no Brasil Revista de Ciecircncias Sociais v 49 n 2 2018

GIUMBELLI Emerson A vontade do saber terminologias e classificaccedilotildees sobre o protestantismo brasileiro Religiatildeo e Sociedade Rio de Janeiro n 1

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GONCcedilALVES Delmo Neopentecostalismo Nascimento desenvolvimento e contemporaneidade Uma anaacutelise da IURD e seus elementos eacutetnico-religiosos Novas Ediccedilotildees Acadecircmicas 2015

GRACINO JR Paulo A visatildeo aeacuterea e do nadador reflexotildees sobre catoacutelicos e pentecostais no censo de 2010 Horizonte Revista de Estudos de Teologia e Ciecircncias da Religiatildeo 10(28) nov 2008

HERVIEU-LEacuteGER Daniele O peregrino e o convertido ndash a religiatildeo em movimento Petroacutepolis Vozes 2008

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MAFRA Clara Na Posse da Palavra mdash Religiatildeo Conversatildeo e Liberdade Pes-soal em Dois Contextos Nacionais Lisboa Imprensa de Ciecircncias Sociais 2002

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MARIANO Ricardo Neopentecostais sociologia do novo pentecostalismo Brasileiro Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 1999

MARIANO Ricardo Sociologia do Crescimento Pentecostal um balanccedilo Perspectiva Teoloacutegica ano 43 n 119 Belo Horizonte 2011

MARIZ Ceciacutelia L A Renovaccedilatildeo Carismaacutetica Catoacutelica uma igreja dentro da Igreja Civitas ndash Revista de Ciecircncias Sociais v 3 n 1 Porto Alegre 2003

NOVAES Regina Religiatildeo e poliacutetica sincretismos entre alunos de Ciecircncias Sociais In A danccedila dos sincretismos Rio de Janeiro Comunicaccedilotildees do ISER n 45 ano 13 1994

NOVAES Regina Jovens sem religiatildeo sinais de outros tempos In TEIXEIRA Faustino MENEZES Renata (Org) Religiotildees em movimento o Censo de 2010 Petroacutepolis Editora Vozes 2013

OLSON Roger E Teologia Arminiana mitos e realidades Satildeo Paulo Editora Reflexatildeo 2013

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ORO Ari P Algumas interpelaccedilotildees do Pentecostalismo no Brasil Horizonte v 9 n 22 Belo Horizonte 2011

ORO Ari P MARIANO Ricardo Eleiccedilotildees 2010 Religiatildeo e Poliacutetica no Rio Grande do Sul e no Brasil Debates do NER Porto Alegre ano 11 n 18 2010

PIERUCCI Antocircnio F ldquoBye bye Brasilrdquo ndash o decliacutenio das religiotildees tradicionais no Censo 2000 Estudos Avanccedilados 18 (52) 2004

RODRIGUES Denise dos Santos Os sem religiatildeo nos censos brasileiros sinal de uma crise de pertencimento institucional Horizonte v 10 2012 p 1130-1152

SILVEIRA Marcelo O discurso da Teologia da Prosperidade em Igrejas Evangeacutelicas Estudo da Retoacuterica e da Argumentaccedilatildeo no culto religioso Tese (Doutorado em Ciecircncias Sociais) Universidade de Satildeo Paulo-USP Satildeo Paulo 2007

SOUZA Carlos O Protestantismo Histoacuterico e a ldquoPentecostalizaccedilatildeordquo Novos contornos da identidade evangeacutelica Ciecircncias da Religiatildeo histoacuteria e sociedade Satildeo Paulo v 12 n 2 2014

STEIL Carlos Alberto Pluralismo modernidade e tradicao ndash transformaccedilotildees do campo religioso Ciencias Sociales y ReligionCiencias Sociais e Religiao Porto Alegre ano 3 no 3 2001

WEBER Max A Eacutetica Protestante e o Espiacuterito do Capitalismo Trad Maacuterio Moraes Satildeo Paulo Martin Claret 2013

WEBER MAX Economia e Sociedade fundamentos da sociologia com-preensiva Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 2000 2009 (reimpressatildeo)

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AMEacuteM MUacuteLTIPLOS DERIVADOS O MESMO CONCEITOAs diferentes traduccedilotildees de uma mesma raiz

AMEN MULTIPLE DERIVATIVES THE SAME CONCEPTDifferent translations of the same word

Rawderson Rangel71

RESUMOHaacute diversas expressotildees que se encontram no Novo Testamento utilizadas

com muita frequecircncia ainda hoje nas igrejas cristatildes cuja origem eacute o hebraico A proposta do presente artigo eacute analisar a conhecida expressatildeo ldquoAmeacutemrdquo repe-tida em oraccedilotildees e muitas vezes como resposta da congregaccedilatildeo ao pregador ou dirigente do culto Atraveacutes do estudo de diferentes vocaacutebulos tendo esta palavra em sua raiz a investigaccedilatildeo apresentaraacute possiacuteveis significados e sentidos para a expressatildeo que de forma consensual eacute definida simplesmente por ldquoassim sejardquo

Palavras-chave Ameacutem Hebraico Raiz verbal

ABSTRACTMany expressions found in the New Testament often used even today in

Christian churches have their origin in the Hebrew The purpose of this article is to analyze the familiar expression ldquoAmenrdquo repeated in prayers and often as a congregation response of to the preacher or gospel service responsible Through the study of different words having this word in their root the research will present possible meanings for the expression usually simply defined by ldquoLet it be sordquo

Keywords Amen Hebrew Verbal root

71 Bacharel em Teologia pelo Seminaacuterio Teoloacutegico Batista do Sul do Brasil (atual Faculdade Batista do Rio de Janeiro) RJ Brasil revalidado pela Faculdade Teoloacutegica Batista do Paranaacute em Curitiba (atual FABAPAR) PR Brasil Poacutes-graduado em Antigo Testamento tambeacutem pela FABAPAR PR Mestre em Teologia pela Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Paranaacute Cursou Hebraico Biacuteblico pela Israel Biblical Institute of Studies acreditado pela Universidade Hebraica de Jerusaleacutem Israel atualmente eacute estudante de Grego Biacuteblico pela mesma instituiccedilatildeo Escritor professor de Teologia e idiomas biacuteblicos missionaacuterio da Junta de Missotildees Mun-diais da Convenccedilatildeo Batista Brasileira - JMM da CBB em Moccedilambique Eacute professor do Instituto Teoloacutegico Baptista da Beira Sofala e Instituto Biacuteblico de Sofala ndash Moccedilambique E-mail rawdersonhotmailcombr

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INTRODUCcedilAtildeO O hebraico biacuteblico por ser um idioma antigo apresenta-se bastante complexo

com determinados caracteres e algumas formas gramaticais que hoje natildeo satildeo mais utilizadas tal complexidade pode ser diminuiacuteda se o estudante estiver atento a alguns detalhes que satildeo extremamente uacuteteis no estudo da liacutengua e a anaacutelise a partir de determinadas raiacutezes eacute uma delas Haacute muitas palavras de tronco comum que uma vez entendidas ajudam na memorizaccedilatildeo delas na compreensatildeo do sentido de uma expressatildeo e ateacute mesmo de um verso biacuteblico

O vocabulaacuterio da Biacuteblia hebraica eacute de aproximadamente oito mil palavras72 sendo que duas mil delas aparecem apenas uma vez no texto desse modo um bom dicionaacuterio biacuteblico eacute indispensaacutevel no estudo do Antigo Testamento Ao mesmo tempo todo esse vocabulaacuterio pode ser reduzido a mil e trezentas raiacutezes73 e a polissemia desse idioma torna o estudo das palavras e seu significado original relevante pois facilita a compreensatildeo de determinadas palavras ou expressotildees no texto hebraico Ela tem sido vista como uma soluccedilatildeo para os muacuteltiplos significados representados por uma uacutenica palavra Ana Ceciacutelia Cruz defende essa relaccedilatildeo tanto graacutefica quanto foneacutetica segundo essa autora esta eacute ldquo() uma relaccedilatildeo metafoacuterica que amplia um sentido baacutesico para outros mais abstratosrdquo74

Miles Van Pelt afirma que as primeiras cinquenta palavras mais frequentes permitem ao estudante reconhecer um pouco mais da metade (55) do total de palavras que ocorrem no Antigo Testamento hebraico Dominar as 641 palavras que ocorrem cinquenta ou mais vezes permitiraacute identificar mais de 80 das palavras75 Uma das razotildees para isso eacute a relaccedilatildeo entre estas e as suas raiacutezes

A palavra que seraacute analisada neste artigo tambeacutem pode ter muacuteltiplas tradu-ccedilotildees embora um sentido baacutesico Analisar a origem e o significado de ldquoAmeacutemrdquo eacute bastante interessante embora natildeo menos complexo quando comparada agraves de-mais liacutenguas semiacuteticas76 Sabe-se que ela existe desde tempos remotos tanto em hebraico como tambeacutem em aacuterabe (rsquoĀmīn) ldquoAmeacutemrdquo eacute referecircncia nas trecircs grandes religiotildees que surgiram no Oriente Meacutedio cristianismo islamismo e judaiacutesmo Assim como ldquoAleluiardquo essa palavra tambeacutem natildeo se traduz em nenhum idioma sendo compreendida por todas as culturas sob a influecircncia de pelo menos uma das religiotildees mencionadas anteriormente

72 FRANCISCO Edson Faria de In Liacutengua Hebraica Aspectos Histoacutericos e Caracteriacutesticas (2010)73 JOUumlON P MURAOKA T (2007) Gramaacutetica del Hebreo Biacuteblico sect40 ndash nota74 CRUZ A d Estratificaccedilatildeo linguiacutestica ampliaccedilatildeo semacircntica e polissemia em hebraico Revista Veacutertices 11 2011 p 4275 PELT Miles Van The vocabulary guide to biblical Hebrew 2003 p ix76 WILLIAM B EERDMANS PUBLISHING COMPANY (1974) Theological Dictionary of The Old Testament (Vol I) Paacutegs 292293

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1 AMEacuteM EM DIVERSAS CULTURASA palavra tem algumas caracteriacutesticas particulares em cada uma dessas

religiotildees apesar de natildeo estar incluiacuteda no Alcoratildeo āmīn eacute uma das mais im-portantes na oraccedilatildeo islacircmica usada em diferentes contextos principalmente na sua conclusatildeo77 o rabino Chanina em 225 dC afirmou que ldquoameacutemrdquo eacute um acroacutestico - a palavra eacute composta por trecircs consoantes que em hebraico sintetizam a frase ldquoDeus Rei Fielrdquo rsquoel melek e nersquoeman78 Pronunciar essa palavra no final da prece eacute segundo esse raciociacutenio uma declaraccedilatildeo espiritual de que o proacuteprio Deus vai agir jaacute no cristianismo quando se pergunta o significado de ldquoAmeacutemrdquo logo vem a resposta ldquoassim sejardquo Tambeacutem no cristianismo ela tem um conceito de encerramento conclusatildeo teacutermino sendo esta uma das uacuteltimas palavras do Novo Testamento encontrada em Apocalipse 2220 21

Independentemente do que esteja acontecendo em um culto nas igrejas evan-geacutelicas eacute comum ouvir-se um ldquoameacutemrdquo Eacute tatildeo comum no linguajar cristatildeo que se tornou inclusive uma pergunta ldquoAmeacutem irmatildeosrdquo A resposta vem a seguir ldquoAmeacutemrdquo A depender do contexto tem o sentido de ldquopode ser assimrdquo ldquocon-cordamrdquo ou ateacute mesmo ldquoeacute assim ou natildeo eacuterdquo Quando aparentemente natildeo haacute um assunto definido ou o dirigente ainda estaacute se organizando no puacutelpito surge a pergunta ldquoAmeacutemrdquo A resposta da congregaccedilatildeo eacute repetir ldquoAmeacutemrdquo Resta analisar se foi criada uma nova semacircntica

Em diversos lugares do mundo o ldquoameacutemrdquo identifica-se com a feacute Quando se termina o momento devocional e de oraccedilatildeo a palavra eacute repetida imediatamente uma vez que tem sido ensinada como significado de ldquoassim sejardquo No Dicionaacuterio Internacional de Teologia do Antigo Testamento no entanto lecirc-se que

Esse conceito tatildeo importante da doutrina biacuteblica eacute prova clara do signi-ficado biacuteblico de ldquofeacuterdquo em contraste com muitos conceitos populares do termo No acircmago do sentido da raiz estaacute a ideia de certeza Isso eacute susten-tado pela definiccedilatildeo de feacute do NT encontrada em Hebreus 11179

Esse dicionaacuterio relaciona a expressatildeo pistis com certeza e feacute algo que tambeacutem acontece em alguns versos traduzidos do hebraico pela LXX cuja raiz da palavra eacute ldquoameacutemrdquo 80 embora natildeo com uniformidade 81

77 AKASOY 200978 Strack amp BILLERBECK 1922 paacuteg 464 Apud ZINKAND 1982 p 279 rsquoāmīn in HARRIS ARCHER JR e WALTKE 199880 Dt 3220 Jeremias 92 entre outros81 ZINKAND 1982 op cit paacuteg 4

54 TeoloacutegicaRevista Brasileira de Teologia ISSN 1807-7056 nordm 8 outdez Rio de Janeiro 2020 p 51-62

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2 ʾmN e SeUS DeRivaDOS Partindo da anaacutelise da sua raiz (que neste caso eacute ʾmn) e de acordo com o

contexto eacute possiacutevel perceber que a palavra ameacutem tem um sentido que vai aleacutem do significado convencional ʾmn pode ser traduzido do texto hebraico82 de diferentes maneiras mas normalmente relacionado a ldquoconfiarrdquo e ldquoacreditarrdquo Esta eacute tambeacutem a tese defendida por Flor83 ainda que a raiz apareccedila como verbo ou adjetivo

Embora essa palavra aqui estudada seja mais conhecida como uma interjeiccedilatildeo ela tambeacutem se encontra no original tanto em raiacutezes verbais como tambeacutem em substantivos e adjetivos reafirmando o significado de confianccedila e estabilidade Eacute possiacutevel que haja alguma dificuldade para identificaacute-la especialmente pelas variaccedilotildees caracteriacutesticas da gramaacutetica hebraica No entanto ao reconhececirc-la o texto seraacute enriquecido com as possibilidades de interpretaccedilatildeo

21 ʾmN NaS RaiacutezeS veRBaiS

A primeira vez que a palavra aparece no texto do Antigo Testamento eacute na passagem de Gecircnesis 15 quando Deus percebe que Abratildeo colocava em duacutevida que ele teria descendecircncia direta Nesse episoacutedio o patriarca afirma esperar que a sua descendecircncia seria a de Eliezer mas Deus ldquoimediatamenterdquo (hinnēh - Gecircnesis 154) apresenta-lhe as suas intenccedilotildees convidando-o gentilmente84 a sair da sua tenda e ver a quantidade de estrelas no ceacuteu como um exemplo da quantidade de descendentes que ele teria

Apoacutes essa conversa diz o texto em Gecircnesis 156 ldquoEle creu [hě ěʾmin] no Se-nhor e isso lhe foi imputado para justiccedilardquo A raiz do verbo em destaque eacute ʾ mn85 Uma vez que se encontra em hifil pode ser traduzido por ldquoele acreditourdquo ou ldquoele se firmou por uma convicccedilatildeo internardquo A mudanccedila de sentimento de Abratildeo foi fundamental para o desenrolar da histoacuteria de Israel conforme apresentado no Antigo Testamento Essa passagem inclusive eacute confirmada no Novo Testamen-

82 Salvo nota indicando o contraacuterio todas as passagens biacuteblicas em portuguecircs apresentadas na presente investigaccedilatildeo foram extraiacutedas da versatildeo Revista e Atualizada da Sociedade Biacuteblica do Brasil 199983 FLOR E N (Novembro de 2000) ldquoAmenrdquo in Old Testament liturgical texts a study of its meaning and later development as a plea for ecumenical understanding p 784 Sobre a expressatildeo que demonstra esse tratamento cordial e respeitoso por parte de Deus nesta passagem ver RANGEL Rawderson ldquoNatildeo estou mandando estou pedindo a partiacutecula de Suacuteplicardquo in Revista Teoloacutegica nuacutemero 6 ago ndash dez 2018 pp 114-125 Filo afirma que a conversa natildeo foi em um niacutevel de Deus para o homem mas sim entre amigos in PAGE T E (Ed) Philo (Vol VI) London England William Heinemann Ltd Harvard University Pressp 311 85 Na LXX a traduccedilatildeo utiliza a palavra episteusen da mesma raiz da palavra feacute usada em Hebreus 11

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to 86 e nessas passagens todos os versos traduzem o ʾmn por pisteuo seguindo a LXX no aoristo enfatizando o fato da ocorrecircncia natildeo da sua natureza

Ainda como verbo no contexto de ldquoacreditarrdquo e ldquoconfiarrdquo na histoacuteria de Israel ʾmn tambeacutem aparece como uma negaccedilatildeo agrave feacute ou a crer Quando Moiseacutes estaacute diante de Deus no monte Sinai recebendo a missatildeo de libertar o povo de Israel do Egito ele pergunta ldquo[] Mas eis que natildeo creratildeo [yaʾmīnū] nem acudiratildeo agrave minha voz []rdquo (Ecircxodo 41) A falta de feacute ou confianccedila eacute tambeacutem evidenciada na passagem em que o povo de Israel teme entrar na terra prometida diante do testemunho dos espias que foram enviados a Canaatilde ldquo[] Ateacute quando me provocaraacute este povo e ateacute quando natildeo creraacute [lōʾ -yaʾ ămicircnucirc] em mim a despeito de todos os sinais que fiz no meio delerdquo87 (Nuacutemeros 1411)

O conhecido texto de Habacuque 24 eacute tambeacutem uma interessante passagem relacionada a crer e confiar ldquo() mas o justo em sua feacute [beʾ ĕmucircnāṯocirc] viveraacuterdquo [trad do autor] 88 Outra possibilidade para Habacuque 24 o justo por aquilo que ele crecirc viveraacute A feacute tem seu fundamento naquilo que estaacute estabelecido e por isso eacute digno de creacutedito

Isaiacuteas 79 apresenta um curioso jogo de palavras ldquo[] se o natildeo crerdes certamente natildeo permanecereisrdquo No hebraico os verbos crer e permanecer satildeo palavras homoacutegrafas e homoacutefonas taʾămicircnucirc e tēʾāmēnucirc reforccedilando a ideia Ambos com a raiz ʾmn tecircm o sentido de fidelidade feacute e acreditar

Acosta Rosales apresenta um estudo no qual apenas analisa essa palavra em qal 89 Mas haacute diversos outros exemplos na Biacuteblia que relacionam ʾmn com confianccedila no particiacutepio a palavra eacute usada para expressar a confianccedila de uma crianccedila nos braccedilos de sua matildee 90 ou de seus cuidadores (Nuacutemeros 1112 91 e 2Reis 101 92) em Isaiacuteas 604 93 no Nifal eacute possiacutevel tambeacutem relacionar-se o verbo a cuidadores com sentido de trazer seguranccedila e firmeza

86 Romanos 43 Gaacutelatas 36 Tiago 22387 A traduccedilatildeo correta seria creratildeo yarsquomīnū88 A palavra feacute em Habacuque 24 na LXX eacute traduzida por pistis no Genitivo singular feminino 89 ROSALES A D Re-discovering the semantics of ןמא in qal Theologica Xaveriana 67 (Grammar Philology Semantics) 431-46090 rsquoāman in WILLIAM B EERDMANS PUBLISHING COMPANY 197491 Nuacutemeros 1112 ldquoConcebi eu porventura todo este povo Dei-o eu agrave luz para que me digas Leva-o ao teu colo como a ama [particiacutepio] leva a crianccedila que mama agrave terra que sob juramento prometeste a seus paisrdquo 92 2Reis 101 ldquoAchando-se em Samaria setenta filhos de Acabe Jeuacute escreveu cartas e as enviou a Samaria aos chefes da cidade aos anciatildeos e aos tutores [particiacutepio] dos filhos de Acabe dizendordquo 93 Isaiacuteas 604 ldquoLevanta em redor os olhos e vecirc todos estes se ajuntam e vecircm ter contigo teus filhos chegam de longe e tuas filhas satildeo trazidas [Nifal imperfeito 3feminina plural] nos braccedilos

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22 ʾmN COmO SUBSTaNTivO e aDjeTivO

Ainda relacionada agrave credibilidade a palavra utilizada para nomear as vigas sobre as portas do templo que deram sustentaccedilatildeo agrave construccedilatildeo tem em sua raiz ʾmn em 2Reis 1816 encontramos a palavra traduzida por ombreiras 94 das portas do templo de Israel95 Na LXX a traduccedilatildeo eacute de uma palavra derivada de stērizō algo que daacute estabilidade Quando se avalia toda a estrutura do templo evidencia-se que tais ombreiras natildeo poderiam ser algo sem uma firmeza e que garantissem seguranccedila

Como sustentaccedilatildeo e credibilidade relacionadas a pessoas ʾmn encontra-se em Ecircxodo 1712 na conhecida passagem em que os filhos de Israel perdiam a batalha quando Moiseacutes baixava as suas matildeos Percebendo isso Aratildeo e Hur seguraram os seus braccedilos e ldquo() assim lhe ficaram as matildeos firmes [ʾ ĕmucircnacirc] ateacute ao pocircr-do-solrdquo96 Com a firmeza veio a certeza da vitoacuteria Novamente atraveacutes da raiz o texto atribui agrave atitude desses homens o sinocircnimo de seguranccedila e firmeza

Essa credibilidade se observa tambeacutem como sinocircnimos de guardas e segu-ranccedilas porteiros (1Crocircnicas 922) pessoas responsaacuteveis por atividades diversas em quem se depositou total confianccedila (1Crocircnicas 931 2Crocircnicas 3412)

Haacute vaacuterios substantivos que satildeo derivados da raiz ʾ mn e todos eles transmitem a ideia baacutesica de ldquosuporte firmezardquo ou ldquoconfirmaccedilatildeordquo Haacute variantes da palavra traduzidas por ldquopai adotivordquo algueacutem que apoia e nutre um grupo familiar dando-lhe estabilidade e firmeza A forma feminina com essa raiz ʾomenet significa ldquomatildee adotivardquo e inclui a ideia de ldquonutrirrdquo ldquofortalecerrdquo Outra palavra que demonstra essa firmeza agora na arte eacute ʾuman denota ldquoum operaacuterio habi-lidosordquo traduzido por ldquoartesatildeordquo97

O texto biacuteblico apresenta uma relaccedilatildeo curiosa entre o homem e ʾmn falando em termos da natureza humana ele eacute falho e inseguro pode vacilar Os adjetivos relacionados com ʾ mn atribuiacutedos aos seres humanos nunca englobam a sua tota-lidade mas sim aspectos e momentos pontuais que viveram Nem mesmo a Joacute que recebeu os elogios do Senhor por sua integridade eacute atribuiacutedo esse adjetivo

No entanto eacute a Deus que ʾ āman eacute atribuiacutedo Para Flor isso acontece especial-mente no livro de Salmos (mas natildeo soacute) porque Deus eacute imutaacutevel estaacutevel e firme

94 A mesma palavra pode ter dois significados diferentes um se refere a m ezuwzah (laterais) enquanto que a palavra de 2 Reis 1816 se refere agrave parte superior da porta A LXX traduz por estērigmena 95 2Reis 1816 ldquoFoi quando Ezequias arrancou das portas do templo do Senhor e das ombreiras o ouro de que ele rei de Judaacute as cobrira e o deu ao rei da Assiacuteriardquo96 A LXX traduz este texto com a mesma ideia97 FLOR E N op cit p 15

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enquanto o ser humano frequentemente eacute fraco instaacutevel e inconstante98 Por essa razatildeo acreditando nisso em Lamentaccedilotildees 323 se lecirc a respeito das misericoacuterdias de Deus ldquo() renovam-se cada manhatilde Grande eacute a tua fidelidade [ʾ ĕmucircnātekā]rdquo

A palavra do Senhor tambeacutem eacute tida por fiel e verdadeira digna de credibili-dade e aiacute tambeacutem se encontra a raiz da palavra em questatildeo O salmo 119 nos versos 75 86 90 138 o poeta homenageia a Lei de Deus qualificando-a de fiel e verdadeira

3 āʾmaN e ldquoaSSim Sejardquo

A palavra ldquoAmeacutemrdquo aparece vinte e quatro vezes no Antigo Testamento (doze delas apenas em Deuteronocircmio 2715ss) Devido agrave variedade de possibilidades torna-se difiacutecil identificar o seu real sentido no hebraico99

Haacute textos que sugerem a expressatildeo ldquoassim sejardquo em sua traduccedilatildeo com uma conotaccedilatildeo de confirmaccedilatildeo daquilo que estava sendo dito como nos versos de Jeremias 115100 286101 e 1Reis 136 37102 Nesses textos eacute possiacutevel interpretar que Deus daria a sua becircnccedilatildeo ao que jaacute havia sido planejado e dito Nessas passagens a referecircncia eacute feita aos oradores somente porque eles reconheceram o que jaacute havia sido determinado por YHVH e confirmaram a afirmaccedilatildeo Suas declaraccedilotildees podem significar ldquoPrecisamente Eu sinto o mesmo a respeito que Deus o faccedilardquo103 Eacute como uma aceitaccedilatildeo do que foi estabelecido natildeo uma esperanccedila em algo que aconteceria

Existem tambeacutem ao menos trecircs passagens nas quais a palavra ldquoameacutemrdquo estaacute em uma situaccedilatildeo diferente da mencionada anteriormente todas elas relacionadas a uma maldiccedilatildeo contra a pessoa envolvida em Deuteronocircmio 2715-26 (declara-ccedilatildeo de maldiccedilotildees no caso do natildeo cumprimento das leis e estatutos estabelecidos por Deus) em Nuacutemeros 522104 (declaraccedilatildeo solene acontecia no momento em que

98 ibidem p 1799 WILLIAM B EERDMANS PUBLISHING COMPANY op cit p 320100 Jeremias 115 ldquoPara que confirme o juramento que fiz a vossos pais de lhes dar uma terra que manasse leite e mel como se vecirc neste dia Entatildeo eu respondi e disse ameacutem oacute Senhorrdquo101 Jeremias 286 ldquoDisse pois Jeremias o profeta Ameacutem Assim faccedila o Senhor confirme o Senhor as tuas palavras com que profetizaste e torne ele a trazer da Babilocircnia a este lugar os utensiacutelios da Casa do Senhor e todos os exiladosrdquo102 1Reis 136 37 ldquoEntatildeo Benaia filho de Joiada respondeu ao rei e disse Ameacutem Assim o diga o Senhor Deus do rei meu senhor Como o Senhor foi com o rei meu senhor assim seja com Salomatildeo e faccedila que o trono deste seja maior do que o trono do rei Davi meu senhorrdquo103 WILLIAM B EEDERMANS PUBLISHING op cit pp 320104 Nuacutemeros 522 ldquoE esta aacutegua amaldiccediloante penetre nas tuas entranhas para te fazer inchar o ventre e te fazer descair a coxa Entatildeo a mulher diraacute Ameacutem Ameacutemrdquo

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a mulher era confrontada sobre o adulteacuterio) e em Neemias 513105 (compromisso contra a usura) Por serem maldiccedilotildees que recairiam sobre quem natildeo cumprisse a sua palavra ou imprecaccedilatildeo sobre a pessoa condenada a expressatildeo sugere uma declaraccedilatildeo solene de que aqueles castigos iriam acontecer106 Seria o conhecido ldquoassim sejardquo pronunciado em declaraccedilatildeo solene de aceitaccedilatildeo do castigo contra aquele que estava assumindo o compromisso

Em algum momento a expressatildeo passou a ser tambeacutem usada na Doxologia em resposta da congregaccedilatildeo diante de uma declaraccedilatildeo de Deus em Neemias 86 a congregaccedilatildeo diz ldquoameacutem ameacutemrdquo levantando as suas matildeos Natildeo se sabe dizer se este jaacute era um costume seguido (conforme 1Crocircnicas 1636) ou se passou a ser regular a partir daquele momento107 Sobre os cacircnticos do salteacuterio a palavra aparece no final dos primeiros quatro livros (Salmos 4113 7219 8952 10648)

CONCLUSAtildeO Os exemplos apresentados ilustram a importacircncia de o estudante do hebraico

biacuteblico analisar as palavras a partir de suas raiacutezes para poder interpretar melhor o texto biacuteblico sempre considerando prioritariamente o contexto que eacute deter-minante na interpretaccedilatildeo108 Dificilmente haveraacute um uacutenico significado oriundo de uma uacutenica raiz portanto conhecer os seus significados seraacute uma grande contribuiccedilatildeo no estudo do texto biacuteblico

Quando um hebreu ouvia as vaacuterias palavras derivadas da raiz ʾmn a ideia baacutesica que lhe vinha agrave mente era aparentemente ldquoconstacircnciardquo ldquoestabilidaderdquo Quando se referiam a objetos significavam ldquocontinuidaderdquo quando relacionadas a pessoas ldquoconfiabilidaderdquo Outros derivados da raiz satildeo ldquodurabilidaderdquo ldquoesta-bilidaderdquo ldquoverdaderdquo ldquofeacuterdquo ldquocompletuderdquo ldquoaquele que protegerdquo109 No entanto Deus eacute aquele que plenamente tem essas virtudes e atributos o ser humano tem essas qualidades ateacute certo ponto devido agrave sua limitaccedilatildeo e fragilidade

Quanto agrave palavra ldquoameacutemrdquo que proveacutem da raiz que expressa todas as qualida-des mencionadas anteriormente a expressatildeo tem o sentido de feacute e confianccedila em algo previamente estabelecido mas tambeacutem expressa uma certeza e confianccedila 105 Neemias 513 ldquoTambeacutem sacudi o meu regaccedilo e disse Assim o faccedila Deus sacuda de sua casa e de seu trabalho a todo homem que natildeo cumprir esta promessa seja sacudido e despojado E toda a congregaccedilatildeo respondeu Ameacutem E louvaram o Senhor e o povo fez segundo a sua promessardquo106 Barry J D Mangum D Brown D R Heiser et al Faithlife Study Bible (Dt 2715) Bellingham WA Lexham Press 2016107 WILLIAM B EEDERMANS PUBLISHING op cit pp 321108 Osborne (2009 paacutegs 101-139 especialmente as paacutegs 104-108) trata do exagero que muitos estudiosos da Biacuteblia datildeo agraves palavras analisadas de forma isolada descontextualizada109 WILLIAM B EEDERMANS PUBLISHING op cit pp 323

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quanto ao futuro Quando observada no Antigo Testamento ela eacute feita de forma solene e consciente e por isso mesmo raramente eacute encontrada no texto

A expressatildeo que sugere uma ratificaccedilatildeo eacute cuidadosamente aplicada nas paacutegi-nas da Biacuteblia natildeo sendo uma palavra dita em qualquer momento ou por qualquer situaccedilatildeo A conclusatildeo de Lande eacute que ldquoameacutemrdquo eacute usado como confirmaccedilatildeo de uma situaccedilatildeo muito especial e que a expressatildeo natildeo pertence agrave fala cotidiana110 Hulst expressa a mesma opiniatildeo ao afirmar ldquoA palavra ameacutem natildeo pertence agraves palavras do uso diaacuterio constante eacute mantido para uso em situaccedilotildees muito especiais e aleacutem disso raramente ocorre111 Por sua raridade no texto biacuteblico os personagens do Antigo Testamento tinham consciecircncia do seu sentido e o respeitavam

No AT a palavra eacute usada tanto pelo indiviacuteduo quanto pela comunidade para 1) confirmar a aceitaccedilatildeo de uma tarefa designada por homens mas a sua exe-cuccedilatildeo envolve a vontade de Deus (1Reis 136) 2) ratificar a aplicaccedilatildeo pessoal de uma ameaccedila ou maldiccedilatildeo divina (Nuacutemeros 522 Deuteronocircmio 2715ss Jeremias 115 Neemias 513) e 3) para declarar o louvor a Deus em resposta a uma doxologia (1Crocircnicas 1636 Neemias 86) como mostram os textos finais dos primeiros quatro livros dos Salmos (4113 7219 8952 10648)112

110 LANDE 1949 paacuteg 112 apud FLOR 2000 pp 16 17111 HULST 1953 p50 apud FLOR E N ldquoAmenrdquo in Old Testament liturgical texts a study of its meaning and later development as a plea for ecumenical understanding University of South Africa novembro de 2000 p17112 RENGSTORF ἀμήν in Wm B Eerdmans Publishing Co 1964 paacuteg 335

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A ANAacuteLISE DO DISCURSO NA INTERPRETACcedilAtildeO BIacuteBLICA

DISCOURSE ANALYSIS IN BIBLICAL INTERPRETATIONMe Thaiacutes de Oliveira Viriacutessimo113

Universidade Federal do Rio de Janeiro

RESUMO A Anaacutelise do Discurso tida como relevante para a interpretaccedilatildeo dos inuacutemeros

gecircneros textuais existentes eacute uma teoria linguiacutestica com extensiva abrangecircncia e aplicabilidade Sua importacircncia tem sido reconhecida inclusive por aqueles que manuseiam textos antigos entre os quais a Biacuteblia eacute encontrada Por ser ainda escassa a interaccedilatildeo entre estudos da linguagem e teologia no ambiente acadecircmico brasileiro objetiva-se neste artigo apresentar a Anaacutelise do Discurso como ferramenta possiacutevel de interpretaccedilatildeo biacuteblica Para isso interpretou-se Evangelho de Marcos 11-4 por meio do meacutetodo desenvolvido por Viriacutessimo (2018) sob os pressupostos da linguiacutestica textual (HORTA 1991 WALLACE 2009 GUTHRIE DUVALL 1998 OLSSON 2013) A pesquisa resultou na compilaccedilatildeo de informaccedilotildees criacuteticas acerca do texto biacuteblico

Palavras-chave Anaacutelise do Discurso Novo Testamento Grego koineacute Evan-gelho de Marcos

ABSTRACTConsidered as relevant for interpreting many existing textual genres Discour-

se Analysis is a linguistic theory with wide scope and applicability Even those who handle Ancient texts among which the Bible is found have recognized its importance As the interaction between studies in languages and Theology in Brazilian colleges is still rare this paper aims to present Discourse Analysis as a tool for biblical interpretation Using the method developed by Viriacutessimo (2018) the Gospel of Mark 11-4 was observed through linguistic assumptions (HORTA 1991 WALLACE 2009 GUTHRIE DUVALL 1998 OLSSON 2013) As a result it was developed a critical compilation of informations about the text

Keywords Discourse Analysis Biblical interpretation New Testament Koine Greek Gospel of Mark

113 Mestre em Letras Claacutessicas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro Possui tambeacutem os tiacutetulos de Licenciada em Portuguecircs-Grego pela supracitada instituiccedilatildeo e de Especialista em Antropologia Intercultural pelo Centro Universitaacuterio de Anaacutepolis (UniEvangeacutelica) Email virissimoprotonmailcom

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1 INTRODUCcedilAtildeOEacute lugar comum afirmar que nenhuma outra obra literaacuteria foi e permanece sen-

do tatildeo citada comentada traduzida e questionada na histoacuteria da humanidade como a Biacuteblia ndash coletacircnea de livros sagrados para o cristianismo e igualmente respeitada por outros segmentos religiosos globais114 A influecircncia da Biacuteblia eacute notoacuteria inclusive no que se refere agrave formaccedilatildeo cultural brasileira Suas histoacuterias inspiraram a arquitetura a exemplo do Redentor de braccedilos abertos sobre a Baiacutea de Guanabara a literatura como os personagens machadianos Esauacute e Jacoacute a muacutesica conforme a mistura dos amores poeacuteticos cantada por Renato Russo em seu Monte Castelo

Ainda assim a abordagem da Biacuteblia como um objeto de estudo suscetiacutevel ao escrutiacutenio por meacutetodos multidisciplinares continua sendo miacutenima no espaccedilo acadecircmico nacional Eacute certo que avanccedilos promissores precisam ser destacados nessa aacuterea como o recente ldquoEstudos Biacuteblicos em Foco I Congressordquo evento promovido pelo Instituto de Letras da UERJ em novembro de 2019 Contudo faz-se indispensaacutevel natildeo apenas a criaccedilatildeo mas a manutenccedilatildeo de iniciativas de pesquisas biacuteblicas fora dos ambientes confessionais de reflexatildeo

A promoccedilatildeo pois de uma metodologia de pesquisa ancorada na Anaacutelise do Discurso destacando-se a sua utilidade no ensino de liacutengua e teologia eacute a linha de chegada que se pretende alcanccedilar com esta publicaccedilatildeo Para tal o artigo foi organizado nas seguintes seccedilotildees 2 Anaacutelise do Discurso em que conceitos fundamentais acerca do assunto seratildeo apresentados 3 Metodologia em que o meacutetodo proposto seraacute passo a passo descrito numa siacutentese teoacuterica e exemplificado com sua aplicaccedilatildeo em Segundo Marcos 11-4 conforme os itens subsequentes ndash 31 Contextualizaccedilatildeo 32 Etapas de anaacutelise 33 Notas e 34 Interpretaccedilatildeo e 4 Consideraccedilotildees finais em que se registraraacute a importacircncia do diaacutelogo entre as Ciecircncias da Linguagem e a Teologia

2 ANAacuteLISE DO DISCURSOA Anaacutelise do Discurso (doravante AD) eacute um quadro teoacuterico com vaacuterias pos-

sibilidades de aplicaccedilatildeo visto que nele podem ser considerados na anaacutelise de

114 O islamismo por exemplo tem registrado no Alcoratildeo a validade da Toraacute e da Biacuteblia como escrituras inspiradas por Deus Alguns versiacuteculos em que isso pode ser percebido satildeo ldquoEle te revelou (oacute Mohammad) o Livro (paulatinamente) com a verdade corroborante dos anteriores assim como havia revelado a Toraacute e o Evangelhordquo (33) ldquoDize Cremos em Allah no que nos foi revelado no que foi revelado a Abraatildeo a Ismael a Isaac a Jacoacute e agraves tribos e no que do Senhor foi concedido a Moiseacutes a Jesus e aos profetas natildeo fazemos distinccedilatildeo alguma entre eles porque somos para Ele muccedilulmanosrdquo (384) ldquoE se tivessem sido observantes da Toraacute do Evangelho e de tudo quanto lhes foi revelado por seu Senhor alimentar-se-iam como que estaacute acima deles e do que se encontra sob seus peacutes [hellip]rdquo (566)

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um texto os seus aspectos extralinguiacutesticos (contexto de produccedilatildeo tipografia meio de apresentaccedilatildeo etc) paralinguiacutesticos (pontuaccedilatildeo entonaccedilatildeo atos de fala gecircnero textual etc) e linguiacutesticos (ordem lexical nominalizaccedilatildeo estilo etc) (LOUW 1992 p18) Mesmo textos antigos com sua exiguidade de formas podem ser observados agrave luz da AD quando definida como ldquoum processo de investigaccedilatildeo pelo qual algueacutem examina a forma e a funccedilatildeo de todas as partes e niacuteveis de um discurso escrito com o objetivo de melhor compreender tanto as partes como o todo daquele discursordquo (GUTHRIE 2001 p 255 traduccedilatildeo nossa)115 Contudo para melhor compreensatildeo do que eacute a AD faz-se necessaacuterio definir o que se entende como discurso

Funcionando ldquoao mesmo tempo como referindo objetos empiacutericos (lsquohaacute discursosrsquo) e como algo que transcende todo ato de comunicaccedilatildeo particular (lsquoo homem eacute submetido ao discursorsquo)rdquo (MAINGUENEAU 2015 p 23) ldquodiscursordquo eacute um termo polivalente Por um lado em associaccedilatildeo a ldquoobjetos empiacutericosrdquo refere-se a ldquoum conceito superordenador no que diz respeito agraves questotildees tradicionais dos filoacutelogos e dos literatosrdquo por abranger ldquotoda uma variedade de gecircneros literaacuterios de registros de niacuteveis de textualizaccedilatildeo das obras bem como as distinccedilotildees formais entre poesia e prosardquo (BONDARCZUK 2017 p 61) Por outro lado extrapolando o ato comunicativo discurso eacute ldquoum processo e natildeo um objeto apresentando um movimento que tem sua dinacircmica proacutepria (ou dyacutenamis) e que por sua vez envolve a negociaccedilatildeo de significado entre os interlocutoresrdquo (BONDARCZUK 2017 p 61) A proacutepria etimologia da palavra mostra que discurso ldquotem em si a ideia de curso de percurso de correr por de movimentordquo sendo assim ldquopalavra em movimento praacutetica de linguagem com o estudo do discurso observa-se o homem falandordquo (ORLANDI 2000 p 15)

Frente a tal complexidade a AD se configura como uma aacuterea de estudos da linguagem que perpassa procedimentos de anaacutelise linguiacutestica tradicionais chegando aos campos de atuaccedilatildeo das teorias linguiacutesticas modernas No que diz respeito aos estudos biacuteblicos somam-se deacutecadas de aplicaccedilatildeo da AD com propoacutesitos diversos ndash desde a traduccedilatildeo da Biacuteblia ateacute a interpretaccedilatildeo desta propriamente dita Porter (2015 p 134) identifica cinco tipologias de AD desen-volvidos para esses fins (1) a Sulafricana (2) a da Sociedade Internacional de Linguiacutestica (Summer Institute of Linguistics SIL) (3) uma abordadem ecleacutetica (4) a amparada na Linguiacutestica Sistecircmico-Funcional e (5) a Continental Euro-peia116 Como se veraacute adiante eacute nessa uacuteltima tipologia em que o meacutetodo a ser apresentado foi ancorado

115 ldquoa process of investigation by which one examines the form and function of all the parts and levels of a written discourse with the aim of better understanding both the parts and the whole of that discourserdquo116 Para maiores detalhes cf Breve histoacuterico entre Anaacutelise do Discurso e os estudos do Novo Testamento subcapiacutetulo da dissertaccedilatildeo de mestrado da presente autora (VIRIacuteSSIMO 2018)

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3 METODOLOGIAA Anaacutelise do Discurso Continental Europeia especificamente nos trabalhos

desenvolvidos pela escola escandinava eacute base dessa metodologia porque sendo sua ecircnfase o texto escrito o que com ela objetiva eacute o esclarecimento das relaccedilotildees de conteuacutedo entre as partes do texto explicando-as em termos da proacutepria liacutengua original Por isso eacute comum essa tipologia ser comparada agrave Linguiacutestica Textual e conforme o teoacutelogo e analista do discurso sueco Birger Olsson ldquouma anaacutelise linguiacutestico-textual eacute um componente baacutesico de todas as exegesesrdquo117 (OLSSON 1985 p 107 apud GUTHRIE 2001 p 256 traduccedilatildeo nossa)

Em suma na tipologia Continental Europeia segundo a elaboraccedilatildeo que Reed (1996) faz das formulaccedilotildees de David Hellholm professor emeacuterito da Faculdade de Teologia da Universidade de Oslo

a anaacutelise do discurso estaacute amplamente preocupada com a comunicaccedilatildeo (Ausdruck) dos signos (Zeichn) por um autorfalante (Sender) e o efeito (Appell) que eles tecircm em um leitorouvinte (Empfaumlnger) Tais signos representam arbitrariamente (Darstellung) coisas como objetos assunto e circunstacircncias (Gegenstaumlnde und Sachverhalte) dos mundos externo e interno dos textos Isso eacute basicamente o que a parte de anaacutelise do termo ldquoanaacutelise do discursordquo envolve (REED 1996 p 225 traduccedilatildeo nossa)118

Feitas tais consideraccedilotildees sobre a tipologia empregada cabe dizer que as subseccedilotildees a seguir estatildeo divididas em explicaccedilatildeo do processo e a aplicaccedilatildeo a fim de exemplificaacute-lo no corpus neotestamentaacuterio

31 CONTEXTUALIZACcedilAtildeO

O primeiro passo da contextualizaccedilatildeo do corpus eacute a leitura integral de uma traduccedilatildeo jaacute existente sempre que disponiacutevel da obra em que ele se encontra A versatildeo biacuteblica aqui consultada foi a Almeida Revista e Atualizada (seguidamente ARA) em funccedilatildeo de nela ser respeitada ldquona medida do possiacutevel a forma da liacutengua em que se encontra a mensagem originalrdquo (BARNWELL 2011 p 15) Ademais no estudo da Biacuteblia eacute oportuna a leitura em diferentes versotildees para comparaccedilatildeo ldquotraduccedilotildees entre as quais vocecirc consiga perceber os pontos de divergecircnciardquo (FEE STUART 2011 p 43) e caso o pesquisador assim queira

117 ldquoA text-linguistic analysis is a basic component of all exegesisrdquo118 ldquoDiscourse analysis is broadly concerned with the communication (Ausdruck) of signs (Zeichen) by an authorspeaker (Sender) and the effect (Appell) they have on a readerlistemer (Empfaumlnger) Such signs arbitrarily represent (Darstellung) such things as objects subject matter and circumstances (Gegenstaumlnde und Sachverhalte) of the external and internal worlds of the texts This is largely what the analysis part of the term lsquodiscouse analysisrsquo entailsrdquo

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fazer sugere-se que essa leitura comparativa esteja focada no corpus propria-mente dito

No mesmo passo da leitura realiza-se uma pesquisa histoacuterico-literaacuteria e formula-se uma redaccedilatildeo a respeito de questotildees gerais como autoria dataccedilatildeo gecircnero puacuteblico alvo entre outras informaccedilotildees que o pesquisador julgar perti-nentes Para este exemplar consultou-se o livro Introduccedilatildeo ao Novo Testamento (CARSON MOO MORRIS 1997) e a partir dele expandiu-se a bibliografia Eacute profiacutecuo que o pesquisador jaacute nessa etapa comece a estabelecer suas convicccedilotildees a respeito das questotildees gerais pontuando em seu texto quais variedades satildeo-lhe mais coerentes no todo conforme o resultado a seguir

ΚΑΤΑ ΜΑΡΚΟΝ como apresenta a 5ordf ediccedilatildeo de The Greek New Testament (ALAND 2014) traduzido como Segundo Marcos refere-se ao tiacutetulo atribuiacutedo pela tradiccedilatildeo eclesiaacutestica ao segundo evangelho da ordem canocircnica Contudo a nomenclatura mais popular para a obra eacute a de Evangelho de Marcos ou sim-plesmente Marcos isso por dois fatores Em primeiro lugar os quatro escritos dedicados agrave vida e ao serviccedilo de Jesus satildeo tradicionalmente tidos como ldquoevan-gelhordquo ndash palavra extraiacuteda justamente do primeiro versiacuteculo de Marcos Eacute vaacutelido dizer que Marcos esteve agrave margem dos estudos neotestamentaacuterios por muito tempo possivelmente em funccedilatildeo de ser esse o evangelho de menor extensatildeo (16 capiacutetulos em comparaccedilatildeo aos 28 de Mateus 24 de Lucas e 21 de Joatildeo) Jaacute nos dias atuais o relato tem ganhado proeminecircncia por ser o mais antigo de que se dispotildee acerca de Jesus tendo servido como base para os textos mateano e lucano (PAGOLA 2013 p 11)

A outra razatildeo pela qual a obra tem o tiacutetulo exposto deve-se ao fato de a primeira atribuiccedilatildeo de um suposto Marcos como autor do livro datar do II seacutec Euseacutebio historiador cristatildeo do IV seacutec dedica boas porccedilotildees de seu livro Histoacuteria Eclesiaacutestica (326 d C) discutindo a formaccedilatildeo do cacircnone evangeacutelico Ao escre-ver acerca de Segundo Marcos Euseacutebio primeiramente registra o depoimento de um presbiacutetero testemunhado por Papias bispo da Friacutegia por volta de 120 d C o qual dizia que embora natildeo tivesse ouvido e seguido diretamente a Jesus Marcos veio a escrever sobre suas accedilotildees por ter sido disciacutepulo e inteacuterprete do apoacutestolo Pedro (CESAREacuteIA III 39 15) Euseacutebio citaria ainda outros Pais da Igreja como Irineu (185 d C) e Clemente (195 d C) e justificaria a criaccedilatildeo do texto em muito pela insistecircncia da comunidade para que um relato evangeacutelico fosse escrito

A figura desse Marcos segundo o testemunho biacuteblico (TENNEY 2008 v 4 p 117) poderia ser construiacuteda a partir da fuga de Pedro da prisatildeo o apoacutestolo

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logo se dirigiu ldquoagrave casa de Maria matildee de Joatildeo tambeacutem chamado Marcos onde muita gente se havia reunido e estava orandordquo (Atos dos Apoacutestolos 1212 - ARA) Marcos cujo nome hebraico era Joatildeo parece ter sido um jovem financeiramente abastado levando-se em conta o fato de sua matildee acolher a receacutem-nascida co-munidade cristatilde em sua proacutepria casa pondo inclusive servos agrave disposiccedilatildeo dos seus integrantes (Atos dos Apoacutestolos 1213) Um detalhe interessante sobre a figura de Maria matildee de Marcos eacute seu provaacutevel status de viuacuteva uma vez que a propriedade era considerada como dela o que seria inconcebiacutevel agrave eacutepoca caso o marido ainda vivesse

O valor da mulher oriental no periacuteodo de Jesus estava ligado agrave fecundidade e ao lar natildeo se comparando ao homem na perspectiva da religiatildeo (JEREMIAS 1983 p 493) Contudo o papel desempenhado por Maria junto a essa comuni-dade cristatilde chama ainda a atenccedilatildeo para a importacircncia de natildeo se subestimar a atuaccedilatildeo das mulheres no ambiente cristatildeo natildeo apenas no sustento dos evange-lizadores mas sobretudo na divulgaccedilatildeo da mensagem de Jesus desde os dias em que o Nazareno iniciou sua missatildeo na Galileia Os registros evangeacutelicos mostram Jesus sempre disposto a posicionar a figura da mulher dentro do vindouro Reino de Deus dando-lhe voz e importacircncia ndash tanto por meio dos diaacutelogos estabelecidos com mulheres como por paraacutebolas contadas cujo enredo as tinha como personagens

Joatildeo Marcos tambeacutem possuiacutea parentesco com o proeminente liacuteder cristatildeo Barnabeacute (Colossenses 410) que o levou em sua primeira viagem missionaacuteria com Paulo (Atos dos Apoacutestolos 135) Entretanto agrave eacutepoca da empreitada Joatildeo acabou retornando a Jerusaleacutem (Atos dos Apoacutestolos 1313) Os motivos dessa desistecircncia satildeo desconhecidos sabe-se no entanto que eles foram prejudiciais a ponto de separar Paulo e Barnabeacute nas viagens posteriores (Atos dos Apoacutestolos 1537-39a) Tempos depois o jovem viria a ser considerado com respeito por Paulo aquele que antes o rejeitara (Colossenses 410 1Timoacuteteo 411 Filemom 24) Tambeacutem Pedro diria ldquoMarcos meu filhordquo (1Pedro 513) ao citaacute-lo como companheiro na chamada ldquoBabilocircniardquo ndash provavelmente Roma

Haacute quem infira ldquoassinaturas ao peacute do quadrordquo ou seja evidecircncias autorais textuais deixadas no proacuteprio evangelho (POHL 1998) Um exemplo eacute o excerto de Marcos 1017-22 o qual se refere ao encontro de Jesus com um homem rico tambeacutem relatado em Mateus 1916-22 e Lucas 1818-23 Para alguns estudiosos eacute sugerido um testemunho pessoal no versiacuteculo 21 ldquoJesus entatildeo tendo olhado para ele com olhos de amor []rdquo (traduccedilatildeo nossa) Uma informaccedilatildeo dessa natureza argumentam esses estudiosos somente poderia ser registrada pela pessoa presente em tal situaccedilatildeo ou seja o jovem e rico Joatildeo Marcos de Atos dos Apoacutestolos

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Ainda que haja consenso na Tradiccedilatildeo quanto agrave autoria de Segundo Marcos o mesmo natildeo se pode afirmar no que diz respeito ao local de publicaccedilatildeo embora a inclinaccedilatildeo da maioria seja Roma (CARSON MOO MORRIS 1997 p 107) Tambeacutem quanto agrave data de criaccedilatildeo do texto quatro satildeo as deacutecadas sugeridas Sendo a primeira delas os anos 40 d C jaacute se mostra evidente o texto escrito ser o produto de uma tradiccedilatildeo preacute-literaacuteria extensa jogando luz sobre o caraacutecter oral do evangelho Endossa-se aqui a suposiccedilatildeo da publicaccedilatildeo de Segundo Marcos ter ocorrido em meados dos anos 60 d C muito em funccedilatildeo de seu conteuacutedo e do que disseram os primeiros liacutederes acerca de sua produccedilatildeo

A principiante feacute cristatilde do I seacutec estava imersa em um amaacutelgama religioso que a ela fortemente se opunha Por um lado as pressotildees teoloacutegicas dos judeus como os escritos neotestamentaacuterios bem expotildeem por outro a repressatildeo do Im-peacuterio Romano a partir do governo de Nero (CAIRNS 1995 p 73) quando teve iniacutecio o grande massacre tanto de judeus como de cristatildeos crentes opositores agrave religiatildeo oficial sendo estes torturados como uma forma de entretenimento puacuteblico (GONZAacuteLEZ 1995 p 25) Justifica-se assim a feitura de Marcos como o apelo agrave firmeza em resposta a difiacuteceis tempos de perseguiccedilatildeo e martiacuterio e o combate ao sincretismo das divisotildees religiosas

Voltando ao evangelho como texto literaacuterio Marcos eacute parte do tetraeuangeacute-lion ldquoisto eacute os quatro Evangelhos vistos como um conjunto de documentos sal-viacuteficos que tinham o mesmo valor veio a ter ampla circulaccedilatildeo e reconhecimento como nos mostram os escritos de Irineu (bispo de Lyon por volta de 180 d C)rdquo (ALAND ALAND 2013 p 53) Seu gecircnero eacute ldquoevangelhordquo propriamente dito algo proacuteprio do cristianismo ou seja ldquoum modo de expressar-se uacutenico que natildeo pode ser identificado com nenhuma outra obra do tempo antigordquo (MARCON-CINI 2012 p 9) Embora haja quem veja semelhanccedilas dos escritos evangeacutelicos com os modelos das leituras feitas nas sinagogas ou que os vincule ldquoao gecircnero da biografia greco-romana e suas variantesrdquo (ZABATIEIRO LEONEL 2011 p 41) o objetivo dos evangelistas era divulgar a mensagem de Jesus particu-larmente para as pessoas natildeo radicadas na Palestina e a forma adotada para isso foi inovadora

A liacutengua de Marcos eacute o grego koineacute em sua variaccedilatildeo semiacuteticavulgar o que a torna fascinante Um livro escrito para o povo

[] composto de aproximadamente 95 narrativas com 11240 palavras 1345 vocaacutebulos 30 aacutepax ou seja vocaacutebulos natildeo usados em outros lugares do Novo Testamento A liacutengua eacute o grego popular da koineacute com semitismos (talithagrave kum effethacirc korbacircn Abbagrave) poreacutem natildeo de tal modo

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a justificar um original aramaico com alguns latinismos (praitoacuterion kentyrion) com estilo vivaz proacuteprio da liacutengua falada pouco cuidado gramatical e sintaticamente que privilegia a parataxe ou coordenaccedilatildeo assindeacutetica (cf 630-33) inclinado a empregar anacolutos (cerca de 20) com repeticcedilatildeo de frases Tudo evidencia o estilo do narrador atestado tambeacutem pelo frequente lsquologo em seguidarsquo e pelo presente histoacuterico (150 ocorrecircncias) [] (MARCONCINI 2012 p 90)

32 ETAPAS DE ANAacuteLISE

Esta eacute de longe a parte que exige maior dedicaccedilatildeo do pesquisador pois natildeo se resume a fichar autores mesmo que de maneira criacutetica Trata-se do exame deta-lhado do corpus em sua liacutengua original Nesse ponto faz-se sobretudo necessaacuteria a escolha consciente do texto grego que melhor ofereccedila subsiacutedios de consulta a respeito de sua formaccedilatildeo Por isso as opccedilotildees adotadas pela autora deste artigo satildeo continuamente as publicaccedilotildees da Sociedade Biacuteblica da Alemanha como a quinta ediccedilatildeo do Novo Testamento grego (ALAND 2014)

A periacutecope selecionada deve entatildeo ser lida em grego ndash ato imprescindiacutevel pois ldquoseja para a estrutura seja para a especificidade do ato de ler o texto natildeo oferece suporte a um significado inequiacutevoco mas eacute lsquoo lugar de possiacuteveis significadosrsquordquo (EGGER 1994 p 92) Isto feito o texto eacute quebrado em oraccedilotildees seus elementos analisados morfossintaticamente e todo o conjunto disposto em diagrama De fato a anaacutelise morfossintaacutetica natildeo eacute um fim em si mesma mas o meio pelo qual se poderaacute dispor o texto analiticamente dividindo-o em partes ainda menores na diagramaccedilatildeo semacircntico-gramatical 119 processo em que melhor se visualizam as relaccedilotildees de niacutevel estrutural

Na disposiccedilatildeo gramatical do texto podem-se observar todos os seus consti-tuintes linguiacutesticos e as regras que os coordenam (EGGER 1994 p 74) Jaacute na disposiccedilatildeo semacircntica satildeo retratadas ldquoas relaccedilotildees de significadofunccedilatildeo entre palavras frases oraccedilotildees sentenccedilas e ateacute mesmo paraacutegrafosrdquo 120 (DUVALL GUTHRIE 1998 p 40 traduccedilatildeo nossa) pois ldquosob o aspecto semacircntico o texto eacute visto como o conjunto de relaccedilotildees (estrutura) entre os seus elementos significantes forma um todo constituindo uma espeacutecie de lsquomicro-universo semacircnticorsquordquo (EGGER 1994 p 91)

119 Embora siga o modelo proposto por Guthrie e Duvall (1998) a diagramaccedilatildeo semacircntico-gramatical aqui empregada eacute uma adaptaccedilatildeo feita por Viriacutessimo (2018) Sendo uma ferramenta ainda em desenvolvimento ela eacute por isso amplamente passiacutevel de receber criacuteticas120 ldquothe meaningfunction relationships between the words phrases clauses sentences and even paragraphsrdquo

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O diagrama conteacutem o texto grego e uma traduccedilatildeo em portuguecircs de aparecircncia interlinear Esta traduccedilatildeo eacute preliminar vindo a sofrer sucessivas revisotildees ateacute que se constitua a proposta final Contudo ela eacute importante em funccedilatildeo de o texto original ter sido redigido em grego de modo que Wegner (1998 p 28) a considera o ldquoprimeiro passo a ser realizado na exegeserdquo Uma inovaccedilatildeo da dia-gramaccedilatildeo neste artigo eacute a numeraccedilatildeo para referenciaccedilatildeo sobrescrita antes dos termos aos quais se refere Como uacuteltimo passo tem-se a redaccedilatildeo do comentaacuterio das relaccedilotildees linguiacutesticas observadas

Exemplo

Marcos 11-4

Continua

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continuaccedilatildeo

O substantivo (1) introduz Marcos delimitando o tema de toda a obra sob a construccedilatildeo em genitivo propriamente dito (2 3 4) Haacute um sentido baacutesico de posse entre (2) (3) e (4) embora este natildeo tenha sido representado por setas Optou-se por deixar os modificadores juntos na mesma linha tanto (3) como (4) por eles funcionarem como uma unidade devendo por isso ser interpretados em conjunto Outro sentido passiacutevel de ser destacado tambeacutem natildeo exposto no

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diagrama eacute de especificaccedilatildeo entre os elementos em (3) e de relacionamento em (4)

Na parte a do versiacuteculo 2 o adveacuterbio (5) verifica ou seja fornece uma evidecircncia que comprove a validade da introduccedilatildeo por meio da foacutermula de invocaccedilatildeo veterotestamentaacuteria em perfeito resultativo (6) o qual se refere a ldquouma accedilatildeo inteiramente acabada e por conseguinte tambeacutem o resultado de uma accedilatildeo passada cujos efeitos perduram (ideia de estado)rdquo (HORTA 1991 p 208) O redobro (γε-) caracteriacutestico dos tempos passados marca esse grau de acabamento da accedilatildeo que na esfera expressa em (7) reforccedila ser o agora o momento do cumprimento de algo predito O autor pela obra metoniacutemia em (8) que ligada a (7) o especifica como ecircnfase ndash repeticcedilatildeo do artigo equivalendo a adjunto adnominal enfaacutetico Na parte b do versiacuteculo a partiacutecula demonstrativa (9) chama a atenccedilatildeo para a accedilatildeo que a segue (ROBINSON 2012 p 430) o verbo (10) prefixado pela preposiccedilatildeo que despede o objeto em (11) ldquopara determinado propoacutesitordquo (LOUW NIDA 2013 p 172) Esse objeto (11) tem sua natureza especificada em (15) e pertence a (12) Tambeacutem estaacute expressa a relaccedilatildeo de posse entre (13) e (14) (16) e (17)

No versiacuteculo seguinte a construccedilatildeo (18) e (19) explica como se deu a accedilatildeo (10) sobre o objeto (11) e qual foi a sua esfera (20) de ocorrecircncia Duas exortaccedilotildees entatildeo satildeo expressas e o contraste entre elas estaacute no tempo verbal Por um lado tem-se o imperativo aoristo (21) traduzindo ldquoordem particular e momentacircneardquo por outro haacute o imperativo presente (24) exprimindo ldquouma ordem geral que perdurardquo (HORTA 1991 p 282) Transmitem assim sob ilustraccedilatildeo a impressatildeo de grande urgecircncia e necessidade de permanecircncia tanto a forccedila de significado do verbo (19) como o seu discurso (21) e (24) A relaccedilatildeo de posse em (22) e (23) eacute um paralelismo com (16) e (17) especificando em (23) a figura do (17) Ainda outra relaccedilatildeo de posse haacute entre (25) e (26)

No versiacuteculo final sem preocupaccedilatildeo com o processo mas acompanhando o tempo da narraccedilatildeo histoacuterica o tempo aoristo em (27) expressa a accedilatildeo instantacircnea (WALLACE 2009 p 554) de chegada do sujeito (28) especificado em (29) ndash subjetivaccedilatildeo do particiacutepio Nota-se um paralelismo entre as esferas expressas em (20) e (30) de modo que (28) descreve (18) dando-lhe detalhes viacutevidos A accedilatildeo (27) entatildeo eacute ligada por (31) agrave maneira como aconteceu (32) ndash noccedilatildeo adverbial presente no modo particiacutepio A mensagem (33) dessa circunstacircncia eacute especiacutefica (34) para um fim (35)

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33 NOTAS

Esta parte do meacutetodo a seguir consiste na elaboraccedilatildeo de notas explicativas acerca de palavras-chave ou passiacuteveis de esclarecimento no corpus as quais acabam por compor um dicionaacuterio proacuteprio do pesquisador Segundo Egger (1994) o processo de compreensatildeo dos significados de um texto depende do repertoacuterio de conhecimentos preacutevios do leitor jaacute que sem o arcabouccedilo cultural necessaacuterio ele natildeo seraacute capaz de apreender os sentidos velados de um escrito especialmente se este for de tempos longiacutenquos Acerca do Novo Testamento demanda-se ldquoque se aproximem ao menos os principais paralelos do ambiente p ex os do AT e do mundo heleniacutestico contemporacircneordquo (EGGER 1994 p 92)

Os verbetes da anaacutelise que se segue foram escritos com base na Enciclopeacutedia da Biacuteblia (TENNEY 2008) e apresentados com o item a respeito do qual se pretende dissertar em negrito e em portuguecircs conforme a traduccedilatildeo interlinear seguido da forma grega em itaacutelico como aparece no corpus e introduzida pela abreviaccedilatildeo ldquogrrdquo Veja a seguir

Versiacuteculo 1

Evangelho gr εὐαγγελίου Vocaacutebulo que em sua origem ldquonatildeo se referia aos quatro escritos mas a anuacutencios proclamados oralmenterdquo (MARCONCINI 2012 p 5) Sob o advento messiacircnico significa o bom anuacutencio da possibilidade de recomeccedilo e renovaccedilatildeo Seu uso eacute encontrado no Antigo Testamento com o sentido religioso da comunicaccedilatildeo da mensagem profeacutetica (cf Isaiacuteas 527) bem como para a anunciaccedilatildeo feita em cenaacuterios de guerra ou por ocasiatildeo do nascimento de uma crianccedila (cf Jeremias 2015 1Samuel 319) Esse segundo uso estaacute conectado agrave forma de uso que os gregos faziam da palavra ndash a ideia da proclamaccedilatildeo de uma notiacutecia alegre de cunho poliacutetico ou pessoal referindo-se agrave recompensa dada ao mensageiro que proclamou tal ldquoboa novardquo Novamente trata-se de uma palavra associada a contextos basicamente orais

Jesus gr Ἰησοῦ A Jesus eacute atribuiacutedo o papel mais importante em todo o Novo Testamento sendo apresentado como a chave de interpretaccedilatildeo do Antigo Nos Evangelhos Ele eacute apresentado como um homem judeu nascido milagrosa-mente nos limites da Palestina (cf Mateus 21 Lucas 24-7) pela concepccedilatildeo espiritual de Maria virgem por ainda ser noiva de Joseacute na ocasiatildeo (cf Mateus 118 Lucas 127) Sabe-se pouco acerca de sua infacircncia (cf Mateus 219-23 Lucas 241-52 416) o relato de suas accedilotildees estatildeo concentrados em sua idade adulta (cf Lucas 323)

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Cristo gr Χριστοῦ Do hebraico mashiach aquele sobre o qual Deus der-ramou a autoridade sacerdotal e real do esperado messias dos judeus (STERN 2008 p 26) Esse tiacutetulo era concedido a reis e a sacerdotes ensejando portanto aleacutem da religiosa uma interpretaccedilatildeo poliacutetica sobre Jesus

[filho de Deus] gr [υἱοῦ θεοῦ] Pode ter sido parte original ou um acreacutescimo posterior ldquopara indicar que natildeo se tem certeza quanto ao texto original as palavras υἱοῦ θεοῦ aparecem no texto entre colchetesrdquo (OMANSON 2010 p 56) Opta-se aqui pela originalidade visto que a paternidade celestial dispen-sada sobre Jesus seraacute confirmada na forma de ilustraccedilatildeo no evangelho poucos versiacuteculos depois (Marcos 110-11) sendo o Jesus evangeacutelico uma percepccedilatildeo do evangelista Assim a expressatildeo deve ser entendida como a preocupaccedilatildeo de um autor que escreve para romanos acostumados a cultuar heroacuteis nacionais atribuiacutedos de caracteriacutesticas divinas por forccedila do arcabouccedilo miacutetico grego na religiatildeo imperial

evangelho de jesus Cristo filho de Deus gr τοῦ εὐαγγελίου Ἰησοῦ Χριστοῦ [υἱοῦ θεοῦ] Mais do que pertencer a Jesus o ldquoevangelhordquo eacute o designador da boa notiacutecia acerca daquele que se tornou ldquoportador de toda novidade sendo portador de si mesmordquo (MARCONCINI 2012 p 7)

Versiacuteculo 2

Isaiacuteas o profeta gr τῷ Ἠσαΐᾳ τῷ προφήτῃ Inspirado orador que previu a vinda do salvador e servo sofredor Jesus (Isaiacuteas 9 53) cerca de 700 anos antes de ela acontecer Foi um importante profeta veterotestamentaacuterio com clara influecircncia na esfera poliacutetico-religiosa de seu tempo (2Reis 191-7) Ao longo da histoacuteria o profetismo entre os hebreus assumiu um caraacuteter vocacional e natildeo institucional em contraste agrave profecia profissional cultual popular eou monaacuter-quica (FOHRER 1982 p 289) O que se quer dizer com isso eacute que os profetas profissionais perderam sua importacircncia para ldquoos grandes profetas individuais incluindo Amoacutes e Oseacuteias Isaiacuteas e Miqueacuteias Sofonias e Jeremias Ezequiel e em parte o Deuteroisaiacuteasrdquo (FOHRER 1982 p 291) agrave medida que o povo tomava consciecircncia de que estes estavam certos contrariamente aos profetas profissionais Foi dessa maneira que se deu iniacutecio agrave compilaccedilatildeo dos discursos dos grandes profetas individuais formando coleccedilotildees que posteriormente ficaram conhecidas como escritura sagrada (FOHRER 1982 p 291)

Eia envio meu mensageiro diante da tua face gr Ἰδοὺ ἀποστέλλω τὸν ἄγγελόν μου πρὸ προσώπου σου A citaccedilatildeo no versiacuteculo 2 pertence ao profeta

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Malaquias (Malaquias 31) enquanto a metoniacutemia enfatiza Isaiacuteas A Biacuteblia que os cristatildeos do primeiro seacuteculo liam e ouviam era a Septuaginta ndash a traduccedilatildeo grega do Antigo Testamento tradicionalmente atribuiacuteda a 72 filoacutelogos durante o periacuteodo poacutes-exiacutelico conhecida tambeacutem como LXX Grande parte das citaccedilotildees no NT era baseada nessa traduccedilatildeo e muitas vezes por meio da memoacuteria auditiva que se tinha das leituras feitas em voz alta durante as concentraccedilotildees populares Ao citar apenas Isaiacuteas Marcos parece ter cometido um ato falho que priorizou o profeta maior ou seja aquele que tinha a maior quantidade de escritos sob a influecircncia divina A seguir uma exposiccedilatildeo paralela da fonte na LXX (RAHLFS 1979) e da citaccedilatildeo em Marcos

LXX NTMalaquias 31 Marcos 12ἰ δ ο ὺ ἐ γ ὼ ἐξαποστέλλω τὸν ἄγγελόν μου καὶ ἐπιβλέψεται ὁδὸν π ρ ὸ π ρ ο σώ π ο υ μου καὶ ἐξαίφνης ἥξει εἰς τὸν ναὸν ἑαυτοῦ κ ύριος ὃν ὑμεῖς ζητεῖτε κ α ὶ ὁ ἄ γ γ ε λ ο ς τ ῆ ς δ ι α θ ή κ η ς ὃν ὑμεῖς θέλετε ἰ δ ο ὺ ἔ ρ χ ε τ α ι λ έ γ ε ι κ ύ ρ ι ο ς παντοκράτωρ

Καθὼς γέγραπται ἐν τῷ Ἠσαΐᾳ τῷ προφ ήτ ῃ Ἰδο ὺ ἀποστέλλω τὸν ἄγγελόν μου πρὸ προσώπου σου ὅς κατασκευάσει τὴν ὁδόν σου∙

Isaiacuteas 403 Marcos 13φ ω ν ὴ β ο ῶ ν τ ο ς ἐ ν τ ῇ ἐ ρ ή μ ῳ ῾Ετοιμάσατε τὴν ὁ δ ὸ ν κ υ ρ ί ο υ εὐθείας ποιε ῖτε τὰς τρίβους τοῦ θεοῦ ἡμῶν

φ ο ν ὴ β ο ῶ ν τ ο ς ἐ ν τ ῇ ἐ ρ ή μ ῳ Ἑτοιμάσατε τὴν ὁ δ ὸ ν κ υ ρ ί ο υ εὐθείας ποιε ῖτε τὰς τρίβους αὐτοῦ

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Versiacuteculo 3

Deserto gr τῇ ἐρήμῳ Frequente cenaacuterio no texto biacuteblico o deserto tinha grande influecircncia na vida e na cultura da Palestina (TENNEY 2008 v 2 p 95) Em Marcos Joatildeo estava proacuteximo ao rio Jordatildeo na altura de Nazareacute da Galileacuteia (cap 1 vv 5 e 9)

Senhor gr κυρίου Trata-se de um tiacutetulo dado a Deus e a Cristo com a ideia de ldquoaquele que governa a humanidade com autoridade sobrenaturalrdquo (LOUW NIDA 2010 p 126)

Versiacuteculo 4

Joatildeo o que batiza gr Ἰωάννης [ὁ] βαπτίζων Personagem neotestamentaacuterio tido como aquele que antecederia a vinda do Cristo (Mateus 3 Marcos 12-11 Lucas 31 15-17 21-22) Filho de sacerdote (Lucas 18-25 157-80) Joatildeo Batista rompeu com as expectativas eclesiaacutesticas de sua linhagem exercendo uma vocaccedilatildeo na medida dos profetas antigos sendo por vezes associado agrave figura de Elias (Mateus 117-14) ndash ldquoesse formidaacutevel asceta frequentador do deserto em sua vestimenta grosseira fazia reviver a imagem popular de um profeta inspirado e como os antigos profetas anunciava o iminente julgamento de Deus sobre um povo infielrdquo (DODD 1977 p 137)

Batismo gr βάπτισμα Vocaacutebulo que literalmente significa imersatildeo mas que na mentalidade judaica do seacutec I ldquopoderia incorporar ambas as realidades espirituais e os siacutembolos fiacutesicos Em outras palavras quando algueacutem falava de batismo comunicava ambas as ideias ndash a realidade e o ritualrdquo (WALLACE 2009 p 370 grifo do autor)

Batismo de arrependimento gr βάπτισμα μετανοίας Expressatildeo usada nos evangelhos (Marcos 14 Lucas 38) que revela uma das tarefas da missatildeo a qual Joatildeo estava atrelado No contexto da personagem parece que

o batismo de Joatildeo Batista reflete muito mais o costume dos banhos rituais entre os judeus do que o tipo de batismo praticado pelos cristatildeos que era um siacutembolo de iniciaccedilatildeo na comunidade cristatilde baseada na feacute em Jesus Cristo e na lealdade para com ele como Senhor e Salvador (LOUW NIDA 2013 p 479)

Libertaccedilatildeo gr ἄφεσις Consiste no ldquocancelamento da culpa do pecadordquo121 (BAUER 1979 p 125 traduccedilatildeo nossa)

121 ldquocancellation of the guilt of sinrdquo

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Pecados gr ἁμαρτιῶν A transgressatildeo da medida justa em que se deveria viver tanto conforme as coisas humanas como as divinas (BAUER 1979 p 43) Por medida justa na esfera biacuteblica o paracircmetro eacute o caraacuteter de Deus (Deu-teronocircmio 324 Salmos 117 Miqueacuteias 68) A humanidade criada agrave imagem e semelhanccedila de Deus (Gecircnesis 127) assim foi feita para viver e ser conforme seu Criador (Isaiacuteas 437 1 Coriacutentios 1031) O pecado consiste pois numa desconfiguraccedilatildeo do ser humano em referecircncia a Deus Em diferentes textos do Novo Testamento (Hebreus 1012 Gaacutelatas 14 1 Joatildeo 17) nota-se que a condiccedilatildeo pecaminosa da humanidade natildeo eacute um simples erro do alvo mas um estado de degradaccedilatildeo que soacute pocircde ser transposto por Jesus em sua entrega voluntaacuteria para morrer agrave semelhanccedila dos animais usados nos sacrifiacutecios judaicos

Perdatildeo dos pecados gr εἰς ἄφεσιν ἁμαρτιῶν O desconhecido autor da Epiacutestola aos Hebreus desenvolve a ideia de perdatildeo em comparaccedilatildeo com a lei mosaica Tratando-se de uma representaccedilatildeo do que haveria de vir (Hebreus 101) a lei teve em Jesus o seu cumprimento pois por ele foi ldquooferecido para sempre um uacutenico sacrifiacutecio pelos pecadosrdquo (Hebreus 1012) Os sacrifiacutecios de animais embora fossem aceitos por Deus dentro das condiccedilotildees estabelecidas natildeo eram suficientes para apagar a consciecircncia de pecado ou seja a culpa que reside sobre aquele que peca visto que vez apoacutes vez ao espiar o sangue de um cordeiro o indiviacuteduo se lembrava de sua condiccedilatildeo de portador da transgressatildeo (Hebreus 103) O perdatildeo dos pecados configura-se pois como aquilo que tem o poder que a lei natildeo tinha a anulaccedilatildeo total da culpa (Hebreus 10 17)

34 INTERPRETACcedilAtildeO

Eis a uacuteltima etapa do meacutetodo Nela satildeo encontradas a proposta definitiva de traduccedilatildeo amparada sobre o tripeacute exatidatildeo clareza e naturalidade (BARNWELL 2011 p 25) o esboccedilo do texto parcialmente formulado neste artigo conforme os tiacutetulos encontrados na obra Synopsis Quattuor Evangeliorum (ALAND 1967) e o comentaacuterio final em que se privilegiam apenas alguns aspectos de todo o material produzido respeitando-se as conclusotildees obtidas das relaccedilotildees intra e extra textuais dos elementos estruturantes do texto de maneira a explicitar o que seja relevante para dentro do escopo da pragmaacutetica Exemplo

Esboccedilo

11 O PROacuteLOGO12-4 JOAtildeO AQUELE QUE BATIZA

12-3 Profecia veterotestamentaacuteria14 O surgimento de Joatildeo

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Proposta de traduccedilatildeo

1 Iniacutecio do evangelho de Jesus Cristo Filho de Deus 2 Assim como perma-nece escrito em Isaiacuteas o profeta ldquoAtenccedilatildeo Despeccedilo antes de tua presenccedila o meu mensageiro o qual colocaraacute em ordem o teu caminho 3 Uma voz trovejante no deserto Preparai o caminho do Senhor fazei retas as suas veredasrdquo 4 Surgiu no deserto Joatildeo aquele que batiza anunciando o batismo de arrependimento para o perdatildeo dos pecados

Reflexatildeo

O primeiro versiacuteculo de Marcos uma sentenccedila que sendo incompleta em si funciona como o tiacutetulo a obra define os paracircmetros de leitura da histoacuteria que haacute de ser contada o evangelho pertence a Jesus Eacute esse personagem o iniacutecio da causa evangeacutelica bem como o tema do livro Sem a preocupaccedilatildeo de fornecer dados histoacutericos Marcos o apresenta como o libertador prometido e resume sua genealogia filho de Deus Ao se pensar nos primeiros leitores-ouvintes pessoas ansiosas por novos tempos de prosperidade e paz a imagem de um Jesus heroico e divino mais forte que a humanidade mortal cativa a atenccedilatildeo para o que haacute de ser dito

No versiacuteculo seguinte Marcos gera ainda mais expectativa em seu puacuteblico recorrendo agrave memoacuteria coletiva das profecias antigas para mostrar a validade de sua mensagem Ele assim o faz por meio da foacutermula ldquoconforme escritordquo mos-trando sua credencial de inspiraccedilatildeo Marcos inaugura a interpretaccedilatildeo evangeacutelica do Antigo Testamento Pode-se inferir que atribuindo a referecircncia somente a Isaiacuteas profeta de singular importacircncia o evangelista procura confirmar suas palavras como dotadas da mesma autoridade da tradiccedilatildeo profeacutetica de Israel E essa antiga profecia invocada por Marcos permanece presente enquanto o texto existir Surge entatildeo o mensageiro que haveria de ser enviado da parte de Deus

Antecedendo o Cristo esperado o mensageiro aparece sob a forma de um som uma voz que se faz ouvir no deserto Satildeo duas as exortaccedilotildees que essa voz traz agora eacute hora de preparar o caminho do Senhor e permanentemente se deve preparar as suas veredas Uma mensagem urgente e contiacutenua A voz entatildeo simplesmente aparece sob o nome de Joatildeo Do ponto de vista de quem ouve a voz tudo o que foi dito ateacute agora se afigura como o preluacutedio perfeito para a chegada do novo personagem ndash que natildeo eacute o messias mas possui grande importacircncia histoacuterica na tradiccedilatildeo profeacutetica

Eis uma obra prima a imagem desse Joatildeo que surge no ermo lugar como um som trovejante irrompendo e se transformando gradativamente em homem

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numa espeacutecie de efeito sinesteacutesico Joatildeo eacute o que batiza ou seja aquele que anuncia a outros a imersatildeo na mudanccedila da forma como se vecirc e se pensa a proacutepria existecircncia para assim se alcanccedilar a possibilidade de soltura das amarras que aprisionam O misteacuterio sendo revelado sobre a figura angelical faz com que a seacuteria narrativa assuma a delicadeza de uma contaccedilatildeo de histoacuterias sem contudo anular a forccedila das verdades para aqueles que nelas creem

CONSIDERACcedilOtildeES FINAISAs etapas de execuccedilatildeo neste artigo foram aqui descritas partindo de 2

Anaacutelise do Discurso em que se procurou elucidar essa aacuterea da linguiacutestica de maneira acessiacutevel a leitores especializados em outros saberes Em 3 Metodo-logia o meacutetodo foi explanado em detalhes nos toacutepicos subsequentes Em 31 Contextualizaccedilatildeo pretendeu-se a delimitaccedilatildeo dos sentidos de produccedilatildeo do texto Em 32 Etapas de Anaacutelise foi disposta a diagramaccedilatildeo semacircntico-gramatical desse texto e uma breve anaacutelise de suas relaccedilotildees linguiacutesticas Em seguida em 33 Notas houve a elucidaccedilatildeo de termos especiacuteficos constantes do fragmento examinado Por fim em 34 Interpretaccedilatildeo a autora pretendeu alcanccedilar uma compreensatildeo mais apurada do enredo

Conclui-se que o meacutetodo apresentado figura como um instrumental interes-sante de pesquisa e de ensino ndash objetivo primeiro para o qual foi desenvolvido ndash oferecendo subsiacutedios para os dispostos a se debruccedilar sobre o aprofundamento de sua praacutetica acadecircmica eou religiosa Num contexto de impressionante preconceito da Academia para com a Biacuteblia como objeto de estudo literaacuterio eacute essencial que o inteacuterprete do texto biacuteblico esteja disposto a reinventar sua praacutetica de pesquisa por meio da dialeacutetica multidisciplinar Existe uma instrumentalidade na diversidade das teorias cientiacuteficas e esta pode ser aproveitada sem que se extrapolem os possiacuteveis sentidos do texto

Como ressalta Egger (1994 p 9) ldquouma metodologia neotestamentaacuteria eacute antes de tudo uma introduccedilatildeo agrave correta leitura dos textos do Novo Testamentordquo As distacircncias existentes entre um texto antigo e o leitor atual constituem um grande desafio dada a imensa diferenccedila entre uma eacutepoca e outra natildeo raro se afigurando praticamente impossiacutevel o pleno resgate do entendimento do modo de pensar de um narradornarrataacuterio inserido no contexto originaacuterio e o leitorinteacuterprete atual voltado para a pesquisa na constante busca do conhecimento Tanto a liacutengua como a cultura em geral passam por mudanccedilas as mais variadas ao longo do tempo e caso o pesquisador tenha um compromisso confessional com o texto ele lhe imporaacute tambeacutem distanciamentos de ordem divina (LOPES 2004 p 25)

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O reconhecimento das aparentes barreiras exige o esforccedilo do estranhamento por parte desse leitorinteacuterprete que por um lado pode estar preso agrave familia-ridade encontrada no texto ou que por outro lado pode ler equivocadamente sob seu perspectivismo o que lhe eacute desconhecido Por isso trabalhar com textos da Antiguidade eacute tambeacutem uma provocaccedilatildeo das Ciecircncias Sociais Assim para ambas as situaccedilotildees supracitadas pode-se parafrasear o antropoacutelogo Gilberto Velho (1978 p 45) e dizer que eacute necessaacuterio ao que se propotildee agrave pesquisa o confronto intelectual e emocional de diferentes versotildees e interpretaccedilotildees do texto a fim de se tornar capaz de estranhaacute-lo Soacute assim se consegue alcanccedilar a erudiccedilatildeo prometida pela reflexatildeo cientiacutefica

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ldquoNO DIA DO SENHORrdquo ndash OS ATOS O EVENTO A AUTOEXPRESSAtildeO

Uma breve reflexatildeo sobre as tradiccedilotildees lituacutergicas e sobre os termos liturgia culto e adoraccedilatildeo

Theoacutegenes Eugecircnio Figueiredo122

RESUMO No presente artigo satildeo apresentados os nuacutecleos lituacutergicos herdados do cris-

tianismo primitivo que no decorrer dos seacuteculos tiveram em si alguns elementos agregados constituindo-se posteriormente em grandes famiacutelias lituacutergicas Os protestantes satildeo caracterizados historicamente pela diversidade lituacutergica por possuiacuterem nove famiacutelias lituacutergicas No Brasil os protestantes se caracterizam como igrejas livres que fogem das foacutermulas lituacutergicas preacute-fixadas Liturgia culto e adoraccedilatildeo satildeo conceitos abordados atraveacutes dos siacutembolos ldquoos atosrdquo ldquoo eventordquo e ldquoa autoexpressatildeordquo Comenta-se a criacutetica de Kierkgaard agrave inversatildeo das funccedilotildees dos partiacutecipes de um evento cultual O evento culto eacute definido como o trabalho do povo e o evento da ldquovisatildeo de Isaiacuteasrdquo eacute apresentado como um dos modelos cultuais

Palavras-chave Culto Liturgia Adoraccedilatildeo Famiacutelias lituacutergicas Batistas

ABSTRACTThis article presents the liturgical nuclei inherited from primitive Christianity

which over the centuries had some elements aggregated to later constituting large liturgical families Protestants are historically characterized by liturgical diversity as they have nine liturgical families In Brazil Protestants are charac-terized as free churches diverting from pre-fixed liturgical formulas Liturgy worship and adoration are concepts commented by the symbols ldquothe actsrdquo ldquothe eventrdquo and ldquoself-expressionrdquo Kierkgaardrsquos critique about the inversion of the roles of participants in a worship event is commented The worship event is defined as the job of the people and the event of the ldquovision of Isaiahrdquo is commented as one of the worship models

Keywords Worship service Liturgy Worship Liturgical families Baptist

122 Doutor em Ciecircncias da Religiatildeo pela UFJF e mestre em muacutesica pela UNIRIO Professor do Curso de Licenciatura em Muacutesica com Gestatildeo da Muacutesica Eclesiaacutestica da Faculdade Batista do Rio de Janeiro - STBSB

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1 AS FAMIacuteLIAS LITUacuteRGICAS ndash O LEGADOOs elementos lituacutergicos herdados do cristianismo primitivo formaram dois

nuacutecleos o nuacutecleo da Palavra (proveniente do culto judaico que passou a ser chamado de Liturgia da Palavra nas celebraccedilotildees da Igreja Catoacutelica) e o nuacutecleo da Ceia do Senhor ou da Eucaristia Este pode ser considerado ldquocomo uma marca genuinamente cristatilderdquo123 da liturgia

Ao longo dos seacuteculos alguns elementos foram agregados a esses dois nuacutecleos da liturgia da Igreja Cristatilde surgindo uma ordo124 isto eacute ldquoum conjunto de ele-mentos e formas usados para realizar o encontro entre Deus e a comunidade E eacute a partir desse processo que se constituiacuteram as grandes famiacutelias lituacutergicas que mantecircm os nuacutecleos baacutesicos comunsrdquo125

Essas famiacutelias satildeo centralizadas em

a) Alexandria (Egito) conhecida como a liturgia de Satildeo Marcos

b) Jerusaleacutem e Antioquia (Siacuteria Ocidental) conhecida como a liturgia de Satildeo Tiago

c) Siacuteria Oriental

d) Cesareia conhecida como a liturgia de Satildeo Basiacutelio

e) Constantinopla conhecida como a liturgia bizantina ou liturgia de Satildeo Crisoacutestomo

f) Roma conhecida como a liturgia de Satildeo Pedro que se encontra em uso mais amplo no catolicismo romano

g) a liturgia gaacutelica que compreende o clatilde ocidental natildeo-romano126

Os protestantes possuem nove famiacutelias lituacutergicas tendo desde o iniacutecio o culto protestante se caracterizado pela diversidade lituacutergica O diagrama a seguir mostra essas famiacutelias

123 MARTINI 200223124 Palavra latina que significa ordem significando uma disposiccedilatildeo metoacutedica um arranjo de coisas segundo certas relaccedilotildees uma boa disposiccedilatildeo um bom arranjo um arrumaccedilatildeo (Dicionaacuterio Aureacutelio)125 MARTINI 200224126 WHITE 199728

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Diagrama 1127

Ala esquerda significa uma ruptura radical com a liturgia medieval tardia encontrando-se nela os Anabatistas que segundo uma corrente histoacuterica originou os Batistas atuais ala Centro significa os grupos mais moderados em relaccedilatildeo a uma ruptura com a liturgia histoacuterica e ala Direita mostra os grupos mais conservadores em termos de preservaccedilatildeo da liturgia histoacuterica

As igrejas de tradiccedilatildeo lituacutergica possuem os livros lituacutergicos que contecircm os ritos e as leituras de suas celebraccedilotildees Um deles eacute o Palavra do Senhor I ndash Lecionaacuterio dominical ABC que tem a sua imagem apresentada a seguir e a especificaccedilatildeo do seu conteuacutedo128

Lecionaacuterio dominicalConteacutemRito da Missa (partes fixas)Proacuteprio do tempo advento natal quaresma tempo comum etcProacuteprio dos santosVasta coleccedilatildeo de prefaacuteciosVaacuterias oraccedilotildees eucariacutesticasMissas rituais Batismo confirmaccedilatildeo profissatildeo religiosa etcMissas e oraccedilotildees para diversas necessidades pelo papa pelos bis-pos pelos governantes pela conservaccedilatildeo da paz e da justiccedila etcMissas votivas Santiacutessima Trindade Espiacuterito Santo Nossa Senhora etcMissas dos fieacuteis defuntosNo iniacutecio o Missal apresenta longa e preciosa introduccedilatildeo con-tendo a Instruccedilatildeo Geral sobre o Missal Romano e as Normas Universais para o Ano Lituacutergico e o Calendaacuterio1

127 WHITE 199729128 PERES 2018

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O Livro lituacutergico ldquoeacute um livro grande que conteacutem todo o formulaacuterio e todas as oraccedilotildees usadas nas celebraccedilotildees da missa para todo o ano lituacutergico Fitas marcadoras indicam as diversas partes da celebraccedilatildeo []rdquo129

11 OS BATISTAS BRASILEIROS E SUA TRADICcedilAtildeO LITUacuteRGICA

No Brasil o protestantismo de missatildeo chegou com suas tradiccedilotildees lituacutergicas tendo os batistas seguido a tradiccedilatildeo das ldquoigrejas livres da poacutes-Reforma e principalmente dos reavivamentos ingleses e americanos somados agraves formas de cultos das fronteiras da expansatildeo norte-americana para o oesterdquo130

O quadro a seguir mostra a data da chegada das diversas denominaccedilotildees protestantes em terra brasileira e sua linha lituacutergica

Protestantes Entrada no Brasil Igrejas livres (natildeo-lituacutergicas)Congregacionais 1855 SimPresbiterianos 1859 SimBatistas 1881 SimMetodistas 1886 SimEpiscopal 1898 Natildeo

Antonio Gouvecirca de Mendonccedila afirma que a liturgia dos batistas ldquoeacute uma das mais informaisrdquo131 isso significa dizer que os batistas tecircm uma praacutetica lituacutergica ldquoque foge a foacutermulas prefixadas aos rituais e aos aparato lituacutergico [] O culto e demais rituais preestabelecidos satildeo virtualmente condenados e quase sempre com a alegaccedilatildeo de que sugerem a missa catoacutelicardquo132 Donald P Hustad afirma que ldquoa heranccedila dos evangeacutelicos tiacutepicos eacute uma adoraccedilatildeo natildeo-liacutetuacutergica isto quer dizer eles rejeitam todas as formas ou liturgias estabelecidasrdquo133

Entatildeo se as igrejas batistas satildeo de tradiccedilatildeo lituacutergica livre as liturgias satildeo fundamentadas em quecirc

2 LITURGIA CULTO E ADORACcedilAtildeO ndash OS ATOS O EVEN-TO E A AUTOEXPRESSAtildeO CULTUAL

O termo liturgia eacute muitas vezes considerado sinocircnimo dos termos culto e adoraccedilatildeo Entretanto eacute necessaacuterio que se faccedila a distinccedilatildeo entre esses termos Os

129 PERES 2018130 MENDONCcedilA e VELASQUES FILHO 2002171 Grifo nosso131 MENDONCcedilA e VELASQUES FILHO 200244132 MENDONCcedilA e VELASQUES FILHO 2002156133 HUSTAD 1986166

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atos praticados durante o culto satildeo considerados liturgia culto eacute um evento total que abrange um conjunto de elementos lituacutergicos sendo um desses elementos a adoraccedilatildeo (em seu sentido estrito) a atitude do indiviacuteduo Adoraccedilatildeo eacute uma autoexpressatildeo em resposta agrave accedilatildeo divina

21 LITURGIA ndash OBRA DO POVO TRABALHO DO POVO OS ATOS CULTUAIS

Voltemos a nossa atenccedilatildeo ao termo liturgia e vejamos o que podemos de-preender do proacuteprio termo

Liturgia foi traduzida para o portuguecircs da palavra grega leitourgeo composta dos vocaacutebulos gregos LEITOSLAOS que significa povo e ERGON que significa trabalho Haacute um consenso entre os estudiosos do assunto que o significado seja ldquoobra do povordquo ldquotrabalho do povordquo

Essa ideia de trabalho do povo tambeacutem pode ser inferida da maioria dos vocaacutebulos originais da Septuaginta traduzidos para o idioma portuguecircs como liturgia Satildeo eles 134

Vocaacutebulo Significado Passagem biacuteblica

Leitourgiacutea (6 vezes)

Ministeacuterio Lc 123Assistecircncia 2 Co 912Serviccedilo Fp 217Socorro Fp 230Ministeacuterio Hb 86Serviccedilo Sagrado Hb 921

Leitourgoacutes (5 vezes)Ministro

Rm 136Rm 1516Hb 17Hb 82

Auxiliar Fp 225

Leitourgeacuteotilde (3 vezes)Servindo At 132Servi-los Rm 1527Serviccedilo Sagrado Hb 1011

Leitourgikoacutes (1 vez) Ministradores Hb 114

134 COSTA 198715-16

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Como visto o termo liturgia ocorre no Novo Testamento num total de quinze vezes tendo o seu significado se consolidado como ldquoo conjunto das falas e praacuteti-cas de culto dos seguidores de Jesusrdquo135 Essas praacuteticas de culto ou decorrentes do culto satildeo a assistecircncia o socorro o auxiacutelio o serviccedilo etc

22 CULTO O EVENTO CULTUAL TOTAL

Culto eacute uma reaccedilatildeo do humano agrave uma accedilatildeo divina Um bom exemplo eacute a atitude de Noeacute narrada em Gecircnesis 6-8 Depois do diluacutevio Noeacute ldquoconstruiu um altar dedicado ao Senhor e tomando alguns animais e aves puros ofereceu-os como holocausto []136 Liturgia no caso de Noeacute foi o evento constituiacutedo do ldquoconjunto de atos palavras e formas carregados de significado expressos de um certo jeito numa certa sequecircnciardquo137 realizados na reaccedilatildeo de Noeacute agrave bondade de Deus para consigo

23 A ADORACcedilAtildeO UMA AUTOEXPRESSAtildeO CULTUAL

Em relaccedilatildeo ao conceito de adoraccedilatildeo Bob Sorge em seu livro Exploring worship apresenta-nos dois exemplos que ajudam no entendimento dessa au-toexpressatildeo Satildeo os exemplos de Joacute e Abraatildeo

Joacute foi atingido por uma extrema calamidade perdendo todos os seus bens e perdendo todos os seus filhos

A resposta de Joacute eacute emocionante ldquoEntatildeo Joacute se levantou rasgou o manto e raspou a cabeccedila e ele caiu no chatildeo e adorourdquo (Joacute 120) Se concordamos que esta eacute a primeira menccedilatildeo de adoraccedilatildeo na Biacuteblia entatildeo podemos dizer que a adoraccedilatildeo eacute o que fazemos em face de grande trageacutedia e julgamento pessoal Adoraccedilatildeo em sua essecircncia natildeo eacute o que fazemos quando a vida eacute feliz e nos sentimos abenccediloados eacute o que fazemos quando perdemos as coisas que satildeo mais caras para noacutes o teste de adoraccedilatildeo natildeo eacute no domingo de manhatilde quando nos reunimos com o povo de Deus De manhatilde eacute faacutecil adorar Os crentes estatildeo reunidos em santa convocaccedilatildeo os liacutederes oram e estatildeo preparados para liderar o canto do Senhor comeccedila a surgir a presenccedila de Deus enche a casa Se vocecirc natildeo pode adorar no domingo de manhatilde vocecirc provavelmente estaacute morto138

135 MIRANDA 201239 Grifo nosso136 BIacuteBLIA ONLINE Gn 820137 MARTINI 200221 Grifo nosso138 SORGE 2018 cap 4 Grifo nosso

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Nesse ato de culto de Joacute a adoraccedilatildeo pode-se verificar uma expressatildeo original ndash uma autoexpressatildeo ndash que tem como essecircncia a espontaneidade da expressatildeo em resposta agrave percepccedilatildeo da trageacutedia ocorrida em sua vida

O conceito de autoexpressatildeo eacute definido como uma expressatildeo original que responde espontaneamente agrave percepccedilatildeo de algo A autoexpressatildeo acontece em resposta a um dado sensorial especiacutefico tendo como essecircncia a espontaneidade Contrariamente a expressatildeo pode ser um ato intencional servindo mais para demonstrar os sentimentos dos indiviacuteduos do que se apresentar como uma expressatildeo primaacuteria uma autoexpressatildeo139

O segundo exemplo citado por Sorge se encontra em Gecircnesis 225 passagem biacuteblica da narrativa de um episoacutedio muito marcante na vida de Abraatildeo que denota sua atitude de adorar mesmo quando Deus ordenara que sacrificasse o seu proacuteprio filho seu uacutenico herdeiro que o proacuteprio Deus tinha providenciado de forma milagrosa Mesmo naquela situaccedilatildeo desesperadora Abraatildeo teve a atitude de adorar a Deus Assim comenta Sorge

Quando Abraatildeo estava a caminho da montanha onde pretendia matar o seu uacutenico filho o que disse ele aos criados ldquoEntatildeo disse a seus servos Esperai aqui com o jumento eu e o rapaz iremos ateacute laacute e havendo ado-rado voltaremos para junto de voacutesrdquo (Gecircnesis 225) Na ansiedade mental de planejar matar o seu proacuteprio filho quando Deus sem duacutevida parecia estar a milhas de distacircncia Abraatildeo adorou Ele natildeo podia entender por-que Deus tinha ordenado que ele sacrificasse o seu uacutenico filho o uacutenico e verdadeiro herdeiro que Deus tinha providenciado milagrosamente Mas apesar da sua incapacidade em compreender as intenccedilotildees de Deus Abraatildeo adorou A sua adoraccedilatildeo natildeo teria sido completa sem a sua total obediecircncia140

139 FIGUEIREDO faz o seguinte comentaacuterio sobre a diferenciaccedilatildeo entre esses dois conceitos ndash autoexpres-satildeo e expressatildeo ldquouma autoexpressatildeo de juacutebilo realizada por um indiviacuteduo pela presenccedila apresentaccedilatildeo ou contemplaccedilatildeo de um ldquodeusrdquo ou de algum objeto que o represente pode resultar no nascimento de uma praacutetica ritual Nesse momento originaacuterio de um ritual a demonstraccedilatildeo de juacutebilo gradativamente se propaga agraves pessoas presentes e todos satildeo possuiacutedos do mesmo sentimento as emoccedilotildees humanas satildeo tocadas profundamente nesse momento Numa segunda ocasiatildeo tal demonstraccedilatildeo de juacutebilo eacute repetida mas agora sem aquele fator gerador da expressividade do grupo como ocorrido na primeira ocasiatildeo o segundo momento eacute realizado portanto como uma accedilatildeo intencional do grupo servindo mais para demonstrar os sentimentos dos indiviacuteduos do que uma autoexpressatildeo ou servindo para aliviar os sentimentos do grupo Neste caso ocorre a execuccedilatildeo de um ato supostamente expressivo porque natildeo possui a respectiva motivaccedilatildeo interior Eacute um ato ritual e natildeo um ato expressivo em sua essecircncia (um ato autoexpressivo) Sua suposta expressividade tem uma motivaccedilatildeo loacutegica racional intencional em contraposiccedilatildeo a um ato fisioloacutegico e espontacircneo caracteriacutestica daquele primeiro momento de juacutebilordquo (FIGUEIREDO 2010124-125) Leia mais sobre esse assunto em FIGUEIREDO 2010123-125140 SORGE 2018 cap 4 Grifo nosso

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Essa expressatildeo primaacuteriaoriginal de adoraccedilatildeo de Joacute e Abraatildeo em resposta agrave atuaccedilatildeo de Deus em suas vidas satildeo exemplos de autoexpressatildeo

3 CULTO UM EVENTO NO QUAL Eacute O POVO QUEM TRA-BALHA

Haacute uma criacutetica do filoacutesofo-teoacutelogo dinamarquecircs Soren Kierkgaard que aponta para a inversatildeo das funccedilotildees dos partiacutecipes nos atos de culto (liturgia) a qual deve ser levada em consideraccedilatildeo

Kierkgaard criticou a natildeo participaccedilatildeo ativa do povo da sua igreja lituacutergica luterana ldquoInsistiu em que na verdadeira adoraccedilatildeo a congregaccedilatildeo satildeo os atores o ministro e o coro satildeo os lsquopontosrsquo e Deus eacute o auditoacuteriordquo141 Kierkgaard afirma que ldquono sentido mais enfaacutetico Deus eacute o criacutetico frequentador de teatro que observa para ver como o texto eacute declamado e como ele eacute ouvido O orador portanto eacute o ponto e o ouvinte encontra-se abertamente diante de Deus O ouvinte se posso assim dizecirc-lo eacute o ator que verdadeiramente atua diante de Deus142

A sua criacutetica estava fundamentada nos fatos ocorridos na Idade Meacutedia quan-do ldquoa missa era essencialmente lsquoobra dos sacerdotesrsquo a congregaccedilatildeo natildeo era nem de bons espectadores visto que natildeo entendia as palavras [porque a missa era realizada no idioma latino] e em uma grande catedral natildeo conseguia nem ver a accedilatildeordquo143 Nos dias de hoje

em algumas situaccedilotildees evangeacutelicas parece claro tambeacutem que a adoraccedilatildeo eacute obra do ministro e do coro a congregaccedilatildeo eacute o ldquoauditoacuteriordquo o que suge-re que eles [fieacuteis] agem mais como ouvintes Em muitas situaccedilotildees eles [fieacuteis] nunca satildeo encorajados a falar uma soacute palavra nos cultos lendo as Escrituras ou participando das oraccedilotildees [] Indubitavelmente lhes eacute per-mitido cantar os hinos embora algumas vezes estes sejam bem poucos e ateacute mesmo esta oportunidade eacute ignorada por muitas pessoas em algumas congregaccedilotildees Eacute verdade que pode-se envolver na adoraccedilatildeo ndash pode-se ateacute falar com Deus ndash sem pronunciar nem um som audiacutevel mas cremos que eacute desejaacutevel ter o maacuteximo de participaccedilatildeo da congregaccedilatildeo tanto do que se fala como do que se canta e tambeacutem da accedilatildeo fiacutesica 144

141 HUSTAD 1986165142 HUSTAD 1986165143 HUSTAD 1986165144 HUSTAD 1986165

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Os encontros cultuais puacuteblicos devem priorizar portanto a participaccedilatildeo ativa do povo o trabalho do povo isto eacute os elementos lituacutergicos de um culto (adoraccedilatildeo leitura biacuteblica canto coletivo oraccedilatildeo testemunho mensagem muacutesica instrumental coro etc) devem propiciar a participaccedilatildeo plena do povo

Outro autor que trabalha esses dois termos ndash liturgia e culto ndash eacute o teoacutelogo Nelson Kirst Ele compara o momento do culto com o ldquorancho na roccedilardquo O culto eacute o encontro de Deus com a sua comunidade e a ldquoliturgia eacute o conjunto de elementos e focircrmas (espaccedilos lugares tempos objetos funccedilotildees gestos foacutermu-las histoacuterias instruccedilotildees olhares siacutembolos e significados) atraveacutes dos quais se realiza o encontro de Deus com sua comunidaderdquo145

Imagine-se uma famiacutelia de agricultores que sai para trabalhar um pedaccedilo de terra localizado a 1 ou 2 km de casa De manhatilde bem cedo potildeem-se todos a caminho de carroccedila levando enxadas foices facotildees arado e o cesto com o lanche Laacute chegando dividem as tarefas e se lanccedilam ao trabalho Mourejam por umas duas horas e entatildeo se recolhem para um descanso Em algum ponto daquela roccedila ergue-se o rancho construccedilatildeo tosca de trecircs paredes e um telhado em meia-aacuteguaEacute no aconchego do rancho na roccedila que a famiacutelia camponesa depois da primeira arrancada de enxada e arado se recolhe descansando o corpo fortalecendo-se de patildeo aacutegua fresca e conversa - para meia horinha depois voltar agrave enxada e ao arado e misturar seu suor agrave terra em outro tanto de jornada A famiacutelia vai da enxada para o rancho e sai fortalecida do rancho para a enxada A parada no rancho natildeo faz sentido sem o trabalho na roccedila E o trabalho na roccedila se esgota em agitaccedilatildeo e cansaccedilo sem a parada no rancho146

O culto entatildeo eacute o lugar para renovaccedilatildeo de energias espirituais lugar onde o povo busca ldquoalimentordquo espiritual atraveacutes dos atos de adoraccedilatildeo e louvor ao Deus criador ao Deus salvador Atos de enunciaccedilatildeo de suas alegrias e suas tristezas de exposiccedilatildeo suas ansiedades e vitoacuterias e o retorno para a vida ordinaacuteria das atividades seculares

O culto constituiacutedo pelo conjunto de elementos lituacutergicos eacute um evento total que possui situaccedilotildees momentacircneas cultuais diversas Qual eacute a origem desses momentos determinados constantes de uma liturgia

145 KIRST 1998119146 KIRST 1998119

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4 ldquoA VISAtildeO DE ISAIacuteASrdquo UM DOS MODELOS DE EVENTO CULTUAL

Apesar da origem natildeo-lituacutergica dos batistas sua liturgia segue alguns princiacutepios modelos Os atos lituacutergicos natildeo satildeo propostos aleatoriamente Entatildeo de onde vecircm esses princiacutepiosmodelos que norteiam uma liturgia

Esses elementos vecircm dos exemplos biacuteblicos de adoraccedilatildeo O teoacutelogo Romeu R Martini nos apresenta no seu livro Liturgia e culto o exemplo biacuteblico de Noeacute (Gn 6-8) e o teoacutelogo Russel P Shedd no seu livro Adoraccedilatildeo biacuteblica elenca vaacuterios exemplos biacuteblicos de adoraccedilatildeo afirmando que ldquoas sagradas letras satildeo o nosso manual de adoraccedilatildeordquo147

O salmista no Salmo 96 Enoque em Gn 522-24Hb 56 Jacoacute em Gn 3222ss Moiseacutes em Ex 3312-33 Isaiacuteas em Is 61-8 e Maria em Jo 121-8 satildeo os exemplos apresentados por Shedd

De todos esses exemplos biacuteblicos de adoraccedilatildeo haacute uma convergecircncia entre os teoacutelogos de que a experiecircncia de Isaiacuteas eacute a que mais detalhes apresenta sobre os diversos atos ocorrentes em um encontro de um ser humano com o Deus criador Do texto de Isaiacuteas 6-1-9a emergem os seguintes atos lituacutergicos

- Consciecircncia da presenccedila de Deus (Is 61) ndash Preluacutedio

- Adoraccedilatildeo (Is 62-3)

- Confissatildeo (Is 65)

- Perdatildeo (Is 66-7)

- Apelo (Is 68) ndash Palavra do SenhorEnsino

- Consagraccedilatildeo (Is 68) ndash Resposta do homem

- Disponibilidade para o serviccedilo (Is 69a) ndash Posluacutedio

Nelson Kirst fala de uma forma mais abrangente que a liturgia ndash a sequecircncia de atos elementos eventos ornamentos e momentos lituacutergicos ndash precisa ser moldada Utiliza o exemplo de uma casa com seus cocircmodos para o entendimento dessa questatildeo

Uma casa eacute composta de diversas dependecircncias Haacute certas dependecircncias que natildeo podem faltar numa casa p ex a cozinha ou o dormitoacuterio Satildeo imprescindiacuteveis Haacute outras partes que satildeo uacuteteis sem ser imprescindiacuteveis

147 SHEDD 1987113

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p ex a sala de estar a sala de jantar ou a varanda Assim tambeacutem a liturgia tem partes imprescindiacuteveis que nunca podem faltar e partes que satildeo uacuteteis mas podem faltar num cultoNa comparaccedilatildeo da liturgia com uma casa tambeacutem se aprende alguma coisa sobre a disposiccedilatildeo das diversas partes dentro do conjunto A entrada de uma casa geralmente vai ser pela sala de estar ou perto da sala de estar e natildeo pela cozinha ou pelo dormitoacuterio Por outro lado o banheiro pode localizar-se entre o dormitoacuterio e a sala ou entre o dormitoacuterio e a cozinha e a sala de estar pode encontrar-se do lado esquerdo ou do lado direito da entrada Assim tambeacutem na liturgia haacute certas partes que tecircm seu lugar fixo p ex o canto de entrada soacute pode estar no iniacutecio do culto e a interpretaccedilatildeo da Palavra soacute pode vir depois das leituras biacuteblicas E haacute outras partes que podem ser dispostas com certa flexibilidadeFinalmente haacute muita maleabilidade na maneira como satildeo configuradas as diversas dependecircncias de uma casa O material as cores as cortinas a decoraccedilatildeo dependeratildeo de quem haacute de utilizar essa casa para morar Assim tambeacutem haacute muita liberdade quanto agrave maneira ou ao estilo de se realizar as partes da liturgia148

5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAISFinalizando liturgia significa os atos ocorrentes no momento de culto isto

eacute os atos praticados pelos indiviacuteduos em reaccedilatildeo agrave accedilatildeo divina Os batistas satildeo uma igreja livre (natildeo-lituacutergica) em relaccedilatildeo agrave orientaccedilatildeo lituacutergica A liturgia dos batistas procura seguir os exemplos de adoraccedilatildeo encontrados na Biacuteblia sendo a experiecircncia de Isaiacuteas com Deus a mais ensinada nas casas teoloacutegicas como modelo de atos cultuais

Para que a liturgia natildeo se transforme em um ritual ndash uma monoacutetona repeticcedilatildeo de atos lituacutergicos ndash existe uma liberdade na sua elaboraccedilatildeo preservando-se alguns dos elementoseventos cultuais de adoraccedilatildeo biacuteblica bem como a omissatildeo de outros

Hustad afirma que em resumo a liturgia de um culto deve contemplar duas accedilotildees baacutesicas da adoraccedilatildeo ldquouma revelaccedilatildeo plena de Deus seus atos e sua vontade para noacutes e uma reaccedilatildeo dos homens e mulheres incluindo corpo emoccedilatildeo intelecto e vontaderdquo149

148 KIRST 1998125149 HUSTAD 1986166 Grifo nosso

97TeoloacutegicaRevista Brasileira de Teologia ISSN 1807-7056 nordm 8 outdez Rio de Janeiro 2020 p 86 - 97

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COSTA H M P Teologia do culto Satildeo Paulo Casa Editora Presbiteriana 1987

FIGUEIREDO T E ldquoFogo no encostordquo que ldquoesta igreja vai subirrdquo Juiz de Fora [sn] 2010

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KIRST N Liturgia In SCHNEIDER-HARPPRECHT Crhistoph Teologia praacutetica no contexto da ameacuterica latina Satildeo Leopoldo Sinodal-ASTE 1998

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LITURGIA E IDENTIDADE RELIGIOSA NO APOCALIPSE DE JOAtildeO

Valtair A Miranda150

RESUMONosso propoacutesito neste artigo eacute analisar as peccedilas hiacutenicas descritas nos capiacutetulos

quatro e cinco do livro de Apocalipse e refletir sobre o papel que executam na construccedilatildeo e manutenccedilatildeo da identidade social e religiosa dos leitores e ouvintes desse livro no momento da sua produccedilatildeo Argumentamos que os hinos registrados nas obras do movimento de Jesus possuiacuteam um papel significativo na definiccedilatildeo da autodescriccedilatildeo dos membros das igrejas quer por representarem o que se cantava nas comunidades quer como sugestatildeo do que cantar Cantar entatildeo natildeo apenas descreve a pessoa de Deus ou o falar com ele mas propicia a quem canta um forte senso de identidade pessoal e social Nos hinos o fiel expressa o que ele se ainda natildeo eacute pelo menos gostaria de ser

Palavras-chave Apocalipse de Joatildeo Culto e ritual hino e liturgia Cristianismo antigo

ABSTRACTOur purpose in this article is to analyze the hymn pieces of Revelation 4 and

5 and to reflect on their role in building and maintaining the social and religious identity of the readers and listeners of this book at the time of its production We argue that the hymns recorded in the works of the Jesus movement had a signifi-cant role in defining the self-description of church members either because they represent what was sung in the communities or rather as a suggestion to sing Singing then not only describes God or speaks to him but gives the person who sings a strong sense of personal and social identity In the hymns the faithful express what he if he still is not at least would like to be

Keywords Revelation of John Worship and ritual worship and liturgy Ancient Christianity

150 Valtair Afonso Miranda eacute Doutor em Ciecircncias da Religiatildeo (UMESPSP) e Doutor em Histoacuteria (UFRJ) Eacute Diretor Acadecircmico da Faculdade Batista do Rio de Janeiro onde leciona Histoacuteria da Igreja e Exegese do Novo Testamento

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O capiacutetulo 4 de Apocalipse inicia uma longa seccedilatildeo descritiva de um tipo de culto celestial Aparentemente este livro poderia ser dividido em trecircs partes uma seccedilatildeo para descrever a visatildeo do Filho do Homem que aparece a Joatildeo para narrar sete cartas para sete igrejas (capiacutetulos 1 a 3) uma seccedilatildeo para descrever a visatildeo do rolo selado com sete selos (capiacutetulos 4 a 11) e uma uacuteltima para apresentar o conflito escatoloacutegico entre o Cordeiro e o Dragatildeo (capiacutetulos 12 a 22)151

Nesse sentido o capiacutetulo 4 seria o iniacutecio da segunda seccedilatildeo Sua narrativa co-meccedila com o ingresso do visionaacuterio por uma porta aberta no ceacuteu e o subsequente acesso ao Templo Celestial Na perspectiva da audiecircncia desse texto a cena elabora uma narrativa a partir de uma preacutevia experiecircncia extaacutetica Afinal Joatildeo continua na Ilha de Patmos apesar de o seu espiacuterito vislumbrar o trono divino e uma seacuterie de personagens que participam da liturgia celestial Embora se apresente como a narrativa de uma experiecircncia visionaacuteria entretanto o Apocalipse ecoa por meio dessa cena um conjunto de tradiccedilotildees e passagens provavelmente bem conhecidas de sua audiecircncia como Ecircxodo 249-11 Isaiacuteas 6 Ezequiel 126-28 Daniel 79-28 1Reis 2219-23 1Enoque 39 e 2 Enoque 20-22 entre outras

O primeiro versiacuteculo do capiacutetulo 4 apresenta um anjo convocando Joatildeo para subir ao ceacuteu Esse anjo promete mostrar ao visionaacuterio o que aconteceria ldquodepois destas coisasrdquo O cumprimento dessa promessa do anjo se daacute nos termos do relato quando o Cordeiro siacutembolo do Jesus crucificado rompe sete selos de um livro e provoca sete trombetas escatoloacutegicas Isso aparece no capiacutetulo 6 em diante jaacute que os dois primeiros capiacutetulos da seccedilatildeo (4 e 5) se dedicam ao ato lituacutergico em um ritmo muito lento apresentando as cenas e os atores do culto celestial

Nosso propoacutesito neste artigo eacute analisar as peccedilas hiacutenicas desses dois capiacutetulos do Apocalipse e refletir sobre o papel delas na construccedilatildeo e manutenccedilatildeo da identidade social e religiosa dos leitores e ouvintes do livro no seu momento de produccedilatildeo152

151 Para uma discussatildeo dessa estrutura no formato de trecircs seccedilotildees conferir o meu livro MIRANDA Valtair Afonso O caminho do Cordeiro representaccedilatildeo e construccedilatildeo de identidade no Apocalipse de Joatildeo Satildeo Paulo Paulus 2011152 Pressupomos que esta obra foi escrita no final do seacuteculo I e enviada para membros do movimento de Jesus na proviacutencia romana da Aacutesia especificamente para comunidades nas cidades de Eacutefeso Esmirna Peacutergamo Tiatira Saacuterdis Filadeacutelfia e Laodiceia Para uma anaacutelise mais ampla do contexto de produccedilatildeo do Apocalipse de Joatildeo conferir MIRANDA Valtair A Revisitando o contexto de produccedilatildeo do Apocalipse de Joatildeo Reflexus ano IX n 14 p 389-416 2015 FRIEDRICH Paulo Nestor Apocalipse 2ndash3 Sete cartas Uma anaacutelise literaacuteria Estudos de Religiatildeo Satildeo Bernado do Campo n 19 p 149-173 2000 WIKENHAUSER Alfred El Apocalipsis de San Juan p 25-34

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CELEBRANDO A CRIACcedilAtildeO O CULTO AO DEUS ENTRONI-ZADO

O capiacutetulo 4 do Apocalipse apresenta um trono no ceacuteu e em torno dele ele-mentos tiacutepicos de uma teofania da Escritura judaica (Is 61-4) Como na visatildeo de Isaiacuteas esse trono divino eacute uma peccedila central Tudo gira em torno dele Ao seu redor estatildeo quatro criaturas denominadas de Seres Viventes Aleacutem destes o relato apresenta tambeacutem vinte e quatro tronos menores nos quais se assentam vinte e quatro anciatildeos vestidos com roupas brancas tendo coroas de ouro na cabeccedila Independentemente da forma como os inteacuterpretes contemporacircneos interpretam esses personagens celestiais o essencial eacute que todos estatildeo envolvidos em atos lituacutergicos Eles adoram o anciatildeo que se assenta sobre o trono

Os Quatro Viventes especificamente tecircm como missatildeo sem descanso dia e noite expressar adoraccedilatildeo (Ap 48) Deles Joatildeo ouve ldquoSanto Santo Santo eacute o Senhor Deus o Todo-Poderoso aquele que era que eacute e que haacute de virrdquo O hino comeccedila com uma expressatildeo triacuteplice originada em Isaiacuteas 63 ldquoE clamavam uns para os outros dizendo Santo santo santo eacute o Senhor dos Exeacutercitos toda a terra estaacute cheia da sua gloacuteriardquo No texto de Isaiacuteas a canccedilatildeo eacute entoada por Serafins figuras parecidas com serpentes aladas Essa passagem foi largamente usada em textos apocaliacutepticos para compor as cenas do santuaacuterio celestial (1En 3012 2En 211 Ap Abr 16) Os grupos judaicos do segundo Templo frequentemente viam no triacuteplice ldquosantordquo a expressatildeo perfeita do culto dos anjos deduzindo daiacute um modelo para o culto na terra153

Eacute interessante comparar a versatildeo de Isaiacuteas com a LXX e o Apocalipse e assim verificar a forma como as tradiccedilotildees literaacuterias satildeo retomadas no Apo-calipse A LXX que normalmente traduz o termo tsabaoth por pantokrator dessa vez simplesmente transliterou o termo sabaoth Joatildeo entretanto de forma consistente continuou usando pantokrator no lugar de tsabaoth De qualquer forma ambas as expressotildees denotam um ser soberano sobre todos os outros deuses e senhores da terra Ele eacute o Senhor dos Exeacutercitos o Todo-poderoso o Senhor da terra toda Isso daacute ao conjunto da canccedilatildeo um tom de natureza poliacute-tica A acentuaccedilatildeo do ldquoSenhor Deus Todo-Poderosordquo eacute ainda maior porque o hino acrescenta agrave descriccedilatildeo divina a expressatildeo ldquoaquele que era que eacute e que haacute de virrdquo no que se configura uma afirmaccedilatildeo da eternidade imutabilidade e autonomia divinas uma evocaccedilatildeo do ldquoeu sourdquo de Ecircxodo 314 Um Deus eterno natildeo estaacute sujeito agraves variaccedilotildees do tempo ou agraves transiccedilotildees dos domiacutenios humanos

153 PRIGENTE P O Apocalipse p 104

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No momento em que os Quatro Viventes cantam o hino de Isaiacuteas denominado frequentemente de ldquokedushaacuterdquo os Vinte e Quatro Anciatildeos se prostram diante do que se assenta no trono depositando aos seus peacutes suas coroas de ouro Dessa vez satildeo eles que adoram ldquoTu eacutes digno Senhor e Deus nosso de receber a gloacuteria a honra e o poder porque todas as coisas tu criaste sim por causa da tua vontade vieram a existir e foram criadasrdquo (Ap 411)

A forma literaacuteria eacute de aclamaccedilatildeo mas configurada em expressatildeo hiacutenica no texto do visionaacuterio A estrutura do hino consiste do adjetivo ldquodignordquo seguido do verbo ser (na terceira pessoa do singular) mais uma seacuterie de atributos Esse eacute um hino de dignidade A divindade eacute adorada porque eacute digna e eacute digna em funccedilatildeo da sua obra de criaccedilatildeo

Esse hino tambeacutem levanta a questatildeo de quem eacute digno de ser adorado Possi-velmente eacute uma peccedila lituacutergica que surge em meio agrave disputa por adoraccedilatildeo Com um hino desse tipo o Apocalipse tenta apontar quem eacute digno de adoraccedilatildeo e consequentemente quem natildeo o eacute

Essas expressotildees querem responder agrave questatildeo ldquoquem eacute o verdadeiro senhor da terrardquo ou entatildeo quem eacute digno de ser A resposta do Apocalipse eacute clara o Senhor da terra eacute aquele que a criou A ele pertencem todas as coisas

Esses hinos poderiam atuar na identidade da audiecircncia de diversas maneiras mas destacamos aqui apenas trecircs Primeiramente ao ouvir tais hinos ou cantaacute--los a audiecircncia acompanha os seres celestiais declarando o senhorio exclusivo de Deus sobre o mundo154 Deus eacute o verdadeiro Senhor da Terra o que promove uma determinada filosofia da histoacuteria Um Deus Soberano estaacute acima dos poderes e governos do mundo Esse tipo de divindade tem poder para controlar e dirigir a histoacuteria da humanidade e o faraacute levando-a ateacute a instalaccedilatildeo efetiva do seu Reino sobre a terra (Ap 510) O olhar sobre esse futuro - mas iminente - reino alerta as comunidades de crentes que a vida que eles vivem no presente eacute circunstancial e peregrina O seu destino ainda natildeo chegou Um primeiro efeito plausiacutevel entatildeo se daria na postura poliacutetica dos fieis cantantes ao promover a perspectiva de oposiccedilatildeo agrave sociedade circundante155

Segundo ao afirmar que somente Deus eacute digno de receber adoraccedilatildeo honra poder o hino afirma a singularidade da figura divina diante das pretensotildees im-

154 BORTOLINI Joseacute Como ler o Apocalipse p 53155 Para uma reflexatildeo mais ampla sobre posturas de oposiccedilatildeo do movimento de Jesus agrave estrutura imperial romana cf MIRANDA Valtair A Religiatildeo e sociedade na Aacutesia romana Religare v13 n1 p150-179 2016 LAZIER Josueacute Adam A estrateacutegia cristatilde no contexto da Pax Romana Estudos Biacuteblicos n 36 p 37-40 1992 MESTER Carlos OROFINO Francisco A violecircncia do Impeacuterio Romano e a sua influecircncia na vida das comunidades cristatildes do fim do primeiro seacuteculo Estudos Biacuteblicos n 69 p 72-82 2001

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periais romanas E ao afirmar a singularidade de Deus o hino tambeacutem reforccedila a singularidade de seus adoradores Mesmo que experimentando o desprezo da sociedade romana os seguidores de Jesus se percebem como figuras especiais pois formam o povo de Deus na terra

Terceiro esse conhecimento do senhorio de Deus sobre o universo e da singu-laridade do seu povo eacute um conhecimento profundo que somente quem acessa as regiotildees celestiais conhece Ningueacutem consegue enxergar o que eles veem naquele momento Essa ldquovisatildeo profundardquo era dada aos seguidores do Cordeiro quando se reuniam em seus encontros de culto Dessa forma o culto se torna o espaccedilo privilegiado para o acesso a um ldquooutro mundordquo no interior ldquodeste mundordquo

CELEBRANDO A REDENCcedilAtildeO O CULTO AO CORDEIROO capiacutetulo 5 do Apocalipse apresenta uma crise Qual eacute a crise Joatildeo eacute infor-

mado de que haacute um rolo que ningueacutem pode abrir Ele comeccedila a chorar ateacute que algueacutem bate no seu ombro e diz ldquoNatildeo chores eis que o Leatildeo da tribo de Judaacute a Raiz de Davi venceu para abrir o livro e os seus sete selosrdquo (Ap 55) Ele ouve falar de um leatildeo mas quando olha o que vecirc eacute um cordeiro Eacute Jesus Cristo na forma simboacutelica de um cordeiro ensanguentado representando a centralidade do seu sacrifiacutecio na cruz no projeto de redenccedilatildeo divino Daqui em diante o Cordeiro Jesus Cristo jaacute com o rolo na matildeo vai comeccedilar a quebrar os selos do rolo um por um Agrave medida que cada selo eacute removido uma cena eacute testemunhada por Joatildeo

Jesus que jaacute aparecera antes na forma do Filho do Homem (Ap 113) agora eacute descrito como um cordeiro com aparecircncia de ter sido morto com sete chifres e sete olhos Satildeo imagens que devem ser menos entendidas e mais sentidas Chifres e olhos tecircm a ver com a presenccedila do poder e do espiacuterito de Deus Mas de onde vem a imagem do Cordeiro

Essa imagem tem analogia com o sacrifiacutecio e a morte Uma passagem relevante para estudar o significado de ldquocordeirordquo estaacute no Antigo Testamento especifica-mente em uma profecia de Jeremias 1119 ldquoEu era como manso cordeiro que eacute levado ao matadouro porque eu natildeo sabia que tramavam projetos contra mim dizendo Destruamos a aacutervore com seu fruto a ele cortemo-lo da terra dos vi-ventes e natildeo haja mais memoacuteria do seu nomerdquo O profeta fala de si mesmo como um cordeiro que eacute levado mansamente para a morte

A passagem mais proacutexima de Jeremias eacute Isaiacuteas 537 ldquoEle foi oprimido e humilhado mas natildeo abriu a boca como cordeiro foi levado ao matadouro e como ovelha muda perante os seus tosquiadores ele natildeo abriu a bocardquo O relato de Isaiacuteas 53 sobre o ldquoservo sofredorrdquo reaparece no Novo Testamento de diversas

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formas para falar do ministeacuterio de Jesus e sua morte (Lc 2237 At 832-33 1Pe 222) sendo muito importante para responder agrave questatildeo de como o sofrimento e a morte de Jesus poderiam ser explicados diante da sua natureza messiacircnica

Eacute exatamente isso que aparece quando o Apocalipse descreve Jesus como um Cordeiro Ele eacute o Messias pelo caminho do sacrifiacutecio Mais ainda o Cordeiro Jesus

- Eacute aquele que morreu e ressuscitou (Ap 56)

- Eacute adorado pelas figuras celestiais (Ap 581213)

- Eacute o que tem o poder de revelar os eventos celestiais (Ap 61)

- Eacute o que julgaraacute todas as pessoas (Ap 616 717) pois possui o Livro da Vida (2127)

- Eacute o que lavou as vestes dos salvos com o seu proacuteprio sangue (Ap 791014)

- Eacute o que vence o Dragatildeo em funccedilatildeo do seu sangue (Ap 1211)

- Venceraacute as bestas (Ap 1714)

- Se casaraacute com sua noiva a Nova Jerusaleacutem o povo de Deus (Ap 1979 219)

- Iluminaraacute a Nova Jerusaleacutem (Ap 2123)

A imagem do cordeiro sacrificial entatildeo no Apocalipse faz referecircncia natildeo apenas ao sofrimento e agrave morte mas tambeacutem agrave vitoacuteria reinado poder e gloacuteria Eacute a esse Cordeiro exaltado que toda a adoraccedilatildeo do capiacutetulo 5 se dirige Ele eacute digno de ser adorado porque segundo os vinte e quatro anciatildeos e os Quatro Viventes morreu e com seu sangue comprou pessoas de todas as naccedilotildees constituindo-as reino e sacerdotes para Deus (Ap 59-10) Os mesmos seres que adoraram a Deus no capiacutetulo 4 agora se rendem em adoraccedilatildeo ao Cordeiro de Deus no capiacutetulo 5 (Ap 59-10) ldquoDigno eacutes de tomar o livro e abrir-lhe os selos porque foste morto e compraste para Deus atraveacutes do teu sangue pessoas de toda tribo liacutengua povo e naccedilatildeo e os constituiacuteste para o nosso Deus reino e sacerdotes e reinaratildeo sobre a terrardquo

Adela Yarbro Collins estudiosa da Yale University (EUA) interpretou esse rolo como uma epiacutestola celestial na forma de um livro de destino Em outras palavras ele seria uma taacutebua de eventos futuros Os sete selos enfatizam simbolicamente a intensidade do segredo do conhecimento sobre os eventos futuros cujo conteuacutedo eacute dado na forma de duas seacuteries de sete visotildees (selos e trombetas)156 O Cordeiro seria o uacutenico digno de revelar para o visionaacuterio e sua comunidade o conhecimento escatoloacutegico A base dessa dignidade eacute a morte de Jesus Cristo

156 COLLINS Adela Yarbro The combath myth in the Book of Revelation p 25

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A imagem de um cordeiro imolado jaacute seria evocaccedilatildeo suficiente agrave morte de Jesus da mesma forma como sua posiccedilatildeo em relaccedilatildeo ao trono o afirma vivo e com poder para fazer especificamente duas coisas comprar para Deus um povo exclusivo e fazecirc-los reino e sacerdotes de Deus Essa afirmaccedilatildeo jaacute apareceu antes (Ap 15-6) na forma de um hino entoado pelo autor na primeira pessoa do plural ldquoAgravequele que nos ama e pelo seu sangue nos libertou dos nossos pecados e nos constituiu reino sacerdotes para o seu Deus e Pai a ele a gloacuteria e o domiacutenio pelos seacuteculos dos seacuteculos Ameacutemrdquo Jaacute nesse hino ao Cordeiro satildeo os Vinte e Quatro Anciatildeos diante do Trono no ceacuteu que declaram esta mesma realidade Seria uma maneira de indicar que os seres celestiais confirmam o status real e sacerdotal cantado pelos crentes na terra

A origem dessas pessoas como ldquode toda tribo liacutengua povo e naccedilatildeordquo afirma o caraacuteter natildeo mais eacutetnico do povo de Deus A filiaccedilatildeo natildeo seria mais uma questatildeo de sangue mas de compromisso com o Cordeiro

As formas verbais satildeo bem precisas Os seguidores do Cordeiro jaacute foram comprados e jaacute receberam a investidura real e sacerdotal Seriam accedilotildees realizadas por Jesus no momento de sua morte e ressurreiccedilatildeo Mesmo assim uma reserva escatoloacutegica se manifesta eles ainda reinaratildeo sobre a terra Eles jaacute fazem parte do reino de Deus e seu filho Jesus Cristo mas esse reino ainda natildeo eacute visto por quem natildeo faz parte dele O cacircntico expressa a esperanccedila entretanto somente na intervenccedilatildeo uacuteltima de Deus esse reinado se materializaraacute157

Os cantores desse hino de dignidade ao Cordeiro satildeo os Quatro Viventes e os Vinte e Quatro Anciatildeos A cena ganha proporccedilotildees ainda maiores quando apoacutes o hino anjos em nuacutemero de ldquomilhotildees de milhotildees e milhares de milharesrdquo tambeacutem cantam a mesma temaacutetica (Ap 512) ldquoDigno eacute o Cordeiro que foi morto de receber o poder e riqueza e sabedoria e forccedila e honra e gloacuteria e louvorrdquo

Enquanto a primeira canccedilatildeo de dignidade ao Cordeiro estaacute na segunda pessoa do singular (um hino que fala com o Cordeiro) a canccedilatildeo dos anjos estaacute na terceira pessoa do singular (um hino que fala do Cordeiro) Em ambas as canccedilotildees o objeto de adoraccedilatildeo eacute descrito numa linguagem poliacutetico-religiosa do antigo Israel

Ele eacute o Leatildeo da Tribo de Judaacute a raiz de Davi que conquistou e portanto eacute digno de abrir o rolo que Deus entregou em suas matildeos Mas eacute ao mesmo tempo um Cordeiro em peacute como se tivesse sido morto Eacute ele que tem o rolo na matildeo

157 Isto configura um determinado tipo de milenarismo como analisado em MIRANDA Valtair A Maacutertires e monges milenarismos antigos e medievais Santo Andreacute Kapenke 2018 p 43-72

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O Leatildeo era usado como siacutembolo de poder no mundo antigo (Pr 3030) e se tornou associado com o trono de Davi atraveacutes da caracterizaccedilatildeo de Judaacute feita por Jacoacute (Gn 499) A raiz de Davi eacute uma metaacutefora para a linhagem de Davi (Is 1110) e se tornou siacutembolo da restauraccedilatildeo da monarquia daviacutedica (Jr 235) Essas tradiccedilotildees do restabelecimento do reino de Deus como um ato de forccedila e poder eram tradicionais Mas essa natildeo eacute a perspectiva de Apocalipse que inverte a imagem O leatildeo se torna cordeiro Existe violecircncia sim mas contra o cordeiro natildeo do Cordeiro Ele tem poder e tem forccedila para conquistar mas seus atos de conquista passaram pela sua morte158

Se Deus eacute digno por causa de sua obra de criaccedilatildeo o Cordeiro eacute digno por causa da redenccedilatildeo Somente ele entatildeo eacute capaz de abrir os selos somente ele venceu a morte Ao inserir o tema da morte do Cordeiro na tradiccedilatildeo messiacircnica daviacutedica o visionaacuterio insere na esperanccedila messiacircnica poliacutetica os aspectos da tradiccedilatildeo sacrificial

As cenas de culto celestial natildeo eram novidades na apocaliacuteptica Entretanto a presenccedila do Cordeiro ldquocomo que mortordquo no Templo celestial participando ou mesmo recebendo o culto eacute uma grande novidade do Apocalipse de Joatildeo Um nuacutemero muito maior de epiacutetetos nesses hinos de dignidade eacute lanccedilado sobre o Cordeiro do que ao proacuteprio Anciatildeo que estava assentado sobre o trono central do Santuaacuterio

Apoacutes a adoraccedilatildeo ao Cordeiro o relato acrescenta que ldquotoda criatura que haacute no ceacuteu e sobre a terra debaixo da terra e sobre o mar e tudo o que neles haacuterdquo e se volta novamente para aquele que se assenta no trono A descriccedilatildeo do culto celestial assim extrapola os espaccedilos celestiais pois envolve tambeacutem o acircmbito da terra e do mar bem como todos os seus seres A natureza inteira aparece envolvida na adoraccedilatildeo celestial O que eles cantam eacute ldquoAo que se assenta sobre o trono e ao Cordeiro o louvor e a honra e a gloacuteria e o domiacutenio para os seacuteculos dos seacuteculosrdquo (Ap 513)

Finalmente ambos os personagens celebrados no culto celestial recebem simultaneamente a adoraccedilatildeo As claacuteusulas de dignidade se parecem com o hino dos anjos (Ap 512) e com o hino a Deus em Apocalipse 411 A gloacuteria e a honra aparecem nos trecircs hinos O poder eacute dado a Deus pelos Vinte e Quatro Anciatildeos e ao Cordeiro pelos anjos mas natildeo aparece na lista quando ambos satildeo louvados juntos Na adoraccedilatildeo a Deus e ao Cordeiro por sua vez ainda se manifestam o domiacutenio e o louvor que natildeo apareceram antes para Deus De qualquer forma todas

158 BARR David L Tales of the End p 70

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as dignidades de Deus pertencem tambeacutem ao Cordeiro que ainda suporta outras Somente Ele nesses trecircs hinos de dignidade teve celebrada a riqueza a sabedoria e a forccedila Esses elementos sinalizam que diferentemente das visotildees tradicionais do Templo celestial no Apocalipse de Joatildeo natildeo eacute Deus a figura principal mas sim o Cordeiro Ele eacute o personagem central da revelaccedilatildeo do visionaacuterio

Nos termos de Hurtado

judeus convertidos se reuniam para adorar em nome de Jesus oravam a ele cantavam para ele entendiam que ele estava em uma posiccedilatildeo celestial acima de toda a ordem angelical usaram para ele tiacutetulos e passagens das Escrituras judaicas originalmente usadas para Deus procuraram convencer outros judeus e tambeacutem gentios a reconhece-lo como o redentor messiacircnico escolhido por Deus e em geral redefiniam a devoccedilatildeo tradicional ao uacutenico Deus para incluir a veneraccedilatildeo a Jesus159

Ao apresentar a adoraccedilatildeo de elementos da natureza o visionaacuterio ainda demons-tra a possibilidade de elementos de fora do acircmbito celestial participarem de algu-ma maneira do culto no ceacuteu O que esses elementos celebram eacute a manifestaccedilatildeo do Reino de Deus e seu domiacutenio perpeacutetuo Os cantores desse hino representam toda a ordem da criaccedilatildeo que juntos adoram o que se assenta no trono e o Cordeiro160

Como um responsoacuterio coral a resposta vem daqueles que se encontram bem perto do trono os Quatro Viventes que respondem ldquoAmeacutemrdquo

A conclusatildeo da cena eacute um novo ato de prostraccedilatildeo e adoraccedilatildeo dos Anciatildeos (Ap 513-14) O verbo usado no Apocalipse para adoraccedilatildeo eacute predominantemente proskuneo Ele aparece 60 vezes no Novo Testamento mas em nenhum outro livro tem a importacircncia que tem no livro de Joatildeo no qual aparece 24 vezes indicando o quanto a questatildeo da adoraccedilatildeo eacute central para o visionaacuterio O termo denota prostraccedilatildeo postura de submissatildeo e homenagem atitude que seraacute repetida vaacuterias vezes no Apocalipse

Finalmente o culto ao Anciatildeo e ao Cordeiro dos capiacutetulos 4 e 5 de Apocalipse seraacute interrompido pela seacuterie de selos e trombetas mas apareceraacute novamente em vaacuterios outros lugares da obra

159 HURTADO Larry W One God One Lord p 17-18160 MESTER Carlos OROFINO Francisco Apocalipse de Joatildeo p 182-183

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CONCLUSAtildeORetomando a questatildeo inicial sobre o papel dos hinos dos capiacutetulos 4 e 5 de

Apocalipse na autocompreensatildeo religiosa e social da audiecircncia ali descrita acreditamos que eles funcionariam para afirmar um status exaltado dos segui-dores de Jesus que foram comprados para Deus e lhe pertencem agora Como propriedade exclusiva de Deus satildeo seus sacerdotes fazendo parte do reino de Deus e do Cordeiro jaacute no presente tempo Por isso eles jaacute podem cantar todas as expectativas que as antigas tradiccedilotildees judaicas esperavam para a intervenccedilatildeo escatoloacutegica divina

Profeticamente o reinado de Deus e seu ungido se manifestam jaacute no espaccedilo sagrado do culto O Templo celestial sede do reino de Deus tem seu equivalente na terra no ajuntamento da comunidade de fieacuteis em adoraccedilatildeo Assim separados da vida ordinaacuteria dentro do limite do tempo e espaccedilo ritual na assembleia de adoraccedilatildeo no dia do Senhor os seguidores de Jesus conseguiam ver o que ningueacutem mais via e mais do isso jaacute antecipavam prolepticamente sua participaccedilatildeo no Reino de Deus e seu Cordeiro

Como contraponto entretanto essa perspectiva identitaacuteria promoveria algum tipo de rejeiccedilatildeo agrave ordem social romana A grande pergunta que os capiacutetulos 4 e 5 de Apocalipse quer responder eacute Quem eacute digno de adoraccedilatildeo Muita gente na eacutepoca do Apocalipse dizia que o Imperador Romano era digno de adoraccedilatildeo Para aqueles que cantavam esses cacircnticos entretanto a sociedade romana paganizada estava equivocada

Eacute certo que os imperadores romanos eram pessoas muito poderosas Tatildeo poderosas que imaginavam poder receber honras e adoraccedilatildeo como se fossem divindades O culto imperial era efetivamente um problema para as comunidades receptoras do Apocalipse Entretanto em oposiccedilatildeo a essa estrutura religiosa imperial o Apocalipse responde com o convite para uma adoraccedilatildeo exclusiva a Deus e seu Cordeiro mesmo que o preccedilo para isso fosse o caminho do martiacuterio (Ap 1413)

Valtair Afonso MirandaRua Uruguai 514202

20510-060 ndash Rio de Janeiro RJvaltairmirandagmailcom

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REFEREcircNCIASBARR David L Tales of the End a Narrative Commentary on the Book of Revelation Santa Rosa Polebridge Press 1998

BORTOLINI Joseacute Como ler o Apocalipse Sao Paulo Paulus 2008

COLLINS Adela Yarbro The Combath Myth in the Book of Revelation Eugene Wipf and Stock Publishers 2001

FRIEDRICH Paulo Nestor Apocalipse 2ndash3 Sete cartas Uma anaacutelise literaacuteria Estudos de Religiatildeo n 19 p 149-173 2000

HURTADO Larry W One God One Lord Early Christian Devotion and ancient Jewish monotheism Edinburgh TampT Clark Ltd 1988

LAZIER Josueacute Adam A estrateacutegia cristatilde no contexto da Pax Romana Estudos Biacuteblicos n 36 p 37-40 1992

MESTER Carlos OROFINO Francisco Apocalipse de Joatildeo a teimosia da feacute dos pequenos Petroacutepolis Vozes 2002

_________ A violecircncia do Impeacuterio Romano e a sua influecircncia na vida das comu-nidades cristatildes do fim do primeiro seacuteculo Estudos Biacuteblicos n 69 p 72-82 2001

MIRANDA Valtair A Maacutertires e monges milenarismos antigos e medievais Santo Andreacute Kapenke 2018

_________ O caminho do Cordeiro representaccedilatildeo e construccedilatildeo de identidade no Apocalipse de Joatildeo Satildeo Paulo Paulus 2011

_________ Religiatildeo e sociedade na Aacutesia romana Religare v13 n1 p150-179 2016

_________ Revisitando o contexto de produccedilatildeo do Apocalipse de Joatildeo Reflexus ano IX n 14 p 389-416 2015

PRIGENT Pierre O Apocalipse Trad Luiz Joatildeo Barauacutena Satildeo Paulo Loyola 1993

WIKENHAUSER Alfred El Apocalipsis de San Juan Barcelona Editorial Herder 1969

Page 6: seminariodosul.com.br...O primeiro concílio da igreja é o mencionado no capítulo 15 de Atos dos Apóstolos, onde Lucas relata o Concílio de Jerusalém em 50 d.C., liderado por

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DECISOtildeES CRISTOLOacuteGICAS DOS SETE CONCIacuteLIOS ECUMEcircNICOS

Cliff Iuri de Souza Gonccedilalves1

Walter Ferreira da Silva Juacutenior2

RESUMO A palavra trindade natildeo aparece na Biacuteblia Sagrada mas eacute um tema que norteia

as bases de feacute da Igreja Cristatilde No credo apostoacutelico que foi editado ao longo dos tempos houve vaacuterios acreacutescimos e retiradas de termos sobre quem seria Jesus Deus e o proacuteprio Espiacuterito Santo ateacute chegar agrave forma conhecida atualmen-te Este eacute um dos temas muito trabalhado nos conciacutelios ecumecircnicos entre os seacuteculos IV-VIII e sobre o qual ateacute os dias atuais natildeo existe um consenso A tentativa de definir as trecircs pessoas da Trindade eacute uma tarefa aacuterdua e complexa Este trabalho portanto visa traccedilar um panorama desse recorte da histoacuteria do cristianismo enfatizando as principais decisotildees relacionadas a Cristo De Niceacuteia I (325) a Niceacuteia II (787) satildeo abordadas as principais heresias seus principais fundadores e as respostas dos conciacutelios para cada uma delas com as respectivas conclusotildees dos conciacutelios

Palavras-chave Decisotildees cristoloacutegicas Conciacutelios ecumecircnicos Heresias Trin-dade Histoacuteria do cristianismo

ABSTRACT The word trinity is a concept that does not appear in the Holy Bible but it

is a theme that guides the faith bases of the Christian Church The apostolic creed which has been edited throughout the ages has had several additions and withdrawals from terms about who Jesus God and the Holy Spirit would be until reaching the form known today This is one of the themes that has been widely worked on in the ecumenical councils between the 4th and 8th centuries and which to this day does not have a consensus The attempt to define the three persons of the Trinity is an arduous and complex task This work therefore aims to provide an overview of this section of the history of Christianity emphasizing

1 Bacharel em Engenharia de Petroacuteleo pela Universidade Tiradentes Mestre em Engenharia Quiacutemica pela Universidade Federal de Sergipe e Doutorando em Engenharia Quiacutemica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro Graduando em Teologia pelo Seminaacuterio Teoloacutegico Batista do Sul do Brasil 2 Graduado e Licenciatura em Histoacuteria Poacutes-Graduado em Teologia Atualmente eacute professor no Seminaacuterio Teoloacutegico Batista do Sul do Brasil

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the main decisions related to Christ From Nicaea I (325) to Nicaea II (787) the main heresies their main founders and the councilsrsquo responses to each of them are addressed with the respective council conclusions

Keywords Christological decisions Ecumenical councils Heresies Trinity History of Christianity

INTRODUCcedilAtildeOApoacutes a morte e a ressureiccedilatildeo de Cristo os apoacutestolos possuiacuteam uma grande

missatildeo em suas matildeos o questionamento sobre quem era Jesus Cristo pairava entre os adeptos do novo movimento (mais tarde denominado de cristianismo) e eles precisavam dar respostas Antes mesmo de sua morte Jesus Cristo havia perguntado aos seus disciacutepulos Ὑμεῖς δὲ τίνα με λέγετε εἶναι (ldquoHymeis de tiacutena me leacutegete einairdquo - Vocecircs no entanto quem vocecircs dizem que eu sou) Esta pergunta foi respondida por Pedro Τὸν Χριστὸν τοῦ Θεοῦ (ldquoTon Christon tou Theourdquo - O Cristo de Deus)

Mesmo sendo disciacutepulos para alguns ainda natildeo estava claro quem era Jesus Apoacutes a morte e ressureiccedilatildeo Tomeacute ainda precisou tocar em Jesus para ter certeza de que ali estava o Cristo ressuscitado Trezentos anos depois essa tarefa natildeo tinha ficado mais faacutecil Pelo contraacuterio se aqueles que estiveram com Cristo em carne natildeo haviam percebido como poderiam aqueles que natildeo andaram com Ele somente ouviram falar entender a ideia de Jesus como Deus Ou como Salvador

Portanto desde a fundaccedilatildeo do cristianismo a igreja tem lidado com contro-veacutersias no que diz respeito agrave aceitaccedilatildeo de Cristo como Deus ou como humano Muitas ideias surgiram principalmente entre os seacuteculos IV ndash VIII para tentar sistematizar o estudo da pessoa de Cristo comumente chamado de Cristologia Alguns desses pensamentos que contrastavam com as crenccedilas da igreja embora rotuladas de ldquohereacuteticasrdquo provocaram debates significativos sobre a pessoa de Cristo Esses debates convocados satildeo chamados de conciacutelios3

O primeiro conciacutelio da igreja eacute o mencionado no capiacutetulo 15 de Atos dos Apoacutestolos onde Lucas relata o Conciacutelio de Jerusaleacutem em 50 dC liderado por Tiago com o objetivo de discutir sobre a conversatildeo dos judeus ao cristianismo e a difusatildeo da Palavra aos gentios4 Depois apareceu a ameaccedila do gnosticismo

3 DIEgraveGUE Ricardo Christological controversies of the first four ecumenical councils B A Leavell College June 27 20144 KELLY Joseph F The Ecumenical Councils of the Catholic Church (Collegeville Minnesota Liturgical Press 2009)

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e de outras doutrinas semelhantes no seacuteculo III quando Cipriano era bispo de Cartago foi debatida a questatildeo da readmissatildeo dos que tinham caiacutedo5

Um fator limitante para que as discussotildees prosseguissem era a disponibili-dade dos envolvidos para isso pois muitos deles estavam sendo perseguidos ou fugindo Com o fim da perseguiccedilatildeo promovido por Constantino no iniacutecio do seacuteculo IV houve mais seguranccedila e liberdade para prosseguir o debate de controveacutersias teoloacutegicas Ideias controversas dentro do impeacuterio poderiam dividi- lo e Constantino natildeo queria ameaccedilar a unidade do impeacuterio Assim o primeiro conciacutelio ecumecircnico foi convocado6

Sete conciacutelios ecumecircnicos foram chamados no total entre os seacuteculos IV-VIII Dentre eles os quatro primeiros destacam-se por sua autoridade doutrinaacuteria e por sua importacircncia histoacuterica Niceacuteia I e Constantinopla I lanccedilam base para as questotildees da trindade enquanto Eacutefeso e Calcedocircnia tratam com mais afinco a questatildeo da encarnaccedilatildeo7

1 NICEacuteIA (325)O Primeiro Conciacutelio Ecumecircnico foi convocado pelo Imperador Constantino

o Grande em 325 em 20 de maio O Conselho reuniu-se em Niceacuteia na proviacutencia de Bitiacutenia na Aacutesia Menor e foi formalmente aberto pelo proacuteprio Constantino O Conselho aprovou 20 cacircnones incluindo o Credo Niceno o Cacircnon das Escrituras Sagradas (Biacuteblia Sagrada) e estabeleceu a celebraccedilatildeo da Pascha (Paacutescoa)

Aleacutem dessas questotildees a pessoa de Cristo foi debatida nesse conciacutelio A prin-cipal heresia debatida foi o arianismo Aacuterio era padre em Alexandria e no iniacutecio do seacuteculo IV seu paradigma de pensamento cristatildeo estava ganhando forccedila8 Em uma carta escrita a Euseacutebio bispo de Nicomeacutedia em 321 Aacuterio advertiu

[] mas natildeo podemos dar ouvidos nem mesmo pensar em debelar estas heresias sem que nos ameacem com mil mortes Noacutes pensamos e afir-mamos como temos pensado e continuamos a ensinar que o Filho natildeo eacute ingecircnito nem participa absolutamente do ingecircnito nem derivou de alguma substacircncia mas que por sua proacutepria vontade e decisatildeo existiu antes dos tempos e era inteiramente Deus unigecircnito e imutaacutevel Mas antes de ter sido gerado ou criado ou nomeado ou estabelecido ele natildeo

5 GONZAacuteLEZ Justo L Uma Histoacuteria Ilustrada do Cristianismo - Volume 1 Ed Vida Nova6 GONZAacuteLEZ Justo L Op cit 7 ALBERIGO Giuseppe (Ed) Historia de los concilios ecumeacutenicos Siacutegueme 19938 HASBROUCK Ryan The First Four Ecumenical Councils as Ineffective Means to Control the Rise and Spread of Heterodox Christian Ideologies Dept of History University of Colorado 2009

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existia pois ele natildeo era ingecircnito Somos perseguidos porque afirmamos que o Filho tem um iniacutecio enquanto Deus eacute sem iniacutecio9

A premissa fundamental de Aacuterio era que ele deduzia uma concepccedilatildeo da absoluta unidade e transcendecircncia de Deus somente Deus eacute ldquoprinciacutepio natildeo geradordquo e a essecircncia da divindade natildeo pode ser dividida nem ser comunicada a outros mesmo que o que existe tenha sido chamado a ser a partir do nada Um dos slogans mais ceacutelebres e discutidos sobre o Logos consistia precisamente na afirmaccedilatildeo segundo a qual ldquohavia um tempo em que ele natildeo erardquo slogan que comprometia a unicidade de Deus10

Na visatildeo dos anti-arianos eacute da proacutepria natureza do Pai gerar o Filho o Pai nunca foi outro senatildeo o Pai portanto o Filho e o Pai devem ter existido desde toda a eternidade o Pai gerando eternamente o Filho A frase de vital impor-tacircncia na resposta ortodoxa ao arianismo era ldquode uma substacircncia (homoousios) com o Pairdquo Esta frase afirma que o Filho compartilha o mesmo ser que o Pai e portanto eacute totalmente divino11 Assim nasce o credo Niceno que combatia as principais heresias arianas aleacutem de definir questotildees cristoloacutegicas

Conforme a tradiccedilatildeo dos Evangelhos e dos Apoacutestolos noacutes cremos em um soacute Deus Pai todo poderoso autor criador e ordenador providente do universo de quem todas as coisas adquirem existecircncia E num soacute Senhor Jesus Cristo seu filho Deus unigecircnito mediante o qual tudo existe o qual foi gerado pelo pai antes de todas as eacutepocas Deus de Deus tudo de tudo uacutenico de uacutenico completo de completo rei de rei senhor de senhor [] e se algueacutem disser que o Filho eacute uma criatura como qualquer outra ou uma prole como qualquer outra ou uma obra como qualquer outra seja anaacutetema12

Portanto atraveacutes desse conciacutelio fica decidido que Jesus eacute Deus verdadeiro com a mesma essecircncia (consubstancial) Assim trecircs foram as decisotildees do con-ciacutelio a primeira ediccedilatildeo do credo niceno o termo homoousios (ομοούσιος) e a condenaccedilatildeo de Aacuterio A carta que condena Aacuterio e seus disciacutepulos satildeo bem claras ao anatematizar suas opiniotildees classificando-as como blasfemas e dementes13

Examinou-se de iniacutecio perante Constantino nosso soberano mui amado de Deus a impiedade e irregularidade de Aacuterio e de seus disciacutepulos De-

9 BETTENSON H Documentos da Igreja Cristatilde Carta de Aacuterio a Euseacutebio bispo de Nicomeacutedia (c321) ASTE Satildeo Paulo 2011 10 ALBERIGO Giuseppe Op Cit 11 DAVIS Leo Donald The first seven ecumenical councils (325-787) Their History and Theology Collegeville Minnesota The Liturgical Press 198312 BETTENSON H Op cit O credo de dedicaccedilatildeo (341) ndash Atanaacutesio 13 SCHMELING Gaylin R The Christology of the Seven Ecumenical Councils

13TeoloacutegicaRevista Brasileira de Teologia ISSN 1807-7056 nordm 8 outdez Rio de Janeiro 2020 p 9-22

cidiu-se por unanimidade que devem ser anatematizadas suas opiniotildees iacutempias e todas as suas afirmaccedilotildees e expressotildees blasfematoacuterias tal como estatildeo sendo emitidas e divulgadas tais como ldquoo Filho de Deus eacute do que natildeo eacuterdquo ldquohouve [um tempo] quando natildeo existiardquo ou afirmaccedilatildeo de que Filho de Deus em virtude de seu livre arbiacutetrio eacute capaz do bem e do mal ou de que pode ser chamado de criatura ou de feitura Todas essas afirmaccedilotildees anatematizadas pelo santo Siacutenodo que natildeo tolera declaraccedilotildees tatildeo iacutempias tatildeo dementes e blasfematoacuterias14

Entre os apoiadores de Aacuterio podem-se contar Atanaacutesio bispo de Anazarbus Narciso de Neronias Euseacutebio de Cesareia e Asterius Dos anti-arianos podem ser citados os Grandes Capadoacutecios (Basiacutelio o Grande Gregoacuterio de Nazianzus - irmatildeo mais novo de Basiacutelio e Gregoacuterio de Nissa) e Atanaacutesio de Alexandria sendo este de grande importacircncia para a histoacuteria do conciacutelio que sucedeu o de Niceacuteia15

2 CONSTANTINOPLA (381)Atanaacutesio era secretaacuterio de Alexandre o Bispo de Alexandria Quando Ale-

xandre morreu Atanaacutesio foi eleito bispo de Alexandria Euseacutebio de Nicomeacutedia um dirigente ariano que possuiacutea contato direto com Constantino fez declaraccedilotildees sobre Atanaacutesio as quais levaram esse rei a decretar o exiacutelio de Atanaacutesio em Treacuteveris no Ocidente16

Constantino adoeceu e morreu no ano 337 logo em seguida o trono foi assu-mido por seu filho Constacircncio que revogou todos os exiacutelios e Atanaacutesio retornou a Alexandria A mudanccedila de lideranccedila teve um profundo impacto na controveacutersia ariana pois Constacircncio tambeacutem proacuteximo de Euseacutebio de Nicomeacutedia tornou-o bispo de Constantinopla e simpatizou-se com as visotildees arianas17 Tentando combater o arianismo Apolinaacuterio acabou se excedendo em seu pensamento razatildeo por que sua teoria tornou-se uma heresia

Apolinaacuterio alegou que o nous (mente alma) de Cristo era essencialmente o Logos (divino) em uma forma glorificada e espiritualizada da humanidade (seu corpo)18 Ele acreditava que o Logos havia substituiacutedo a alma de Jesus Por ter uma ideia opressiva da natureza divina de Jesus Apolinaacuterio cancelou a natureza

14 BETTENSON H Op cit Carta do Siacutenodo de Niceacuteia (325) ndash Condenaccedilatildeo de Aacuterio15 DIEgraveGUE Ricardo Op cit16 GONZAacuteLEZ Justo L Op cit17 RUBENSTEIN Richard When Jesus Became God The Struggle to Define Christianity during the Last Days of Rome Orlando Harcourt Inc 200018 ANDERSON William P A Journey through Christian Theology Minneapolis MN Fortress Press 2nd edition 2010

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humana de Jesus19 Isso se chama Monofisismo do grego monos ldquoapenas umardquo e physis ldquonaturezardquo e eacute a crenccedila de que como resultado da encarnaccedilatildeo a huma-nidade de Jesus foi tatildeo infundida por Sua divindade que Ele tinha apenas uma natureza divina20 Estava formado o palco para o segundo conciacutelio ecumecircnico

Atanaacutesio foi um dos maiores apologista de Cristo durante o conciacutelio de Constantinopla Para combater o apolinarismo ele argumentou que Jesus era simultaneamente homem e Deus A fim de evidenciar sua posiccedilatildeo mostrou que foi a encarnaccedilatildeo que permitiu que Jesus cumprisse Seu papel pretendido na Terra Colocando seu argumento em termos negativos Atanaacutesio estaria dizendo que se Jesus natildeo tivesse nascido de uma mulher e portanto habitado um corpo humano e vivido uma vida humana Ele natildeo poderia ter concedido salvaccedilatildeo agrave humanidade atraveacutes de Sua morte21

No comeccedilo de seus discursos Atanaacutesio natildeo usou muito o homoousios niceno mas gradualmente viu toda a implicaccedilatildeo desse conceito e se tornou seu defen-sor mais resoluto A semelhanccedila e a unidade do Pai e da Palavra natildeo podem consistir apenas em harmonia e concordacircncia de mente e vontade mas devem respeitar a essecircncia (ουσία) A divindade do Pai eacute idecircntica agrave divindade do Logos O Logos eacute diferente do Pai porque Ele veio do Pai mas como Deus o Logos e o Pai satildeo um e o mesmo O que eacute dito do Pai eacute dito do Filho exceto que o Filho natildeo eacute chamado Pai Pode-se dizer que os seres humanos satildeo homoousioi porque compartilham a natureza humana mas natildeo podem possuir uma mesma substacircncia (υπόστασις) idecircntica22

Esse eacute o ponto para o qual o credo foi direcionado a palavra Deus conota precisamente a mesma verdade quando vocecirc fala de Deus o Pai como acontece quando vocecirc fala de Deus o Filho Conota a mesma verdade Se vocecirc contempla o Pai que eacute uma apresentaccedilatildeo distinta da divindade obteacutem uma visatildeo mental do uacutenico Deus verdadeiro Se vocecirc contempla o Filho ou o Espiacuterito obteacutem uma visatildeo do mesmo Deus embora a apresentaccedilatildeo seja diferente a realidade eacute idecircnticardquo23

Creio em um soacute Deus Pai Todo-Poderoso criador do ceacuteu e da terra de todas as coisas visiacuteveis e invisiacuteveis Creio em um soacute Senhor Jesus Cristo

19 BELLITTO Christopher M The General Councils A History of the Twenty-One Church Councils from Nicaea to Vatican II Mahwah NJ Paulist Press 200220 JOHNSON Douglas W The Great Jesus Debates 4 Early Church Battles about the Person and Work of Jesus Saint Louis MO Concordia Publishing House 200521 HASBROUCK Ryan Op cit 22 DAVIS Leo Donald Op cit23 DAVIS Leo Donald Op cit

15TeoloacutegicaRevista Brasileira de Teologia ISSN 1807-7056 nordm 8 outdez Rio de Janeiro 2020 p 9-22

Filho Unigecircnito de Deus nascido do Pai antes de todos os seacuteculos Deus de Deus luz da luz Deus verdadeiro de Deus verdadeiro gerado natildeo criado consubstancial ao Pai Por ele todas as coisas foram feitas E por noacutes homens e para nossa salvaccedilatildeo desceu dos ceacuteus e se encarnou pelo Espiacuterito Santo no seio da Virgem Maria e se fez homem

A foacutermula proposta por Atanaacutesio resolveu temporariamente o dilema cris-toloacutegico que atormentava a igreja primitiva No entanto a maacute interpretaccedilatildeo do credo em uma capacidade diferente logo criou mais inquietaccedilatildeo e a necessidade de outro conselho ecumecircnico

3 EacuteFESO (431)Mesmo depois de Constantinopla I as questotildees voltaram a aparecer Como

poderia Jesus ser homem e Deus ao mesmo tempo Quais eram as implicaccedilotildees dessa afirmaccedilatildeo para Maria Era Jesus humano em algumas situaccedilotildees e Deus em outras Seria Maria matildee apenas da parte humana ou tambeacutem da parte divina Como fazer essa distinccedilatildeo24

O proacuteximo episoacutedio das controveacutersias cristoloacutegicas ocorreu por intermeacutedio de Nestoacuterio um partidaacuterio da escola de Antioquia que se tornou patriarca de Constantinopla em 428 Pelo fato de essa cidade ter sido declarada a capital do Impeacuterio Oriental Antioquia e Alexandria se tornaram rivais Cirilo que era bispo de Alexandria levantou-se para combater as ideias de Nestoacuterio25

O motivo imediato da controveacutersia foi o termo theotokos que era usado para Maria Theotokos geralmente traduzido por ldquomatildee de Deusrdquo literalmente quer dizer ldquogenitora de Deusrdquo Ao explicar sua oposiccedilatildeo a esse termo Nestoacuterio dizia que Deus em Jesus Cristo teria se unido a um ser humano Como Deus eacute uma pessoa e o ser humano eacute outra em Cristo devem estar presentes natildeo soacute duas naturezas mas tambeacutem duas pessoas O que nasceu de Maria foi a pessoa e natureza humana e natildeo a divina Por isso Maria eacute Christotokos (genitora de Cristo) e natildeo theotokos (genitora de Deus)26

Cirilo insistiu na unidade do divino e do humano a ponto de poder dizer que o Verbo sofreu por noacutes natildeo porque o divino sofreu (uma impossibilidade) mas que o divino e o humano se completaram na mesma pessoa27 As duas naturezas

24 BELLITTO Christopher M Histoacuteria dos 21 conciacutelios da Igreja de Niceacuteia ao Vaticano II Traduccedilatildeo de Claacuteudio Queiroz de Godoy Satildeo Paulo Loyola 201025 GONZAacuteLEZ Justo L Op cit26 GONZAacuteLEZ Justo L Op cit27 KELLY Joseph F

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que foram unidas a fim de formarem a verdadeira unidade (uniatildeo hipostaacutetica) eram diferentes mas de ambas houve um soacute Cristo e um soacute Filho Eacute nesse sentido que Cristo nasceu na expressatildeo biacuteblica da carne de mulher embora existisse e fosse gerado pelo Pai antes de todos os seacuteculos28

Cirilo escreveu doze anaacutetemas e enviou a Constantinopla juntamente com uma extensa carta que expunha sua doutrina Dentre os principais pontos eacute interessante ressaltar os pontos um e dois que falam sobre Maria e sobre a uniatildeo hipostaacutetica

Se algueacutem natildeo confessar que o Emanuel eacute verdadeiro Deus e que portan-to a Santa Virgem eacute Theotoacutekos porquanto deu agrave luz segunda a carne ao Verbo de Deus feito carne seja anaacutetema Se algueacutem natildeo confessar que o Verbo de Deus Pai estava unido pessoalmente [kathrsquohypoacutestasin] agrave carne sendo com ela propriamente um soacute Cristo ou seja um soacute e mesmo Deus e homem ao mesmo tempo seja anaacutetema29

Enquanto isso Nestoacuterio foi deposto e enviado a um mosteiro de Antioquia Mais tarde ele foi transferido para a distante cidade de Petra e por fim a um oaacutesis no deserto da Liacutebia onde passou o resto de seus dias30

4 CALCEDOcircNIA (451)Apoacutes o Conciacutelio de Eacutefeso o debate sobre as duas naturezas de Jesus estava

em andamento Eacute importante lembrar que com a Escola Alexandrina liderada por Cirilo a uniatildeo foi feita de tal maneira que o Logos substituiu a alma e portanto a divindade de Jesus submergiu agrave sua humanidade No entanto para a Escola de Antioquia a ldquouniatildeordquo foi feita com a distinccedilatildeo de ambas as naturezas que permaneceram separadas31

A controveacutersia cristoloacutegica de Eacutefeso culminou com a condenaccedilatildeo de Nestoacuterio e o seu envio para o exiacutelio No entanto quando Dioacutescoro substituiu Cirilo no patriarcado em Alexandria em 444 um novo embate estava para surgir Agora a heresia era liderada por Ecircutico um monge que morava em Constantinopla Os ideais pregados por Ecircutico eram apoiados por Dioacutescoro o que dava ao monge certa ousadia e arrogacircncia para falar Mal sabia ele que as intenccedilotildees de Dioacutescoro eram poliacuteticas ele esperava que Ecircutico fosse condenado no conciacutelio para poder ter uma causa a defender contra Flaviano o novo patriarca de Constantinopla32

28 BETTENSON H Op cit Exposiccedilatildeo de Cirilo29 BETTENSON H Op cit Anaacutetemas de Cirilo de Alexandria30 GONZAacuteLEZ Justo L Op cit31 BOKENKOTTER Thomas A Concise History of the Catholic Church New York DoubleDay 200432 GONZAacuteLEZ Justo L Op cit

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Dedicado agrave teologia de Cirilo e altamente ortodoxo Ecircutico comeccedilou a ensinar que antes da Encarnaccedilatildeo Cristo era de duas naturezas mas depois havia um Cristo um Filho um Senhor em uma hipoacutestase Ele repudiou a existecircncia de duas naturezas apoacutes a Encarnaccedilatildeo em oposiccedilatildeo agraves Escrituras e ao ensino dos Pais33

ldquoEu adorordquo ele insistiu ldquouma natureza a de Deus que se fez carne e se tornou homemrdquo No entanto admitiu que Cristo nasceu da Virgem portanto era subs-tancial conosco (humanos) e era Deus perfeito e homem perfeito No entanto a carne de Cristo natildeo era na opiniatildeo de Ecircutico consubstancial agrave carne humana comum mas reconheceu que a humanidade de Cristo era plena sem falta de uma alma racional como era para os apolinaristas A humanidade de Cristo tambeacutem natildeo era uma mera aparecircncia como era para os docetistas tampouco a Palavra e a carne foram fundidas em uma natureza mista Ainda assim ele repetiu obstinadamente que Cristo era de duas naturezas antes da Encarnaccedilatildeo e de apenas uma depois da encarnaccedilatildeo34

Leatildeo o grande foi o principal defensor da ortodoxia no conciacutelio de Calcedocirc-nia e sua defesa gerou o Tomo de Leatildeo A definiccedilatildeo desse conciacutelio portanto pode ser vista como proposiccedilotildees apologeacuteticas aos pensamentos do eutiquianismo

Fieacuteis aos santos pais todos noacutes perfeitamente unanimes ensinamos que se deve confessar um soacute e mesmo Filho nosso Senhor Jesus Cristo perfei-to quanto agrave divindade e perfeito quanto agrave humanidade verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem constando de alma racional e de corpo consubstancial [homooysios] ao Pai segundo a divindade e consubstan-cial a noacutes segundo a humanidade ldquoem todas as coisas semelhante a noacutes excetuando o pecadordquo gerado segundo a divindade antes dos seacuteculos pelo Pai e segundo a humanidade por noacutes e para nossa salvaccedilatildeo gerado da Virgem Maria matildee de Deus [Theotoacutekos] Um soacute e mesmo Cristo Filho Senhor Unigecircnito que se deve confessar em duas naturezas inconfundiacuteveis e imutaacuteveis conseparaacuteveis e indivisiacuteveis A distinccedilatildeo de naturezas de modo algum eacute anulada pela uniatildeo mas pelo contraacuterio as propriedades de cada natureza permanecem intactas concorrendo para formar uma soacute pessoa e subsistecircncia [hypoacutestasis] natildeo dividido ou separado em duas pessoas mas um soacute e mesmo Filho Unigecircnito Deus Verbo Jesus Cristo Senhor conforme os profetas outrora a seu respeito testemunharam e o mesmo Jesus Cristo nos ensinou e o credo dos pais nos transmitiu 35

33 DAVIS Leo Donald Op cit34 DAVIS Leo Donald Op cit35 BETTENSON H Op cit A definiccedilatildeo de Calcedocircnia (451)

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5 CONSTANTINOPLA II (553)O periacuteodo poacutes Calcedocircnia foi muito parecido com o de Niceacuteia em ambos os

conciacutelios uma soluccedilatildeo basicamente ocidental para um problema oriental havia sido introduzida na dieta teoloacutegica do Oriente Depois dos dois conciacutelios o Oriente empreendeu muito tempo e esforccedilo para digerir e assimilar tudo o que ficou decidido No caso de Niceacuteia o mundo romano gradualmente aceitou seu credo O arianismo permaneceu firme entre as tribos alematildes por um tempo mas muito lentamente sucumbiu a Niceacuteia No caso de Eacutefeso e Calcedocircnia seccedilotildees do mundo romano e aleacutem entraram em cisma em vez de aceitar suas decisotildees e assim continuam ateacute os nossos dias O conciacutelio de Constantinopla II foi um esforccedilo para mostrar aos (ateacute entatildeo) monofisitas cismaacuteticos que Calcedocircnia realmente preservava os valores teoloacutegicos36

Quando Justino morreu em 527 seu sobrinho Justiniano assumiu o impeacuterio Bizantino com o principal ideal de unir o impeacuterio No entanto ele precisaria reunificar uma igreja dividida pela questatildeo cristoloacutegica Justiniano achava que o conciacutelio de Calcedocircnia tinha se pronunciado corretamente com respeito agraves naturezas de Cristo mas ao mesmo tempo percebia que os monofisitas mais moderados tinham razatildeo ao apontar para os perigos que essa doutrina poderia trazer consigo 37

Assim o conciacutelio foi solicitado e aconteceu em 5 de maio de 553 no grande salatildeo anexo ao palaacutecio patriarcal em Constantinopla Estavam presentes os representantes do patriarca de Jerusaleacutem todos os 151 a 168 bispos incluindo seis a nove da Aacutefrica38

O objetivo de convocar o conciacutelio de Constantinopla II foi o de condenar as obras de trecircs homens a saber Teodoro de Mopsueacutestia Teodoreto de Cyr e Ibas de Edessa que tiveram suas declaraccedilotildees individuais agrupadas e chamadas de ldquotrecircs capiacutetulosrdquo Eles foram acusados de simpatizarem com o nestorianismo e de favorecerem o monofisismo ao afirmar que Jesus tinha uma soacute natureza o divino sobrepujando o humano Os ldquocapiacutetulosrdquo foram condenados nesse conciacutelio 39

Se algueacutem natildeo reconhece a uacutenica natureza ou substacircncia (oysia) do Pai Filho e Espiacuterito Santo sua uacutenica virtude e poder uma Trindade consubs-tancial seja anaacutetema Porque existe um soacute Deus e Pai do qual procedem

36 DAVIS Leo Donald Op cit37 GONZAacuteLEZ Justo L Op cit38 DAVIS Leo Donald Op cit39 BELLITTO Christopher M Op cit

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todas as coisas e um soacute Senhor Jesus Cristo atraveacutes do qual satildeo todas as cosias e um soacute Espiacuterito Santo no qual estatildeo todas as coisas 40

Portanto o Conciacutelio de Constantinopla II esclareceu mais uma vez os ensi-namentos da Igreja sobre as duas naturezas de Jesus unidas hipostaticamente em uma soacute pessoa Os padres natildeo soacute condenaram os hereacuteticos e as heresias como tambeacutem os que simpatizavam com elas 41

6 CONSTANTINOPLA III (680-681)Em 7 de novembro de 680 o conciacutelio de Constantinopla III abriu em uma

grande sala abobadada - o Trullus - no palaacutecio imperial com apenas quarenta e trecircs bispos presentes O proacuteprio imperador abriu o conciacutelio e presidiu as onze primeiras sessotildees O conciacutelio teve dezoito sessotildees separadas por longos inter-valos ateacute 16 de setembro de 68142

Os legados papais comeccedilaram exigindo que o clero de Constantinopla expli-casse seus ensinamentos sobre monoenergismo e monotelismo A convite do imperador Jorge de Constantinopla e Macaacuterio de Antioquia responderam que eles ensinavam apenas doutrinas definidas pelos conselhos Seguiu-se a leitura dos atos dos Conciacutelios de Eacutefeso Calcedocircnia e Constantinopla II43

O patriarca Seacutergio de Constantinopla depois de tentar sem sucesso vaacuterias maneiras de aproximar-se dos monofisitas propocircs a doutrina chamada de ldquomo-notelismordquo Essa palavra vem das raiacutezes gregas mono (um) e thelema (vontade) O que Seacutergio propunha eacute que em Cristo ao mesmo tempo em que havia duas naturezas a divina e a humana como o concilio de Calcedocircnia declarara havia uma soacute vontade Ao que parece o que Seacutergio queria dizer era que em Cristo natildeo havia outra vontade aleacutem da divina Quando perguntaram ao papa Honoacuterio o que ele pensava da foacutermula de Seacutergio o papa a aprovou Poreacutem a oposiccedilatildeo em vaacuterias regiotildees do Impeacuterio natildeo demorou a se manifestar 44

O teoacutelogo que mais se distinguiu nesse sentido foi Maacuteximo de Crisoacutepolis que eacute conhecido por Maacuteximo ldquoo Confessorrdquo Mais tarde em 648 a oposiccedilatildeo ao monotelismo chegou a tal ponto que o imperador Constante II proibiu qualquer discussatildeo sobre se em Cristo havia uma ou duas vontades Quando o imperador promulgou essa proibiccedilatildeo o Impeacuterio tinha perdido o interesse de se aproximar

40 BETTENSON H Op cit Os ldquotrecircs capiacutetulosrdquo ndash Os cacircnones do segundo conciacutelio de Constantinopla (553)41 BELLITTO Christopher M Op cit42 DAVIS Leo Donald Op cit43 GONZAacuteLEZ Justo L Op cit44 GONZAacuteLEZ Justo L Op cit

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dos monofisitas Siacuteria e Egito as regiotildees do Impeacuterio onde o monofisismo tinha a maior parte dos seus adeptos haviam sido conquistadas pouco antes pelos aacuterabes Tal fato significaria que a partir de entatildeo a corte de Constantinopla em vez de se preocupar com a boa vontade dos monofisitas de Egito e Siacuteria tinha de melhorar as suas relaccedilotildees com os cristatildeos calcedonenses que eram a maioria tanto nos territoacuterios que ainda pertenciam ao Impeacuterio como no Ocidente45

Em consequecircncia o sexto conciacutelio ecumecircnico que se reuniu em Constanti-nopla em 680 e 681 condenou o monotelismo e reafirmou a Definiccedilatildeo de feacute de Calcedocircnia Entre os monotelitas condenados especificamente pelo conciacutelio es-tava o papa Honoacuterio O caso de um papa condenado nominalmente como herege por um conciacutelio ecumecircnico foi uma das dificuldades que os catoacutelicos tiveram de enfrentar quando no seacuteculo XIX conseguiram que o conciacutelio Vaticano I promulgasse a infalibilidade papal46

7 NICEacuteIA II (787)A uacuteltima grande controveacutersia que atingiu a igreja durante o periacuteodo aqui

estudado (ateacute o seacuteculo VIII) questionava o uso de imagens no culto puacuteblico A igreja cristatilde antiga parecia natildeo se opor ao uso delas para decoraccedilatildeo como imagens alusivas a episoacutedios da Biacuteblia No entanto quanto mais pagatildeos se con-vertiam mais os liacutederes temiam que as imagens levassem agrave praacutetica da idolatria Alguns no entanto reforccedilavam o valor das imagens como ldquolivros iletradosrdquo uma vez que muitos natildeo sabiam ler Assim surgiram dois partidos que receberam o nome de ldquoiconoclastasrdquo (destruidores de imagens) e ldquoiconodulosrdquo (adoradores de imagens) 47

Os iconoclastas se baseavam em passagens biacuteblicas que proiacutebem a idolatria como Ecircxodo 204-5 Os iconodulos por sua vez relacionaram a discussatildeo com as controveacutersias cristoloacutegicas dos seacuteculos anteriores

A razatildeo pela qual eacute possiacutevel representar os misteacuterios divinos atraveacutes de imagens eacute que em Cristo o proacuteprio Deus nos deu sua imagem Natildeo deixar representar a Cristo equivaleria a negar a sua humanidade Se Cristo foi homem deve ser possiacutevel representaacute-lo assim como qualquer outro ho-mem pode ser representado Aleacutem disso o primeiro criador das imagens foi o proacuteprio Deus ao criar a humanidade agrave sua imagem48

45 GONZAacuteLEZ Justo L Op cit46 BELLITTO Christopher M Op cit47 GONZAacuteLEZ Justo L Op cit48 GONZAacuteLEZ Justo L Op cit

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Embora os bispos tivessem sido notavelmente longiacutenquos em seus debates eles foram bastante concisos em seu decreto Eles disseram que Cristo nos livrou da loucura idoacutelatra e sempre continua sustentando Sua Igreja mas alguns mes-mo os sacerdotes se desviaram deixando de ldquodistinguir entre santo e profano estilizando as imagens de Nosso Senhor e de Seus santos da mesma maneira como as estaacutetuas dos iacutedolos diaboacutelicosrdquo Os bispos acrescentaram a aceitaccedilatildeo dos seis conciacutelios ecumecircnicos anteriores especialmente o que se encontrava ldquona ilustre metroacutepole de Niceacuteiardquo49

Em seguida eles mantiveram inalteradas todas as tradiccedilotildees eclesiaacutesticas que foram transmitidas por escrito ou verbalmente uma das quais eacute a realizaccedilatildeo de representaccedilotildees pictoacutericas agradaacuteveis agrave histoacuteria da pregaccedilatildeo dos Evangelhos uma tradiccedilatildeo uacutetil em muitos aspectos mas especialmente em que a encarnaccedilatildeo da Palavra de Deus eacute mostrada como real e natildeo meramente fantaacutestica50 Em resumo o uso das imagens foi restaurado para veneraccedilatildeo (dulia) mas natildeo para adoraccedilatildeo (latria)51

CONSIDERACcedilOtildeES FINAISDiante de inuacutemeras controveacutersias e debates eacute interessante perceber como cada

decisatildeo tomada nos conciacutelios ajudou a entender temas cristoloacutegicos Percebe-se que desde o iniacutecio existe uma tentativa de explicar e sistematizar a natureza de Cristo de definir em quais momentos seu lado humano eou divino esteve em accedilatildeo As heresias debatidas foram importantes para que as respostas levantadas pela Igreja formassem ou pelo menos ajudassem a formar o pensamento que temos hoje sobre quem eacute Cristo e sua natureza Eacute inevitaacutevel que temas adja-centes aparecessem como a proacutepria natureza de Maria e a adoraccedilatildeo a imagens Estudar esse recorte da histoacuteria do cristianismo eacute portanto fundamental para compreender o pensamento da Igreja daqueles seacuteculos e qual a visatildeo que se tinha sobre quem eacute Jesus

O exerciacutecio mental que pode aqui ser realizado eacute o de comparar as mentali-dades e tentar perceber se muita coisa mudou em relaccedilatildeo aos nossos dias Outro exerciacutecio que pode ser feito eacute avaliar o quanto esse conjunto de pensamento do seacuteculo VIII nos influencia hoje

49 BELLITTO Christopher M Op cit50 BELLITTO Christopher M Op cit51 WILLIAMS Terri Cronologia da Histoacuteria Eclesiaacutestica em graacuteficos e mapas Satildeo Paulo Vida Nova 1993

22 TeoloacutegicaRevista Brasileira de Teologia ISSN 1807-7056 nordm 8 outdez Rio de Janeiro 2020 p 9-22

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O LIVRO DE JONAS E O ARREPENDIMENTO VERDADEIRO NA BIacuteBLIA E NA ATUALIDADE

Evelise Cavalcanti52

Teresa Akil53

RESUMO O presente artigo busca analisar a relaccedilatildeo de instabilidade do homem com

o divino atraveacutes da obediecircncia e desobediecircncia desse homem em relaccedilatildeo a Deus bem como ao pecado Analisa-se o reflexo primordial de desobediecircncia a Deus na parte introdutoacuteria do Livro de Jonas contemplando o pecado em si e o relacionamento de Jonas com Deus para que seja pautada e estruturada a misericoacuterdia divina na vida desse profeta A partir dessa concepccedilatildeo busca-se refletir acerca da instabilidade do homem em relaccedilatildeo a Deus na Biacuteblia e na atualidade para traccedilar paracircmetros para que seja aprofundado o arrependimento verdadeiro do ser humano a partir da anaacutelise de Jonas e Davi

Palavras-chave Livro de Jonas Desobediecircncia ao divino Duacutevida Culpa Arrependimento verdadeiro

ABSTRACTThis scientific article seeks to analyze the relationship of manrsquos instability

with the divine through manrsquos obedience and disobedience in relation to God as well as sin In this study the primary reflection of disobedience to God is analyzed in the introductory part of the Book of Jonah contemplating sin itself and Jonahrsquos relationship with God so that divine mercy in Jonah is guided and structured From this conception we seek to reflect on the instability of man in relation to God in the Bible and nowadays to outline parameters so that the true repentance of the human being is deepened based on the analysis of Jonas and David

Keywords Book of Jonah Disobedience to the divine Doubt Guilt True repentance

52 Graduada em Direito (Unifeso)) Graduada em Teologia (Faceten) Poacutes-graduada em Exegese e Interpretaccedilatildeo da Biacuteblia (Fabat) em Histoacuteria de Israel (Kennedy) em Direito Processual Civil (Unican) 53 Doutora em Teologia (PUC-Rio) Mestre em Teologia Biacuteblica (STBSB) Graduada em Teologia (Faculdade Batista do Paranaacute) e em Comunicaccedilatildeo Social (Universidade Estaacutecio de Saacute) Docente das disciplinas da aacuterea biacuteblica (Antigo Testamento) e Exegese coordenadora do Grupo de Estudo e Pesquisa Biacuteblica nas Tradiccedilotildees de Israel

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INTRODUCcedilAtildeO A histoacuteria de Jonas tem sido contada desde a antiguidade Natildeo eacute incomum

encontrarmos em classes infantis ou nas mais altas patentes teoloacutegicas discus-sotildees calorosas sobre as peculiaridades desse personagem tatildeo conhecido

Vaacuterias abordagens tecircm sido temas infindaacuteveis de duacutevidas seria possiacutevel um homem permanecer trecircs dias na barriga de um peixe Seria uma baleia Em que eacutepoca se passou Seria Jonas um profeta desobediente e insensiacutevel Enfim vaacuterias questotildees pertinentes afloram em nosso entendimento

A mais importante e contextualizada questatildeo natildeo se trata da possibilidade material ou emocional da situaccedilatildeo A importacircncia espiritual da histoacuteria tatildeo bem narrada em um dos menores livros da Biacuteblia traz-nos a reflexatildeo sobre a limitaccedilatildeo do homem em qualquer eacutepoca de ser avaliado quanto ao seu verda-deiro arrependimento

A Biacuteblia narra diversos momentos nos mais antigos textos em que os povos inclusive o povo escolhido natildeo conseguiram se manter firmes aos mandamentos de YHWH Em Niacutenive nos parece natildeo ter sido diferente No momento em que a matildeo de Deus mostrou-se pesada o rei se humilha e recebe o perdatildeo poreacutem natildeo mais que uma geraccedilatildeo apoacutes esse mesmo povo se mostra como inimigo mortal de Israel

Haveria acontecido um verdadeiro arrependimento ou o medo e a derrota certa teriam levado os ninivitas a um momentacircneo reconhecimento de seu erro e a uma consequente submissatildeo forccedilada pela situaccedilatildeo Para as consideraccedilotildees e conclusotildees precisamos entender um pouco desse povo e de todo contexto que o envolve

1 JONAS EacutePOCA HISTOacuteRIA AUTORIAJonas eacute descrito de formas diferentes de acordo com a visatildeo de teoacutelogos

diversos Bazioli (2011 p 3) por exemplo descreve Jonas como ldquoo mais estra-nho dos profetasrdquo mas com uma mensagem que produzira efeitos ateacute mesmo naqueles que natildeo o ouviram diretamente Para o autor Jonas fora o mais bem sucedido pregador com um sermatildeo que impactava apenas por meio de palavras Na Biacuteblia conforme enunciado por Alencar (2010) o livro de Jonas faz parte da coleccedilatildeo de livros profeacuteticos situando-se entre os livros de Abdias e Miqueias

Natildeo haacute um consenso absoluto acerca da autoria do livro de Jonas uma vez que o livro natildeo declara o nome do autor Entretanto haacute a tese bastante aceita e estabelecida nos estudos de Erthal et al (2002 p 35) de que ldquoembora o livro

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natildeo declare o nome do autor seguramente foi o proacuteprio Jonas quem o escreveurdquo Para os autores Jonas tem o nome que significa ldquopombordquo sendo apresentado como filho de Amitai Nascera em Gate-Efer cidade situada proacutexima a Nazareacute

Alencar (2010 p 7) por sua vez aponta que eacute impossiacutevel precisar de quem fora a autoria do livro de Jonas visto que na eacutepoca um dos grupos responsaacuteveis pela educaccedilatildeo eram os sacerdotes cuja obrigaccedilatildeo consistia em ensinar ao povo a instruccedilatildeo como uma lei relacionada ao culto e sacrifiacutecio ldquoO autor do livro de Jonas pode ter sua origem entre os saacutebios de Israel pois conhecia bem a tradiccedilatildeo de seu povo bem como a de outros povos Ele devia manter contato com estrangeiros e os considerava com bons olhosrdquo

Para que seja possiacutevel compreender e aprofundar conhecimentos acerca de Jonas e do livro que recebeu o seu nome torna-se indispensaacutevel refletir acerca do contexto histoacuterico do mesmo Dasilva (2003) leciona que o livro de Jonas fora escrito um seacuteculo antes de Jesus proferir as palavras registradas em Mateus 1239-40 no relato de como Deus enviara um profeta judeu para levar sua mensagem de salvaccedilatildeo para uma naccedilatildeo gentiacutelica a Assiacuteria com a capital Niacutenive que possuiacutea uma populaccedilatildeo de mais de 120000 homens O autor ainda complementa que

A histoacuteria de Jonas tatildeo conhecida pela menor crianccedila da Escola Domi-nical eacute geralmente contextualizada e limitada ao milagre do profeta subsistir dentro do ventre de um grande peixe por trecircs dias e trecircs noites ou ao fator de sua desobediecircncia Este livro no entanto natildeo tem como prioridade mostrar a Jonas o peixe sua pregaccedilatildeo ou o povo de Niacutenive Ele guarda na sua linda histoacuteria revelaccedilotildees sobre a pessoa e caraacuteter de Deus O livro foi escrito para revelar um Deus que estaacute sobre noacutes que cuida que orienta que ama e que caminha conosco (DASILVA 2003 p 1)

Fabio (1991) aponta que Jonas vivera em um periacuteodo no qual Israel corria gra-ve risco de ser extinto como naccedilatildeo O autor aponta que em II Reis 1427 ldquoAinda natildeo falara o Senhor em apagar o nome do Israel de debaixo do ceacuteurdquo mas estava perto de tomar tal decisatildeo Na eacutepoca a pobreza era uma marca da sociedade e natildeo havia nem um homem escravizado nem um homem livre As classes sociais estavam praticamente unificadas com o desaparecimento completo da classe meacutedia e a diminuiccedilatildeo significativas da riqueza privada

Paradoxalmente era tremenda a expansatildeo militar e Israel atingira um niacutevel bastante estaacutevel de seguranccedila nacional Percebemos isso em II Reis 142528 atraveacutes das palavras ldquorestabeleceurdquo e ldquoconquistourdquo presentes no

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texto Estaacute dito ali que Jeroboatildeo II restabelece as fronteiras e conquista espaccedilos pela via das forccedilas armadas enquanto isso a anguacutestia social do povo era horriacutevel Natildeo havia o menor vislumbre ou esperanccedila de mu-danccedilas radicais pois natildeo se contava com ningueacutem que socorresse Israel (II Reis 1426) Em consequecircncia de tal situaccedilatildeo Jonas se transformou num profeta extremamente politizado por conseguinte ideologizado Ele tinha consciecircncia por exemplo de que nos seus dias a grande ameaccedila para Israel era a Assiacuteria cuja capital era Niacutenive (FABIO 1991 p 4-5)

Ora Jonas natildeo vivera e sua histoacuteria natildeo fora contada em um periacuteodo de prosperidade Niacutenive era considerada uma grande ameaccedila para Israel assim como a Assiacuteria em geral Erthal et al (2002) apontam que o tema do livro de Jonas concentra-se na misericoacuterdia divina Jonas eacute chamado por Deus para advertir Niacutenive sobre os fatos que seriam consumados como consequecircncia de seus pecados o principal propoacutesito de Deus nesse sentido era demonstrar a Israel e agraves naccedilotildees a magnitude da Sua misericoacuterdia e a Sua accedilatildeo atraveacutes da pregaccedilatildeo do arrependimento

Para Alencar (2010) Jonas eacute chamado por Deus para anunciar a conversatildeo na capital Niacutenive que se encontrava fora das fronteiras com Israel um reflexo do nacionalismo exclusivista do povo de Israel no poacutes-exiacutelio fundamentado na concepccedilatildeo de povo eleito e na visatildeo de Jerusaleacutem como o uacutenico lugar onde Deus manifestava-se Trata-se da comunicaccedilatildeo de Deus aleacutem da visatildeo do povo de Jerusaleacutem fazendo uso de Jonas como um instrumento de conversatildeo

Antes de aprofundar conhecimentos acerca da histoacuteria do livro de Jonas tendo-se jaacute abordado acerca da autoria desse livro cumpre aprofundar conhe-cimentos sobre a eacutepoca atribuiacuteda ao mesmo Ainda segundo Alencar (2010) a narrativa do livro de Jonas natildeo oferece nenhuma evidecircncia que possibilite datar o livro A existecircncia de um profeta que vivera sob o nome Jonas no seacuteculo XVIII natildeo representa que o livro tenha sido escrito nessa eacutepoca Para o autor existem elementos que sugerem uma dataccedilatildeo tardia ao livro de Jonas quais sejam

bull Vaacuterias palavras de origem aramaica satildeo observadas na narrativa de Jonas O aramaico tornara-se liacutengua oficial no periacuteodo persa As palavras que designam os marinheiros e o navio (Jonas 1 5) e o decreto do rei de Niacutenive (Jonas 37) advecircm da liacutengua aramaica

bull A histoacuteria de Jonas conforme observado em Jonas (3 7-8) faz alusatildeo aos costumes persas como por exemplo a participaccedilatildeo de animais nos rituais de penitecircncia

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bull Niacutenive era identificada como capital da Assiacuteria no tempo de Jonas de modo que a cidade soacute se tornara importante no templo de Senaqueribe em 704 aC O rei seria tratado como rei da Assiacuteria e natildeo rei de Niacutenive

bull Natildeo haacute influecircncia no livro de Jonas da eacutepoca heleniacutestica do tempo de Ale-xandre Magno e de seus sucessores como tambeacutem natildeo aparecem conflitos com samaritanos nem mesmo questotildees envolvendo casamentos com mulheres estrangeiras

Esses elementos segundo Alencar (2010 p 8) natildeo satildeo suficientes para que se precise a data na qual fora escrito o livro de Jonas entretanto ldquoeacute possiacutevel afirmar que o livro tenha sido escrito no final do seacuteculo IV ou no iniacutecio do seacuteculo III aC no periacuteodo persardquo

Segundo Dasilva (2003) Deus ordenou que Jonas se levantasse e fosse para a grande cidade de Niacutenive Jonas teria dito ldquonatildeordquo a Deus sabendo que a Assiacuteria era uma inimiga terriacutevel de Israel Na verdade ele temia que Niacutenive se arre-pendesse e fosse poupada por Deus da puniccedilatildeo e condenaccedilatildeo iminente Caso Niacutenive caiacutesse Israel de Jonas escaparia de suas investidas e de seus ataques assim convocado por Deus ele fugiu

Erthal et al (2002) apontam que logo que Jonas fugiu tomando um navio para Taacutersis Deus passou a agir mandando forte vento sobre o mar e criando uma grande tempestade Jonas dormia no poratildeo do navio e o capitatildeo perguntou-lhe por qual motivo dormia enquanto o medo e o pavor tomavam conta dos tripu-lantes que clamavam aos deuses pelo livramento O versiacuteculo seis do primeiro capiacutetulo do livro relata que Jonas tambeacutem clama a Deus

Os tripulantes do navio ficaram indignados quando Jonas responde que era hebreu que servia ao Deus do ceacuteu mas que estava fugindo dEle (18- 10) Por causa de sua atitude Jonas foi obrigado a enfrentar as con-sequumlecircncias e acabou por confessar sua transgressatildeo ldquoE ele lhes disse Levantai-me e lanccedilai-me ao mar e o mar se aquietaraacuterdquo (112) Jonas se sentia nesse momento culpado por ter desobedecido a Deus e por colocar a vida da tripulaccedilatildeo em perigo Apanharam Jonas e o lanccedilaram ao mar A tempestade parou milagrosamente (11415) O resultado contrastante nesta situaccedilatildeo foi a conversatildeo da tripulaccedilatildeo ldquoTemeram pois estes ho-mens ao Senhor com grande temor e ofereceram sacrifiacutecios ao Senhor e fizeram votosrdquo (116) (ERTHAL et al 2002 p 37)

O clamor de Jonas apesar de sua rebeldia fora atendido Jonas mostrou-se sincero e temente a Deus pedindo misericoacuterdia divina e livramento ou seja

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que sua vida fosse poupada Deus providenciou um grande peixe para salvar a vida de Jonas deixou-o vivo por trecircs dias dentro do ventre daquele peixe Em Jonas 210 observam-se sete milagres divinos a tempestade a sorte de Jonas a calmaria do mar o grande peixe a sobrevivecircncia de Jonas o peixe conduzido ateacute a praia e o fato de o peixe ter vomitado Jonas em terra seca por ordem divina (FABIO 1991)

Ora a noccedilatildeo principal do livro de Jonas diz respeito justamente agrave misericoacuterdia divina Deus pune na mesma medida em que salva Deus aproxima-se de seus filhos mesmo quando estes fogem desde que se arrependam verdadeiramente Essa eacute a concepccedilatildeo fundamental do livro de Jonas

2 EPISOacuteDIOS QUE DEMONSTRAM A OSCILACcedilAtildeO DA OBE-DIEcircNCIA E DESOBEDIEcircNCIA A DEUS AO LONGO DA ERA BIacute-BLICA

Jonas eacute apenas um exemplo da oscilaccedilatildeo entre a obediecircncia e desobediecircncia a Deus ao longo do percurso biacuteblico Esta parte do estudo relata outros episoacutedios biacuteblicos nos quais se verifica essa oscilaccedilatildeo

Talvez o mais conhecido episoacutedio que elucida tal questatildeo seja o de Gecircnesis quando Deus concedera tudo a Adatildeo menos que ele provasse o fruto da aacutervore do conhecimento do bem e do mal deixando claro que se ele comesse esse fruto certamente morreria (Gecircnesis 2 17) Deus ainda que misericordioso puniu Adatildeo lanccedilando-o para fora do jardim do Eacuteden para lavrar a terra da qual fora tomado (Gecircnesis 3 23)

Esse episoacutedio de Gecircnesis eacute um dos principais exemplos biacuteblicos acerca do arrependimento agrave desobediecircncia diante de Deus Em Romanos 519 tem-se que pela desobediecircncia de um soacute homem muitos foram feitos pecadores assim como pela obediecircncia de um muitos seratildeo constituiacutedos justos

A oscilaccedilatildeo entre a obediecircncia e a desobediecircncia a Deus tambeacutem eacute abordada em Romanos No versiacuteculo 30 do capiacutetulo 11 do livro tem-se que ldquoPois assim como voacutes outrora fostes desobedientes a Deus mas agora alcanccedilastes miseri-coacuterdia pela desobediecircncia delesrdquo Ora Deus natildeo premia os que obedecem apoacutes a desobediecircncia mas sim eacute misericordioso pelo arrependimento genuiacuteno e sincero

3 ATUALIDADE ALGUNS EPISOacuteDIOS EM NOSSA VIDA ATUAL QUE DEMONSTRAM A INSTABILIDADE DO SER HUMANO EM PERMANECER FIEL A DEUS

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O ser humano eacute falho e imperfeito por natureza Entretanto natildeo foi soacute nos tempos biacuteblicos que o homem demonstrou dificuldades em permanecer fiel e obediente a Deus De fato tal instabilidade tem sido observada durante toda a histoacuteria humana e pode ser amplamente observada em nossa conduta na atualidade Esta parte do estudo procura demonstrar e exemplificar esse fato

O primeiro mandamento biacuteblico propotildee que o homem ame a Deus sobre todas as coisas Entretanto observa-se que o ser humano em muito afasta-se de Deus Os constantes estiacutemulos e os desejos de acumular riqueza por parte do ser humano satildeo exemplos de elementos que afastam o homem de Deus Por vezes o homem daacute importacircncia demasiada ao dinheiro colocando-o como prioridade em sua vida acima de Deus ou ainda orando a Deus tatildeo somente pedindo riqueza material e natildeo riqueza espiritual

Ora nem mesmo o primeiro mandamento biacuteblico eacute uma tarefa faacutecil de ser alcanccedilada pelos servos de Deus Como natildeo eacute objeto de ostentaccedilatildeo Deus acaba sendo ldquodeixado de ladordquo pelas pessoas que passam a buscar sobretudo a riqueza material e a estabilidade financeira desalinhando-se dos preceitos e princiacutepios divinos

A principal fonte de instabilidade do homem em relaccedilatildeo agrave fidelidade a Deus satildeo os estiacutemulos presentes em nossa sociedade O dinheiro e a ideia de acuacutemulo da riqueza satildeo apenas alguns fatores que afastam o homem de Deus A sexualidade eacute outro exemplo claro de estiacutemulo que torna o homem infiel e desobediente aos olhos divinos

De fato o sexo tornou-se um produto de consumo na atualidade Consumir e almejaacute-lo de maneira desenfreada e irrestrita eacute caracteriacutestico da sociedade O sexo eacute objeto de desejo nos filmes muacutesicas revistas e amplamente presente no mundo virtual na internet como um todo O homem eacute ludibriado em um mundo que respira sexo natildeo mantendo a integridade sexual almejada por Deus peca constantemente contra a sexualidade cobiccedilando tambeacutem a mulher do proacuteximo

Todos os mandamentos de Deus podem ser colocados como desafios ou obstaacuteculos para que o homem permaneccedila fiel a Ele em diferentes niacuteveis O homem pecador por natureza cria obstaacuteculos em sua conduta diaacuteria caindo constantemente em tentaccedilatildeo de maneira semelhante a Adatildeo que sucumbiu agrave tentaccedilatildeo de contrariar a uacutenica imposiccedilatildeo que lhe fora feita por Deus

A cobiccedila eacute um dos grandes problemas enfrentados pelo homem para manter um relacionamento com Deus Natildeo se refere aqui apenas agrave cobiccedila desenfreada pelo dinheiro e pelo sexo mas tambeacutem pelas coisas alheias Os homens desejam

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o poder e o conseguem por meio do erro e do pecado A televisatildeo por exemplo vende a ideia daquelas vidas perfeitas dos bem sucedidos provocando que o homem cobice os bens e a proacutepria vida de terceiros desconsiderando-se a si proacuteprio e ao seu relacionamento iacutentimo com Deus

Entretanto o homem temente a Deus arrepende-se constantemente Confessa o seu pecado mas volta rapidamente a pecar sucumbindo aos mesmos erros que o fizeram pecar em outro momento novamente almeja o poder o sexo a riqueza financeira Deseja intensamente tudo aquilo que natildeo tem

Para suprir essa alarmante necessidade o homem faz uso de todos os meios e mecanismos possiacuteveis muitas vezes pouco se importando se atendecirc-los significa estar ainda mais distante do divino Roubar eacute uma praacutetica comum em nossa sociedade natildeo somente para sustentar um viacutecio em substacircncia mas tambeacutem pelo simples ideal de acumular riquezas uma praacutetica tatildeo repreendida por Deus

Assim o homem se vecirc diante de todo um contexto desfavoraacutevel para se manter fiel a Deus De fato a sociedade jaacute haacute muito tempo tem se afastado dos princiacutepios e preceitos divinos os homens natildeo demonstram mais arrependimento genuiacuteno ao cometerem pecados e insistindo em seus erros independentemente das liccedilotildees divinas jaacute aplicadas a eles

Pode-se equiparar o contexto atual ao que observamos na histoacuteria de Jonas cuja abordagem jaacute foi feita anteriormente neste artigo Jonas tambeacutem sabendo de suas funccedilotildees e da vontade de Deus disparou em fuga O homem atual tambeacutem conhece suas funccedilotildees e a vontade de Deus e mesmo assim ignora-as diante de seu egoiacutesmo sacrificando sua proacutepria alma por sentimentos e prazeres pueris

Somente quando sente falta da presenccedila de Deus o homem cogita o arre-pendimento Jonas aprendera sua liccedilatildeo ao permanecer trecircs dias no ventre do peixe clamando pela misericoacuterdia divina O homem atual entretanto parece natildeo aprender suas liccedilotildees Ele insiste no pecado e sucumbe a ele e aos estiacutemulos peca-minosos amplamente presentes em nossa sociedade Haacute pontos de aproximaccedilatildeo e de afastamento entre os episoacutedios relatados neste estudo e o contexto atual de vivecircncia do homem Entretanto permanece a dificuldade de se permanecer estavelmente fiel a Deus

4 ABORDAGEM DO VERDADEIRO ARREPENDIMENTOConforme apresentado o homem arrepende-se buscando a misericoacuterdia e

o perdatildeo de Deus O arrependimento segundo Delumeau (2003) eacute deixar o pecado e para que este seja abandonado o arrependimento deve ser verdadeiro

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buscando o perdatildeo divino e comprometendo-se a natildeo cometer o mesmo pecado

No item anterior abordaram-se aspectos da vida atual que sugerem a falta de arrependimento verdadeiro da parte do homem Jonas por exemplo arrependeu--se verdadeiramente ao reconhecer a soberania de Deus Arrependeu-se pri-meiramente ao observar a tempestade arrependeu-se quando estava em alto mar e durante os trecircs dias nos quais esteve dentro do ventre do peixe Jonas de fato arrependeu-se verdadeiramente de sua desobediecircncia a Deus e buscou corrigir suas falhas

Adatildeo no mesmo sentido mostrou-se desobediente ao divino e arrependeu-se gravemente colocando todos os homens em pecado Adatildeo buscava que Deus tivesse pena e piedade de si e de Eva concedendo-lhes meios para sustentar a vida Pode-se questionar o motivo que conduziu Adatildeo ao arrependimento mas natildeo se fora ou natildeo verdadeiro

O homem arrepende-se de suas falhas para com Deus fruto da instabilidade de seu relacionamento de obediecircncia para com o divino Entretanto o homem atual costuma repetir seus pecados arrepende-se com frequecircncia mas por medo de puniccedilotildees raramente se arrepende verdadeiramente O homem natildeo atribui culpa a si mesmo por seus pecados e quando o faz eacute de maneira displicente insistindo nos mesmos erros que antes cometera

Todavia isso diz respeito justamente agrave natureza pecaminosa do homem Mes-mo na Biacuteblia satildeo raros os casos de arrependimento verdadeiros (DELUMEAU 2003) Castro (2013) aponta que o arrependimento verdadeiro ou genuiacuteno con-siste na ideia por traacutes da desobediecircncia do homem em relaccedilatildeo a Deus seja por meio de uma ordem direta ou como eacute mais comum na atualidade por meio da desobediecircncia aos preceitos biacuteblicos

Um exemplo de arrependimento verdadeiro inquestionaacutevel na Biacuteblia encontra- se na histoacuteria de Davi

A oraccedilatildeo de Davi depois do maior erro de sua vida ilustra a natureza da verdadeira tristeza pelo pecado Seu arrependimento foi sincero e profundo Ele natildeo fez nenhum empenho por atenuar a culpa Natildeo foi o desejo de escapar ao juiacutezo que lhe inspirou a oraccedilatildeo Davi reconheceu a enormidade de sua transgressatildeo viu a contaminaccedilatildeo de seu ser e sentiu nojo do pecado Natildeo suplicava unicamente o perdatildeo mas tambeacutem um coraccedilatildeo puro Desejava a alegria da santidade e estar mais uma vez em harmonia com Deus (ENSINOS DE JESUS 2012 p 21)

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Ora levando-se em consideraccedilatildeo a histoacuteria de Davi compreende-se que o arrependimento verdadeiro eacute fruto de um genuiacuteno sentimento de tristeza do ser humano ao desapontar a Deus representado pela sinceridade e pela verdade aceitando o pecado que cometeu e natildeo negando-o Trata-se do desprezo pelo pecado propriamente dito

Souza (2009) aponta que o homem peca quando ele age contra aquilo que eacute imposto por Deus Com o pecado o homem e a mulher tornaram-se seres decadentes sendo o arrependimento a noccedilatildeo atraveacutes da qual eles podem ser sinceros com Deus assumindo sua culpa no pecado e demonstrando tristeza diante de sua desobediecircncia

O arrependimento verdadeiro aleacutem de tais caracteriacutesticas natildeo adveacutem de accedilatildeo humana mas sim de accedilatildeo divina uma vez que

Nenhum ser humano tem o poder de perdoar pecados Somente Deus por meio de Cristo aquele que nunca pecou pode nos conceder perdatildeo e paz de espiacuterito O ensino de que algum ser humano tem poder de perdoar pecados natildeo estaacute em harmonia com a Biacuteblia Nenhuma accedilatildeo humana eacute ca-paz de conseguir o perdatildeo Somente Deus em Jesus Cristo pode perdoar nossos pecados Por isso devemos nos aproximar Dele com o coraccedilatildeo verdadeiramente arrependido (ENSINOS DE JESUS 2012 p 21)

Assim o arrependimento verdadeiro eacute obtido tatildeo somente na comunhatildeo do pecador com Deus Ele deve manifestar com sinceridade o seu arrependimento pelo erro cometido independentemente das dimensotildees de seu pecado Em uma era na qual pecar eacute socialmente aceitaacutevel arrepender-se verdadeiramente eacute um dos difiacuteceis desafios do pecador

5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAISO presente estudo concentrou-se em uma abordagem clara e objetiva acerca do

livro de Jonas sobretudo no aspecto referente agrave conduta dele em relaccedilatildeo a Deus demonstrando sua desobediecircncia e a concepccedilatildeo de arrependimento verdadeiro a fim de que Jonas pudesse persistir no caminho traccedilado por Deus executando a funccedilatildeo divina que lhe fora incumbida

No mesmo sentido observou-se que o pecado sempre marcou o homem desde os tempos de Adatildeo ateacute a atualidade na qual os estiacutemulos pecaminosos estatildeo ain-da mais presentes Existe noccedilatildeo de arrependimento mas natildeo de arrependimento verdadeiro conforme ocorreu com Jonas e Davi Esse tipo de arrependimento se manifesta por uma verdadeira tristeza pelo cometimento do pecado sincera

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e profundamente sem o desejo de escapar da puniccedilatildeo mas curvando-se diante da superioridade de Deus

Este estudo natildeo buscou esgotar o assunto ou tornaacute-lo acabado mas tatildeo so-mente abordar concepccedilotildees acerca do verdadeiro arrependimento e das oscilaccedilotildees entre a obediecircncia e a desobediecircncia a Deus observadas tanto na era biacuteblica quanto na atualidade

34 TeoloacutegicaRevista Brasileira de Teologia ISSN 1807-7056 nordm 8 outdez Rio de Janeiro 2020 p 23 - 34

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TRANSFORMACcedilAtildeO RELIGIOSA BRASILEIRA E CARACTERIacuteSTICAS DO NOVO PADRAtildeO RELIGIOSO

Joatildeo Boechat54

RESUMOO Brasil experimentou intensa transformaccedilatildeo religiosa nos uacuteltimos 40 anos

Essa mudanccedila caracterizou-se por trecircs pontos centrais a saber a) Queda da membresia Catoacutelica b) Crescimento dos indiviacuteduos que se consideram sem--religiatildeo e c) Crescimento Evangeacutelico A partir daiacute a sociedade brasileira apresenta uma nova configuraccedilatildeo religiosa Dessa forma surge a necessidade de natildeo apenas compreendermos essa nova configuraccedilatildeo como tambeacutem perce-bermos as relaccedilotildees entre esses grupos religiosos atraveacutes do tracircnsito religioso isto eacute como se daacute a formaccedilatildeo de cada grupo religioso e quanto essa formaccedilatildeo tem relaccedilatildeo com o ganho ou perda de membros antes ligados a outros grupos religiosos Este artigo apresenta a nova configuraccedilatildeo religiosa brasileira aleacutem de demonstrar como essa configuraccedilatildeo tem sido alterada nas uacuteltimas deacutecadas e por fim analisa como se daacute o tracircnsito religioso na sociedade brasileira

Palavras-Chave Transformaccedilatildeo Religiosa Configuraccedilatildeo Religiosa Cresci-mento Evangeacutelico

ABSTRACTIn the last 40 years Brazil has experienced intense religious transformation

Such change is characterized by three main points a) Decrease of Catholic mem-bership b) Increase of Non-Religious groups and c) Increase of the Evangelicals Thus Brazilian society presents a new religious setting Because of that there is the need of not only comprehend this new configuration but also understand the relationship among the religious groups using the analysis of the religious traffic in Brazil ie how each group is formed and how this formation is related to the adding or losing of individuals who were once members of other religious groups In this way this paper presents the new religious configuration in Brazil and discusses how said configuration has been altered in the last decades At last it analyzes how the religious traffic takes place in Brazilian society

54 Joatildeo Boechat eacute professor da Faculdade Batista do Rio de Janeiro aleacutem de pesquisador do Deutscher Akademischer Austauschdienst (DAAD) Eacute doutorando em Sociologia Poliacutetica pela Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF) com ecircnfase em Teologia pela Humboldt Universitaumlt zu Berlin na Alemanha Possui mestrado em Sociologia Poliacutetica pela UENF e especializaccedilatildeo em Ciecircncia da Religiatildeo aleacutem de graduaccedilatildeo em Teologia e Relaccedilotildees Internacionais

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Keywords Religious transformation Religious Configuration Evangelical Growth

INTRODUCcedilAtildeOA realidade do campo religioso brasileiro indica uma forte transformaccedilatildeo

na sociedade em que vivemos Esta percepccedilatildeo ocorre pois ainda que a religiatildeo seja uma espera proacutepria ela influencia e eacute influenciada pelas demais esferas sociais como a economia poliacutetica e ciecircncia Portanto eacute sine qua non para a profunda compreensatildeo teoloacutegica a forma pela qual a religiatildeo se relaciona com a realidade vigente

A palavra que define a realidade religiosa brasileira nas uacuteltimas deacutecadas eacute ldquotransformaccedilatildeordquo Especialmente a partir da deacutecada de 80 o campo religioso no Brasil observa uma intensa mudanccedila encabeccedilada pelo grande crescimento evangeacutelico que atua como principal combustiacutevel de tal transformaccedilatildeo que tambeacutem eacute caracterizada pelo crescimento dos sem-religiatildeo e pela queda catoacutelica

Nesse contexto este artigo procura analisar a transformaccedilatildeo religiosa na sociedade brasileira observando os dados dos censos das uacuteltimas deacutecadas bem como buscando compreender o tracircnsito religioso que ocorre por meio da anaacutelise de como se daacute a formaccedilatildeo das membresias religiosas Por fim apontam-se algumas razotildees que auxiliam na compreensatildeo da mudanccedila religiosa brasileira

Assim pretende-se colaborar para a compreensatildeo da realidade brasileira e de como a transformaccedilatildeo estaacute relacionada com questotildees que atingem a sociedade como um todo Tambeacutem pretende-se explicitar que a religiatildeo eacute uma esfera autocirc-noma que influencia e eacute influenciada pelas demais esferas sociais adaptando-se agraves demandas e necessidades de seus fieacuteis e provendo respostas que busquem atender a tais necessidades

1 PADRAtildeO RELIGIOSO BRASILEIROAs uacuteltimas deacutecadas demonstraram um ldquopadratildeo religiosordquo no Brasil Em

2020 o Instituto Datafolha lanccedilou os seguintes dados da configuraccedilatildeo religiosa brasileira

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Graacutefico 1 Configuraccedilatildeo Religiosa Brasileira

Fonte Datafolha (2020)

Atualmente 50 dos brasileiros se afirmam Catoacutelicos 31 Evangeacutelicos55 10 Sem-Religiatildeo e 9 adeptos de outras religiotildees

Os dados do Graacutefico 1 atuam em conformidade com os dados do Censo de 2010 realizado pelo IBGE56 os quais apontam que a configuraccedilatildeo religiosa no Brasil nas uacuteltimas deacutecadas possui trecircs caracteriacutesticas fundamentais a) intensa queda dos Catoacutelicos b) crescimento significativo dos Evangeacutelicos c) crescimento relevante dos sem-religiatildeo Considerando os dados levantados pelo IBGE eacute possiacutevel identificar tal configuraccedilatildeo

Graacutefico 2 Religiotildees no Brasil (2010)

Fonte Censo do IBGE 2010

55 Caso dividamos os Evangeacutelicos entre os principais subgrupos a formaccedilatildeo do campo brasileiro corres-ponde a 21 de Pentecostais 44 de Evangeacutelicos de Missatildeo e 45 de Evangeacutelicos Natildeo-Determinados56 2010 corresponde ao ano do uacuteltimo censo publicado pelo IBGE

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De acordo com os dados do uacuteltimo Censo do IBGE publicado em 2010 entre os brasileiros 646 se denominam Catoacutelicos 57 222 Evangeacutelicos 58 81 Sem- Religiatildeo 59 27 possuem outras religiotildees 60 21 satildeo adeptos do Espiritismo e 033 de religiotildees afro-brasileiras 61

De fato as religiotildees natildeo satildeo compostas por subgrupos homogecircneos com completa unidade doutrinaacuteria eclesial e praacutetica Tomemos como primeiro exemplo os Evangeacutelicos Para a real compreensatildeo desse grupo religioso no Brasil eacute relevante levar em conta suas divisotildees a fim de melhor entender sua configuraccedilatildeo uma vez que ela se expressa de forma mais variada do que as dos Catoacutelicos e dos Sem-religiatildeo Afinal entre os Catoacutelicos 994 satildeo Catoacutelicos Apostoacutelicos Romanos jaacute entre os Sem-Religiatildeo 952 natildeo possuem religiatildeo mas creem no transcendente ou seja apenas 48 satildeo ateus ou agnoacutesticos

Diferentemente dos Catoacutelicos e Sem-Religiatildeo cuja anaacutelise dividimos em dois subgrupos os Evangeacutelicos apresentam uma divisatildeo relevante em trecircs subgrupos os Pentecostais que correspondem a 60 dos Evangeacutelicos e 133 da populaccedilatildeo brasileira 62 os Evangeacutelicos Natildeo-Determinados correspondem a 212 dos Evangeacutelicos e 48 dos brasileiros 63 Por fim os Evangeacutelicos de Missatildeo ou Histoacutericos correspondem a 182 dos Evangeacutelicos e 44 da populaccedilatildeo brasileira 64

Com base no Graacutefico 2 dividimos a anaacutelise da evoluccedilatildeo do campo religioso brasileiro em duas fases de 1940 a 1980 e de 1980 a 2010 Essa divisatildeo ressalta

57 Entre os Catoacutelicos 994 satildeo Catoacutelicos Apostoacutelicos Romanos 45 Catoacutelicos Apostoacutelicos Brasileiros e 01 Catoacutelicos Ortodoxos58 Entre os Evangeacutelicos 60 satildeo Pentecostais 218 Natildeo-Determinados e 182 Evangeacutelicos de Missatildeo59 Entre os Sem-Religiatildeo 952 satildeo sem-religiatildeo 4 Ateus e 08 Agnoacutesticos60 Entre as outras religiotildees 333 satildeo adeptos de outras religiosidades cristatildes 317 satildeo Testemunhas de Jeovaacute 146 possuem muacuteltiplas religiosidades 55 satildeo Budistas 52 satildeo membros da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Uacuteltimos Dias 36 adeptos de outras religiosidade orientais 24 satildeo Judeus 17 adeptos do Esoterismo e 14 membros de religiotildees Indiacutegenas Haacute ainda grupos de outras religiotildees como o Hinduiacutesmo que correspondem a menos de 1 deste grupo61 Entre as Religiotildees Afro-brasileiras 692 pertencem agrave Umbanda 284 ao Candombleacute e 24 a outras religiotildees de matriz afro-brasileiras62 Os maiores grupos e igrejas pentecostais satildeo Assembleia de Deus (485 dos Pentecostais) Igrejas Pentecostais Independentes (208) Congregacional Cristatilde do Brasil (9) Igreja Universal do Reino de Deus (74) Igreja do Evangelho Quadrangular (71) Deus eacute Amor (33) e Maranata (14)63 Os Natildeo-Determinados satildeo assim denominados pois satildeo formados por igrejas independentes de teologia protestante sem viacutenculo histoacuterico com associaccedilotildees protestantes norte-americanas ou europeias como as Igrejas de Missatildeo64 Os Evangeacutelicos de Missatildeo satildeo assim chamados pois possuem teologia protestante e sua formaccedilatildeo estaacute vinculada agraves missotildees protestantes de igrejas histoacutericas norte-americanas ou europeias No Brasil as maiores igrejas ou associaccedilotildees satildeo Batistas (485 dos Evangeacutelicos de Missatildeo) Adventistas (203) Luterana (13) Presbiteriana (12) Metodista (44) Congregacional (14) e outras (04)

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como nas uacuteltimas trecircs deacutecadas houve relevante mudanccedila e uma nova padro-nizaccedilatildeo religiosa no paiacutes

Tabela 1 ndash Religiotildees no Brasil de 1940 a 2010 em porcentagem (MARIANO 2013)

Religiatildeo 1940 1950 1960 1970 1980 1990 2000 2010Catoacutelicos 952 937 931 911 892 833 738 646Evangeacutelicos 26 34 40 58 66 90 154 222Outras Religiotildees 19 24 24 23 25 29 35 50Sem Religiatildeo 02 05 05 08 16 48 73 81

Natildeo declarou 01 00 00 00 01 00 00 01

TOTAL 100 100 100 100 100 100 100 100Fonte Mariano 2013

De 1940 a 1980 o nuacutemero de Catoacutelicos no Brasil caiu de 952 para 892 passando de 39256972 para 108066311 adeptos65 Apesar do crescimento geral os Catoacutelicos declinaram em 6 nessas quatro deacutecadas Jaacute de 1980 a 2010 os Catoacutelicos caiacuteram de 892 para 646 da populaccedilatildeo do paiacutes totalizando 123228246 adeptos o que indica uma queda de 246 da membresia

Em 2020 o Instituto Datafolha66 publicou uma pesquisa cujos dados revelam que no Brasil os Catoacutelicos correspondem a 50 dos brasileiros o que confirma o ldquopadratildeo religiosordquo de queda da membresia catoacutelica67 Caso o Censo do IBGE de 2020 confirme os dados levantados pelo Datafolha haveria uma queda de 146 na membresia catoacutelica significando a maior perda de adeptos jaacute registrada em uma deacutecada

Por outro lado os Evangeacutelicos se moveram na direccedilatildeo contraacuteria dos Catoacutelicos De 1940 a 1980 aquele grupo cresceu de 26 para 66 da populaccedilatildeo brasilei-ra o que significa que em 40 anos os Evangeacutelicos saltaram de 1072144 para 7995938 adeptos Todavia se nessas quatro deacutecadas os Evangeacutelicos cresceram 4 nas deacutecadas seguintes houve um exponencial aumento dos adeptos entre 1980 e 2010 Nestas os Evangeacutelicos saltaram de 66 para 222 totalizando 42347787 adeptos Isso significa que nas uacuteltimas deacutecadas os Evangeacutelicos

65 De acordo com os dados do Censo do IBGE a populaccedilatildeo brasileira em 1940 era de 41236315 pessoas em 1980 121150573 e em 2010 190755799 pessoas66 Pesquisa Datafolha com 2948 entrevistas realizadas em 176 municiacutepios no paiacutes em 5 e 6 de dezembro de 2019 Margem de erro de 2 pontos percentuais para mais ou para menos e niacutevel de confianccedila de 9567 De acordo com a Pesquisa do Instituto Datafolha em Dezembro de 2019 a Religiatildeo do Brasileiro eacute dividida em 50 Catoacutelicos 31 Evangeacutelicos 10 Sem-Religiatildeo 3 Espiacuteritas 2 Afro-Brasileiros 2 Outras Religiotildees 1 Ateus 03 Judeus

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cresceram cinco vezes mais do que a populaccedilatildeo brasileira Enquanto de 1980 a 2010 a populaccedilatildeo brasileira cresceu 123 os Evangeacutelicos cresceram 62

O crescimento evangeacutelico eacute evidenciado pela pesquisa do Datafolha de acordo com a qual estes atingiram 31 da populaccedilatildeo em 2020 Conforme esses dados o periacuteodo de 2010 a 2020 aponta duas realidades opostas em relaccedilatildeo aos Catoacutelicos e Evangeacutelicos Por um lado os Catoacutelicos sofreram a maior perda de membresia jaacute registrada em uma deacutecada Por outro lado os Evangeacutelicos experimentaram de 2010 a 2020 o maior crescimento jaacute registrado em seu nuacutemero de adeptos

Portanto em 2010 os cristatildeos (Catoacutelicos e Evangeacutelicos)68 correspondiam a 868 dos brasileiros ou seja quase 9 em cada 10 brasileiros ainda se con-siderava cristatildeo De acordo com o Instituto Datafolha em 2020 esse nuacutemero corresponde a 81 dos brasileiros Issto indica que apesar do grande cresci-mento evangeacutelico a queda do nuacutemero de catoacutelicos foi expressiva a ponto haver reduccedilatildeo do nuacutemero de cristatildeos no paiacutes em mais de 5 pontos percentuais Ainda assim apesar do crescimento dos Sem-Religiatildeo (de 8 para 10) os ateus correspondem a apenas 1 da populaccedilatildeo brasileira

Assim os nuacutemeros do Censo permitem a formulaccedilatildeo do seguinte graacutefico

Graacutefico 3 Cristatildeos na populaccedilatildeo brasileira (1940-2020)

Fonte Censo do IBGE (1940-2010) Datafolha (2020)

Em conformidade com o crescimento evangeacutelico os Sem-Religiatildeo tambeacutem obtiveram consideraacutevel aumento Entre 1940 e 1980 eles passaram de 02 a 16 indo de 82473 para 1938409 indiviacuteduos que natildeo possuem religiatildeo Em 68 De fato os Espiacuteritas tambeacutem satildeo cristatildeos Mas como estamos considerando as principais mudanccedilas religiosas no paiacutes consideremos apenas Catoacutelicos e Evangeacutelicos como Cristatildeos Contudo apenas para a anaacutelise e natildeo como afirmaccedilatildeo teoloacutegica Considerando os Espiacuteritas os Cristatildeos atingiriam 2 da populaccedilatildeo em 2010 e 3 em 2020

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2010 esse grupo alcanccedilou 81 dos indiviacuteduos no Brasil totalizando 15451220 pessoas

Por outro lado considerando a pesquisa do Datafolha os Sem-Religiatildeo atin-giriam 10 havendo crescimento de cerca de 2 em nuacutemero Esse crescimento seria maior do aquele que ocorreu entre 2000 e 2010 (08) mas menor do que o ocorrido entre 1990 e 2000 (25)

Graacutefico 4 Cristatildeos x Sem-Religiatildeo no Brasil (1940-2020)

Fonte Censo do IBGE (1940-2010) Datafolha (2020)

Portanto se no fim do seacuteculo XIX apoacutes a Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica (1889) os Catoacutelicos concentravam praticamente 100 da populaccedilatildeo brasileira o seacuteculo XX eacute marcado pela constante queda dessa membresia ainda que ela fosse ampla maioria em 1970 (911) Todavia a partir da deacutecada de 1980 essa queda acelerou-se fazendo com que os Catoacutelicos perdessem quase 1 de sua membresia ao ano (-097)

Desse modo estabelecendo-se uma projeccedilatildeo linear em que os Catoacutelicos manteriam sua perda de 097 ao ano os Evangeacutelicos o seu crescimento de 069 aa e os Sem-Religiatildeo ganhando 017 o ldquopadratildeo religioso brasileirordquo apresentaria uma mudanccedila em relaccedilatildeo agrave hegemonia religiosa por volta de 2036 assim os Evangeacutelicos com 403 ultrapassaratildeo os Catoacutelicos com 394 Em 2040 os Evangeacutelicos teriam 43 e os Catoacutelicos 355 Nesse ano os cristatildeos corresponderiam a 785 da populaccedilatildeo brasileira enquanto os Sem-Religiatildeo formariam 132 da populaccedilatildeo brasileira

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Graacutefico 5 Religiotildees no Brasil (1940-2040)

De fato natildeo eacute possiacutevel afirmar que tal transformaccedilatildeo continuaraacute nesse ritmo Todavia ainda que haja desaceleraccedilatildeo na perda de Catoacutelicos ou no crescimento dos Evangeacutelicos o padratildeo religioso brasileiro eacute ratificado pela intensa mudanccedila ocorrida no cenaacuterio brasileiro nos uacuteltimos 150 anos

Assim os nuacutemeros das pesquisas mencionadas confirmam o ldquopadratildeo religio-sordquo brasileiro e demonstram que este tem se desenvolvido de forma estaacutevel nos uacuteltimos 40 anos Eacute relevante perceber contudo que o paiacutes natildeo passou nestas uacuteltimas deacutecadas por um processo de ldquodesligamento do transcendenterdquo ou seja a perda catoacutelica e o acreacutescimo dos sem-religiatildeo natildeo indicam necessariamente uma diminuiccedilatildeo da experiecircncia com o transcendente ou a perda da busca pelo sagrado A anaacutelise desse padratildeo ajuda a entender a transformaccedilatildeo no campo religioso ocorrida nas uacuteltimas deacutecadas

2 TRAcircNSITO RELIGIOSO BRASILEIRO De forma geral o padratildeo religioso brasileiro indica uma transformaccedilatildeo do

campo religioso marcado pelas transformaccedilotildees na direccedilatildeo da relaccedilatildeo com o divino e natildeo na negaccedilatildeo do divino Isso significa que o brasileiro natildeo deixou de crer no transcendente mas apenas alterou a forma como crecirc ou o caminho para acessar o divino De acordo com o IBGE em 2010 apenas 03 da populaccedilatildeo se denominava ldquoateurdquo ou seja 78 dos brasileiros se consideram sem-religiatildeo mas mantecircm a crenccedila no transcendente

Portanto a configuraccedilatildeo religiosa brasileira se constroacutei a partir das transfor-maccedilotildees inter-religiosas como demonstra a Tabela 2

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Tabela 2 ndash Religiatildeo atual e tracircnsito religioso (BARTZ 2012)

Religiatildeo atual Natildeo mudou Mudou populaccedilatildeoCatoacutelica 959 41 646Evangeacutelico de missatildeo 228 772 41Evangeacutelico pentecostal 144 856 133Outras religiotildees 107 893 50Sem-religiatildeo 197 803 81Meacutedia Total 683 235 100

Fonte Censo Demograacutefico do IBGE 2010

Agrave primeira vista a meacutedia total indica que o Brasil eacute um paiacutes no qual a maioria da populaccedilatildeo permanece na religiatildeo em que nasceu (683) enquanto uma minoria muda de religiatildeo durante a vida (235) Contudo analisando a tabela perceberemos que apenas os Catoacutelicos satildeo maioria entre os que natildeo mudaram de religiatildeo De fato em cada 100 Catoacutelicos 96 nasceram em ambientes Catoacutelicos e apenas 4 se converteram ao longo da vida Isso significa que o Catolicismo eacute no Brasil uma religiatildeo de nascidos e natildeo de convertidos

Se considerarmos os demais grupos religiosos como tambeacutem os sem-religiatildeo veremos que ateacute 2010 828 dos brasileiros jaacute mudaram de crenccedila religiosa durante a vida Com exceccedilatildeo do Catolicismo todos os demais grupos de crenccedila no Brasil satildeo formados majoritariamente por convertidos ou seja seus adeptos se tornaram membros ao longo da vida e natildeo nasceram em ambientes praticantes dessa religiatildeo Pelo menos trecircs quartos da populaccedilatildeo evangeacutelica ou dos que hoje se consideram ldquosem-religiatildeordquo jaacute estiveram em alguma outra religiatildeo antes de possuiacuterem o atual entendimento sobre o transcendente Por exemplo dos 139 da populaccedilatildeo de pentecostais 856 se converteram a essa vertente durante a vida e somente 144 satildeo filhos de pais pentecostais tratando-se portanto de uma religiatildeo majoritariamente de convertidos e natildeo de originaacuterios

Aleacutem disso quando observamos o tracircnsito religioso brasileiro comparando-se a religiatildeo atual e a religiatildeo anterior dos brasileiros percebemos como o fluxo religioso ocorre entre os ldquoconvertidosrdquo

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Tabela 3 ndash Religiatildeo atual x religiatildeo anterior (BARTZ 2012)

Religiatildeo AnteriorReligiatildeo Atual

CatoacutelicaEvangeacutelico Histoacuterico

Evangeacutelico Pentecostal

Outras Religiotildees

Sem-Religiatildeo

Catoacutelica 00 138 589 163 421Evangeacutelico de Missatildeo 269 213 507 11 57Evangeacutelico Pentecostal 187 402 408 04 239Outras Religiotildees 474 99 155 110 64Sem-religiatildeo 179 12 742 55 00Ateus 231 118 332 158 31

Fonte Bartz 2012

A Tabela 3 foi elaborada levando-se em conta os indiviacuteduos que jaacute mudaram de crenccedila religiosa ao longo da vida Assim ela natildeo demonstra a religiatildeo de origem desses indiviacuteduos mas aquelas pelas quais eles jaacute passaram em compa-raccedilatildeo com a atual religiatildeo Portanto a somatoacuteria de algumas supera os 100 uma vez que um indiviacuteduo que hoje eacute Evangeacutelico por exemplo pode ter passado por uma ou mais religiotildees

Com relaccedilatildeo aos Catoacutelicos eacute vaacutelido lembrar que apenas 41 dos adeptos satildeo convertidos Dentre estes 474 satildeo oriundos de famiacutelias que passaram por religiotildees de matriz africana ou orientais 269 foram Evangeacutelicos de Missatildeo e 187 Pentecostais Ademais 231 foram Ateus e 179 Sem-Religiatildeo

Os Evangeacutelicos satildeo o grupo que mais cresce no Brasil eacute uma religiatildeo de ldquocon-vertidosrdquo em que8 em cada 10 indiviacuteduos (82) aproximadamente tornaram-se adeptos ao longo de sua vida e natildeo nasceram em ambientes evangeacutelicos Entre os adeptos que se denominam ldquode Missatildeordquo 402 jaacute pertenceram ao Pentecosta-lismo Isso indica que entre os Evangeacutelicos de Missatildeo o principal fluxo ocorre dentro da esfera Evangeacutelica Ademais 213 dos Histoacutericos jaacute fizeram parte de outra instituiccedilatildeo evangeacutelica histoacuterica como por exemplo um Batista que jaacute foi membro de uma organizaccedilatildeo Metodista ou Presbiteriana Em continuidade 138 dos Evangeacutelicos de Missatildeo jaacute foram Catoacutelicos e 118 Ateus

Por outro lado se entre os Evangeacutelicos Histoacutericos ou de Missatildeo o principal fluxo eacute intrarreligioso entre os Pentecostais 742 foram Sem-Religiatildeo 589 jaacute foram Catoacutelicos e 332 Ateus De fato entre os Pentecostais a maior parte dos convertidos jaacute passou por outras religiotildees Ademais o fluxo intrarreligoso tambeacutem eacute consideraacutevel haja vista que 507 dos Pentecostais jaacute foram ldquoHistoacute-

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ricosrdquo e 408 jaacute passaram por outras organizaccedilotildees Pentecostais Por exemplo um membro da Assembleia de Deus Ministeacuterio Madureira jaacute foi membro da Assembleia de Deus Vitoacuteria em Cristo ou ainda da Igreja Universal do Reino de Deus

O grupo dos ldquosem-religiatildeordquo (78) representa o segundo maior contingente de pessoas que migraram de religiatildeo As igrejas evangeacutelicas pentecostais e os catoacutelicos satildeo os principais fornecedores para este grupo Observamos ainda que 421 dos ldquosem-religiatildeordquo declaram-se ter sido catoacutelicos 239 pentecostais 57 histoacutericos 64 declaram ter pertencido a outras religiotildees Haacute duas rotas portanto de migraccedilatildeo para os ldquosem-religiatildeordquo a primeira vai do catolicismo ou dos evangeacutelicos histoacutericos e a segunda do catolicismo ao pentecostalismo e entatildeo ao grupo ldquosem-religiatildeordquo

Assim o tracircnsito religioso brasileiro nos apresenta algumas caracteriacutesticas a) os Catoacutelicos satildeo os doadores universais b) os Evangeacutelicos satildeo receptores universais ainda que haja intenso fluxo intrarreligioso c) os Sem-Religiatildeo satildeo majoritariamente indiviacuteduos que mantecircm determinada espiritualidade e natildeo se tornam ateus

A fim de aprofundarmos o estudo da Religiatildeo no cenaacuterio brasileiro analisa-remos essas caracteriacutesticas observando possiacuteveis explicaccedilotildees para a formaccedilatildeo desse padratildeo

3 FORMACcedilAtildeO DO PADRAtildeO RELIGIOSO BRASILEIRODiversos trabalhos tecircm sido apresentados a fim de explicar as razotildees para

esse padratildeo apresentado a Teoria da Secularizaccedilatildeo se apresenta como uma valiosa ferramenta para a compreensatildeo dessa nova realidade (NERI 2011 ANDRADE 2012 ALTMANN 2012 GRACINO 2012 MARIANO 2013 CAMURCcedilA 2017)

Considerando que a esfera religiosa no mundo moderno eacute uma esfera como as demais que disputa espaccedilo e relevacircncia sociais pode-se destacar no caso brasileiro trecircs efeitos do processo de secularizaccedilatildeo sobre ela 1) a desmonopo-lizaccedilatildeo religiosa 2) a liberdade religiosa e 3) o pluralismo religioso

Apesar das mudanccedilas ocorridas no campo religioso brasileiro nas uacuteltimas deacutecadas a realidade religiosa brasileira ainda demonstra ser a del um paiacutes ma-joritariamente catoacutelico Apenas no fim do seacuteculo XIX com a proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica o Brasil se tornou oficialmente laico Todavia ainda assim a Igreja Catoacutelica manteve seus privileacutegios em relaccedilatildeo ao Estado secular Entretanto se

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durante os periacuteodos de colonizaccedilatildeo e impeacuterio para ser brasileiro era necessaacuterio ser catoacutelico a separaccedilatildeo entre Igreja e Estado resultou no fim da monopolizaccedilatildeo religiosa

A diferenciaccedilatildeo entre a esfera religiosa e as esferas poliacutetica e juriacutedica se aprofundou criando uma condiccedilatildeo secular que viria a ter efeitos estruturais tambeacutem sobre o modo de organizaccedilatildeo e atuaccedilatildeo das diferentes religiotildees

De acordo com os dados do IBGE em 1940 952 da populaccedilatildeo brasileira era catoacutelica Em 1980 o nuacutemero havia decrescido para 89 da populaccedilatildeo Esse nuacutemero passou para 73 em 2000 decrescendo para 646 da populaccedilatildeo de acordo com o Censo de 2010

O fim da monopolizaccedilatildeo religiosa ocorrida com o iniacutecio da Repuacuteblica no fim do seacuteculo XIX ocasionou tambeacutem maior liberdade religiosa Os dados do IBGE (2000) apontam que cerca de 40 dos catoacutelicos brasileiros eram natildeo praticantes ou seja natildeo participavam ativamente das atividades eclesiais A natildeo-participaccedilatildeo natildeo indica todavia uma falta de atividade religiosa Como ser brasileiro estaacute ligado a ser catoacutelico faz parte da cultura brasileira denominar--se catoacutelico enquanto participa de reuniotildees espiacuteritas ou frequenta cultos no Candombleacute e Umbanda O resultado dessa maior liberdade religiosa bem como a maior liberdade para se considerar como pertencente a outras religiotildees ou mesmo sem-religiatildeo pode ser observada nos Censos das uacuteltimas deacutecadas Enquanto o Catolicismo decresceu de 952 em 1940 para 646 em 2010 as ldquooutras religiotildeesrdquo cresceram de 19 para 5 da populaccedilatildeo os ldquosem-religiatildeordquo saltaram de 02 para 81 de 1940 a 2010 e os evangeacutelicos cresceram de 26 para 222 da populaccedilatildeo nos uacuteltimos 70 anos

Por fim a secularizaccedilatildeo abre espaccedilos para que natildeo soacute novas religiotildees como tambeacutem novas organizaccedilotildees religiosas busquem espaccedilo e concorram pela fide-lizaccedilatildeo religiosa dos indiviacuteduos

A concessatildeo da liberdade religiosa e a separaccedilatildeo Igreja-Estado romperam definitivamente o monopoacutelio catoacutelico abrindo caminho para que outros grupos religiosos pudessem ingressar e se formar no paiacutes disputar e conquistar novos espaccedilos na sociedade adquirir legitimidade social e consolidar sua presenccedila institucional (MARIANO 20033)

Com o fim do monopoacutelio religioso e consequentemente a abertura para novas organizaccedilotildees religiosas possibilita-se a formulaccedilatildeo de distintos interesses religiosos respondendo a distintos interesses sociais A religiatildeo agrave medida que vai se autonomizando como esfera social com loacutegica proacutepria atua como elabo-

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radora dos interesses religiosos a partir da mateacuteria-prima dos interesses sociais dos distintos grupos permitindo por exemplo que distintos interesses sociais estejam ligados a um mesmo interesse religioso Uma vez que as organizaccedilotildees consigam elaborar interesses religiosos comuns capazes de transcender em certa medida as fronteiras dos interesses sociais - embora sem nunca lograr uma completa desvinculaccedilatildeo desses interesses - torna-se provaacutevel a adesatildeo de distintos grupos sociais a essas organizaccedilotildees e especialistas a fim de realizar esses interesses religiosos

Para exemplificarmos o efeito do pluralismo religioso observemos o cresci-mento das igrejas evangeacutelicas no Brasil nos uacuteltimos anos Os dados do Instituto Brasileiro de Planejamento Tributaacuterio (IBPT) apontam que existem no Brasil mais de 179 mil organizaccedilotildees religiosas evangeacutelicas registradas Somente em 2013 doze igrejas foram abertas por dia no Brasil cerca de 4400 novas organi-zaccedilotildees religiosas evangeacutelicas ao longo do ano Esse nuacutemero apresentou em 2014 crescimento de 52869 As organizaccedilotildees religiosas evangeacutelicas apresentam um faturamento de cerca de R$20 bilhotildees ao ano oriundo de diacutezimos venda de produtos e aplicaccedilotildees financeiras70

Essa nova configuraccedilatildeo religiosa no Brasil abre oportunidades para a anaacutelise da religiatildeo sob novas perspectivas uma vez que novos interesses religiosos e sociais ganham espaccedilo nas disputas por atenccedilatildeo nas organizaccedilotildees e especialistas religiosos

Dessa forma a nova configuraccedilatildeo religiosa brasileira demonstra que as transformaccedilotildees religiosas acompanham as transformaccedilotildees sociais mas ocorrem tambeacutem por mudanccedilas na proacutepria esfera religiosa e na capacidade de diferentes religiotildees organizarem distintos interesses e atenderem distintas demandas dos indiviacuteduos

Portanto compreender a configuraccedilatildeo religiosa brasileira eacute funccedilatildeo importante de todo aquele que deseja analisar como a religiatildeo influencia tanto o indiviacuteduo como a sociedade brasileira ao passo que tambeacutem eacute influenciada por eles

69 Disponiacutevel em httpwwwempresometrocombrSiteMetodologia70 Para mais informaccedilotildees sobre a arrecadaccedilatildeo das organizaccedilotildees religiosas evangeacutelicas ver httpexameabrilcombrbrasilem-um-ano-arrecadacao-de-igrejas-passou-dos-r-20-bi

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REFEREcircNCIAS ALVARENGA Leonardo Os batistas em movimento um estudo da dinacircmica sociorreligiosa de batistas no Brasil o exemplo de Macaeacute-RJ 2017 269 f Tese (Doutorado em Ciecircncia da Religiatildeo) -Programa de Estudos Poacutes-Graduados em Ciecircncia da Religiatildeo Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica de Satildeo Paulo Satildeo Paulo 2017

ARENARI Brand Pentecostalism as religion of the perifety an analysis of the Brazilian case Tese de Doutorado Faculdade de Filosofia Universidade de Humboldt Berlin 2013

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BERGER Peter L Muacuteltiplos altares da Modernidade Petroacutepolis Vozes 2016

BOECHAT Joatildeo Religiatildeo e Classe Social uma anaacutelise dos especialistas reli-giosos de diferentes segmentos evangeacutelicos sob a influecircncia do Pentecostalismo Dissertaccedilatildeo (Mestrado em Sociologia Poliacutetica) Universidade Estadual do Norte Fluminense RJ Campos dos Goytacazes 2017

CAMPOS Bernardo Da Reforma protestante agrave Pentecostalidade da Igreja Satildeo Leopoldo e Quito Sinodal e Clai 2002

CAMPOS Leonildo Silveira Pentecostalismo e Protestantismo Histoacuterico no Brasil um seacuteculo de conflitos assimilaccedilatildeo e mudanccedilas Horizonte v 9 n 22 Belo Horizonte 2011

CAMURCcedilA Marcelo Ayres A Religiatildeo e o Censo enfoques metodoloacutegicos Uma reflexatildeo a partir das consultorias do ISER ao IBGE sobre o dado religioso nos censos Comunicaccedilotildees do ISER v 69 2014 p 04-152

DUTRA Roberto A Universalidade da Condiccedilatildeo Secular Religiatildeo e Socieda-de Rio de Janeiro 36(1) 151-174 2016

DUTRA Roberto BOECHAT Joatildeo Diferenciaccedilatildeo funcional e organizaccedilotildees religiosas na modernidade uma anaacutelise teoacuterica com base no pentecostalismo no Brasil Revista de Ciecircncias Sociais v 49 n 2 2018

GIUMBELLI Emerson A vontade do saber terminologias e classificaccedilotildees sobre o protestantismo brasileiro Religiatildeo e Sociedade Rio de Janeiro n 1

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GONCcedilALVES Delmo Neopentecostalismo Nascimento desenvolvimento e contemporaneidade Uma anaacutelise da IURD e seus elementos eacutetnico-religiosos Novas Ediccedilotildees Acadecircmicas 2015

GRACINO JR Paulo A visatildeo aeacuterea e do nadador reflexotildees sobre catoacutelicos e pentecostais no censo de 2010 Horizonte Revista de Estudos de Teologia e Ciecircncias da Religiatildeo 10(28) nov 2008

HERVIEU-LEacuteGER Daniele O peregrino e o convertido ndash a religiatildeo em movimento Petroacutepolis Vozes 2008

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATIacuteSTICA (IBGE) Cen-so Demograacutefico 2010 ndash Caracteriacutesticas gerais da populaccedilatildeo religiatildeo e pessoas com deficiecircncia Rio de Janeiro IBGE 2012

MACHADO Maria das Dores Campos Religiatildeo Cultura e Poliacutetica Religiatildeo e Sociedade v 32 n2 Rio de Janeiro 2012

MAFRA Clara Na Posse da Palavra mdash Religiatildeo Conversatildeo e Liberdade Pes-soal em Dois Contextos Nacionais Lisboa Imprensa de Ciecircncias Sociais 2002

MARIANO Ricardo Mudanccedilas no campo religioso brasileiro no Censo 2010 Debates do NER Porto Alegre ano 14 n 24 2013 p 119-137

MARIANO Ricardo Neopentecostais sociologia do novo pentecostalismo Brasileiro Satildeo Paulo Ediccedilotildees Loyola 1999

MARIANO Ricardo Sociologia do Crescimento Pentecostal um balanccedilo Perspectiva Teoloacutegica ano 43 n 119 Belo Horizonte 2011

MARIZ Ceciacutelia L A Renovaccedilatildeo Carismaacutetica Catoacutelica uma igreja dentro da Igreja Civitas ndash Revista de Ciecircncias Sociais v 3 n 1 Porto Alegre 2003

NOVAES Regina Religiatildeo e poliacutetica sincretismos entre alunos de Ciecircncias Sociais In A danccedila dos sincretismos Rio de Janeiro Comunicaccedilotildees do ISER n 45 ano 13 1994

NOVAES Regina Jovens sem religiatildeo sinais de outros tempos In TEIXEIRA Faustino MENEZES Renata (Org) Religiotildees em movimento o Censo de 2010 Petroacutepolis Editora Vozes 2013

OLSON Roger E Teologia Arminiana mitos e realidades Satildeo Paulo Editora Reflexatildeo 2013

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ORO Ari P Algumas interpelaccedilotildees do Pentecostalismo no Brasil Horizonte v 9 n 22 Belo Horizonte 2011

ORO Ari P MARIANO Ricardo Eleiccedilotildees 2010 Religiatildeo e Poliacutetica no Rio Grande do Sul e no Brasil Debates do NER Porto Alegre ano 11 n 18 2010

PIERUCCI Antocircnio F ldquoBye bye Brasilrdquo ndash o decliacutenio das religiotildees tradicionais no Censo 2000 Estudos Avanccedilados 18 (52) 2004

RODRIGUES Denise dos Santos Os sem religiatildeo nos censos brasileiros sinal de uma crise de pertencimento institucional Horizonte v 10 2012 p 1130-1152

SILVEIRA Marcelo O discurso da Teologia da Prosperidade em Igrejas Evangeacutelicas Estudo da Retoacuterica e da Argumentaccedilatildeo no culto religioso Tese (Doutorado em Ciecircncias Sociais) Universidade de Satildeo Paulo-USP Satildeo Paulo 2007

SOUZA Carlos O Protestantismo Histoacuterico e a ldquoPentecostalizaccedilatildeordquo Novos contornos da identidade evangeacutelica Ciecircncias da Religiatildeo histoacuteria e sociedade Satildeo Paulo v 12 n 2 2014

STEIL Carlos Alberto Pluralismo modernidade e tradicao ndash transformaccedilotildees do campo religioso Ciencias Sociales y ReligionCiencias Sociais e Religiao Porto Alegre ano 3 no 3 2001

WEBER Max A Eacutetica Protestante e o Espiacuterito do Capitalismo Trad Maacuterio Moraes Satildeo Paulo Martin Claret 2013

WEBER MAX Economia e Sociedade fundamentos da sociologia com-preensiva Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 2000 2009 (reimpressatildeo)

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AMEacuteM MUacuteLTIPLOS DERIVADOS O MESMO CONCEITOAs diferentes traduccedilotildees de uma mesma raiz

AMEN MULTIPLE DERIVATIVES THE SAME CONCEPTDifferent translations of the same word

Rawderson Rangel71

RESUMOHaacute diversas expressotildees que se encontram no Novo Testamento utilizadas

com muita frequecircncia ainda hoje nas igrejas cristatildes cuja origem eacute o hebraico A proposta do presente artigo eacute analisar a conhecida expressatildeo ldquoAmeacutemrdquo repe-tida em oraccedilotildees e muitas vezes como resposta da congregaccedilatildeo ao pregador ou dirigente do culto Atraveacutes do estudo de diferentes vocaacutebulos tendo esta palavra em sua raiz a investigaccedilatildeo apresentaraacute possiacuteveis significados e sentidos para a expressatildeo que de forma consensual eacute definida simplesmente por ldquoassim sejardquo

Palavras-chave Ameacutem Hebraico Raiz verbal

ABSTRACTMany expressions found in the New Testament often used even today in

Christian churches have their origin in the Hebrew The purpose of this article is to analyze the familiar expression ldquoAmenrdquo repeated in prayers and often as a congregation response of to the preacher or gospel service responsible Through the study of different words having this word in their root the research will present possible meanings for the expression usually simply defined by ldquoLet it be sordquo

Keywords Amen Hebrew Verbal root

71 Bacharel em Teologia pelo Seminaacuterio Teoloacutegico Batista do Sul do Brasil (atual Faculdade Batista do Rio de Janeiro) RJ Brasil revalidado pela Faculdade Teoloacutegica Batista do Paranaacute em Curitiba (atual FABAPAR) PR Brasil Poacutes-graduado em Antigo Testamento tambeacutem pela FABAPAR PR Mestre em Teologia pela Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Paranaacute Cursou Hebraico Biacuteblico pela Israel Biblical Institute of Studies acreditado pela Universidade Hebraica de Jerusaleacutem Israel atualmente eacute estudante de Grego Biacuteblico pela mesma instituiccedilatildeo Escritor professor de Teologia e idiomas biacuteblicos missionaacuterio da Junta de Missotildees Mun-diais da Convenccedilatildeo Batista Brasileira - JMM da CBB em Moccedilambique Eacute professor do Instituto Teoloacutegico Baptista da Beira Sofala e Instituto Biacuteblico de Sofala ndash Moccedilambique E-mail rawdersonhotmailcombr

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INTRODUCcedilAtildeO O hebraico biacuteblico por ser um idioma antigo apresenta-se bastante complexo

com determinados caracteres e algumas formas gramaticais que hoje natildeo satildeo mais utilizadas tal complexidade pode ser diminuiacuteda se o estudante estiver atento a alguns detalhes que satildeo extremamente uacuteteis no estudo da liacutengua e a anaacutelise a partir de determinadas raiacutezes eacute uma delas Haacute muitas palavras de tronco comum que uma vez entendidas ajudam na memorizaccedilatildeo delas na compreensatildeo do sentido de uma expressatildeo e ateacute mesmo de um verso biacuteblico

O vocabulaacuterio da Biacuteblia hebraica eacute de aproximadamente oito mil palavras72 sendo que duas mil delas aparecem apenas uma vez no texto desse modo um bom dicionaacuterio biacuteblico eacute indispensaacutevel no estudo do Antigo Testamento Ao mesmo tempo todo esse vocabulaacuterio pode ser reduzido a mil e trezentas raiacutezes73 e a polissemia desse idioma torna o estudo das palavras e seu significado original relevante pois facilita a compreensatildeo de determinadas palavras ou expressotildees no texto hebraico Ela tem sido vista como uma soluccedilatildeo para os muacuteltiplos significados representados por uma uacutenica palavra Ana Ceciacutelia Cruz defende essa relaccedilatildeo tanto graacutefica quanto foneacutetica segundo essa autora esta eacute ldquo() uma relaccedilatildeo metafoacuterica que amplia um sentido baacutesico para outros mais abstratosrdquo74

Miles Van Pelt afirma que as primeiras cinquenta palavras mais frequentes permitem ao estudante reconhecer um pouco mais da metade (55) do total de palavras que ocorrem no Antigo Testamento hebraico Dominar as 641 palavras que ocorrem cinquenta ou mais vezes permitiraacute identificar mais de 80 das palavras75 Uma das razotildees para isso eacute a relaccedilatildeo entre estas e as suas raiacutezes

A palavra que seraacute analisada neste artigo tambeacutem pode ter muacuteltiplas tradu-ccedilotildees embora um sentido baacutesico Analisar a origem e o significado de ldquoAmeacutemrdquo eacute bastante interessante embora natildeo menos complexo quando comparada agraves de-mais liacutenguas semiacuteticas76 Sabe-se que ela existe desde tempos remotos tanto em hebraico como tambeacutem em aacuterabe (rsquoĀmīn) ldquoAmeacutemrdquo eacute referecircncia nas trecircs grandes religiotildees que surgiram no Oriente Meacutedio cristianismo islamismo e judaiacutesmo Assim como ldquoAleluiardquo essa palavra tambeacutem natildeo se traduz em nenhum idioma sendo compreendida por todas as culturas sob a influecircncia de pelo menos uma das religiotildees mencionadas anteriormente

72 FRANCISCO Edson Faria de In Liacutengua Hebraica Aspectos Histoacutericos e Caracteriacutesticas (2010)73 JOUumlON P MURAOKA T (2007) Gramaacutetica del Hebreo Biacuteblico sect40 ndash nota74 CRUZ A d Estratificaccedilatildeo linguiacutestica ampliaccedilatildeo semacircntica e polissemia em hebraico Revista Veacutertices 11 2011 p 4275 PELT Miles Van The vocabulary guide to biblical Hebrew 2003 p ix76 WILLIAM B EERDMANS PUBLISHING COMPANY (1974) Theological Dictionary of The Old Testament (Vol I) Paacutegs 292293

53TeoloacutegicaRevista Brasileira de Teologia ISSN 1807-7056 nordm 8 outdez Rio de Janeiro 2020 p 51- 62

1 AMEacuteM EM DIVERSAS CULTURASA palavra tem algumas caracteriacutesticas particulares em cada uma dessas

religiotildees apesar de natildeo estar incluiacuteda no Alcoratildeo āmīn eacute uma das mais im-portantes na oraccedilatildeo islacircmica usada em diferentes contextos principalmente na sua conclusatildeo77 o rabino Chanina em 225 dC afirmou que ldquoameacutemrdquo eacute um acroacutestico - a palavra eacute composta por trecircs consoantes que em hebraico sintetizam a frase ldquoDeus Rei Fielrdquo rsquoel melek e nersquoeman78 Pronunciar essa palavra no final da prece eacute segundo esse raciociacutenio uma declaraccedilatildeo espiritual de que o proacuteprio Deus vai agir jaacute no cristianismo quando se pergunta o significado de ldquoAmeacutemrdquo logo vem a resposta ldquoassim sejardquo Tambeacutem no cristianismo ela tem um conceito de encerramento conclusatildeo teacutermino sendo esta uma das uacuteltimas palavras do Novo Testamento encontrada em Apocalipse 2220 21

Independentemente do que esteja acontecendo em um culto nas igrejas evan-geacutelicas eacute comum ouvir-se um ldquoameacutemrdquo Eacute tatildeo comum no linguajar cristatildeo que se tornou inclusive uma pergunta ldquoAmeacutem irmatildeosrdquo A resposta vem a seguir ldquoAmeacutemrdquo A depender do contexto tem o sentido de ldquopode ser assimrdquo ldquocon-cordamrdquo ou ateacute mesmo ldquoeacute assim ou natildeo eacuterdquo Quando aparentemente natildeo haacute um assunto definido ou o dirigente ainda estaacute se organizando no puacutelpito surge a pergunta ldquoAmeacutemrdquo A resposta da congregaccedilatildeo eacute repetir ldquoAmeacutemrdquo Resta analisar se foi criada uma nova semacircntica

Em diversos lugares do mundo o ldquoameacutemrdquo identifica-se com a feacute Quando se termina o momento devocional e de oraccedilatildeo a palavra eacute repetida imediatamente uma vez que tem sido ensinada como significado de ldquoassim sejardquo No Dicionaacuterio Internacional de Teologia do Antigo Testamento no entanto lecirc-se que

Esse conceito tatildeo importante da doutrina biacuteblica eacute prova clara do signi-ficado biacuteblico de ldquofeacuterdquo em contraste com muitos conceitos populares do termo No acircmago do sentido da raiz estaacute a ideia de certeza Isso eacute susten-tado pela definiccedilatildeo de feacute do NT encontrada em Hebreus 11179

Esse dicionaacuterio relaciona a expressatildeo pistis com certeza e feacute algo que tambeacutem acontece em alguns versos traduzidos do hebraico pela LXX cuja raiz da palavra eacute ldquoameacutemrdquo 80 embora natildeo com uniformidade 81

77 AKASOY 200978 Strack amp BILLERBECK 1922 paacuteg 464 Apud ZINKAND 1982 p 279 rsquoāmīn in HARRIS ARCHER JR e WALTKE 199880 Dt 3220 Jeremias 92 entre outros81 ZINKAND 1982 op cit paacuteg 4

54 TeoloacutegicaRevista Brasileira de Teologia ISSN 1807-7056 nordm 8 outdez Rio de Janeiro 2020 p 51-62

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2 ʾmN e SeUS DeRivaDOS Partindo da anaacutelise da sua raiz (que neste caso eacute ʾmn) e de acordo com o

contexto eacute possiacutevel perceber que a palavra ameacutem tem um sentido que vai aleacutem do significado convencional ʾmn pode ser traduzido do texto hebraico82 de diferentes maneiras mas normalmente relacionado a ldquoconfiarrdquo e ldquoacreditarrdquo Esta eacute tambeacutem a tese defendida por Flor83 ainda que a raiz apareccedila como verbo ou adjetivo

Embora essa palavra aqui estudada seja mais conhecida como uma interjeiccedilatildeo ela tambeacutem se encontra no original tanto em raiacutezes verbais como tambeacutem em substantivos e adjetivos reafirmando o significado de confianccedila e estabilidade Eacute possiacutevel que haja alguma dificuldade para identificaacute-la especialmente pelas variaccedilotildees caracteriacutesticas da gramaacutetica hebraica No entanto ao reconhececirc-la o texto seraacute enriquecido com as possibilidades de interpretaccedilatildeo

21 ʾmN NaS RaiacutezeS veRBaiS

A primeira vez que a palavra aparece no texto do Antigo Testamento eacute na passagem de Gecircnesis 15 quando Deus percebe que Abratildeo colocava em duacutevida que ele teria descendecircncia direta Nesse episoacutedio o patriarca afirma esperar que a sua descendecircncia seria a de Eliezer mas Deus ldquoimediatamenterdquo (hinnēh - Gecircnesis 154) apresenta-lhe as suas intenccedilotildees convidando-o gentilmente84 a sair da sua tenda e ver a quantidade de estrelas no ceacuteu como um exemplo da quantidade de descendentes que ele teria

Apoacutes essa conversa diz o texto em Gecircnesis 156 ldquoEle creu [hě ěʾmin] no Se-nhor e isso lhe foi imputado para justiccedilardquo A raiz do verbo em destaque eacute ʾ mn85 Uma vez que se encontra em hifil pode ser traduzido por ldquoele acreditourdquo ou ldquoele se firmou por uma convicccedilatildeo internardquo A mudanccedila de sentimento de Abratildeo foi fundamental para o desenrolar da histoacuteria de Israel conforme apresentado no Antigo Testamento Essa passagem inclusive eacute confirmada no Novo Testamen-

82 Salvo nota indicando o contraacuterio todas as passagens biacuteblicas em portuguecircs apresentadas na presente investigaccedilatildeo foram extraiacutedas da versatildeo Revista e Atualizada da Sociedade Biacuteblica do Brasil 199983 FLOR E N (Novembro de 2000) ldquoAmenrdquo in Old Testament liturgical texts a study of its meaning and later development as a plea for ecumenical understanding p 784 Sobre a expressatildeo que demonstra esse tratamento cordial e respeitoso por parte de Deus nesta passagem ver RANGEL Rawderson ldquoNatildeo estou mandando estou pedindo a partiacutecula de Suacuteplicardquo in Revista Teoloacutegica nuacutemero 6 ago ndash dez 2018 pp 114-125 Filo afirma que a conversa natildeo foi em um niacutevel de Deus para o homem mas sim entre amigos in PAGE T E (Ed) Philo (Vol VI) London England William Heinemann Ltd Harvard University Pressp 311 85 Na LXX a traduccedilatildeo utiliza a palavra episteusen da mesma raiz da palavra feacute usada em Hebreus 11

55TeoloacutegicaRevista Brasileira de Teologia ISSN 1807-7056 nordm 8 outdez Rio de Janeiro 2020 p 51- 62

to 86 e nessas passagens todos os versos traduzem o ʾmn por pisteuo seguindo a LXX no aoristo enfatizando o fato da ocorrecircncia natildeo da sua natureza

Ainda como verbo no contexto de ldquoacreditarrdquo e ldquoconfiarrdquo na histoacuteria de Israel ʾmn tambeacutem aparece como uma negaccedilatildeo agrave feacute ou a crer Quando Moiseacutes estaacute diante de Deus no monte Sinai recebendo a missatildeo de libertar o povo de Israel do Egito ele pergunta ldquo[] Mas eis que natildeo creratildeo [yaʾmīnū] nem acudiratildeo agrave minha voz []rdquo (Ecircxodo 41) A falta de feacute ou confianccedila eacute tambeacutem evidenciada na passagem em que o povo de Israel teme entrar na terra prometida diante do testemunho dos espias que foram enviados a Canaatilde ldquo[] Ateacute quando me provocaraacute este povo e ateacute quando natildeo creraacute [lōʾ -yaʾ ămicircnucirc] em mim a despeito de todos os sinais que fiz no meio delerdquo87 (Nuacutemeros 1411)

O conhecido texto de Habacuque 24 eacute tambeacutem uma interessante passagem relacionada a crer e confiar ldquo() mas o justo em sua feacute [beʾ ĕmucircnāṯocirc] viveraacuterdquo [trad do autor] 88 Outra possibilidade para Habacuque 24 o justo por aquilo que ele crecirc viveraacute A feacute tem seu fundamento naquilo que estaacute estabelecido e por isso eacute digno de creacutedito

Isaiacuteas 79 apresenta um curioso jogo de palavras ldquo[] se o natildeo crerdes certamente natildeo permanecereisrdquo No hebraico os verbos crer e permanecer satildeo palavras homoacutegrafas e homoacutefonas taʾămicircnucirc e tēʾāmēnucirc reforccedilando a ideia Ambos com a raiz ʾmn tecircm o sentido de fidelidade feacute e acreditar

Acosta Rosales apresenta um estudo no qual apenas analisa essa palavra em qal 89 Mas haacute diversos outros exemplos na Biacuteblia que relacionam ʾmn com confianccedila no particiacutepio a palavra eacute usada para expressar a confianccedila de uma crianccedila nos braccedilos de sua matildee 90 ou de seus cuidadores (Nuacutemeros 1112 91 e 2Reis 101 92) em Isaiacuteas 604 93 no Nifal eacute possiacutevel tambeacutem relacionar-se o verbo a cuidadores com sentido de trazer seguranccedila e firmeza

86 Romanos 43 Gaacutelatas 36 Tiago 22387 A traduccedilatildeo correta seria creratildeo yarsquomīnū88 A palavra feacute em Habacuque 24 na LXX eacute traduzida por pistis no Genitivo singular feminino 89 ROSALES A D Re-discovering the semantics of ןמא in qal Theologica Xaveriana 67 (Grammar Philology Semantics) 431-46090 rsquoāman in WILLIAM B EERDMANS PUBLISHING COMPANY 197491 Nuacutemeros 1112 ldquoConcebi eu porventura todo este povo Dei-o eu agrave luz para que me digas Leva-o ao teu colo como a ama [particiacutepio] leva a crianccedila que mama agrave terra que sob juramento prometeste a seus paisrdquo 92 2Reis 101 ldquoAchando-se em Samaria setenta filhos de Acabe Jeuacute escreveu cartas e as enviou a Samaria aos chefes da cidade aos anciatildeos e aos tutores [particiacutepio] dos filhos de Acabe dizendordquo 93 Isaiacuteas 604 ldquoLevanta em redor os olhos e vecirc todos estes se ajuntam e vecircm ter contigo teus filhos chegam de longe e tuas filhas satildeo trazidas [Nifal imperfeito 3feminina plural] nos braccedilos

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22 ʾmN COmO SUBSTaNTivO e aDjeTivO

Ainda relacionada agrave credibilidade a palavra utilizada para nomear as vigas sobre as portas do templo que deram sustentaccedilatildeo agrave construccedilatildeo tem em sua raiz ʾmn em 2Reis 1816 encontramos a palavra traduzida por ombreiras 94 das portas do templo de Israel95 Na LXX a traduccedilatildeo eacute de uma palavra derivada de stērizō algo que daacute estabilidade Quando se avalia toda a estrutura do templo evidencia-se que tais ombreiras natildeo poderiam ser algo sem uma firmeza e que garantissem seguranccedila

Como sustentaccedilatildeo e credibilidade relacionadas a pessoas ʾmn encontra-se em Ecircxodo 1712 na conhecida passagem em que os filhos de Israel perdiam a batalha quando Moiseacutes baixava as suas matildeos Percebendo isso Aratildeo e Hur seguraram os seus braccedilos e ldquo() assim lhe ficaram as matildeos firmes [ʾ ĕmucircnacirc] ateacute ao pocircr-do-solrdquo96 Com a firmeza veio a certeza da vitoacuteria Novamente atraveacutes da raiz o texto atribui agrave atitude desses homens o sinocircnimo de seguranccedila e firmeza

Essa credibilidade se observa tambeacutem como sinocircnimos de guardas e segu-ranccedilas porteiros (1Crocircnicas 922) pessoas responsaacuteveis por atividades diversas em quem se depositou total confianccedila (1Crocircnicas 931 2Crocircnicas 3412)

Haacute vaacuterios substantivos que satildeo derivados da raiz ʾ mn e todos eles transmitem a ideia baacutesica de ldquosuporte firmezardquo ou ldquoconfirmaccedilatildeordquo Haacute variantes da palavra traduzidas por ldquopai adotivordquo algueacutem que apoia e nutre um grupo familiar dando-lhe estabilidade e firmeza A forma feminina com essa raiz ʾomenet significa ldquomatildee adotivardquo e inclui a ideia de ldquonutrirrdquo ldquofortalecerrdquo Outra palavra que demonstra essa firmeza agora na arte eacute ʾuman denota ldquoum operaacuterio habi-lidosordquo traduzido por ldquoartesatildeordquo97

O texto biacuteblico apresenta uma relaccedilatildeo curiosa entre o homem e ʾmn falando em termos da natureza humana ele eacute falho e inseguro pode vacilar Os adjetivos relacionados com ʾ mn atribuiacutedos aos seres humanos nunca englobam a sua tota-lidade mas sim aspectos e momentos pontuais que viveram Nem mesmo a Joacute que recebeu os elogios do Senhor por sua integridade eacute atribuiacutedo esse adjetivo

No entanto eacute a Deus que ʾ āman eacute atribuiacutedo Para Flor isso acontece especial-mente no livro de Salmos (mas natildeo soacute) porque Deus eacute imutaacutevel estaacutevel e firme

94 A mesma palavra pode ter dois significados diferentes um se refere a m ezuwzah (laterais) enquanto que a palavra de 2 Reis 1816 se refere agrave parte superior da porta A LXX traduz por estērigmena 95 2Reis 1816 ldquoFoi quando Ezequias arrancou das portas do templo do Senhor e das ombreiras o ouro de que ele rei de Judaacute as cobrira e o deu ao rei da Assiacuteriardquo96 A LXX traduz este texto com a mesma ideia97 FLOR E N op cit p 15

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enquanto o ser humano frequentemente eacute fraco instaacutevel e inconstante98 Por essa razatildeo acreditando nisso em Lamentaccedilotildees 323 se lecirc a respeito das misericoacuterdias de Deus ldquo() renovam-se cada manhatilde Grande eacute a tua fidelidade [ʾ ĕmucircnātekā]rdquo

A palavra do Senhor tambeacutem eacute tida por fiel e verdadeira digna de credibili-dade e aiacute tambeacutem se encontra a raiz da palavra em questatildeo O salmo 119 nos versos 75 86 90 138 o poeta homenageia a Lei de Deus qualificando-a de fiel e verdadeira

3 āʾmaN e ldquoaSSim Sejardquo

A palavra ldquoAmeacutemrdquo aparece vinte e quatro vezes no Antigo Testamento (doze delas apenas em Deuteronocircmio 2715ss) Devido agrave variedade de possibilidades torna-se difiacutecil identificar o seu real sentido no hebraico99

Haacute textos que sugerem a expressatildeo ldquoassim sejardquo em sua traduccedilatildeo com uma conotaccedilatildeo de confirmaccedilatildeo daquilo que estava sendo dito como nos versos de Jeremias 115100 286101 e 1Reis 136 37102 Nesses textos eacute possiacutevel interpretar que Deus daria a sua becircnccedilatildeo ao que jaacute havia sido planejado e dito Nessas passagens a referecircncia eacute feita aos oradores somente porque eles reconheceram o que jaacute havia sido determinado por YHVH e confirmaram a afirmaccedilatildeo Suas declaraccedilotildees podem significar ldquoPrecisamente Eu sinto o mesmo a respeito que Deus o faccedilardquo103 Eacute como uma aceitaccedilatildeo do que foi estabelecido natildeo uma esperanccedila em algo que aconteceria

Existem tambeacutem ao menos trecircs passagens nas quais a palavra ldquoameacutemrdquo estaacute em uma situaccedilatildeo diferente da mencionada anteriormente todas elas relacionadas a uma maldiccedilatildeo contra a pessoa envolvida em Deuteronocircmio 2715-26 (declara-ccedilatildeo de maldiccedilotildees no caso do natildeo cumprimento das leis e estatutos estabelecidos por Deus) em Nuacutemeros 522104 (declaraccedilatildeo solene acontecia no momento em que

98 ibidem p 1799 WILLIAM B EERDMANS PUBLISHING COMPANY op cit p 320100 Jeremias 115 ldquoPara que confirme o juramento que fiz a vossos pais de lhes dar uma terra que manasse leite e mel como se vecirc neste dia Entatildeo eu respondi e disse ameacutem oacute Senhorrdquo101 Jeremias 286 ldquoDisse pois Jeremias o profeta Ameacutem Assim faccedila o Senhor confirme o Senhor as tuas palavras com que profetizaste e torne ele a trazer da Babilocircnia a este lugar os utensiacutelios da Casa do Senhor e todos os exiladosrdquo102 1Reis 136 37 ldquoEntatildeo Benaia filho de Joiada respondeu ao rei e disse Ameacutem Assim o diga o Senhor Deus do rei meu senhor Como o Senhor foi com o rei meu senhor assim seja com Salomatildeo e faccedila que o trono deste seja maior do que o trono do rei Davi meu senhorrdquo103 WILLIAM B EEDERMANS PUBLISHING op cit pp 320104 Nuacutemeros 522 ldquoE esta aacutegua amaldiccediloante penetre nas tuas entranhas para te fazer inchar o ventre e te fazer descair a coxa Entatildeo a mulher diraacute Ameacutem Ameacutemrdquo

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a mulher era confrontada sobre o adulteacuterio) e em Neemias 513105 (compromisso contra a usura) Por serem maldiccedilotildees que recairiam sobre quem natildeo cumprisse a sua palavra ou imprecaccedilatildeo sobre a pessoa condenada a expressatildeo sugere uma declaraccedilatildeo solene de que aqueles castigos iriam acontecer106 Seria o conhecido ldquoassim sejardquo pronunciado em declaraccedilatildeo solene de aceitaccedilatildeo do castigo contra aquele que estava assumindo o compromisso

Em algum momento a expressatildeo passou a ser tambeacutem usada na Doxologia em resposta da congregaccedilatildeo diante de uma declaraccedilatildeo de Deus em Neemias 86 a congregaccedilatildeo diz ldquoameacutem ameacutemrdquo levantando as suas matildeos Natildeo se sabe dizer se este jaacute era um costume seguido (conforme 1Crocircnicas 1636) ou se passou a ser regular a partir daquele momento107 Sobre os cacircnticos do salteacuterio a palavra aparece no final dos primeiros quatro livros (Salmos 4113 7219 8952 10648)

CONCLUSAtildeO Os exemplos apresentados ilustram a importacircncia de o estudante do hebraico

biacuteblico analisar as palavras a partir de suas raiacutezes para poder interpretar melhor o texto biacuteblico sempre considerando prioritariamente o contexto que eacute deter-minante na interpretaccedilatildeo108 Dificilmente haveraacute um uacutenico significado oriundo de uma uacutenica raiz portanto conhecer os seus significados seraacute uma grande contribuiccedilatildeo no estudo do texto biacuteblico

Quando um hebreu ouvia as vaacuterias palavras derivadas da raiz ʾmn a ideia baacutesica que lhe vinha agrave mente era aparentemente ldquoconstacircnciardquo ldquoestabilidaderdquo Quando se referiam a objetos significavam ldquocontinuidaderdquo quando relacionadas a pessoas ldquoconfiabilidaderdquo Outros derivados da raiz satildeo ldquodurabilidaderdquo ldquoesta-bilidaderdquo ldquoverdaderdquo ldquofeacuterdquo ldquocompletuderdquo ldquoaquele que protegerdquo109 No entanto Deus eacute aquele que plenamente tem essas virtudes e atributos o ser humano tem essas qualidades ateacute certo ponto devido agrave sua limitaccedilatildeo e fragilidade

Quanto agrave palavra ldquoameacutemrdquo que proveacutem da raiz que expressa todas as qualida-des mencionadas anteriormente a expressatildeo tem o sentido de feacute e confianccedila em algo previamente estabelecido mas tambeacutem expressa uma certeza e confianccedila 105 Neemias 513 ldquoTambeacutem sacudi o meu regaccedilo e disse Assim o faccedila Deus sacuda de sua casa e de seu trabalho a todo homem que natildeo cumprir esta promessa seja sacudido e despojado E toda a congregaccedilatildeo respondeu Ameacutem E louvaram o Senhor e o povo fez segundo a sua promessardquo106 Barry J D Mangum D Brown D R Heiser et al Faithlife Study Bible (Dt 2715) Bellingham WA Lexham Press 2016107 WILLIAM B EEDERMANS PUBLISHING op cit pp 321108 Osborne (2009 paacutegs 101-139 especialmente as paacutegs 104-108) trata do exagero que muitos estudiosos da Biacuteblia datildeo agraves palavras analisadas de forma isolada descontextualizada109 WILLIAM B EEDERMANS PUBLISHING op cit pp 323

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quanto ao futuro Quando observada no Antigo Testamento ela eacute feita de forma solene e consciente e por isso mesmo raramente eacute encontrada no texto

A expressatildeo que sugere uma ratificaccedilatildeo eacute cuidadosamente aplicada nas paacutegi-nas da Biacuteblia natildeo sendo uma palavra dita em qualquer momento ou por qualquer situaccedilatildeo A conclusatildeo de Lande eacute que ldquoameacutemrdquo eacute usado como confirmaccedilatildeo de uma situaccedilatildeo muito especial e que a expressatildeo natildeo pertence agrave fala cotidiana110 Hulst expressa a mesma opiniatildeo ao afirmar ldquoA palavra ameacutem natildeo pertence agraves palavras do uso diaacuterio constante eacute mantido para uso em situaccedilotildees muito especiais e aleacutem disso raramente ocorre111 Por sua raridade no texto biacuteblico os personagens do Antigo Testamento tinham consciecircncia do seu sentido e o respeitavam

No AT a palavra eacute usada tanto pelo indiviacuteduo quanto pela comunidade para 1) confirmar a aceitaccedilatildeo de uma tarefa designada por homens mas a sua exe-cuccedilatildeo envolve a vontade de Deus (1Reis 136) 2) ratificar a aplicaccedilatildeo pessoal de uma ameaccedila ou maldiccedilatildeo divina (Nuacutemeros 522 Deuteronocircmio 2715ss Jeremias 115 Neemias 513) e 3) para declarar o louvor a Deus em resposta a uma doxologia (1Crocircnicas 1636 Neemias 86) como mostram os textos finais dos primeiros quatro livros dos Salmos (4113 7219 8952 10648)112

110 LANDE 1949 paacuteg 112 apud FLOR 2000 pp 16 17111 HULST 1953 p50 apud FLOR E N ldquoAmenrdquo in Old Testament liturgical texts a study of its meaning and later development as a plea for ecumenical understanding University of South Africa novembro de 2000 p17112 RENGSTORF ἀμήν in Wm B Eerdmans Publishing Co 1964 paacuteg 335

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A ANAacuteLISE DO DISCURSO NA INTERPRETACcedilAtildeO BIacuteBLICA

DISCOURSE ANALYSIS IN BIBLICAL INTERPRETATIONMe Thaiacutes de Oliveira Viriacutessimo113

Universidade Federal do Rio de Janeiro

RESUMO A Anaacutelise do Discurso tida como relevante para a interpretaccedilatildeo dos inuacutemeros

gecircneros textuais existentes eacute uma teoria linguiacutestica com extensiva abrangecircncia e aplicabilidade Sua importacircncia tem sido reconhecida inclusive por aqueles que manuseiam textos antigos entre os quais a Biacuteblia eacute encontrada Por ser ainda escassa a interaccedilatildeo entre estudos da linguagem e teologia no ambiente acadecircmico brasileiro objetiva-se neste artigo apresentar a Anaacutelise do Discurso como ferramenta possiacutevel de interpretaccedilatildeo biacuteblica Para isso interpretou-se Evangelho de Marcos 11-4 por meio do meacutetodo desenvolvido por Viriacutessimo (2018) sob os pressupostos da linguiacutestica textual (HORTA 1991 WALLACE 2009 GUTHRIE DUVALL 1998 OLSSON 2013) A pesquisa resultou na compilaccedilatildeo de informaccedilotildees criacuteticas acerca do texto biacuteblico

Palavras-chave Anaacutelise do Discurso Novo Testamento Grego koineacute Evan-gelho de Marcos

ABSTRACTConsidered as relevant for interpreting many existing textual genres Discour-

se Analysis is a linguistic theory with wide scope and applicability Even those who handle Ancient texts among which the Bible is found have recognized its importance As the interaction between studies in languages and Theology in Brazilian colleges is still rare this paper aims to present Discourse Analysis as a tool for biblical interpretation Using the method developed by Viriacutessimo (2018) the Gospel of Mark 11-4 was observed through linguistic assumptions (HORTA 1991 WALLACE 2009 GUTHRIE DUVALL 1998 OLSSON 2013) As a result it was developed a critical compilation of informations about the text

Keywords Discourse Analysis Biblical interpretation New Testament Koine Greek Gospel of Mark

113 Mestre em Letras Claacutessicas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro Possui tambeacutem os tiacutetulos de Licenciada em Portuguecircs-Grego pela supracitada instituiccedilatildeo e de Especialista em Antropologia Intercultural pelo Centro Universitaacuterio de Anaacutepolis (UniEvangeacutelica) Email virissimoprotonmailcom

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1 INTRODUCcedilAtildeOEacute lugar comum afirmar que nenhuma outra obra literaacuteria foi e permanece sen-

do tatildeo citada comentada traduzida e questionada na histoacuteria da humanidade como a Biacuteblia ndash coletacircnea de livros sagrados para o cristianismo e igualmente respeitada por outros segmentos religiosos globais114 A influecircncia da Biacuteblia eacute notoacuteria inclusive no que se refere agrave formaccedilatildeo cultural brasileira Suas histoacuterias inspiraram a arquitetura a exemplo do Redentor de braccedilos abertos sobre a Baiacutea de Guanabara a literatura como os personagens machadianos Esauacute e Jacoacute a muacutesica conforme a mistura dos amores poeacuteticos cantada por Renato Russo em seu Monte Castelo

Ainda assim a abordagem da Biacuteblia como um objeto de estudo suscetiacutevel ao escrutiacutenio por meacutetodos multidisciplinares continua sendo miacutenima no espaccedilo acadecircmico nacional Eacute certo que avanccedilos promissores precisam ser destacados nessa aacuterea como o recente ldquoEstudos Biacuteblicos em Foco I Congressordquo evento promovido pelo Instituto de Letras da UERJ em novembro de 2019 Contudo faz-se indispensaacutevel natildeo apenas a criaccedilatildeo mas a manutenccedilatildeo de iniciativas de pesquisas biacuteblicas fora dos ambientes confessionais de reflexatildeo

A promoccedilatildeo pois de uma metodologia de pesquisa ancorada na Anaacutelise do Discurso destacando-se a sua utilidade no ensino de liacutengua e teologia eacute a linha de chegada que se pretende alcanccedilar com esta publicaccedilatildeo Para tal o artigo foi organizado nas seguintes seccedilotildees 2 Anaacutelise do Discurso em que conceitos fundamentais acerca do assunto seratildeo apresentados 3 Metodologia em que o meacutetodo proposto seraacute passo a passo descrito numa siacutentese teoacuterica e exemplificado com sua aplicaccedilatildeo em Segundo Marcos 11-4 conforme os itens subsequentes ndash 31 Contextualizaccedilatildeo 32 Etapas de anaacutelise 33 Notas e 34 Interpretaccedilatildeo e 4 Consideraccedilotildees finais em que se registraraacute a importacircncia do diaacutelogo entre as Ciecircncias da Linguagem e a Teologia

2 ANAacuteLISE DO DISCURSOA Anaacutelise do Discurso (doravante AD) eacute um quadro teoacuterico com vaacuterias pos-

sibilidades de aplicaccedilatildeo visto que nele podem ser considerados na anaacutelise de

114 O islamismo por exemplo tem registrado no Alcoratildeo a validade da Toraacute e da Biacuteblia como escrituras inspiradas por Deus Alguns versiacuteculos em que isso pode ser percebido satildeo ldquoEle te revelou (oacute Mohammad) o Livro (paulatinamente) com a verdade corroborante dos anteriores assim como havia revelado a Toraacute e o Evangelhordquo (33) ldquoDize Cremos em Allah no que nos foi revelado no que foi revelado a Abraatildeo a Ismael a Isaac a Jacoacute e agraves tribos e no que do Senhor foi concedido a Moiseacutes a Jesus e aos profetas natildeo fazemos distinccedilatildeo alguma entre eles porque somos para Ele muccedilulmanosrdquo (384) ldquoE se tivessem sido observantes da Toraacute do Evangelho e de tudo quanto lhes foi revelado por seu Senhor alimentar-se-iam como que estaacute acima deles e do que se encontra sob seus peacutes [hellip]rdquo (566)

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um texto os seus aspectos extralinguiacutesticos (contexto de produccedilatildeo tipografia meio de apresentaccedilatildeo etc) paralinguiacutesticos (pontuaccedilatildeo entonaccedilatildeo atos de fala gecircnero textual etc) e linguiacutesticos (ordem lexical nominalizaccedilatildeo estilo etc) (LOUW 1992 p18) Mesmo textos antigos com sua exiguidade de formas podem ser observados agrave luz da AD quando definida como ldquoum processo de investigaccedilatildeo pelo qual algueacutem examina a forma e a funccedilatildeo de todas as partes e niacuteveis de um discurso escrito com o objetivo de melhor compreender tanto as partes como o todo daquele discursordquo (GUTHRIE 2001 p 255 traduccedilatildeo nossa)115 Contudo para melhor compreensatildeo do que eacute a AD faz-se necessaacuterio definir o que se entende como discurso

Funcionando ldquoao mesmo tempo como referindo objetos empiacutericos (lsquohaacute discursosrsquo) e como algo que transcende todo ato de comunicaccedilatildeo particular (lsquoo homem eacute submetido ao discursorsquo)rdquo (MAINGUENEAU 2015 p 23) ldquodiscursordquo eacute um termo polivalente Por um lado em associaccedilatildeo a ldquoobjetos empiacutericosrdquo refere-se a ldquoum conceito superordenador no que diz respeito agraves questotildees tradicionais dos filoacutelogos e dos literatosrdquo por abranger ldquotoda uma variedade de gecircneros literaacuterios de registros de niacuteveis de textualizaccedilatildeo das obras bem como as distinccedilotildees formais entre poesia e prosardquo (BONDARCZUK 2017 p 61) Por outro lado extrapolando o ato comunicativo discurso eacute ldquoum processo e natildeo um objeto apresentando um movimento que tem sua dinacircmica proacutepria (ou dyacutenamis) e que por sua vez envolve a negociaccedilatildeo de significado entre os interlocutoresrdquo (BONDARCZUK 2017 p 61) A proacutepria etimologia da palavra mostra que discurso ldquotem em si a ideia de curso de percurso de correr por de movimentordquo sendo assim ldquopalavra em movimento praacutetica de linguagem com o estudo do discurso observa-se o homem falandordquo (ORLANDI 2000 p 15)

Frente a tal complexidade a AD se configura como uma aacuterea de estudos da linguagem que perpassa procedimentos de anaacutelise linguiacutestica tradicionais chegando aos campos de atuaccedilatildeo das teorias linguiacutesticas modernas No que diz respeito aos estudos biacuteblicos somam-se deacutecadas de aplicaccedilatildeo da AD com propoacutesitos diversos ndash desde a traduccedilatildeo da Biacuteblia ateacute a interpretaccedilatildeo desta propriamente dita Porter (2015 p 134) identifica cinco tipologias de AD desen-volvidos para esses fins (1) a Sulafricana (2) a da Sociedade Internacional de Linguiacutestica (Summer Institute of Linguistics SIL) (3) uma abordadem ecleacutetica (4) a amparada na Linguiacutestica Sistecircmico-Funcional e (5) a Continental Euro-peia116 Como se veraacute adiante eacute nessa uacuteltima tipologia em que o meacutetodo a ser apresentado foi ancorado

115 ldquoa process of investigation by which one examines the form and function of all the parts and levels of a written discourse with the aim of better understanding both the parts and the whole of that discourserdquo116 Para maiores detalhes cf Breve histoacuterico entre Anaacutelise do Discurso e os estudos do Novo Testamento subcapiacutetulo da dissertaccedilatildeo de mestrado da presente autora (VIRIacuteSSIMO 2018)

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3 METODOLOGIAA Anaacutelise do Discurso Continental Europeia especificamente nos trabalhos

desenvolvidos pela escola escandinava eacute base dessa metodologia porque sendo sua ecircnfase o texto escrito o que com ela objetiva eacute o esclarecimento das relaccedilotildees de conteuacutedo entre as partes do texto explicando-as em termos da proacutepria liacutengua original Por isso eacute comum essa tipologia ser comparada agrave Linguiacutestica Textual e conforme o teoacutelogo e analista do discurso sueco Birger Olsson ldquouma anaacutelise linguiacutestico-textual eacute um componente baacutesico de todas as exegesesrdquo117 (OLSSON 1985 p 107 apud GUTHRIE 2001 p 256 traduccedilatildeo nossa)

Em suma na tipologia Continental Europeia segundo a elaboraccedilatildeo que Reed (1996) faz das formulaccedilotildees de David Hellholm professor emeacuterito da Faculdade de Teologia da Universidade de Oslo

a anaacutelise do discurso estaacute amplamente preocupada com a comunicaccedilatildeo (Ausdruck) dos signos (Zeichn) por um autorfalante (Sender) e o efeito (Appell) que eles tecircm em um leitorouvinte (Empfaumlnger) Tais signos representam arbitrariamente (Darstellung) coisas como objetos assunto e circunstacircncias (Gegenstaumlnde und Sachverhalte) dos mundos externo e interno dos textos Isso eacute basicamente o que a parte de anaacutelise do termo ldquoanaacutelise do discursordquo envolve (REED 1996 p 225 traduccedilatildeo nossa)118

Feitas tais consideraccedilotildees sobre a tipologia empregada cabe dizer que as subseccedilotildees a seguir estatildeo divididas em explicaccedilatildeo do processo e a aplicaccedilatildeo a fim de exemplificaacute-lo no corpus neotestamentaacuterio

31 CONTEXTUALIZACcedilAtildeO

O primeiro passo da contextualizaccedilatildeo do corpus eacute a leitura integral de uma traduccedilatildeo jaacute existente sempre que disponiacutevel da obra em que ele se encontra A versatildeo biacuteblica aqui consultada foi a Almeida Revista e Atualizada (seguidamente ARA) em funccedilatildeo de nela ser respeitada ldquona medida do possiacutevel a forma da liacutengua em que se encontra a mensagem originalrdquo (BARNWELL 2011 p 15) Ademais no estudo da Biacuteblia eacute oportuna a leitura em diferentes versotildees para comparaccedilatildeo ldquotraduccedilotildees entre as quais vocecirc consiga perceber os pontos de divergecircnciardquo (FEE STUART 2011 p 43) e caso o pesquisador assim queira

117 ldquoA text-linguistic analysis is a basic component of all exegesisrdquo118 ldquoDiscourse analysis is broadly concerned with the communication (Ausdruck) of signs (Zeichen) by an authorspeaker (Sender) and the effect (Appell) they have on a readerlistemer (Empfaumlnger) Such signs arbitrarily represent (Darstellung) such things as objects subject matter and circumstances (Gegenstaumlnde und Sachverhalte) of the external and internal worlds of the texts This is largely what the analysis part of the term lsquodiscouse analysisrsquo entailsrdquo

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fazer sugere-se que essa leitura comparativa esteja focada no corpus propria-mente dito

No mesmo passo da leitura realiza-se uma pesquisa histoacuterico-literaacuteria e formula-se uma redaccedilatildeo a respeito de questotildees gerais como autoria dataccedilatildeo gecircnero puacuteblico alvo entre outras informaccedilotildees que o pesquisador julgar perti-nentes Para este exemplar consultou-se o livro Introduccedilatildeo ao Novo Testamento (CARSON MOO MORRIS 1997) e a partir dele expandiu-se a bibliografia Eacute profiacutecuo que o pesquisador jaacute nessa etapa comece a estabelecer suas convicccedilotildees a respeito das questotildees gerais pontuando em seu texto quais variedades satildeo-lhe mais coerentes no todo conforme o resultado a seguir

ΚΑΤΑ ΜΑΡΚΟΝ como apresenta a 5ordf ediccedilatildeo de The Greek New Testament (ALAND 2014) traduzido como Segundo Marcos refere-se ao tiacutetulo atribuiacutedo pela tradiccedilatildeo eclesiaacutestica ao segundo evangelho da ordem canocircnica Contudo a nomenclatura mais popular para a obra eacute a de Evangelho de Marcos ou sim-plesmente Marcos isso por dois fatores Em primeiro lugar os quatro escritos dedicados agrave vida e ao serviccedilo de Jesus satildeo tradicionalmente tidos como ldquoevan-gelhordquo ndash palavra extraiacuteda justamente do primeiro versiacuteculo de Marcos Eacute vaacutelido dizer que Marcos esteve agrave margem dos estudos neotestamentaacuterios por muito tempo possivelmente em funccedilatildeo de ser esse o evangelho de menor extensatildeo (16 capiacutetulos em comparaccedilatildeo aos 28 de Mateus 24 de Lucas e 21 de Joatildeo) Jaacute nos dias atuais o relato tem ganhado proeminecircncia por ser o mais antigo de que se dispotildee acerca de Jesus tendo servido como base para os textos mateano e lucano (PAGOLA 2013 p 11)

A outra razatildeo pela qual a obra tem o tiacutetulo exposto deve-se ao fato de a primeira atribuiccedilatildeo de um suposto Marcos como autor do livro datar do II seacutec Euseacutebio historiador cristatildeo do IV seacutec dedica boas porccedilotildees de seu livro Histoacuteria Eclesiaacutestica (326 d C) discutindo a formaccedilatildeo do cacircnone evangeacutelico Ao escre-ver acerca de Segundo Marcos Euseacutebio primeiramente registra o depoimento de um presbiacutetero testemunhado por Papias bispo da Friacutegia por volta de 120 d C o qual dizia que embora natildeo tivesse ouvido e seguido diretamente a Jesus Marcos veio a escrever sobre suas accedilotildees por ter sido disciacutepulo e inteacuterprete do apoacutestolo Pedro (CESAREacuteIA III 39 15) Euseacutebio citaria ainda outros Pais da Igreja como Irineu (185 d C) e Clemente (195 d C) e justificaria a criaccedilatildeo do texto em muito pela insistecircncia da comunidade para que um relato evangeacutelico fosse escrito

A figura desse Marcos segundo o testemunho biacuteblico (TENNEY 2008 v 4 p 117) poderia ser construiacuteda a partir da fuga de Pedro da prisatildeo o apoacutestolo

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logo se dirigiu ldquoagrave casa de Maria matildee de Joatildeo tambeacutem chamado Marcos onde muita gente se havia reunido e estava orandordquo (Atos dos Apoacutestolos 1212 - ARA) Marcos cujo nome hebraico era Joatildeo parece ter sido um jovem financeiramente abastado levando-se em conta o fato de sua matildee acolher a receacutem-nascida co-munidade cristatilde em sua proacutepria casa pondo inclusive servos agrave disposiccedilatildeo dos seus integrantes (Atos dos Apoacutestolos 1213) Um detalhe interessante sobre a figura de Maria matildee de Marcos eacute seu provaacutevel status de viuacuteva uma vez que a propriedade era considerada como dela o que seria inconcebiacutevel agrave eacutepoca caso o marido ainda vivesse

O valor da mulher oriental no periacuteodo de Jesus estava ligado agrave fecundidade e ao lar natildeo se comparando ao homem na perspectiva da religiatildeo (JEREMIAS 1983 p 493) Contudo o papel desempenhado por Maria junto a essa comuni-dade cristatilde chama ainda a atenccedilatildeo para a importacircncia de natildeo se subestimar a atuaccedilatildeo das mulheres no ambiente cristatildeo natildeo apenas no sustento dos evange-lizadores mas sobretudo na divulgaccedilatildeo da mensagem de Jesus desde os dias em que o Nazareno iniciou sua missatildeo na Galileia Os registros evangeacutelicos mostram Jesus sempre disposto a posicionar a figura da mulher dentro do vindouro Reino de Deus dando-lhe voz e importacircncia ndash tanto por meio dos diaacutelogos estabelecidos com mulheres como por paraacutebolas contadas cujo enredo as tinha como personagens

Joatildeo Marcos tambeacutem possuiacutea parentesco com o proeminente liacuteder cristatildeo Barnabeacute (Colossenses 410) que o levou em sua primeira viagem missionaacuteria com Paulo (Atos dos Apoacutestolos 135) Entretanto agrave eacutepoca da empreitada Joatildeo acabou retornando a Jerusaleacutem (Atos dos Apoacutestolos 1313) Os motivos dessa desistecircncia satildeo desconhecidos sabe-se no entanto que eles foram prejudiciais a ponto de separar Paulo e Barnabeacute nas viagens posteriores (Atos dos Apoacutestolos 1537-39a) Tempos depois o jovem viria a ser considerado com respeito por Paulo aquele que antes o rejeitara (Colossenses 410 1Timoacuteteo 411 Filemom 24) Tambeacutem Pedro diria ldquoMarcos meu filhordquo (1Pedro 513) ao citaacute-lo como companheiro na chamada ldquoBabilocircniardquo ndash provavelmente Roma

Haacute quem infira ldquoassinaturas ao peacute do quadrordquo ou seja evidecircncias autorais textuais deixadas no proacuteprio evangelho (POHL 1998) Um exemplo eacute o excerto de Marcos 1017-22 o qual se refere ao encontro de Jesus com um homem rico tambeacutem relatado em Mateus 1916-22 e Lucas 1818-23 Para alguns estudiosos eacute sugerido um testemunho pessoal no versiacuteculo 21 ldquoJesus entatildeo tendo olhado para ele com olhos de amor []rdquo (traduccedilatildeo nossa) Uma informaccedilatildeo dessa natureza argumentam esses estudiosos somente poderia ser registrada pela pessoa presente em tal situaccedilatildeo ou seja o jovem e rico Joatildeo Marcos de Atos dos Apoacutestolos

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Ainda que haja consenso na Tradiccedilatildeo quanto agrave autoria de Segundo Marcos o mesmo natildeo se pode afirmar no que diz respeito ao local de publicaccedilatildeo embora a inclinaccedilatildeo da maioria seja Roma (CARSON MOO MORRIS 1997 p 107) Tambeacutem quanto agrave data de criaccedilatildeo do texto quatro satildeo as deacutecadas sugeridas Sendo a primeira delas os anos 40 d C jaacute se mostra evidente o texto escrito ser o produto de uma tradiccedilatildeo preacute-literaacuteria extensa jogando luz sobre o caraacutecter oral do evangelho Endossa-se aqui a suposiccedilatildeo da publicaccedilatildeo de Segundo Marcos ter ocorrido em meados dos anos 60 d C muito em funccedilatildeo de seu conteuacutedo e do que disseram os primeiros liacutederes acerca de sua produccedilatildeo

A principiante feacute cristatilde do I seacutec estava imersa em um amaacutelgama religioso que a ela fortemente se opunha Por um lado as pressotildees teoloacutegicas dos judeus como os escritos neotestamentaacuterios bem expotildeem por outro a repressatildeo do Im-peacuterio Romano a partir do governo de Nero (CAIRNS 1995 p 73) quando teve iniacutecio o grande massacre tanto de judeus como de cristatildeos crentes opositores agrave religiatildeo oficial sendo estes torturados como uma forma de entretenimento puacuteblico (GONZAacuteLEZ 1995 p 25) Justifica-se assim a feitura de Marcos como o apelo agrave firmeza em resposta a difiacuteceis tempos de perseguiccedilatildeo e martiacuterio e o combate ao sincretismo das divisotildees religiosas

Voltando ao evangelho como texto literaacuterio Marcos eacute parte do tetraeuangeacute-lion ldquoisto eacute os quatro Evangelhos vistos como um conjunto de documentos sal-viacuteficos que tinham o mesmo valor veio a ter ampla circulaccedilatildeo e reconhecimento como nos mostram os escritos de Irineu (bispo de Lyon por volta de 180 d C)rdquo (ALAND ALAND 2013 p 53) Seu gecircnero eacute ldquoevangelhordquo propriamente dito algo proacuteprio do cristianismo ou seja ldquoum modo de expressar-se uacutenico que natildeo pode ser identificado com nenhuma outra obra do tempo antigordquo (MARCON-CINI 2012 p 9) Embora haja quem veja semelhanccedilas dos escritos evangeacutelicos com os modelos das leituras feitas nas sinagogas ou que os vincule ldquoao gecircnero da biografia greco-romana e suas variantesrdquo (ZABATIEIRO LEONEL 2011 p 41) o objetivo dos evangelistas era divulgar a mensagem de Jesus particu-larmente para as pessoas natildeo radicadas na Palestina e a forma adotada para isso foi inovadora

A liacutengua de Marcos eacute o grego koineacute em sua variaccedilatildeo semiacuteticavulgar o que a torna fascinante Um livro escrito para o povo

[] composto de aproximadamente 95 narrativas com 11240 palavras 1345 vocaacutebulos 30 aacutepax ou seja vocaacutebulos natildeo usados em outros lugares do Novo Testamento A liacutengua eacute o grego popular da koineacute com semitismos (talithagrave kum effethacirc korbacircn Abbagrave) poreacutem natildeo de tal modo

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a justificar um original aramaico com alguns latinismos (praitoacuterion kentyrion) com estilo vivaz proacuteprio da liacutengua falada pouco cuidado gramatical e sintaticamente que privilegia a parataxe ou coordenaccedilatildeo assindeacutetica (cf 630-33) inclinado a empregar anacolutos (cerca de 20) com repeticcedilatildeo de frases Tudo evidencia o estilo do narrador atestado tambeacutem pelo frequente lsquologo em seguidarsquo e pelo presente histoacuterico (150 ocorrecircncias) [] (MARCONCINI 2012 p 90)

32 ETAPAS DE ANAacuteLISE

Esta eacute de longe a parte que exige maior dedicaccedilatildeo do pesquisador pois natildeo se resume a fichar autores mesmo que de maneira criacutetica Trata-se do exame deta-lhado do corpus em sua liacutengua original Nesse ponto faz-se sobretudo necessaacuteria a escolha consciente do texto grego que melhor ofereccedila subsiacutedios de consulta a respeito de sua formaccedilatildeo Por isso as opccedilotildees adotadas pela autora deste artigo satildeo continuamente as publicaccedilotildees da Sociedade Biacuteblica da Alemanha como a quinta ediccedilatildeo do Novo Testamento grego (ALAND 2014)

A periacutecope selecionada deve entatildeo ser lida em grego ndash ato imprescindiacutevel pois ldquoseja para a estrutura seja para a especificidade do ato de ler o texto natildeo oferece suporte a um significado inequiacutevoco mas eacute lsquoo lugar de possiacuteveis significadosrsquordquo (EGGER 1994 p 92) Isto feito o texto eacute quebrado em oraccedilotildees seus elementos analisados morfossintaticamente e todo o conjunto disposto em diagrama De fato a anaacutelise morfossintaacutetica natildeo eacute um fim em si mesma mas o meio pelo qual se poderaacute dispor o texto analiticamente dividindo-o em partes ainda menores na diagramaccedilatildeo semacircntico-gramatical 119 processo em que melhor se visualizam as relaccedilotildees de niacutevel estrutural

Na disposiccedilatildeo gramatical do texto podem-se observar todos os seus consti-tuintes linguiacutesticos e as regras que os coordenam (EGGER 1994 p 74) Jaacute na disposiccedilatildeo semacircntica satildeo retratadas ldquoas relaccedilotildees de significadofunccedilatildeo entre palavras frases oraccedilotildees sentenccedilas e ateacute mesmo paraacutegrafosrdquo 120 (DUVALL GUTHRIE 1998 p 40 traduccedilatildeo nossa) pois ldquosob o aspecto semacircntico o texto eacute visto como o conjunto de relaccedilotildees (estrutura) entre os seus elementos significantes forma um todo constituindo uma espeacutecie de lsquomicro-universo semacircnticorsquordquo (EGGER 1994 p 91)

119 Embora siga o modelo proposto por Guthrie e Duvall (1998) a diagramaccedilatildeo semacircntico-gramatical aqui empregada eacute uma adaptaccedilatildeo feita por Viriacutessimo (2018) Sendo uma ferramenta ainda em desenvolvimento ela eacute por isso amplamente passiacutevel de receber criacuteticas120 ldquothe meaningfunction relationships between the words phrases clauses sentences and even paragraphsrdquo

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O diagrama conteacutem o texto grego e uma traduccedilatildeo em portuguecircs de aparecircncia interlinear Esta traduccedilatildeo eacute preliminar vindo a sofrer sucessivas revisotildees ateacute que se constitua a proposta final Contudo ela eacute importante em funccedilatildeo de o texto original ter sido redigido em grego de modo que Wegner (1998 p 28) a considera o ldquoprimeiro passo a ser realizado na exegeserdquo Uma inovaccedilatildeo da dia-gramaccedilatildeo neste artigo eacute a numeraccedilatildeo para referenciaccedilatildeo sobrescrita antes dos termos aos quais se refere Como uacuteltimo passo tem-se a redaccedilatildeo do comentaacuterio das relaccedilotildees linguiacutesticas observadas

Exemplo

Marcos 11-4

Continua

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continuaccedilatildeo

O substantivo (1) introduz Marcos delimitando o tema de toda a obra sob a construccedilatildeo em genitivo propriamente dito (2 3 4) Haacute um sentido baacutesico de posse entre (2) (3) e (4) embora este natildeo tenha sido representado por setas Optou-se por deixar os modificadores juntos na mesma linha tanto (3) como (4) por eles funcionarem como uma unidade devendo por isso ser interpretados em conjunto Outro sentido passiacutevel de ser destacado tambeacutem natildeo exposto no

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diagrama eacute de especificaccedilatildeo entre os elementos em (3) e de relacionamento em (4)

Na parte a do versiacuteculo 2 o adveacuterbio (5) verifica ou seja fornece uma evidecircncia que comprove a validade da introduccedilatildeo por meio da foacutermula de invocaccedilatildeo veterotestamentaacuteria em perfeito resultativo (6) o qual se refere a ldquouma accedilatildeo inteiramente acabada e por conseguinte tambeacutem o resultado de uma accedilatildeo passada cujos efeitos perduram (ideia de estado)rdquo (HORTA 1991 p 208) O redobro (γε-) caracteriacutestico dos tempos passados marca esse grau de acabamento da accedilatildeo que na esfera expressa em (7) reforccedila ser o agora o momento do cumprimento de algo predito O autor pela obra metoniacutemia em (8) que ligada a (7) o especifica como ecircnfase ndash repeticcedilatildeo do artigo equivalendo a adjunto adnominal enfaacutetico Na parte b do versiacuteculo a partiacutecula demonstrativa (9) chama a atenccedilatildeo para a accedilatildeo que a segue (ROBINSON 2012 p 430) o verbo (10) prefixado pela preposiccedilatildeo que despede o objeto em (11) ldquopara determinado propoacutesitordquo (LOUW NIDA 2013 p 172) Esse objeto (11) tem sua natureza especificada em (15) e pertence a (12) Tambeacutem estaacute expressa a relaccedilatildeo de posse entre (13) e (14) (16) e (17)

No versiacuteculo seguinte a construccedilatildeo (18) e (19) explica como se deu a accedilatildeo (10) sobre o objeto (11) e qual foi a sua esfera (20) de ocorrecircncia Duas exortaccedilotildees entatildeo satildeo expressas e o contraste entre elas estaacute no tempo verbal Por um lado tem-se o imperativo aoristo (21) traduzindo ldquoordem particular e momentacircneardquo por outro haacute o imperativo presente (24) exprimindo ldquouma ordem geral que perdurardquo (HORTA 1991 p 282) Transmitem assim sob ilustraccedilatildeo a impressatildeo de grande urgecircncia e necessidade de permanecircncia tanto a forccedila de significado do verbo (19) como o seu discurso (21) e (24) A relaccedilatildeo de posse em (22) e (23) eacute um paralelismo com (16) e (17) especificando em (23) a figura do (17) Ainda outra relaccedilatildeo de posse haacute entre (25) e (26)

No versiacuteculo final sem preocupaccedilatildeo com o processo mas acompanhando o tempo da narraccedilatildeo histoacuterica o tempo aoristo em (27) expressa a accedilatildeo instantacircnea (WALLACE 2009 p 554) de chegada do sujeito (28) especificado em (29) ndash subjetivaccedilatildeo do particiacutepio Nota-se um paralelismo entre as esferas expressas em (20) e (30) de modo que (28) descreve (18) dando-lhe detalhes viacutevidos A accedilatildeo (27) entatildeo eacute ligada por (31) agrave maneira como aconteceu (32) ndash noccedilatildeo adverbial presente no modo particiacutepio A mensagem (33) dessa circunstacircncia eacute especiacutefica (34) para um fim (35)

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33 NOTAS

Esta parte do meacutetodo a seguir consiste na elaboraccedilatildeo de notas explicativas acerca de palavras-chave ou passiacuteveis de esclarecimento no corpus as quais acabam por compor um dicionaacuterio proacuteprio do pesquisador Segundo Egger (1994) o processo de compreensatildeo dos significados de um texto depende do repertoacuterio de conhecimentos preacutevios do leitor jaacute que sem o arcabouccedilo cultural necessaacuterio ele natildeo seraacute capaz de apreender os sentidos velados de um escrito especialmente se este for de tempos longiacutenquos Acerca do Novo Testamento demanda-se ldquoque se aproximem ao menos os principais paralelos do ambiente p ex os do AT e do mundo heleniacutestico contemporacircneordquo (EGGER 1994 p 92)

Os verbetes da anaacutelise que se segue foram escritos com base na Enciclopeacutedia da Biacuteblia (TENNEY 2008) e apresentados com o item a respeito do qual se pretende dissertar em negrito e em portuguecircs conforme a traduccedilatildeo interlinear seguido da forma grega em itaacutelico como aparece no corpus e introduzida pela abreviaccedilatildeo ldquogrrdquo Veja a seguir

Versiacuteculo 1

Evangelho gr εὐαγγελίου Vocaacutebulo que em sua origem ldquonatildeo se referia aos quatro escritos mas a anuacutencios proclamados oralmenterdquo (MARCONCINI 2012 p 5) Sob o advento messiacircnico significa o bom anuacutencio da possibilidade de recomeccedilo e renovaccedilatildeo Seu uso eacute encontrado no Antigo Testamento com o sentido religioso da comunicaccedilatildeo da mensagem profeacutetica (cf Isaiacuteas 527) bem como para a anunciaccedilatildeo feita em cenaacuterios de guerra ou por ocasiatildeo do nascimento de uma crianccedila (cf Jeremias 2015 1Samuel 319) Esse segundo uso estaacute conectado agrave forma de uso que os gregos faziam da palavra ndash a ideia da proclamaccedilatildeo de uma notiacutecia alegre de cunho poliacutetico ou pessoal referindo-se agrave recompensa dada ao mensageiro que proclamou tal ldquoboa novardquo Novamente trata-se de uma palavra associada a contextos basicamente orais

Jesus gr Ἰησοῦ A Jesus eacute atribuiacutedo o papel mais importante em todo o Novo Testamento sendo apresentado como a chave de interpretaccedilatildeo do Antigo Nos Evangelhos Ele eacute apresentado como um homem judeu nascido milagrosa-mente nos limites da Palestina (cf Mateus 21 Lucas 24-7) pela concepccedilatildeo espiritual de Maria virgem por ainda ser noiva de Joseacute na ocasiatildeo (cf Mateus 118 Lucas 127) Sabe-se pouco acerca de sua infacircncia (cf Mateus 219-23 Lucas 241-52 416) o relato de suas accedilotildees estatildeo concentrados em sua idade adulta (cf Lucas 323)

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Cristo gr Χριστοῦ Do hebraico mashiach aquele sobre o qual Deus der-ramou a autoridade sacerdotal e real do esperado messias dos judeus (STERN 2008 p 26) Esse tiacutetulo era concedido a reis e a sacerdotes ensejando portanto aleacutem da religiosa uma interpretaccedilatildeo poliacutetica sobre Jesus

[filho de Deus] gr [υἱοῦ θεοῦ] Pode ter sido parte original ou um acreacutescimo posterior ldquopara indicar que natildeo se tem certeza quanto ao texto original as palavras υἱοῦ θεοῦ aparecem no texto entre colchetesrdquo (OMANSON 2010 p 56) Opta-se aqui pela originalidade visto que a paternidade celestial dispen-sada sobre Jesus seraacute confirmada na forma de ilustraccedilatildeo no evangelho poucos versiacuteculos depois (Marcos 110-11) sendo o Jesus evangeacutelico uma percepccedilatildeo do evangelista Assim a expressatildeo deve ser entendida como a preocupaccedilatildeo de um autor que escreve para romanos acostumados a cultuar heroacuteis nacionais atribuiacutedos de caracteriacutesticas divinas por forccedila do arcabouccedilo miacutetico grego na religiatildeo imperial

evangelho de jesus Cristo filho de Deus gr τοῦ εὐαγγελίου Ἰησοῦ Χριστοῦ [υἱοῦ θεοῦ] Mais do que pertencer a Jesus o ldquoevangelhordquo eacute o designador da boa notiacutecia acerca daquele que se tornou ldquoportador de toda novidade sendo portador de si mesmordquo (MARCONCINI 2012 p 7)

Versiacuteculo 2

Isaiacuteas o profeta gr τῷ Ἠσαΐᾳ τῷ προφήτῃ Inspirado orador que previu a vinda do salvador e servo sofredor Jesus (Isaiacuteas 9 53) cerca de 700 anos antes de ela acontecer Foi um importante profeta veterotestamentaacuterio com clara influecircncia na esfera poliacutetico-religiosa de seu tempo (2Reis 191-7) Ao longo da histoacuteria o profetismo entre os hebreus assumiu um caraacuteter vocacional e natildeo institucional em contraste agrave profecia profissional cultual popular eou monaacuter-quica (FOHRER 1982 p 289) O que se quer dizer com isso eacute que os profetas profissionais perderam sua importacircncia para ldquoos grandes profetas individuais incluindo Amoacutes e Oseacuteias Isaiacuteas e Miqueacuteias Sofonias e Jeremias Ezequiel e em parte o Deuteroisaiacuteasrdquo (FOHRER 1982 p 291) agrave medida que o povo tomava consciecircncia de que estes estavam certos contrariamente aos profetas profissionais Foi dessa maneira que se deu iniacutecio agrave compilaccedilatildeo dos discursos dos grandes profetas individuais formando coleccedilotildees que posteriormente ficaram conhecidas como escritura sagrada (FOHRER 1982 p 291)

Eia envio meu mensageiro diante da tua face gr Ἰδοὺ ἀποστέλλω τὸν ἄγγελόν μου πρὸ προσώπου σου A citaccedilatildeo no versiacuteculo 2 pertence ao profeta

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Malaquias (Malaquias 31) enquanto a metoniacutemia enfatiza Isaiacuteas A Biacuteblia que os cristatildeos do primeiro seacuteculo liam e ouviam era a Septuaginta ndash a traduccedilatildeo grega do Antigo Testamento tradicionalmente atribuiacuteda a 72 filoacutelogos durante o periacuteodo poacutes-exiacutelico conhecida tambeacutem como LXX Grande parte das citaccedilotildees no NT era baseada nessa traduccedilatildeo e muitas vezes por meio da memoacuteria auditiva que se tinha das leituras feitas em voz alta durante as concentraccedilotildees populares Ao citar apenas Isaiacuteas Marcos parece ter cometido um ato falho que priorizou o profeta maior ou seja aquele que tinha a maior quantidade de escritos sob a influecircncia divina A seguir uma exposiccedilatildeo paralela da fonte na LXX (RAHLFS 1979) e da citaccedilatildeo em Marcos

LXX NTMalaquias 31 Marcos 12ἰ δ ο ὺ ἐ γ ὼ ἐξαποστέλλω τὸν ἄγγελόν μου καὶ ἐπιβλέψεται ὁδὸν π ρ ὸ π ρ ο σώ π ο υ μου καὶ ἐξαίφνης ἥξει εἰς τὸν ναὸν ἑαυτοῦ κ ύριος ὃν ὑμεῖς ζητεῖτε κ α ὶ ὁ ἄ γ γ ε λ ο ς τ ῆ ς δ ι α θ ή κ η ς ὃν ὑμεῖς θέλετε ἰ δ ο ὺ ἔ ρ χ ε τ α ι λ έ γ ε ι κ ύ ρ ι ο ς παντοκράτωρ

Καθὼς γέγραπται ἐν τῷ Ἠσαΐᾳ τῷ προφ ήτ ῃ Ἰδο ὺ ἀποστέλλω τὸν ἄγγελόν μου πρὸ προσώπου σου ὅς κατασκευάσει τὴν ὁδόν σου∙

Isaiacuteas 403 Marcos 13φ ω ν ὴ β ο ῶ ν τ ο ς ἐ ν τ ῇ ἐ ρ ή μ ῳ ῾Ετοιμάσατε τὴν ὁ δ ὸ ν κ υ ρ ί ο υ εὐθείας ποιε ῖτε τὰς τρίβους τοῦ θεοῦ ἡμῶν

φ ο ν ὴ β ο ῶ ν τ ο ς ἐ ν τ ῇ ἐ ρ ή μ ῳ Ἑτοιμάσατε τὴν ὁ δ ὸ ν κ υ ρ ί ο υ εὐθείας ποιε ῖτε τὰς τρίβους αὐτοῦ

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Versiacuteculo 3

Deserto gr τῇ ἐρήμῳ Frequente cenaacuterio no texto biacuteblico o deserto tinha grande influecircncia na vida e na cultura da Palestina (TENNEY 2008 v 2 p 95) Em Marcos Joatildeo estava proacuteximo ao rio Jordatildeo na altura de Nazareacute da Galileacuteia (cap 1 vv 5 e 9)

Senhor gr κυρίου Trata-se de um tiacutetulo dado a Deus e a Cristo com a ideia de ldquoaquele que governa a humanidade com autoridade sobrenaturalrdquo (LOUW NIDA 2010 p 126)

Versiacuteculo 4

Joatildeo o que batiza gr Ἰωάννης [ὁ] βαπτίζων Personagem neotestamentaacuterio tido como aquele que antecederia a vinda do Cristo (Mateus 3 Marcos 12-11 Lucas 31 15-17 21-22) Filho de sacerdote (Lucas 18-25 157-80) Joatildeo Batista rompeu com as expectativas eclesiaacutesticas de sua linhagem exercendo uma vocaccedilatildeo na medida dos profetas antigos sendo por vezes associado agrave figura de Elias (Mateus 117-14) ndash ldquoesse formidaacutevel asceta frequentador do deserto em sua vestimenta grosseira fazia reviver a imagem popular de um profeta inspirado e como os antigos profetas anunciava o iminente julgamento de Deus sobre um povo infielrdquo (DODD 1977 p 137)

Batismo gr βάπτισμα Vocaacutebulo que literalmente significa imersatildeo mas que na mentalidade judaica do seacutec I ldquopoderia incorporar ambas as realidades espirituais e os siacutembolos fiacutesicos Em outras palavras quando algueacutem falava de batismo comunicava ambas as ideias ndash a realidade e o ritualrdquo (WALLACE 2009 p 370 grifo do autor)

Batismo de arrependimento gr βάπτισμα μετανοίας Expressatildeo usada nos evangelhos (Marcos 14 Lucas 38) que revela uma das tarefas da missatildeo a qual Joatildeo estava atrelado No contexto da personagem parece que

o batismo de Joatildeo Batista reflete muito mais o costume dos banhos rituais entre os judeus do que o tipo de batismo praticado pelos cristatildeos que era um siacutembolo de iniciaccedilatildeo na comunidade cristatilde baseada na feacute em Jesus Cristo e na lealdade para com ele como Senhor e Salvador (LOUW NIDA 2013 p 479)

Libertaccedilatildeo gr ἄφεσις Consiste no ldquocancelamento da culpa do pecadordquo121 (BAUER 1979 p 125 traduccedilatildeo nossa)

121 ldquocancellation of the guilt of sinrdquo

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Pecados gr ἁμαρτιῶν A transgressatildeo da medida justa em que se deveria viver tanto conforme as coisas humanas como as divinas (BAUER 1979 p 43) Por medida justa na esfera biacuteblica o paracircmetro eacute o caraacuteter de Deus (Deu-teronocircmio 324 Salmos 117 Miqueacuteias 68) A humanidade criada agrave imagem e semelhanccedila de Deus (Gecircnesis 127) assim foi feita para viver e ser conforme seu Criador (Isaiacuteas 437 1 Coriacutentios 1031) O pecado consiste pois numa desconfiguraccedilatildeo do ser humano em referecircncia a Deus Em diferentes textos do Novo Testamento (Hebreus 1012 Gaacutelatas 14 1 Joatildeo 17) nota-se que a condiccedilatildeo pecaminosa da humanidade natildeo eacute um simples erro do alvo mas um estado de degradaccedilatildeo que soacute pocircde ser transposto por Jesus em sua entrega voluntaacuteria para morrer agrave semelhanccedila dos animais usados nos sacrifiacutecios judaicos

Perdatildeo dos pecados gr εἰς ἄφεσιν ἁμαρτιῶν O desconhecido autor da Epiacutestola aos Hebreus desenvolve a ideia de perdatildeo em comparaccedilatildeo com a lei mosaica Tratando-se de uma representaccedilatildeo do que haveria de vir (Hebreus 101) a lei teve em Jesus o seu cumprimento pois por ele foi ldquooferecido para sempre um uacutenico sacrifiacutecio pelos pecadosrdquo (Hebreus 1012) Os sacrifiacutecios de animais embora fossem aceitos por Deus dentro das condiccedilotildees estabelecidas natildeo eram suficientes para apagar a consciecircncia de pecado ou seja a culpa que reside sobre aquele que peca visto que vez apoacutes vez ao espiar o sangue de um cordeiro o indiviacuteduo se lembrava de sua condiccedilatildeo de portador da transgressatildeo (Hebreus 103) O perdatildeo dos pecados configura-se pois como aquilo que tem o poder que a lei natildeo tinha a anulaccedilatildeo total da culpa (Hebreus 10 17)

34 INTERPRETACcedilAtildeO

Eis a uacuteltima etapa do meacutetodo Nela satildeo encontradas a proposta definitiva de traduccedilatildeo amparada sobre o tripeacute exatidatildeo clareza e naturalidade (BARNWELL 2011 p 25) o esboccedilo do texto parcialmente formulado neste artigo conforme os tiacutetulos encontrados na obra Synopsis Quattuor Evangeliorum (ALAND 1967) e o comentaacuterio final em que se privilegiam apenas alguns aspectos de todo o material produzido respeitando-se as conclusotildees obtidas das relaccedilotildees intra e extra textuais dos elementos estruturantes do texto de maneira a explicitar o que seja relevante para dentro do escopo da pragmaacutetica Exemplo

Esboccedilo

11 O PROacuteLOGO12-4 JOAtildeO AQUELE QUE BATIZA

12-3 Profecia veterotestamentaacuteria14 O surgimento de Joatildeo

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Proposta de traduccedilatildeo

1 Iniacutecio do evangelho de Jesus Cristo Filho de Deus 2 Assim como perma-nece escrito em Isaiacuteas o profeta ldquoAtenccedilatildeo Despeccedilo antes de tua presenccedila o meu mensageiro o qual colocaraacute em ordem o teu caminho 3 Uma voz trovejante no deserto Preparai o caminho do Senhor fazei retas as suas veredasrdquo 4 Surgiu no deserto Joatildeo aquele que batiza anunciando o batismo de arrependimento para o perdatildeo dos pecados

Reflexatildeo

O primeiro versiacuteculo de Marcos uma sentenccedila que sendo incompleta em si funciona como o tiacutetulo a obra define os paracircmetros de leitura da histoacuteria que haacute de ser contada o evangelho pertence a Jesus Eacute esse personagem o iniacutecio da causa evangeacutelica bem como o tema do livro Sem a preocupaccedilatildeo de fornecer dados histoacutericos Marcos o apresenta como o libertador prometido e resume sua genealogia filho de Deus Ao se pensar nos primeiros leitores-ouvintes pessoas ansiosas por novos tempos de prosperidade e paz a imagem de um Jesus heroico e divino mais forte que a humanidade mortal cativa a atenccedilatildeo para o que haacute de ser dito

No versiacuteculo seguinte Marcos gera ainda mais expectativa em seu puacuteblico recorrendo agrave memoacuteria coletiva das profecias antigas para mostrar a validade de sua mensagem Ele assim o faz por meio da foacutermula ldquoconforme escritordquo mos-trando sua credencial de inspiraccedilatildeo Marcos inaugura a interpretaccedilatildeo evangeacutelica do Antigo Testamento Pode-se inferir que atribuindo a referecircncia somente a Isaiacuteas profeta de singular importacircncia o evangelista procura confirmar suas palavras como dotadas da mesma autoridade da tradiccedilatildeo profeacutetica de Israel E essa antiga profecia invocada por Marcos permanece presente enquanto o texto existir Surge entatildeo o mensageiro que haveria de ser enviado da parte de Deus

Antecedendo o Cristo esperado o mensageiro aparece sob a forma de um som uma voz que se faz ouvir no deserto Satildeo duas as exortaccedilotildees que essa voz traz agora eacute hora de preparar o caminho do Senhor e permanentemente se deve preparar as suas veredas Uma mensagem urgente e contiacutenua A voz entatildeo simplesmente aparece sob o nome de Joatildeo Do ponto de vista de quem ouve a voz tudo o que foi dito ateacute agora se afigura como o preluacutedio perfeito para a chegada do novo personagem ndash que natildeo eacute o messias mas possui grande importacircncia histoacuterica na tradiccedilatildeo profeacutetica

Eis uma obra prima a imagem desse Joatildeo que surge no ermo lugar como um som trovejante irrompendo e se transformando gradativamente em homem

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numa espeacutecie de efeito sinesteacutesico Joatildeo eacute o que batiza ou seja aquele que anuncia a outros a imersatildeo na mudanccedila da forma como se vecirc e se pensa a proacutepria existecircncia para assim se alcanccedilar a possibilidade de soltura das amarras que aprisionam O misteacuterio sendo revelado sobre a figura angelical faz com que a seacuteria narrativa assuma a delicadeza de uma contaccedilatildeo de histoacuterias sem contudo anular a forccedila das verdades para aqueles que nelas creem

CONSIDERACcedilOtildeES FINAISAs etapas de execuccedilatildeo neste artigo foram aqui descritas partindo de 2

Anaacutelise do Discurso em que se procurou elucidar essa aacuterea da linguiacutestica de maneira acessiacutevel a leitores especializados em outros saberes Em 3 Metodo-logia o meacutetodo foi explanado em detalhes nos toacutepicos subsequentes Em 31 Contextualizaccedilatildeo pretendeu-se a delimitaccedilatildeo dos sentidos de produccedilatildeo do texto Em 32 Etapas de Anaacutelise foi disposta a diagramaccedilatildeo semacircntico-gramatical desse texto e uma breve anaacutelise de suas relaccedilotildees linguiacutesticas Em seguida em 33 Notas houve a elucidaccedilatildeo de termos especiacuteficos constantes do fragmento examinado Por fim em 34 Interpretaccedilatildeo a autora pretendeu alcanccedilar uma compreensatildeo mais apurada do enredo

Conclui-se que o meacutetodo apresentado figura como um instrumental interes-sante de pesquisa e de ensino ndash objetivo primeiro para o qual foi desenvolvido ndash oferecendo subsiacutedios para os dispostos a se debruccedilar sobre o aprofundamento de sua praacutetica acadecircmica eou religiosa Num contexto de impressionante preconceito da Academia para com a Biacuteblia como objeto de estudo literaacuterio eacute essencial que o inteacuterprete do texto biacuteblico esteja disposto a reinventar sua praacutetica de pesquisa por meio da dialeacutetica multidisciplinar Existe uma instrumentalidade na diversidade das teorias cientiacuteficas e esta pode ser aproveitada sem que se extrapolem os possiacuteveis sentidos do texto

Como ressalta Egger (1994 p 9) ldquouma metodologia neotestamentaacuteria eacute antes de tudo uma introduccedilatildeo agrave correta leitura dos textos do Novo Testamentordquo As distacircncias existentes entre um texto antigo e o leitor atual constituem um grande desafio dada a imensa diferenccedila entre uma eacutepoca e outra natildeo raro se afigurando praticamente impossiacutevel o pleno resgate do entendimento do modo de pensar de um narradornarrataacuterio inserido no contexto originaacuterio e o leitorinteacuterprete atual voltado para a pesquisa na constante busca do conhecimento Tanto a liacutengua como a cultura em geral passam por mudanccedilas as mais variadas ao longo do tempo e caso o pesquisador tenha um compromisso confessional com o texto ele lhe imporaacute tambeacutem distanciamentos de ordem divina (LOPES 2004 p 25)

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O reconhecimento das aparentes barreiras exige o esforccedilo do estranhamento por parte desse leitorinteacuterprete que por um lado pode estar preso agrave familia-ridade encontrada no texto ou que por outro lado pode ler equivocadamente sob seu perspectivismo o que lhe eacute desconhecido Por isso trabalhar com textos da Antiguidade eacute tambeacutem uma provocaccedilatildeo das Ciecircncias Sociais Assim para ambas as situaccedilotildees supracitadas pode-se parafrasear o antropoacutelogo Gilberto Velho (1978 p 45) e dizer que eacute necessaacuterio ao que se propotildee agrave pesquisa o confronto intelectual e emocional de diferentes versotildees e interpretaccedilotildees do texto a fim de se tornar capaz de estranhaacute-lo Soacute assim se consegue alcanccedilar a erudiccedilatildeo prometida pela reflexatildeo cientiacutefica

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ldquoNO DIA DO SENHORrdquo ndash OS ATOS O EVENTO A AUTOEXPRESSAtildeO

Uma breve reflexatildeo sobre as tradiccedilotildees lituacutergicas e sobre os termos liturgia culto e adoraccedilatildeo

Theoacutegenes Eugecircnio Figueiredo122

RESUMO No presente artigo satildeo apresentados os nuacutecleos lituacutergicos herdados do cris-

tianismo primitivo que no decorrer dos seacuteculos tiveram em si alguns elementos agregados constituindo-se posteriormente em grandes famiacutelias lituacutergicas Os protestantes satildeo caracterizados historicamente pela diversidade lituacutergica por possuiacuterem nove famiacutelias lituacutergicas No Brasil os protestantes se caracterizam como igrejas livres que fogem das foacutermulas lituacutergicas preacute-fixadas Liturgia culto e adoraccedilatildeo satildeo conceitos abordados atraveacutes dos siacutembolos ldquoos atosrdquo ldquoo eventordquo e ldquoa autoexpressatildeordquo Comenta-se a criacutetica de Kierkgaard agrave inversatildeo das funccedilotildees dos partiacutecipes de um evento cultual O evento culto eacute definido como o trabalho do povo e o evento da ldquovisatildeo de Isaiacuteasrdquo eacute apresentado como um dos modelos cultuais

Palavras-chave Culto Liturgia Adoraccedilatildeo Famiacutelias lituacutergicas Batistas

ABSTRACTThis article presents the liturgical nuclei inherited from primitive Christianity

which over the centuries had some elements aggregated to later constituting large liturgical families Protestants are historically characterized by liturgical diversity as they have nine liturgical families In Brazil Protestants are charac-terized as free churches diverting from pre-fixed liturgical formulas Liturgy worship and adoration are concepts commented by the symbols ldquothe actsrdquo ldquothe eventrdquo and ldquoself-expressionrdquo Kierkgaardrsquos critique about the inversion of the roles of participants in a worship event is commented The worship event is defined as the job of the people and the event of the ldquovision of Isaiahrdquo is commented as one of the worship models

Keywords Worship service Liturgy Worship Liturgical families Baptist

122 Doutor em Ciecircncias da Religiatildeo pela UFJF e mestre em muacutesica pela UNIRIO Professor do Curso de Licenciatura em Muacutesica com Gestatildeo da Muacutesica Eclesiaacutestica da Faculdade Batista do Rio de Janeiro - STBSB

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1 AS FAMIacuteLIAS LITUacuteRGICAS ndash O LEGADOOs elementos lituacutergicos herdados do cristianismo primitivo formaram dois

nuacutecleos o nuacutecleo da Palavra (proveniente do culto judaico que passou a ser chamado de Liturgia da Palavra nas celebraccedilotildees da Igreja Catoacutelica) e o nuacutecleo da Ceia do Senhor ou da Eucaristia Este pode ser considerado ldquocomo uma marca genuinamente cristatilderdquo123 da liturgia

Ao longo dos seacuteculos alguns elementos foram agregados a esses dois nuacutecleos da liturgia da Igreja Cristatilde surgindo uma ordo124 isto eacute ldquoum conjunto de ele-mentos e formas usados para realizar o encontro entre Deus e a comunidade E eacute a partir desse processo que se constituiacuteram as grandes famiacutelias lituacutergicas que mantecircm os nuacutecleos baacutesicos comunsrdquo125

Essas famiacutelias satildeo centralizadas em

a) Alexandria (Egito) conhecida como a liturgia de Satildeo Marcos

b) Jerusaleacutem e Antioquia (Siacuteria Ocidental) conhecida como a liturgia de Satildeo Tiago

c) Siacuteria Oriental

d) Cesareia conhecida como a liturgia de Satildeo Basiacutelio

e) Constantinopla conhecida como a liturgia bizantina ou liturgia de Satildeo Crisoacutestomo

f) Roma conhecida como a liturgia de Satildeo Pedro que se encontra em uso mais amplo no catolicismo romano

g) a liturgia gaacutelica que compreende o clatilde ocidental natildeo-romano126

Os protestantes possuem nove famiacutelias lituacutergicas tendo desde o iniacutecio o culto protestante se caracterizado pela diversidade lituacutergica O diagrama a seguir mostra essas famiacutelias

123 MARTINI 200223124 Palavra latina que significa ordem significando uma disposiccedilatildeo metoacutedica um arranjo de coisas segundo certas relaccedilotildees uma boa disposiccedilatildeo um bom arranjo um arrumaccedilatildeo (Dicionaacuterio Aureacutelio)125 MARTINI 200224126 WHITE 199728

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Diagrama 1127

Ala esquerda significa uma ruptura radical com a liturgia medieval tardia encontrando-se nela os Anabatistas que segundo uma corrente histoacuterica originou os Batistas atuais ala Centro significa os grupos mais moderados em relaccedilatildeo a uma ruptura com a liturgia histoacuterica e ala Direita mostra os grupos mais conservadores em termos de preservaccedilatildeo da liturgia histoacuterica

As igrejas de tradiccedilatildeo lituacutergica possuem os livros lituacutergicos que contecircm os ritos e as leituras de suas celebraccedilotildees Um deles eacute o Palavra do Senhor I ndash Lecionaacuterio dominical ABC que tem a sua imagem apresentada a seguir e a especificaccedilatildeo do seu conteuacutedo128

Lecionaacuterio dominicalConteacutemRito da Missa (partes fixas)Proacuteprio do tempo advento natal quaresma tempo comum etcProacuteprio dos santosVasta coleccedilatildeo de prefaacuteciosVaacuterias oraccedilotildees eucariacutesticasMissas rituais Batismo confirmaccedilatildeo profissatildeo religiosa etcMissas e oraccedilotildees para diversas necessidades pelo papa pelos bis-pos pelos governantes pela conservaccedilatildeo da paz e da justiccedila etcMissas votivas Santiacutessima Trindade Espiacuterito Santo Nossa Senhora etcMissas dos fieacuteis defuntosNo iniacutecio o Missal apresenta longa e preciosa introduccedilatildeo con-tendo a Instruccedilatildeo Geral sobre o Missal Romano e as Normas Universais para o Ano Lituacutergico e o Calendaacuterio1

127 WHITE 199729128 PERES 2018

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O Livro lituacutergico ldquoeacute um livro grande que conteacutem todo o formulaacuterio e todas as oraccedilotildees usadas nas celebraccedilotildees da missa para todo o ano lituacutergico Fitas marcadoras indicam as diversas partes da celebraccedilatildeo []rdquo129

11 OS BATISTAS BRASILEIROS E SUA TRADICcedilAtildeO LITUacuteRGICA

No Brasil o protestantismo de missatildeo chegou com suas tradiccedilotildees lituacutergicas tendo os batistas seguido a tradiccedilatildeo das ldquoigrejas livres da poacutes-Reforma e principalmente dos reavivamentos ingleses e americanos somados agraves formas de cultos das fronteiras da expansatildeo norte-americana para o oesterdquo130

O quadro a seguir mostra a data da chegada das diversas denominaccedilotildees protestantes em terra brasileira e sua linha lituacutergica

Protestantes Entrada no Brasil Igrejas livres (natildeo-lituacutergicas)Congregacionais 1855 SimPresbiterianos 1859 SimBatistas 1881 SimMetodistas 1886 SimEpiscopal 1898 Natildeo

Antonio Gouvecirca de Mendonccedila afirma que a liturgia dos batistas ldquoeacute uma das mais informaisrdquo131 isso significa dizer que os batistas tecircm uma praacutetica lituacutergica ldquoque foge a foacutermulas prefixadas aos rituais e aos aparato lituacutergico [] O culto e demais rituais preestabelecidos satildeo virtualmente condenados e quase sempre com a alegaccedilatildeo de que sugerem a missa catoacutelicardquo132 Donald P Hustad afirma que ldquoa heranccedila dos evangeacutelicos tiacutepicos eacute uma adoraccedilatildeo natildeo-liacutetuacutergica isto quer dizer eles rejeitam todas as formas ou liturgias estabelecidasrdquo133

Entatildeo se as igrejas batistas satildeo de tradiccedilatildeo lituacutergica livre as liturgias satildeo fundamentadas em quecirc

2 LITURGIA CULTO E ADORACcedilAtildeO ndash OS ATOS O EVEN-TO E A AUTOEXPRESSAtildeO CULTUAL

O termo liturgia eacute muitas vezes considerado sinocircnimo dos termos culto e adoraccedilatildeo Entretanto eacute necessaacuterio que se faccedila a distinccedilatildeo entre esses termos Os

129 PERES 2018130 MENDONCcedilA e VELASQUES FILHO 2002171 Grifo nosso131 MENDONCcedilA e VELASQUES FILHO 200244132 MENDONCcedilA e VELASQUES FILHO 2002156133 HUSTAD 1986166

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atos praticados durante o culto satildeo considerados liturgia culto eacute um evento total que abrange um conjunto de elementos lituacutergicos sendo um desses elementos a adoraccedilatildeo (em seu sentido estrito) a atitude do indiviacuteduo Adoraccedilatildeo eacute uma autoexpressatildeo em resposta agrave accedilatildeo divina

21 LITURGIA ndash OBRA DO POVO TRABALHO DO POVO OS ATOS CULTUAIS

Voltemos a nossa atenccedilatildeo ao termo liturgia e vejamos o que podemos de-preender do proacuteprio termo

Liturgia foi traduzida para o portuguecircs da palavra grega leitourgeo composta dos vocaacutebulos gregos LEITOSLAOS que significa povo e ERGON que significa trabalho Haacute um consenso entre os estudiosos do assunto que o significado seja ldquoobra do povordquo ldquotrabalho do povordquo

Essa ideia de trabalho do povo tambeacutem pode ser inferida da maioria dos vocaacutebulos originais da Septuaginta traduzidos para o idioma portuguecircs como liturgia Satildeo eles 134

Vocaacutebulo Significado Passagem biacuteblica

Leitourgiacutea (6 vezes)

Ministeacuterio Lc 123Assistecircncia 2 Co 912Serviccedilo Fp 217Socorro Fp 230Ministeacuterio Hb 86Serviccedilo Sagrado Hb 921

Leitourgoacutes (5 vezes)Ministro

Rm 136Rm 1516Hb 17Hb 82

Auxiliar Fp 225

Leitourgeacuteotilde (3 vezes)Servindo At 132Servi-los Rm 1527Serviccedilo Sagrado Hb 1011

Leitourgikoacutes (1 vez) Ministradores Hb 114

134 COSTA 198715-16

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Como visto o termo liturgia ocorre no Novo Testamento num total de quinze vezes tendo o seu significado se consolidado como ldquoo conjunto das falas e praacuteti-cas de culto dos seguidores de Jesusrdquo135 Essas praacuteticas de culto ou decorrentes do culto satildeo a assistecircncia o socorro o auxiacutelio o serviccedilo etc

22 CULTO O EVENTO CULTUAL TOTAL

Culto eacute uma reaccedilatildeo do humano agrave uma accedilatildeo divina Um bom exemplo eacute a atitude de Noeacute narrada em Gecircnesis 6-8 Depois do diluacutevio Noeacute ldquoconstruiu um altar dedicado ao Senhor e tomando alguns animais e aves puros ofereceu-os como holocausto []136 Liturgia no caso de Noeacute foi o evento constituiacutedo do ldquoconjunto de atos palavras e formas carregados de significado expressos de um certo jeito numa certa sequecircnciardquo137 realizados na reaccedilatildeo de Noeacute agrave bondade de Deus para consigo

23 A ADORACcedilAtildeO UMA AUTOEXPRESSAtildeO CULTUAL

Em relaccedilatildeo ao conceito de adoraccedilatildeo Bob Sorge em seu livro Exploring worship apresenta-nos dois exemplos que ajudam no entendimento dessa au-toexpressatildeo Satildeo os exemplos de Joacute e Abraatildeo

Joacute foi atingido por uma extrema calamidade perdendo todos os seus bens e perdendo todos os seus filhos

A resposta de Joacute eacute emocionante ldquoEntatildeo Joacute se levantou rasgou o manto e raspou a cabeccedila e ele caiu no chatildeo e adorourdquo (Joacute 120) Se concordamos que esta eacute a primeira menccedilatildeo de adoraccedilatildeo na Biacuteblia entatildeo podemos dizer que a adoraccedilatildeo eacute o que fazemos em face de grande trageacutedia e julgamento pessoal Adoraccedilatildeo em sua essecircncia natildeo eacute o que fazemos quando a vida eacute feliz e nos sentimos abenccediloados eacute o que fazemos quando perdemos as coisas que satildeo mais caras para noacutes o teste de adoraccedilatildeo natildeo eacute no domingo de manhatilde quando nos reunimos com o povo de Deus De manhatilde eacute faacutecil adorar Os crentes estatildeo reunidos em santa convocaccedilatildeo os liacutederes oram e estatildeo preparados para liderar o canto do Senhor comeccedila a surgir a presenccedila de Deus enche a casa Se vocecirc natildeo pode adorar no domingo de manhatilde vocecirc provavelmente estaacute morto138

135 MIRANDA 201239 Grifo nosso136 BIacuteBLIA ONLINE Gn 820137 MARTINI 200221 Grifo nosso138 SORGE 2018 cap 4 Grifo nosso

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Nesse ato de culto de Joacute a adoraccedilatildeo pode-se verificar uma expressatildeo original ndash uma autoexpressatildeo ndash que tem como essecircncia a espontaneidade da expressatildeo em resposta agrave percepccedilatildeo da trageacutedia ocorrida em sua vida

O conceito de autoexpressatildeo eacute definido como uma expressatildeo original que responde espontaneamente agrave percepccedilatildeo de algo A autoexpressatildeo acontece em resposta a um dado sensorial especiacutefico tendo como essecircncia a espontaneidade Contrariamente a expressatildeo pode ser um ato intencional servindo mais para demonstrar os sentimentos dos indiviacuteduos do que se apresentar como uma expressatildeo primaacuteria uma autoexpressatildeo139

O segundo exemplo citado por Sorge se encontra em Gecircnesis 225 passagem biacuteblica da narrativa de um episoacutedio muito marcante na vida de Abraatildeo que denota sua atitude de adorar mesmo quando Deus ordenara que sacrificasse o seu proacuteprio filho seu uacutenico herdeiro que o proacuteprio Deus tinha providenciado de forma milagrosa Mesmo naquela situaccedilatildeo desesperadora Abraatildeo teve a atitude de adorar a Deus Assim comenta Sorge

Quando Abraatildeo estava a caminho da montanha onde pretendia matar o seu uacutenico filho o que disse ele aos criados ldquoEntatildeo disse a seus servos Esperai aqui com o jumento eu e o rapaz iremos ateacute laacute e havendo ado-rado voltaremos para junto de voacutesrdquo (Gecircnesis 225) Na ansiedade mental de planejar matar o seu proacuteprio filho quando Deus sem duacutevida parecia estar a milhas de distacircncia Abraatildeo adorou Ele natildeo podia entender por-que Deus tinha ordenado que ele sacrificasse o seu uacutenico filho o uacutenico e verdadeiro herdeiro que Deus tinha providenciado milagrosamente Mas apesar da sua incapacidade em compreender as intenccedilotildees de Deus Abraatildeo adorou A sua adoraccedilatildeo natildeo teria sido completa sem a sua total obediecircncia140

139 FIGUEIREDO faz o seguinte comentaacuterio sobre a diferenciaccedilatildeo entre esses dois conceitos ndash autoexpres-satildeo e expressatildeo ldquouma autoexpressatildeo de juacutebilo realizada por um indiviacuteduo pela presenccedila apresentaccedilatildeo ou contemplaccedilatildeo de um ldquodeusrdquo ou de algum objeto que o represente pode resultar no nascimento de uma praacutetica ritual Nesse momento originaacuterio de um ritual a demonstraccedilatildeo de juacutebilo gradativamente se propaga agraves pessoas presentes e todos satildeo possuiacutedos do mesmo sentimento as emoccedilotildees humanas satildeo tocadas profundamente nesse momento Numa segunda ocasiatildeo tal demonstraccedilatildeo de juacutebilo eacute repetida mas agora sem aquele fator gerador da expressividade do grupo como ocorrido na primeira ocasiatildeo o segundo momento eacute realizado portanto como uma accedilatildeo intencional do grupo servindo mais para demonstrar os sentimentos dos indiviacuteduos do que uma autoexpressatildeo ou servindo para aliviar os sentimentos do grupo Neste caso ocorre a execuccedilatildeo de um ato supostamente expressivo porque natildeo possui a respectiva motivaccedilatildeo interior Eacute um ato ritual e natildeo um ato expressivo em sua essecircncia (um ato autoexpressivo) Sua suposta expressividade tem uma motivaccedilatildeo loacutegica racional intencional em contraposiccedilatildeo a um ato fisioloacutegico e espontacircneo caracteriacutestica daquele primeiro momento de juacutebilordquo (FIGUEIREDO 2010124-125) Leia mais sobre esse assunto em FIGUEIREDO 2010123-125140 SORGE 2018 cap 4 Grifo nosso

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Essa expressatildeo primaacuteriaoriginal de adoraccedilatildeo de Joacute e Abraatildeo em resposta agrave atuaccedilatildeo de Deus em suas vidas satildeo exemplos de autoexpressatildeo

3 CULTO UM EVENTO NO QUAL Eacute O POVO QUEM TRA-BALHA

Haacute uma criacutetica do filoacutesofo-teoacutelogo dinamarquecircs Soren Kierkgaard que aponta para a inversatildeo das funccedilotildees dos partiacutecipes nos atos de culto (liturgia) a qual deve ser levada em consideraccedilatildeo

Kierkgaard criticou a natildeo participaccedilatildeo ativa do povo da sua igreja lituacutergica luterana ldquoInsistiu em que na verdadeira adoraccedilatildeo a congregaccedilatildeo satildeo os atores o ministro e o coro satildeo os lsquopontosrsquo e Deus eacute o auditoacuteriordquo141 Kierkgaard afirma que ldquono sentido mais enfaacutetico Deus eacute o criacutetico frequentador de teatro que observa para ver como o texto eacute declamado e como ele eacute ouvido O orador portanto eacute o ponto e o ouvinte encontra-se abertamente diante de Deus O ouvinte se posso assim dizecirc-lo eacute o ator que verdadeiramente atua diante de Deus142

A sua criacutetica estava fundamentada nos fatos ocorridos na Idade Meacutedia quan-do ldquoa missa era essencialmente lsquoobra dos sacerdotesrsquo a congregaccedilatildeo natildeo era nem de bons espectadores visto que natildeo entendia as palavras [porque a missa era realizada no idioma latino] e em uma grande catedral natildeo conseguia nem ver a accedilatildeordquo143 Nos dias de hoje

em algumas situaccedilotildees evangeacutelicas parece claro tambeacutem que a adoraccedilatildeo eacute obra do ministro e do coro a congregaccedilatildeo eacute o ldquoauditoacuteriordquo o que suge-re que eles [fieacuteis] agem mais como ouvintes Em muitas situaccedilotildees eles [fieacuteis] nunca satildeo encorajados a falar uma soacute palavra nos cultos lendo as Escrituras ou participando das oraccedilotildees [] Indubitavelmente lhes eacute per-mitido cantar os hinos embora algumas vezes estes sejam bem poucos e ateacute mesmo esta oportunidade eacute ignorada por muitas pessoas em algumas congregaccedilotildees Eacute verdade que pode-se envolver na adoraccedilatildeo ndash pode-se ateacute falar com Deus ndash sem pronunciar nem um som audiacutevel mas cremos que eacute desejaacutevel ter o maacuteximo de participaccedilatildeo da congregaccedilatildeo tanto do que se fala como do que se canta e tambeacutem da accedilatildeo fiacutesica 144

141 HUSTAD 1986165142 HUSTAD 1986165143 HUSTAD 1986165144 HUSTAD 1986165

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Os encontros cultuais puacuteblicos devem priorizar portanto a participaccedilatildeo ativa do povo o trabalho do povo isto eacute os elementos lituacutergicos de um culto (adoraccedilatildeo leitura biacuteblica canto coletivo oraccedilatildeo testemunho mensagem muacutesica instrumental coro etc) devem propiciar a participaccedilatildeo plena do povo

Outro autor que trabalha esses dois termos ndash liturgia e culto ndash eacute o teoacutelogo Nelson Kirst Ele compara o momento do culto com o ldquorancho na roccedilardquo O culto eacute o encontro de Deus com a sua comunidade e a ldquoliturgia eacute o conjunto de elementos e focircrmas (espaccedilos lugares tempos objetos funccedilotildees gestos foacutermu-las histoacuterias instruccedilotildees olhares siacutembolos e significados) atraveacutes dos quais se realiza o encontro de Deus com sua comunidaderdquo145

Imagine-se uma famiacutelia de agricultores que sai para trabalhar um pedaccedilo de terra localizado a 1 ou 2 km de casa De manhatilde bem cedo potildeem-se todos a caminho de carroccedila levando enxadas foices facotildees arado e o cesto com o lanche Laacute chegando dividem as tarefas e se lanccedilam ao trabalho Mourejam por umas duas horas e entatildeo se recolhem para um descanso Em algum ponto daquela roccedila ergue-se o rancho construccedilatildeo tosca de trecircs paredes e um telhado em meia-aacuteguaEacute no aconchego do rancho na roccedila que a famiacutelia camponesa depois da primeira arrancada de enxada e arado se recolhe descansando o corpo fortalecendo-se de patildeo aacutegua fresca e conversa - para meia horinha depois voltar agrave enxada e ao arado e misturar seu suor agrave terra em outro tanto de jornada A famiacutelia vai da enxada para o rancho e sai fortalecida do rancho para a enxada A parada no rancho natildeo faz sentido sem o trabalho na roccedila E o trabalho na roccedila se esgota em agitaccedilatildeo e cansaccedilo sem a parada no rancho146

O culto entatildeo eacute o lugar para renovaccedilatildeo de energias espirituais lugar onde o povo busca ldquoalimentordquo espiritual atraveacutes dos atos de adoraccedilatildeo e louvor ao Deus criador ao Deus salvador Atos de enunciaccedilatildeo de suas alegrias e suas tristezas de exposiccedilatildeo suas ansiedades e vitoacuterias e o retorno para a vida ordinaacuteria das atividades seculares

O culto constituiacutedo pelo conjunto de elementos lituacutergicos eacute um evento total que possui situaccedilotildees momentacircneas cultuais diversas Qual eacute a origem desses momentos determinados constantes de uma liturgia

145 KIRST 1998119146 KIRST 1998119

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4 ldquoA VISAtildeO DE ISAIacuteASrdquo UM DOS MODELOS DE EVENTO CULTUAL

Apesar da origem natildeo-lituacutergica dos batistas sua liturgia segue alguns princiacutepios modelos Os atos lituacutergicos natildeo satildeo propostos aleatoriamente Entatildeo de onde vecircm esses princiacutepiosmodelos que norteiam uma liturgia

Esses elementos vecircm dos exemplos biacuteblicos de adoraccedilatildeo O teoacutelogo Romeu R Martini nos apresenta no seu livro Liturgia e culto o exemplo biacuteblico de Noeacute (Gn 6-8) e o teoacutelogo Russel P Shedd no seu livro Adoraccedilatildeo biacuteblica elenca vaacuterios exemplos biacuteblicos de adoraccedilatildeo afirmando que ldquoas sagradas letras satildeo o nosso manual de adoraccedilatildeordquo147

O salmista no Salmo 96 Enoque em Gn 522-24Hb 56 Jacoacute em Gn 3222ss Moiseacutes em Ex 3312-33 Isaiacuteas em Is 61-8 e Maria em Jo 121-8 satildeo os exemplos apresentados por Shedd

De todos esses exemplos biacuteblicos de adoraccedilatildeo haacute uma convergecircncia entre os teoacutelogos de que a experiecircncia de Isaiacuteas eacute a que mais detalhes apresenta sobre os diversos atos ocorrentes em um encontro de um ser humano com o Deus criador Do texto de Isaiacuteas 6-1-9a emergem os seguintes atos lituacutergicos

- Consciecircncia da presenccedila de Deus (Is 61) ndash Preluacutedio

- Adoraccedilatildeo (Is 62-3)

- Confissatildeo (Is 65)

- Perdatildeo (Is 66-7)

- Apelo (Is 68) ndash Palavra do SenhorEnsino

- Consagraccedilatildeo (Is 68) ndash Resposta do homem

- Disponibilidade para o serviccedilo (Is 69a) ndash Posluacutedio

Nelson Kirst fala de uma forma mais abrangente que a liturgia ndash a sequecircncia de atos elementos eventos ornamentos e momentos lituacutergicos ndash precisa ser moldada Utiliza o exemplo de uma casa com seus cocircmodos para o entendimento dessa questatildeo

Uma casa eacute composta de diversas dependecircncias Haacute certas dependecircncias que natildeo podem faltar numa casa p ex a cozinha ou o dormitoacuterio Satildeo imprescindiacuteveis Haacute outras partes que satildeo uacuteteis sem ser imprescindiacuteveis

147 SHEDD 1987113

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p ex a sala de estar a sala de jantar ou a varanda Assim tambeacutem a liturgia tem partes imprescindiacuteveis que nunca podem faltar e partes que satildeo uacuteteis mas podem faltar num cultoNa comparaccedilatildeo da liturgia com uma casa tambeacutem se aprende alguma coisa sobre a disposiccedilatildeo das diversas partes dentro do conjunto A entrada de uma casa geralmente vai ser pela sala de estar ou perto da sala de estar e natildeo pela cozinha ou pelo dormitoacuterio Por outro lado o banheiro pode localizar-se entre o dormitoacuterio e a sala ou entre o dormitoacuterio e a cozinha e a sala de estar pode encontrar-se do lado esquerdo ou do lado direito da entrada Assim tambeacutem na liturgia haacute certas partes que tecircm seu lugar fixo p ex o canto de entrada soacute pode estar no iniacutecio do culto e a interpretaccedilatildeo da Palavra soacute pode vir depois das leituras biacuteblicas E haacute outras partes que podem ser dispostas com certa flexibilidadeFinalmente haacute muita maleabilidade na maneira como satildeo configuradas as diversas dependecircncias de uma casa O material as cores as cortinas a decoraccedilatildeo dependeratildeo de quem haacute de utilizar essa casa para morar Assim tambeacutem haacute muita liberdade quanto agrave maneira ou ao estilo de se realizar as partes da liturgia148

5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAISFinalizando liturgia significa os atos ocorrentes no momento de culto isto

eacute os atos praticados pelos indiviacuteduos em reaccedilatildeo agrave accedilatildeo divina Os batistas satildeo uma igreja livre (natildeo-lituacutergica) em relaccedilatildeo agrave orientaccedilatildeo lituacutergica A liturgia dos batistas procura seguir os exemplos de adoraccedilatildeo encontrados na Biacuteblia sendo a experiecircncia de Isaiacuteas com Deus a mais ensinada nas casas teoloacutegicas como modelo de atos cultuais

Para que a liturgia natildeo se transforme em um ritual ndash uma monoacutetona repeticcedilatildeo de atos lituacutergicos ndash existe uma liberdade na sua elaboraccedilatildeo preservando-se alguns dos elementoseventos cultuais de adoraccedilatildeo biacuteblica bem como a omissatildeo de outros

Hustad afirma que em resumo a liturgia de um culto deve contemplar duas accedilotildees baacutesicas da adoraccedilatildeo ldquouma revelaccedilatildeo plena de Deus seus atos e sua vontade para noacutes e uma reaccedilatildeo dos homens e mulheres incluindo corpo emoccedilatildeo intelecto e vontaderdquo149

148 KIRST 1998125149 HUSTAD 1986166 Grifo nosso

97TeoloacutegicaRevista Brasileira de Teologia ISSN 1807-7056 nordm 8 outdez Rio de Janeiro 2020 p 86 - 97

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MENDONCcedilA A G VELASQUES FILHO P Introduccedilatildeo ao Protestantismo no Brasil 2 ed Satildeo Paulo Loyola 2002

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SORGE B Exploring worship - A practical guide to praise amp worship Grand-view Oasis House 2018 Cap 4

WHITE J F Introduccedilatildeo ao culto cristatildeo Satildeo Leopoldo Sinodal 1997

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LITURGIA E IDENTIDADE RELIGIOSA NO APOCALIPSE DE JOAtildeO

Valtair A Miranda150

RESUMONosso propoacutesito neste artigo eacute analisar as peccedilas hiacutenicas descritas nos capiacutetulos

quatro e cinco do livro de Apocalipse e refletir sobre o papel que executam na construccedilatildeo e manutenccedilatildeo da identidade social e religiosa dos leitores e ouvintes desse livro no momento da sua produccedilatildeo Argumentamos que os hinos registrados nas obras do movimento de Jesus possuiacuteam um papel significativo na definiccedilatildeo da autodescriccedilatildeo dos membros das igrejas quer por representarem o que se cantava nas comunidades quer como sugestatildeo do que cantar Cantar entatildeo natildeo apenas descreve a pessoa de Deus ou o falar com ele mas propicia a quem canta um forte senso de identidade pessoal e social Nos hinos o fiel expressa o que ele se ainda natildeo eacute pelo menos gostaria de ser

Palavras-chave Apocalipse de Joatildeo Culto e ritual hino e liturgia Cristianismo antigo

ABSTRACTOur purpose in this article is to analyze the hymn pieces of Revelation 4 and

5 and to reflect on their role in building and maintaining the social and religious identity of the readers and listeners of this book at the time of its production We argue that the hymns recorded in the works of the Jesus movement had a signifi-cant role in defining the self-description of church members either because they represent what was sung in the communities or rather as a suggestion to sing Singing then not only describes God or speaks to him but gives the person who sings a strong sense of personal and social identity In the hymns the faithful express what he if he still is not at least would like to be

Keywords Revelation of John Worship and ritual worship and liturgy Ancient Christianity

150 Valtair Afonso Miranda eacute Doutor em Ciecircncias da Religiatildeo (UMESPSP) e Doutor em Histoacuteria (UFRJ) Eacute Diretor Acadecircmico da Faculdade Batista do Rio de Janeiro onde leciona Histoacuteria da Igreja e Exegese do Novo Testamento

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O capiacutetulo 4 de Apocalipse inicia uma longa seccedilatildeo descritiva de um tipo de culto celestial Aparentemente este livro poderia ser dividido em trecircs partes uma seccedilatildeo para descrever a visatildeo do Filho do Homem que aparece a Joatildeo para narrar sete cartas para sete igrejas (capiacutetulos 1 a 3) uma seccedilatildeo para descrever a visatildeo do rolo selado com sete selos (capiacutetulos 4 a 11) e uma uacuteltima para apresentar o conflito escatoloacutegico entre o Cordeiro e o Dragatildeo (capiacutetulos 12 a 22)151

Nesse sentido o capiacutetulo 4 seria o iniacutecio da segunda seccedilatildeo Sua narrativa co-meccedila com o ingresso do visionaacuterio por uma porta aberta no ceacuteu e o subsequente acesso ao Templo Celestial Na perspectiva da audiecircncia desse texto a cena elabora uma narrativa a partir de uma preacutevia experiecircncia extaacutetica Afinal Joatildeo continua na Ilha de Patmos apesar de o seu espiacuterito vislumbrar o trono divino e uma seacuterie de personagens que participam da liturgia celestial Embora se apresente como a narrativa de uma experiecircncia visionaacuteria entretanto o Apocalipse ecoa por meio dessa cena um conjunto de tradiccedilotildees e passagens provavelmente bem conhecidas de sua audiecircncia como Ecircxodo 249-11 Isaiacuteas 6 Ezequiel 126-28 Daniel 79-28 1Reis 2219-23 1Enoque 39 e 2 Enoque 20-22 entre outras

O primeiro versiacuteculo do capiacutetulo 4 apresenta um anjo convocando Joatildeo para subir ao ceacuteu Esse anjo promete mostrar ao visionaacuterio o que aconteceria ldquodepois destas coisasrdquo O cumprimento dessa promessa do anjo se daacute nos termos do relato quando o Cordeiro siacutembolo do Jesus crucificado rompe sete selos de um livro e provoca sete trombetas escatoloacutegicas Isso aparece no capiacutetulo 6 em diante jaacute que os dois primeiros capiacutetulos da seccedilatildeo (4 e 5) se dedicam ao ato lituacutergico em um ritmo muito lento apresentando as cenas e os atores do culto celestial

Nosso propoacutesito neste artigo eacute analisar as peccedilas hiacutenicas desses dois capiacutetulos do Apocalipse e refletir sobre o papel delas na construccedilatildeo e manutenccedilatildeo da identidade social e religiosa dos leitores e ouvintes do livro no seu momento de produccedilatildeo152

151 Para uma discussatildeo dessa estrutura no formato de trecircs seccedilotildees conferir o meu livro MIRANDA Valtair Afonso O caminho do Cordeiro representaccedilatildeo e construccedilatildeo de identidade no Apocalipse de Joatildeo Satildeo Paulo Paulus 2011152 Pressupomos que esta obra foi escrita no final do seacuteculo I e enviada para membros do movimento de Jesus na proviacutencia romana da Aacutesia especificamente para comunidades nas cidades de Eacutefeso Esmirna Peacutergamo Tiatira Saacuterdis Filadeacutelfia e Laodiceia Para uma anaacutelise mais ampla do contexto de produccedilatildeo do Apocalipse de Joatildeo conferir MIRANDA Valtair A Revisitando o contexto de produccedilatildeo do Apocalipse de Joatildeo Reflexus ano IX n 14 p 389-416 2015 FRIEDRICH Paulo Nestor Apocalipse 2ndash3 Sete cartas Uma anaacutelise literaacuteria Estudos de Religiatildeo Satildeo Bernado do Campo n 19 p 149-173 2000 WIKENHAUSER Alfred El Apocalipsis de San Juan p 25-34

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CELEBRANDO A CRIACcedilAtildeO O CULTO AO DEUS ENTRONI-ZADO

O capiacutetulo 4 do Apocalipse apresenta um trono no ceacuteu e em torno dele ele-mentos tiacutepicos de uma teofania da Escritura judaica (Is 61-4) Como na visatildeo de Isaiacuteas esse trono divino eacute uma peccedila central Tudo gira em torno dele Ao seu redor estatildeo quatro criaturas denominadas de Seres Viventes Aleacutem destes o relato apresenta tambeacutem vinte e quatro tronos menores nos quais se assentam vinte e quatro anciatildeos vestidos com roupas brancas tendo coroas de ouro na cabeccedila Independentemente da forma como os inteacuterpretes contemporacircneos interpretam esses personagens celestiais o essencial eacute que todos estatildeo envolvidos em atos lituacutergicos Eles adoram o anciatildeo que se assenta sobre o trono

Os Quatro Viventes especificamente tecircm como missatildeo sem descanso dia e noite expressar adoraccedilatildeo (Ap 48) Deles Joatildeo ouve ldquoSanto Santo Santo eacute o Senhor Deus o Todo-Poderoso aquele que era que eacute e que haacute de virrdquo O hino comeccedila com uma expressatildeo triacuteplice originada em Isaiacuteas 63 ldquoE clamavam uns para os outros dizendo Santo santo santo eacute o Senhor dos Exeacutercitos toda a terra estaacute cheia da sua gloacuteriardquo No texto de Isaiacuteas a canccedilatildeo eacute entoada por Serafins figuras parecidas com serpentes aladas Essa passagem foi largamente usada em textos apocaliacutepticos para compor as cenas do santuaacuterio celestial (1En 3012 2En 211 Ap Abr 16) Os grupos judaicos do segundo Templo frequentemente viam no triacuteplice ldquosantordquo a expressatildeo perfeita do culto dos anjos deduzindo daiacute um modelo para o culto na terra153

Eacute interessante comparar a versatildeo de Isaiacuteas com a LXX e o Apocalipse e assim verificar a forma como as tradiccedilotildees literaacuterias satildeo retomadas no Apo-calipse A LXX que normalmente traduz o termo tsabaoth por pantokrator dessa vez simplesmente transliterou o termo sabaoth Joatildeo entretanto de forma consistente continuou usando pantokrator no lugar de tsabaoth De qualquer forma ambas as expressotildees denotam um ser soberano sobre todos os outros deuses e senhores da terra Ele eacute o Senhor dos Exeacutercitos o Todo-poderoso o Senhor da terra toda Isso daacute ao conjunto da canccedilatildeo um tom de natureza poliacute-tica A acentuaccedilatildeo do ldquoSenhor Deus Todo-Poderosordquo eacute ainda maior porque o hino acrescenta agrave descriccedilatildeo divina a expressatildeo ldquoaquele que era que eacute e que haacute de virrdquo no que se configura uma afirmaccedilatildeo da eternidade imutabilidade e autonomia divinas uma evocaccedilatildeo do ldquoeu sourdquo de Ecircxodo 314 Um Deus eterno natildeo estaacute sujeito agraves variaccedilotildees do tempo ou agraves transiccedilotildees dos domiacutenios humanos

153 PRIGENTE P O Apocalipse p 104

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No momento em que os Quatro Viventes cantam o hino de Isaiacuteas denominado frequentemente de ldquokedushaacuterdquo os Vinte e Quatro Anciatildeos se prostram diante do que se assenta no trono depositando aos seus peacutes suas coroas de ouro Dessa vez satildeo eles que adoram ldquoTu eacutes digno Senhor e Deus nosso de receber a gloacuteria a honra e o poder porque todas as coisas tu criaste sim por causa da tua vontade vieram a existir e foram criadasrdquo (Ap 411)

A forma literaacuteria eacute de aclamaccedilatildeo mas configurada em expressatildeo hiacutenica no texto do visionaacuterio A estrutura do hino consiste do adjetivo ldquodignordquo seguido do verbo ser (na terceira pessoa do singular) mais uma seacuterie de atributos Esse eacute um hino de dignidade A divindade eacute adorada porque eacute digna e eacute digna em funccedilatildeo da sua obra de criaccedilatildeo

Esse hino tambeacutem levanta a questatildeo de quem eacute digno de ser adorado Possi-velmente eacute uma peccedila lituacutergica que surge em meio agrave disputa por adoraccedilatildeo Com um hino desse tipo o Apocalipse tenta apontar quem eacute digno de adoraccedilatildeo e consequentemente quem natildeo o eacute

Essas expressotildees querem responder agrave questatildeo ldquoquem eacute o verdadeiro senhor da terrardquo ou entatildeo quem eacute digno de ser A resposta do Apocalipse eacute clara o Senhor da terra eacute aquele que a criou A ele pertencem todas as coisas

Esses hinos poderiam atuar na identidade da audiecircncia de diversas maneiras mas destacamos aqui apenas trecircs Primeiramente ao ouvir tais hinos ou cantaacute--los a audiecircncia acompanha os seres celestiais declarando o senhorio exclusivo de Deus sobre o mundo154 Deus eacute o verdadeiro Senhor da Terra o que promove uma determinada filosofia da histoacuteria Um Deus Soberano estaacute acima dos poderes e governos do mundo Esse tipo de divindade tem poder para controlar e dirigir a histoacuteria da humanidade e o faraacute levando-a ateacute a instalaccedilatildeo efetiva do seu Reino sobre a terra (Ap 510) O olhar sobre esse futuro - mas iminente - reino alerta as comunidades de crentes que a vida que eles vivem no presente eacute circunstancial e peregrina O seu destino ainda natildeo chegou Um primeiro efeito plausiacutevel entatildeo se daria na postura poliacutetica dos fieis cantantes ao promover a perspectiva de oposiccedilatildeo agrave sociedade circundante155

Segundo ao afirmar que somente Deus eacute digno de receber adoraccedilatildeo honra poder o hino afirma a singularidade da figura divina diante das pretensotildees im-

154 BORTOLINI Joseacute Como ler o Apocalipse p 53155 Para uma reflexatildeo mais ampla sobre posturas de oposiccedilatildeo do movimento de Jesus agrave estrutura imperial romana cf MIRANDA Valtair A Religiatildeo e sociedade na Aacutesia romana Religare v13 n1 p150-179 2016 LAZIER Josueacute Adam A estrateacutegia cristatilde no contexto da Pax Romana Estudos Biacuteblicos n 36 p 37-40 1992 MESTER Carlos OROFINO Francisco A violecircncia do Impeacuterio Romano e a sua influecircncia na vida das comunidades cristatildes do fim do primeiro seacuteculo Estudos Biacuteblicos n 69 p 72-82 2001

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periais romanas E ao afirmar a singularidade de Deus o hino tambeacutem reforccedila a singularidade de seus adoradores Mesmo que experimentando o desprezo da sociedade romana os seguidores de Jesus se percebem como figuras especiais pois formam o povo de Deus na terra

Terceiro esse conhecimento do senhorio de Deus sobre o universo e da singu-laridade do seu povo eacute um conhecimento profundo que somente quem acessa as regiotildees celestiais conhece Ningueacutem consegue enxergar o que eles veem naquele momento Essa ldquovisatildeo profundardquo era dada aos seguidores do Cordeiro quando se reuniam em seus encontros de culto Dessa forma o culto se torna o espaccedilo privilegiado para o acesso a um ldquooutro mundordquo no interior ldquodeste mundordquo

CELEBRANDO A REDENCcedilAtildeO O CULTO AO CORDEIROO capiacutetulo 5 do Apocalipse apresenta uma crise Qual eacute a crise Joatildeo eacute infor-

mado de que haacute um rolo que ningueacutem pode abrir Ele comeccedila a chorar ateacute que algueacutem bate no seu ombro e diz ldquoNatildeo chores eis que o Leatildeo da tribo de Judaacute a Raiz de Davi venceu para abrir o livro e os seus sete selosrdquo (Ap 55) Ele ouve falar de um leatildeo mas quando olha o que vecirc eacute um cordeiro Eacute Jesus Cristo na forma simboacutelica de um cordeiro ensanguentado representando a centralidade do seu sacrifiacutecio na cruz no projeto de redenccedilatildeo divino Daqui em diante o Cordeiro Jesus Cristo jaacute com o rolo na matildeo vai comeccedilar a quebrar os selos do rolo um por um Agrave medida que cada selo eacute removido uma cena eacute testemunhada por Joatildeo

Jesus que jaacute aparecera antes na forma do Filho do Homem (Ap 113) agora eacute descrito como um cordeiro com aparecircncia de ter sido morto com sete chifres e sete olhos Satildeo imagens que devem ser menos entendidas e mais sentidas Chifres e olhos tecircm a ver com a presenccedila do poder e do espiacuterito de Deus Mas de onde vem a imagem do Cordeiro

Essa imagem tem analogia com o sacrifiacutecio e a morte Uma passagem relevante para estudar o significado de ldquocordeirordquo estaacute no Antigo Testamento especifica-mente em uma profecia de Jeremias 1119 ldquoEu era como manso cordeiro que eacute levado ao matadouro porque eu natildeo sabia que tramavam projetos contra mim dizendo Destruamos a aacutervore com seu fruto a ele cortemo-lo da terra dos vi-ventes e natildeo haja mais memoacuteria do seu nomerdquo O profeta fala de si mesmo como um cordeiro que eacute levado mansamente para a morte

A passagem mais proacutexima de Jeremias eacute Isaiacuteas 537 ldquoEle foi oprimido e humilhado mas natildeo abriu a boca como cordeiro foi levado ao matadouro e como ovelha muda perante os seus tosquiadores ele natildeo abriu a bocardquo O relato de Isaiacuteas 53 sobre o ldquoservo sofredorrdquo reaparece no Novo Testamento de diversas

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formas para falar do ministeacuterio de Jesus e sua morte (Lc 2237 At 832-33 1Pe 222) sendo muito importante para responder agrave questatildeo de como o sofrimento e a morte de Jesus poderiam ser explicados diante da sua natureza messiacircnica

Eacute exatamente isso que aparece quando o Apocalipse descreve Jesus como um Cordeiro Ele eacute o Messias pelo caminho do sacrifiacutecio Mais ainda o Cordeiro Jesus

- Eacute aquele que morreu e ressuscitou (Ap 56)

- Eacute adorado pelas figuras celestiais (Ap 581213)

- Eacute o que tem o poder de revelar os eventos celestiais (Ap 61)

- Eacute o que julgaraacute todas as pessoas (Ap 616 717) pois possui o Livro da Vida (2127)

- Eacute o que lavou as vestes dos salvos com o seu proacuteprio sangue (Ap 791014)

- Eacute o que vence o Dragatildeo em funccedilatildeo do seu sangue (Ap 1211)

- Venceraacute as bestas (Ap 1714)

- Se casaraacute com sua noiva a Nova Jerusaleacutem o povo de Deus (Ap 1979 219)

- Iluminaraacute a Nova Jerusaleacutem (Ap 2123)

A imagem do cordeiro sacrificial entatildeo no Apocalipse faz referecircncia natildeo apenas ao sofrimento e agrave morte mas tambeacutem agrave vitoacuteria reinado poder e gloacuteria Eacute a esse Cordeiro exaltado que toda a adoraccedilatildeo do capiacutetulo 5 se dirige Ele eacute digno de ser adorado porque segundo os vinte e quatro anciatildeos e os Quatro Viventes morreu e com seu sangue comprou pessoas de todas as naccedilotildees constituindo-as reino e sacerdotes para Deus (Ap 59-10) Os mesmos seres que adoraram a Deus no capiacutetulo 4 agora se rendem em adoraccedilatildeo ao Cordeiro de Deus no capiacutetulo 5 (Ap 59-10) ldquoDigno eacutes de tomar o livro e abrir-lhe os selos porque foste morto e compraste para Deus atraveacutes do teu sangue pessoas de toda tribo liacutengua povo e naccedilatildeo e os constituiacuteste para o nosso Deus reino e sacerdotes e reinaratildeo sobre a terrardquo

Adela Yarbro Collins estudiosa da Yale University (EUA) interpretou esse rolo como uma epiacutestola celestial na forma de um livro de destino Em outras palavras ele seria uma taacutebua de eventos futuros Os sete selos enfatizam simbolicamente a intensidade do segredo do conhecimento sobre os eventos futuros cujo conteuacutedo eacute dado na forma de duas seacuteries de sete visotildees (selos e trombetas)156 O Cordeiro seria o uacutenico digno de revelar para o visionaacuterio e sua comunidade o conhecimento escatoloacutegico A base dessa dignidade eacute a morte de Jesus Cristo

156 COLLINS Adela Yarbro The combath myth in the Book of Revelation p 25

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A imagem de um cordeiro imolado jaacute seria evocaccedilatildeo suficiente agrave morte de Jesus da mesma forma como sua posiccedilatildeo em relaccedilatildeo ao trono o afirma vivo e com poder para fazer especificamente duas coisas comprar para Deus um povo exclusivo e fazecirc-los reino e sacerdotes de Deus Essa afirmaccedilatildeo jaacute apareceu antes (Ap 15-6) na forma de um hino entoado pelo autor na primeira pessoa do plural ldquoAgravequele que nos ama e pelo seu sangue nos libertou dos nossos pecados e nos constituiu reino sacerdotes para o seu Deus e Pai a ele a gloacuteria e o domiacutenio pelos seacuteculos dos seacuteculos Ameacutemrdquo Jaacute nesse hino ao Cordeiro satildeo os Vinte e Quatro Anciatildeos diante do Trono no ceacuteu que declaram esta mesma realidade Seria uma maneira de indicar que os seres celestiais confirmam o status real e sacerdotal cantado pelos crentes na terra

A origem dessas pessoas como ldquode toda tribo liacutengua povo e naccedilatildeordquo afirma o caraacuteter natildeo mais eacutetnico do povo de Deus A filiaccedilatildeo natildeo seria mais uma questatildeo de sangue mas de compromisso com o Cordeiro

As formas verbais satildeo bem precisas Os seguidores do Cordeiro jaacute foram comprados e jaacute receberam a investidura real e sacerdotal Seriam accedilotildees realizadas por Jesus no momento de sua morte e ressurreiccedilatildeo Mesmo assim uma reserva escatoloacutegica se manifesta eles ainda reinaratildeo sobre a terra Eles jaacute fazem parte do reino de Deus e seu filho Jesus Cristo mas esse reino ainda natildeo eacute visto por quem natildeo faz parte dele O cacircntico expressa a esperanccedila entretanto somente na intervenccedilatildeo uacuteltima de Deus esse reinado se materializaraacute157

Os cantores desse hino de dignidade ao Cordeiro satildeo os Quatro Viventes e os Vinte e Quatro Anciatildeos A cena ganha proporccedilotildees ainda maiores quando apoacutes o hino anjos em nuacutemero de ldquomilhotildees de milhotildees e milhares de milharesrdquo tambeacutem cantam a mesma temaacutetica (Ap 512) ldquoDigno eacute o Cordeiro que foi morto de receber o poder e riqueza e sabedoria e forccedila e honra e gloacuteria e louvorrdquo

Enquanto a primeira canccedilatildeo de dignidade ao Cordeiro estaacute na segunda pessoa do singular (um hino que fala com o Cordeiro) a canccedilatildeo dos anjos estaacute na terceira pessoa do singular (um hino que fala do Cordeiro) Em ambas as canccedilotildees o objeto de adoraccedilatildeo eacute descrito numa linguagem poliacutetico-religiosa do antigo Israel

Ele eacute o Leatildeo da Tribo de Judaacute a raiz de Davi que conquistou e portanto eacute digno de abrir o rolo que Deus entregou em suas matildeos Mas eacute ao mesmo tempo um Cordeiro em peacute como se tivesse sido morto Eacute ele que tem o rolo na matildeo

157 Isto configura um determinado tipo de milenarismo como analisado em MIRANDA Valtair A Maacutertires e monges milenarismos antigos e medievais Santo Andreacute Kapenke 2018 p 43-72

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O Leatildeo era usado como siacutembolo de poder no mundo antigo (Pr 3030) e se tornou associado com o trono de Davi atraveacutes da caracterizaccedilatildeo de Judaacute feita por Jacoacute (Gn 499) A raiz de Davi eacute uma metaacutefora para a linhagem de Davi (Is 1110) e se tornou siacutembolo da restauraccedilatildeo da monarquia daviacutedica (Jr 235) Essas tradiccedilotildees do restabelecimento do reino de Deus como um ato de forccedila e poder eram tradicionais Mas essa natildeo eacute a perspectiva de Apocalipse que inverte a imagem O leatildeo se torna cordeiro Existe violecircncia sim mas contra o cordeiro natildeo do Cordeiro Ele tem poder e tem forccedila para conquistar mas seus atos de conquista passaram pela sua morte158

Se Deus eacute digno por causa de sua obra de criaccedilatildeo o Cordeiro eacute digno por causa da redenccedilatildeo Somente ele entatildeo eacute capaz de abrir os selos somente ele venceu a morte Ao inserir o tema da morte do Cordeiro na tradiccedilatildeo messiacircnica daviacutedica o visionaacuterio insere na esperanccedila messiacircnica poliacutetica os aspectos da tradiccedilatildeo sacrificial

As cenas de culto celestial natildeo eram novidades na apocaliacuteptica Entretanto a presenccedila do Cordeiro ldquocomo que mortordquo no Templo celestial participando ou mesmo recebendo o culto eacute uma grande novidade do Apocalipse de Joatildeo Um nuacutemero muito maior de epiacutetetos nesses hinos de dignidade eacute lanccedilado sobre o Cordeiro do que ao proacuteprio Anciatildeo que estava assentado sobre o trono central do Santuaacuterio

Apoacutes a adoraccedilatildeo ao Cordeiro o relato acrescenta que ldquotoda criatura que haacute no ceacuteu e sobre a terra debaixo da terra e sobre o mar e tudo o que neles haacuterdquo e se volta novamente para aquele que se assenta no trono A descriccedilatildeo do culto celestial assim extrapola os espaccedilos celestiais pois envolve tambeacutem o acircmbito da terra e do mar bem como todos os seus seres A natureza inteira aparece envolvida na adoraccedilatildeo celestial O que eles cantam eacute ldquoAo que se assenta sobre o trono e ao Cordeiro o louvor e a honra e a gloacuteria e o domiacutenio para os seacuteculos dos seacuteculosrdquo (Ap 513)

Finalmente ambos os personagens celebrados no culto celestial recebem simultaneamente a adoraccedilatildeo As claacuteusulas de dignidade se parecem com o hino dos anjos (Ap 512) e com o hino a Deus em Apocalipse 411 A gloacuteria e a honra aparecem nos trecircs hinos O poder eacute dado a Deus pelos Vinte e Quatro Anciatildeos e ao Cordeiro pelos anjos mas natildeo aparece na lista quando ambos satildeo louvados juntos Na adoraccedilatildeo a Deus e ao Cordeiro por sua vez ainda se manifestam o domiacutenio e o louvor que natildeo apareceram antes para Deus De qualquer forma todas

158 BARR David L Tales of the End p 70

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as dignidades de Deus pertencem tambeacutem ao Cordeiro que ainda suporta outras Somente Ele nesses trecircs hinos de dignidade teve celebrada a riqueza a sabedoria e a forccedila Esses elementos sinalizam que diferentemente das visotildees tradicionais do Templo celestial no Apocalipse de Joatildeo natildeo eacute Deus a figura principal mas sim o Cordeiro Ele eacute o personagem central da revelaccedilatildeo do visionaacuterio

Nos termos de Hurtado

judeus convertidos se reuniam para adorar em nome de Jesus oravam a ele cantavam para ele entendiam que ele estava em uma posiccedilatildeo celestial acima de toda a ordem angelical usaram para ele tiacutetulos e passagens das Escrituras judaicas originalmente usadas para Deus procuraram convencer outros judeus e tambeacutem gentios a reconhece-lo como o redentor messiacircnico escolhido por Deus e em geral redefiniam a devoccedilatildeo tradicional ao uacutenico Deus para incluir a veneraccedilatildeo a Jesus159

Ao apresentar a adoraccedilatildeo de elementos da natureza o visionaacuterio ainda demons-tra a possibilidade de elementos de fora do acircmbito celestial participarem de algu-ma maneira do culto no ceacuteu O que esses elementos celebram eacute a manifestaccedilatildeo do Reino de Deus e seu domiacutenio perpeacutetuo Os cantores desse hino representam toda a ordem da criaccedilatildeo que juntos adoram o que se assenta no trono e o Cordeiro160

Como um responsoacuterio coral a resposta vem daqueles que se encontram bem perto do trono os Quatro Viventes que respondem ldquoAmeacutemrdquo

A conclusatildeo da cena eacute um novo ato de prostraccedilatildeo e adoraccedilatildeo dos Anciatildeos (Ap 513-14) O verbo usado no Apocalipse para adoraccedilatildeo eacute predominantemente proskuneo Ele aparece 60 vezes no Novo Testamento mas em nenhum outro livro tem a importacircncia que tem no livro de Joatildeo no qual aparece 24 vezes indicando o quanto a questatildeo da adoraccedilatildeo eacute central para o visionaacuterio O termo denota prostraccedilatildeo postura de submissatildeo e homenagem atitude que seraacute repetida vaacuterias vezes no Apocalipse

Finalmente o culto ao Anciatildeo e ao Cordeiro dos capiacutetulos 4 e 5 de Apocalipse seraacute interrompido pela seacuterie de selos e trombetas mas apareceraacute novamente em vaacuterios outros lugares da obra

159 HURTADO Larry W One God One Lord p 17-18160 MESTER Carlos OROFINO Francisco Apocalipse de Joatildeo p 182-183

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CONCLUSAtildeORetomando a questatildeo inicial sobre o papel dos hinos dos capiacutetulos 4 e 5 de

Apocalipse na autocompreensatildeo religiosa e social da audiecircncia ali descrita acreditamos que eles funcionariam para afirmar um status exaltado dos segui-dores de Jesus que foram comprados para Deus e lhe pertencem agora Como propriedade exclusiva de Deus satildeo seus sacerdotes fazendo parte do reino de Deus e do Cordeiro jaacute no presente tempo Por isso eles jaacute podem cantar todas as expectativas que as antigas tradiccedilotildees judaicas esperavam para a intervenccedilatildeo escatoloacutegica divina

Profeticamente o reinado de Deus e seu ungido se manifestam jaacute no espaccedilo sagrado do culto O Templo celestial sede do reino de Deus tem seu equivalente na terra no ajuntamento da comunidade de fieacuteis em adoraccedilatildeo Assim separados da vida ordinaacuteria dentro do limite do tempo e espaccedilo ritual na assembleia de adoraccedilatildeo no dia do Senhor os seguidores de Jesus conseguiam ver o que ningueacutem mais via e mais do isso jaacute antecipavam prolepticamente sua participaccedilatildeo no Reino de Deus e seu Cordeiro

Como contraponto entretanto essa perspectiva identitaacuteria promoveria algum tipo de rejeiccedilatildeo agrave ordem social romana A grande pergunta que os capiacutetulos 4 e 5 de Apocalipse quer responder eacute Quem eacute digno de adoraccedilatildeo Muita gente na eacutepoca do Apocalipse dizia que o Imperador Romano era digno de adoraccedilatildeo Para aqueles que cantavam esses cacircnticos entretanto a sociedade romana paganizada estava equivocada

Eacute certo que os imperadores romanos eram pessoas muito poderosas Tatildeo poderosas que imaginavam poder receber honras e adoraccedilatildeo como se fossem divindades O culto imperial era efetivamente um problema para as comunidades receptoras do Apocalipse Entretanto em oposiccedilatildeo a essa estrutura religiosa imperial o Apocalipse responde com o convite para uma adoraccedilatildeo exclusiva a Deus e seu Cordeiro mesmo que o preccedilo para isso fosse o caminho do martiacuterio (Ap 1413)

Valtair Afonso MirandaRua Uruguai 514202

20510-060 ndash Rio de Janeiro RJvaltairmirandagmailcom

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REFEREcircNCIASBARR David L Tales of the End a Narrative Commentary on the Book of Revelation Santa Rosa Polebridge Press 1998

BORTOLINI Joseacute Como ler o Apocalipse Sao Paulo Paulus 2008

COLLINS Adela Yarbro The Combath Myth in the Book of Revelation Eugene Wipf and Stock Publishers 2001

FRIEDRICH Paulo Nestor Apocalipse 2ndash3 Sete cartas Uma anaacutelise literaacuteria Estudos de Religiatildeo n 19 p 149-173 2000

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LAZIER Josueacute Adam A estrateacutegia cristatilde no contexto da Pax Romana Estudos Biacuteblicos n 36 p 37-40 1992

MESTER Carlos OROFINO Francisco Apocalipse de Joatildeo a teimosia da feacute dos pequenos Petroacutepolis Vozes 2002

_________ A violecircncia do Impeacuterio Romano e a sua influecircncia na vida das comu-nidades cristatildes do fim do primeiro seacuteculo Estudos Biacuteblicos n 69 p 72-82 2001

MIRANDA Valtair A Maacutertires e monges milenarismos antigos e medievais Santo Andreacute Kapenke 2018

_________ O caminho do Cordeiro representaccedilatildeo e construccedilatildeo de identidade no Apocalipse de Joatildeo Satildeo Paulo Paulus 2011

_________ Religiatildeo e sociedade na Aacutesia romana Religare v13 n1 p150-179 2016

_________ Revisitando o contexto de produccedilatildeo do Apocalipse de Joatildeo Reflexus ano IX n 14 p 389-416 2015

PRIGENT Pierre O Apocalipse Trad Luiz Joatildeo Barauacutena Satildeo Paulo Loyola 1993

WIKENHAUSER Alfred El Apocalipsis de San Juan Barcelona Editorial Herder 1969

Page 7: seminariodosul.com.br...O primeiro concílio da igreja é o mencionado no capítulo 15 de Atos dos Apóstolos, onde Lucas relata o Concílio de Jerusalém em 50 d.C., liderado por

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the main decisions related to Christ From Nicaea I (325) to Nicaea II (787) the main heresies their main founders and the councilsrsquo responses to each of them are addressed with the respective council conclusions

Keywords Christological decisions Ecumenical councils Heresies Trinity History of Christianity

INTRODUCcedilAtildeOApoacutes a morte e a ressureiccedilatildeo de Cristo os apoacutestolos possuiacuteam uma grande

missatildeo em suas matildeos o questionamento sobre quem era Jesus Cristo pairava entre os adeptos do novo movimento (mais tarde denominado de cristianismo) e eles precisavam dar respostas Antes mesmo de sua morte Jesus Cristo havia perguntado aos seus disciacutepulos Ὑμεῖς δὲ τίνα με λέγετε εἶναι (ldquoHymeis de tiacutena me leacutegete einairdquo - Vocecircs no entanto quem vocecircs dizem que eu sou) Esta pergunta foi respondida por Pedro Τὸν Χριστὸν τοῦ Θεοῦ (ldquoTon Christon tou Theourdquo - O Cristo de Deus)

Mesmo sendo disciacutepulos para alguns ainda natildeo estava claro quem era Jesus Apoacutes a morte e ressureiccedilatildeo Tomeacute ainda precisou tocar em Jesus para ter certeza de que ali estava o Cristo ressuscitado Trezentos anos depois essa tarefa natildeo tinha ficado mais faacutecil Pelo contraacuterio se aqueles que estiveram com Cristo em carne natildeo haviam percebido como poderiam aqueles que natildeo andaram com Ele somente ouviram falar entender a ideia de Jesus como Deus Ou como Salvador

Portanto desde a fundaccedilatildeo do cristianismo a igreja tem lidado com contro-veacutersias no que diz respeito agrave aceitaccedilatildeo de Cristo como Deus ou como humano Muitas ideias surgiram principalmente entre os seacuteculos IV ndash VIII para tentar sistematizar o estudo da pessoa de Cristo comumente chamado de Cristologia Alguns desses pensamentos que contrastavam com as crenccedilas da igreja embora rotuladas de ldquohereacuteticasrdquo provocaram debates significativos sobre a pessoa de Cristo Esses debates convocados satildeo chamados de conciacutelios3

O primeiro conciacutelio da igreja eacute o mencionado no capiacutetulo 15 de Atos dos Apoacutestolos onde Lucas relata o Conciacutelio de Jerusaleacutem em 50 dC liderado por Tiago com o objetivo de discutir sobre a conversatildeo dos judeus ao cristianismo e a difusatildeo da Palavra aos gentios4 Depois apareceu a ameaccedila do gnosticismo

3 DIEgraveGUE Ricardo Christological controversies of the first four ecumenical councils B A Leavell College June 27 20144 KELLY Joseph F The Ecumenical Councils of the Catholic Church (Collegeville Minnesota Liturgical Press 2009)

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e de outras doutrinas semelhantes no seacuteculo III quando Cipriano era bispo de Cartago foi debatida a questatildeo da readmissatildeo dos que tinham caiacutedo5

Um fator limitante para que as discussotildees prosseguissem era a disponibili-dade dos envolvidos para isso pois muitos deles estavam sendo perseguidos ou fugindo Com o fim da perseguiccedilatildeo promovido por Constantino no iniacutecio do seacuteculo IV houve mais seguranccedila e liberdade para prosseguir o debate de controveacutersias teoloacutegicas Ideias controversas dentro do impeacuterio poderiam dividi- lo e Constantino natildeo queria ameaccedilar a unidade do impeacuterio Assim o primeiro conciacutelio ecumecircnico foi convocado6

Sete conciacutelios ecumecircnicos foram chamados no total entre os seacuteculos IV-VIII Dentre eles os quatro primeiros destacam-se por sua autoridade doutrinaacuteria e por sua importacircncia histoacuterica Niceacuteia I e Constantinopla I lanccedilam base para as questotildees da trindade enquanto Eacutefeso e Calcedocircnia tratam com mais afinco a questatildeo da encarnaccedilatildeo7

1 NICEacuteIA (325)O Primeiro Conciacutelio Ecumecircnico foi convocado pelo Imperador Constantino

o Grande em 325 em 20 de maio O Conselho reuniu-se em Niceacuteia na proviacutencia de Bitiacutenia na Aacutesia Menor e foi formalmente aberto pelo proacuteprio Constantino O Conselho aprovou 20 cacircnones incluindo o Credo Niceno o Cacircnon das Escrituras Sagradas (Biacuteblia Sagrada) e estabeleceu a celebraccedilatildeo da Pascha (Paacutescoa)

Aleacutem dessas questotildees a pessoa de Cristo foi debatida nesse conciacutelio A prin-cipal heresia debatida foi o arianismo Aacuterio era padre em Alexandria e no iniacutecio do seacuteculo IV seu paradigma de pensamento cristatildeo estava ganhando forccedila8 Em uma carta escrita a Euseacutebio bispo de Nicomeacutedia em 321 Aacuterio advertiu

[] mas natildeo podemos dar ouvidos nem mesmo pensar em debelar estas heresias sem que nos ameacem com mil mortes Noacutes pensamos e afir-mamos como temos pensado e continuamos a ensinar que o Filho natildeo eacute ingecircnito nem participa absolutamente do ingecircnito nem derivou de alguma substacircncia mas que por sua proacutepria vontade e decisatildeo existiu antes dos tempos e era inteiramente Deus unigecircnito e imutaacutevel Mas antes de ter sido gerado ou criado ou nomeado ou estabelecido ele natildeo

5 GONZAacuteLEZ Justo L Uma Histoacuteria Ilustrada do Cristianismo - Volume 1 Ed Vida Nova6 GONZAacuteLEZ Justo L Op cit 7 ALBERIGO Giuseppe (Ed) Historia de los concilios ecumeacutenicos Siacutegueme 19938 HASBROUCK Ryan The First Four Ecumenical Councils as Ineffective Means to Control the Rise and Spread of Heterodox Christian Ideologies Dept of History University of Colorado 2009

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existia pois ele natildeo era ingecircnito Somos perseguidos porque afirmamos que o Filho tem um iniacutecio enquanto Deus eacute sem iniacutecio9

A premissa fundamental de Aacuterio era que ele deduzia uma concepccedilatildeo da absoluta unidade e transcendecircncia de Deus somente Deus eacute ldquoprinciacutepio natildeo geradordquo e a essecircncia da divindade natildeo pode ser dividida nem ser comunicada a outros mesmo que o que existe tenha sido chamado a ser a partir do nada Um dos slogans mais ceacutelebres e discutidos sobre o Logos consistia precisamente na afirmaccedilatildeo segundo a qual ldquohavia um tempo em que ele natildeo erardquo slogan que comprometia a unicidade de Deus10

Na visatildeo dos anti-arianos eacute da proacutepria natureza do Pai gerar o Filho o Pai nunca foi outro senatildeo o Pai portanto o Filho e o Pai devem ter existido desde toda a eternidade o Pai gerando eternamente o Filho A frase de vital impor-tacircncia na resposta ortodoxa ao arianismo era ldquode uma substacircncia (homoousios) com o Pairdquo Esta frase afirma que o Filho compartilha o mesmo ser que o Pai e portanto eacute totalmente divino11 Assim nasce o credo Niceno que combatia as principais heresias arianas aleacutem de definir questotildees cristoloacutegicas

Conforme a tradiccedilatildeo dos Evangelhos e dos Apoacutestolos noacutes cremos em um soacute Deus Pai todo poderoso autor criador e ordenador providente do universo de quem todas as coisas adquirem existecircncia E num soacute Senhor Jesus Cristo seu filho Deus unigecircnito mediante o qual tudo existe o qual foi gerado pelo pai antes de todas as eacutepocas Deus de Deus tudo de tudo uacutenico de uacutenico completo de completo rei de rei senhor de senhor [] e se algueacutem disser que o Filho eacute uma criatura como qualquer outra ou uma prole como qualquer outra ou uma obra como qualquer outra seja anaacutetema12

Portanto atraveacutes desse conciacutelio fica decidido que Jesus eacute Deus verdadeiro com a mesma essecircncia (consubstancial) Assim trecircs foram as decisotildees do con-ciacutelio a primeira ediccedilatildeo do credo niceno o termo homoousios (ομοούσιος) e a condenaccedilatildeo de Aacuterio A carta que condena Aacuterio e seus disciacutepulos satildeo bem claras ao anatematizar suas opiniotildees classificando-as como blasfemas e dementes13

Examinou-se de iniacutecio perante Constantino nosso soberano mui amado de Deus a impiedade e irregularidade de Aacuterio e de seus disciacutepulos De-

9 BETTENSON H Documentos da Igreja Cristatilde Carta de Aacuterio a Euseacutebio bispo de Nicomeacutedia (c321) ASTE Satildeo Paulo 2011 10 ALBERIGO Giuseppe Op Cit 11 DAVIS Leo Donald The first seven ecumenical councils (325-787) Their History and Theology Collegeville Minnesota The Liturgical Press 198312 BETTENSON H Op cit O credo de dedicaccedilatildeo (341) ndash Atanaacutesio 13 SCHMELING Gaylin R The Christology of the Seven Ecumenical Councils

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cidiu-se por unanimidade que devem ser anatematizadas suas opiniotildees iacutempias e todas as suas afirmaccedilotildees e expressotildees blasfematoacuterias tal como estatildeo sendo emitidas e divulgadas tais como ldquoo Filho de Deus eacute do que natildeo eacuterdquo ldquohouve [um tempo] quando natildeo existiardquo ou afirmaccedilatildeo de que Filho de Deus em virtude de seu livre arbiacutetrio eacute capaz do bem e do mal ou de que pode ser chamado de criatura ou de feitura Todas essas afirmaccedilotildees anatematizadas pelo santo Siacutenodo que natildeo tolera declaraccedilotildees tatildeo iacutempias tatildeo dementes e blasfematoacuterias14

Entre os apoiadores de Aacuterio podem-se contar Atanaacutesio bispo de Anazarbus Narciso de Neronias Euseacutebio de Cesareia e Asterius Dos anti-arianos podem ser citados os Grandes Capadoacutecios (Basiacutelio o Grande Gregoacuterio de Nazianzus - irmatildeo mais novo de Basiacutelio e Gregoacuterio de Nissa) e Atanaacutesio de Alexandria sendo este de grande importacircncia para a histoacuteria do conciacutelio que sucedeu o de Niceacuteia15

2 CONSTANTINOPLA (381)Atanaacutesio era secretaacuterio de Alexandre o Bispo de Alexandria Quando Ale-

xandre morreu Atanaacutesio foi eleito bispo de Alexandria Euseacutebio de Nicomeacutedia um dirigente ariano que possuiacutea contato direto com Constantino fez declaraccedilotildees sobre Atanaacutesio as quais levaram esse rei a decretar o exiacutelio de Atanaacutesio em Treacuteveris no Ocidente16

Constantino adoeceu e morreu no ano 337 logo em seguida o trono foi assu-mido por seu filho Constacircncio que revogou todos os exiacutelios e Atanaacutesio retornou a Alexandria A mudanccedila de lideranccedila teve um profundo impacto na controveacutersia ariana pois Constacircncio tambeacutem proacuteximo de Euseacutebio de Nicomeacutedia tornou-o bispo de Constantinopla e simpatizou-se com as visotildees arianas17 Tentando combater o arianismo Apolinaacuterio acabou se excedendo em seu pensamento razatildeo por que sua teoria tornou-se uma heresia

Apolinaacuterio alegou que o nous (mente alma) de Cristo era essencialmente o Logos (divino) em uma forma glorificada e espiritualizada da humanidade (seu corpo)18 Ele acreditava que o Logos havia substituiacutedo a alma de Jesus Por ter uma ideia opressiva da natureza divina de Jesus Apolinaacuterio cancelou a natureza

14 BETTENSON H Op cit Carta do Siacutenodo de Niceacuteia (325) ndash Condenaccedilatildeo de Aacuterio15 DIEgraveGUE Ricardo Op cit16 GONZAacuteLEZ Justo L Op cit17 RUBENSTEIN Richard When Jesus Became God The Struggle to Define Christianity during the Last Days of Rome Orlando Harcourt Inc 200018 ANDERSON William P A Journey through Christian Theology Minneapolis MN Fortress Press 2nd edition 2010

14 TeoloacutegicaRevista Brasileira de Teologia ISSN 1807-7056 nordm 8 outdez Rio de Janeiro 2020 p 9-22

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humana de Jesus19 Isso se chama Monofisismo do grego monos ldquoapenas umardquo e physis ldquonaturezardquo e eacute a crenccedila de que como resultado da encarnaccedilatildeo a huma-nidade de Jesus foi tatildeo infundida por Sua divindade que Ele tinha apenas uma natureza divina20 Estava formado o palco para o segundo conciacutelio ecumecircnico

Atanaacutesio foi um dos maiores apologista de Cristo durante o conciacutelio de Constantinopla Para combater o apolinarismo ele argumentou que Jesus era simultaneamente homem e Deus A fim de evidenciar sua posiccedilatildeo mostrou que foi a encarnaccedilatildeo que permitiu que Jesus cumprisse Seu papel pretendido na Terra Colocando seu argumento em termos negativos Atanaacutesio estaria dizendo que se Jesus natildeo tivesse nascido de uma mulher e portanto habitado um corpo humano e vivido uma vida humana Ele natildeo poderia ter concedido salvaccedilatildeo agrave humanidade atraveacutes de Sua morte21

No comeccedilo de seus discursos Atanaacutesio natildeo usou muito o homoousios niceno mas gradualmente viu toda a implicaccedilatildeo desse conceito e se tornou seu defen-sor mais resoluto A semelhanccedila e a unidade do Pai e da Palavra natildeo podem consistir apenas em harmonia e concordacircncia de mente e vontade mas devem respeitar a essecircncia (ουσία) A divindade do Pai eacute idecircntica agrave divindade do Logos O Logos eacute diferente do Pai porque Ele veio do Pai mas como Deus o Logos e o Pai satildeo um e o mesmo O que eacute dito do Pai eacute dito do Filho exceto que o Filho natildeo eacute chamado Pai Pode-se dizer que os seres humanos satildeo homoousioi porque compartilham a natureza humana mas natildeo podem possuir uma mesma substacircncia (υπόστασις) idecircntica22

Esse eacute o ponto para o qual o credo foi direcionado a palavra Deus conota precisamente a mesma verdade quando vocecirc fala de Deus o Pai como acontece quando vocecirc fala de Deus o Filho Conota a mesma verdade Se vocecirc contempla o Pai que eacute uma apresentaccedilatildeo distinta da divindade obteacutem uma visatildeo mental do uacutenico Deus verdadeiro Se vocecirc contempla o Filho ou o Espiacuterito obteacutem uma visatildeo do mesmo Deus embora a apresentaccedilatildeo seja diferente a realidade eacute idecircnticardquo23

Creio em um soacute Deus Pai Todo-Poderoso criador do ceacuteu e da terra de todas as coisas visiacuteveis e invisiacuteveis Creio em um soacute Senhor Jesus Cristo

19 BELLITTO Christopher M The General Councils A History of the Twenty-One Church Councils from Nicaea to Vatican II Mahwah NJ Paulist Press 200220 JOHNSON Douglas W The Great Jesus Debates 4 Early Church Battles about the Person and Work of Jesus Saint Louis MO Concordia Publishing House 200521 HASBROUCK Ryan Op cit 22 DAVIS Leo Donald Op cit23 DAVIS Leo Donald Op cit

15TeoloacutegicaRevista Brasileira de Teologia ISSN 1807-7056 nordm 8 outdez Rio de Janeiro 2020 p 9-22

Filho Unigecircnito de Deus nascido do Pai antes de todos os seacuteculos Deus de Deus luz da luz Deus verdadeiro de Deus verdadeiro gerado natildeo criado consubstancial ao Pai Por ele todas as coisas foram feitas E por noacutes homens e para nossa salvaccedilatildeo desceu dos ceacuteus e se encarnou pelo Espiacuterito Santo no seio da Virgem Maria e se fez homem

A foacutermula proposta por Atanaacutesio resolveu temporariamente o dilema cris-toloacutegico que atormentava a igreja primitiva No entanto a maacute interpretaccedilatildeo do credo em uma capacidade diferente logo criou mais inquietaccedilatildeo e a necessidade de outro conselho ecumecircnico

3 EacuteFESO (431)Mesmo depois de Constantinopla I as questotildees voltaram a aparecer Como

poderia Jesus ser homem e Deus ao mesmo tempo Quais eram as implicaccedilotildees dessa afirmaccedilatildeo para Maria Era Jesus humano em algumas situaccedilotildees e Deus em outras Seria Maria matildee apenas da parte humana ou tambeacutem da parte divina Como fazer essa distinccedilatildeo24

O proacuteximo episoacutedio das controveacutersias cristoloacutegicas ocorreu por intermeacutedio de Nestoacuterio um partidaacuterio da escola de Antioquia que se tornou patriarca de Constantinopla em 428 Pelo fato de essa cidade ter sido declarada a capital do Impeacuterio Oriental Antioquia e Alexandria se tornaram rivais Cirilo que era bispo de Alexandria levantou-se para combater as ideias de Nestoacuterio25

O motivo imediato da controveacutersia foi o termo theotokos que era usado para Maria Theotokos geralmente traduzido por ldquomatildee de Deusrdquo literalmente quer dizer ldquogenitora de Deusrdquo Ao explicar sua oposiccedilatildeo a esse termo Nestoacuterio dizia que Deus em Jesus Cristo teria se unido a um ser humano Como Deus eacute uma pessoa e o ser humano eacute outra em Cristo devem estar presentes natildeo soacute duas naturezas mas tambeacutem duas pessoas O que nasceu de Maria foi a pessoa e natureza humana e natildeo a divina Por isso Maria eacute Christotokos (genitora de Cristo) e natildeo theotokos (genitora de Deus)26

Cirilo insistiu na unidade do divino e do humano a ponto de poder dizer que o Verbo sofreu por noacutes natildeo porque o divino sofreu (uma impossibilidade) mas que o divino e o humano se completaram na mesma pessoa27 As duas naturezas

24 BELLITTO Christopher M Histoacuteria dos 21 conciacutelios da Igreja de Niceacuteia ao Vaticano II Traduccedilatildeo de Claacuteudio Queiroz de Godoy Satildeo Paulo Loyola 201025 GONZAacuteLEZ Justo L Op cit26 GONZAacuteLEZ Justo L Op cit27 KELLY Joseph F

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que foram unidas a fim de formarem a verdadeira unidade (uniatildeo hipostaacutetica) eram diferentes mas de ambas houve um soacute Cristo e um soacute Filho Eacute nesse sentido que Cristo nasceu na expressatildeo biacuteblica da carne de mulher embora existisse e fosse gerado pelo Pai antes de todos os seacuteculos28

Cirilo escreveu doze anaacutetemas e enviou a Constantinopla juntamente com uma extensa carta que expunha sua doutrina Dentre os principais pontos eacute interessante ressaltar os pontos um e dois que falam sobre Maria e sobre a uniatildeo hipostaacutetica

Se algueacutem natildeo confessar que o Emanuel eacute verdadeiro Deus e que portan-to a Santa Virgem eacute Theotoacutekos porquanto deu agrave luz segunda a carne ao Verbo de Deus feito carne seja anaacutetema Se algueacutem natildeo confessar que o Verbo de Deus Pai estava unido pessoalmente [kathrsquohypoacutestasin] agrave carne sendo com ela propriamente um soacute Cristo ou seja um soacute e mesmo Deus e homem ao mesmo tempo seja anaacutetema29

Enquanto isso Nestoacuterio foi deposto e enviado a um mosteiro de Antioquia Mais tarde ele foi transferido para a distante cidade de Petra e por fim a um oaacutesis no deserto da Liacutebia onde passou o resto de seus dias30

4 CALCEDOcircNIA (451)Apoacutes o Conciacutelio de Eacutefeso o debate sobre as duas naturezas de Jesus estava

em andamento Eacute importante lembrar que com a Escola Alexandrina liderada por Cirilo a uniatildeo foi feita de tal maneira que o Logos substituiu a alma e portanto a divindade de Jesus submergiu agrave sua humanidade No entanto para a Escola de Antioquia a ldquouniatildeordquo foi feita com a distinccedilatildeo de ambas as naturezas que permaneceram separadas31

A controveacutersia cristoloacutegica de Eacutefeso culminou com a condenaccedilatildeo de Nestoacuterio e o seu envio para o exiacutelio No entanto quando Dioacutescoro substituiu Cirilo no patriarcado em Alexandria em 444 um novo embate estava para surgir Agora a heresia era liderada por Ecircutico um monge que morava em Constantinopla Os ideais pregados por Ecircutico eram apoiados por Dioacutescoro o que dava ao monge certa ousadia e arrogacircncia para falar Mal sabia ele que as intenccedilotildees de Dioacutescoro eram poliacuteticas ele esperava que Ecircutico fosse condenado no conciacutelio para poder ter uma causa a defender contra Flaviano o novo patriarca de Constantinopla32

28 BETTENSON H Op cit Exposiccedilatildeo de Cirilo29 BETTENSON H Op cit Anaacutetemas de Cirilo de Alexandria30 GONZAacuteLEZ Justo L Op cit31 BOKENKOTTER Thomas A Concise History of the Catholic Church New York DoubleDay 200432 GONZAacuteLEZ Justo L Op cit

17TeoloacutegicaRevista Brasileira de Teologia ISSN 1807-7056 nordm 8 outdez Rio de Janeiro 2020 p 9-22

Dedicado agrave teologia de Cirilo e altamente ortodoxo Ecircutico comeccedilou a ensinar que antes da Encarnaccedilatildeo Cristo era de duas naturezas mas depois havia um Cristo um Filho um Senhor em uma hipoacutestase Ele repudiou a existecircncia de duas naturezas apoacutes a Encarnaccedilatildeo em oposiccedilatildeo agraves Escrituras e ao ensino dos Pais33

ldquoEu adorordquo ele insistiu ldquouma natureza a de Deus que se fez carne e se tornou homemrdquo No entanto admitiu que Cristo nasceu da Virgem portanto era subs-tancial conosco (humanos) e era Deus perfeito e homem perfeito No entanto a carne de Cristo natildeo era na opiniatildeo de Ecircutico consubstancial agrave carne humana comum mas reconheceu que a humanidade de Cristo era plena sem falta de uma alma racional como era para os apolinaristas A humanidade de Cristo tambeacutem natildeo era uma mera aparecircncia como era para os docetistas tampouco a Palavra e a carne foram fundidas em uma natureza mista Ainda assim ele repetiu obstinadamente que Cristo era de duas naturezas antes da Encarnaccedilatildeo e de apenas uma depois da encarnaccedilatildeo34

Leatildeo o grande foi o principal defensor da ortodoxia no conciacutelio de Calcedocirc-nia e sua defesa gerou o Tomo de Leatildeo A definiccedilatildeo desse conciacutelio portanto pode ser vista como proposiccedilotildees apologeacuteticas aos pensamentos do eutiquianismo

Fieacuteis aos santos pais todos noacutes perfeitamente unanimes ensinamos que se deve confessar um soacute e mesmo Filho nosso Senhor Jesus Cristo perfei-to quanto agrave divindade e perfeito quanto agrave humanidade verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem constando de alma racional e de corpo consubstancial [homooysios] ao Pai segundo a divindade e consubstan-cial a noacutes segundo a humanidade ldquoem todas as coisas semelhante a noacutes excetuando o pecadordquo gerado segundo a divindade antes dos seacuteculos pelo Pai e segundo a humanidade por noacutes e para nossa salvaccedilatildeo gerado da Virgem Maria matildee de Deus [Theotoacutekos] Um soacute e mesmo Cristo Filho Senhor Unigecircnito que se deve confessar em duas naturezas inconfundiacuteveis e imutaacuteveis conseparaacuteveis e indivisiacuteveis A distinccedilatildeo de naturezas de modo algum eacute anulada pela uniatildeo mas pelo contraacuterio as propriedades de cada natureza permanecem intactas concorrendo para formar uma soacute pessoa e subsistecircncia [hypoacutestasis] natildeo dividido ou separado em duas pessoas mas um soacute e mesmo Filho Unigecircnito Deus Verbo Jesus Cristo Senhor conforme os profetas outrora a seu respeito testemunharam e o mesmo Jesus Cristo nos ensinou e o credo dos pais nos transmitiu 35

33 DAVIS Leo Donald Op cit34 DAVIS Leo Donald Op cit35 BETTENSON H Op cit A definiccedilatildeo de Calcedocircnia (451)

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5 CONSTANTINOPLA II (553)O periacuteodo poacutes Calcedocircnia foi muito parecido com o de Niceacuteia em ambos os

conciacutelios uma soluccedilatildeo basicamente ocidental para um problema oriental havia sido introduzida na dieta teoloacutegica do Oriente Depois dos dois conciacutelios o Oriente empreendeu muito tempo e esforccedilo para digerir e assimilar tudo o que ficou decidido No caso de Niceacuteia o mundo romano gradualmente aceitou seu credo O arianismo permaneceu firme entre as tribos alematildes por um tempo mas muito lentamente sucumbiu a Niceacuteia No caso de Eacutefeso e Calcedocircnia seccedilotildees do mundo romano e aleacutem entraram em cisma em vez de aceitar suas decisotildees e assim continuam ateacute os nossos dias O conciacutelio de Constantinopla II foi um esforccedilo para mostrar aos (ateacute entatildeo) monofisitas cismaacuteticos que Calcedocircnia realmente preservava os valores teoloacutegicos36

Quando Justino morreu em 527 seu sobrinho Justiniano assumiu o impeacuterio Bizantino com o principal ideal de unir o impeacuterio No entanto ele precisaria reunificar uma igreja dividida pela questatildeo cristoloacutegica Justiniano achava que o conciacutelio de Calcedocircnia tinha se pronunciado corretamente com respeito agraves naturezas de Cristo mas ao mesmo tempo percebia que os monofisitas mais moderados tinham razatildeo ao apontar para os perigos que essa doutrina poderia trazer consigo 37

Assim o conciacutelio foi solicitado e aconteceu em 5 de maio de 553 no grande salatildeo anexo ao palaacutecio patriarcal em Constantinopla Estavam presentes os representantes do patriarca de Jerusaleacutem todos os 151 a 168 bispos incluindo seis a nove da Aacutefrica38

O objetivo de convocar o conciacutelio de Constantinopla II foi o de condenar as obras de trecircs homens a saber Teodoro de Mopsueacutestia Teodoreto de Cyr e Ibas de Edessa que tiveram suas declaraccedilotildees individuais agrupadas e chamadas de ldquotrecircs capiacutetulosrdquo Eles foram acusados de simpatizarem com o nestorianismo e de favorecerem o monofisismo ao afirmar que Jesus tinha uma soacute natureza o divino sobrepujando o humano Os ldquocapiacutetulosrdquo foram condenados nesse conciacutelio 39

Se algueacutem natildeo reconhece a uacutenica natureza ou substacircncia (oysia) do Pai Filho e Espiacuterito Santo sua uacutenica virtude e poder uma Trindade consubs-tancial seja anaacutetema Porque existe um soacute Deus e Pai do qual procedem

36 DAVIS Leo Donald Op cit37 GONZAacuteLEZ Justo L Op cit38 DAVIS Leo Donald Op cit39 BELLITTO Christopher M Op cit

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todas as coisas e um soacute Senhor Jesus Cristo atraveacutes do qual satildeo todas as cosias e um soacute Espiacuterito Santo no qual estatildeo todas as coisas 40

Portanto o Conciacutelio de Constantinopla II esclareceu mais uma vez os ensi-namentos da Igreja sobre as duas naturezas de Jesus unidas hipostaticamente em uma soacute pessoa Os padres natildeo soacute condenaram os hereacuteticos e as heresias como tambeacutem os que simpatizavam com elas 41

6 CONSTANTINOPLA III (680-681)Em 7 de novembro de 680 o conciacutelio de Constantinopla III abriu em uma

grande sala abobadada - o Trullus - no palaacutecio imperial com apenas quarenta e trecircs bispos presentes O proacuteprio imperador abriu o conciacutelio e presidiu as onze primeiras sessotildees O conciacutelio teve dezoito sessotildees separadas por longos inter-valos ateacute 16 de setembro de 68142

Os legados papais comeccedilaram exigindo que o clero de Constantinopla expli-casse seus ensinamentos sobre monoenergismo e monotelismo A convite do imperador Jorge de Constantinopla e Macaacuterio de Antioquia responderam que eles ensinavam apenas doutrinas definidas pelos conselhos Seguiu-se a leitura dos atos dos Conciacutelios de Eacutefeso Calcedocircnia e Constantinopla II43

O patriarca Seacutergio de Constantinopla depois de tentar sem sucesso vaacuterias maneiras de aproximar-se dos monofisitas propocircs a doutrina chamada de ldquomo-notelismordquo Essa palavra vem das raiacutezes gregas mono (um) e thelema (vontade) O que Seacutergio propunha eacute que em Cristo ao mesmo tempo em que havia duas naturezas a divina e a humana como o concilio de Calcedocircnia declarara havia uma soacute vontade Ao que parece o que Seacutergio queria dizer era que em Cristo natildeo havia outra vontade aleacutem da divina Quando perguntaram ao papa Honoacuterio o que ele pensava da foacutermula de Seacutergio o papa a aprovou Poreacutem a oposiccedilatildeo em vaacuterias regiotildees do Impeacuterio natildeo demorou a se manifestar 44

O teoacutelogo que mais se distinguiu nesse sentido foi Maacuteximo de Crisoacutepolis que eacute conhecido por Maacuteximo ldquoo Confessorrdquo Mais tarde em 648 a oposiccedilatildeo ao monotelismo chegou a tal ponto que o imperador Constante II proibiu qualquer discussatildeo sobre se em Cristo havia uma ou duas vontades Quando o imperador promulgou essa proibiccedilatildeo o Impeacuterio tinha perdido o interesse de se aproximar

40 BETTENSON H Op cit Os ldquotrecircs capiacutetulosrdquo ndash Os cacircnones do segundo conciacutelio de Constantinopla (553)41 BELLITTO Christopher M Op cit42 DAVIS Leo Donald Op cit43 GONZAacuteLEZ Justo L Op cit44 GONZAacuteLEZ Justo L Op cit

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dos monofisitas Siacuteria e Egito as regiotildees do Impeacuterio onde o monofisismo tinha a maior parte dos seus adeptos haviam sido conquistadas pouco antes pelos aacuterabes Tal fato significaria que a partir de entatildeo a corte de Constantinopla em vez de se preocupar com a boa vontade dos monofisitas de Egito e Siacuteria tinha de melhorar as suas relaccedilotildees com os cristatildeos calcedonenses que eram a maioria tanto nos territoacuterios que ainda pertenciam ao Impeacuterio como no Ocidente45

Em consequecircncia o sexto conciacutelio ecumecircnico que se reuniu em Constanti-nopla em 680 e 681 condenou o monotelismo e reafirmou a Definiccedilatildeo de feacute de Calcedocircnia Entre os monotelitas condenados especificamente pelo conciacutelio es-tava o papa Honoacuterio O caso de um papa condenado nominalmente como herege por um conciacutelio ecumecircnico foi uma das dificuldades que os catoacutelicos tiveram de enfrentar quando no seacuteculo XIX conseguiram que o conciacutelio Vaticano I promulgasse a infalibilidade papal46

7 NICEacuteIA II (787)A uacuteltima grande controveacutersia que atingiu a igreja durante o periacuteodo aqui

estudado (ateacute o seacuteculo VIII) questionava o uso de imagens no culto puacuteblico A igreja cristatilde antiga parecia natildeo se opor ao uso delas para decoraccedilatildeo como imagens alusivas a episoacutedios da Biacuteblia No entanto quanto mais pagatildeos se con-vertiam mais os liacutederes temiam que as imagens levassem agrave praacutetica da idolatria Alguns no entanto reforccedilavam o valor das imagens como ldquolivros iletradosrdquo uma vez que muitos natildeo sabiam ler Assim surgiram dois partidos que receberam o nome de ldquoiconoclastasrdquo (destruidores de imagens) e ldquoiconodulosrdquo (adoradores de imagens) 47

Os iconoclastas se baseavam em passagens biacuteblicas que proiacutebem a idolatria como Ecircxodo 204-5 Os iconodulos por sua vez relacionaram a discussatildeo com as controveacutersias cristoloacutegicas dos seacuteculos anteriores

A razatildeo pela qual eacute possiacutevel representar os misteacuterios divinos atraveacutes de imagens eacute que em Cristo o proacuteprio Deus nos deu sua imagem Natildeo deixar representar a Cristo equivaleria a negar a sua humanidade Se Cristo foi homem deve ser possiacutevel representaacute-lo assim como qualquer outro ho-mem pode ser representado Aleacutem disso o primeiro criador das imagens foi o proacuteprio Deus ao criar a humanidade agrave sua imagem48

45 GONZAacuteLEZ Justo L Op cit46 BELLITTO Christopher M Op cit47 GONZAacuteLEZ Justo L Op cit48 GONZAacuteLEZ Justo L Op cit

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Embora os bispos tivessem sido notavelmente longiacutenquos em seus debates eles foram bastante concisos em seu decreto Eles disseram que Cristo nos livrou da loucura idoacutelatra e sempre continua sustentando Sua Igreja mas alguns mes-mo os sacerdotes se desviaram deixando de ldquodistinguir entre santo e profano estilizando as imagens de Nosso Senhor e de Seus santos da mesma maneira como as estaacutetuas dos iacutedolos diaboacutelicosrdquo Os bispos acrescentaram a aceitaccedilatildeo dos seis conciacutelios ecumecircnicos anteriores especialmente o que se encontrava ldquona ilustre metroacutepole de Niceacuteiardquo49

Em seguida eles mantiveram inalteradas todas as tradiccedilotildees eclesiaacutesticas que foram transmitidas por escrito ou verbalmente uma das quais eacute a realizaccedilatildeo de representaccedilotildees pictoacutericas agradaacuteveis agrave histoacuteria da pregaccedilatildeo dos Evangelhos uma tradiccedilatildeo uacutetil em muitos aspectos mas especialmente em que a encarnaccedilatildeo da Palavra de Deus eacute mostrada como real e natildeo meramente fantaacutestica50 Em resumo o uso das imagens foi restaurado para veneraccedilatildeo (dulia) mas natildeo para adoraccedilatildeo (latria)51

CONSIDERACcedilOtildeES FINAISDiante de inuacutemeras controveacutersias e debates eacute interessante perceber como cada

decisatildeo tomada nos conciacutelios ajudou a entender temas cristoloacutegicos Percebe-se que desde o iniacutecio existe uma tentativa de explicar e sistematizar a natureza de Cristo de definir em quais momentos seu lado humano eou divino esteve em accedilatildeo As heresias debatidas foram importantes para que as respostas levantadas pela Igreja formassem ou pelo menos ajudassem a formar o pensamento que temos hoje sobre quem eacute Cristo e sua natureza Eacute inevitaacutevel que temas adja-centes aparecessem como a proacutepria natureza de Maria e a adoraccedilatildeo a imagens Estudar esse recorte da histoacuteria do cristianismo eacute portanto fundamental para compreender o pensamento da Igreja daqueles seacuteculos e qual a visatildeo que se tinha sobre quem eacute Jesus

O exerciacutecio mental que pode aqui ser realizado eacute o de comparar as mentali-dades e tentar perceber se muita coisa mudou em relaccedilatildeo aos nossos dias Outro exerciacutecio que pode ser feito eacute avaliar o quanto esse conjunto de pensamento do seacuteculo VIII nos influencia hoje

49 BELLITTO Christopher M Op cit50 BELLITTO Christopher M Op cit51 WILLIAMS Terri Cronologia da Histoacuteria Eclesiaacutestica em graacuteficos e mapas Satildeo Paulo Vida Nova 1993

22 TeoloacutegicaRevista Brasileira de Teologia ISSN 1807-7056 nordm 8 outdez Rio de Janeiro 2020 p 9-22

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23TeoloacutegicaRevista Brasileira de Teologia ISSN 1807-7056 nordm 8 outdez Rio de Janeiro 2020 p 23- 34

O LIVRO DE JONAS E O ARREPENDIMENTO VERDADEIRO NA BIacuteBLIA E NA ATUALIDADE

Evelise Cavalcanti52

Teresa Akil53

RESUMO O presente artigo busca analisar a relaccedilatildeo de instabilidade do homem com

o divino atraveacutes da obediecircncia e desobediecircncia desse homem em relaccedilatildeo a Deus bem como ao pecado Analisa-se o reflexo primordial de desobediecircncia a Deus na parte introdutoacuteria do Livro de Jonas contemplando o pecado em si e o relacionamento de Jonas com Deus para que seja pautada e estruturada a misericoacuterdia divina na vida desse profeta A partir dessa concepccedilatildeo busca-se refletir acerca da instabilidade do homem em relaccedilatildeo a Deus na Biacuteblia e na atualidade para traccedilar paracircmetros para que seja aprofundado o arrependimento verdadeiro do ser humano a partir da anaacutelise de Jonas e Davi

Palavras-chave Livro de Jonas Desobediecircncia ao divino Duacutevida Culpa Arrependimento verdadeiro

ABSTRACTThis scientific article seeks to analyze the relationship of manrsquos instability

with the divine through manrsquos obedience and disobedience in relation to God as well as sin In this study the primary reflection of disobedience to God is analyzed in the introductory part of the Book of Jonah contemplating sin itself and Jonahrsquos relationship with God so that divine mercy in Jonah is guided and structured From this conception we seek to reflect on the instability of man in relation to God in the Bible and nowadays to outline parameters so that the true repentance of the human being is deepened based on the analysis of Jonas and David

Keywords Book of Jonah Disobedience to the divine Doubt Guilt True repentance

52 Graduada em Direito (Unifeso)) Graduada em Teologia (Faceten) Poacutes-graduada em Exegese e Interpretaccedilatildeo da Biacuteblia (Fabat) em Histoacuteria de Israel (Kennedy) em Direito Processual Civil (Unican) 53 Doutora em Teologia (PUC-Rio) Mestre em Teologia Biacuteblica (STBSB) Graduada em Teologia (Faculdade Batista do Paranaacute) e em Comunicaccedilatildeo Social (Universidade Estaacutecio de Saacute) Docente das disciplinas da aacuterea biacuteblica (Antigo Testamento) e Exegese coordenadora do Grupo de Estudo e Pesquisa Biacuteblica nas Tradiccedilotildees de Israel

24 TeoloacutegicaRevista Brasileira de Teologia ISSN 1807-7056 nordm 8 outdez Rio de Janeiro 2020 p 23 - 34

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INTRODUCcedilAtildeO A histoacuteria de Jonas tem sido contada desde a antiguidade Natildeo eacute incomum

encontrarmos em classes infantis ou nas mais altas patentes teoloacutegicas discus-sotildees calorosas sobre as peculiaridades desse personagem tatildeo conhecido

Vaacuterias abordagens tecircm sido temas infindaacuteveis de duacutevidas seria possiacutevel um homem permanecer trecircs dias na barriga de um peixe Seria uma baleia Em que eacutepoca se passou Seria Jonas um profeta desobediente e insensiacutevel Enfim vaacuterias questotildees pertinentes afloram em nosso entendimento

A mais importante e contextualizada questatildeo natildeo se trata da possibilidade material ou emocional da situaccedilatildeo A importacircncia espiritual da histoacuteria tatildeo bem narrada em um dos menores livros da Biacuteblia traz-nos a reflexatildeo sobre a limitaccedilatildeo do homem em qualquer eacutepoca de ser avaliado quanto ao seu verda-deiro arrependimento

A Biacuteblia narra diversos momentos nos mais antigos textos em que os povos inclusive o povo escolhido natildeo conseguiram se manter firmes aos mandamentos de YHWH Em Niacutenive nos parece natildeo ter sido diferente No momento em que a matildeo de Deus mostrou-se pesada o rei se humilha e recebe o perdatildeo poreacutem natildeo mais que uma geraccedilatildeo apoacutes esse mesmo povo se mostra como inimigo mortal de Israel

Haveria acontecido um verdadeiro arrependimento ou o medo e a derrota certa teriam levado os ninivitas a um momentacircneo reconhecimento de seu erro e a uma consequente submissatildeo forccedilada pela situaccedilatildeo Para as consideraccedilotildees e conclusotildees precisamos entender um pouco desse povo e de todo contexto que o envolve

1 JONAS EacutePOCA HISTOacuteRIA AUTORIAJonas eacute descrito de formas diferentes de acordo com a visatildeo de teoacutelogos

diversos Bazioli (2011 p 3) por exemplo descreve Jonas como ldquoo mais estra-nho dos profetasrdquo mas com uma mensagem que produzira efeitos ateacute mesmo naqueles que natildeo o ouviram diretamente Para o autor Jonas fora o mais bem sucedido pregador com um sermatildeo que impactava apenas por meio de palavras Na Biacuteblia conforme enunciado por Alencar (2010) o livro de Jonas faz parte da coleccedilatildeo de livros profeacuteticos situando-se entre os livros de Abdias e Miqueias

Natildeo haacute um consenso absoluto acerca da autoria do livro de Jonas uma vez que o livro natildeo declara o nome do autor Entretanto haacute a tese bastante aceita e estabelecida nos estudos de Erthal et al (2002 p 35) de que ldquoembora o livro

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natildeo declare o nome do autor seguramente foi o proacuteprio Jonas quem o escreveurdquo Para os autores Jonas tem o nome que significa ldquopombordquo sendo apresentado como filho de Amitai Nascera em Gate-Efer cidade situada proacutexima a Nazareacute

Alencar (2010 p 7) por sua vez aponta que eacute impossiacutevel precisar de quem fora a autoria do livro de Jonas visto que na eacutepoca um dos grupos responsaacuteveis pela educaccedilatildeo eram os sacerdotes cuja obrigaccedilatildeo consistia em ensinar ao povo a instruccedilatildeo como uma lei relacionada ao culto e sacrifiacutecio ldquoO autor do livro de Jonas pode ter sua origem entre os saacutebios de Israel pois conhecia bem a tradiccedilatildeo de seu povo bem como a de outros povos Ele devia manter contato com estrangeiros e os considerava com bons olhosrdquo

Para que seja possiacutevel compreender e aprofundar conhecimentos acerca de Jonas e do livro que recebeu o seu nome torna-se indispensaacutevel refletir acerca do contexto histoacuterico do mesmo Dasilva (2003) leciona que o livro de Jonas fora escrito um seacuteculo antes de Jesus proferir as palavras registradas em Mateus 1239-40 no relato de como Deus enviara um profeta judeu para levar sua mensagem de salvaccedilatildeo para uma naccedilatildeo gentiacutelica a Assiacuteria com a capital Niacutenive que possuiacutea uma populaccedilatildeo de mais de 120000 homens O autor ainda complementa que

A histoacuteria de Jonas tatildeo conhecida pela menor crianccedila da Escola Domi-nical eacute geralmente contextualizada e limitada ao milagre do profeta subsistir dentro do ventre de um grande peixe por trecircs dias e trecircs noites ou ao fator de sua desobediecircncia Este livro no entanto natildeo tem como prioridade mostrar a Jonas o peixe sua pregaccedilatildeo ou o povo de Niacutenive Ele guarda na sua linda histoacuteria revelaccedilotildees sobre a pessoa e caraacuteter de Deus O livro foi escrito para revelar um Deus que estaacute sobre noacutes que cuida que orienta que ama e que caminha conosco (DASILVA 2003 p 1)

Fabio (1991) aponta que Jonas vivera em um periacuteodo no qual Israel corria gra-ve risco de ser extinto como naccedilatildeo O autor aponta que em II Reis 1427 ldquoAinda natildeo falara o Senhor em apagar o nome do Israel de debaixo do ceacuteurdquo mas estava perto de tomar tal decisatildeo Na eacutepoca a pobreza era uma marca da sociedade e natildeo havia nem um homem escravizado nem um homem livre As classes sociais estavam praticamente unificadas com o desaparecimento completo da classe meacutedia e a diminuiccedilatildeo significativas da riqueza privada

Paradoxalmente era tremenda a expansatildeo militar e Israel atingira um niacutevel bastante estaacutevel de seguranccedila nacional Percebemos isso em II Reis 142528 atraveacutes das palavras ldquorestabeleceurdquo e ldquoconquistourdquo presentes no

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texto Estaacute dito ali que Jeroboatildeo II restabelece as fronteiras e conquista espaccedilos pela via das forccedilas armadas enquanto isso a anguacutestia social do povo era horriacutevel Natildeo havia o menor vislumbre ou esperanccedila de mu-danccedilas radicais pois natildeo se contava com ningueacutem que socorresse Israel (II Reis 1426) Em consequecircncia de tal situaccedilatildeo Jonas se transformou num profeta extremamente politizado por conseguinte ideologizado Ele tinha consciecircncia por exemplo de que nos seus dias a grande ameaccedila para Israel era a Assiacuteria cuja capital era Niacutenive (FABIO 1991 p 4-5)

Ora Jonas natildeo vivera e sua histoacuteria natildeo fora contada em um periacuteodo de prosperidade Niacutenive era considerada uma grande ameaccedila para Israel assim como a Assiacuteria em geral Erthal et al (2002) apontam que o tema do livro de Jonas concentra-se na misericoacuterdia divina Jonas eacute chamado por Deus para advertir Niacutenive sobre os fatos que seriam consumados como consequecircncia de seus pecados o principal propoacutesito de Deus nesse sentido era demonstrar a Israel e agraves naccedilotildees a magnitude da Sua misericoacuterdia e a Sua accedilatildeo atraveacutes da pregaccedilatildeo do arrependimento

Para Alencar (2010) Jonas eacute chamado por Deus para anunciar a conversatildeo na capital Niacutenive que se encontrava fora das fronteiras com Israel um reflexo do nacionalismo exclusivista do povo de Israel no poacutes-exiacutelio fundamentado na concepccedilatildeo de povo eleito e na visatildeo de Jerusaleacutem como o uacutenico lugar onde Deus manifestava-se Trata-se da comunicaccedilatildeo de Deus aleacutem da visatildeo do povo de Jerusaleacutem fazendo uso de Jonas como um instrumento de conversatildeo

Antes de aprofundar conhecimentos acerca da histoacuteria do livro de Jonas tendo-se jaacute abordado acerca da autoria desse livro cumpre aprofundar conhe-cimentos sobre a eacutepoca atribuiacuteda ao mesmo Ainda segundo Alencar (2010) a narrativa do livro de Jonas natildeo oferece nenhuma evidecircncia que possibilite datar o livro A existecircncia de um profeta que vivera sob o nome Jonas no seacuteculo XVIII natildeo representa que o livro tenha sido escrito nessa eacutepoca Para o autor existem elementos que sugerem uma dataccedilatildeo tardia ao livro de Jonas quais sejam

bull Vaacuterias palavras de origem aramaica satildeo observadas na narrativa de Jonas O aramaico tornara-se liacutengua oficial no periacuteodo persa As palavras que designam os marinheiros e o navio (Jonas 1 5) e o decreto do rei de Niacutenive (Jonas 37) advecircm da liacutengua aramaica

bull A histoacuteria de Jonas conforme observado em Jonas (3 7-8) faz alusatildeo aos costumes persas como por exemplo a participaccedilatildeo de animais nos rituais de penitecircncia

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bull Niacutenive era identificada como capital da Assiacuteria no tempo de Jonas de modo que a cidade soacute se tornara importante no templo de Senaqueribe em 704 aC O rei seria tratado como rei da Assiacuteria e natildeo rei de Niacutenive

bull Natildeo haacute influecircncia no livro de Jonas da eacutepoca heleniacutestica do tempo de Ale-xandre Magno e de seus sucessores como tambeacutem natildeo aparecem conflitos com samaritanos nem mesmo questotildees envolvendo casamentos com mulheres estrangeiras

Esses elementos segundo Alencar (2010 p 8) natildeo satildeo suficientes para que se precise a data na qual fora escrito o livro de Jonas entretanto ldquoeacute possiacutevel afirmar que o livro tenha sido escrito no final do seacuteculo IV ou no iniacutecio do seacuteculo III aC no periacuteodo persardquo

Segundo Dasilva (2003) Deus ordenou que Jonas se levantasse e fosse para a grande cidade de Niacutenive Jonas teria dito ldquonatildeordquo a Deus sabendo que a Assiacuteria era uma inimiga terriacutevel de Israel Na verdade ele temia que Niacutenive se arre-pendesse e fosse poupada por Deus da puniccedilatildeo e condenaccedilatildeo iminente Caso Niacutenive caiacutesse Israel de Jonas escaparia de suas investidas e de seus ataques assim convocado por Deus ele fugiu

Erthal et al (2002) apontam que logo que Jonas fugiu tomando um navio para Taacutersis Deus passou a agir mandando forte vento sobre o mar e criando uma grande tempestade Jonas dormia no poratildeo do navio e o capitatildeo perguntou-lhe por qual motivo dormia enquanto o medo e o pavor tomavam conta dos tripu-lantes que clamavam aos deuses pelo livramento O versiacuteculo seis do primeiro capiacutetulo do livro relata que Jonas tambeacutem clama a Deus

Os tripulantes do navio ficaram indignados quando Jonas responde que era hebreu que servia ao Deus do ceacuteu mas que estava fugindo dEle (18- 10) Por causa de sua atitude Jonas foi obrigado a enfrentar as con-sequumlecircncias e acabou por confessar sua transgressatildeo ldquoE ele lhes disse Levantai-me e lanccedilai-me ao mar e o mar se aquietaraacuterdquo (112) Jonas se sentia nesse momento culpado por ter desobedecido a Deus e por colocar a vida da tripulaccedilatildeo em perigo Apanharam Jonas e o lanccedilaram ao mar A tempestade parou milagrosamente (11415) O resultado contrastante nesta situaccedilatildeo foi a conversatildeo da tripulaccedilatildeo ldquoTemeram pois estes ho-mens ao Senhor com grande temor e ofereceram sacrifiacutecios ao Senhor e fizeram votosrdquo (116) (ERTHAL et al 2002 p 37)

O clamor de Jonas apesar de sua rebeldia fora atendido Jonas mostrou-se sincero e temente a Deus pedindo misericoacuterdia divina e livramento ou seja

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que sua vida fosse poupada Deus providenciou um grande peixe para salvar a vida de Jonas deixou-o vivo por trecircs dias dentro do ventre daquele peixe Em Jonas 210 observam-se sete milagres divinos a tempestade a sorte de Jonas a calmaria do mar o grande peixe a sobrevivecircncia de Jonas o peixe conduzido ateacute a praia e o fato de o peixe ter vomitado Jonas em terra seca por ordem divina (FABIO 1991)

Ora a noccedilatildeo principal do livro de Jonas diz respeito justamente agrave misericoacuterdia divina Deus pune na mesma medida em que salva Deus aproxima-se de seus filhos mesmo quando estes fogem desde que se arrependam verdadeiramente Essa eacute a concepccedilatildeo fundamental do livro de Jonas

2 EPISOacuteDIOS QUE DEMONSTRAM A OSCILACcedilAtildeO DA OBE-DIEcircNCIA E DESOBEDIEcircNCIA A DEUS AO LONGO DA ERA BIacute-BLICA

Jonas eacute apenas um exemplo da oscilaccedilatildeo entre a obediecircncia e desobediecircncia a Deus ao longo do percurso biacuteblico Esta parte do estudo relata outros episoacutedios biacuteblicos nos quais se verifica essa oscilaccedilatildeo

Talvez o mais conhecido episoacutedio que elucida tal questatildeo seja o de Gecircnesis quando Deus concedera tudo a Adatildeo menos que ele provasse o fruto da aacutervore do conhecimento do bem e do mal deixando claro que se ele comesse esse fruto certamente morreria (Gecircnesis 2 17) Deus ainda que misericordioso puniu Adatildeo lanccedilando-o para fora do jardim do Eacuteden para lavrar a terra da qual fora tomado (Gecircnesis 3 23)

Esse episoacutedio de Gecircnesis eacute um dos principais exemplos biacuteblicos acerca do arrependimento agrave desobediecircncia diante de Deus Em Romanos 519 tem-se que pela desobediecircncia de um soacute homem muitos foram feitos pecadores assim como pela obediecircncia de um muitos seratildeo constituiacutedos justos

A oscilaccedilatildeo entre a obediecircncia e a desobediecircncia a Deus tambeacutem eacute abordada em Romanos No versiacuteculo 30 do capiacutetulo 11 do livro tem-se que ldquoPois assim como voacutes outrora fostes desobedientes a Deus mas agora alcanccedilastes miseri-coacuterdia pela desobediecircncia delesrdquo Ora Deus natildeo premia os que obedecem apoacutes a desobediecircncia mas sim eacute misericordioso pelo arrependimento genuiacuteno e sincero

3 ATUALIDADE ALGUNS EPISOacuteDIOS EM NOSSA VIDA ATUAL QUE DEMONSTRAM A INSTABILIDADE DO SER HUMANO EM PERMANECER FIEL A DEUS

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O ser humano eacute falho e imperfeito por natureza Entretanto natildeo foi soacute nos tempos biacuteblicos que o homem demonstrou dificuldades em permanecer fiel e obediente a Deus De fato tal instabilidade tem sido observada durante toda a histoacuteria humana e pode ser amplamente observada em nossa conduta na atualidade Esta parte do estudo procura demonstrar e exemplificar esse fato

O primeiro mandamento biacuteblico propotildee que o homem ame a Deus sobre todas as coisas Entretanto observa-se que o ser humano em muito afasta-se de Deus Os constantes estiacutemulos e os desejos de acumular riqueza por parte do ser humano satildeo exemplos de elementos que afastam o homem de Deus Por vezes o homem daacute importacircncia demasiada ao dinheiro colocando-o como prioridade em sua vida acima de Deus ou ainda orando a Deus tatildeo somente pedindo riqueza material e natildeo riqueza espiritual

Ora nem mesmo o primeiro mandamento biacuteblico eacute uma tarefa faacutecil de ser alcanccedilada pelos servos de Deus Como natildeo eacute objeto de ostentaccedilatildeo Deus acaba sendo ldquodeixado de ladordquo pelas pessoas que passam a buscar sobretudo a riqueza material e a estabilidade financeira desalinhando-se dos preceitos e princiacutepios divinos

A principal fonte de instabilidade do homem em relaccedilatildeo agrave fidelidade a Deus satildeo os estiacutemulos presentes em nossa sociedade O dinheiro e a ideia de acuacutemulo da riqueza satildeo apenas alguns fatores que afastam o homem de Deus A sexualidade eacute outro exemplo claro de estiacutemulo que torna o homem infiel e desobediente aos olhos divinos

De fato o sexo tornou-se um produto de consumo na atualidade Consumir e almejaacute-lo de maneira desenfreada e irrestrita eacute caracteriacutestico da sociedade O sexo eacute objeto de desejo nos filmes muacutesicas revistas e amplamente presente no mundo virtual na internet como um todo O homem eacute ludibriado em um mundo que respira sexo natildeo mantendo a integridade sexual almejada por Deus peca constantemente contra a sexualidade cobiccedilando tambeacutem a mulher do proacuteximo

Todos os mandamentos de Deus podem ser colocados como desafios ou obstaacuteculos para que o homem permaneccedila fiel a Ele em diferentes niacuteveis O homem pecador por natureza cria obstaacuteculos em sua conduta diaacuteria caindo constantemente em tentaccedilatildeo de maneira semelhante a Adatildeo que sucumbiu agrave tentaccedilatildeo de contrariar a uacutenica imposiccedilatildeo que lhe fora feita por Deus

A cobiccedila eacute um dos grandes problemas enfrentados pelo homem para manter um relacionamento com Deus Natildeo se refere aqui apenas agrave cobiccedila desenfreada pelo dinheiro e pelo sexo mas tambeacutem pelas coisas alheias Os homens desejam

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o poder e o conseguem por meio do erro e do pecado A televisatildeo por exemplo vende a ideia daquelas vidas perfeitas dos bem sucedidos provocando que o homem cobice os bens e a proacutepria vida de terceiros desconsiderando-se a si proacuteprio e ao seu relacionamento iacutentimo com Deus

Entretanto o homem temente a Deus arrepende-se constantemente Confessa o seu pecado mas volta rapidamente a pecar sucumbindo aos mesmos erros que o fizeram pecar em outro momento novamente almeja o poder o sexo a riqueza financeira Deseja intensamente tudo aquilo que natildeo tem

Para suprir essa alarmante necessidade o homem faz uso de todos os meios e mecanismos possiacuteveis muitas vezes pouco se importando se atendecirc-los significa estar ainda mais distante do divino Roubar eacute uma praacutetica comum em nossa sociedade natildeo somente para sustentar um viacutecio em substacircncia mas tambeacutem pelo simples ideal de acumular riquezas uma praacutetica tatildeo repreendida por Deus

Assim o homem se vecirc diante de todo um contexto desfavoraacutevel para se manter fiel a Deus De fato a sociedade jaacute haacute muito tempo tem se afastado dos princiacutepios e preceitos divinos os homens natildeo demonstram mais arrependimento genuiacuteno ao cometerem pecados e insistindo em seus erros independentemente das liccedilotildees divinas jaacute aplicadas a eles

Pode-se equiparar o contexto atual ao que observamos na histoacuteria de Jonas cuja abordagem jaacute foi feita anteriormente neste artigo Jonas tambeacutem sabendo de suas funccedilotildees e da vontade de Deus disparou em fuga O homem atual tambeacutem conhece suas funccedilotildees e a vontade de Deus e mesmo assim ignora-as diante de seu egoiacutesmo sacrificando sua proacutepria alma por sentimentos e prazeres pueris

Somente quando sente falta da presenccedila de Deus o homem cogita o arre-pendimento Jonas aprendera sua liccedilatildeo ao permanecer trecircs dias no ventre do peixe clamando pela misericoacuterdia divina O homem atual entretanto parece natildeo aprender suas liccedilotildees Ele insiste no pecado e sucumbe a ele e aos estiacutemulos peca-minosos amplamente presentes em nossa sociedade Haacute pontos de aproximaccedilatildeo e de afastamento entre os episoacutedios relatados neste estudo e o contexto atual de vivecircncia do homem Entretanto permanece a dificuldade de se permanecer estavelmente fiel a Deus

4 ABORDAGEM DO VERDADEIRO ARREPENDIMENTOConforme apresentado o homem arrepende-se buscando a misericoacuterdia e

o perdatildeo de Deus O arrependimento segundo Delumeau (2003) eacute deixar o pecado e para que este seja abandonado o arrependimento deve ser verdadeiro

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buscando o perdatildeo divino e comprometendo-se a natildeo cometer o mesmo pecado

No item anterior abordaram-se aspectos da vida atual que sugerem a falta de arrependimento verdadeiro da parte do homem Jonas por exemplo arrependeu--se verdadeiramente ao reconhecer a soberania de Deus Arrependeu-se pri-meiramente ao observar a tempestade arrependeu-se quando estava em alto mar e durante os trecircs dias nos quais esteve dentro do ventre do peixe Jonas de fato arrependeu-se verdadeiramente de sua desobediecircncia a Deus e buscou corrigir suas falhas

Adatildeo no mesmo sentido mostrou-se desobediente ao divino e arrependeu-se gravemente colocando todos os homens em pecado Adatildeo buscava que Deus tivesse pena e piedade de si e de Eva concedendo-lhes meios para sustentar a vida Pode-se questionar o motivo que conduziu Adatildeo ao arrependimento mas natildeo se fora ou natildeo verdadeiro

O homem arrepende-se de suas falhas para com Deus fruto da instabilidade de seu relacionamento de obediecircncia para com o divino Entretanto o homem atual costuma repetir seus pecados arrepende-se com frequecircncia mas por medo de puniccedilotildees raramente se arrepende verdadeiramente O homem natildeo atribui culpa a si mesmo por seus pecados e quando o faz eacute de maneira displicente insistindo nos mesmos erros que antes cometera

Todavia isso diz respeito justamente agrave natureza pecaminosa do homem Mes-mo na Biacuteblia satildeo raros os casos de arrependimento verdadeiros (DELUMEAU 2003) Castro (2013) aponta que o arrependimento verdadeiro ou genuiacuteno con-siste na ideia por traacutes da desobediecircncia do homem em relaccedilatildeo a Deus seja por meio de uma ordem direta ou como eacute mais comum na atualidade por meio da desobediecircncia aos preceitos biacuteblicos

Um exemplo de arrependimento verdadeiro inquestionaacutevel na Biacuteblia encontra- se na histoacuteria de Davi

A oraccedilatildeo de Davi depois do maior erro de sua vida ilustra a natureza da verdadeira tristeza pelo pecado Seu arrependimento foi sincero e profundo Ele natildeo fez nenhum empenho por atenuar a culpa Natildeo foi o desejo de escapar ao juiacutezo que lhe inspirou a oraccedilatildeo Davi reconheceu a enormidade de sua transgressatildeo viu a contaminaccedilatildeo de seu ser e sentiu nojo do pecado Natildeo suplicava unicamente o perdatildeo mas tambeacutem um coraccedilatildeo puro Desejava a alegria da santidade e estar mais uma vez em harmonia com Deus (ENSINOS DE JESUS 2012 p 21)

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Ora levando-se em consideraccedilatildeo a histoacuteria de Davi compreende-se que o arrependimento verdadeiro eacute fruto de um genuiacuteno sentimento de tristeza do ser humano ao desapontar a Deus representado pela sinceridade e pela verdade aceitando o pecado que cometeu e natildeo negando-o Trata-se do desprezo pelo pecado propriamente dito

Souza (2009) aponta que o homem peca quando ele age contra aquilo que eacute imposto por Deus Com o pecado o homem e a mulher tornaram-se seres decadentes sendo o arrependimento a noccedilatildeo atraveacutes da qual eles podem ser sinceros com Deus assumindo sua culpa no pecado e demonstrando tristeza diante de sua desobediecircncia

O arrependimento verdadeiro aleacutem de tais caracteriacutesticas natildeo adveacutem de accedilatildeo humana mas sim de accedilatildeo divina uma vez que

Nenhum ser humano tem o poder de perdoar pecados Somente Deus por meio de Cristo aquele que nunca pecou pode nos conceder perdatildeo e paz de espiacuterito O ensino de que algum ser humano tem poder de perdoar pecados natildeo estaacute em harmonia com a Biacuteblia Nenhuma accedilatildeo humana eacute ca-paz de conseguir o perdatildeo Somente Deus em Jesus Cristo pode perdoar nossos pecados Por isso devemos nos aproximar Dele com o coraccedilatildeo verdadeiramente arrependido (ENSINOS DE JESUS 2012 p 21)

Assim o arrependimento verdadeiro eacute obtido tatildeo somente na comunhatildeo do pecador com Deus Ele deve manifestar com sinceridade o seu arrependimento pelo erro cometido independentemente das dimensotildees de seu pecado Em uma era na qual pecar eacute socialmente aceitaacutevel arrepender-se verdadeiramente eacute um dos difiacuteceis desafios do pecador

5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAISO presente estudo concentrou-se em uma abordagem clara e objetiva acerca do

livro de Jonas sobretudo no aspecto referente agrave conduta dele em relaccedilatildeo a Deus demonstrando sua desobediecircncia e a concepccedilatildeo de arrependimento verdadeiro a fim de que Jonas pudesse persistir no caminho traccedilado por Deus executando a funccedilatildeo divina que lhe fora incumbida

No mesmo sentido observou-se que o pecado sempre marcou o homem desde os tempos de Adatildeo ateacute a atualidade na qual os estiacutemulos pecaminosos estatildeo ain-da mais presentes Existe noccedilatildeo de arrependimento mas natildeo de arrependimento verdadeiro conforme ocorreu com Jonas e Davi Esse tipo de arrependimento se manifesta por uma verdadeira tristeza pelo cometimento do pecado sincera

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e profundamente sem o desejo de escapar da puniccedilatildeo mas curvando-se diante da superioridade de Deus

Este estudo natildeo buscou esgotar o assunto ou tornaacute-lo acabado mas tatildeo so-mente abordar concepccedilotildees acerca do verdadeiro arrependimento e das oscilaccedilotildees entre a obediecircncia e a desobediecircncia a Deus observadas tanto na era biacuteblica quanto na atualidade

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TRANSFORMACcedilAtildeO RELIGIOSA BRASILEIRA E CARACTERIacuteSTICAS DO NOVO PADRAtildeO RELIGIOSO

Joatildeo Boechat54

RESUMOO Brasil experimentou intensa transformaccedilatildeo religiosa nos uacuteltimos 40 anos

Essa mudanccedila caracterizou-se por trecircs pontos centrais a saber a) Queda da membresia Catoacutelica b) Crescimento dos indiviacuteduos que se consideram sem--religiatildeo e c) Crescimento Evangeacutelico A partir daiacute a sociedade brasileira apresenta uma nova configuraccedilatildeo religiosa Dessa forma surge a necessidade de natildeo apenas compreendermos essa nova configuraccedilatildeo como tambeacutem perce-bermos as relaccedilotildees entre esses grupos religiosos atraveacutes do tracircnsito religioso isto eacute como se daacute a formaccedilatildeo de cada grupo religioso e quanto essa formaccedilatildeo tem relaccedilatildeo com o ganho ou perda de membros antes ligados a outros grupos religiosos Este artigo apresenta a nova configuraccedilatildeo religiosa brasileira aleacutem de demonstrar como essa configuraccedilatildeo tem sido alterada nas uacuteltimas deacutecadas e por fim analisa como se daacute o tracircnsito religioso na sociedade brasileira

Palavras-Chave Transformaccedilatildeo Religiosa Configuraccedilatildeo Religiosa Cresci-mento Evangeacutelico

ABSTRACTIn the last 40 years Brazil has experienced intense religious transformation

Such change is characterized by three main points a) Decrease of Catholic mem-bership b) Increase of Non-Religious groups and c) Increase of the Evangelicals Thus Brazilian society presents a new religious setting Because of that there is the need of not only comprehend this new configuration but also understand the relationship among the religious groups using the analysis of the religious traffic in Brazil ie how each group is formed and how this formation is related to the adding or losing of individuals who were once members of other religious groups In this way this paper presents the new religious configuration in Brazil and discusses how said configuration has been altered in the last decades At last it analyzes how the religious traffic takes place in Brazilian society

54 Joatildeo Boechat eacute professor da Faculdade Batista do Rio de Janeiro aleacutem de pesquisador do Deutscher Akademischer Austauschdienst (DAAD) Eacute doutorando em Sociologia Poliacutetica pela Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF) com ecircnfase em Teologia pela Humboldt Universitaumlt zu Berlin na Alemanha Possui mestrado em Sociologia Poliacutetica pela UENF e especializaccedilatildeo em Ciecircncia da Religiatildeo aleacutem de graduaccedilatildeo em Teologia e Relaccedilotildees Internacionais

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Keywords Religious transformation Religious Configuration Evangelical Growth

INTRODUCcedilAtildeOA realidade do campo religioso brasileiro indica uma forte transformaccedilatildeo

na sociedade em que vivemos Esta percepccedilatildeo ocorre pois ainda que a religiatildeo seja uma espera proacutepria ela influencia e eacute influenciada pelas demais esferas sociais como a economia poliacutetica e ciecircncia Portanto eacute sine qua non para a profunda compreensatildeo teoloacutegica a forma pela qual a religiatildeo se relaciona com a realidade vigente

A palavra que define a realidade religiosa brasileira nas uacuteltimas deacutecadas eacute ldquotransformaccedilatildeordquo Especialmente a partir da deacutecada de 80 o campo religioso no Brasil observa uma intensa mudanccedila encabeccedilada pelo grande crescimento evangeacutelico que atua como principal combustiacutevel de tal transformaccedilatildeo que tambeacutem eacute caracterizada pelo crescimento dos sem-religiatildeo e pela queda catoacutelica

Nesse contexto este artigo procura analisar a transformaccedilatildeo religiosa na sociedade brasileira observando os dados dos censos das uacuteltimas deacutecadas bem como buscando compreender o tracircnsito religioso que ocorre por meio da anaacutelise de como se daacute a formaccedilatildeo das membresias religiosas Por fim apontam-se algumas razotildees que auxiliam na compreensatildeo da mudanccedila religiosa brasileira

Assim pretende-se colaborar para a compreensatildeo da realidade brasileira e de como a transformaccedilatildeo estaacute relacionada com questotildees que atingem a sociedade como um todo Tambeacutem pretende-se explicitar que a religiatildeo eacute uma esfera autocirc-noma que influencia e eacute influenciada pelas demais esferas sociais adaptando-se agraves demandas e necessidades de seus fieacuteis e provendo respostas que busquem atender a tais necessidades

1 PADRAtildeO RELIGIOSO BRASILEIROAs uacuteltimas deacutecadas demonstraram um ldquopadratildeo religiosordquo no Brasil Em

2020 o Instituto Datafolha lanccedilou os seguintes dados da configuraccedilatildeo religiosa brasileira

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Graacutefico 1 Configuraccedilatildeo Religiosa Brasileira

Fonte Datafolha (2020)

Atualmente 50 dos brasileiros se afirmam Catoacutelicos 31 Evangeacutelicos55 10 Sem-Religiatildeo e 9 adeptos de outras religiotildees

Os dados do Graacutefico 1 atuam em conformidade com os dados do Censo de 2010 realizado pelo IBGE56 os quais apontam que a configuraccedilatildeo religiosa no Brasil nas uacuteltimas deacutecadas possui trecircs caracteriacutesticas fundamentais a) intensa queda dos Catoacutelicos b) crescimento significativo dos Evangeacutelicos c) crescimento relevante dos sem-religiatildeo Considerando os dados levantados pelo IBGE eacute possiacutevel identificar tal configuraccedilatildeo

Graacutefico 2 Religiotildees no Brasil (2010)

Fonte Censo do IBGE 2010

55 Caso dividamos os Evangeacutelicos entre os principais subgrupos a formaccedilatildeo do campo brasileiro corres-ponde a 21 de Pentecostais 44 de Evangeacutelicos de Missatildeo e 45 de Evangeacutelicos Natildeo-Determinados56 2010 corresponde ao ano do uacuteltimo censo publicado pelo IBGE

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De acordo com os dados do uacuteltimo Censo do IBGE publicado em 2010 entre os brasileiros 646 se denominam Catoacutelicos 57 222 Evangeacutelicos 58 81 Sem- Religiatildeo 59 27 possuem outras religiotildees 60 21 satildeo adeptos do Espiritismo e 033 de religiotildees afro-brasileiras 61

De fato as religiotildees natildeo satildeo compostas por subgrupos homogecircneos com completa unidade doutrinaacuteria eclesial e praacutetica Tomemos como primeiro exemplo os Evangeacutelicos Para a real compreensatildeo desse grupo religioso no Brasil eacute relevante levar em conta suas divisotildees a fim de melhor entender sua configuraccedilatildeo uma vez que ela se expressa de forma mais variada do que as dos Catoacutelicos e dos Sem-religiatildeo Afinal entre os Catoacutelicos 994 satildeo Catoacutelicos Apostoacutelicos Romanos jaacute entre os Sem-Religiatildeo 952 natildeo possuem religiatildeo mas creem no transcendente ou seja apenas 48 satildeo ateus ou agnoacutesticos

Diferentemente dos Catoacutelicos e Sem-Religiatildeo cuja anaacutelise dividimos em dois subgrupos os Evangeacutelicos apresentam uma divisatildeo relevante em trecircs subgrupos os Pentecostais que correspondem a 60 dos Evangeacutelicos e 133 da populaccedilatildeo brasileira 62 os Evangeacutelicos Natildeo-Determinados correspondem a 212 dos Evangeacutelicos e 48 dos brasileiros 63 Por fim os Evangeacutelicos de Missatildeo ou Histoacutericos correspondem a 182 dos Evangeacutelicos e 44 da populaccedilatildeo brasileira 64

Com base no Graacutefico 2 dividimos a anaacutelise da evoluccedilatildeo do campo religioso brasileiro em duas fases de 1940 a 1980 e de 1980 a 2010 Essa divisatildeo ressalta

57 Entre os Catoacutelicos 994 satildeo Catoacutelicos Apostoacutelicos Romanos 45 Catoacutelicos Apostoacutelicos Brasileiros e 01 Catoacutelicos Ortodoxos58 Entre os Evangeacutelicos 60 satildeo Pentecostais 218 Natildeo-Determinados e 182 Evangeacutelicos de Missatildeo59 Entre os Sem-Religiatildeo 952 satildeo sem-religiatildeo 4 Ateus e 08 Agnoacutesticos60 Entre as outras religiotildees 333 satildeo adeptos de outras religiosidades cristatildes 317 satildeo Testemunhas de Jeovaacute 146 possuem muacuteltiplas religiosidades 55 satildeo Budistas 52 satildeo membros da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Uacuteltimos Dias 36 adeptos de outras religiosidade orientais 24 satildeo Judeus 17 adeptos do Esoterismo e 14 membros de religiotildees Indiacutegenas Haacute ainda grupos de outras religiotildees como o Hinduiacutesmo que correspondem a menos de 1 deste grupo61 Entre as Religiotildees Afro-brasileiras 692 pertencem agrave Umbanda 284 ao Candombleacute e 24 a outras religiotildees de matriz afro-brasileiras62 Os maiores grupos e igrejas pentecostais satildeo Assembleia de Deus (485 dos Pentecostais) Igrejas Pentecostais Independentes (208) Congregacional Cristatilde do Brasil (9) Igreja Universal do Reino de Deus (74) Igreja do Evangelho Quadrangular (71) Deus eacute Amor (33) e Maranata (14)63 Os Natildeo-Determinados satildeo assim denominados pois satildeo formados por igrejas independentes de teologia protestante sem viacutenculo histoacuterico com associaccedilotildees protestantes norte-americanas ou europeias como as Igrejas de Missatildeo64 Os Evangeacutelicos de Missatildeo satildeo assim chamados pois possuem teologia protestante e sua formaccedilatildeo estaacute vinculada agraves missotildees protestantes de igrejas histoacutericas norte-americanas ou europeias No Brasil as maiores igrejas ou associaccedilotildees satildeo Batistas (485 dos Evangeacutelicos de Missatildeo) Adventistas (203) Luterana (13) Presbiteriana (12) Metodista (44) Congregacional (14) e outras (04)

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como nas uacuteltimas trecircs deacutecadas houve relevante mudanccedila e uma nova padro-nizaccedilatildeo religiosa no paiacutes

Tabela 1 ndash Religiotildees no Brasil de 1940 a 2010 em porcentagem (MARIANO 2013)

Religiatildeo 1940 1950 1960 1970 1980 1990 2000 2010Catoacutelicos 952 937 931 911 892 833 738 646Evangeacutelicos 26 34 40 58 66 90 154 222Outras Religiotildees 19 24 24 23 25 29 35 50Sem Religiatildeo 02 05 05 08 16 48 73 81

Natildeo declarou 01 00 00 00 01 00 00 01

TOTAL 100 100 100 100 100 100 100 100Fonte Mariano 2013

De 1940 a 1980 o nuacutemero de Catoacutelicos no Brasil caiu de 952 para 892 passando de 39256972 para 108066311 adeptos65 Apesar do crescimento geral os Catoacutelicos declinaram em 6 nessas quatro deacutecadas Jaacute de 1980 a 2010 os Catoacutelicos caiacuteram de 892 para 646 da populaccedilatildeo do paiacutes totalizando 123228246 adeptos o que indica uma queda de 246 da membresia

Em 2020 o Instituto Datafolha66 publicou uma pesquisa cujos dados revelam que no Brasil os Catoacutelicos correspondem a 50 dos brasileiros o que confirma o ldquopadratildeo religiosordquo de queda da membresia catoacutelica67 Caso o Censo do IBGE de 2020 confirme os dados levantados pelo Datafolha haveria uma queda de 146 na membresia catoacutelica significando a maior perda de adeptos jaacute registrada em uma deacutecada

Por outro lado os Evangeacutelicos se moveram na direccedilatildeo contraacuteria dos Catoacutelicos De 1940 a 1980 aquele grupo cresceu de 26 para 66 da populaccedilatildeo brasilei-ra o que significa que em 40 anos os Evangeacutelicos saltaram de 1072144 para 7995938 adeptos Todavia se nessas quatro deacutecadas os Evangeacutelicos cresceram 4 nas deacutecadas seguintes houve um exponencial aumento dos adeptos entre 1980 e 2010 Nestas os Evangeacutelicos saltaram de 66 para 222 totalizando 42347787 adeptos Isso significa que nas uacuteltimas deacutecadas os Evangeacutelicos

65 De acordo com os dados do Censo do IBGE a populaccedilatildeo brasileira em 1940 era de 41236315 pessoas em 1980 121150573 e em 2010 190755799 pessoas66 Pesquisa Datafolha com 2948 entrevistas realizadas em 176 municiacutepios no paiacutes em 5 e 6 de dezembro de 2019 Margem de erro de 2 pontos percentuais para mais ou para menos e niacutevel de confianccedila de 9567 De acordo com a Pesquisa do Instituto Datafolha em Dezembro de 2019 a Religiatildeo do Brasileiro eacute dividida em 50 Catoacutelicos 31 Evangeacutelicos 10 Sem-Religiatildeo 3 Espiacuteritas 2 Afro-Brasileiros 2 Outras Religiotildees 1 Ateus 03 Judeus

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cresceram cinco vezes mais do que a populaccedilatildeo brasileira Enquanto de 1980 a 2010 a populaccedilatildeo brasileira cresceu 123 os Evangeacutelicos cresceram 62

O crescimento evangeacutelico eacute evidenciado pela pesquisa do Datafolha de acordo com a qual estes atingiram 31 da populaccedilatildeo em 2020 Conforme esses dados o periacuteodo de 2010 a 2020 aponta duas realidades opostas em relaccedilatildeo aos Catoacutelicos e Evangeacutelicos Por um lado os Catoacutelicos sofreram a maior perda de membresia jaacute registrada em uma deacutecada Por outro lado os Evangeacutelicos experimentaram de 2010 a 2020 o maior crescimento jaacute registrado em seu nuacutemero de adeptos

Portanto em 2010 os cristatildeos (Catoacutelicos e Evangeacutelicos)68 correspondiam a 868 dos brasileiros ou seja quase 9 em cada 10 brasileiros ainda se con-siderava cristatildeo De acordo com o Instituto Datafolha em 2020 esse nuacutemero corresponde a 81 dos brasileiros Issto indica que apesar do grande cresci-mento evangeacutelico a queda do nuacutemero de catoacutelicos foi expressiva a ponto haver reduccedilatildeo do nuacutemero de cristatildeos no paiacutes em mais de 5 pontos percentuais Ainda assim apesar do crescimento dos Sem-Religiatildeo (de 8 para 10) os ateus correspondem a apenas 1 da populaccedilatildeo brasileira

Assim os nuacutemeros do Censo permitem a formulaccedilatildeo do seguinte graacutefico

Graacutefico 3 Cristatildeos na populaccedilatildeo brasileira (1940-2020)

Fonte Censo do IBGE (1940-2010) Datafolha (2020)

Em conformidade com o crescimento evangeacutelico os Sem-Religiatildeo tambeacutem obtiveram consideraacutevel aumento Entre 1940 e 1980 eles passaram de 02 a 16 indo de 82473 para 1938409 indiviacuteduos que natildeo possuem religiatildeo Em 68 De fato os Espiacuteritas tambeacutem satildeo cristatildeos Mas como estamos considerando as principais mudanccedilas religiosas no paiacutes consideremos apenas Catoacutelicos e Evangeacutelicos como Cristatildeos Contudo apenas para a anaacutelise e natildeo como afirmaccedilatildeo teoloacutegica Considerando os Espiacuteritas os Cristatildeos atingiriam 2 da populaccedilatildeo em 2010 e 3 em 2020

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2010 esse grupo alcanccedilou 81 dos indiviacuteduos no Brasil totalizando 15451220 pessoas

Por outro lado considerando a pesquisa do Datafolha os Sem-Religiatildeo atin-giriam 10 havendo crescimento de cerca de 2 em nuacutemero Esse crescimento seria maior do aquele que ocorreu entre 2000 e 2010 (08) mas menor do que o ocorrido entre 1990 e 2000 (25)

Graacutefico 4 Cristatildeos x Sem-Religiatildeo no Brasil (1940-2020)

Fonte Censo do IBGE (1940-2010) Datafolha (2020)

Portanto se no fim do seacuteculo XIX apoacutes a Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica (1889) os Catoacutelicos concentravam praticamente 100 da populaccedilatildeo brasileira o seacuteculo XX eacute marcado pela constante queda dessa membresia ainda que ela fosse ampla maioria em 1970 (911) Todavia a partir da deacutecada de 1980 essa queda acelerou-se fazendo com que os Catoacutelicos perdessem quase 1 de sua membresia ao ano (-097)

Desse modo estabelecendo-se uma projeccedilatildeo linear em que os Catoacutelicos manteriam sua perda de 097 ao ano os Evangeacutelicos o seu crescimento de 069 aa e os Sem-Religiatildeo ganhando 017 o ldquopadratildeo religioso brasileirordquo apresentaria uma mudanccedila em relaccedilatildeo agrave hegemonia religiosa por volta de 2036 assim os Evangeacutelicos com 403 ultrapassaratildeo os Catoacutelicos com 394 Em 2040 os Evangeacutelicos teriam 43 e os Catoacutelicos 355 Nesse ano os cristatildeos corresponderiam a 785 da populaccedilatildeo brasileira enquanto os Sem-Religiatildeo formariam 132 da populaccedilatildeo brasileira

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Graacutefico 5 Religiotildees no Brasil (1940-2040)

De fato natildeo eacute possiacutevel afirmar que tal transformaccedilatildeo continuaraacute nesse ritmo Todavia ainda que haja desaceleraccedilatildeo na perda de Catoacutelicos ou no crescimento dos Evangeacutelicos o padratildeo religioso brasileiro eacute ratificado pela intensa mudanccedila ocorrida no cenaacuterio brasileiro nos uacuteltimos 150 anos

Assim os nuacutemeros das pesquisas mencionadas confirmam o ldquopadratildeo religio-sordquo brasileiro e demonstram que este tem se desenvolvido de forma estaacutevel nos uacuteltimos 40 anos Eacute relevante perceber contudo que o paiacutes natildeo passou nestas uacuteltimas deacutecadas por um processo de ldquodesligamento do transcendenterdquo ou seja a perda catoacutelica e o acreacutescimo dos sem-religiatildeo natildeo indicam necessariamente uma diminuiccedilatildeo da experiecircncia com o transcendente ou a perda da busca pelo sagrado A anaacutelise desse padratildeo ajuda a entender a transformaccedilatildeo no campo religioso ocorrida nas uacuteltimas deacutecadas

2 TRAcircNSITO RELIGIOSO BRASILEIRO De forma geral o padratildeo religioso brasileiro indica uma transformaccedilatildeo do

campo religioso marcado pelas transformaccedilotildees na direccedilatildeo da relaccedilatildeo com o divino e natildeo na negaccedilatildeo do divino Isso significa que o brasileiro natildeo deixou de crer no transcendente mas apenas alterou a forma como crecirc ou o caminho para acessar o divino De acordo com o IBGE em 2010 apenas 03 da populaccedilatildeo se denominava ldquoateurdquo ou seja 78 dos brasileiros se consideram sem-religiatildeo mas mantecircm a crenccedila no transcendente

Portanto a configuraccedilatildeo religiosa brasileira se constroacutei a partir das transfor-maccedilotildees inter-religiosas como demonstra a Tabela 2

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Tabela 2 ndash Religiatildeo atual e tracircnsito religioso (BARTZ 2012)

Religiatildeo atual Natildeo mudou Mudou populaccedilatildeoCatoacutelica 959 41 646Evangeacutelico de missatildeo 228 772 41Evangeacutelico pentecostal 144 856 133Outras religiotildees 107 893 50Sem-religiatildeo 197 803 81Meacutedia Total 683 235 100

Fonte Censo Demograacutefico do IBGE 2010

Agrave primeira vista a meacutedia total indica que o Brasil eacute um paiacutes no qual a maioria da populaccedilatildeo permanece na religiatildeo em que nasceu (683) enquanto uma minoria muda de religiatildeo durante a vida (235) Contudo analisando a tabela perceberemos que apenas os Catoacutelicos satildeo maioria entre os que natildeo mudaram de religiatildeo De fato em cada 100 Catoacutelicos 96 nasceram em ambientes Catoacutelicos e apenas 4 se converteram ao longo da vida Isso significa que o Catolicismo eacute no Brasil uma religiatildeo de nascidos e natildeo de convertidos

Se considerarmos os demais grupos religiosos como tambeacutem os sem-religiatildeo veremos que ateacute 2010 828 dos brasileiros jaacute mudaram de crenccedila religiosa durante a vida Com exceccedilatildeo do Catolicismo todos os demais grupos de crenccedila no Brasil satildeo formados majoritariamente por convertidos ou seja seus adeptos se tornaram membros ao longo da vida e natildeo nasceram em ambientes praticantes dessa religiatildeo Pelo menos trecircs quartos da populaccedilatildeo evangeacutelica ou dos que hoje se consideram ldquosem-religiatildeordquo jaacute estiveram em alguma outra religiatildeo antes de possuiacuterem o atual entendimento sobre o transcendente Por exemplo dos 139 da populaccedilatildeo de pentecostais 856 se converteram a essa vertente durante a vida e somente 144 satildeo filhos de pais pentecostais tratando-se portanto de uma religiatildeo majoritariamente de convertidos e natildeo de originaacuterios

Aleacutem disso quando observamos o tracircnsito religioso brasileiro comparando-se a religiatildeo atual e a religiatildeo anterior dos brasileiros percebemos como o fluxo religioso ocorre entre os ldquoconvertidosrdquo

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Tabela 3 ndash Religiatildeo atual x religiatildeo anterior (BARTZ 2012)

Religiatildeo AnteriorReligiatildeo Atual

CatoacutelicaEvangeacutelico Histoacuterico

Evangeacutelico Pentecostal

Outras Religiotildees

Sem-Religiatildeo

Catoacutelica 00 138 589 163 421Evangeacutelico de Missatildeo 269 213 507 11 57Evangeacutelico Pentecostal 187 402 408 04 239Outras Religiotildees 474 99 155 110 64Sem-religiatildeo 179 12 742 55 00Ateus 231 118 332 158 31

Fonte Bartz 2012

A Tabela 3 foi elaborada levando-se em conta os indiviacuteduos que jaacute mudaram de crenccedila religiosa ao longo da vida Assim ela natildeo demonstra a religiatildeo de origem desses indiviacuteduos mas aquelas pelas quais eles jaacute passaram em compa-raccedilatildeo com a atual religiatildeo Portanto a somatoacuteria de algumas supera os 100 uma vez que um indiviacuteduo que hoje eacute Evangeacutelico por exemplo pode ter passado por uma ou mais religiotildees

Com relaccedilatildeo aos Catoacutelicos eacute vaacutelido lembrar que apenas 41 dos adeptos satildeo convertidos Dentre estes 474 satildeo oriundos de famiacutelias que passaram por religiotildees de matriz africana ou orientais 269 foram Evangeacutelicos de Missatildeo e 187 Pentecostais Ademais 231 foram Ateus e 179 Sem-Religiatildeo

Os Evangeacutelicos satildeo o grupo que mais cresce no Brasil eacute uma religiatildeo de ldquocon-vertidosrdquo em que8 em cada 10 indiviacuteduos (82) aproximadamente tornaram-se adeptos ao longo de sua vida e natildeo nasceram em ambientes evangeacutelicos Entre os adeptos que se denominam ldquode Missatildeordquo 402 jaacute pertenceram ao Pentecosta-lismo Isso indica que entre os Evangeacutelicos de Missatildeo o principal fluxo ocorre dentro da esfera Evangeacutelica Ademais 213 dos Histoacutericos jaacute fizeram parte de outra instituiccedilatildeo evangeacutelica histoacuterica como por exemplo um Batista que jaacute foi membro de uma organizaccedilatildeo Metodista ou Presbiteriana Em continuidade 138 dos Evangeacutelicos de Missatildeo jaacute foram Catoacutelicos e 118 Ateus

Por outro lado se entre os Evangeacutelicos Histoacutericos ou de Missatildeo o principal fluxo eacute intrarreligioso entre os Pentecostais 742 foram Sem-Religiatildeo 589 jaacute foram Catoacutelicos e 332 Ateus De fato entre os Pentecostais a maior parte dos convertidos jaacute passou por outras religiotildees Ademais o fluxo intrarreligoso tambeacutem eacute consideraacutevel haja vista que 507 dos Pentecostais jaacute foram ldquoHistoacute-

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ricosrdquo e 408 jaacute passaram por outras organizaccedilotildees Pentecostais Por exemplo um membro da Assembleia de Deus Ministeacuterio Madureira jaacute foi membro da Assembleia de Deus Vitoacuteria em Cristo ou ainda da Igreja Universal do Reino de Deus

O grupo dos ldquosem-religiatildeordquo (78) representa o segundo maior contingente de pessoas que migraram de religiatildeo As igrejas evangeacutelicas pentecostais e os catoacutelicos satildeo os principais fornecedores para este grupo Observamos ainda que 421 dos ldquosem-religiatildeordquo declaram-se ter sido catoacutelicos 239 pentecostais 57 histoacutericos 64 declaram ter pertencido a outras religiotildees Haacute duas rotas portanto de migraccedilatildeo para os ldquosem-religiatildeordquo a primeira vai do catolicismo ou dos evangeacutelicos histoacutericos e a segunda do catolicismo ao pentecostalismo e entatildeo ao grupo ldquosem-religiatildeordquo

Assim o tracircnsito religioso brasileiro nos apresenta algumas caracteriacutesticas a) os Catoacutelicos satildeo os doadores universais b) os Evangeacutelicos satildeo receptores universais ainda que haja intenso fluxo intrarreligioso c) os Sem-Religiatildeo satildeo majoritariamente indiviacuteduos que mantecircm determinada espiritualidade e natildeo se tornam ateus

A fim de aprofundarmos o estudo da Religiatildeo no cenaacuterio brasileiro analisa-remos essas caracteriacutesticas observando possiacuteveis explicaccedilotildees para a formaccedilatildeo desse padratildeo

3 FORMACcedilAtildeO DO PADRAtildeO RELIGIOSO BRASILEIRODiversos trabalhos tecircm sido apresentados a fim de explicar as razotildees para

esse padratildeo apresentado a Teoria da Secularizaccedilatildeo se apresenta como uma valiosa ferramenta para a compreensatildeo dessa nova realidade (NERI 2011 ANDRADE 2012 ALTMANN 2012 GRACINO 2012 MARIANO 2013 CAMURCcedilA 2017)

Considerando que a esfera religiosa no mundo moderno eacute uma esfera como as demais que disputa espaccedilo e relevacircncia sociais pode-se destacar no caso brasileiro trecircs efeitos do processo de secularizaccedilatildeo sobre ela 1) a desmonopo-lizaccedilatildeo religiosa 2) a liberdade religiosa e 3) o pluralismo religioso

Apesar das mudanccedilas ocorridas no campo religioso brasileiro nas uacuteltimas deacutecadas a realidade religiosa brasileira ainda demonstra ser a del um paiacutes ma-joritariamente catoacutelico Apenas no fim do seacuteculo XIX com a proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica o Brasil se tornou oficialmente laico Todavia ainda assim a Igreja Catoacutelica manteve seus privileacutegios em relaccedilatildeo ao Estado secular Entretanto se

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durante os periacuteodos de colonizaccedilatildeo e impeacuterio para ser brasileiro era necessaacuterio ser catoacutelico a separaccedilatildeo entre Igreja e Estado resultou no fim da monopolizaccedilatildeo religiosa

A diferenciaccedilatildeo entre a esfera religiosa e as esferas poliacutetica e juriacutedica se aprofundou criando uma condiccedilatildeo secular que viria a ter efeitos estruturais tambeacutem sobre o modo de organizaccedilatildeo e atuaccedilatildeo das diferentes religiotildees

De acordo com os dados do IBGE em 1940 952 da populaccedilatildeo brasileira era catoacutelica Em 1980 o nuacutemero havia decrescido para 89 da populaccedilatildeo Esse nuacutemero passou para 73 em 2000 decrescendo para 646 da populaccedilatildeo de acordo com o Censo de 2010

O fim da monopolizaccedilatildeo religiosa ocorrida com o iniacutecio da Repuacuteblica no fim do seacuteculo XIX ocasionou tambeacutem maior liberdade religiosa Os dados do IBGE (2000) apontam que cerca de 40 dos catoacutelicos brasileiros eram natildeo praticantes ou seja natildeo participavam ativamente das atividades eclesiais A natildeo-participaccedilatildeo natildeo indica todavia uma falta de atividade religiosa Como ser brasileiro estaacute ligado a ser catoacutelico faz parte da cultura brasileira denominar--se catoacutelico enquanto participa de reuniotildees espiacuteritas ou frequenta cultos no Candombleacute e Umbanda O resultado dessa maior liberdade religiosa bem como a maior liberdade para se considerar como pertencente a outras religiotildees ou mesmo sem-religiatildeo pode ser observada nos Censos das uacuteltimas deacutecadas Enquanto o Catolicismo decresceu de 952 em 1940 para 646 em 2010 as ldquooutras religiotildeesrdquo cresceram de 19 para 5 da populaccedilatildeo os ldquosem-religiatildeordquo saltaram de 02 para 81 de 1940 a 2010 e os evangeacutelicos cresceram de 26 para 222 da populaccedilatildeo nos uacuteltimos 70 anos

Por fim a secularizaccedilatildeo abre espaccedilos para que natildeo soacute novas religiotildees como tambeacutem novas organizaccedilotildees religiosas busquem espaccedilo e concorram pela fide-lizaccedilatildeo religiosa dos indiviacuteduos

A concessatildeo da liberdade religiosa e a separaccedilatildeo Igreja-Estado romperam definitivamente o monopoacutelio catoacutelico abrindo caminho para que outros grupos religiosos pudessem ingressar e se formar no paiacutes disputar e conquistar novos espaccedilos na sociedade adquirir legitimidade social e consolidar sua presenccedila institucional (MARIANO 20033)

Com o fim do monopoacutelio religioso e consequentemente a abertura para novas organizaccedilotildees religiosas possibilita-se a formulaccedilatildeo de distintos interesses religiosos respondendo a distintos interesses sociais A religiatildeo agrave medida que vai se autonomizando como esfera social com loacutegica proacutepria atua como elabo-

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radora dos interesses religiosos a partir da mateacuteria-prima dos interesses sociais dos distintos grupos permitindo por exemplo que distintos interesses sociais estejam ligados a um mesmo interesse religioso Uma vez que as organizaccedilotildees consigam elaborar interesses religiosos comuns capazes de transcender em certa medida as fronteiras dos interesses sociais - embora sem nunca lograr uma completa desvinculaccedilatildeo desses interesses - torna-se provaacutevel a adesatildeo de distintos grupos sociais a essas organizaccedilotildees e especialistas a fim de realizar esses interesses religiosos

Para exemplificarmos o efeito do pluralismo religioso observemos o cresci-mento das igrejas evangeacutelicas no Brasil nos uacuteltimos anos Os dados do Instituto Brasileiro de Planejamento Tributaacuterio (IBPT) apontam que existem no Brasil mais de 179 mil organizaccedilotildees religiosas evangeacutelicas registradas Somente em 2013 doze igrejas foram abertas por dia no Brasil cerca de 4400 novas organi-zaccedilotildees religiosas evangeacutelicas ao longo do ano Esse nuacutemero apresentou em 2014 crescimento de 52869 As organizaccedilotildees religiosas evangeacutelicas apresentam um faturamento de cerca de R$20 bilhotildees ao ano oriundo de diacutezimos venda de produtos e aplicaccedilotildees financeiras70

Essa nova configuraccedilatildeo religiosa no Brasil abre oportunidades para a anaacutelise da religiatildeo sob novas perspectivas uma vez que novos interesses religiosos e sociais ganham espaccedilo nas disputas por atenccedilatildeo nas organizaccedilotildees e especialistas religiosos

Dessa forma a nova configuraccedilatildeo religiosa brasileira demonstra que as transformaccedilotildees religiosas acompanham as transformaccedilotildees sociais mas ocorrem tambeacutem por mudanccedilas na proacutepria esfera religiosa e na capacidade de diferentes religiotildees organizarem distintos interesses e atenderem distintas demandas dos indiviacuteduos

Portanto compreender a configuraccedilatildeo religiosa brasileira eacute funccedilatildeo importante de todo aquele que deseja analisar como a religiatildeo influencia tanto o indiviacuteduo como a sociedade brasileira ao passo que tambeacutem eacute influenciada por eles

69 Disponiacutevel em httpwwwempresometrocombrSiteMetodologia70 Para mais informaccedilotildees sobre a arrecadaccedilatildeo das organizaccedilotildees religiosas evangeacutelicas ver httpexameabrilcombrbrasilem-um-ano-arrecadacao-de-igrejas-passou-dos-r-20-bi

48 TeoloacutegicaRevista Brasileira de Teologia ISSN 1807-7056 nordm 8 outdez Rio de Janeiro 2020 p35 - 50

Teoloacutegica | Revista Brasileira de Teologia

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CAMPOS Bernardo Da Reforma protestante agrave Pentecostalidade da Igreja Satildeo Leopoldo e Quito Sinodal e Clai 2002

CAMPOS Leonildo Silveira Pentecostalismo e Protestantismo Histoacuterico no Brasil um seacuteculo de conflitos assimilaccedilatildeo e mudanccedilas Horizonte v 9 n 22 Belo Horizonte 2011

CAMURCcedilA Marcelo Ayres A Religiatildeo e o Censo enfoques metodoloacutegicos Uma reflexatildeo a partir das consultorias do ISER ao IBGE sobre o dado religioso nos censos Comunicaccedilotildees do ISER v 69 2014 p 04-152

DUTRA Roberto A Universalidade da Condiccedilatildeo Secular Religiatildeo e Socieda-de Rio de Janeiro 36(1) 151-174 2016

DUTRA Roberto BOECHAT Joatildeo Diferenciaccedilatildeo funcional e organizaccedilotildees religiosas na modernidade uma anaacutelise teoacuterica com base no pentecostalismo no Brasil Revista de Ciecircncias Sociais v 49 n 2 2018

GIUMBELLI Emerson A vontade do saber terminologias e classificaccedilotildees sobre o protestantismo brasileiro Religiatildeo e Sociedade Rio de Janeiro n 1

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GONCcedilALVES Delmo Neopentecostalismo Nascimento desenvolvimento e contemporaneidade Uma anaacutelise da IURD e seus elementos eacutetnico-religiosos Novas Ediccedilotildees Acadecircmicas 2015

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MARIANO Ricardo Sociologia do Crescimento Pentecostal um balanccedilo Perspectiva Teoloacutegica ano 43 n 119 Belo Horizonte 2011

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OLSON Roger E Teologia Arminiana mitos e realidades Satildeo Paulo Editora Reflexatildeo 2013

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RODRIGUES Denise dos Santos Os sem religiatildeo nos censos brasileiros sinal de uma crise de pertencimento institucional Horizonte v 10 2012 p 1130-1152

SILVEIRA Marcelo O discurso da Teologia da Prosperidade em Igrejas Evangeacutelicas Estudo da Retoacuterica e da Argumentaccedilatildeo no culto religioso Tese (Doutorado em Ciecircncias Sociais) Universidade de Satildeo Paulo-USP Satildeo Paulo 2007

SOUZA Carlos O Protestantismo Histoacuterico e a ldquoPentecostalizaccedilatildeordquo Novos contornos da identidade evangeacutelica Ciecircncias da Religiatildeo histoacuteria e sociedade Satildeo Paulo v 12 n 2 2014

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WEBER Max A Eacutetica Protestante e o Espiacuterito do Capitalismo Trad Maacuterio Moraes Satildeo Paulo Martin Claret 2013

WEBER MAX Economia e Sociedade fundamentos da sociologia com-preensiva Brasiacutelia Editora Universidade de Brasiacutelia 2000 2009 (reimpressatildeo)

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AMEacuteM MUacuteLTIPLOS DERIVADOS O MESMO CONCEITOAs diferentes traduccedilotildees de uma mesma raiz

AMEN MULTIPLE DERIVATIVES THE SAME CONCEPTDifferent translations of the same word

Rawderson Rangel71

RESUMOHaacute diversas expressotildees que se encontram no Novo Testamento utilizadas

com muita frequecircncia ainda hoje nas igrejas cristatildes cuja origem eacute o hebraico A proposta do presente artigo eacute analisar a conhecida expressatildeo ldquoAmeacutemrdquo repe-tida em oraccedilotildees e muitas vezes como resposta da congregaccedilatildeo ao pregador ou dirigente do culto Atraveacutes do estudo de diferentes vocaacutebulos tendo esta palavra em sua raiz a investigaccedilatildeo apresentaraacute possiacuteveis significados e sentidos para a expressatildeo que de forma consensual eacute definida simplesmente por ldquoassim sejardquo

Palavras-chave Ameacutem Hebraico Raiz verbal

ABSTRACTMany expressions found in the New Testament often used even today in

Christian churches have their origin in the Hebrew The purpose of this article is to analyze the familiar expression ldquoAmenrdquo repeated in prayers and often as a congregation response of to the preacher or gospel service responsible Through the study of different words having this word in their root the research will present possible meanings for the expression usually simply defined by ldquoLet it be sordquo

Keywords Amen Hebrew Verbal root

71 Bacharel em Teologia pelo Seminaacuterio Teoloacutegico Batista do Sul do Brasil (atual Faculdade Batista do Rio de Janeiro) RJ Brasil revalidado pela Faculdade Teoloacutegica Batista do Paranaacute em Curitiba (atual FABAPAR) PR Brasil Poacutes-graduado em Antigo Testamento tambeacutem pela FABAPAR PR Mestre em Teologia pela Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Paranaacute Cursou Hebraico Biacuteblico pela Israel Biblical Institute of Studies acreditado pela Universidade Hebraica de Jerusaleacutem Israel atualmente eacute estudante de Grego Biacuteblico pela mesma instituiccedilatildeo Escritor professor de Teologia e idiomas biacuteblicos missionaacuterio da Junta de Missotildees Mun-diais da Convenccedilatildeo Batista Brasileira - JMM da CBB em Moccedilambique Eacute professor do Instituto Teoloacutegico Baptista da Beira Sofala e Instituto Biacuteblico de Sofala ndash Moccedilambique E-mail rawdersonhotmailcombr

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INTRODUCcedilAtildeO O hebraico biacuteblico por ser um idioma antigo apresenta-se bastante complexo

com determinados caracteres e algumas formas gramaticais que hoje natildeo satildeo mais utilizadas tal complexidade pode ser diminuiacuteda se o estudante estiver atento a alguns detalhes que satildeo extremamente uacuteteis no estudo da liacutengua e a anaacutelise a partir de determinadas raiacutezes eacute uma delas Haacute muitas palavras de tronco comum que uma vez entendidas ajudam na memorizaccedilatildeo delas na compreensatildeo do sentido de uma expressatildeo e ateacute mesmo de um verso biacuteblico

O vocabulaacuterio da Biacuteblia hebraica eacute de aproximadamente oito mil palavras72 sendo que duas mil delas aparecem apenas uma vez no texto desse modo um bom dicionaacuterio biacuteblico eacute indispensaacutevel no estudo do Antigo Testamento Ao mesmo tempo todo esse vocabulaacuterio pode ser reduzido a mil e trezentas raiacutezes73 e a polissemia desse idioma torna o estudo das palavras e seu significado original relevante pois facilita a compreensatildeo de determinadas palavras ou expressotildees no texto hebraico Ela tem sido vista como uma soluccedilatildeo para os muacuteltiplos significados representados por uma uacutenica palavra Ana Ceciacutelia Cruz defende essa relaccedilatildeo tanto graacutefica quanto foneacutetica segundo essa autora esta eacute ldquo() uma relaccedilatildeo metafoacuterica que amplia um sentido baacutesico para outros mais abstratosrdquo74

Miles Van Pelt afirma que as primeiras cinquenta palavras mais frequentes permitem ao estudante reconhecer um pouco mais da metade (55) do total de palavras que ocorrem no Antigo Testamento hebraico Dominar as 641 palavras que ocorrem cinquenta ou mais vezes permitiraacute identificar mais de 80 das palavras75 Uma das razotildees para isso eacute a relaccedilatildeo entre estas e as suas raiacutezes

A palavra que seraacute analisada neste artigo tambeacutem pode ter muacuteltiplas tradu-ccedilotildees embora um sentido baacutesico Analisar a origem e o significado de ldquoAmeacutemrdquo eacute bastante interessante embora natildeo menos complexo quando comparada agraves de-mais liacutenguas semiacuteticas76 Sabe-se que ela existe desde tempos remotos tanto em hebraico como tambeacutem em aacuterabe (rsquoĀmīn) ldquoAmeacutemrdquo eacute referecircncia nas trecircs grandes religiotildees que surgiram no Oriente Meacutedio cristianismo islamismo e judaiacutesmo Assim como ldquoAleluiardquo essa palavra tambeacutem natildeo se traduz em nenhum idioma sendo compreendida por todas as culturas sob a influecircncia de pelo menos uma das religiotildees mencionadas anteriormente

72 FRANCISCO Edson Faria de In Liacutengua Hebraica Aspectos Histoacutericos e Caracteriacutesticas (2010)73 JOUumlON P MURAOKA T (2007) Gramaacutetica del Hebreo Biacuteblico sect40 ndash nota74 CRUZ A d Estratificaccedilatildeo linguiacutestica ampliaccedilatildeo semacircntica e polissemia em hebraico Revista Veacutertices 11 2011 p 4275 PELT Miles Van The vocabulary guide to biblical Hebrew 2003 p ix76 WILLIAM B EERDMANS PUBLISHING COMPANY (1974) Theological Dictionary of The Old Testament (Vol I) Paacutegs 292293

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1 AMEacuteM EM DIVERSAS CULTURASA palavra tem algumas caracteriacutesticas particulares em cada uma dessas

religiotildees apesar de natildeo estar incluiacuteda no Alcoratildeo āmīn eacute uma das mais im-portantes na oraccedilatildeo islacircmica usada em diferentes contextos principalmente na sua conclusatildeo77 o rabino Chanina em 225 dC afirmou que ldquoameacutemrdquo eacute um acroacutestico - a palavra eacute composta por trecircs consoantes que em hebraico sintetizam a frase ldquoDeus Rei Fielrdquo rsquoel melek e nersquoeman78 Pronunciar essa palavra no final da prece eacute segundo esse raciociacutenio uma declaraccedilatildeo espiritual de que o proacuteprio Deus vai agir jaacute no cristianismo quando se pergunta o significado de ldquoAmeacutemrdquo logo vem a resposta ldquoassim sejardquo Tambeacutem no cristianismo ela tem um conceito de encerramento conclusatildeo teacutermino sendo esta uma das uacuteltimas palavras do Novo Testamento encontrada em Apocalipse 2220 21

Independentemente do que esteja acontecendo em um culto nas igrejas evan-geacutelicas eacute comum ouvir-se um ldquoameacutemrdquo Eacute tatildeo comum no linguajar cristatildeo que se tornou inclusive uma pergunta ldquoAmeacutem irmatildeosrdquo A resposta vem a seguir ldquoAmeacutemrdquo A depender do contexto tem o sentido de ldquopode ser assimrdquo ldquocon-cordamrdquo ou ateacute mesmo ldquoeacute assim ou natildeo eacuterdquo Quando aparentemente natildeo haacute um assunto definido ou o dirigente ainda estaacute se organizando no puacutelpito surge a pergunta ldquoAmeacutemrdquo A resposta da congregaccedilatildeo eacute repetir ldquoAmeacutemrdquo Resta analisar se foi criada uma nova semacircntica

Em diversos lugares do mundo o ldquoameacutemrdquo identifica-se com a feacute Quando se termina o momento devocional e de oraccedilatildeo a palavra eacute repetida imediatamente uma vez que tem sido ensinada como significado de ldquoassim sejardquo No Dicionaacuterio Internacional de Teologia do Antigo Testamento no entanto lecirc-se que

Esse conceito tatildeo importante da doutrina biacuteblica eacute prova clara do signi-ficado biacuteblico de ldquofeacuterdquo em contraste com muitos conceitos populares do termo No acircmago do sentido da raiz estaacute a ideia de certeza Isso eacute susten-tado pela definiccedilatildeo de feacute do NT encontrada em Hebreus 11179

Esse dicionaacuterio relaciona a expressatildeo pistis com certeza e feacute algo que tambeacutem acontece em alguns versos traduzidos do hebraico pela LXX cuja raiz da palavra eacute ldquoameacutemrdquo 80 embora natildeo com uniformidade 81

77 AKASOY 200978 Strack amp BILLERBECK 1922 paacuteg 464 Apud ZINKAND 1982 p 279 rsquoāmīn in HARRIS ARCHER JR e WALTKE 199880 Dt 3220 Jeremias 92 entre outros81 ZINKAND 1982 op cit paacuteg 4

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2 ʾmN e SeUS DeRivaDOS Partindo da anaacutelise da sua raiz (que neste caso eacute ʾmn) e de acordo com o

contexto eacute possiacutevel perceber que a palavra ameacutem tem um sentido que vai aleacutem do significado convencional ʾmn pode ser traduzido do texto hebraico82 de diferentes maneiras mas normalmente relacionado a ldquoconfiarrdquo e ldquoacreditarrdquo Esta eacute tambeacutem a tese defendida por Flor83 ainda que a raiz apareccedila como verbo ou adjetivo

Embora essa palavra aqui estudada seja mais conhecida como uma interjeiccedilatildeo ela tambeacutem se encontra no original tanto em raiacutezes verbais como tambeacutem em substantivos e adjetivos reafirmando o significado de confianccedila e estabilidade Eacute possiacutevel que haja alguma dificuldade para identificaacute-la especialmente pelas variaccedilotildees caracteriacutesticas da gramaacutetica hebraica No entanto ao reconhececirc-la o texto seraacute enriquecido com as possibilidades de interpretaccedilatildeo

21 ʾmN NaS RaiacutezeS veRBaiS

A primeira vez que a palavra aparece no texto do Antigo Testamento eacute na passagem de Gecircnesis 15 quando Deus percebe que Abratildeo colocava em duacutevida que ele teria descendecircncia direta Nesse episoacutedio o patriarca afirma esperar que a sua descendecircncia seria a de Eliezer mas Deus ldquoimediatamenterdquo (hinnēh - Gecircnesis 154) apresenta-lhe as suas intenccedilotildees convidando-o gentilmente84 a sair da sua tenda e ver a quantidade de estrelas no ceacuteu como um exemplo da quantidade de descendentes que ele teria

Apoacutes essa conversa diz o texto em Gecircnesis 156 ldquoEle creu [hě ěʾmin] no Se-nhor e isso lhe foi imputado para justiccedilardquo A raiz do verbo em destaque eacute ʾ mn85 Uma vez que se encontra em hifil pode ser traduzido por ldquoele acreditourdquo ou ldquoele se firmou por uma convicccedilatildeo internardquo A mudanccedila de sentimento de Abratildeo foi fundamental para o desenrolar da histoacuteria de Israel conforme apresentado no Antigo Testamento Essa passagem inclusive eacute confirmada no Novo Testamen-

82 Salvo nota indicando o contraacuterio todas as passagens biacuteblicas em portuguecircs apresentadas na presente investigaccedilatildeo foram extraiacutedas da versatildeo Revista e Atualizada da Sociedade Biacuteblica do Brasil 199983 FLOR E N (Novembro de 2000) ldquoAmenrdquo in Old Testament liturgical texts a study of its meaning and later development as a plea for ecumenical understanding p 784 Sobre a expressatildeo que demonstra esse tratamento cordial e respeitoso por parte de Deus nesta passagem ver RANGEL Rawderson ldquoNatildeo estou mandando estou pedindo a partiacutecula de Suacuteplicardquo in Revista Teoloacutegica nuacutemero 6 ago ndash dez 2018 pp 114-125 Filo afirma que a conversa natildeo foi em um niacutevel de Deus para o homem mas sim entre amigos in PAGE T E (Ed) Philo (Vol VI) London England William Heinemann Ltd Harvard University Pressp 311 85 Na LXX a traduccedilatildeo utiliza a palavra episteusen da mesma raiz da palavra feacute usada em Hebreus 11

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to 86 e nessas passagens todos os versos traduzem o ʾmn por pisteuo seguindo a LXX no aoristo enfatizando o fato da ocorrecircncia natildeo da sua natureza

Ainda como verbo no contexto de ldquoacreditarrdquo e ldquoconfiarrdquo na histoacuteria de Israel ʾmn tambeacutem aparece como uma negaccedilatildeo agrave feacute ou a crer Quando Moiseacutes estaacute diante de Deus no monte Sinai recebendo a missatildeo de libertar o povo de Israel do Egito ele pergunta ldquo[] Mas eis que natildeo creratildeo [yaʾmīnū] nem acudiratildeo agrave minha voz []rdquo (Ecircxodo 41) A falta de feacute ou confianccedila eacute tambeacutem evidenciada na passagem em que o povo de Israel teme entrar na terra prometida diante do testemunho dos espias que foram enviados a Canaatilde ldquo[] Ateacute quando me provocaraacute este povo e ateacute quando natildeo creraacute [lōʾ -yaʾ ămicircnucirc] em mim a despeito de todos os sinais que fiz no meio delerdquo87 (Nuacutemeros 1411)

O conhecido texto de Habacuque 24 eacute tambeacutem uma interessante passagem relacionada a crer e confiar ldquo() mas o justo em sua feacute [beʾ ĕmucircnāṯocirc] viveraacuterdquo [trad do autor] 88 Outra possibilidade para Habacuque 24 o justo por aquilo que ele crecirc viveraacute A feacute tem seu fundamento naquilo que estaacute estabelecido e por isso eacute digno de creacutedito

Isaiacuteas 79 apresenta um curioso jogo de palavras ldquo[] se o natildeo crerdes certamente natildeo permanecereisrdquo No hebraico os verbos crer e permanecer satildeo palavras homoacutegrafas e homoacutefonas taʾămicircnucirc e tēʾāmēnucirc reforccedilando a ideia Ambos com a raiz ʾmn tecircm o sentido de fidelidade feacute e acreditar

Acosta Rosales apresenta um estudo no qual apenas analisa essa palavra em qal 89 Mas haacute diversos outros exemplos na Biacuteblia que relacionam ʾmn com confianccedila no particiacutepio a palavra eacute usada para expressar a confianccedila de uma crianccedila nos braccedilos de sua matildee 90 ou de seus cuidadores (Nuacutemeros 1112 91 e 2Reis 101 92) em Isaiacuteas 604 93 no Nifal eacute possiacutevel tambeacutem relacionar-se o verbo a cuidadores com sentido de trazer seguranccedila e firmeza

86 Romanos 43 Gaacutelatas 36 Tiago 22387 A traduccedilatildeo correta seria creratildeo yarsquomīnū88 A palavra feacute em Habacuque 24 na LXX eacute traduzida por pistis no Genitivo singular feminino 89 ROSALES A D Re-discovering the semantics of ןמא in qal Theologica Xaveriana 67 (Grammar Philology Semantics) 431-46090 rsquoāman in WILLIAM B EERDMANS PUBLISHING COMPANY 197491 Nuacutemeros 1112 ldquoConcebi eu porventura todo este povo Dei-o eu agrave luz para que me digas Leva-o ao teu colo como a ama [particiacutepio] leva a crianccedila que mama agrave terra que sob juramento prometeste a seus paisrdquo 92 2Reis 101 ldquoAchando-se em Samaria setenta filhos de Acabe Jeuacute escreveu cartas e as enviou a Samaria aos chefes da cidade aos anciatildeos e aos tutores [particiacutepio] dos filhos de Acabe dizendordquo 93 Isaiacuteas 604 ldquoLevanta em redor os olhos e vecirc todos estes se ajuntam e vecircm ter contigo teus filhos chegam de longe e tuas filhas satildeo trazidas [Nifal imperfeito 3feminina plural] nos braccedilos

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22 ʾmN COmO SUBSTaNTivO e aDjeTivO

Ainda relacionada agrave credibilidade a palavra utilizada para nomear as vigas sobre as portas do templo que deram sustentaccedilatildeo agrave construccedilatildeo tem em sua raiz ʾmn em 2Reis 1816 encontramos a palavra traduzida por ombreiras 94 das portas do templo de Israel95 Na LXX a traduccedilatildeo eacute de uma palavra derivada de stērizō algo que daacute estabilidade Quando se avalia toda a estrutura do templo evidencia-se que tais ombreiras natildeo poderiam ser algo sem uma firmeza e que garantissem seguranccedila

Como sustentaccedilatildeo e credibilidade relacionadas a pessoas ʾmn encontra-se em Ecircxodo 1712 na conhecida passagem em que os filhos de Israel perdiam a batalha quando Moiseacutes baixava as suas matildeos Percebendo isso Aratildeo e Hur seguraram os seus braccedilos e ldquo() assim lhe ficaram as matildeos firmes [ʾ ĕmucircnacirc] ateacute ao pocircr-do-solrdquo96 Com a firmeza veio a certeza da vitoacuteria Novamente atraveacutes da raiz o texto atribui agrave atitude desses homens o sinocircnimo de seguranccedila e firmeza

Essa credibilidade se observa tambeacutem como sinocircnimos de guardas e segu-ranccedilas porteiros (1Crocircnicas 922) pessoas responsaacuteveis por atividades diversas em quem se depositou total confianccedila (1Crocircnicas 931 2Crocircnicas 3412)

Haacute vaacuterios substantivos que satildeo derivados da raiz ʾ mn e todos eles transmitem a ideia baacutesica de ldquosuporte firmezardquo ou ldquoconfirmaccedilatildeordquo Haacute variantes da palavra traduzidas por ldquopai adotivordquo algueacutem que apoia e nutre um grupo familiar dando-lhe estabilidade e firmeza A forma feminina com essa raiz ʾomenet significa ldquomatildee adotivardquo e inclui a ideia de ldquonutrirrdquo ldquofortalecerrdquo Outra palavra que demonstra essa firmeza agora na arte eacute ʾuman denota ldquoum operaacuterio habi-lidosordquo traduzido por ldquoartesatildeordquo97

O texto biacuteblico apresenta uma relaccedilatildeo curiosa entre o homem e ʾmn falando em termos da natureza humana ele eacute falho e inseguro pode vacilar Os adjetivos relacionados com ʾ mn atribuiacutedos aos seres humanos nunca englobam a sua tota-lidade mas sim aspectos e momentos pontuais que viveram Nem mesmo a Joacute que recebeu os elogios do Senhor por sua integridade eacute atribuiacutedo esse adjetivo

No entanto eacute a Deus que ʾ āman eacute atribuiacutedo Para Flor isso acontece especial-mente no livro de Salmos (mas natildeo soacute) porque Deus eacute imutaacutevel estaacutevel e firme

94 A mesma palavra pode ter dois significados diferentes um se refere a m ezuwzah (laterais) enquanto que a palavra de 2 Reis 1816 se refere agrave parte superior da porta A LXX traduz por estērigmena 95 2Reis 1816 ldquoFoi quando Ezequias arrancou das portas do templo do Senhor e das ombreiras o ouro de que ele rei de Judaacute as cobrira e o deu ao rei da Assiacuteriardquo96 A LXX traduz este texto com a mesma ideia97 FLOR E N op cit p 15

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enquanto o ser humano frequentemente eacute fraco instaacutevel e inconstante98 Por essa razatildeo acreditando nisso em Lamentaccedilotildees 323 se lecirc a respeito das misericoacuterdias de Deus ldquo() renovam-se cada manhatilde Grande eacute a tua fidelidade [ʾ ĕmucircnātekā]rdquo

A palavra do Senhor tambeacutem eacute tida por fiel e verdadeira digna de credibili-dade e aiacute tambeacutem se encontra a raiz da palavra em questatildeo O salmo 119 nos versos 75 86 90 138 o poeta homenageia a Lei de Deus qualificando-a de fiel e verdadeira

3 āʾmaN e ldquoaSSim Sejardquo

A palavra ldquoAmeacutemrdquo aparece vinte e quatro vezes no Antigo Testamento (doze delas apenas em Deuteronocircmio 2715ss) Devido agrave variedade de possibilidades torna-se difiacutecil identificar o seu real sentido no hebraico99

Haacute textos que sugerem a expressatildeo ldquoassim sejardquo em sua traduccedilatildeo com uma conotaccedilatildeo de confirmaccedilatildeo daquilo que estava sendo dito como nos versos de Jeremias 115100 286101 e 1Reis 136 37102 Nesses textos eacute possiacutevel interpretar que Deus daria a sua becircnccedilatildeo ao que jaacute havia sido planejado e dito Nessas passagens a referecircncia eacute feita aos oradores somente porque eles reconheceram o que jaacute havia sido determinado por YHVH e confirmaram a afirmaccedilatildeo Suas declaraccedilotildees podem significar ldquoPrecisamente Eu sinto o mesmo a respeito que Deus o faccedilardquo103 Eacute como uma aceitaccedilatildeo do que foi estabelecido natildeo uma esperanccedila em algo que aconteceria

Existem tambeacutem ao menos trecircs passagens nas quais a palavra ldquoameacutemrdquo estaacute em uma situaccedilatildeo diferente da mencionada anteriormente todas elas relacionadas a uma maldiccedilatildeo contra a pessoa envolvida em Deuteronocircmio 2715-26 (declara-ccedilatildeo de maldiccedilotildees no caso do natildeo cumprimento das leis e estatutos estabelecidos por Deus) em Nuacutemeros 522104 (declaraccedilatildeo solene acontecia no momento em que

98 ibidem p 1799 WILLIAM B EERDMANS PUBLISHING COMPANY op cit p 320100 Jeremias 115 ldquoPara que confirme o juramento que fiz a vossos pais de lhes dar uma terra que manasse leite e mel como se vecirc neste dia Entatildeo eu respondi e disse ameacutem oacute Senhorrdquo101 Jeremias 286 ldquoDisse pois Jeremias o profeta Ameacutem Assim faccedila o Senhor confirme o Senhor as tuas palavras com que profetizaste e torne ele a trazer da Babilocircnia a este lugar os utensiacutelios da Casa do Senhor e todos os exiladosrdquo102 1Reis 136 37 ldquoEntatildeo Benaia filho de Joiada respondeu ao rei e disse Ameacutem Assim o diga o Senhor Deus do rei meu senhor Como o Senhor foi com o rei meu senhor assim seja com Salomatildeo e faccedila que o trono deste seja maior do que o trono do rei Davi meu senhorrdquo103 WILLIAM B EEDERMANS PUBLISHING op cit pp 320104 Nuacutemeros 522 ldquoE esta aacutegua amaldiccediloante penetre nas tuas entranhas para te fazer inchar o ventre e te fazer descair a coxa Entatildeo a mulher diraacute Ameacutem Ameacutemrdquo

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a mulher era confrontada sobre o adulteacuterio) e em Neemias 513105 (compromisso contra a usura) Por serem maldiccedilotildees que recairiam sobre quem natildeo cumprisse a sua palavra ou imprecaccedilatildeo sobre a pessoa condenada a expressatildeo sugere uma declaraccedilatildeo solene de que aqueles castigos iriam acontecer106 Seria o conhecido ldquoassim sejardquo pronunciado em declaraccedilatildeo solene de aceitaccedilatildeo do castigo contra aquele que estava assumindo o compromisso

Em algum momento a expressatildeo passou a ser tambeacutem usada na Doxologia em resposta da congregaccedilatildeo diante de uma declaraccedilatildeo de Deus em Neemias 86 a congregaccedilatildeo diz ldquoameacutem ameacutemrdquo levantando as suas matildeos Natildeo se sabe dizer se este jaacute era um costume seguido (conforme 1Crocircnicas 1636) ou se passou a ser regular a partir daquele momento107 Sobre os cacircnticos do salteacuterio a palavra aparece no final dos primeiros quatro livros (Salmos 4113 7219 8952 10648)

CONCLUSAtildeO Os exemplos apresentados ilustram a importacircncia de o estudante do hebraico

biacuteblico analisar as palavras a partir de suas raiacutezes para poder interpretar melhor o texto biacuteblico sempre considerando prioritariamente o contexto que eacute deter-minante na interpretaccedilatildeo108 Dificilmente haveraacute um uacutenico significado oriundo de uma uacutenica raiz portanto conhecer os seus significados seraacute uma grande contribuiccedilatildeo no estudo do texto biacuteblico

Quando um hebreu ouvia as vaacuterias palavras derivadas da raiz ʾmn a ideia baacutesica que lhe vinha agrave mente era aparentemente ldquoconstacircnciardquo ldquoestabilidaderdquo Quando se referiam a objetos significavam ldquocontinuidaderdquo quando relacionadas a pessoas ldquoconfiabilidaderdquo Outros derivados da raiz satildeo ldquodurabilidaderdquo ldquoesta-bilidaderdquo ldquoverdaderdquo ldquofeacuterdquo ldquocompletuderdquo ldquoaquele que protegerdquo109 No entanto Deus eacute aquele que plenamente tem essas virtudes e atributos o ser humano tem essas qualidades ateacute certo ponto devido agrave sua limitaccedilatildeo e fragilidade

Quanto agrave palavra ldquoameacutemrdquo que proveacutem da raiz que expressa todas as qualida-des mencionadas anteriormente a expressatildeo tem o sentido de feacute e confianccedila em algo previamente estabelecido mas tambeacutem expressa uma certeza e confianccedila 105 Neemias 513 ldquoTambeacutem sacudi o meu regaccedilo e disse Assim o faccedila Deus sacuda de sua casa e de seu trabalho a todo homem que natildeo cumprir esta promessa seja sacudido e despojado E toda a congregaccedilatildeo respondeu Ameacutem E louvaram o Senhor e o povo fez segundo a sua promessardquo106 Barry J D Mangum D Brown D R Heiser et al Faithlife Study Bible (Dt 2715) Bellingham WA Lexham Press 2016107 WILLIAM B EEDERMANS PUBLISHING op cit pp 321108 Osborne (2009 paacutegs 101-139 especialmente as paacutegs 104-108) trata do exagero que muitos estudiosos da Biacuteblia datildeo agraves palavras analisadas de forma isolada descontextualizada109 WILLIAM B EEDERMANS PUBLISHING op cit pp 323

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quanto ao futuro Quando observada no Antigo Testamento ela eacute feita de forma solene e consciente e por isso mesmo raramente eacute encontrada no texto

A expressatildeo que sugere uma ratificaccedilatildeo eacute cuidadosamente aplicada nas paacutegi-nas da Biacuteblia natildeo sendo uma palavra dita em qualquer momento ou por qualquer situaccedilatildeo A conclusatildeo de Lande eacute que ldquoameacutemrdquo eacute usado como confirmaccedilatildeo de uma situaccedilatildeo muito especial e que a expressatildeo natildeo pertence agrave fala cotidiana110 Hulst expressa a mesma opiniatildeo ao afirmar ldquoA palavra ameacutem natildeo pertence agraves palavras do uso diaacuterio constante eacute mantido para uso em situaccedilotildees muito especiais e aleacutem disso raramente ocorre111 Por sua raridade no texto biacuteblico os personagens do Antigo Testamento tinham consciecircncia do seu sentido e o respeitavam

No AT a palavra eacute usada tanto pelo indiviacuteduo quanto pela comunidade para 1) confirmar a aceitaccedilatildeo de uma tarefa designada por homens mas a sua exe-cuccedilatildeo envolve a vontade de Deus (1Reis 136) 2) ratificar a aplicaccedilatildeo pessoal de uma ameaccedila ou maldiccedilatildeo divina (Nuacutemeros 522 Deuteronocircmio 2715ss Jeremias 115 Neemias 513) e 3) para declarar o louvor a Deus em resposta a uma doxologia (1Crocircnicas 1636 Neemias 86) como mostram os textos finais dos primeiros quatro livros dos Salmos (4113 7219 8952 10648)112

110 LANDE 1949 paacuteg 112 apud FLOR 2000 pp 16 17111 HULST 1953 p50 apud FLOR E N ldquoAmenrdquo in Old Testament liturgical texts a study of its meaning and later development as a plea for ecumenical understanding University of South Africa novembro de 2000 p17112 RENGSTORF ἀμήν in Wm B Eerdmans Publishing Co 1964 paacuteg 335

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A ANAacuteLISE DO DISCURSO NA INTERPRETACcedilAtildeO BIacuteBLICA

DISCOURSE ANALYSIS IN BIBLICAL INTERPRETATIONMe Thaiacutes de Oliveira Viriacutessimo113

Universidade Federal do Rio de Janeiro

RESUMO A Anaacutelise do Discurso tida como relevante para a interpretaccedilatildeo dos inuacutemeros

gecircneros textuais existentes eacute uma teoria linguiacutestica com extensiva abrangecircncia e aplicabilidade Sua importacircncia tem sido reconhecida inclusive por aqueles que manuseiam textos antigos entre os quais a Biacuteblia eacute encontrada Por ser ainda escassa a interaccedilatildeo entre estudos da linguagem e teologia no ambiente acadecircmico brasileiro objetiva-se neste artigo apresentar a Anaacutelise do Discurso como ferramenta possiacutevel de interpretaccedilatildeo biacuteblica Para isso interpretou-se Evangelho de Marcos 11-4 por meio do meacutetodo desenvolvido por Viriacutessimo (2018) sob os pressupostos da linguiacutestica textual (HORTA 1991 WALLACE 2009 GUTHRIE DUVALL 1998 OLSSON 2013) A pesquisa resultou na compilaccedilatildeo de informaccedilotildees criacuteticas acerca do texto biacuteblico

Palavras-chave Anaacutelise do Discurso Novo Testamento Grego koineacute Evan-gelho de Marcos

ABSTRACTConsidered as relevant for interpreting many existing textual genres Discour-

se Analysis is a linguistic theory with wide scope and applicability Even those who handle Ancient texts among which the Bible is found have recognized its importance As the interaction between studies in languages and Theology in Brazilian colleges is still rare this paper aims to present Discourse Analysis as a tool for biblical interpretation Using the method developed by Viriacutessimo (2018) the Gospel of Mark 11-4 was observed through linguistic assumptions (HORTA 1991 WALLACE 2009 GUTHRIE DUVALL 1998 OLSSON 2013) As a result it was developed a critical compilation of informations about the text

Keywords Discourse Analysis Biblical interpretation New Testament Koine Greek Gospel of Mark

113 Mestre em Letras Claacutessicas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro Possui tambeacutem os tiacutetulos de Licenciada em Portuguecircs-Grego pela supracitada instituiccedilatildeo e de Especialista em Antropologia Intercultural pelo Centro Universitaacuterio de Anaacutepolis (UniEvangeacutelica) Email virissimoprotonmailcom

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1 INTRODUCcedilAtildeOEacute lugar comum afirmar que nenhuma outra obra literaacuteria foi e permanece sen-

do tatildeo citada comentada traduzida e questionada na histoacuteria da humanidade como a Biacuteblia ndash coletacircnea de livros sagrados para o cristianismo e igualmente respeitada por outros segmentos religiosos globais114 A influecircncia da Biacuteblia eacute notoacuteria inclusive no que se refere agrave formaccedilatildeo cultural brasileira Suas histoacuterias inspiraram a arquitetura a exemplo do Redentor de braccedilos abertos sobre a Baiacutea de Guanabara a literatura como os personagens machadianos Esauacute e Jacoacute a muacutesica conforme a mistura dos amores poeacuteticos cantada por Renato Russo em seu Monte Castelo

Ainda assim a abordagem da Biacuteblia como um objeto de estudo suscetiacutevel ao escrutiacutenio por meacutetodos multidisciplinares continua sendo miacutenima no espaccedilo acadecircmico nacional Eacute certo que avanccedilos promissores precisam ser destacados nessa aacuterea como o recente ldquoEstudos Biacuteblicos em Foco I Congressordquo evento promovido pelo Instituto de Letras da UERJ em novembro de 2019 Contudo faz-se indispensaacutevel natildeo apenas a criaccedilatildeo mas a manutenccedilatildeo de iniciativas de pesquisas biacuteblicas fora dos ambientes confessionais de reflexatildeo

A promoccedilatildeo pois de uma metodologia de pesquisa ancorada na Anaacutelise do Discurso destacando-se a sua utilidade no ensino de liacutengua e teologia eacute a linha de chegada que se pretende alcanccedilar com esta publicaccedilatildeo Para tal o artigo foi organizado nas seguintes seccedilotildees 2 Anaacutelise do Discurso em que conceitos fundamentais acerca do assunto seratildeo apresentados 3 Metodologia em que o meacutetodo proposto seraacute passo a passo descrito numa siacutentese teoacuterica e exemplificado com sua aplicaccedilatildeo em Segundo Marcos 11-4 conforme os itens subsequentes ndash 31 Contextualizaccedilatildeo 32 Etapas de anaacutelise 33 Notas e 34 Interpretaccedilatildeo e 4 Consideraccedilotildees finais em que se registraraacute a importacircncia do diaacutelogo entre as Ciecircncias da Linguagem e a Teologia

2 ANAacuteLISE DO DISCURSOA Anaacutelise do Discurso (doravante AD) eacute um quadro teoacuterico com vaacuterias pos-

sibilidades de aplicaccedilatildeo visto que nele podem ser considerados na anaacutelise de

114 O islamismo por exemplo tem registrado no Alcoratildeo a validade da Toraacute e da Biacuteblia como escrituras inspiradas por Deus Alguns versiacuteculos em que isso pode ser percebido satildeo ldquoEle te revelou (oacute Mohammad) o Livro (paulatinamente) com a verdade corroborante dos anteriores assim como havia revelado a Toraacute e o Evangelhordquo (33) ldquoDize Cremos em Allah no que nos foi revelado no que foi revelado a Abraatildeo a Ismael a Isaac a Jacoacute e agraves tribos e no que do Senhor foi concedido a Moiseacutes a Jesus e aos profetas natildeo fazemos distinccedilatildeo alguma entre eles porque somos para Ele muccedilulmanosrdquo (384) ldquoE se tivessem sido observantes da Toraacute do Evangelho e de tudo quanto lhes foi revelado por seu Senhor alimentar-se-iam como que estaacute acima deles e do que se encontra sob seus peacutes [hellip]rdquo (566)

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um texto os seus aspectos extralinguiacutesticos (contexto de produccedilatildeo tipografia meio de apresentaccedilatildeo etc) paralinguiacutesticos (pontuaccedilatildeo entonaccedilatildeo atos de fala gecircnero textual etc) e linguiacutesticos (ordem lexical nominalizaccedilatildeo estilo etc) (LOUW 1992 p18) Mesmo textos antigos com sua exiguidade de formas podem ser observados agrave luz da AD quando definida como ldquoum processo de investigaccedilatildeo pelo qual algueacutem examina a forma e a funccedilatildeo de todas as partes e niacuteveis de um discurso escrito com o objetivo de melhor compreender tanto as partes como o todo daquele discursordquo (GUTHRIE 2001 p 255 traduccedilatildeo nossa)115 Contudo para melhor compreensatildeo do que eacute a AD faz-se necessaacuterio definir o que se entende como discurso

Funcionando ldquoao mesmo tempo como referindo objetos empiacutericos (lsquohaacute discursosrsquo) e como algo que transcende todo ato de comunicaccedilatildeo particular (lsquoo homem eacute submetido ao discursorsquo)rdquo (MAINGUENEAU 2015 p 23) ldquodiscursordquo eacute um termo polivalente Por um lado em associaccedilatildeo a ldquoobjetos empiacutericosrdquo refere-se a ldquoum conceito superordenador no que diz respeito agraves questotildees tradicionais dos filoacutelogos e dos literatosrdquo por abranger ldquotoda uma variedade de gecircneros literaacuterios de registros de niacuteveis de textualizaccedilatildeo das obras bem como as distinccedilotildees formais entre poesia e prosardquo (BONDARCZUK 2017 p 61) Por outro lado extrapolando o ato comunicativo discurso eacute ldquoum processo e natildeo um objeto apresentando um movimento que tem sua dinacircmica proacutepria (ou dyacutenamis) e que por sua vez envolve a negociaccedilatildeo de significado entre os interlocutoresrdquo (BONDARCZUK 2017 p 61) A proacutepria etimologia da palavra mostra que discurso ldquotem em si a ideia de curso de percurso de correr por de movimentordquo sendo assim ldquopalavra em movimento praacutetica de linguagem com o estudo do discurso observa-se o homem falandordquo (ORLANDI 2000 p 15)

Frente a tal complexidade a AD se configura como uma aacuterea de estudos da linguagem que perpassa procedimentos de anaacutelise linguiacutestica tradicionais chegando aos campos de atuaccedilatildeo das teorias linguiacutesticas modernas No que diz respeito aos estudos biacuteblicos somam-se deacutecadas de aplicaccedilatildeo da AD com propoacutesitos diversos ndash desde a traduccedilatildeo da Biacuteblia ateacute a interpretaccedilatildeo desta propriamente dita Porter (2015 p 134) identifica cinco tipologias de AD desen-volvidos para esses fins (1) a Sulafricana (2) a da Sociedade Internacional de Linguiacutestica (Summer Institute of Linguistics SIL) (3) uma abordadem ecleacutetica (4) a amparada na Linguiacutestica Sistecircmico-Funcional e (5) a Continental Euro-peia116 Como se veraacute adiante eacute nessa uacuteltima tipologia em que o meacutetodo a ser apresentado foi ancorado

115 ldquoa process of investigation by which one examines the form and function of all the parts and levels of a written discourse with the aim of better understanding both the parts and the whole of that discourserdquo116 Para maiores detalhes cf Breve histoacuterico entre Anaacutelise do Discurso e os estudos do Novo Testamento subcapiacutetulo da dissertaccedilatildeo de mestrado da presente autora (VIRIacuteSSIMO 2018)

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3 METODOLOGIAA Anaacutelise do Discurso Continental Europeia especificamente nos trabalhos

desenvolvidos pela escola escandinava eacute base dessa metodologia porque sendo sua ecircnfase o texto escrito o que com ela objetiva eacute o esclarecimento das relaccedilotildees de conteuacutedo entre as partes do texto explicando-as em termos da proacutepria liacutengua original Por isso eacute comum essa tipologia ser comparada agrave Linguiacutestica Textual e conforme o teoacutelogo e analista do discurso sueco Birger Olsson ldquouma anaacutelise linguiacutestico-textual eacute um componente baacutesico de todas as exegesesrdquo117 (OLSSON 1985 p 107 apud GUTHRIE 2001 p 256 traduccedilatildeo nossa)

Em suma na tipologia Continental Europeia segundo a elaboraccedilatildeo que Reed (1996) faz das formulaccedilotildees de David Hellholm professor emeacuterito da Faculdade de Teologia da Universidade de Oslo

a anaacutelise do discurso estaacute amplamente preocupada com a comunicaccedilatildeo (Ausdruck) dos signos (Zeichn) por um autorfalante (Sender) e o efeito (Appell) que eles tecircm em um leitorouvinte (Empfaumlnger) Tais signos representam arbitrariamente (Darstellung) coisas como objetos assunto e circunstacircncias (Gegenstaumlnde und Sachverhalte) dos mundos externo e interno dos textos Isso eacute basicamente o que a parte de anaacutelise do termo ldquoanaacutelise do discursordquo envolve (REED 1996 p 225 traduccedilatildeo nossa)118

Feitas tais consideraccedilotildees sobre a tipologia empregada cabe dizer que as subseccedilotildees a seguir estatildeo divididas em explicaccedilatildeo do processo e a aplicaccedilatildeo a fim de exemplificaacute-lo no corpus neotestamentaacuterio

31 CONTEXTUALIZACcedilAtildeO

O primeiro passo da contextualizaccedilatildeo do corpus eacute a leitura integral de uma traduccedilatildeo jaacute existente sempre que disponiacutevel da obra em que ele se encontra A versatildeo biacuteblica aqui consultada foi a Almeida Revista e Atualizada (seguidamente ARA) em funccedilatildeo de nela ser respeitada ldquona medida do possiacutevel a forma da liacutengua em que se encontra a mensagem originalrdquo (BARNWELL 2011 p 15) Ademais no estudo da Biacuteblia eacute oportuna a leitura em diferentes versotildees para comparaccedilatildeo ldquotraduccedilotildees entre as quais vocecirc consiga perceber os pontos de divergecircnciardquo (FEE STUART 2011 p 43) e caso o pesquisador assim queira

117 ldquoA text-linguistic analysis is a basic component of all exegesisrdquo118 ldquoDiscourse analysis is broadly concerned with the communication (Ausdruck) of signs (Zeichen) by an authorspeaker (Sender) and the effect (Appell) they have on a readerlistemer (Empfaumlnger) Such signs arbitrarily represent (Darstellung) such things as objects subject matter and circumstances (Gegenstaumlnde und Sachverhalte) of the external and internal worlds of the texts This is largely what the analysis part of the term lsquodiscouse analysisrsquo entailsrdquo

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fazer sugere-se que essa leitura comparativa esteja focada no corpus propria-mente dito

No mesmo passo da leitura realiza-se uma pesquisa histoacuterico-literaacuteria e formula-se uma redaccedilatildeo a respeito de questotildees gerais como autoria dataccedilatildeo gecircnero puacuteblico alvo entre outras informaccedilotildees que o pesquisador julgar perti-nentes Para este exemplar consultou-se o livro Introduccedilatildeo ao Novo Testamento (CARSON MOO MORRIS 1997) e a partir dele expandiu-se a bibliografia Eacute profiacutecuo que o pesquisador jaacute nessa etapa comece a estabelecer suas convicccedilotildees a respeito das questotildees gerais pontuando em seu texto quais variedades satildeo-lhe mais coerentes no todo conforme o resultado a seguir

ΚΑΤΑ ΜΑΡΚΟΝ como apresenta a 5ordf ediccedilatildeo de The Greek New Testament (ALAND 2014) traduzido como Segundo Marcos refere-se ao tiacutetulo atribuiacutedo pela tradiccedilatildeo eclesiaacutestica ao segundo evangelho da ordem canocircnica Contudo a nomenclatura mais popular para a obra eacute a de Evangelho de Marcos ou sim-plesmente Marcos isso por dois fatores Em primeiro lugar os quatro escritos dedicados agrave vida e ao serviccedilo de Jesus satildeo tradicionalmente tidos como ldquoevan-gelhordquo ndash palavra extraiacuteda justamente do primeiro versiacuteculo de Marcos Eacute vaacutelido dizer que Marcos esteve agrave margem dos estudos neotestamentaacuterios por muito tempo possivelmente em funccedilatildeo de ser esse o evangelho de menor extensatildeo (16 capiacutetulos em comparaccedilatildeo aos 28 de Mateus 24 de Lucas e 21 de Joatildeo) Jaacute nos dias atuais o relato tem ganhado proeminecircncia por ser o mais antigo de que se dispotildee acerca de Jesus tendo servido como base para os textos mateano e lucano (PAGOLA 2013 p 11)

A outra razatildeo pela qual a obra tem o tiacutetulo exposto deve-se ao fato de a primeira atribuiccedilatildeo de um suposto Marcos como autor do livro datar do II seacutec Euseacutebio historiador cristatildeo do IV seacutec dedica boas porccedilotildees de seu livro Histoacuteria Eclesiaacutestica (326 d C) discutindo a formaccedilatildeo do cacircnone evangeacutelico Ao escre-ver acerca de Segundo Marcos Euseacutebio primeiramente registra o depoimento de um presbiacutetero testemunhado por Papias bispo da Friacutegia por volta de 120 d C o qual dizia que embora natildeo tivesse ouvido e seguido diretamente a Jesus Marcos veio a escrever sobre suas accedilotildees por ter sido disciacutepulo e inteacuterprete do apoacutestolo Pedro (CESAREacuteIA III 39 15) Euseacutebio citaria ainda outros Pais da Igreja como Irineu (185 d C) e Clemente (195 d C) e justificaria a criaccedilatildeo do texto em muito pela insistecircncia da comunidade para que um relato evangeacutelico fosse escrito

A figura desse Marcos segundo o testemunho biacuteblico (TENNEY 2008 v 4 p 117) poderia ser construiacuteda a partir da fuga de Pedro da prisatildeo o apoacutestolo

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logo se dirigiu ldquoagrave casa de Maria matildee de Joatildeo tambeacutem chamado Marcos onde muita gente se havia reunido e estava orandordquo (Atos dos Apoacutestolos 1212 - ARA) Marcos cujo nome hebraico era Joatildeo parece ter sido um jovem financeiramente abastado levando-se em conta o fato de sua matildee acolher a receacutem-nascida co-munidade cristatilde em sua proacutepria casa pondo inclusive servos agrave disposiccedilatildeo dos seus integrantes (Atos dos Apoacutestolos 1213) Um detalhe interessante sobre a figura de Maria matildee de Marcos eacute seu provaacutevel status de viuacuteva uma vez que a propriedade era considerada como dela o que seria inconcebiacutevel agrave eacutepoca caso o marido ainda vivesse

O valor da mulher oriental no periacuteodo de Jesus estava ligado agrave fecundidade e ao lar natildeo se comparando ao homem na perspectiva da religiatildeo (JEREMIAS 1983 p 493) Contudo o papel desempenhado por Maria junto a essa comuni-dade cristatilde chama ainda a atenccedilatildeo para a importacircncia de natildeo se subestimar a atuaccedilatildeo das mulheres no ambiente cristatildeo natildeo apenas no sustento dos evange-lizadores mas sobretudo na divulgaccedilatildeo da mensagem de Jesus desde os dias em que o Nazareno iniciou sua missatildeo na Galileia Os registros evangeacutelicos mostram Jesus sempre disposto a posicionar a figura da mulher dentro do vindouro Reino de Deus dando-lhe voz e importacircncia ndash tanto por meio dos diaacutelogos estabelecidos com mulheres como por paraacutebolas contadas cujo enredo as tinha como personagens

Joatildeo Marcos tambeacutem possuiacutea parentesco com o proeminente liacuteder cristatildeo Barnabeacute (Colossenses 410) que o levou em sua primeira viagem missionaacuteria com Paulo (Atos dos Apoacutestolos 135) Entretanto agrave eacutepoca da empreitada Joatildeo acabou retornando a Jerusaleacutem (Atos dos Apoacutestolos 1313) Os motivos dessa desistecircncia satildeo desconhecidos sabe-se no entanto que eles foram prejudiciais a ponto de separar Paulo e Barnabeacute nas viagens posteriores (Atos dos Apoacutestolos 1537-39a) Tempos depois o jovem viria a ser considerado com respeito por Paulo aquele que antes o rejeitara (Colossenses 410 1Timoacuteteo 411 Filemom 24) Tambeacutem Pedro diria ldquoMarcos meu filhordquo (1Pedro 513) ao citaacute-lo como companheiro na chamada ldquoBabilocircniardquo ndash provavelmente Roma

Haacute quem infira ldquoassinaturas ao peacute do quadrordquo ou seja evidecircncias autorais textuais deixadas no proacuteprio evangelho (POHL 1998) Um exemplo eacute o excerto de Marcos 1017-22 o qual se refere ao encontro de Jesus com um homem rico tambeacutem relatado em Mateus 1916-22 e Lucas 1818-23 Para alguns estudiosos eacute sugerido um testemunho pessoal no versiacuteculo 21 ldquoJesus entatildeo tendo olhado para ele com olhos de amor []rdquo (traduccedilatildeo nossa) Uma informaccedilatildeo dessa natureza argumentam esses estudiosos somente poderia ser registrada pela pessoa presente em tal situaccedilatildeo ou seja o jovem e rico Joatildeo Marcos de Atos dos Apoacutestolos

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Ainda que haja consenso na Tradiccedilatildeo quanto agrave autoria de Segundo Marcos o mesmo natildeo se pode afirmar no que diz respeito ao local de publicaccedilatildeo embora a inclinaccedilatildeo da maioria seja Roma (CARSON MOO MORRIS 1997 p 107) Tambeacutem quanto agrave data de criaccedilatildeo do texto quatro satildeo as deacutecadas sugeridas Sendo a primeira delas os anos 40 d C jaacute se mostra evidente o texto escrito ser o produto de uma tradiccedilatildeo preacute-literaacuteria extensa jogando luz sobre o caraacutecter oral do evangelho Endossa-se aqui a suposiccedilatildeo da publicaccedilatildeo de Segundo Marcos ter ocorrido em meados dos anos 60 d C muito em funccedilatildeo de seu conteuacutedo e do que disseram os primeiros liacutederes acerca de sua produccedilatildeo

A principiante feacute cristatilde do I seacutec estava imersa em um amaacutelgama religioso que a ela fortemente se opunha Por um lado as pressotildees teoloacutegicas dos judeus como os escritos neotestamentaacuterios bem expotildeem por outro a repressatildeo do Im-peacuterio Romano a partir do governo de Nero (CAIRNS 1995 p 73) quando teve iniacutecio o grande massacre tanto de judeus como de cristatildeos crentes opositores agrave religiatildeo oficial sendo estes torturados como uma forma de entretenimento puacuteblico (GONZAacuteLEZ 1995 p 25) Justifica-se assim a feitura de Marcos como o apelo agrave firmeza em resposta a difiacuteceis tempos de perseguiccedilatildeo e martiacuterio e o combate ao sincretismo das divisotildees religiosas

Voltando ao evangelho como texto literaacuterio Marcos eacute parte do tetraeuangeacute-lion ldquoisto eacute os quatro Evangelhos vistos como um conjunto de documentos sal-viacuteficos que tinham o mesmo valor veio a ter ampla circulaccedilatildeo e reconhecimento como nos mostram os escritos de Irineu (bispo de Lyon por volta de 180 d C)rdquo (ALAND ALAND 2013 p 53) Seu gecircnero eacute ldquoevangelhordquo propriamente dito algo proacuteprio do cristianismo ou seja ldquoum modo de expressar-se uacutenico que natildeo pode ser identificado com nenhuma outra obra do tempo antigordquo (MARCON-CINI 2012 p 9) Embora haja quem veja semelhanccedilas dos escritos evangeacutelicos com os modelos das leituras feitas nas sinagogas ou que os vincule ldquoao gecircnero da biografia greco-romana e suas variantesrdquo (ZABATIEIRO LEONEL 2011 p 41) o objetivo dos evangelistas era divulgar a mensagem de Jesus particu-larmente para as pessoas natildeo radicadas na Palestina e a forma adotada para isso foi inovadora

A liacutengua de Marcos eacute o grego koineacute em sua variaccedilatildeo semiacuteticavulgar o que a torna fascinante Um livro escrito para o povo

[] composto de aproximadamente 95 narrativas com 11240 palavras 1345 vocaacutebulos 30 aacutepax ou seja vocaacutebulos natildeo usados em outros lugares do Novo Testamento A liacutengua eacute o grego popular da koineacute com semitismos (talithagrave kum effethacirc korbacircn Abbagrave) poreacutem natildeo de tal modo

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a justificar um original aramaico com alguns latinismos (praitoacuterion kentyrion) com estilo vivaz proacuteprio da liacutengua falada pouco cuidado gramatical e sintaticamente que privilegia a parataxe ou coordenaccedilatildeo assindeacutetica (cf 630-33) inclinado a empregar anacolutos (cerca de 20) com repeticcedilatildeo de frases Tudo evidencia o estilo do narrador atestado tambeacutem pelo frequente lsquologo em seguidarsquo e pelo presente histoacuterico (150 ocorrecircncias) [] (MARCONCINI 2012 p 90)

32 ETAPAS DE ANAacuteLISE

Esta eacute de longe a parte que exige maior dedicaccedilatildeo do pesquisador pois natildeo se resume a fichar autores mesmo que de maneira criacutetica Trata-se do exame deta-lhado do corpus em sua liacutengua original Nesse ponto faz-se sobretudo necessaacuteria a escolha consciente do texto grego que melhor ofereccedila subsiacutedios de consulta a respeito de sua formaccedilatildeo Por isso as opccedilotildees adotadas pela autora deste artigo satildeo continuamente as publicaccedilotildees da Sociedade Biacuteblica da Alemanha como a quinta ediccedilatildeo do Novo Testamento grego (ALAND 2014)

A periacutecope selecionada deve entatildeo ser lida em grego ndash ato imprescindiacutevel pois ldquoseja para a estrutura seja para a especificidade do ato de ler o texto natildeo oferece suporte a um significado inequiacutevoco mas eacute lsquoo lugar de possiacuteveis significadosrsquordquo (EGGER 1994 p 92) Isto feito o texto eacute quebrado em oraccedilotildees seus elementos analisados morfossintaticamente e todo o conjunto disposto em diagrama De fato a anaacutelise morfossintaacutetica natildeo eacute um fim em si mesma mas o meio pelo qual se poderaacute dispor o texto analiticamente dividindo-o em partes ainda menores na diagramaccedilatildeo semacircntico-gramatical 119 processo em que melhor se visualizam as relaccedilotildees de niacutevel estrutural

Na disposiccedilatildeo gramatical do texto podem-se observar todos os seus consti-tuintes linguiacutesticos e as regras que os coordenam (EGGER 1994 p 74) Jaacute na disposiccedilatildeo semacircntica satildeo retratadas ldquoas relaccedilotildees de significadofunccedilatildeo entre palavras frases oraccedilotildees sentenccedilas e ateacute mesmo paraacutegrafosrdquo 120 (DUVALL GUTHRIE 1998 p 40 traduccedilatildeo nossa) pois ldquosob o aspecto semacircntico o texto eacute visto como o conjunto de relaccedilotildees (estrutura) entre os seus elementos significantes forma um todo constituindo uma espeacutecie de lsquomicro-universo semacircnticorsquordquo (EGGER 1994 p 91)

119 Embora siga o modelo proposto por Guthrie e Duvall (1998) a diagramaccedilatildeo semacircntico-gramatical aqui empregada eacute uma adaptaccedilatildeo feita por Viriacutessimo (2018) Sendo uma ferramenta ainda em desenvolvimento ela eacute por isso amplamente passiacutevel de receber criacuteticas120 ldquothe meaningfunction relationships between the words phrases clauses sentences and even paragraphsrdquo

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O diagrama conteacutem o texto grego e uma traduccedilatildeo em portuguecircs de aparecircncia interlinear Esta traduccedilatildeo eacute preliminar vindo a sofrer sucessivas revisotildees ateacute que se constitua a proposta final Contudo ela eacute importante em funccedilatildeo de o texto original ter sido redigido em grego de modo que Wegner (1998 p 28) a considera o ldquoprimeiro passo a ser realizado na exegeserdquo Uma inovaccedilatildeo da dia-gramaccedilatildeo neste artigo eacute a numeraccedilatildeo para referenciaccedilatildeo sobrescrita antes dos termos aos quais se refere Como uacuteltimo passo tem-se a redaccedilatildeo do comentaacuterio das relaccedilotildees linguiacutesticas observadas

Exemplo

Marcos 11-4

Continua

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continuaccedilatildeo

O substantivo (1) introduz Marcos delimitando o tema de toda a obra sob a construccedilatildeo em genitivo propriamente dito (2 3 4) Haacute um sentido baacutesico de posse entre (2) (3) e (4) embora este natildeo tenha sido representado por setas Optou-se por deixar os modificadores juntos na mesma linha tanto (3) como (4) por eles funcionarem como uma unidade devendo por isso ser interpretados em conjunto Outro sentido passiacutevel de ser destacado tambeacutem natildeo exposto no

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diagrama eacute de especificaccedilatildeo entre os elementos em (3) e de relacionamento em (4)

Na parte a do versiacuteculo 2 o adveacuterbio (5) verifica ou seja fornece uma evidecircncia que comprove a validade da introduccedilatildeo por meio da foacutermula de invocaccedilatildeo veterotestamentaacuteria em perfeito resultativo (6) o qual se refere a ldquouma accedilatildeo inteiramente acabada e por conseguinte tambeacutem o resultado de uma accedilatildeo passada cujos efeitos perduram (ideia de estado)rdquo (HORTA 1991 p 208) O redobro (γε-) caracteriacutestico dos tempos passados marca esse grau de acabamento da accedilatildeo que na esfera expressa em (7) reforccedila ser o agora o momento do cumprimento de algo predito O autor pela obra metoniacutemia em (8) que ligada a (7) o especifica como ecircnfase ndash repeticcedilatildeo do artigo equivalendo a adjunto adnominal enfaacutetico Na parte b do versiacuteculo a partiacutecula demonstrativa (9) chama a atenccedilatildeo para a accedilatildeo que a segue (ROBINSON 2012 p 430) o verbo (10) prefixado pela preposiccedilatildeo que despede o objeto em (11) ldquopara determinado propoacutesitordquo (LOUW NIDA 2013 p 172) Esse objeto (11) tem sua natureza especificada em (15) e pertence a (12) Tambeacutem estaacute expressa a relaccedilatildeo de posse entre (13) e (14) (16) e (17)

No versiacuteculo seguinte a construccedilatildeo (18) e (19) explica como se deu a accedilatildeo (10) sobre o objeto (11) e qual foi a sua esfera (20) de ocorrecircncia Duas exortaccedilotildees entatildeo satildeo expressas e o contraste entre elas estaacute no tempo verbal Por um lado tem-se o imperativo aoristo (21) traduzindo ldquoordem particular e momentacircneardquo por outro haacute o imperativo presente (24) exprimindo ldquouma ordem geral que perdurardquo (HORTA 1991 p 282) Transmitem assim sob ilustraccedilatildeo a impressatildeo de grande urgecircncia e necessidade de permanecircncia tanto a forccedila de significado do verbo (19) como o seu discurso (21) e (24) A relaccedilatildeo de posse em (22) e (23) eacute um paralelismo com (16) e (17) especificando em (23) a figura do (17) Ainda outra relaccedilatildeo de posse haacute entre (25) e (26)

No versiacuteculo final sem preocupaccedilatildeo com o processo mas acompanhando o tempo da narraccedilatildeo histoacuterica o tempo aoristo em (27) expressa a accedilatildeo instantacircnea (WALLACE 2009 p 554) de chegada do sujeito (28) especificado em (29) ndash subjetivaccedilatildeo do particiacutepio Nota-se um paralelismo entre as esferas expressas em (20) e (30) de modo que (28) descreve (18) dando-lhe detalhes viacutevidos A accedilatildeo (27) entatildeo eacute ligada por (31) agrave maneira como aconteceu (32) ndash noccedilatildeo adverbial presente no modo particiacutepio A mensagem (33) dessa circunstacircncia eacute especiacutefica (34) para um fim (35)

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33 NOTAS

Esta parte do meacutetodo a seguir consiste na elaboraccedilatildeo de notas explicativas acerca de palavras-chave ou passiacuteveis de esclarecimento no corpus as quais acabam por compor um dicionaacuterio proacuteprio do pesquisador Segundo Egger (1994) o processo de compreensatildeo dos significados de um texto depende do repertoacuterio de conhecimentos preacutevios do leitor jaacute que sem o arcabouccedilo cultural necessaacuterio ele natildeo seraacute capaz de apreender os sentidos velados de um escrito especialmente se este for de tempos longiacutenquos Acerca do Novo Testamento demanda-se ldquoque se aproximem ao menos os principais paralelos do ambiente p ex os do AT e do mundo heleniacutestico contemporacircneordquo (EGGER 1994 p 92)

Os verbetes da anaacutelise que se segue foram escritos com base na Enciclopeacutedia da Biacuteblia (TENNEY 2008) e apresentados com o item a respeito do qual se pretende dissertar em negrito e em portuguecircs conforme a traduccedilatildeo interlinear seguido da forma grega em itaacutelico como aparece no corpus e introduzida pela abreviaccedilatildeo ldquogrrdquo Veja a seguir

Versiacuteculo 1

Evangelho gr εὐαγγελίου Vocaacutebulo que em sua origem ldquonatildeo se referia aos quatro escritos mas a anuacutencios proclamados oralmenterdquo (MARCONCINI 2012 p 5) Sob o advento messiacircnico significa o bom anuacutencio da possibilidade de recomeccedilo e renovaccedilatildeo Seu uso eacute encontrado no Antigo Testamento com o sentido religioso da comunicaccedilatildeo da mensagem profeacutetica (cf Isaiacuteas 527) bem como para a anunciaccedilatildeo feita em cenaacuterios de guerra ou por ocasiatildeo do nascimento de uma crianccedila (cf Jeremias 2015 1Samuel 319) Esse segundo uso estaacute conectado agrave forma de uso que os gregos faziam da palavra ndash a ideia da proclamaccedilatildeo de uma notiacutecia alegre de cunho poliacutetico ou pessoal referindo-se agrave recompensa dada ao mensageiro que proclamou tal ldquoboa novardquo Novamente trata-se de uma palavra associada a contextos basicamente orais

Jesus gr Ἰησοῦ A Jesus eacute atribuiacutedo o papel mais importante em todo o Novo Testamento sendo apresentado como a chave de interpretaccedilatildeo do Antigo Nos Evangelhos Ele eacute apresentado como um homem judeu nascido milagrosa-mente nos limites da Palestina (cf Mateus 21 Lucas 24-7) pela concepccedilatildeo espiritual de Maria virgem por ainda ser noiva de Joseacute na ocasiatildeo (cf Mateus 118 Lucas 127) Sabe-se pouco acerca de sua infacircncia (cf Mateus 219-23 Lucas 241-52 416) o relato de suas accedilotildees estatildeo concentrados em sua idade adulta (cf Lucas 323)

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Cristo gr Χριστοῦ Do hebraico mashiach aquele sobre o qual Deus der-ramou a autoridade sacerdotal e real do esperado messias dos judeus (STERN 2008 p 26) Esse tiacutetulo era concedido a reis e a sacerdotes ensejando portanto aleacutem da religiosa uma interpretaccedilatildeo poliacutetica sobre Jesus

[filho de Deus] gr [υἱοῦ θεοῦ] Pode ter sido parte original ou um acreacutescimo posterior ldquopara indicar que natildeo se tem certeza quanto ao texto original as palavras υἱοῦ θεοῦ aparecem no texto entre colchetesrdquo (OMANSON 2010 p 56) Opta-se aqui pela originalidade visto que a paternidade celestial dispen-sada sobre Jesus seraacute confirmada na forma de ilustraccedilatildeo no evangelho poucos versiacuteculos depois (Marcos 110-11) sendo o Jesus evangeacutelico uma percepccedilatildeo do evangelista Assim a expressatildeo deve ser entendida como a preocupaccedilatildeo de um autor que escreve para romanos acostumados a cultuar heroacuteis nacionais atribuiacutedos de caracteriacutesticas divinas por forccedila do arcabouccedilo miacutetico grego na religiatildeo imperial

evangelho de jesus Cristo filho de Deus gr τοῦ εὐαγγελίου Ἰησοῦ Χριστοῦ [υἱοῦ θεοῦ] Mais do que pertencer a Jesus o ldquoevangelhordquo eacute o designador da boa notiacutecia acerca daquele que se tornou ldquoportador de toda novidade sendo portador de si mesmordquo (MARCONCINI 2012 p 7)

Versiacuteculo 2

Isaiacuteas o profeta gr τῷ Ἠσαΐᾳ τῷ προφήτῃ Inspirado orador que previu a vinda do salvador e servo sofredor Jesus (Isaiacuteas 9 53) cerca de 700 anos antes de ela acontecer Foi um importante profeta veterotestamentaacuterio com clara influecircncia na esfera poliacutetico-religiosa de seu tempo (2Reis 191-7) Ao longo da histoacuteria o profetismo entre os hebreus assumiu um caraacuteter vocacional e natildeo institucional em contraste agrave profecia profissional cultual popular eou monaacuter-quica (FOHRER 1982 p 289) O que se quer dizer com isso eacute que os profetas profissionais perderam sua importacircncia para ldquoos grandes profetas individuais incluindo Amoacutes e Oseacuteias Isaiacuteas e Miqueacuteias Sofonias e Jeremias Ezequiel e em parte o Deuteroisaiacuteasrdquo (FOHRER 1982 p 291) agrave medida que o povo tomava consciecircncia de que estes estavam certos contrariamente aos profetas profissionais Foi dessa maneira que se deu iniacutecio agrave compilaccedilatildeo dos discursos dos grandes profetas individuais formando coleccedilotildees que posteriormente ficaram conhecidas como escritura sagrada (FOHRER 1982 p 291)

Eia envio meu mensageiro diante da tua face gr Ἰδοὺ ἀποστέλλω τὸν ἄγγελόν μου πρὸ προσώπου σου A citaccedilatildeo no versiacuteculo 2 pertence ao profeta

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Malaquias (Malaquias 31) enquanto a metoniacutemia enfatiza Isaiacuteas A Biacuteblia que os cristatildeos do primeiro seacuteculo liam e ouviam era a Septuaginta ndash a traduccedilatildeo grega do Antigo Testamento tradicionalmente atribuiacuteda a 72 filoacutelogos durante o periacuteodo poacutes-exiacutelico conhecida tambeacutem como LXX Grande parte das citaccedilotildees no NT era baseada nessa traduccedilatildeo e muitas vezes por meio da memoacuteria auditiva que se tinha das leituras feitas em voz alta durante as concentraccedilotildees populares Ao citar apenas Isaiacuteas Marcos parece ter cometido um ato falho que priorizou o profeta maior ou seja aquele que tinha a maior quantidade de escritos sob a influecircncia divina A seguir uma exposiccedilatildeo paralela da fonte na LXX (RAHLFS 1979) e da citaccedilatildeo em Marcos

LXX NTMalaquias 31 Marcos 12ἰ δ ο ὺ ἐ γ ὼ ἐξαποστέλλω τὸν ἄγγελόν μου καὶ ἐπιβλέψεται ὁδὸν π ρ ὸ π ρ ο σώ π ο υ μου καὶ ἐξαίφνης ἥξει εἰς τὸν ναὸν ἑαυτοῦ κ ύριος ὃν ὑμεῖς ζητεῖτε κ α ὶ ὁ ἄ γ γ ε λ ο ς τ ῆ ς δ ι α θ ή κ η ς ὃν ὑμεῖς θέλετε ἰ δ ο ὺ ἔ ρ χ ε τ α ι λ έ γ ε ι κ ύ ρ ι ο ς παντοκράτωρ

Καθὼς γέγραπται ἐν τῷ Ἠσαΐᾳ τῷ προφ ήτ ῃ Ἰδο ὺ ἀποστέλλω τὸν ἄγγελόν μου πρὸ προσώπου σου ὅς κατασκευάσει τὴν ὁδόν σου∙

Isaiacuteas 403 Marcos 13φ ω ν ὴ β ο ῶ ν τ ο ς ἐ ν τ ῇ ἐ ρ ή μ ῳ ῾Ετοιμάσατε τὴν ὁ δ ὸ ν κ υ ρ ί ο υ εὐθείας ποιε ῖτε τὰς τρίβους τοῦ θεοῦ ἡμῶν

φ ο ν ὴ β ο ῶ ν τ ο ς ἐ ν τ ῇ ἐ ρ ή μ ῳ Ἑτοιμάσατε τὴν ὁ δ ὸ ν κ υ ρ ί ο υ εὐθείας ποιε ῖτε τὰς τρίβους αὐτοῦ

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Versiacuteculo 3

Deserto gr τῇ ἐρήμῳ Frequente cenaacuterio no texto biacuteblico o deserto tinha grande influecircncia na vida e na cultura da Palestina (TENNEY 2008 v 2 p 95) Em Marcos Joatildeo estava proacuteximo ao rio Jordatildeo na altura de Nazareacute da Galileacuteia (cap 1 vv 5 e 9)

Senhor gr κυρίου Trata-se de um tiacutetulo dado a Deus e a Cristo com a ideia de ldquoaquele que governa a humanidade com autoridade sobrenaturalrdquo (LOUW NIDA 2010 p 126)

Versiacuteculo 4

Joatildeo o que batiza gr Ἰωάννης [ὁ] βαπτίζων Personagem neotestamentaacuterio tido como aquele que antecederia a vinda do Cristo (Mateus 3 Marcos 12-11 Lucas 31 15-17 21-22) Filho de sacerdote (Lucas 18-25 157-80) Joatildeo Batista rompeu com as expectativas eclesiaacutesticas de sua linhagem exercendo uma vocaccedilatildeo na medida dos profetas antigos sendo por vezes associado agrave figura de Elias (Mateus 117-14) ndash ldquoesse formidaacutevel asceta frequentador do deserto em sua vestimenta grosseira fazia reviver a imagem popular de um profeta inspirado e como os antigos profetas anunciava o iminente julgamento de Deus sobre um povo infielrdquo (DODD 1977 p 137)

Batismo gr βάπτισμα Vocaacutebulo que literalmente significa imersatildeo mas que na mentalidade judaica do seacutec I ldquopoderia incorporar ambas as realidades espirituais e os siacutembolos fiacutesicos Em outras palavras quando algueacutem falava de batismo comunicava ambas as ideias ndash a realidade e o ritualrdquo (WALLACE 2009 p 370 grifo do autor)

Batismo de arrependimento gr βάπτισμα μετανοίας Expressatildeo usada nos evangelhos (Marcos 14 Lucas 38) que revela uma das tarefas da missatildeo a qual Joatildeo estava atrelado No contexto da personagem parece que

o batismo de Joatildeo Batista reflete muito mais o costume dos banhos rituais entre os judeus do que o tipo de batismo praticado pelos cristatildeos que era um siacutembolo de iniciaccedilatildeo na comunidade cristatilde baseada na feacute em Jesus Cristo e na lealdade para com ele como Senhor e Salvador (LOUW NIDA 2013 p 479)

Libertaccedilatildeo gr ἄφεσις Consiste no ldquocancelamento da culpa do pecadordquo121 (BAUER 1979 p 125 traduccedilatildeo nossa)

121 ldquocancellation of the guilt of sinrdquo

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Pecados gr ἁμαρτιῶν A transgressatildeo da medida justa em que se deveria viver tanto conforme as coisas humanas como as divinas (BAUER 1979 p 43) Por medida justa na esfera biacuteblica o paracircmetro eacute o caraacuteter de Deus (Deu-teronocircmio 324 Salmos 117 Miqueacuteias 68) A humanidade criada agrave imagem e semelhanccedila de Deus (Gecircnesis 127) assim foi feita para viver e ser conforme seu Criador (Isaiacuteas 437 1 Coriacutentios 1031) O pecado consiste pois numa desconfiguraccedilatildeo do ser humano em referecircncia a Deus Em diferentes textos do Novo Testamento (Hebreus 1012 Gaacutelatas 14 1 Joatildeo 17) nota-se que a condiccedilatildeo pecaminosa da humanidade natildeo eacute um simples erro do alvo mas um estado de degradaccedilatildeo que soacute pocircde ser transposto por Jesus em sua entrega voluntaacuteria para morrer agrave semelhanccedila dos animais usados nos sacrifiacutecios judaicos

Perdatildeo dos pecados gr εἰς ἄφεσιν ἁμαρτιῶν O desconhecido autor da Epiacutestola aos Hebreus desenvolve a ideia de perdatildeo em comparaccedilatildeo com a lei mosaica Tratando-se de uma representaccedilatildeo do que haveria de vir (Hebreus 101) a lei teve em Jesus o seu cumprimento pois por ele foi ldquooferecido para sempre um uacutenico sacrifiacutecio pelos pecadosrdquo (Hebreus 1012) Os sacrifiacutecios de animais embora fossem aceitos por Deus dentro das condiccedilotildees estabelecidas natildeo eram suficientes para apagar a consciecircncia de pecado ou seja a culpa que reside sobre aquele que peca visto que vez apoacutes vez ao espiar o sangue de um cordeiro o indiviacuteduo se lembrava de sua condiccedilatildeo de portador da transgressatildeo (Hebreus 103) O perdatildeo dos pecados configura-se pois como aquilo que tem o poder que a lei natildeo tinha a anulaccedilatildeo total da culpa (Hebreus 10 17)

34 INTERPRETACcedilAtildeO

Eis a uacuteltima etapa do meacutetodo Nela satildeo encontradas a proposta definitiva de traduccedilatildeo amparada sobre o tripeacute exatidatildeo clareza e naturalidade (BARNWELL 2011 p 25) o esboccedilo do texto parcialmente formulado neste artigo conforme os tiacutetulos encontrados na obra Synopsis Quattuor Evangeliorum (ALAND 1967) e o comentaacuterio final em que se privilegiam apenas alguns aspectos de todo o material produzido respeitando-se as conclusotildees obtidas das relaccedilotildees intra e extra textuais dos elementos estruturantes do texto de maneira a explicitar o que seja relevante para dentro do escopo da pragmaacutetica Exemplo

Esboccedilo

11 O PROacuteLOGO12-4 JOAtildeO AQUELE QUE BATIZA

12-3 Profecia veterotestamentaacuteria14 O surgimento de Joatildeo

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Proposta de traduccedilatildeo

1 Iniacutecio do evangelho de Jesus Cristo Filho de Deus 2 Assim como perma-nece escrito em Isaiacuteas o profeta ldquoAtenccedilatildeo Despeccedilo antes de tua presenccedila o meu mensageiro o qual colocaraacute em ordem o teu caminho 3 Uma voz trovejante no deserto Preparai o caminho do Senhor fazei retas as suas veredasrdquo 4 Surgiu no deserto Joatildeo aquele que batiza anunciando o batismo de arrependimento para o perdatildeo dos pecados

Reflexatildeo

O primeiro versiacuteculo de Marcos uma sentenccedila que sendo incompleta em si funciona como o tiacutetulo a obra define os paracircmetros de leitura da histoacuteria que haacute de ser contada o evangelho pertence a Jesus Eacute esse personagem o iniacutecio da causa evangeacutelica bem como o tema do livro Sem a preocupaccedilatildeo de fornecer dados histoacutericos Marcos o apresenta como o libertador prometido e resume sua genealogia filho de Deus Ao se pensar nos primeiros leitores-ouvintes pessoas ansiosas por novos tempos de prosperidade e paz a imagem de um Jesus heroico e divino mais forte que a humanidade mortal cativa a atenccedilatildeo para o que haacute de ser dito

No versiacuteculo seguinte Marcos gera ainda mais expectativa em seu puacuteblico recorrendo agrave memoacuteria coletiva das profecias antigas para mostrar a validade de sua mensagem Ele assim o faz por meio da foacutermula ldquoconforme escritordquo mos-trando sua credencial de inspiraccedilatildeo Marcos inaugura a interpretaccedilatildeo evangeacutelica do Antigo Testamento Pode-se inferir que atribuindo a referecircncia somente a Isaiacuteas profeta de singular importacircncia o evangelista procura confirmar suas palavras como dotadas da mesma autoridade da tradiccedilatildeo profeacutetica de Israel E essa antiga profecia invocada por Marcos permanece presente enquanto o texto existir Surge entatildeo o mensageiro que haveria de ser enviado da parte de Deus

Antecedendo o Cristo esperado o mensageiro aparece sob a forma de um som uma voz que se faz ouvir no deserto Satildeo duas as exortaccedilotildees que essa voz traz agora eacute hora de preparar o caminho do Senhor e permanentemente se deve preparar as suas veredas Uma mensagem urgente e contiacutenua A voz entatildeo simplesmente aparece sob o nome de Joatildeo Do ponto de vista de quem ouve a voz tudo o que foi dito ateacute agora se afigura como o preluacutedio perfeito para a chegada do novo personagem ndash que natildeo eacute o messias mas possui grande importacircncia histoacuterica na tradiccedilatildeo profeacutetica

Eis uma obra prima a imagem desse Joatildeo que surge no ermo lugar como um som trovejante irrompendo e se transformando gradativamente em homem

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numa espeacutecie de efeito sinesteacutesico Joatildeo eacute o que batiza ou seja aquele que anuncia a outros a imersatildeo na mudanccedila da forma como se vecirc e se pensa a proacutepria existecircncia para assim se alcanccedilar a possibilidade de soltura das amarras que aprisionam O misteacuterio sendo revelado sobre a figura angelical faz com que a seacuteria narrativa assuma a delicadeza de uma contaccedilatildeo de histoacuterias sem contudo anular a forccedila das verdades para aqueles que nelas creem

CONSIDERACcedilOtildeES FINAISAs etapas de execuccedilatildeo neste artigo foram aqui descritas partindo de 2

Anaacutelise do Discurso em que se procurou elucidar essa aacuterea da linguiacutestica de maneira acessiacutevel a leitores especializados em outros saberes Em 3 Metodo-logia o meacutetodo foi explanado em detalhes nos toacutepicos subsequentes Em 31 Contextualizaccedilatildeo pretendeu-se a delimitaccedilatildeo dos sentidos de produccedilatildeo do texto Em 32 Etapas de Anaacutelise foi disposta a diagramaccedilatildeo semacircntico-gramatical desse texto e uma breve anaacutelise de suas relaccedilotildees linguiacutesticas Em seguida em 33 Notas houve a elucidaccedilatildeo de termos especiacuteficos constantes do fragmento examinado Por fim em 34 Interpretaccedilatildeo a autora pretendeu alcanccedilar uma compreensatildeo mais apurada do enredo

Conclui-se que o meacutetodo apresentado figura como um instrumental interes-sante de pesquisa e de ensino ndash objetivo primeiro para o qual foi desenvolvido ndash oferecendo subsiacutedios para os dispostos a se debruccedilar sobre o aprofundamento de sua praacutetica acadecircmica eou religiosa Num contexto de impressionante preconceito da Academia para com a Biacuteblia como objeto de estudo literaacuterio eacute essencial que o inteacuterprete do texto biacuteblico esteja disposto a reinventar sua praacutetica de pesquisa por meio da dialeacutetica multidisciplinar Existe uma instrumentalidade na diversidade das teorias cientiacuteficas e esta pode ser aproveitada sem que se extrapolem os possiacuteveis sentidos do texto

Como ressalta Egger (1994 p 9) ldquouma metodologia neotestamentaacuteria eacute antes de tudo uma introduccedilatildeo agrave correta leitura dos textos do Novo Testamentordquo As distacircncias existentes entre um texto antigo e o leitor atual constituem um grande desafio dada a imensa diferenccedila entre uma eacutepoca e outra natildeo raro se afigurando praticamente impossiacutevel o pleno resgate do entendimento do modo de pensar de um narradornarrataacuterio inserido no contexto originaacuterio e o leitorinteacuterprete atual voltado para a pesquisa na constante busca do conhecimento Tanto a liacutengua como a cultura em geral passam por mudanccedilas as mais variadas ao longo do tempo e caso o pesquisador tenha um compromisso confessional com o texto ele lhe imporaacute tambeacutem distanciamentos de ordem divina (LOPES 2004 p 25)

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O reconhecimento das aparentes barreiras exige o esforccedilo do estranhamento por parte desse leitorinteacuterprete que por um lado pode estar preso agrave familia-ridade encontrada no texto ou que por outro lado pode ler equivocadamente sob seu perspectivismo o que lhe eacute desconhecido Por isso trabalhar com textos da Antiguidade eacute tambeacutem uma provocaccedilatildeo das Ciecircncias Sociais Assim para ambas as situaccedilotildees supracitadas pode-se parafrasear o antropoacutelogo Gilberto Velho (1978 p 45) e dizer que eacute necessaacuterio ao que se propotildee agrave pesquisa o confronto intelectual e emocional de diferentes versotildees e interpretaccedilotildees do texto a fim de se tornar capaz de estranhaacute-lo Soacute assim se consegue alcanccedilar a erudiccedilatildeo prometida pela reflexatildeo cientiacutefica

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ldquoNO DIA DO SENHORrdquo ndash OS ATOS O EVENTO A AUTOEXPRESSAtildeO

Uma breve reflexatildeo sobre as tradiccedilotildees lituacutergicas e sobre os termos liturgia culto e adoraccedilatildeo

Theoacutegenes Eugecircnio Figueiredo122

RESUMO No presente artigo satildeo apresentados os nuacutecleos lituacutergicos herdados do cris-

tianismo primitivo que no decorrer dos seacuteculos tiveram em si alguns elementos agregados constituindo-se posteriormente em grandes famiacutelias lituacutergicas Os protestantes satildeo caracterizados historicamente pela diversidade lituacutergica por possuiacuterem nove famiacutelias lituacutergicas No Brasil os protestantes se caracterizam como igrejas livres que fogem das foacutermulas lituacutergicas preacute-fixadas Liturgia culto e adoraccedilatildeo satildeo conceitos abordados atraveacutes dos siacutembolos ldquoos atosrdquo ldquoo eventordquo e ldquoa autoexpressatildeordquo Comenta-se a criacutetica de Kierkgaard agrave inversatildeo das funccedilotildees dos partiacutecipes de um evento cultual O evento culto eacute definido como o trabalho do povo e o evento da ldquovisatildeo de Isaiacuteasrdquo eacute apresentado como um dos modelos cultuais

Palavras-chave Culto Liturgia Adoraccedilatildeo Famiacutelias lituacutergicas Batistas

ABSTRACTThis article presents the liturgical nuclei inherited from primitive Christianity

which over the centuries had some elements aggregated to later constituting large liturgical families Protestants are historically characterized by liturgical diversity as they have nine liturgical families In Brazil Protestants are charac-terized as free churches diverting from pre-fixed liturgical formulas Liturgy worship and adoration are concepts commented by the symbols ldquothe actsrdquo ldquothe eventrdquo and ldquoself-expressionrdquo Kierkgaardrsquos critique about the inversion of the roles of participants in a worship event is commented The worship event is defined as the job of the people and the event of the ldquovision of Isaiahrdquo is commented as one of the worship models

Keywords Worship service Liturgy Worship Liturgical families Baptist

122 Doutor em Ciecircncias da Religiatildeo pela UFJF e mestre em muacutesica pela UNIRIO Professor do Curso de Licenciatura em Muacutesica com Gestatildeo da Muacutesica Eclesiaacutestica da Faculdade Batista do Rio de Janeiro - STBSB

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1 AS FAMIacuteLIAS LITUacuteRGICAS ndash O LEGADOOs elementos lituacutergicos herdados do cristianismo primitivo formaram dois

nuacutecleos o nuacutecleo da Palavra (proveniente do culto judaico que passou a ser chamado de Liturgia da Palavra nas celebraccedilotildees da Igreja Catoacutelica) e o nuacutecleo da Ceia do Senhor ou da Eucaristia Este pode ser considerado ldquocomo uma marca genuinamente cristatilderdquo123 da liturgia

Ao longo dos seacuteculos alguns elementos foram agregados a esses dois nuacutecleos da liturgia da Igreja Cristatilde surgindo uma ordo124 isto eacute ldquoum conjunto de ele-mentos e formas usados para realizar o encontro entre Deus e a comunidade E eacute a partir desse processo que se constituiacuteram as grandes famiacutelias lituacutergicas que mantecircm os nuacutecleos baacutesicos comunsrdquo125

Essas famiacutelias satildeo centralizadas em

a) Alexandria (Egito) conhecida como a liturgia de Satildeo Marcos

b) Jerusaleacutem e Antioquia (Siacuteria Ocidental) conhecida como a liturgia de Satildeo Tiago

c) Siacuteria Oriental

d) Cesareia conhecida como a liturgia de Satildeo Basiacutelio

e) Constantinopla conhecida como a liturgia bizantina ou liturgia de Satildeo Crisoacutestomo

f) Roma conhecida como a liturgia de Satildeo Pedro que se encontra em uso mais amplo no catolicismo romano

g) a liturgia gaacutelica que compreende o clatilde ocidental natildeo-romano126

Os protestantes possuem nove famiacutelias lituacutergicas tendo desde o iniacutecio o culto protestante se caracterizado pela diversidade lituacutergica O diagrama a seguir mostra essas famiacutelias

123 MARTINI 200223124 Palavra latina que significa ordem significando uma disposiccedilatildeo metoacutedica um arranjo de coisas segundo certas relaccedilotildees uma boa disposiccedilatildeo um bom arranjo um arrumaccedilatildeo (Dicionaacuterio Aureacutelio)125 MARTINI 200224126 WHITE 199728

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Diagrama 1127

Ala esquerda significa uma ruptura radical com a liturgia medieval tardia encontrando-se nela os Anabatistas que segundo uma corrente histoacuterica originou os Batistas atuais ala Centro significa os grupos mais moderados em relaccedilatildeo a uma ruptura com a liturgia histoacuterica e ala Direita mostra os grupos mais conservadores em termos de preservaccedilatildeo da liturgia histoacuterica

As igrejas de tradiccedilatildeo lituacutergica possuem os livros lituacutergicos que contecircm os ritos e as leituras de suas celebraccedilotildees Um deles eacute o Palavra do Senhor I ndash Lecionaacuterio dominical ABC que tem a sua imagem apresentada a seguir e a especificaccedilatildeo do seu conteuacutedo128

Lecionaacuterio dominicalConteacutemRito da Missa (partes fixas)Proacuteprio do tempo advento natal quaresma tempo comum etcProacuteprio dos santosVasta coleccedilatildeo de prefaacuteciosVaacuterias oraccedilotildees eucariacutesticasMissas rituais Batismo confirmaccedilatildeo profissatildeo religiosa etcMissas e oraccedilotildees para diversas necessidades pelo papa pelos bis-pos pelos governantes pela conservaccedilatildeo da paz e da justiccedila etcMissas votivas Santiacutessima Trindade Espiacuterito Santo Nossa Senhora etcMissas dos fieacuteis defuntosNo iniacutecio o Missal apresenta longa e preciosa introduccedilatildeo con-tendo a Instruccedilatildeo Geral sobre o Missal Romano e as Normas Universais para o Ano Lituacutergico e o Calendaacuterio1

127 WHITE 199729128 PERES 2018

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O Livro lituacutergico ldquoeacute um livro grande que conteacutem todo o formulaacuterio e todas as oraccedilotildees usadas nas celebraccedilotildees da missa para todo o ano lituacutergico Fitas marcadoras indicam as diversas partes da celebraccedilatildeo []rdquo129

11 OS BATISTAS BRASILEIROS E SUA TRADICcedilAtildeO LITUacuteRGICA

No Brasil o protestantismo de missatildeo chegou com suas tradiccedilotildees lituacutergicas tendo os batistas seguido a tradiccedilatildeo das ldquoigrejas livres da poacutes-Reforma e principalmente dos reavivamentos ingleses e americanos somados agraves formas de cultos das fronteiras da expansatildeo norte-americana para o oesterdquo130

O quadro a seguir mostra a data da chegada das diversas denominaccedilotildees protestantes em terra brasileira e sua linha lituacutergica

Protestantes Entrada no Brasil Igrejas livres (natildeo-lituacutergicas)Congregacionais 1855 SimPresbiterianos 1859 SimBatistas 1881 SimMetodistas 1886 SimEpiscopal 1898 Natildeo

Antonio Gouvecirca de Mendonccedila afirma que a liturgia dos batistas ldquoeacute uma das mais informaisrdquo131 isso significa dizer que os batistas tecircm uma praacutetica lituacutergica ldquoque foge a foacutermulas prefixadas aos rituais e aos aparato lituacutergico [] O culto e demais rituais preestabelecidos satildeo virtualmente condenados e quase sempre com a alegaccedilatildeo de que sugerem a missa catoacutelicardquo132 Donald P Hustad afirma que ldquoa heranccedila dos evangeacutelicos tiacutepicos eacute uma adoraccedilatildeo natildeo-liacutetuacutergica isto quer dizer eles rejeitam todas as formas ou liturgias estabelecidasrdquo133

Entatildeo se as igrejas batistas satildeo de tradiccedilatildeo lituacutergica livre as liturgias satildeo fundamentadas em quecirc

2 LITURGIA CULTO E ADORACcedilAtildeO ndash OS ATOS O EVEN-TO E A AUTOEXPRESSAtildeO CULTUAL

O termo liturgia eacute muitas vezes considerado sinocircnimo dos termos culto e adoraccedilatildeo Entretanto eacute necessaacuterio que se faccedila a distinccedilatildeo entre esses termos Os

129 PERES 2018130 MENDONCcedilA e VELASQUES FILHO 2002171 Grifo nosso131 MENDONCcedilA e VELASQUES FILHO 200244132 MENDONCcedilA e VELASQUES FILHO 2002156133 HUSTAD 1986166

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atos praticados durante o culto satildeo considerados liturgia culto eacute um evento total que abrange um conjunto de elementos lituacutergicos sendo um desses elementos a adoraccedilatildeo (em seu sentido estrito) a atitude do indiviacuteduo Adoraccedilatildeo eacute uma autoexpressatildeo em resposta agrave accedilatildeo divina

21 LITURGIA ndash OBRA DO POVO TRABALHO DO POVO OS ATOS CULTUAIS

Voltemos a nossa atenccedilatildeo ao termo liturgia e vejamos o que podemos de-preender do proacuteprio termo

Liturgia foi traduzida para o portuguecircs da palavra grega leitourgeo composta dos vocaacutebulos gregos LEITOSLAOS que significa povo e ERGON que significa trabalho Haacute um consenso entre os estudiosos do assunto que o significado seja ldquoobra do povordquo ldquotrabalho do povordquo

Essa ideia de trabalho do povo tambeacutem pode ser inferida da maioria dos vocaacutebulos originais da Septuaginta traduzidos para o idioma portuguecircs como liturgia Satildeo eles 134

Vocaacutebulo Significado Passagem biacuteblica

Leitourgiacutea (6 vezes)

Ministeacuterio Lc 123Assistecircncia 2 Co 912Serviccedilo Fp 217Socorro Fp 230Ministeacuterio Hb 86Serviccedilo Sagrado Hb 921

Leitourgoacutes (5 vezes)Ministro

Rm 136Rm 1516Hb 17Hb 82

Auxiliar Fp 225

Leitourgeacuteotilde (3 vezes)Servindo At 132Servi-los Rm 1527Serviccedilo Sagrado Hb 1011

Leitourgikoacutes (1 vez) Ministradores Hb 114

134 COSTA 198715-16

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Como visto o termo liturgia ocorre no Novo Testamento num total de quinze vezes tendo o seu significado se consolidado como ldquoo conjunto das falas e praacuteti-cas de culto dos seguidores de Jesusrdquo135 Essas praacuteticas de culto ou decorrentes do culto satildeo a assistecircncia o socorro o auxiacutelio o serviccedilo etc

22 CULTO O EVENTO CULTUAL TOTAL

Culto eacute uma reaccedilatildeo do humano agrave uma accedilatildeo divina Um bom exemplo eacute a atitude de Noeacute narrada em Gecircnesis 6-8 Depois do diluacutevio Noeacute ldquoconstruiu um altar dedicado ao Senhor e tomando alguns animais e aves puros ofereceu-os como holocausto []136 Liturgia no caso de Noeacute foi o evento constituiacutedo do ldquoconjunto de atos palavras e formas carregados de significado expressos de um certo jeito numa certa sequecircnciardquo137 realizados na reaccedilatildeo de Noeacute agrave bondade de Deus para consigo

23 A ADORACcedilAtildeO UMA AUTOEXPRESSAtildeO CULTUAL

Em relaccedilatildeo ao conceito de adoraccedilatildeo Bob Sorge em seu livro Exploring worship apresenta-nos dois exemplos que ajudam no entendimento dessa au-toexpressatildeo Satildeo os exemplos de Joacute e Abraatildeo

Joacute foi atingido por uma extrema calamidade perdendo todos os seus bens e perdendo todos os seus filhos

A resposta de Joacute eacute emocionante ldquoEntatildeo Joacute se levantou rasgou o manto e raspou a cabeccedila e ele caiu no chatildeo e adorourdquo (Joacute 120) Se concordamos que esta eacute a primeira menccedilatildeo de adoraccedilatildeo na Biacuteblia entatildeo podemos dizer que a adoraccedilatildeo eacute o que fazemos em face de grande trageacutedia e julgamento pessoal Adoraccedilatildeo em sua essecircncia natildeo eacute o que fazemos quando a vida eacute feliz e nos sentimos abenccediloados eacute o que fazemos quando perdemos as coisas que satildeo mais caras para noacutes o teste de adoraccedilatildeo natildeo eacute no domingo de manhatilde quando nos reunimos com o povo de Deus De manhatilde eacute faacutecil adorar Os crentes estatildeo reunidos em santa convocaccedilatildeo os liacutederes oram e estatildeo preparados para liderar o canto do Senhor comeccedila a surgir a presenccedila de Deus enche a casa Se vocecirc natildeo pode adorar no domingo de manhatilde vocecirc provavelmente estaacute morto138

135 MIRANDA 201239 Grifo nosso136 BIacuteBLIA ONLINE Gn 820137 MARTINI 200221 Grifo nosso138 SORGE 2018 cap 4 Grifo nosso

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Nesse ato de culto de Joacute a adoraccedilatildeo pode-se verificar uma expressatildeo original ndash uma autoexpressatildeo ndash que tem como essecircncia a espontaneidade da expressatildeo em resposta agrave percepccedilatildeo da trageacutedia ocorrida em sua vida

O conceito de autoexpressatildeo eacute definido como uma expressatildeo original que responde espontaneamente agrave percepccedilatildeo de algo A autoexpressatildeo acontece em resposta a um dado sensorial especiacutefico tendo como essecircncia a espontaneidade Contrariamente a expressatildeo pode ser um ato intencional servindo mais para demonstrar os sentimentos dos indiviacuteduos do que se apresentar como uma expressatildeo primaacuteria uma autoexpressatildeo139

O segundo exemplo citado por Sorge se encontra em Gecircnesis 225 passagem biacuteblica da narrativa de um episoacutedio muito marcante na vida de Abraatildeo que denota sua atitude de adorar mesmo quando Deus ordenara que sacrificasse o seu proacuteprio filho seu uacutenico herdeiro que o proacuteprio Deus tinha providenciado de forma milagrosa Mesmo naquela situaccedilatildeo desesperadora Abraatildeo teve a atitude de adorar a Deus Assim comenta Sorge

Quando Abraatildeo estava a caminho da montanha onde pretendia matar o seu uacutenico filho o que disse ele aos criados ldquoEntatildeo disse a seus servos Esperai aqui com o jumento eu e o rapaz iremos ateacute laacute e havendo ado-rado voltaremos para junto de voacutesrdquo (Gecircnesis 225) Na ansiedade mental de planejar matar o seu proacuteprio filho quando Deus sem duacutevida parecia estar a milhas de distacircncia Abraatildeo adorou Ele natildeo podia entender por-que Deus tinha ordenado que ele sacrificasse o seu uacutenico filho o uacutenico e verdadeiro herdeiro que Deus tinha providenciado milagrosamente Mas apesar da sua incapacidade em compreender as intenccedilotildees de Deus Abraatildeo adorou A sua adoraccedilatildeo natildeo teria sido completa sem a sua total obediecircncia140

139 FIGUEIREDO faz o seguinte comentaacuterio sobre a diferenciaccedilatildeo entre esses dois conceitos ndash autoexpres-satildeo e expressatildeo ldquouma autoexpressatildeo de juacutebilo realizada por um indiviacuteduo pela presenccedila apresentaccedilatildeo ou contemplaccedilatildeo de um ldquodeusrdquo ou de algum objeto que o represente pode resultar no nascimento de uma praacutetica ritual Nesse momento originaacuterio de um ritual a demonstraccedilatildeo de juacutebilo gradativamente se propaga agraves pessoas presentes e todos satildeo possuiacutedos do mesmo sentimento as emoccedilotildees humanas satildeo tocadas profundamente nesse momento Numa segunda ocasiatildeo tal demonstraccedilatildeo de juacutebilo eacute repetida mas agora sem aquele fator gerador da expressividade do grupo como ocorrido na primeira ocasiatildeo o segundo momento eacute realizado portanto como uma accedilatildeo intencional do grupo servindo mais para demonstrar os sentimentos dos indiviacuteduos do que uma autoexpressatildeo ou servindo para aliviar os sentimentos do grupo Neste caso ocorre a execuccedilatildeo de um ato supostamente expressivo porque natildeo possui a respectiva motivaccedilatildeo interior Eacute um ato ritual e natildeo um ato expressivo em sua essecircncia (um ato autoexpressivo) Sua suposta expressividade tem uma motivaccedilatildeo loacutegica racional intencional em contraposiccedilatildeo a um ato fisioloacutegico e espontacircneo caracteriacutestica daquele primeiro momento de juacutebilordquo (FIGUEIREDO 2010124-125) Leia mais sobre esse assunto em FIGUEIREDO 2010123-125140 SORGE 2018 cap 4 Grifo nosso

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Essa expressatildeo primaacuteriaoriginal de adoraccedilatildeo de Joacute e Abraatildeo em resposta agrave atuaccedilatildeo de Deus em suas vidas satildeo exemplos de autoexpressatildeo

3 CULTO UM EVENTO NO QUAL Eacute O POVO QUEM TRA-BALHA

Haacute uma criacutetica do filoacutesofo-teoacutelogo dinamarquecircs Soren Kierkgaard que aponta para a inversatildeo das funccedilotildees dos partiacutecipes nos atos de culto (liturgia) a qual deve ser levada em consideraccedilatildeo

Kierkgaard criticou a natildeo participaccedilatildeo ativa do povo da sua igreja lituacutergica luterana ldquoInsistiu em que na verdadeira adoraccedilatildeo a congregaccedilatildeo satildeo os atores o ministro e o coro satildeo os lsquopontosrsquo e Deus eacute o auditoacuteriordquo141 Kierkgaard afirma que ldquono sentido mais enfaacutetico Deus eacute o criacutetico frequentador de teatro que observa para ver como o texto eacute declamado e como ele eacute ouvido O orador portanto eacute o ponto e o ouvinte encontra-se abertamente diante de Deus O ouvinte se posso assim dizecirc-lo eacute o ator que verdadeiramente atua diante de Deus142

A sua criacutetica estava fundamentada nos fatos ocorridos na Idade Meacutedia quan-do ldquoa missa era essencialmente lsquoobra dos sacerdotesrsquo a congregaccedilatildeo natildeo era nem de bons espectadores visto que natildeo entendia as palavras [porque a missa era realizada no idioma latino] e em uma grande catedral natildeo conseguia nem ver a accedilatildeordquo143 Nos dias de hoje

em algumas situaccedilotildees evangeacutelicas parece claro tambeacutem que a adoraccedilatildeo eacute obra do ministro e do coro a congregaccedilatildeo eacute o ldquoauditoacuteriordquo o que suge-re que eles [fieacuteis] agem mais como ouvintes Em muitas situaccedilotildees eles [fieacuteis] nunca satildeo encorajados a falar uma soacute palavra nos cultos lendo as Escrituras ou participando das oraccedilotildees [] Indubitavelmente lhes eacute per-mitido cantar os hinos embora algumas vezes estes sejam bem poucos e ateacute mesmo esta oportunidade eacute ignorada por muitas pessoas em algumas congregaccedilotildees Eacute verdade que pode-se envolver na adoraccedilatildeo ndash pode-se ateacute falar com Deus ndash sem pronunciar nem um som audiacutevel mas cremos que eacute desejaacutevel ter o maacuteximo de participaccedilatildeo da congregaccedilatildeo tanto do que se fala como do que se canta e tambeacutem da accedilatildeo fiacutesica 144

141 HUSTAD 1986165142 HUSTAD 1986165143 HUSTAD 1986165144 HUSTAD 1986165

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Os encontros cultuais puacuteblicos devem priorizar portanto a participaccedilatildeo ativa do povo o trabalho do povo isto eacute os elementos lituacutergicos de um culto (adoraccedilatildeo leitura biacuteblica canto coletivo oraccedilatildeo testemunho mensagem muacutesica instrumental coro etc) devem propiciar a participaccedilatildeo plena do povo

Outro autor que trabalha esses dois termos ndash liturgia e culto ndash eacute o teoacutelogo Nelson Kirst Ele compara o momento do culto com o ldquorancho na roccedilardquo O culto eacute o encontro de Deus com a sua comunidade e a ldquoliturgia eacute o conjunto de elementos e focircrmas (espaccedilos lugares tempos objetos funccedilotildees gestos foacutermu-las histoacuterias instruccedilotildees olhares siacutembolos e significados) atraveacutes dos quais se realiza o encontro de Deus com sua comunidaderdquo145

Imagine-se uma famiacutelia de agricultores que sai para trabalhar um pedaccedilo de terra localizado a 1 ou 2 km de casa De manhatilde bem cedo potildeem-se todos a caminho de carroccedila levando enxadas foices facotildees arado e o cesto com o lanche Laacute chegando dividem as tarefas e se lanccedilam ao trabalho Mourejam por umas duas horas e entatildeo se recolhem para um descanso Em algum ponto daquela roccedila ergue-se o rancho construccedilatildeo tosca de trecircs paredes e um telhado em meia-aacuteguaEacute no aconchego do rancho na roccedila que a famiacutelia camponesa depois da primeira arrancada de enxada e arado se recolhe descansando o corpo fortalecendo-se de patildeo aacutegua fresca e conversa - para meia horinha depois voltar agrave enxada e ao arado e misturar seu suor agrave terra em outro tanto de jornada A famiacutelia vai da enxada para o rancho e sai fortalecida do rancho para a enxada A parada no rancho natildeo faz sentido sem o trabalho na roccedila E o trabalho na roccedila se esgota em agitaccedilatildeo e cansaccedilo sem a parada no rancho146

O culto entatildeo eacute o lugar para renovaccedilatildeo de energias espirituais lugar onde o povo busca ldquoalimentordquo espiritual atraveacutes dos atos de adoraccedilatildeo e louvor ao Deus criador ao Deus salvador Atos de enunciaccedilatildeo de suas alegrias e suas tristezas de exposiccedilatildeo suas ansiedades e vitoacuterias e o retorno para a vida ordinaacuteria das atividades seculares

O culto constituiacutedo pelo conjunto de elementos lituacutergicos eacute um evento total que possui situaccedilotildees momentacircneas cultuais diversas Qual eacute a origem desses momentos determinados constantes de uma liturgia

145 KIRST 1998119146 KIRST 1998119

95TeoloacutegicaRevista Brasileira de Teologia ISSN 1807-7056 nordm 8 outdez Rio de Janeiro 2020 p 86 - 97

4 ldquoA VISAtildeO DE ISAIacuteASrdquo UM DOS MODELOS DE EVENTO CULTUAL

Apesar da origem natildeo-lituacutergica dos batistas sua liturgia segue alguns princiacutepios modelos Os atos lituacutergicos natildeo satildeo propostos aleatoriamente Entatildeo de onde vecircm esses princiacutepiosmodelos que norteiam uma liturgia

Esses elementos vecircm dos exemplos biacuteblicos de adoraccedilatildeo O teoacutelogo Romeu R Martini nos apresenta no seu livro Liturgia e culto o exemplo biacuteblico de Noeacute (Gn 6-8) e o teoacutelogo Russel P Shedd no seu livro Adoraccedilatildeo biacuteblica elenca vaacuterios exemplos biacuteblicos de adoraccedilatildeo afirmando que ldquoas sagradas letras satildeo o nosso manual de adoraccedilatildeordquo147

O salmista no Salmo 96 Enoque em Gn 522-24Hb 56 Jacoacute em Gn 3222ss Moiseacutes em Ex 3312-33 Isaiacuteas em Is 61-8 e Maria em Jo 121-8 satildeo os exemplos apresentados por Shedd

De todos esses exemplos biacuteblicos de adoraccedilatildeo haacute uma convergecircncia entre os teoacutelogos de que a experiecircncia de Isaiacuteas eacute a que mais detalhes apresenta sobre os diversos atos ocorrentes em um encontro de um ser humano com o Deus criador Do texto de Isaiacuteas 6-1-9a emergem os seguintes atos lituacutergicos

- Consciecircncia da presenccedila de Deus (Is 61) ndash Preluacutedio

- Adoraccedilatildeo (Is 62-3)

- Confissatildeo (Is 65)

- Perdatildeo (Is 66-7)

- Apelo (Is 68) ndash Palavra do SenhorEnsino

- Consagraccedilatildeo (Is 68) ndash Resposta do homem

- Disponibilidade para o serviccedilo (Is 69a) ndash Posluacutedio

Nelson Kirst fala de uma forma mais abrangente que a liturgia ndash a sequecircncia de atos elementos eventos ornamentos e momentos lituacutergicos ndash precisa ser moldada Utiliza o exemplo de uma casa com seus cocircmodos para o entendimento dessa questatildeo

Uma casa eacute composta de diversas dependecircncias Haacute certas dependecircncias que natildeo podem faltar numa casa p ex a cozinha ou o dormitoacuterio Satildeo imprescindiacuteveis Haacute outras partes que satildeo uacuteteis sem ser imprescindiacuteveis

147 SHEDD 1987113

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p ex a sala de estar a sala de jantar ou a varanda Assim tambeacutem a liturgia tem partes imprescindiacuteveis que nunca podem faltar e partes que satildeo uacuteteis mas podem faltar num cultoNa comparaccedilatildeo da liturgia com uma casa tambeacutem se aprende alguma coisa sobre a disposiccedilatildeo das diversas partes dentro do conjunto A entrada de uma casa geralmente vai ser pela sala de estar ou perto da sala de estar e natildeo pela cozinha ou pelo dormitoacuterio Por outro lado o banheiro pode localizar-se entre o dormitoacuterio e a sala ou entre o dormitoacuterio e a cozinha e a sala de estar pode encontrar-se do lado esquerdo ou do lado direito da entrada Assim tambeacutem na liturgia haacute certas partes que tecircm seu lugar fixo p ex o canto de entrada soacute pode estar no iniacutecio do culto e a interpretaccedilatildeo da Palavra soacute pode vir depois das leituras biacuteblicas E haacute outras partes que podem ser dispostas com certa flexibilidadeFinalmente haacute muita maleabilidade na maneira como satildeo configuradas as diversas dependecircncias de uma casa O material as cores as cortinas a decoraccedilatildeo dependeratildeo de quem haacute de utilizar essa casa para morar Assim tambeacutem haacute muita liberdade quanto agrave maneira ou ao estilo de se realizar as partes da liturgia148

5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAISFinalizando liturgia significa os atos ocorrentes no momento de culto isto

eacute os atos praticados pelos indiviacuteduos em reaccedilatildeo agrave accedilatildeo divina Os batistas satildeo uma igreja livre (natildeo-lituacutergica) em relaccedilatildeo agrave orientaccedilatildeo lituacutergica A liturgia dos batistas procura seguir os exemplos de adoraccedilatildeo encontrados na Biacuteblia sendo a experiecircncia de Isaiacuteas com Deus a mais ensinada nas casas teoloacutegicas como modelo de atos cultuais

Para que a liturgia natildeo se transforme em um ritual ndash uma monoacutetona repeticcedilatildeo de atos lituacutergicos ndash existe uma liberdade na sua elaboraccedilatildeo preservando-se alguns dos elementoseventos cultuais de adoraccedilatildeo biacuteblica bem como a omissatildeo de outros

Hustad afirma que em resumo a liturgia de um culto deve contemplar duas accedilotildees baacutesicas da adoraccedilatildeo ldquouma revelaccedilatildeo plena de Deus seus atos e sua vontade para noacutes e uma reaccedilatildeo dos homens e mulheres incluindo corpo emoccedilatildeo intelecto e vontaderdquo149

148 KIRST 1998125149 HUSTAD 1986166 Grifo nosso

97TeoloacutegicaRevista Brasileira de Teologia ISSN 1807-7056 nordm 8 outdez Rio de Janeiro 2020 p 86 - 97

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LITURGIA E IDENTIDADE RELIGIOSA NO APOCALIPSE DE JOAtildeO

Valtair A Miranda150

RESUMONosso propoacutesito neste artigo eacute analisar as peccedilas hiacutenicas descritas nos capiacutetulos

quatro e cinco do livro de Apocalipse e refletir sobre o papel que executam na construccedilatildeo e manutenccedilatildeo da identidade social e religiosa dos leitores e ouvintes desse livro no momento da sua produccedilatildeo Argumentamos que os hinos registrados nas obras do movimento de Jesus possuiacuteam um papel significativo na definiccedilatildeo da autodescriccedilatildeo dos membros das igrejas quer por representarem o que se cantava nas comunidades quer como sugestatildeo do que cantar Cantar entatildeo natildeo apenas descreve a pessoa de Deus ou o falar com ele mas propicia a quem canta um forte senso de identidade pessoal e social Nos hinos o fiel expressa o que ele se ainda natildeo eacute pelo menos gostaria de ser

Palavras-chave Apocalipse de Joatildeo Culto e ritual hino e liturgia Cristianismo antigo

ABSTRACTOur purpose in this article is to analyze the hymn pieces of Revelation 4 and

5 and to reflect on their role in building and maintaining the social and religious identity of the readers and listeners of this book at the time of its production We argue that the hymns recorded in the works of the Jesus movement had a signifi-cant role in defining the self-description of church members either because they represent what was sung in the communities or rather as a suggestion to sing Singing then not only describes God or speaks to him but gives the person who sings a strong sense of personal and social identity In the hymns the faithful express what he if he still is not at least would like to be

Keywords Revelation of John Worship and ritual worship and liturgy Ancient Christianity

150 Valtair Afonso Miranda eacute Doutor em Ciecircncias da Religiatildeo (UMESPSP) e Doutor em Histoacuteria (UFRJ) Eacute Diretor Acadecircmico da Faculdade Batista do Rio de Janeiro onde leciona Histoacuteria da Igreja e Exegese do Novo Testamento

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O capiacutetulo 4 de Apocalipse inicia uma longa seccedilatildeo descritiva de um tipo de culto celestial Aparentemente este livro poderia ser dividido em trecircs partes uma seccedilatildeo para descrever a visatildeo do Filho do Homem que aparece a Joatildeo para narrar sete cartas para sete igrejas (capiacutetulos 1 a 3) uma seccedilatildeo para descrever a visatildeo do rolo selado com sete selos (capiacutetulos 4 a 11) e uma uacuteltima para apresentar o conflito escatoloacutegico entre o Cordeiro e o Dragatildeo (capiacutetulos 12 a 22)151

Nesse sentido o capiacutetulo 4 seria o iniacutecio da segunda seccedilatildeo Sua narrativa co-meccedila com o ingresso do visionaacuterio por uma porta aberta no ceacuteu e o subsequente acesso ao Templo Celestial Na perspectiva da audiecircncia desse texto a cena elabora uma narrativa a partir de uma preacutevia experiecircncia extaacutetica Afinal Joatildeo continua na Ilha de Patmos apesar de o seu espiacuterito vislumbrar o trono divino e uma seacuterie de personagens que participam da liturgia celestial Embora se apresente como a narrativa de uma experiecircncia visionaacuteria entretanto o Apocalipse ecoa por meio dessa cena um conjunto de tradiccedilotildees e passagens provavelmente bem conhecidas de sua audiecircncia como Ecircxodo 249-11 Isaiacuteas 6 Ezequiel 126-28 Daniel 79-28 1Reis 2219-23 1Enoque 39 e 2 Enoque 20-22 entre outras

O primeiro versiacuteculo do capiacutetulo 4 apresenta um anjo convocando Joatildeo para subir ao ceacuteu Esse anjo promete mostrar ao visionaacuterio o que aconteceria ldquodepois destas coisasrdquo O cumprimento dessa promessa do anjo se daacute nos termos do relato quando o Cordeiro siacutembolo do Jesus crucificado rompe sete selos de um livro e provoca sete trombetas escatoloacutegicas Isso aparece no capiacutetulo 6 em diante jaacute que os dois primeiros capiacutetulos da seccedilatildeo (4 e 5) se dedicam ao ato lituacutergico em um ritmo muito lento apresentando as cenas e os atores do culto celestial

Nosso propoacutesito neste artigo eacute analisar as peccedilas hiacutenicas desses dois capiacutetulos do Apocalipse e refletir sobre o papel delas na construccedilatildeo e manutenccedilatildeo da identidade social e religiosa dos leitores e ouvintes do livro no seu momento de produccedilatildeo152

151 Para uma discussatildeo dessa estrutura no formato de trecircs seccedilotildees conferir o meu livro MIRANDA Valtair Afonso O caminho do Cordeiro representaccedilatildeo e construccedilatildeo de identidade no Apocalipse de Joatildeo Satildeo Paulo Paulus 2011152 Pressupomos que esta obra foi escrita no final do seacuteculo I e enviada para membros do movimento de Jesus na proviacutencia romana da Aacutesia especificamente para comunidades nas cidades de Eacutefeso Esmirna Peacutergamo Tiatira Saacuterdis Filadeacutelfia e Laodiceia Para uma anaacutelise mais ampla do contexto de produccedilatildeo do Apocalipse de Joatildeo conferir MIRANDA Valtair A Revisitando o contexto de produccedilatildeo do Apocalipse de Joatildeo Reflexus ano IX n 14 p 389-416 2015 FRIEDRICH Paulo Nestor Apocalipse 2ndash3 Sete cartas Uma anaacutelise literaacuteria Estudos de Religiatildeo Satildeo Bernado do Campo n 19 p 149-173 2000 WIKENHAUSER Alfred El Apocalipsis de San Juan p 25-34

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CELEBRANDO A CRIACcedilAtildeO O CULTO AO DEUS ENTRONI-ZADO

O capiacutetulo 4 do Apocalipse apresenta um trono no ceacuteu e em torno dele ele-mentos tiacutepicos de uma teofania da Escritura judaica (Is 61-4) Como na visatildeo de Isaiacuteas esse trono divino eacute uma peccedila central Tudo gira em torno dele Ao seu redor estatildeo quatro criaturas denominadas de Seres Viventes Aleacutem destes o relato apresenta tambeacutem vinte e quatro tronos menores nos quais se assentam vinte e quatro anciatildeos vestidos com roupas brancas tendo coroas de ouro na cabeccedila Independentemente da forma como os inteacuterpretes contemporacircneos interpretam esses personagens celestiais o essencial eacute que todos estatildeo envolvidos em atos lituacutergicos Eles adoram o anciatildeo que se assenta sobre o trono

Os Quatro Viventes especificamente tecircm como missatildeo sem descanso dia e noite expressar adoraccedilatildeo (Ap 48) Deles Joatildeo ouve ldquoSanto Santo Santo eacute o Senhor Deus o Todo-Poderoso aquele que era que eacute e que haacute de virrdquo O hino comeccedila com uma expressatildeo triacuteplice originada em Isaiacuteas 63 ldquoE clamavam uns para os outros dizendo Santo santo santo eacute o Senhor dos Exeacutercitos toda a terra estaacute cheia da sua gloacuteriardquo No texto de Isaiacuteas a canccedilatildeo eacute entoada por Serafins figuras parecidas com serpentes aladas Essa passagem foi largamente usada em textos apocaliacutepticos para compor as cenas do santuaacuterio celestial (1En 3012 2En 211 Ap Abr 16) Os grupos judaicos do segundo Templo frequentemente viam no triacuteplice ldquosantordquo a expressatildeo perfeita do culto dos anjos deduzindo daiacute um modelo para o culto na terra153

Eacute interessante comparar a versatildeo de Isaiacuteas com a LXX e o Apocalipse e assim verificar a forma como as tradiccedilotildees literaacuterias satildeo retomadas no Apo-calipse A LXX que normalmente traduz o termo tsabaoth por pantokrator dessa vez simplesmente transliterou o termo sabaoth Joatildeo entretanto de forma consistente continuou usando pantokrator no lugar de tsabaoth De qualquer forma ambas as expressotildees denotam um ser soberano sobre todos os outros deuses e senhores da terra Ele eacute o Senhor dos Exeacutercitos o Todo-poderoso o Senhor da terra toda Isso daacute ao conjunto da canccedilatildeo um tom de natureza poliacute-tica A acentuaccedilatildeo do ldquoSenhor Deus Todo-Poderosordquo eacute ainda maior porque o hino acrescenta agrave descriccedilatildeo divina a expressatildeo ldquoaquele que era que eacute e que haacute de virrdquo no que se configura uma afirmaccedilatildeo da eternidade imutabilidade e autonomia divinas uma evocaccedilatildeo do ldquoeu sourdquo de Ecircxodo 314 Um Deus eterno natildeo estaacute sujeito agraves variaccedilotildees do tempo ou agraves transiccedilotildees dos domiacutenios humanos

153 PRIGENTE P O Apocalipse p 104

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No momento em que os Quatro Viventes cantam o hino de Isaiacuteas denominado frequentemente de ldquokedushaacuterdquo os Vinte e Quatro Anciatildeos se prostram diante do que se assenta no trono depositando aos seus peacutes suas coroas de ouro Dessa vez satildeo eles que adoram ldquoTu eacutes digno Senhor e Deus nosso de receber a gloacuteria a honra e o poder porque todas as coisas tu criaste sim por causa da tua vontade vieram a existir e foram criadasrdquo (Ap 411)

A forma literaacuteria eacute de aclamaccedilatildeo mas configurada em expressatildeo hiacutenica no texto do visionaacuterio A estrutura do hino consiste do adjetivo ldquodignordquo seguido do verbo ser (na terceira pessoa do singular) mais uma seacuterie de atributos Esse eacute um hino de dignidade A divindade eacute adorada porque eacute digna e eacute digna em funccedilatildeo da sua obra de criaccedilatildeo

Esse hino tambeacutem levanta a questatildeo de quem eacute digno de ser adorado Possi-velmente eacute uma peccedila lituacutergica que surge em meio agrave disputa por adoraccedilatildeo Com um hino desse tipo o Apocalipse tenta apontar quem eacute digno de adoraccedilatildeo e consequentemente quem natildeo o eacute

Essas expressotildees querem responder agrave questatildeo ldquoquem eacute o verdadeiro senhor da terrardquo ou entatildeo quem eacute digno de ser A resposta do Apocalipse eacute clara o Senhor da terra eacute aquele que a criou A ele pertencem todas as coisas

Esses hinos poderiam atuar na identidade da audiecircncia de diversas maneiras mas destacamos aqui apenas trecircs Primeiramente ao ouvir tais hinos ou cantaacute--los a audiecircncia acompanha os seres celestiais declarando o senhorio exclusivo de Deus sobre o mundo154 Deus eacute o verdadeiro Senhor da Terra o que promove uma determinada filosofia da histoacuteria Um Deus Soberano estaacute acima dos poderes e governos do mundo Esse tipo de divindade tem poder para controlar e dirigir a histoacuteria da humanidade e o faraacute levando-a ateacute a instalaccedilatildeo efetiva do seu Reino sobre a terra (Ap 510) O olhar sobre esse futuro - mas iminente - reino alerta as comunidades de crentes que a vida que eles vivem no presente eacute circunstancial e peregrina O seu destino ainda natildeo chegou Um primeiro efeito plausiacutevel entatildeo se daria na postura poliacutetica dos fieis cantantes ao promover a perspectiva de oposiccedilatildeo agrave sociedade circundante155

Segundo ao afirmar que somente Deus eacute digno de receber adoraccedilatildeo honra poder o hino afirma a singularidade da figura divina diante das pretensotildees im-

154 BORTOLINI Joseacute Como ler o Apocalipse p 53155 Para uma reflexatildeo mais ampla sobre posturas de oposiccedilatildeo do movimento de Jesus agrave estrutura imperial romana cf MIRANDA Valtair A Religiatildeo e sociedade na Aacutesia romana Religare v13 n1 p150-179 2016 LAZIER Josueacute Adam A estrateacutegia cristatilde no contexto da Pax Romana Estudos Biacuteblicos n 36 p 37-40 1992 MESTER Carlos OROFINO Francisco A violecircncia do Impeacuterio Romano e a sua influecircncia na vida das comunidades cristatildes do fim do primeiro seacuteculo Estudos Biacuteblicos n 69 p 72-82 2001

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periais romanas E ao afirmar a singularidade de Deus o hino tambeacutem reforccedila a singularidade de seus adoradores Mesmo que experimentando o desprezo da sociedade romana os seguidores de Jesus se percebem como figuras especiais pois formam o povo de Deus na terra

Terceiro esse conhecimento do senhorio de Deus sobre o universo e da singu-laridade do seu povo eacute um conhecimento profundo que somente quem acessa as regiotildees celestiais conhece Ningueacutem consegue enxergar o que eles veem naquele momento Essa ldquovisatildeo profundardquo era dada aos seguidores do Cordeiro quando se reuniam em seus encontros de culto Dessa forma o culto se torna o espaccedilo privilegiado para o acesso a um ldquooutro mundordquo no interior ldquodeste mundordquo

CELEBRANDO A REDENCcedilAtildeO O CULTO AO CORDEIROO capiacutetulo 5 do Apocalipse apresenta uma crise Qual eacute a crise Joatildeo eacute infor-

mado de que haacute um rolo que ningueacutem pode abrir Ele comeccedila a chorar ateacute que algueacutem bate no seu ombro e diz ldquoNatildeo chores eis que o Leatildeo da tribo de Judaacute a Raiz de Davi venceu para abrir o livro e os seus sete selosrdquo (Ap 55) Ele ouve falar de um leatildeo mas quando olha o que vecirc eacute um cordeiro Eacute Jesus Cristo na forma simboacutelica de um cordeiro ensanguentado representando a centralidade do seu sacrifiacutecio na cruz no projeto de redenccedilatildeo divino Daqui em diante o Cordeiro Jesus Cristo jaacute com o rolo na matildeo vai comeccedilar a quebrar os selos do rolo um por um Agrave medida que cada selo eacute removido uma cena eacute testemunhada por Joatildeo

Jesus que jaacute aparecera antes na forma do Filho do Homem (Ap 113) agora eacute descrito como um cordeiro com aparecircncia de ter sido morto com sete chifres e sete olhos Satildeo imagens que devem ser menos entendidas e mais sentidas Chifres e olhos tecircm a ver com a presenccedila do poder e do espiacuterito de Deus Mas de onde vem a imagem do Cordeiro

Essa imagem tem analogia com o sacrifiacutecio e a morte Uma passagem relevante para estudar o significado de ldquocordeirordquo estaacute no Antigo Testamento especifica-mente em uma profecia de Jeremias 1119 ldquoEu era como manso cordeiro que eacute levado ao matadouro porque eu natildeo sabia que tramavam projetos contra mim dizendo Destruamos a aacutervore com seu fruto a ele cortemo-lo da terra dos vi-ventes e natildeo haja mais memoacuteria do seu nomerdquo O profeta fala de si mesmo como um cordeiro que eacute levado mansamente para a morte

A passagem mais proacutexima de Jeremias eacute Isaiacuteas 537 ldquoEle foi oprimido e humilhado mas natildeo abriu a boca como cordeiro foi levado ao matadouro e como ovelha muda perante os seus tosquiadores ele natildeo abriu a bocardquo O relato de Isaiacuteas 53 sobre o ldquoservo sofredorrdquo reaparece no Novo Testamento de diversas

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formas para falar do ministeacuterio de Jesus e sua morte (Lc 2237 At 832-33 1Pe 222) sendo muito importante para responder agrave questatildeo de como o sofrimento e a morte de Jesus poderiam ser explicados diante da sua natureza messiacircnica

Eacute exatamente isso que aparece quando o Apocalipse descreve Jesus como um Cordeiro Ele eacute o Messias pelo caminho do sacrifiacutecio Mais ainda o Cordeiro Jesus

- Eacute aquele que morreu e ressuscitou (Ap 56)

- Eacute adorado pelas figuras celestiais (Ap 581213)

- Eacute o que tem o poder de revelar os eventos celestiais (Ap 61)

- Eacute o que julgaraacute todas as pessoas (Ap 616 717) pois possui o Livro da Vida (2127)

- Eacute o que lavou as vestes dos salvos com o seu proacuteprio sangue (Ap 791014)

- Eacute o que vence o Dragatildeo em funccedilatildeo do seu sangue (Ap 1211)

- Venceraacute as bestas (Ap 1714)

- Se casaraacute com sua noiva a Nova Jerusaleacutem o povo de Deus (Ap 1979 219)

- Iluminaraacute a Nova Jerusaleacutem (Ap 2123)

A imagem do cordeiro sacrificial entatildeo no Apocalipse faz referecircncia natildeo apenas ao sofrimento e agrave morte mas tambeacutem agrave vitoacuteria reinado poder e gloacuteria Eacute a esse Cordeiro exaltado que toda a adoraccedilatildeo do capiacutetulo 5 se dirige Ele eacute digno de ser adorado porque segundo os vinte e quatro anciatildeos e os Quatro Viventes morreu e com seu sangue comprou pessoas de todas as naccedilotildees constituindo-as reino e sacerdotes para Deus (Ap 59-10) Os mesmos seres que adoraram a Deus no capiacutetulo 4 agora se rendem em adoraccedilatildeo ao Cordeiro de Deus no capiacutetulo 5 (Ap 59-10) ldquoDigno eacutes de tomar o livro e abrir-lhe os selos porque foste morto e compraste para Deus atraveacutes do teu sangue pessoas de toda tribo liacutengua povo e naccedilatildeo e os constituiacuteste para o nosso Deus reino e sacerdotes e reinaratildeo sobre a terrardquo

Adela Yarbro Collins estudiosa da Yale University (EUA) interpretou esse rolo como uma epiacutestola celestial na forma de um livro de destino Em outras palavras ele seria uma taacutebua de eventos futuros Os sete selos enfatizam simbolicamente a intensidade do segredo do conhecimento sobre os eventos futuros cujo conteuacutedo eacute dado na forma de duas seacuteries de sete visotildees (selos e trombetas)156 O Cordeiro seria o uacutenico digno de revelar para o visionaacuterio e sua comunidade o conhecimento escatoloacutegico A base dessa dignidade eacute a morte de Jesus Cristo

156 COLLINS Adela Yarbro The combath myth in the Book of Revelation p 25

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A imagem de um cordeiro imolado jaacute seria evocaccedilatildeo suficiente agrave morte de Jesus da mesma forma como sua posiccedilatildeo em relaccedilatildeo ao trono o afirma vivo e com poder para fazer especificamente duas coisas comprar para Deus um povo exclusivo e fazecirc-los reino e sacerdotes de Deus Essa afirmaccedilatildeo jaacute apareceu antes (Ap 15-6) na forma de um hino entoado pelo autor na primeira pessoa do plural ldquoAgravequele que nos ama e pelo seu sangue nos libertou dos nossos pecados e nos constituiu reino sacerdotes para o seu Deus e Pai a ele a gloacuteria e o domiacutenio pelos seacuteculos dos seacuteculos Ameacutemrdquo Jaacute nesse hino ao Cordeiro satildeo os Vinte e Quatro Anciatildeos diante do Trono no ceacuteu que declaram esta mesma realidade Seria uma maneira de indicar que os seres celestiais confirmam o status real e sacerdotal cantado pelos crentes na terra

A origem dessas pessoas como ldquode toda tribo liacutengua povo e naccedilatildeordquo afirma o caraacuteter natildeo mais eacutetnico do povo de Deus A filiaccedilatildeo natildeo seria mais uma questatildeo de sangue mas de compromisso com o Cordeiro

As formas verbais satildeo bem precisas Os seguidores do Cordeiro jaacute foram comprados e jaacute receberam a investidura real e sacerdotal Seriam accedilotildees realizadas por Jesus no momento de sua morte e ressurreiccedilatildeo Mesmo assim uma reserva escatoloacutegica se manifesta eles ainda reinaratildeo sobre a terra Eles jaacute fazem parte do reino de Deus e seu filho Jesus Cristo mas esse reino ainda natildeo eacute visto por quem natildeo faz parte dele O cacircntico expressa a esperanccedila entretanto somente na intervenccedilatildeo uacuteltima de Deus esse reinado se materializaraacute157

Os cantores desse hino de dignidade ao Cordeiro satildeo os Quatro Viventes e os Vinte e Quatro Anciatildeos A cena ganha proporccedilotildees ainda maiores quando apoacutes o hino anjos em nuacutemero de ldquomilhotildees de milhotildees e milhares de milharesrdquo tambeacutem cantam a mesma temaacutetica (Ap 512) ldquoDigno eacute o Cordeiro que foi morto de receber o poder e riqueza e sabedoria e forccedila e honra e gloacuteria e louvorrdquo

Enquanto a primeira canccedilatildeo de dignidade ao Cordeiro estaacute na segunda pessoa do singular (um hino que fala com o Cordeiro) a canccedilatildeo dos anjos estaacute na terceira pessoa do singular (um hino que fala do Cordeiro) Em ambas as canccedilotildees o objeto de adoraccedilatildeo eacute descrito numa linguagem poliacutetico-religiosa do antigo Israel

Ele eacute o Leatildeo da Tribo de Judaacute a raiz de Davi que conquistou e portanto eacute digno de abrir o rolo que Deus entregou em suas matildeos Mas eacute ao mesmo tempo um Cordeiro em peacute como se tivesse sido morto Eacute ele que tem o rolo na matildeo

157 Isto configura um determinado tipo de milenarismo como analisado em MIRANDA Valtair A Maacutertires e monges milenarismos antigos e medievais Santo Andreacute Kapenke 2018 p 43-72

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O Leatildeo era usado como siacutembolo de poder no mundo antigo (Pr 3030) e se tornou associado com o trono de Davi atraveacutes da caracterizaccedilatildeo de Judaacute feita por Jacoacute (Gn 499) A raiz de Davi eacute uma metaacutefora para a linhagem de Davi (Is 1110) e se tornou siacutembolo da restauraccedilatildeo da monarquia daviacutedica (Jr 235) Essas tradiccedilotildees do restabelecimento do reino de Deus como um ato de forccedila e poder eram tradicionais Mas essa natildeo eacute a perspectiva de Apocalipse que inverte a imagem O leatildeo se torna cordeiro Existe violecircncia sim mas contra o cordeiro natildeo do Cordeiro Ele tem poder e tem forccedila para conquistar mas seus atos de conquista passaram pela sua morte158

Se Deus eacute digno por causa de sua obra de criaccedilatildeo o Cordeiro eacute digno por causa da redenccedilatildeo Somente ele entatildeo eacute capaz de abrir os selos somente ele venceu a morte Ao inserir o tema da morte do Cordeiro na tradiccedilatildeo messiacircnica daviacutedica o visionaacuterio insere na esperanccedila messiacircnica poliacutetica os aspectos da tradiccedilatildeo sacrificial

As cenas de culto celestial natildeo eram novidades na apocaliacuteptica Entretanto a presenccedila do Cordeiro ldquocomo que mortordquo no Templo celestial participando ou mesmo recebendo o culto eacute uma grande novidade do Apocalipse de Joatildeo Um nuacutemero muito maior de epiacutetetos nesses hinos de dignidade eacute lanccedilado sobre o Cordeiro do que ao proacuteprio Anciatildeo que estava assentado sobre o trono central do Santuaacuterio

Apoacutes a adoraccedilatildeo ao Cordeiro o relato acrescenta que ldquotoda criatura que haacute no ceacuteu e sobre a terra debaixo da terra e sobre o mar e tudo o que neles haacuterdquo e se volta novamente para aquele que se assenta no trono A descriccedilatildeo do culto celestial assim extrapola os espaccedilos celestiais pois envolve tambeacutem o acircmbito da terra e do mar bem como todos os seus seres A natureza inteira aparece envolvida na adoraccedilatildeo celestial O que eles cantam eacute ldquoAo que se assenta sobre o trono e ao Cordeiro o louvor e a honra e a gloacuteria e o domiacutenio para os seacuteculos dos seacuteculosrdquo (Ap 513)

Finalmente ambos os personagens celebrados no culto celestial recebem simultaneamente a adoraccedilatildeo As claacuteusulas de dignidade se parecem com o hino dos anjos (Ap 512) e com o hino a Deus em Apocalipse 411 A gloacuteria e a honra aparecem nos trecircs hinos O poder eacute dado a Deus pelos Vinte e Quatro Anciatildeos e ao Cordeiro pelos anjos mas natildeo aparece na lista quando ambos satildeo louvados juntos Na adoraccedilatildeo a Deus e ao Cordeiro por sua vez ainda se manifestam o domiacutenio e o louvor que natildeo apareceram antes para Deus De qualquer forma todas

158 BARR David L Tales of the End p 70

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as dignidades de Deus pertencem tambeacutem ao Cordeiro que ainda suporta outras Somente Ele nesses trecircs hinos de dignidade teve celebrada a riqueza a sabedoria e a forccedila Esses elementos sinalizam que diferentemente das visotildees tradicionais do Templo celestial no Apocalipse de Joatildeo natildeo eacute Deus a figura principal mas sim o Cordeiro Ele eacute o personagem central da revelaccedilatildeo do visionaacuterio

Nos termos de Hurtado

judeus convertidos se reuniam para adorar em nome de Jesus oravam a ele cantavam para ele entendiam que ele estava em uma posiccedilatildeo celestial acima de toda a ordem angelical usaram para ele tiacutetulos e passagens das Escrituras judaicas originalmente usadas para Deus procuraram convencer outros judeus e tambeacutem gentios a reconhece-lo como o redentor messiacircnico escolhido por Deus e em geral redefiniam a devoccedilatildeo tradicional ao uacutenico Deus para incluir a veneraccedilatildeo a Jesus159

Ao apresentar a adoraccedilatildeo de elementos da natureza o visionaacuterio ainda demons-tra a possibilidade de elementos de fora do acircmbito celestial participarem de algu-ma maneira do culto no ceacuteu O que esses elementos celebram eacute a manifestaccedilatildeo do Reino de Deus e seu domiacutenio perpeacutetuo Os cantores desse hino representam toda a ordem da criaccedilatildeo que juntos adoram o que se assenta no trono e o Cordeiro160

Como um responsoacuterio coral a resposta vem daqueles que se encontram bem perto do trono os Quatro Viventes que respondem ldquoAmeacutemrdquo

A conclusatildeo da cena eacute um novo ato de prostraccedilatildeo e adoraccedilatildeo dos Anciatildeos (Ap 513-14) O verbo usado no Apocalipse para adoraccedilatildeo eacute predominantemente proskuneo Ele aparece 60 vezes no Novo Testamento mas em nenhum outro livro tem a importacircncia que tem no livro de Joatildeo no qual aparece 24 vezes indicando o quanto a questatildeo da adoraccedilatildeo eacute central para o visionaacuterio O termo denota prostraccedilatildeo postura de submissatildeo e homenagem atitude que seraacute repetida vaacuterias vezes no Apocalipse

Finalmente o culto ao Anciatildeo e ao Cordeiro dos capiacutetulos 4 e 5 de Apocalipse seraacute interrompido pela seacuterie de selos e trombetas mas apareceraacute novamente em vaacuterios outros lugares da obra

159 HURTADO Larry W One God One Lord p 17-18160 MESTER Carlos OROFINO Francisco Apocalipse de Joatildeo p 182-183

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CONCLUSAtildeORetomando a questatildeo inicial sobre o papel dos hinos dos capiacutetulos 4 e 5 de

Apocalipse na autocompreensatildeo religiosa e social da audiecircncia ali descrita acreditamos que eles funcionariam para afirmar um status exaltado dos segui-dores de Jesus que foram comprados para Deus e lhe pertencem agora Como propriedade exclusiva de Deus satildeo seus sacerdotes fazendo parte do reino de Deus e do Cordeiro jaacute no presente tempo Por isso eles jaacute podem cantar todas as expectativas que as antigas tradiccedilotildees judaicas esperavam para a intervenccedilatildeo escatoloacutegica divina

Profeticamente o reinado de Deus e seu ungido se manifestam jaacute no espaccedilo sagrado do culto O Templo celestial sede do reino de Deus tem seu equivalente na terra no ajuntamento da comunidade de fieacuteis em adoraccedilatildeo Assim separados da vida ordinaacuteria dentro do limite do tempo e espaccedilo ritual na assembleia de adoraccedilatildeo no dia do Senhor os seguidores de Jesus conseguiam ver o que ningueacutem mais via e mais do isso jaacute antecipavam prolepticamente sua participaccedilatildeo no Reino de Deus e seu Cordeiro

Como contraponto entretanto essa perspectiva identitaacuteria promoveria algum tipo de rejeiccedilatildeo agrave ordem social romana A grande pergunta que os capiacutetulos 4 e 5 de Apocalipse quer responder eacute Quem eacute digno de adoraccedilatildeo Muita gente na eacutepoca do Apocalipse dizia que o Imperador Romano era digno de adoraccedilatildeo Para aqueles que cantavam esses cacircnticos entretanto a sociedade romana paganizada estava equivocada

Eacute certo que os imperadores romanos eram pessoas muito poderosas Tatildeo poderosas que imaginavam poder receber honras e adoraccedilatildeo como se fossem divindades O culto imperial era efetivamente um problema para as comunidades receptoras do Apocalipse Entretanto em oposiccedilatildeo a essa estrutura religiosa imperial o Apocalipse responde com o convite para uma adoraccedilatildeo exclusiva a Deus e seu Cordeiro mesmo que o preccedilo para isso fosse o caminho do martiacuterio (Ap 1413)

Valtair Afonso MirandaRua Uruguai 514202

20510-060 ndash Rio de Janeiro RJvaltairmirandagmailcom

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REFEREcircNCIASBARR David L Tales of the End a Narrative Commentary on the Book of Revelation Santa Rosa Polebridge Press 1998

BORTOLINI Joseacute Como ler o Apocalipse Sao Paulo Paulus 2008

COLLINS Adela Yarbro The Combath Myth in the Book of Revelation Eugene Wipf and Stock Publishers 2001

FRIEDRICH Paulo Nestor Apocalipse 2ndash3 Sete cartas Uma anaacutelise literaacuteria Estudos de Religiatildeo n 19 p 149-173 2000

HURTADO Larry W One God One Lord Early Christian Devotion and ancient Jewish monotheism Edinburgh TampT Clark Ltd 1988

LAZIER Josueacute Adam A estrateacutegia cristatilde no contexto da Pax Romana Estudos Biacuteblicos n 36 p 37-40 1992

MESTER Carlos OROFINO Francisco Apocalipse de Joatildeo a teimosia da feacute dos pequenos Petroacutepolis Vozes 2002

_________ A violecircncia do Impeacuterio Romano e a sua influecircncia na vida das comu-nidades cristatildes do fim do primeiro seacuteculo Estudos Biacuteblicos n 69 p 72-82 2001

MIRANDA Valtair A Maacutertires e monges milenarismos antigos e medievais Santo Andreacute Kapenke 2018

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PRIGENT Pierre O Apocalipse Trad Luiz Joatildeo Barauacutena Satildeo Paulo Loyola 1993

WIKENHAUSER Alfred El Apocalipsis de San Juan Barcelona Editorial Herder 1969

Page 8: seminariodosul.com.br...O primeiro concílio da igreja é o mencionado no capítulo 15 de Atos dos Apóstolos, onde Lucas relata o Concílio de Jerusalém em 50 d.C., liderado por

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e de outras doutrinas semelhantes no seacuteculo III quando Cipriano era bispo de Cartago foi debatida a questatildeo da readmissatildeo dos que tinham caiacutedo5

Um fator limitante para que as discussotildees prosseguissem era a disponibili-dade dos envolvidos para isso pois muitos deles estavam sendo perseguidos ou fugindo Com o fim da perseguiccedilatildeo promovido por Constantino no iniacutecio do seacuteculo IV houve mais seguranccedila e liberdade para prosseguir o debate de controveacutersias teoloacutegicas Ideias controversas dentro do impeacuterio poderiam dividi- lo e Constantino natildeo queria ameaccedilar a unidade do impeacuterio Assim o primeiro conciacutelio ecumecircnico foi convocado6

Sete conciacutelios ecumecircnicos foram chamados no total entre os seacuteculos IV-VIII Dentre eles os quatro primeiros destacam-se por sua autoridade doutrinaacuteria e por sua importacircncia histoacuterica Niceacuteia I e Constantinopla I lanccedilam base para as questotildees da trindade enquanto Eacutefeso e Calcedocircnia tratam com mais afinco a questatildeo da encarnaccedilatildeo7

1 NICEacuteIA (325)O Primeiro Conciacutelio Ecumecircnico foi convocado pelo Imperador Constantino

o Grande em 325 em 20 de maio O Conselho reuniu-se em Niceacuteia na proviacutencia de Bitiacutenia na Aacutesia Menor e foi formalmente aberto pelo proacuteprio Constantino O Conselho aprovou 20 cacircnones incluindo o Credo Niceno o Cacircnon das Escrituras Sagradas (Biacuteblia Sagrada) e estabeleceu a celebraccedilatildeo da Pascha (Paacutescoa)

Aleacutem dessas questotildees a pessoa de Cristo foi debatida nesse conciacutelio A prin-cipal heresia debatida foi o arianismo Aacuterio era padre em Alexandria e no iniacutecio do seacuteculo IV seu paradigma de pensamento cristatildeo estava ganhando forccedila8 Em uma carta escrita a Euseacutebio bispo de Nicomeacutedia em 321 Aacuterio advertiu

[] mas natildeo podemos dar ouvidos nem mesmo pensar em debelar estas heresias sem que nos ameacem com mil mortes Noacutes pensamos e afir-mamos como temos pensado e continuamos a ensinar que o Filho natildeo eacute ingecircnito nem participa absolutamente do ingecircnito nem derivou de alguma substacircncia mas que por sua proacutepria vontade e decisatildeo existiu antes dos tempos e era inteiramente Deus unigecircnito e imutaacutevel Mas antes de ter sido gerado ou criado ou nomeado ou estabelecido ele natildeo

5 GONZAacuteLEZ Justo L Uma Histoacuteria Ilustrada do Cristianismo - Volume 1 Ed Vida Nova6 GONZAacuteLEZ Justo L Op cit 7 ALBERIGO Giuseppe (Ed) Historia de los concilios ecumeacutenicos Siacutegueme 19938 HASBROUCK Ryan The First Four Ecumenical Councils as Ineffective Means to Control the Rise and Spread of Heterodox Christian Ideologies Dept of History University of Colorado 2009

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existia pois ele natildeo era ingecircnito Somos perseguidos porque afirmamos que o Filho tem um iniacutecio enquanto Deus eacute sem iniacutecio9

A premissa fundamental de Aacuterio era que ele deduzia uma concepccedilatildeo da absoluta unidade e transcendecircncia de Deus somente Deus eacute ldquoprinciacutepio natildeo geradordquo e a essecircncia da divindade natildeo pode ser dividida nem ser comunicada a outros mesmo que o que existe tenha sido chamado a ser a partir do nada Um dos slogans mais ceacutelebres e discutidos sobre o Logos consistia precisamente na afirmaccedilatildeo segundo a qual ldquohavia um tempo em que ele natildeo erardquo slogan que comprometia a unicidade de Deus10

Na visatildeo dos anti-arianos eacute da proacutepria natureza do Pai gerar o Filho o Pai nunca foi outro senatildeo o Pai portanto o Filho e o Pai devem ter existido desde toda a eternidade o Pai gerando eternamente o Filho A frase de vital impor-tacircncia na resposta ortodoxa ao arianismo era ldquode uma substacircncia (homoousios) com o Pairdquo Esta frase afirma que o Filho compartilha o mesmo ser que o Pai e portanto eacute totalmente divino11 Assim nasce o credo Niceno que combatia as principais heresias arianas aleacutem de definir questotildees cristoloacutegicas

Conforme a tradiccedilatildeo dos Evangelhos e dos Apoacutestolos noacutes cremos em um soacute Deus Pai todo poderoso autor criador e ordenador providente do universo de quem todas as coisas adquirem existecircncia E num soacute Senhor Jesus Cristo seu filho Deus unigecircnito mediante o qual tudo existe o qual foi gerado pelo pai antes de todas as eacutepocas Deus de Deus tudo de tudo uacutenico de uacutenico completo de completo rei de rei senhor de senhor [] e se algueacutem disser que o Filho eacute uma criatura como qualquer outra ou uma prole como qualquer outra ou uma obra como qualquer outra seja anaacutetema12

Portanto atraveacutes desse conciacutelio fica decidido que Jesus eacute Deus verdadeiro com a mesma essecircncia (consubstancial) Assim trecircs foram as decisotildees do con-ciacutelio a primeira ediccedilatildeo do credo niceno o termo homoousios (ομοούσιος) e a condenaccedilatildeo de Aacuterio A carta que condena Aacuterio e seus disciacutepulos satildeo bem claras ao anatematizar suas opiniotildees classificando-as como blasfemas e dementes13

Examinou-se de iniacutecio perante Constantino nosso soberano mui amado de Deus a impiedade e irregularidade de Aacuterio e de seus disciacutepulos De-

9 BETTENSON H Documentos da Igreja Cristatilde Carta de Aacuterio a Euseacutebio bispo de Nicomeacutedia (c321) ASTE Satildeo Paulo 2011 10 ALBERIGO Giuseppe Op Cit 11 DAVIS Leo Donald The first seven ecumenical councils (325-787) Their History and Theology Collegeville Minnesota The Liturgical Press 198312 BETTENSON H Op cit O credo de dedicaccedilatildeo (341) ndash Atanaacutesio 13 SCHMELING Gaylin R The Christology of the Seven Ecumenical Councils

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cidiu-se por unanimidade que devem ser anatematizadas suas opiniotildees iacutempias e todas as suas afirmaccedilotildees e expressotildees blasfematoacuterias tal como estatildeo sendo emitidas e divulgadas tais como ldquoo Filho de Deus eacute do que natildeo eacuterdquo ldquohouve [um tempo] quando natildeo existiardquo ou afirmaccedilatildeo de que Filho de Deus em virtude de seu livre arbiacutetrio eacute capaz do bem e do mal ou de que pode ser chamado de criatura ou de feitura Todas essas afirmaccedilotildees anatematizadas pelo santo Siacutenodo que natildeo tolera declaraccedilotildees tatildeo iacutempias tatildeo dementes e blasfematoacuterias14

Entre os apoiadores de Aacuterio podem-se contar Atanaacutesio bispo de Anazarbus Narciso de Neronias Euseacutebio de Cesareia e Asterius Dos anti-arianos podem ser citados os Grandes Capadoacutecios (Basiacutelio o Grande Gregoacuterio de Nazianzus - irmatildeo mais novo de Basiacutelio e Gregoacuterio de Nissa) e Atanaacutesio de Alexandria sendo este de grande importacircncia para a histoacuteria do conciacutelio que sucedeu o de Niceacuteia15

2 CONSTANTINOPLA (381)Atanaacutesio era secretaacuterio de Alexandre o Bispo de Alexandria Quando Ale-

xandre morreu Atanaacutesio foi eleito bispo de Alexandria Euseacutebio de Nicomeacutedia um dirigente ariano que possuiacutea contato direto com Constantino fez declaraccedilotildees sobre Atanaacutesio as quais levaram esse rei a decretar o exiacutelio de Atanaacutesio em Treacuteveris no Ocidente16

Constantino adoeceu e morreu no ano 337 logo em seguida o trono foi assu-mido por seu filho Constacircncio que revogou todos os exiacutelios e Atanaacutesio retornou a Alexandria A mudanccedila de lideranccedila teve um profundo impacto na controveacutersia ariana pois Constacircncio tambeacutem proacuteximo de Euseacutebio de Nicomeacutedia tornou-o bispo de Constantinopla e simpatizou-se com as visotildees arianas17 Tentando combater o arianismo Apolinaacuterio acabou se excedendo em seu pensamento razatildeo por que sua teoria tornou-se uma heresia

Apolinaacuterio alegou que o nous (mente alma) de Cristo era essencialmente o Logos (divino) em uma forma glorificada e espiritualizada da humanidade (seu corpo)18 Ele acreditava que o Logos havia substituiacutedo a alma de Jesus Por ter uma ideia opressiva da natureza divina de Jesus Apolinaacuterio cancelou a natureza

14 BETTENSON H Op cit Carta do Siacutenodo de Niceacuteia (325) ndash Condenaccedilatildeo de Aacuterio15 DIEgraveGUE Ricardo Op cit16 GONZAacuteLEZ Justo L Op cit17 RUBENSTEIN Richard When Jesus Became God The Struggle to Define Christianity during the Last Days of Rome Orlando Harcourt Inc 200018 ANDERSON William P A Journey through Christian Theology Minneapolis MN Fortress Press 2nd edition 2010

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humana de Jesus19 Isso se chama Monofisismo do grego monos ldquoapenas umardquo e physis ldquonaturezardquo e eacute a crenccedila de que como resultado da encarnaccedilatildeo a huma-nidade de Jesus foi tatildeo infundida por Sua divindade que Ele tinha apenas uma natureza divina20 Estava formado o palco para o segundo conciacutelio ecumecircnico

Atanaacutesio foi um dos maiores apologista de Cristo durante o conciacutelio de Constantinopla Para combater o apolinarismo ele argumentou que Jesus era simultaneamente homem e Deus A fim de evidenciar sua posiccedilatildeo mostrou que foi a encarnaccedilatildeo que permitiu que Jesus cumprisse Seu papel pretendido na Terra Colocando seu argumento em termos negativos Atanaacutesio estaria dizendo que se Jesus natildeo tivesse nascido de uma mulher e portanto habitado um corpo humano e vivido uma vida humana Ele natildeo poderia ter concedido salvaccedilatildeo agrave humanidade atraveacutes de Sua morte21

No comeccedilo de seus discursos Atanaacutesio natildeo usou muito o homoousios niceno mas gradualmente viu toda a implicaccedilatildeo desse conceito e se tornou seu defen-sor mais resoluto A semelhanccedila e a unidade do Pai e da Palavra natildeo podem consistir apenas em harmonia e concordacircncia de mente e vontade mas devem respeitar a essecircncia (ουσία) A divindade do Pai eacute idecircntica agrave divindade do Logos O Logos eacute diferente do Pai porque Ele veio do Pai mas como Deus o Logos e o Pai satildeo um e o mesmo O que eacute dito do Pai eacute dito do Filho exceto que o Filho natildeo eacute chamado Pai Pode-se dizer que os seres humanos satildeo homoousioi porque compartilham a natureza humana mas natildeo podem possuir uma mesma substacircncia (υπόστασις) idecircntica22

Esse eacute o ponto para o qual o credo foi direcionado a palavra Deus conota precisamente a mesma verdade quando vocecirc fala de Deus o Pai como acontece quando vocecirc fala de Deus o Filho Conota a mesma verdade Se vocecirc contempla o Pai que eacute uma apresentaccedilatildeo distinta da divindade obteacutem uma visatildeo mental do uacutenico Deus verdadeiro Se vocecirc contempla o Filho ou o Espiacuterito obteacutem uma visatildeo do mesmo Deus embora a apresentaccedilatildeo seja diferente a realidade eacute idecircnticardquo23

Creio em um soacute Deus Pai Todo-Poderoso criador do ceacuteu e da terra de todas as coisas visiacuteveis e invisiacuteveis Creio em um soacute Senhor Jesus Cristo

19 BELLITTO Christopher M The General Councils A History of the Twenty-One Church Councils from Nicaea to Vatican II Mahwah NJ Paulist Press 200220 JOHNSON Douglas W The Great Jesus Debates 4 Early Church Battles about the Person and Work of Jesus Saint Louis MO Concordia Publishing House 200521 HASBROUCK Ryan Op cit 22 DAVIS Leo Donald Op cit23 DAVIS Leo Donald Op cit

15TeoloacutegicaRevista Brasileira de Teologia ISSN 1807-7056 nordm 8 outdez Rio de Janeiro 2020 p 9-22

Filho Unigecircnito de Deus nascido do Pai antes de todos os seacuteculos Deus de Deus luz da luz Deus verdadeiro de Deus verdadeiro gerado natildeo criado consubstancial ao Pai Por ele todas as coisas foram feitas E por noacutes homens e para nossa salvaccedilatildeo desceu dos ceacuteus e se encarnou pelo Espiacuterito Santo no seio da Virgem Maria e se fez homem

A foacutermula proposta por Atanaacutesio resolveu temporariamente o dilema cris-toloacutegico que atormentava a igreja primitiva No entanto a maacute interpretaccedilatildeo do credo em uma capacidade diferente logo criou mais inquietaccedilatildeo e a necessidade de outro conselho ecumecircnico

3 EacuteFESO (431)Mesmo depois de Constantinopla I as questotildees voltaram a aparecer Como

poderia Jesus ser homem e Deus ao mesmo tempo Quais eram as implicaccedilotildees dessa afirmaccedilatildeo para Maria Era Jesus humano em algumas situaccedilotildees e Deus em outras Seria Maria matildee apenas da parte humana ou tambeacutem da parte divina Como fazer essa distinccedilatildeo24

O proacuteximo episoacutedio das controveacutersias cristoloacutegicas ocorreu por intermeacutedio de Nestoacuterio um partidaacuterio da escola de Antioquia que se tornou patriarca de Constantinopla em 428 Pelo fato de essa cidade ter sido declarada a capital do Impeacuterio Oriental Antioquia e Alexandria se tornaram rivais Cirilo que era bispo de Alexandria levantou-se para combater as ideias de Nestoacuterio25

O motivo imediato da controveacutersia foi o termo theotokos que era usado para Maria Theotokos geralmente traduzido por ldquomatildee de Deusrdquo literalmente quer dizer ldquogenitora de Deusrdquo Ao explicar sua oposiccedilatildeo a esse termo Nestoacuterio dizia que Deus em Jesus Cristo teria se unido a um ser humano Como Deus eacute uma pessoa e o ser humano eacute outra em Cristo devem estar presentes natildeo soacute duas naturezas mas tambeacutem duas pessoas O que nasceu de Maria foi a pessoa e natureza humana e natildeo a divina Por isso Maria eacute Christotokos (genitora de Cristo) e natildeo theotokos (genitora de Deus)26

Cirilo insistiu na unidade do divino e do humano a ponto de poder dizer que o Verbo sofreu por noacutes natildeo porque o divino sofreu (uma impossibilidade) mas que o divino e o humano se completaram na mesma pessoa27 As duas naturezas

24 BELLITTO Christopher M Histoacuteria dos 21 conciacutelios da Igreja de Niceacuteia ao Vaticano II Traduccedilatildeo de Claacuteudio Queiroz de Godoy Satildeo Paulo Loyola 201025 GONZAacuteLEZ Justo L Op cit26 GONZAacuteLEZ Justo L Op cit27 KELLY Joseph F

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que foram unidas a fim de formarem a verdadeira unidade (uniatildeo hipostaacutetica) eram diferentes mas de ambas houve um soacute Cristo e um soacute Filho Eacute nesse sentido que Cristo nasceu na expressatildeo biacuteblica da carne de mulher embora existisse e fosse gerado pelo Pai antes de todos os seacuteculos28

Cirilo escreveu doze anaacutetemas e enviou a Constantinopla juntamente com uma extensa carta que expunha sua doutrina Dentre os principais pontos eacute interessante ressaltar os pontos um e dois que falam sobre Maria e sobre a uniatildeo hipostaacutetica

Se algueacutem natildeo confessar que o Emanuel eacute verdadeiro Deus e que portan-to a Santa Virgem eacute Theotoacutekos porquanto deu agrave luz segunda a carne ao Verbo de Deus feito carne seja anaacutetema Se algueacutem natildeo confessar que o Verbo de Deus Pai estava unido pessoalmente [kathrsquohypoacutestasin] agrave carne sendo com ela propriamente um soacute Cristo ou seja um soacute e mesmo Deus e homem ao mesmo tempo seja anaacutetema29

Enquanto isso Nestoacuterio foi deposto e enviado a um mosteiro de Antioquia Mais tarde ele foi transferido para a distante cidade de Petra e por fim a um oaacutesis no deserto da Liacutebia onde passou o resto de seus dias30

4 CALCEDOcircNIA (451)Apoacutes o Conciacutelio de Eacutefeso o debate sobre as duas naturezas de Jesus estava

em andamento Eacute importante lembrar que com a Escola Alexandrina liderada por Cirilo a uniatildeo foi feita de tal maneira que o Logos substituiu a alma e portanto a divindade de Jesus submergiu agrave sua humanidade No entanto para a Escola de Antioquia a ldquouniatildeordquo foi feita com a distinccedilatildeo de ambas as naturezas que permaneceram separadas31

A controveacutersia cristoloacutegica de Eacutefeso culminou com a condenaccedilatildeo de Nestoacuterio e o seu envio para o exiacutelio No entanto quando Dioacutescoro substituiu Cirilo no patriarcado em Alexandria em 444 um novo embate estava para surgir Agora a heresia era liderada por Ecircutico um monge que morava em Constantinopla Os ideais pregados por Ecircutico eram apoiados por Dioacutescoro o que dava ao monge certa ousadia e arrogacircncia para falar Mal sabia ele que as intenccedilotildees de Dioacutescoro eram poliacuteticas ele esperava que Ecircutico fosse condenado no conciacutelio para poder ter uma causa a defender contra Flaviano o novo patriarca de Constantinopla32

28 BETTENSON H Op cit Exposiccedilatildeo de Cirilo29 BETTENSON H Op cit Anaacutetemas de Cirilo de Alexandria30 GONZAacuteLEZ Justo L Op cit31 BOKENKOTTER Thomas A Concise History of the Catholic Church New York DoubleDay 200432 GONZAacuteLEZ Justo L Op cit

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Dedicado agrave teologia de Cirilo e altamente ortodoxo Ecircutico comeccedilou a ensinar que antes da Encarnaccedilatildeo Cristo era de duas naturezas mas depois havia um Cristo um Filho um Senhor em uma hipoacutestase Ele repudiou a existecircncia de duas naturezas apoacutes a Encarnaccedilatildeo em oposiccedilatildeo agraves Escrituras e ao ensino dos Pais33

ldquoEu adorordquo ele insistiu ldquouma natureza a de Deus que se fez carne e se tornou homemrdquo No entanto admitiu que Cristo nasceu da Virgem portanto era subs-tancial conosco (humanos) e era Deus perfeito e homem perfeito No entanto a carne de Cristo natildeo era na opiniatildeo de Ecircutico consubstancial agrave carne humana comum mas reconheceu que a humanidade de Cristo era plena sem falta de uma alma racional como era para os apolinaristas A humanidade de Cristo tambeacutem natildeo era uma mera aparecircncia como era para os docetistas tampouco a Palavra e a carne foram fundidas em uma natureza mista Ainda assim ele repetiu obstinadamente que Cristo era de duas naturezas antes da Encarnaccedilatildeo e de apenas uma depois da encarnaccedilatildeo34

Leatildeo o grande foi o principal defensor da ortodoxia no conciacutelio de Calcedocirc-nia e sua defesa gerou o Tomo de Leatildeo A definiccedilatildeo desse conciacutelio portanto pode ser vista como proposiccedilotildees apologeacuteticas aos pensamentos do eutiquianismo

Fieacuteis aos santos pais todos noacutes perfeitamente unanimes ensinamos que se deve confessar um soacute e mesmo Filho nosso Senhor Jesus Cristo perfei-to quanto agrave divindade e perfeito quanto agrave humanidade verdadeiramente Deus e verdadeiramente homem constando de alma racional e de corpo consubstancial [homooysios] ao Pai segundo a divindade e consubstan-cial a noacutes segundo a humanidade ldquoem todas as coisas semelhante a noacutes excetuando o pecadordquo gerado segundo a divindade antes dos seacuteculos pelo Pai e segundo a humanidade por noacutes e para nossa salvaccedilatildeo gerado da Virgem Maria matildee de Deus [Theotoacutekos] Um soacute e mesmo Cristo Filho Senhor Unigecircnito que se deve confessar em duas naturezas inconfundiacuteveis e imutaacuteveis conseparaacuteveis e indivisiacuteveis A distinccedilatildeo de naturezas de modo algum eacute anulada pela uniatildeo mas pelo contraacuterio as propriedades de cada natureza permanecem intactas concorrendo para formar uma soacute pessoa e subsistecircncia [hypoacutestasis] natildeo dividido ou separado em duas pessoas mas um soacute e mesmo Filho Unigecircnito Deus Verbo Jesus Cristo Senhor conforme os profetas outrora a seu respeito testemunharam e o mesmo Jesus Cristo nos ensinou e o credo dos pais nos transmitiu 35

33 DAVIS Leo Donald Op cit34 DAVIS Leo Donald Op cit35 BETTENSON H Op cit A definiccedilatildeo de Calcedocircnia (451)

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5 CONSTANTINOPLA II (553)O periacuteodo poacutes Calcedocircnia foi muito parecido com o de Niceacuteia em ambos os

conciacutelios uma soluccedilatildeo basicamente ocidental para um problema oriental havia sido introduzida na dieta teoloacutegica do Oriente Depois dos dois conciacutelios o Oriente empreendeu muito tempo e esforccedilo para digerir e assimilar tudo o que ficou decidido No caso de Niceacuteia o mundo romano gradualmente aceitou seu credo O arianismo permaneceu firme entre as tribos alematildes por um tempo mas muito lentamente sucumbiu a Niceacuteia No caso de Eacutefeso e Calcedocircnia seccedilotildees do mundo romano e aleacutem entraram em cisma em vez de aceitar suas decisotildees e assim continuam ateacute os nossos dias O conciacutelio de Constantinopla II foi um esforccedilo para mostrar aos (ateacute entatildeo) monofisitas cismaacuteticos que Calcedocircnia realmente preservava os valores teoloacutegicos36

Quando Justino morreu em 527 seu sobrinho Justiniano assumiu o impeacuterio Bizantino com o principal ideal de unir o impeacuterio No entanto ele precisaria reunificar uma igreja dividida pela questatildeo cristoloacutegica Justiniano achava que o conciacutelio de Calcedocircnia tinha se pronunciado corretamente com respeito agraves naturezas de Cristo mas ao mesmo tempo percebia que os monofisitas mais moderados tinham razatildeo ao apontar para os perigos que essa doutrina poderia trazer consigo 37

Assim o conciacutelio foi solicitado e aconteceu em 5 de maio de 553 no grande salatildeo anexo ao palaacutecio patriarcal em Constantinopla Estavam presentes os representantes do patriarca de Jerusaleacutem todos os 151 a 168 bispos incluindo seis a nove da Aacutefrica38

O objetivo de convocar o conciacutelio de Constantinopla II foi o de condenar as obras de trecircs homens a saber Teodoro de Mopsueacutestia Teodoreto de Cyr e Ibas de Edessa que tiveram suas declaraccedilotildees individuais agrupadas e chamadas de ldquotrecircs capiacutetulosrdquo Eles foram acusados de simpatizarem com o nestorianismo e de favorecerem o monofisismo ao afirmar que Jesus tinha uma soacute natureza o divino sobrepujando o humano Os ldquocapiacutetulosrdquo foram condenados nesse conciacutelio 39

Se algueacutem natildeo reconhece a uacutenica natureza ou substacircncia (oysia) do Pai Filho e Espiacuterito Santo sua uacutenica virtude e poder uma Trindade consubs-tancial seja anaacutetema Porque existe um soacute Deus e Pai do qual procedem

36 DAVIS Leo Donald Op cit37 GONZAacuteLEZ Justo L Op cit38 DAVIS Leo Donald Op cit39 BELLITTO Christopher M Op cit

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todas as coisas e um soacute Senhor Jesus Cristo atraveacutes do qual satildeo todas as cosias e um soacute Espiacuterito Santo no qual estatildeo todas as coisas 40

Portanto o Conciacutelio de Constantinopla II esclareceu mais uma vez os ensi-namentos da Igreja sobre as duas naturezas de Jesus unidas hipostaticamente em uma soacute pessoa Os padres natildeo soacute condenaram os hereacuteticos e as heresias como tambeacutem os que simpatizavam com elas 41

6 CONSTANTINOPLA III (680-681)Em 7 de novembro de 680 o conciacutelio de Constantinopla III abriu em uma

grande sala abobadada - o Trullus - no palaacutecio imperial com apenas quarenta e trecircs bispos presentes O proacuteprio imperador abriu o conciacutelio e presidiu as onze primeiras sessotildees O conciacutelio teve dezoito sessotildees separadas por longos inter-valos ateacute 16 de setembro de 68142

Os legados papais comeccedilaram exigindo que o clero de Constantinopla expli-casse seus ensinamentos sobre monoenergismo e monotelismo A convite do imperador Jorge de Constantinopla e Macaacuterio de Antioquia responderam que eles ensinavam apenas doutrinas definidas pelos conselhos Seguiu-se a leitura dos atos dos Conciacutelios de Eacutefeso Calcedocircnia e Constantinopla II43

O patriarca Seacutergio de Constantinopla depois de tentar sem sucesso vaacuterias maneiras de aproximar-se dos monofisitas propocircs a doutrina chamada de ldquomo-notelismordquo Essa palavra vem das raiacutezes gregas mono (um) e thelema (vontade) O que Seacutergio propunha eacute que em Cristo ao mesmo tempo em que havia duas naturezas a divina e a humana como o concilio de Calcedocircnia declarara havia uma soacute vontade Ao que parece o que Seacutergio queria dizer era que em Cristo natildeo havia outra vontade aleacutem da divina Quando perguntaram ao papa Honoacuterio o que ele pensava da foacutermula de Seacutergio o papa a aprovou Poreacutem a oposiccedilatildeo em vaacuterias regiotildees do Impeacuterio natildeo demorou a se manifestar 44

O teoacutelogo que mais se distinguiu nesse sentido foi Maacuteximo de Crisoacutepolis que eacute conhecido por Maacuteximo ldquoo Confessorrdquo Mais tarde em 648 a oposiccedilatildeo ao monotelismo chegou a tal ponto que o imperador Constante II proibiu qualquer discussatildeo sobre se em Cristo havia uma ou duas vontades Quando o imperador promulgou essa proibiccedilatildeo o Impeacuterio tinha perdido o interesse de se aproximar

40 BETTENSON H Op cit Os ldquotrecircs capiacutetulosrdquo ndash Os cacircnones do segundo conciacutelio de Constantinopla (553)41 BELLITTO Christopher M Op cit42 DAVIS Leo Donald Op cit43 GONZAacuteLEZ Justo L Op cit44 GONZAacuteLEZ Justo L Op cit

20 TeoloacutegicaRevista Brasileira de Teologia ISSN 1807-7056 nordm 8 outdez Rio de Janeiro 2020 p 9-22

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dos monofisitas Siacuteria e Egito as regiotildees do Impeacuterio onde o monofisismo tinha a maior parte dos seus adeptos haviam sido conquistadas pouco antes pelos aacuterabes Tal fato significaria que a partir de entatildeo a corte de Constantinopla em vez de se preocupar com a boa vontade dos monofisitas de Egito e Siacuteria tinha de melhorar as suas relaccedilotildees com os cristatildeos calcedonenses que eram a maioria tanto nos territoacuterios que ainda pertenciam ao Impeacuterio como no Ocidente45

Em consequecircncia o sexto conciacutelio ecumecircnico que se reuniu em Constanti-nopla em 680 e 681 condenou o monotelismo e reafirmou a Definiccedilatildeo de feacute de Calcedocircnia Entre os monotelitas condenados especificamente pelo conciacutelio es-tava o papa Honoacuterio O caso de um papa condenado nominalmente como herege por um conciacutelio ecumecircnico foi uma das dificuldades que os catoacutelicos tiveram de enfrentar quando no seacuteculo XIX conseguiram que o conciacutelio Vaticano I promulgasse a infalibilidade papal46

7 NICEacuteIA II (787)A uacuteltima grande controveacutersia que atingiu a igreja durante o periacuteodo aqui

estudado (ateacute o seacuteculo VIII) questionava o uso de imagens no culto puacuteblico A igreja cristatilde antiga parecia natildeo se opor ao uso delas para decoraccedilatildeo como imagens alusivas a episoacutedios da Biacuteblia No entanto quanto mais pagatildeos se con-vertiam mais os liacutederes temiam que as imagens levassem agrave praacutetica da idolatria Alguns no entanto reforccedilavam o valor das imagens como ldquolivros iletradosrdquo uma vez que muitos natildeo sabiam ler Assim surgiram dois partidos que receberam o nome de ldquoiconoclastasrdquo (destruidores de imagens) e ldquoiconodulosrdquo (adoradores de imagens) 47

Os iconoclastas se baseavam em passagens biacuteblicas que proiacutebem a idolatria como Ecircxodo 204-5 Os iconodulos por sua vez relacionaram a discussatildeo com as controveacutersias cristoloacutegicas dos seacuteculos anteriores

A razatildeo pela qual eacute possiacutevel representar os misteacuterios divinos atraveacutes de imagens eacute que em Cristo o proacuteprio Deus nos deu sua imagem Natildeo deixar representar a Cristo equivaleria a negar a sua humanidade Se Cristo foi homem deve ser possiacutevel representaacute-lo assim como qualquer outro ho-mem pode ser representado Aleacutem disso o primeiro criador das imagens foi o proacuteprio Deus ao criar a humanidade agrave sua imagem48

45 GONZAacuteLEZ Justo L Op cit46 BELLITTO Christopher M Op cit47 GONZAacuteLEZ Justo L Op cit48 GONZAacuteLEZ Justo L Op cit

21TeoloacutegicaRevista Brasileira de Teologia ISSN 1807-7056 nordm 8 outdez Rio de Janeiro 2020 p 9-22

Embora os bispos tivessem sido notavelmente longiacutenquos em seus debates eles foram bastante concisos em seu decreto Eles disseram que Cristo nos livrou da loucura idoacutelatra e sempre continua sustentando Sua Igreja mas alguns mes-mo os sacerdotes se desviaram deixando de ldquodistinguir entre santo e profano estilizando as imagens de Nosso Senhor e de Seus santos da mesma maneira como as estaacutetuas dos iacutedolos diaboacutelicosrdquo Os bispos acrescentaram a aceitaccedilatildeo dos seis conciacutelios ecumecircnicos anteriores especialmente o que se encontrava ldquona ilustre metroacutepole de Niceacuteiardquo49

Em seguida eles mantiveram inalteradas todas as tradiccedilotildees eclesiaacutesticas que foram transmitidas por escrito ou verbalmente uma das quais eacute a realizaccedilatildeo de representaccedilotildees pictoacutericas agradaacuteveis agrave histoacuteria da pregaccedilatildeo dos Evangelhos uma tradiccedilatildeo uacutetil em muitos aspectos mas especialmente em que a encarnaccedilatildeo da Palavra de Deus eacute mostrada como real e natildeo meramente fantaacutestica50 Em resumo o uso das imagens foi restaurado para veneraccedilatildeo (dulia) mas natildeo para adoraccedilatildeo (latria)51

CONSIDERACcedilOtildeES FINAISDiante de inuacutemeras controveacutersias e debates eacute interessante perceber como cada

decisatildeo tomada nos conciacutelios ajudou a entender temas cristoloacutegicos Percebe-se que desde o iniacutecio existe uma tentativa de explicar e sistematizar a natureza de Cristo de definir em quais momentos seu lado humano eou divino esteve em accedilatildeo As heresias debatidas foram importantes para que as respostas levantadas pela Igreja formassem ou pelo menos ajudassem a formar o pensamento que temos hoje sobre quem eacute Cristo e sua natureza Eacute inevitaacutevel que temas adja-centes aparecessem como a proacutepria natureza de Maria e a adoraccedilatildeo a imagens Estudar esse recorte da histoacuteria do cristianismo eacute portanto fundamental para compreender o pensamento da Igreja daqueles seacuteculos e qual a visatildeo que se tinha sobre quem eacute Jesus

O exerciacutecio mental que pode aqui ser realizado eacute o de comparar as mentali-dades e tentar perceber se muita coisa mudou em relaccedilatildeo aos nossos dias Outro exerciacutecio que pode ser feito eacute avaliar o quanto esse conjunto de pensamento do seacuteculo VIII nos influencia hoje

49 BELLITTO Christopher M Op cit50 BELLITTO Christopher M Op cit51 WILLIAMS Terri Cronologia da Histoacuteria Eclesiaacutestica em graacuteficos e mapas Satildeo Paulo Vida Nova 1993

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O LIVRO DE JONAS E O ARREPENDIMENTO VERDADEIRO NA BIacuteBLIA E NA ATUALIDADE

Evelise Cavalcanti52

Teresa Akil53

RESUMO O presente artigo busca analisar a relaccedilatildeo de instabilidade do homem com

o divino atraveacutes da obediecircncia e desobediecircncia desse homem em relaccedilatildeo a Deus bem como ao pecado Analisa-se o reflexo primordial de desobediecircncia a Deus na parte introdutoacuteria do Livro de Jonas contemplando o pecado em si e o relacionamento de Jonas com Deus para que seja pautada e estruturada a misericoacuterdia divina na vida desse profeta A partir dessa concepccedilatildeo busca-se refletir acerca da instabilidade do homem em relaccedilatildeo a Deus na Biacuteblia e na atualidade para traccedilar paracircmetros para que seja aprofundado o arrependimento verdadeiro do ser humano a partir da anaacutelise de Jonas e Davi

Palavras-chave Livro de Jonas Desobediecircncia ao divino Duacutevida Culpa Arrependimento verdadeiro

ABSTRACTThis scientific article seeks to analyze the relationship of manrsquos instability

with the divine through manrsquos obedience and disobedience in relation to God as well as sin In this study the primary reflection of disobedience to God is analyzed in the introductory part of the Book of Jonah contemplating sin itself and Jonahrsquos relationship with God so that divine mercy in Jonah is guided and structured From this conception we seek to reflect on the instability of man in relation to God in the Bible and nowadays to outline parameters so that the true repentance of the human being is deepened based on the analysis of Jonas and David

Keywords Book of Jonah Disobedience to the divine Doubt Guilt True repentance

52 Graduada em Direito (Unifeso)) Graduada em Teologia (Faceten) Poacutes-graduada em Exegese e Interpretaccedilatildeo da Biacuteblia (Fabat) em Histoacuteria de Israel (Kennedy) em Direito Processual Civil (Unican) 53 Doutora em Teologia (PUC-Rio) Mestre em Teologia Biacuteblica (STBSB) Graduada em Teologia (Faculdade Batista do Paranaacute) e em Comunicaccedilatildeo Social (Universidade Estaacutecio de Saacute) Docente das disciplinas da aacuterea biacuteblica (Antigo Testamento) e Exegese coordenadora do Grupo de Estudo e Pesquisa Biacuteblica nas Tradiccedilotildees de Israel

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INTRODUCcedilAtildeO A histoacuteria de Jonas tem sido contada desde a antiguidade Natildeo eacute incomum

encontrarmos em classes infantis ou nas mais altas patentes teoloacutegicas discus-sotildees calorosas sobre as peculiaridades desse personagem tatildeo conhecido

Vaacuterias abordagens tecircm sido temas infindaacuteveis de duacutevidas seria possiacutevel um homem permanecer trecircs dias na barriga de um peixe Seria uma baleia Em que eacutepoca se passou Seria Jonas um profeta desobediente e insensiacutevel Enfim vaacuterias questotildees pertinentes afloram em nosso entendimento

A mais importante e contextualizada questatildeo natildeo se trata da possibilidade material ou emocional da situaccedilatildeo A importacircncia espiritual da histoacuteria tatildeo bem narrada em um dos menores livros da Biacuteblia traz-nos a reflexatildeo sobre a limitaccedilatildeo do homem em qualquer eacutepoca de ser avaliado quanto ao seu verda-deiro arrependimento

A Biacuteblia narra diversos momentos nos mais antigos textos em que os povos inclusive o povo escolhido natildeo conseguiram se manter firmes aos mandamentos de YHWH Em Niacutenive nos parece natildeo ter sido diferente No momento em que a matildeo de Deus mostrou-se pesada o rei se humilha e recebe o perdatildeo poreacutem natildeo mais que uma geraccedilatildeo apoacutes esse mesmo povo se mostra como inimigo mortal de Israel

Haveria acontecido um verdadeiro arrependimento ou o medo e a derrota certa teriam levado os ninivitas a um momentacircneo reconhecimento de seu erro e a uma consequente submissatildeo forccedilada pela situaccedilatildeo Para as consideraccedilotildees e conclusotildees precisamos entender um pouco desse povo e de todo contexto que o envolve

1 JONAS EacutePOCA HISTOacuteRIA AUTORIAJonas eacute descrito de formas diferentes de acordo com a visatildeo de teoacutelogos

diversos Bazioli (2011 p 3) por exemplo descreve Jonas como ldquoo mais estra-nho dos profetasrdquo mas com uma mensagem que produzira efeitos ateacute mesmo naqueles que natildeo o ouviram diretamente Para o autor Jonas fora o mais bem sucedido pregador com um sermatildeo que impactava apenas por meio de palavras Na Biacuteblia conforme enunciado por Alencar (2010) o livro de Jonas faz parte da coleccedilatildeo de livros profeacuteticos situando-se entre os livros de Abdias e Miqueias

Natildeo haacute um consenso absoluto acerca da autoria do livro de Jonas uma vez que o livro natildeo declara o nome do autor Entretanto haacute a tese bastante aceita e estabelecida nos estudos de Erthal et al (2002 p 35) de que ldquoembora o livro

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natildeo declare o nome do autor seguramente foi o proacuteprio Jonas quem o escreveurdquo Para os autores Jonas tem o nome que significa ldquopombordquo sendo apresentado como filho de Amitai Nascera em Gate-Efer cidade situada proacutexima a Nazareacute

Alencar (2010 p 7) por sua vez aponta que eacute impossiacutevel precisar de quem fora a autoria do livro de Jonas visto que na eacutepoca um dos grupos responsaacuteveis pela educaccedilatildeo eram os sacerdotes cuja obrigaccedilatildeo consistia em ensinar ao povo a instruccedilatildeo como uma lei relacionada ao culto e sacrifiacutecio ldquoO autor do livro de Jonas pode ter sua origem entre os saacutebios de Israel pois conhecia bem a tradiccedilatildeo de seu povo bem como a de outros povos Ele devia manter contato com estrangeiros e os considerava com bons olhosrdquo

Para que seja possiacutevel compreender e aprofundar conhecimentos acerca de Jonas e do livro que recebeu o seu nome torna-se indispensaacutevel refletir acerca do contexto histoacuterico do mesmo Dasilva (2003) leciona que o livro de Jonas fora escrito um seacuteculo antes de Jesus proferir as palavras registradas em Mateus 1239-40 no relato de como Deus enviara um profeta judeu para levar sua mensagem de salvaccedilatildeo para uma naccedilatildeo gentiacutelica a Assiacuteria com a capital Niacutenive que possuiacutea uma populaccedilatildeo de mais de 120000 homens O autor ainda complementa que

A histoacuteria de Jonas tatildeo conhecida pela menor crianccedila da Escola Domi-nical eacute geralmente contextualizada e limitada ao milagre do profeta subsistir dentro do ventre de um grande peixe por trecircs dias e trecircs noites ou ao fator de sua desobediecircncia Este livro no entanto natildeo tem como prioridade mostrar a Jonas o peixe sua pregaccedilatildeo ou o povo de Niacutenive Ele guarda na sua linda histoacuteria revelaccedilotildees sobre a pessoa e caraacuteter de Deus O livro foi escrito para revelar um Deus que estaacute sobre noacutes que cuida que orienta que ama e que caminha conosco (DASILVA 2003 p 1)

Fabio (1991) aponta que Jonas vivera em um periacuteodo no qual Israel corria gra-ve risco de ser extinto como naccedilatildeo O autor aponta que em II Reis 1427 ldquoAinda natildeo falara o Senhor em apagar o nome do Israel de debaixo do ceacuteurdquo mas estava perto de tomar tal decisatildeo Na eacutepoca a pobreza era uma marca da sociedade e natildeo havia nem um homem escravizado nem um homem livre As classes sociais estavam praticamente unificadas com o desaparecimento completo da classe meacutedia e a diminuiccedilatildeo significativas da riqueza privada

Paradoxalmente era tremenda a expansatildeo militar e Israel atingira um niacutevel bastante estaacutevel de seguranccedila nacional Percebemos isso em II Reis 142528 atraveacutes das palavras ldquorestabeleceurdquo e ldquoconquistourdquo presentes no

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texto Estaacute dito ali que Jeroboatildeo II restabelece as fronteiras e conquista espaccedilos pela via das forccedilas armadas enquanto isso a anguacutestia social do povo era horriacutevel Natildeo havia o menor vislumbre ou esperanccedila de mu-danccedilas radicais pois natildeo se contava com ningueacutem que socorresse Israel (II Reis 1426) Em consequecircncia de tal situaccedilatildeo Jonas se transformou num profeta extremamente politizado por conseguinte ideologizado Ele tinha consciecircncia por exemplo de que nos seus dias a grande ameaccedila para Israel era a Assiacuteria cuja capital era Niacutenive (FABIO 1991 p 4-5)

Ora Jonas natildeo vivera e sua histoacuteria natildeo fora contada em um periacuteodo de prosperidade Niacutenive era considerada uma grande ameaccedila para Israel assim como a Assiacuteria em geral Erthal et al (2002) apontam que o tema do livro de Jonas concentra-se na misericoacuterdia divina Jonas eacute chamado por Deus para advertir Niacutenive sobre os fatos que seriam consumados como consequecircncia de seus pecados o principal propoacutesito de Deus nesse sentido era demonstrar a Israel e agraves naccedilotildees a magnitude da Sua misericoacuterdia e a Sua accedilatildeo atraveacutes da pregaccedilatildeo do arrependimento

Para Alencar (2010) Jonas eacute chamado por Deus para anunciar a conversatildeo na capital Niacutenive que se encontrava fora das fronteiras com Israel um reflexo do nacionalismo exclusivista do povo de Israel no poacutes-exiacutelio fundamentado na concepccedilatildeo de povo eleito e na visatildeo de Jerusaleacutem como o uacutenico lugar onde Deus manifestava-se Trata-se da comunicaccedilatildeo de Deus aleacutem da visatildeo do povo de Jerusaleacutem fazendo uso de Jonas como um instrumento de conversatildeo

Antes de aprofundar conhecimentos acerca da histoacuteria do livro de Jonas tendo-se jaacute abordado acerca da autoria desse livro cumpre aprofundar conhe-cimentos sobre a eacutepoca atribuiacuteda ao mesmo Ainda segundo Alencar (2010) a narrativa do livro de Jonas natildeo oferece nenhuma evidecircncia que possibilite datar o livro A existecircncia de um profeta que vivera sob o nome Jonas no seacuteculo XVIII natildeo representa que o livro tenha sido escrito nessa eacutepoca Para o autor existem elementos que sugerem uma dataccedilatildeo tardia ao livro de Jonas quais sejam

bull Vaacuterias palavras de origem aramaica satildeo observadas na narrativa de Jonas O aramaico tornara-se liacutengua oficial no periacuteodo persa As palavras que designam os marinheiros e o navio (Jonas 1 5) e o decreto do rei de Niacutenive (Jonas 37) advecircm da liacutengua aramaica

bull A histoacuteria de Jonas conforme observado em Jonas (3 7-8) faz alusatildeo aos costumes persas como por exemplo a participaccedilatildeo de animais nos rituais de penitecircncia

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bull Niacutenive era identificada como capital da Assiacuteria no tempo de Jonas de modo que a cidade soacute se tornara importante no templo de Senaqueribe em 704 aC O rei seria tratado como rei da Assiacuteria e natildeo rei de Niacutenive

bull Natildeo haacute influecircncia no livro de Jonas da eacutepoca heleniacutestica do tempo de Ale-xandre Magno e de seus sucessores como tambeacutem natildeo aparecem conflitos com samaritanos nem mesmo questotildees envolvendo casamentos com mulheres estrangeiras

Esses elementos segundo Alencar (2010 p 8) natildeo satildeo suficientes para que se precise a data na qual fora escrito o livro de Jonas entretanto ldquoeacute possiacutevel afirmar que o livro tenha sido escrito no final do seacuteculo IV ou no iniacutecio do seacuteculo III aC no periacuteodo persardquo

Segundo Dasilva (2003) Deus ordenou que Jonas se levantasse e fosse para a grande cidade de Niacutenive Jonas teria dito ldquonatildeordquo a Deus sabendo que a Assiacuteria era uma inimiga terriacutevel de Israel Na verdade ele temia que Niacutenive se arre-pendesse e fosse poupada por Deus da puniccedilatildeo e condenaccedilatildeo iminente Caso Niacutenive caiacutesse Israel de Jonas escaparia de suas investidas e de seus ataques assim convocado por Deus ele fugiu

Erthal et al (2002) apontam que logo que Jonas fugiu tomando um navio para Taacutersis Deus passou a agir mandando forte vento sobre o mar e criando uma grande tempestade Jonas dormia no poratildeo do navio e o capitatildeo perguntou-lhe por qual motivo dormia enquanto o medo e o pavor tomavam conta dos tripu-lantes que clamavam aos deuses pelo livramento O versiacuteculo seis do primeiro capiacutetulo do livro relata que Jonas tambeacutem clama a Deus

Os tripulantes do navio ficaram indignados quando Jonas responde que era hebreu que servia ao Deus do ceacuteu mas que estava fugindo dEle (18- 10) Por causa de sua atitude Jonas foi obrigado a enfrentar as con-sequumlecircncias e acabou por confessar sua transgressatildeo ldquoE ele lhes disse Levantai-me e lanccedilai-me ao mar e o mar se aquietaraacuterdquo (112) Jonas se sentia nesse momento culpado por ter desobedecido a Deus e por colocar a vida da tripulaccedilatildeo em perigo Apanharam Jonas e o lanccedilaram ao mar A tempestade parou milagrosamente (11415) O resultado contrastante nesta situaccedilatildeo foi a conversatildeo da tripulaccedilatildeo ldquoTemeram pois estes ho-mens ao Senhor com grande temor e ofereceram sacrifiacutecios ao Senhor e fizeram votosrdquo (116) (ERTHAL et al 2002 p 37)

O clamor de Jonas apesar de sua rebeldia fora atendido Jonas mostrou-se sincero e temente a Deus pedindo misericoacuterdia divina e livramento ou seja

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que sua vida fosse poupada Deus providenciou um grande peixe para salvar a vida de Jonas deixou-o vivo por trecircs dias dentro do ventre daquele peixe Em Jonas 210 observam-se sete milagres divinos a tempestade a sorte de Jonas a calmaria do mar o grande peixe a sobrevivecircncia de Jonas o peixe conduzido ateacute a praia e o fato de o peixe ter vomitado Jonas em terra seca por ordem divina (FABIO 1991)

Ora a noccedilatildeo principal do livro de Jonas diz respeito justamente agrave misericoacuterdia divina Deus pune na mesma medida em que salva Deus aproxima-se de seus filhos mesmo quando estes fogem desde que se arrependam verdadeiramente Essa eacute a concepccedilatildeo fundamental do livro de Jonas

2 EPISOacuteDIOS QUE DEMONSTRAM A OSCILACcedilAtildeO DA OBE-DIEcircNCIA E DESOBEDIEcircNCIA A DEUS AO LONGO DA ERA BIacute-BLICA

Jonas eacute apenas um exemplo da oscilaccedilatildeo entre a obediecircncia e desobediecircncia a Deus ao longo do percurso biacuteblico Esta parte do estudo relata outros episoacutedios biacuteblicos nos quais se verifica essa oscilaccedilatildeo

Talvez o mais conhecido episoacutedio que elucida tal questatildeo seja o de Gecircnesis quando Deus concedera tudo a Adatildeo menos que ele provasse o fruto da aacutervore do conhecimento do bem e do mal deixando claro que se ele comesse esse fruto certamente morreria (Gecircnesis 2 17) Deus ainda que misericordioso puniu Adatildeo lanccedilando-o para fora do jardim do Eacuteden para lavrar a terra da qual fora tomado (Gecircnesis 3 23)

Esse episoacutedio de Gecircnesis eacute um dos principais exemplos biacuteblicos acerca do arrependimento agrave desobediecircncia diante de Deus Em Romanos 519 tem-se que pela desobediecircncia de um soacute homem muitos foram feitos pecadores assim como pela obediecircncia de um muitos seratildeo constituiacutedos justos

A oscilaccedilatildeo entre a obediecircncia e a desobediecircncia a Deus tambeacutem eacute abordada em Romanos No versiacuteculo 30 do capiacutetulo 11 do livro tem-se que ldquoPois assim como voacutes outrora fostes desobedientes a Deus mas agora alcanccedilastes miseri-coacuterdia pela desobediecircncia delesrdquo Ora Deus natildeo premia os que obedecem apoacutes a desobediecircncia mas sim eacute misericordioso pelo arrependimento genuiacuteno e sincero

3 ATUALIDADE ALGUNS EPISOacuteDIOS EM NOSSA VIDA ATUAL QUE DEMONSTRAM A INSTABILIDADE DO SER HUMANO EM PERMANECER FIEL A DEUS

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O ser humano eacute falho e imperfeito por natureza Entretanto natildeo foi soacute nos tempos biacuteblicos que o homem demonstrou dificuldades em permanecer fiel e obediente a Deus De fato tal instabilidade tem sido observada durante toda a histoacuteria humana e pode ser amplamente observada em nossa conduta na atualidade Esta parte do estudo procura demonstrar e exemplificar esse fato

O primeiro mandamento biacuteblico propotildee que o homem ame a Deus sobre todas as coisas Entretanto observa-se que o ser humano em muito afasta-se de Deus Os constantes estiacutemulos e os desejos de acumular riqueza por parte do ser humano satildeo exemplos de elementos que afastam o homem de Deus Por vezes o homem daacute importacircncia demasiada ao dinheiro colocando-o como prioridade em sua vida acima de Deus ou ainda orando a Deus tatildeo somente pedindo riqueza material e natildeo riqueza espiritual

Ora nem mesmo o primeiro mandamento biacuteblico eacute uma tarefa faacutecil de ser alcanccedilada pelos servos de Deus Como natildeo eacute objeto de ostentaccedilatildeo Deus acaba sendo ldquodeixado de ladordquo pelas pessoas que passam a buscar sobretudo a riqueza material e a estabilidade financeira desalinhando-se dos preceitos e princiacutepios divinos

A principal fonte de instabilidade do homem em relaccedilatildeo agrave fidelidade a Deus satildeo os estiacutemulos presentes em nossa sociedade O dinheiro e a ideia de acuacutemulo da riqueza satildeo apenas alguns fatores que afastam o homem de Deus A sexualidade eacute outro exemplo claro de estiacutemulo que torna o homem infiel e desobediente aos olhos divinos

De fato o sexo tornou-se um produto de consumo na atualidade Consumir e almejaacute-lo de maneira desenfreada e irrestrita eacute caracteriacutestico da sociedade O sexo eacute objeto de desejo nos filmes muacutesicas revistas e amplamente presente no mundo virtual na internet como um todo O homem eacute ludibriado em um mundo que respira sexo natildeo mantendo a integridade sexual almejada por Deus peca constantemente contra a sexualidade cobiccedilando tambeacutem a mulher do proacuteximo

Todos os mandamentos de Deus podem ser colocados como desafios ou obstaacuteculos para que o homem permaneccedila fiel a Ele em diferentes niacuteveis O homem pecador por natureza cria obstaacuteculos em sua conduta diaacuteria caindo constantemente em tentaccedilatildeo de maneira semelhante a Adatildeo que sucumbiu agrave tentaccedilatildeo de contrariar a uacutenica imposiccedilatildeo que lhe fora feita por Deus

A cobiccedila eacute um dos grandes problemas enfrentados pelo homem para manter um relacionamento com Deus Natildeo se refere aqui apenas agrave cobiccedila desenfreada pelo dinheiro e pelo sexo mas tambeacutem pelas coisas alheias Os homens desejam

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o poder e o conseguem por meio do erro e do pecado A televisatildeo por exemplo vende a ideia daquelas vidas perfeitas dos bem sucedidos provocando que o homem cobice os bens e a proacutepria vida de terceiros desconsiderando-se a si proacuteprio e ao seu relacionamento iacutentimo com Deus

Entretanto o homem temente a Deus arrepende-se constantemente Confessa o seu pecado mas volta rapidamente a pecar sucumbindo aos mesmos erros que o fizeram pecar em outro momento novamente almeja o poder o sexo a riqueza financeira Deseja intensamente tudo aquilo que natildeo tem

Para suprir essa alarmante necessidade o homem faz uso de todos os meios e mecanismos possiacuteveis muitas vezes pouco se importando se atendecirc-los significa estar ainda mais distante do divino Roubar eacute uma praacutetica comum em nossa sociedade natildeo somente para sustentar um viacutecio em substacircncia mas tambeacutem pelo simples ideal de acumular riquezas uma praacutetica tatildeo repreendida por Deus

Assim o homem se vecirc diante de todo um contexto desfavoraacutevel para se manter fiel a Deus De fato a sociedade jaacute haacute muito tempo tem se afastado dos princiacutepios e preceitos divinos os homens natildeo demonstram mais arrependimento genuiacuteno ao cometerem pecados e insistindo em seus erros independentemente das liccedilotildees divinas jaacute aplicadas a eles

Pode-se equiparar o contexto atual ao que observamos na histoacuteria de Jonas cuja abordagem jaacute foi feita anteriormente neste artigo Jonas tambeacutem sabendo de suas funccedilotildees e da vontade de Deus disparou em fuga O homem atual tambeacutem conhece suas funccedilotildees e a vontade de Deus e mesmo assim ignora-as diante de seu egoiacutesmo sacrificando sua proacutepria alma por sentimentos e prazeres pueris

Somente quando sente falta da presenccedila de Deus o homem cogita o arre-pendimento Jonas aprendera sua liccedilatildeo ao permanecer trecircs dias no ventre do peixe clamando pela misericoacuterdia divina O homem atual entretanto parece natildeo aprender suas liccedilotildees Ele insiste no pecado e sucumbe a ele e aos estiacutemulos peca-minosos amplamente presentes em nossa sociedade Haacute pontos de aproximaccedilatildeo e de afastamento entre os episoacutedios relatados neste estudo e o contexto atual de vivecircncia do homem Entretanto permanece a dificuldade de se permanecer estavelmente fiel a Deus

4 ABORDAGEM DO VERDADEIRO ARREPENDIMENTOConforme apresentado o homem arrepende-se buscando a misericoacuterdia e

o perdatildeo de Deus O arrependimento segundo Delumeau (2003) eacute deixar o pecado e para que este seja abandonado o arrependimento deve ser verdadeiro

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buscando o perdatildeo divino e comprometendo-se a natildeo cometer o mesmo pecado

No item anterior abordaram-se aspectos da vida atual que sugerem a falta de arrependimento verdadeiro da parte do homem Jonas por exemplo arrependeu--se verdadeiramente ao reconhecer a soberania de Deus Arrependeu-se pri-meiramente ao observar a tempestade arrependeu-se quando estava em alto mar e durante os trecircs dias nos quais esteve dentro do ventre do peixe Jonas de fato arrependeu-se verdadeiramente de sua desobediecircncia a Deus e buscou corrigir suas falhas

Adatildeo no mesmo sentido mostrou-se desobediente ao divino e arrependeu-se gravemente colocando todos os homens em pecado Adatildeo buscava que Deus tivesse pena e piedade de si e de Eva concedendo-lhes meios para sustentar a vida Pode-se questionar o motivo que conduziu Adatildeo ao arrependimento mas natildeo se fora ou natildeo verdadeiro

O homem arrepende-se de suas falhas para com Deus fruto da instabilidade de seu relacionamento de obediecircncia para com o divino Entretanto o homem atual costuma repetir seus pecados arrepende-se com frequecircncia mas por medo de puniccedilotildees raramente se arrepende verdadeiramente O homem natildeo atribui culpa a si mesmo por seus pecados e quando o faz eacute de maneira displicente insistindo nos mesmos erros que antes cometera

Todavia isso diz respeito justamente agrave natureza pecaminosa do homem Mes-mo na Biacuteblia satildeo raros os casos de arrependimento verdadeiros (DELUMEAU 2003) Castro (2013) aponta que o arrependimento verdadeiro ou genuiacuteno con-siste na ideia por traacutes da desobediecircncia do homem em relaccedilatildeo a Deus seja por meio de uma ordem direta ou como eacute mais comum na atualidade por meio da desobediecircncia aos preceitos biacuteblicos

Um exemplo de arrependimento verdadeiro inquestionaacutevel na Biacuteblia encontra- se na histoacuteria de Davi

A oraccedilatildeo de Davi depois do maior erro de sua vida ilustra a natureza da verdadeira tristeza pelo pecado Seu arrependimento foi sincero e profundo Ele natildeo fez nenhum empenho por atenuar a culpa Natildeo foi o desejo de escapar ao juiacutezo que lhe inspirou a oraccedilatildeo Davi reconheceu a enormidade de sua transgressatildeo viu a contaminaccedilatildeo de seu ser e sentiu nojo do pecado Natildeo suplicava unicamente o perdatildeo mas tambeacutem um coraccedilatildeo puro Desejava a alegria da santidade e estar mais uma vez em harmonia com Deus (ENSINOS DE JESUS 2012 p 21)

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Ora levando-se em consideraccedilatildeo a histoacuteria de Davi compreende-se que o arrependimento verdadeiro eacute fruto de um genuiacuteno sentimento de tristeza do ser humano ao desapontar a Deus representado pela sinceridade e pela verdade aceitando o pecado que cometeu e natildeo negando-o Trata-se do desprezo pelo pecado propriamente dito

Souza (2009) aponta que o homem peca quando ele age contra aquilo que eacute imposto por Deus Com o pecado o homem e a mulher tornaram-se seres decadentes sendo o arrependimento a noccedilatildeo atraveacutes da qual eles podem ser sinceros com Deus assumindo sua culpa no pecado e demonstrando tristeza diante de sua desobediecircncia

O arrependimento verdadeiro aleacutem de tais caracteriacutesticas natildeo adveacutem de accedilatildeo humana mas sim de accedilatildeo divina uma vez que

Nenhum ser humano tem o poder de perdoar pecados Somente Deus por meio de Cristo aquele que nunca pecou pode nos conceder perdatildeo e paz de espiacuterito O ensino de que algum ser humano tem poder de perdoar pecados natildeo estaacute em harmonia com a Biacuteblia Nenhuma accedilatildeo humana eacute ca-paz de conseguir o perdatildeo Somente Deus em Jesus Cristo pode perdoar nossos pecados Por isso devemos nos aproximar Dele com o coraccedilatildeo verdadeiramente arrependido (ENSINOS DE JESUS 2012 p 21)

Assim o arrependimento verdadeiro eacute obtido tatildeo somente na comunhatildeo do pecador com Deus Ele deve manifestar com sinceridade o seu arrependimento pelo erro cometido independentemente das dimensotildees de seu pecado Em uma era na qual pecar eacute socialmente aceitaacutevel arrepender-se verdadeiramente eacute um dos difiacuteceis desafios do pecador

5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAISO presente estudo concentrou-se em uma abordagem clara e objetiva acerca do

livro de Jonas sobretudo no aspecto referente agrave conduta dele em relaccedilatildeo a Deus demonstrando sua desobediecircncia e a concepccedilatildeo de arrependimento verdadeiro a fim de que Jonas pudesse persistir no caminho traccedilado por Deus executando a funccedilatildeo divina que lhe fora incumbida

No mesmo sentido observou-se que o pecado sempre marcou o homem desde os tempos de Adatildeo ateacute a atualidade na qual os estiacutemulos pecaminosos estatildeo ain-da mais presentes Existe noccedilatildeo de arrependimento mas natildeo de arrependimento verdadeiro conforme ocorreu com Jonas e Davi Esse tipo de arrependimento se manifesta por uma verdadeira tristeza pelo cometimento do pecado sincera

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e profundamente sem o desejo de escapar da puniccedilatildeo mas curvando-se diante da superioridade de Deus

Este estudo natildeo buscou esgotar o assunto ou tornaacute-lo acabado mas tatildeo so-mente abordar concepccedilotildees acerca do verdadeiro arrependimento e das oscilaccedilotildees entre a obediecircncia e a desobediecircncia a Deus observadas tanto na era biacuteblica quanto na atualidade

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REFEREcircNCIAS ALENCAR J F Levanta-te e vai agrave grande cidade uma introduccedilatildeo ao livro de Jonas Revista Vida Pastoral ano 51 n 274 setembro-outubro 2010 p 6-13

BAZIOLI A J Graccedila Soberana Um Estudo do livro de Jonas copy Comunidade Presbiteriana Chaacutecara Primavera Ministeacuterio de Grupos Pequenos Abr2011

BIacuteBLIA SAGRADA Disponiacutevel em sanderleicombrPDFBibliaBiblia- Sagrada-Joao-Ferreira-de-Almeidapdf Acesso em 2 jul 2017

CASTRO D R Joatildeo Batista Profeta Do Amor Esponsal 1 ed ISBN 978-85-7784-077-9 copy Ediccedilotildees Shalom Aquiraz Brasil 2013

CLEMENTE M A Riqueza de Jonas Goiacircnia GO Editora RHJ 2008

DASILVA R E As Revelaccedilotildees Do Livro De Jonas Pulpito On-Line Forta Lauderdale 2003

DELUMEAU J O pecado e o medo ndash a culpabilizaccedilatildeo no ocidente (seacuteculos 13-18) Traduccedilatildeo Aacutelvaro Lorencini Bauru EDUSC 2003 2 v

ENSINO DE JESUS 2012 O que Jesus Ensinou sobre o Perdatildeo 6ordf liccedilatildeo Disponiacutevel em ltensinosdejesuscombrmateriaisestudosestudo-6pdfgt Acesso em 5 jul 2017

ERTHAL L A et al Profetas Menores Seminaacuterio Evangeacutelico para o aper-feiccediloamento de Disciacutepulos e obreiros do Reino ndash SEMEADOR Niteroacutei 2002

FAacuteBIO C Jonas O Sucesso do Fracasso Itajaiacute SC Editora Vinde 1991

SOUZA J N O destino do homem no plano de Deus uma anaacutelise da antropo-logia patriacutestica sobre a ldquoimagem e semelhanccedilardquo Rev Pistis Prax Teol Pastor Curitiba v 1 n 1 p 119-145 janjun 2009

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TRANSFORMACcedilAtildeO RELIGIOSA BRASILEIRA E CARACTERIacuteSTICAS DO NOVO PADRAtildeO RELIGIOSO

Joatildeo Boechat54

RESUMOO Brasil experimentou intensa transformaccedilatildeo religiosa nos uacuteltimos 40 anos

Essa mudanccedila caracterizou-se por trecircs pontos centrais a saber a) Queda da membresia Catoacutelica b) Crescimento dos indiviacuteduos que se consideram sem--religiatildeo e c) Crescimento Evangeacutelico A partir daiacute a sociedade brasileira apresenta uma nova configuraccedilatildeo religiosa Dessa forma surge a necessidade de natildeo apenas compreendermos essa nova configuraccedilatildeo como tambeacutem perce-bermos as relaccedilotildees entre esses grupos religiosos atraveacutes do tracircnsito religioso isto eacute como se daacute a formaccedilatildeo de cada grupo religioso e quanto essa formaccedilatildeo tem relaccedilatildeo com o ganho ou perda de membros antes ligados a outros grupos religiosos Este artigo apresenta a nova configuraccedilatildeo religiosa brasileira aleacutem de demonstrar como essa configuraccedilatildeo tem sido alterada nas uacuteltimas deacutecadas e por fim analisa como se daacute o tracircnsito religioso na sociedade brasileira

Palavras-Chave Transformaccedilatildeo Religiosa Configuraccedilatildeo Religiosa Cresci-mento Evangeacutelico

ABSTRACTIn the last 40 years Brazil has experienced intense religious transformation

Such change is characterized by three main points a) Decrease of Catholic mem-bership b) Increase of Non-Religious groups and c) Increase of the Evangelicals Thus Brazilian society presents a new religious setting Because of that there is the need of not only comprehend this new configuration but also understand the relationship among the religious groups using the analysis of the religious traffic in Brazil ie how each group is formed and how this formation is related to the adding or losing of individuals who were once members of other religious groups In this way this paper presents the new religious configuration in Brazil and discusses how said configuration has been altered in the last decades At last it analyzes how the religious traffic takes place in Brazilian society

54 Joatildeo Boechat eacute professor da Faculdade Batista do Rio de Janeiro aleacutem de pesquisador do Deutscher Akademischer Austauschdienst (DAAD) Eacute doutorando em Sociologia Poliacutetica pela Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF) com ecircnfase em Teologia pela Humboldt Universitaumlt zu Berlin na Alemanha Possui mestrado em Sociologia Poliacutetica pela UENF e especializaccedilatildeo em Ciecircncia da Religiatildeo aleacutem de graduaccedilatildeo em Teologia e Relaccedilotildees Internacionais

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Keywords Religious transformation Religious Configuration Evangelical Growth

INTRODUCcedilAtildeOA realidade do campo religioso brasileiro indica uma forte transformaccedilatildeo

na sociedade em que vivemos Esta percepccedilatildeo ocorre pois ainda que a religiatildeo seja uma espera proacutepria ela influencia e eacute influenciada pelas demais esferas sociais como a economia poliacutetica e ciecircncia Portanto eacute sine qua non para a profunda compreensatildeo teoloacutegica a forma pela qual a religiatildeo se relaciona com a realidade vigente

A palavra que define a realidade religiosa brasileira nas uacuteltimas deacutecadas eacute ldquotransformaccedilatildeordquo Especialmente a partir da deacutecada de 80 o campo religioso no Brasil observa uma intensa mudanccedila encabeccedilada pelo grande crescimento evangeacutelico que atua como principal combustiacutevel de tal transformaccedilatildeo que tambeacutem eacute caracterizada pelo crescimento dos sem-religiatildeo e pela queda catoacutelica

Nesse contexto este artigo procura analisar a transformaccedilatildeo religiosa na sociedade brasileira observando os dados dos censos das uacuteltimas deacutecadas bem como buscando compreender o tracircnsito religioso que ocorre por meio da anaacutelise de como se daacute a formaccedilatildeo das membresias religiosas Por fim apontam-se algumas razotildees que auxiliam na compreensatildeo da mudanccedila religiosa brasileira

Assim pretende-se colaborar para a compreensatildeo da realidade brasileira e de como a transformaccedilatildeo estaacute relacionada com questotildees que atingem a sociedade como um todo Tambeacutem pretende-se explicitar que a religiatildeo eacute uma esfera autocirc-noma que influencia e eacute influenciada pelas demais esferas sociais adaptando-se agraves demandas e necessidades de seus fieacuteis e provendo respostas que busquem atender a tais necessidades

1 PADRAtildeO RELIGIOSO BRASILEIROAs uacuteltimas deacutecadas demonstraram um ldquopadratildeo religiosordquo no Brasil Em

2020 o Instituto Datafolha lanccedilou os seguintes dados da configuraccedilatildeo religiosa brasileira

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Graacutefico 1 Configuraccedilatildeo Religiosa Brasileira

Fonte Datafolha (2020)

Atualmente 50 dos brasileiros se afirmam Catoacutelicos 31 Evangeacutelicos55 10 Sem-Religiatildeo e 9 adeptos de outras religiotildees

Os dados do Graacutefico 1 atuam em conformidade com os dados do Censo de 2010 realizado pelo IBGE56 os quais apontam que a configuraccedilatildeo religiosa no Brasil nas uacuteltimas deacutecadas possui trecircs caracteriacutesticas fundamentais a) intensa queda dos Catoacutelicos b) crescimento significativo dos Evangeacutelicos c) crescimento relevante dos sem-religiatildeo Considerando os dados levantados pelo IBGE eacute possiacutevel identificar tal configuraccedilatildeo

Graacutefico 2 Religiotildees no Brasil (2010)

Fonte Censo do IBGE 2010

55 Caso dividamos os Evangeacutelicos entre os principais subgrupos a formaccedilatildeo do campo brasileiro corres-ponde a 21 de Pentecostais 44 de Evangeacutelicos de Missatildeo e 45 de Evangeacutelicos Natildeo-Determinados56 2010 corresponde ao ano do uacuteltimo censo publicado pelo IBGE

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De acordo com os dados do uacuteltimo Censo do IBGE publicado em 2010 entre os brasileiros 646 se denominam Catoacutelicos 57 222 Evangeacutelicos 58 81 Sem- Religiatildeo 59 27 possuem outras religiotildees 60 21 satildeo adeptos do Espiritismo e 033 de religiotildees afro-brasileiras 61

De fato as religiotildees natildeo satildeo compostas por subgrupos homogecircneos com completa unidade doutrinaacuteria eclesial e praacutetica Tomemos como primeiro exemplo os Evangeacutelicos Para a real compreensatildeo desse grupo religioso no Brasil eacute relevante levar em conta suas divisotildees a fim de melhor entender sua configuraccedilatildeo uma vez que ela se expressa de forma mais variada do que as dos Catoacutelicos e dos Sem-religiatildeo Afinal entre os Catoacutelicos 994 satildeo Catoacutelicos Apostoacutelicos Romanos jaacute entre os Sem-Religiatildeo 952 natildeo possuem religiatildeo mas creem no transcendente ou seja apenas 48 satildeo ateus ou agnoacutesticos

Diferentemente dos Catoacutelicos e Sem-Religiatildeo cuja anaacutelise dividimos em dois subgrupos os Evangeacutelicos apresentam uma divisatildeo relevante em trecircs subgrupos os Pentecostais que correspondem a 60 dos Evangeacutelicos e 133 da populaccedilatildeo brasileira 62 os Evangeacutelicos Natildeo-Determinados correspondem a 212 dos Evangeacutelicos e 48 dos brasileiros 63 Por fim os Evangeacutelicos de Missatildeo ou Histoacutericos correspondem a 182 dos Evangeacutelicos e 44 da populaccedilatildeo brasileira 64

Com base no Graacutefico 2 dividimos a anaacutelise da evoluccedilatildeo do campo religioso brasileiro em duas fases de 1940 a 1980 e de 1980 a 2010 Essa divisatildeo ressalta

57 Entre os Catoacutelicos 994 satildeo Catoacutelicos Apostoacutelicos Romanos 45 Catoacutelicos Apostoacutelicos Brasileiros e 01 Catoacutelicos Ortodoxos58 Entre os Evangeacutelicos 60 satildeo Pentecostais 218 Natildeo-Determinados e 182 Evangeacutelicos de Missatildeo59 Entre os Sem-Religiatildeo 952 satildeo sem-religiatildeo 4 Ateus e 08 Agnoacutesticos60 Entre as outras religiotildees 333 satildeo adeptos de outras religiosidades cristatildes 317 satildeo Testemunhas de Jeovaacute 146 possuem muacuteltiplas religiosidades 55 satildeo Budistas 52 satildeo membros da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Uacuteltimos Dias 36 adeptos de outras religiosidade orientais 24 satildeo Judeus 17 adeptos do Esoterismo e 14 membros de religiotildees Indiacutegenas Haacute ainda grupos de outras religiotildees como o Hinduiacutesmo que correspondem a menos de 1 deste grupo61 Entre as Religiotildees Afro-brasileiras 692 pertencem agrave Umbanda 284 ao Candombleacute e 24 a outras religiotildees de matriz afro-brasileiras62 Os maiores grupos e igrejas pentecostais satildeo Assembleia de Deus (485 dos Pentecostais) Igrejas Pentecostais Independentes (208) Congregacional Cristatilde do Brasil (9) Igreja Universal do Reino de Deus (74) Igreja do Evangelho Quadrangular (71) Deus eacute Amor (33) e Maranata (14)63 Os Natildeo-Determinados satildeo assim denominados pois satildeo formados por igrejas independentes de teologia protestante sem viacutenculo histoacuterico com associaccedilotildees protestantes norte-americanas ou europeias como as Igrejas de Missatildeo64 Os Evangeacutelicos de Missatildeo satildeo assim chamados pois possuem teologia protestante e sua formaccedilatildeo estaacute vinculada agraves missotildees protestantes de igrejas histoacutericas norte-americanas ou europeias No Brasil as maiores igrejas ou associaccedilotildees satildeo Batistas (485 dos Evangeacutelicos de Missatildeo) Adventistas (203) Luterana (13) Presbiteriana (12) Metodista (44) Congregacional (14) e outras (04)

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como nas uacuteltimas trecircs deacutecadas houve relevante mudanccedila e uma nova padro-nizaccedilatildeo religiosa no paiacutes

Tabela 1 ndash Religiotildees no Brasil de 1940 a 2010 em porcentagem (MARIANO 2013)

Religiatildeo 1940 1950 1960 1970 1980 1990 2000 2010Catoacutelicos 952 937 931 911 892 833 738 646Evangeacutelicos 26 34 40 58 66 90 154 222Outras Religiotildees 19 24 24 23 25 29 35 50Sem Religiatildeo 02 05 05 08 16 48 73 81

Natildeo declarou 01 00 00 00 01 00 00 01

TOTAL 100 100 100 100 100 100 100 100Fonte Mariano 2013

De 1940 a 1980 o nuacutemero de Catoacutelicos no Brasil caiu de 952 para 892 passando de 39256972 para 108066311 adeptos65 Apesar do crescimento geral os Catoacutelicos declinaram em 6 nessas quatro deacutecadas Jaacute de 1980 a 2010 os Catoacutelicos caiacuteram de 892 para 646 da populaccedilatildeo do paiacutes totalizando 123228246 adeptos o que indica uma queda de 246 da membresia

Em 2020 o Instituto Datafolha66 publicou uma pesquisa cujos dados revelam que no Brasil os Catoacutelicos correspondem a 50 dos brasileiros o que confirma o ldquopadratildeo religiosordquo de queda da membresia catoacutelica67 Caso o Censo do IBGE de 2020 confirme os dados levantados pelo Datafolha haveria uma queda de 146 na membresia catoacutelica significando a maior perda de adeptos jaacute registrada em uma deacutecada

Por outro lado os Evangeacutelicos se moveram na direccedilatildeo contraacuteria dos Catoacutelicos De 1940 a 1980 aquele grupo cresceu de 26 para 66 da populaccedilatildeo brasilei-ra o que significa que em 40 anos os Evangeacutelicos saltaram de 1072144 para 7995938 adeptos Todavia se nessas quatro deacutecadas os Evangeacutelicos cresceram 4 nas deacutecadas seguintes houve um exponencial aumento dos adeptos entre 1980 e 2010 Nestas os Evangeacutelicos saltaram de 66 para 222 totalizando 42347787 adeptos Isso significa que nas uacuteltimas deacutecadas os Evangeacutelicos

65 De acordo com os dados do Censo do IBGE a populaccedilatildeo brasileira em 1940 era de 41236315 pessoas em 1980 121150573 e em 2010 190755799 pessoas66 Pesquisa Datafolha com 2948 entrevistas realizadas em 176 municiacutepios no paiacutes em 5 e 6 de dezembro de 2019 Margem de erro de 2 pontos percentuais para mais ou para menos e niacutevel de confianccedila de 9567 De acordo com a Pesquisa do Instituto Datafolha em Dezembro de 2019 a Religiatildeo do Brasileiro eacute dividida em 50 Catoacutelicos 31 Evangeacutelicos 10 Sem-Religiatildeo 3 Espiacuteritas 2 Afro-Brasileiros 2 Outras Religiotildees 1 Ateus 03 Judeus

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cresceram cinco vezes mais do que a populaccedilatildeo brasileira Enquanto de 1980 a 2010 a populaccedilatildeo brasileira cresceu 123 os Evangeacutelicos cresceram 62

O crescimento evangeacutelico eacute evidenciado pela pesquisa do Datafolha de acordo com a qual estes atingiram 31 da populaccedilatildeo em 2020 Conforme esses dados o periacuteodo de 2010 a 2020 aponta duas realidades opostas em relaccedilatildeo aos Catoacutelicos e Evangeacutelicos Por um lado os Catoacutelicos sofreram a maior perda de membresia jaacute registrada em uma deacutecada Por outro lado os Evangeacutelicos experimentaram de 2010 a 2020 o maior crescimento jaacute registrado em seu nuacutemero de adeptos

Portanto em 2010 os cristatildeos (Catoacutelicos e Evangeacutelicos)68 correspondiam a 868 dos brasileiros ou seja quase 9 em cada 10 brasileiros ainda se con-siderava cristatildeo De acordo com o Instituto Datafolha em 2020 esse nuacutemero corresponde a 81 dos brasileiros Issto indica que apesar do grande cresci-mento evangeacutelico a queda do nuacutemero de catoacutelicos foi expressiva a ponto haver reduccedilatildeo do nuacutemero de cristatildeos no paiacutes em mais de 5 pontos percentuais Ainda assim apesar do crescimento dos Sem-Religiatildeo (de 8 para 10) os ateus correspondem a apenas 1 da populaccedilatildeo brasileira

Assim os nuacutemeros do Censo permitem a formulaccedilatildeo do seguinte graacutefico

Graacutefico 3 Cristatildeos na populaccedilatildeo brasileira (1940-2020)

Fonte Censo do IBGE (1940-2010) Datafolha (2020)

Em conformidade com o crescimento evangeacutelico os Sem-Religiatildeo tambeacutem obtiveram consideraacutevel aumento Entre 1940 e 1980 eles passaram de 02 a 16 indo de 82473 para 1938409 indiviacuteduos que natildeo possuem religiatildeo Em 68 De fato os Espiacuteritas tambeacutem satildeo cristatildeos Mas como estamos considerando as principais mudanccedilas religiosas no paiacutes consideremos apenas Catoacutelicos e Evangeacutelicos como Cristatildeos Contudo apenas para a anaacutelise e natildeo como afirmaccedilatildeo teoloacutegica Considerando os Espiacuteritas os Cristatildeos atingiriam 2 da populaccedilatildeo em 2010 e 3 em 2020

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2010 esse grupo alcanccedilou 81 dos indiviacuteduos no Brasil totalizando 15451220 pessoas

Por outro lado considerando a pesquisa do Datafolha os Sem-Religiatildeo atin-giriam 10 havendo crescimento de cerca de 2 em nuacutemero Esse crescimento seria maior do aquele que ocorreu entre 2000 e 2010 (08) mas menor do que o ocorrido entre 1990 e 2000 (25)

Graacutefico 4 Cristatildeos x Sem-Religiatildeo no Brasil (1940-2020)

Fonte Censo do IBGE (1940-2010) Datafolha (2020)

Portanto se no fim do seacuteculo XIX apoacutes a Proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica (1889) os Catoacutelicos concentravam praticamente 100 da populaccedilatildeo brasileira o seacuteculo XX eacute marcado pela constante queda dessa membresia ainda que ela fosse ampla maioria em 1970 (911) Todavia a partir da deacutecada de 1980 essa queda acelerou-se fazendo com que os Catoacutelicos perdessem quase 1 de sua membresia ao ano (-097)

Desse modo estabelecendo-se uma projeccedilatildeo linear em que os Catoacutelicos manteriam sua perda de 097 ao ano os Evangeacutelicos o seu crescimento de 069 aa e os Sem-Religiatildeo ganhando 017 o ldquopadratildeo religioso brasileirordquo apresentaria uma mudanccedila em relaccedilatildeo agrave hegemonia religiosa por volta de 2036 assim os Evangeacutelicos com 403 ultrapassaratildeo os Catoacutelicos com 394 Em 2040 os Evangeacutelicos teriam 43 e os Catoacutelicos 355 Nesse ano os cristatildeos corresponderiam a 785 da populaccedilatildeo brasileira enquanto os Sem-Religiatildeo formariam 132 da populaccedilatildeo brasileira

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Graacutefico 5 Religiotildees no Brasil (1940-2040)

De fato natildeo eacute possiacutevel afirmar que tal transformaccedilatildeo continuaraacute nesse ritmo Todavia ainda que haja desaceleraccedilatildeo na perda de Catoacutelicos ou no crescimento dos Evangeacutelicos o padratildeo religioso brasileiro eacute ratificado pela intensa mudanccedila ocorrida no cenaacuterio brasileiro nos uacuteltimos 150 anos

Assim os nuacutemeros das pesquisas mencionadas confirmam o ldquopadratildeo religio-sordquo brasileiro e demonstram que este tem se desenvolvido de forma estaacutevel nos uacuteltimos 40 anos Eacute relevante perceber contudo que o paiacutes natildeo passou nestas uacuteltimas deacutecadas por um processo de ldquodesligamento do transcendenterdquo ou seja a perda catoacutelica e o acreacutescimo dos sem-religiatildeo natildeo indicam necessariamente uma diminuiccedilatildeo da experiecircncia com o transcendente ou a perda da busca pelo sagrado A anaacutelise desse padratildeo ajuda a entender a transformaccedilatildeo no campo religioso ocorrida nas uacuteltimas deacutecadas

2 TRAcircNSITO RELIGIOSO BRASILEIRO De forma geral o padratildeo religioso brasileiro indica uma transformaccedilatildeo do

campo religioso marcado pelas transformaccedilotildees na direccedilatildeo da relaccedilatildeo com o divino e natildeo na negaccedilatildeo do divino Isso significa que o brasileiro natildeo deixou de crer no transcendente mas apenas alterou a forma como crecirc ou o caminho para acessar o divino De acordo com o IBGE em 2010 apenas 03 da populaccedilatildeo se denominava ldquoateurdquo ou seja 78 dos brasileiros se consideram sem-religiatildeo mas mantecircm a crenccedila no transcendente

Portanto a configuraccedilatildeo religiosa brasileira se constroacutei a partir das transfor-maccedilotildees inter-religiosas como demonstra a Tabela 2

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Tabela 2 ndash Religiatildeo atual e tracircnsito religioso (BARTZ 2012)

Religiatildeo atual Natildeo mudou Mudou populaccedilatildeoCatoacutelica 959 41 646Evangeacutelico de missatildeo 228 772 41Evangeacutelico pentecostal 144 856 133Outras religiotildees 107 893 50Sem-religiatildeo 197 803 81Meacutedia Total 683 235 100

Fonte Censo Demograacutefico do IBGE 2010

Agrave primeira vista a meacutedia total indica que o Brasil eacute um paiacutes no qual a maioria da populaccedilatildeo permanece na religiatildeo em que nasceu (683) enquanto uma minoria muda de religiatildeo durante a vida (235) Contudo analisando a tabela perceberemos que apenas os Catoacutelicos satildeo maioria entre os que natildeo mudaram de religiatildeo De fato em cada 100 Catoacutelicos 96 nasceram em ambientes Catoacutelicos e apenas 4 se converteram ao longo da vida Isso significa que o Catolicismo eacute no Brasil uma religiatildeo de nascidos e natildeo de convertidos

Se considerarmos os demais grupos religiosos como tambeacutem os sem-religiatildeo veremos que ateacute 2010 828 dos brasileiros jaacute mudaram de crenccedila religiosa durante a vida Com exceccedilatildeo do Catolicismo todos os demais grupos de crenccedila no Brasil satildeo formados majoritariamente por convertidos ou seja seus adeptos se tornaram membros ao longo da vida e natildeo nasceram em ambientes praticantes dessa religiatildeo Pelo menos trecircs quartos da populaccedilatildeo evangeacutelica ou dos que hoje se consideram ldquosem-religiatildeordquo jaacute estiveram em alguma outra religiatildeo antes de possuiacuterem o atual entendimento sobre o transcendente Por exemplo dos 139 da populaccedilatildeo de pentecostais 856 se converteram a essa vertente durante a vida e somente 144 satildeo filhos de pais pentecostais tratando-se portanto de uma religiatildeo majoritariamente de convertidos e natildeo de originaacuterios

Aleacutem disso quando observamos o tracircnsito religioso brasileiro comparando-se a religiatildeo atual e a religiatildeo anterior dos brasileiros percebemos como o fluxo religioso ocorre entre os ldquoconvertidosrdquo

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Tabela 3 ndash Religiatildeo atual x religiatildeo anterior (BARTZ 2012)

Religiatildeo AnteriorReligiatildeo Atual

CatoacutelicaEvangeacutelico Histoacuterico

Evangeacutelico Pentecostal

Outras Religiotildees

Sem-Religiatildeo

Catoacutelica 00 138 589 163 421Evangeacutelico de Missatildeo 269 213 507 11 57Evangeacutelico Pentecostal 187 402 408 04 239Outras Religiotildees 474 99 155 110 64Sem-religiatildeo 179 12 742 55 00Ateus 231 118 332 158 31

Fonte Bartz 2012

A Tabela 3 foi elaborada levando-se em conta os indiviacuteduos que jaacute mudaram de crenccedila religiosa ao longo da vida Assim ela natildeo demonstra a religiatildeo de origem desses indiviacuteduos mas aquelas pelas quais eles jaacute passaram em compa-raccedilatildeo com a atual religiatildeo Portanto a somatoacuteria de algumas supera os 100 uma vez que um indiviacuteduo que hoje eacute Evangeacutelico por exemplo pode ter passado por uma ou mais religiotildees

Com relaccedilatildeo aos Catoacutelicos eacute vaacutelido lembrar que apenas 41 dos adeptos satildeo convertidos Dentre estes 474 satildeo oriundos de famiacutelias que passaram por religiotildees de matriz africana ou orientais 269 foram Evangeacutelicos de Missatildeo e 187 Pentecostais Ademais 231 foram Ateus e 179 Sem-Religiatildeo

Os Evangeacutelicos satildeo o grupo que mais cresce no Brasil eacute uma religiatildeo de ldquocon-vertidosrdquo em que8 em cada 10 indiviacuteduos (82) aproximadamente tornaram-se adeptos ao longo de sua vida e natildeo nasceram em ambientes evangeacutelicos Entre os adeptos que se denominam ldquode Missatildeordquo 402 jaacute pertenceram ao Pentecosta-lismo Isso indica que entre os Evangeacutelicos de Missatildeo o principal fluxo ocorre dentro da esfera Evangeacutelica Ademais 213 dos Histoacutericos jaacute fizeram parte de outra instituiccedilatildeo evangeacutelica histoacuterica como por exemplo um Batista que jaacute foi membro de uma organizaccedilatildeo Metodista ou Presbiteriana Em continuidade 138 dos Evangeacutelicos de Missatildeo jaacute foram Catoacutelicos e 118 Ateus

Por outro lado se entre os Evangeacutelicos Histoacutericos ou de Missatildeo o principal fluxo eacute intrarreligioso entre os Pentecostais 742 foram Sem-Religiatildeo 589 jaacute foram Catoacutelicos e 332 Ateus De fato entre os Pentecostais a maior parte dos convertidos jaacute passou por outras religiotildees Ademais o fluxo intrarreligoso tambeacutem eacute consideraacutevel haja vista que 507 dos Pentecostais jaacute foram ldquoHistoacute-

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ricosrdquo e 408 jaacute passaram por outras organizaccedilotildees Pentecostais Por exemplo um membro da Assembleia de Deus Ministeacuterio Madureira jaacute foi membro da Assembleia de Deus Vitoacuteria em Cristo ou ainda da Igreja Universal do Reino de Deus

O grupo dos ldquosem-religiatildeordquo (78) representa o segundo maior contingente de pessoas que migraram de religiatildeo As igrejas evangeacutelicas pentecostais e os catoacutelicos satildeo os principais fornecedores para este grupo Observamos ainda que 421 dos ldquosem-religiatildeordquo declaram-se ter sido catoacutelicos 239 pentecostais 57 histoacutericos 64 declaram ter pertencido a outras religiotildees Haacute duas rotas portanto de migraccedilatildeo para os ldquosem-religiatildeordquo a primeira vai do catolicismo ou dos evangeacutelicos histoacutericos e a segunda do catolicismo ao pentecostalismo e entatildeo ao grupo ldquosem-religiatildeordquo

Assim o tracircnsito religioso brasileiro nos apresenta algumas caracteriacutesticas a) os Catoacutelicos satildeo os doadores universais b) os Evangeacutelicos satildeo receptores universais ainda que haja intenso fluxo intrarreligioso c) os Sem-Religiatildeo satildeo majoritariamente indiviacuteduos que mantecircm determinada espiritualidade e natildeo se tornam ateus

A fim de aprofundarmos o estudo da Religiatildeo no cenaacuterio brasileiro analisa-remos essas caracteriacutesticas observando possiacuteveis explicaccedilotildees para a formaccedilatildeo desse padratildeo

3 FORMACcedilAtildeO DO PADRAtildeO RELIGIOSO BRASILEIRODiversos trabalhos tecircm sido apresentados a fim de explicar as razotildees para

esse padratildeo apresentado a Teoria da Secularizaccedilatildeo se apresenta como uma valiosa ferramenta para a compreensatildeo dessa nova realidade (NERI 2011 ANDRADE 2012 ALTMANN 2012 GRACINO 2012 MARIANO 2013 CAMURCcedilA 2017)

Considerando que a esfera religiosa no mundo moderno eacute uma esfera como as demais que disputa espaccedilo e relevacircncia sociais pode-se destacar no caso brasileiro trecircs efeitos do processo de secularizaccedilatildeo sobre ela 1) a desmonopo-lizaccedilatildeo religiosa 2) a liberdade religiosa e 3) o pluralismo religioso

Apesar das mudanccedilas ocorridas no campo religioso brasileiro nas uacuteltimas deacutecadas a realidade religiosa brasileira ainda demonstra ser a del um paiacutes ma-joritariamente catoacutelico Apenas no fim do seacuteculo XIX com a proclamaccedilatildeo da Repuacuteblica o Brasil se tornou oficialmente laico Todavia ainda assim a Igreja Catoacutelica manteve seus privileacutegios em relaccedilatildeo ao Estado secular Entretanto se

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durante os periacuteodos de colonizaccedilatildeo e impeacuterio para ser brasileiro era necessaacuterio ser catoacutelico a separaccedilatildeo entre Igreja e Estado resultou no fim da monopolizaccedilatildeo religiosa

A diferenciaccedilatildeo entre a esfera religiosa e as esferas poliacutetica e juriacutedica se aprofundou criando uma condiccedilatildeo secular que viria a ter efeitos estruturais tambeacutem sobre o modo de organizaccedilatildeo e atuaccedilatildeo das diferentes religiotildees

De acordo com os dados do IBGE em 1940 952 da populaccedilatildeo brasileira era catoacutelica Em 1980 o nuacutemero havia decrescido para 89 da populaccedilatildeo Esse nuacutemero passou para 73 em 2000 decrescendo para 646 da populaccedilatildeo de acordo com o Censo de 2010

O fim da monopolizaccedilatildeo religiosa ocorrida com o iniacutecio da Repuacuteblica no fim do seacuteculo XIX ocasionou tambeacutem maior liberdade religiosa Os dados do IBGE (2000) apontam que cerca de 40 dos catoacutelicos brasileiros eram natildeo praticantes ou seja natildeo participavam ativamente das atividades eclesiais A natildeo-participaccedilatildeo natildeo indica todavia uma falta de atividade religiosa Como ser brasileiro estaacute ligado a ser catoacutelico faz parte da cultura brasileira denominar--se catoacutelico enquanto participa de reuniotildees espiacuteritas ou frequenta cultos no Candombleacute e Umbanda O resultado dessa maior liberdade religiosa bem como a maior liberdade para se considerar como pertencente a outras religiotildees ou mesmo sem-religiatildeo pode ser observada nos Censos das uacuteltimas deacutecadas Enquanto o Catolicismo decresceu de 952 em 1940 para 646 em 2010 as ldquooutras religiotildeesrdquo cresceram de 19 para 5 da populaccedilatildeo os ldquosem-religiatildeordquo saltaram de 02 para 81 de 1940 a 2010 e os evangeacutelicos cresceram de 26 para 222 da populaccedilatildeo nos uacuteltimos 70 anos

Por fim a secularizaccedilatildeo abre espaccedilos para que natildeo soacute novas religiotildees como tambeacutem novas organizaccedilotildees religiosas busquem espaccedilo e concorram pela fide-lizaccedilatildeo religiosa dos indiviacuteduos

A concessatildeo da liberdade religiosa e a separaccedilatildeo Igreja-Estado romperam definitivamente o monopoacutelio catoacutelico abrindo caminho para que outros grupos religiosos pudessem ingressar e se formar no paiacutes disputar e conquistar novos espaccedilos na sociedade adquirir legitimidade social e consolidar sua presenccedila institucional (MARIANO 20033)

Com o fim do monopoacutelio religioso e consequentemente a abertura para novas organizaccedilotildees religiosas possibilita-se a formulaccedilatildeo de distintos interesses religiosos respondendo a distintos interesses sociais A religiatildeo agrave medida que vai se autonomizando como esfera social com loacutegica proacutepria atua como elabo-

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radora dos interesses religiosos a partir da mateacuteria-prima dos interesses sociais dos distintos grupos permitindo por exemplo que distintos interesses sociais estejam ligados a um mesmo interesse religioso Uma vez que as organizaccedilotildees consigam elaborar interesses religiosos comuns capazes de transcender em certa medida as fronteiras dos interesses sociais - embora sem nunca lograr uma completa desvinculaccedilatildeo desses interesses - torna-se provaacutevel a adesatildeo de distintos grupos sociais a essas organizaccedilotildees e especialistas a fim de realizar esses interesses religiosos

Para exemplificarmos o efeito do pluralismo religioso observemos o cresci-mento das igrejas evangeacutelicas no Brasil nos uacuteltimos anos Os dados do Instituto Brasileiro de Planejamento Tributaacuterio (IBPT) apontam que existem no Brasil mais de 179 mil organizaccedilotildees religiosas evangeacutelicas registradas Somente em 2013 doze igrejas foram abertas por dia no Brasil cerca de 4400 novas organi-zaccedilotildees religiosas evangeacutelicas ao longo do ano Esse nuacutemero apresentou em 2014 crescimento de 52869 As organizaccedilotildees religiosas evangeacutelicas apresentam um faturamento de cerca de R$20 bilhotildees ao ano oriundo de diacutezimos venda de produtos e aplicaccedilotildees financeiras70

Essa nova configuraccedilatildeo religiosa no Brasil abre oportunidades para a anaacutelise da religiatildeo sob novas perspectivas uma vez que novos interesses religiosos e sociais ganham espaccedilo nas disputas por atenccedilatildeo nas organizaccedilotildees e especialistas religiosos

Dessa forma a nova configuraccedilatildeo religiosa brasileira demonstra que as transformaccedilotildees religiosas acompanham as transformaccedilotildees sociais mas ocorrem tambeacutem por mudanccedilas na proacutepria esfera religiosa e na capacidade de diferentes religiotildees organizarem distintos interesses e atenderem distintas demandas dos indiviacuteduos

Portanto compreender a configuraccedilatildeo religiosa brasileira eacute funccedilatildeo importante de todo aquele que deseja analisar como a religiatildeo influencia tanto o indiviacuteduo como a sociedade brasileira ao passo que tambeacutem eacute influenciada por eles

69 Disponiacutevel em httpwwwempresometrocombrSiteMetodologia70 Para mais informaccedilotildees sobre a arrecadaccedilatildeo das organizaccedilotildees religiosas evangeacutelicas ver httpexameabrilcombrbrasilem-um-ano-arrecadacao-de-igrejas-passou-dos-r-20-bi

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AMEacuteM MUacuteLTIPLOS DERIVADOS O MESMO CONCEITOAs diferentes traduccedilotildees de uma mesma raiz

AMEN MULTIPLE DERIVATIVES THE SAME CONCEPTDifferent translations of the same word

Rawderson Rangel71

RESUMOHaacute diversas expressotildees que se encontram no Novo Testamento utilizadas

com muita frequecircncia ainda hoje nas igrejas cristatildes cuja origem eacute o hebraico A proposta do presente artigo eacute analisar a conhecida expressatildeo ldquoAmeacutemrdquo repe-tida em oraccedilotildees e muitas vezes como resposta da congregaccedilatildeo ao pregador ou dirigente do culto Atraveacutes do estudo de diferentes vocaacutebulos tendo esta palavra em sua raiz a investigaccedilatildeo apresentaraacute possiacuteveis significados e sentidos para a expressatildeo que de forma consensual eacute definida simplesmente por ldquoassim sejardquo

Palavras-chave Ameacutem Hebraico Raiz verbal

ABSTRACTMany expressions found in the New Testament often used even today in

Christian churches have their origin in the Hebrew The purpose of this article is to analyze the familiar expression ldquoAmenrdquo repeated in prayers and often as a congregation response of to the preacher or gospel service responsible Through the study of different words having this word in their root the research will present possible meanings for the expression usually simply defined by ldquoLet it be sordquo

Keywords Amen Hebrew Verbal root

71 Bacharel em Teologia pelo Seminaacuterio Teoloacutegico Batista do Sul do Brasil (atual Faculdade Batista do Rio de Janeiro) RJ Brasil revalidado pela Faculdade Teoloacutegica Batista do Paranaacute em Curitiba (atual FABAPAR) PR Brasil Poacutes-graduado em Antigo Testamento tambeacutem pela FABAPAR PR Mestre em Teologia pela Pontifiacutecia Universidade Catoacutelica do Paranaacute Cursou Hebraico Biacuteblico pela Israel Biblical Institute of Studies acreditado pela Universidade Hebraica de Jerusaleacutem Israel atualmente eacute estudante de Grego Biacuteblico pela mesma instituiccedilatildeo Escritor professor de Teologia e idiomas biacuteblicos missionaacuterio da Junta de Missotildees Mun-diais da Convenccedilatildeo Batista Brasileira - JMM da CBB em Moccedilambique Eacute professor do Instituto Teoloacutegico Baptista da Beira Sofala e Instituto Biacuteblico de Sofala ndash Moccedilambique E-mail rawdersonhotmailcombr

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INTRODUCcedilAtildeO O hebraico biacuteblico por ser um idioma antigo apresenta-se bastante complexo

com determinados caracteres e algumas formas gramaticais que hoje natildeo satildeo mais utilizadas tal complexidade pode ser diminuiacuteda se o estudante estiver atento a alguns detalhes que satildeo extremamente uacuteteis no estudo da liacutengua e a anaacutelise a partir de determinadas raiacutezes eacute uma delas Haacute muitas palavras de tronco comum que uma vez entendidas ajudam na memorizaccedilatildeo delas na compreensatildeo do sentido de uma expressatildeo e ateacute mesmo de um verso biacuteblico

O vocabulaacuterio da Biacuteblia hebraica eacute de aproximadamente oito mil palavras72 sendo que duas mil delas aparecem apenas uma vez no texto desse modo um bom dicionaacuterio biacuteblico eacute indispensaacutevel no estudo do Antigo Testamento Ao mesmo tempo todo esse vocabulaacuterio pode ser reduzido a mil e trezentas raiacutezes73 e a polissemia desse idioma torna o estudo das palavras e seu significado original relevante pois facilita a compreensatildeo de determinadas palavras ou expressotildees no texto hebraico Ela tem sido vista como uma soluccedilatildeo para os muacuteltiplos significados representados por uma uacutenica palavra Ana Ceciacutelia Cruz defende essa relaccedilatildeo tanto graacutefica quanto foneacutetica segundo essa autora esta eacute ldquo() uma relaccedilatildeo metafoacuterica que amplia um sentido baacutesico para outros mais abstratosrdquo74

Miles Van Pelt afirma que as primeiras cinquenta palavras mais frequentes permitem ao estudante reconhecer um pouco mais da metade (55) do total de palavras que ocorrem no Antigo Testamento hebraico Dominar as 641 palavras que ocorrem cinquenta ou mais vezes permitiraacute identificar mais de 80 das palavras75 Uma das razotildees para isso eacute a relaccedilatildeo entre estas e as suas raiacutezes

A palavra que seraacute analisada neste artigo tambeacutem pode ter muacuteltiplas tradu-ccedilotildees embora um sentido baacutesico Analisar a origem e o significado de ldquoAmeacutemrdquo eacute bastante interessante embora natildeo menos complexo quando comparada agraves de-mais liacutenguas semiacuteticas76 Sabe-se que ela existe desde tempos remotos tanto em hebraico como tambeacutem em aacuterabe (rsquoĀmīn) ldquoAmeacutemrdquo eacute referecircncia nas trecircs grandes religiotildees que surgiram no Oriente Meacutedio cristianismo islamismo e judaiacutesmo Assim como ldquoAleluiardquo essa palavra tambeacutem natildeo se traduz em nenhum idioma sendo compreendida por todas as culturas sob a influecircncia de pelo menos uma das religiotildees mencionadas anteriormente

72 FRANCISCO Edson Faria de In Liacutengua Hebraica Aspectos Histoacutericos e Caracteriacutesticas (2010)73 JOUumlON P MURAOKA T (2007) Gramaacutetica del Hebreo Biacuteblico sect40 ndash nota74 CRUZ A d Estratificaccedilatildeo linguiacutestica ampliaccedilatildeo semacircntica e polissemia em hebraico Revista Veacutertices 11 2011 p 4275 PELT Miles Van The vocabulary guide to biblical Hebrew 2003 p ix76 WILLIAM B EERDMANS PUBLISHING COMPANY (1974) Theological Dictionary of The Old Testament (Vol I) Paacutegs 292293

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1 AMEacuteM EM DIVERSAS CULTURASA palavra tem algumas caracteriacutesticas particulares em cada uma dessas

religiotildees apesar de natildeo estar incluiacuteda no Alcoratildeo āmīn eacute uma das mais im-portantes na oraccedilatildeo islacircmica usada em diferentes contextos principalmente na sua conclusatildeo77 o rabino Chanina em 225 dC afirmou que ldquoameacutemrdquo eacute um acroacutestico - a palavra eacute composta por trecircs consoantes que em hebraico sintetizam a frase ldquoDeus Rei Fielrdquo rsquoel melek e nersquoeman78 Pronunciar essa palavra no final da prece eacute segundo esse raciociacutenio uma declaraccedilatildeo espiritual de que o proacuteprio Deus vai agir jaacute no cristianismo quando se pergunta o significado de ldquoAmeacutemrdquo logo vem a resposta ldquoassim sejardquo Tambeacutem no cristianismo ela tem um conceito de encerramento conclusatildeo teacutermino sendo esta uma das uacuteltimas palavras do Novo Testamento encontrada em Apocalipse 2220 21

Independentemente do que esteja acontecendo em um culto nas igrejas evan-geacutelicas eacute comum ouvir-se um ldquoameacutemrdquo Eacute tatildeo comum no linguajar cristatildeo que se tornou inclusive uma pergunta ldquoAmeacutem irmatildeosrdquo A resposta vem a seguir ldquoAmeacutemrdquo A depender do contexto tem o sentido de ldquopode ser assimrdquo ldquocon-cordamrdquo ou ateacute mesmo ldquoeacute assim ou natildeo eacuterdquo Quando aparentemente natildeo haacute um assunto definido ou o dirigente ainda estaacute se organizando no puacutelpito surge a pergunta ldquoAmeacutemrdquo A resposta da congregaccedilatildeo eacute repetir ldquoAmeacutemrdquo Resta analisar se foi criada uma nova semacircntica

Em diversos lugares do mundo o ldquoameacutemrdquo identifica-se com a feacute Quando se termina o momento devocional e de oraccedilatildeo a palavra eacute repetida imediatamente uma vez que tem sido ensinada como significado de ldquoassim sejardquo No Dicionaacuterio Internacional de Teologia do Antigo Testamento no entanto lecirc-se que

Esse conceito tatildeo importante da doutrina biacuteblica eacute prova clara do signi-ficado biacuteblico de ldquofeacuterdquo em contraste com muitos conceitos populares do termo No acircmago do sentido da raiz estaacute a ideia de certeza Isso eacute susten-tado pela definiccedilatildeo de feacute do NT encontrada em Hebreus 11179

Esse dicionaacuterio relaciona a expressatildeo pistis com certeza e feacute algo que tambeacutem acontece em alguns versos traduzidos do hebraico pela LXX cuja raiz da palavra eacute ldquoameacutemrdquo 80 embora natildeo com uniformidade 81

77 AKASOY 200978 Strack amp BILLERBECK 1922 paacuteg 464 Apud ZINKAND 1982 p 279 rsquoāmīn in HARRIS ARCHER JR e WALTKE 199880 Dt 3220 Jeremias 92 entre outros81 ZINKAND 1982 op cit paacuteg 4

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2 ʾmN e SeUS DeRivaDOS Partindo da anaacutelise da sua raiz (que neste caso eacute ʾmn) e de acordo com o

contexto eacute possiacutevel perceber que a palavra ameacutem tem um sentido que vai aleacutem do significado convencional ʾmn pode ser traduzido do texto hebraico82 de diferentes maneiras mas normalmente relacionado a ldquoconfiarrdquo e ldquoacreditarrdquo Esta eacute tambeacutem a tese defendida por Flor83 ainda que a raiz apareccedila como verbo ou adjetivo

Embora essa palavra aqui estudada seja mais conhecida como uma interjeiccedilatildeo ela tambeacutem se encontra no original tanto em raiacutezes verbais como tambeacutem em substantivos e adjetivos reafirmando o significado de confianccedila e estabilidade Eacute possiacutevel que haja alguma dificuldade para identificaacute-la especialmente pelas variaccedilotildees caracteriacutesticas da gramaacutetica hebraica No entanto ao reconhececirc-la o texto seraacute enriquecido com as possibilidades de interpretaccedilatildeo

21 ʾmN NaS RaiacutezeS veRBaiS

A primeira vez que a palavra aparece no texto do Antigo Testamento eacute na passagem de Gecircnesis 15 quando Deus percebe que Abratildeo colocava em duacutevida que ele teria descendecircncia direta Nesse episoacutedio o patriarca afirma esperar que a sua descendecircncia seria a de Eliezer mas Deus ldquoimediatamenterdquo (hinnēh - Gecircnesis 154) apresenta-lhe as suas intenccedilotildees convidando-o gentilmente84 a sair da sua tenda e ver a quantidade de estrelas no ceacuteu como um exemplo da quantidade de descendentes que ele teria

Apoacutes essa conversa diz o texto em Gecircnesis 156 ldquoEle creu [hě ěʾmin] no Se-nhor e isso lhe foi imputado para justiccedilardquo A raiz do verbo em destaque eacute ʾ mn85 Uma vez que se encontra em hifil pode ser traduzido por ldquoele acreditourdquo ou ldquoele se firmou por uma convicccedilatildeo internardquo A mudanccedila de sentimento de Abratildeo foi fundamental para o desenrolar da histoacuteria de Israel conforme apresentado no Antigo Testamento Essa passagem inclusive eacute confirmada no Novo Testamen-

82 Salvo nota indicando o contraacuterio todas as passagens biacuteblicas em portuguecircs apresentadas na presente investigaccedilatildeo foram extraiacutedas da versatildeo Revista e Atualizada da Sociedade Biacuteblica do Brasil 199983 FLOR E N (Novembro de 2000) ldquoAmenrdquo in Old Testament liturgical texts a study of its meaning and later development as a plea for ecumenical understanding p 784 Sobre a expressatildeo que demonstra esse tratamento cordial e respeitoso por parte de Deus nesta passagem ver RANGEL Rawderson ldquoNatildeo estou mandando estou pedindo a partiacutecula de Suacuteplicardquo in Revista Teoloacutegica nuacutemero 6 ago ndash dez 2018 pp 114-125 Filo afirma que a conversa natildeo foi em um niacutevel de Deus para o homem mas sim entre amigos in PAGE T E (Ed) Philo (Vol VI) London England William Heinemann Ltd Harvard University Pressp 311 85 Na LXX a traduccedilatildeo utiliza a palavra episteusen da mesma raiz da palavra feacute usada em Hebreus 11

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to 86 e nessas passagens todos os versos traduzem o ʾmn por pisteuo seguindo a LXX no aoristo enfatizando o fato da ocorrecircncia natildeo da sua natureza

Ainda como verbo no contexto de ldquoacreditarrdquo e ldquoconfiarrdquo na histoacuteria de Israel ʾmn tambeacutem aparece como uma negaccedilatildeo agrave feacute ou a crer Quando Moiseacutes estaacute diante de Deus no monte Sinai recebendo a missatildeo de libertar o povo de Israel do Egito ele pergunta ldquo[] Mas eis que natildeo creratildeo [yaʾmīnū] nem acudiratildeo agrave minha voz []rdquo (Ecircxodo 41) A falta de feacute ou confianccedila eacute tambeacutem evidenciada na passagem em que o povo de Israel teme entrar na terra prometida diante do testemunho dos espias que foram enviados a Canaatilde ldquo[] Ateacute quando me provocaraacute este povo e ateacute quando natildeo creraacute [lōʾ -yaʾ ămicircnucirc] em mim a despeito de todos os sinais que fiz no meio delerdquo87 (Nuacutemeros 1411)

O conhecido texto de Habacuque 24 eacute tambeacutem uma interessante passagem relacionada a crer e confiar ldquo() mas o justo em sua feacute [beʾ ĕmucircnāṯocirc] viveraacuterdquo [trad do autor] 88 Outra possibilidade para Habacuque 24 o justo por aquilo que ele crecirc viveraacute A feacute tem seu fundamento naquilo que estaacute estabelecido e por isso eacute digno de creacutedito

Isaiacuteas 79 apresenta um curioso jogo de palavras ldquo[] se o natildeo crerdes certamente natildeo permanecereisrdquo No hebraico os verbos crer e permanecer satildeo palavras homoacutegrafas e homoacutefonas taʾămicircnucirc e tēʾāmēnucirc reforccedilando a ideia Ambos com a raiz ʾmn tecircm o sentido de fidelidade feacute e acreditar

Acosta Rosales apresenta um estudo no qual apenas analisa essa palavra em qal 89 Mas haacute diversos outros exemplos na Biacuteblia que relacionam ʾmn com confianccedila no particiacutepio a palavra eacute usada para expressar a confianccedila de uma crianccedila nos braccedilos de sua matildee 90 ou de seus cuidadores (Nuacutemeros 1112 91 e 2Reis 101 92) em Isaiacuteas 604 93 no Nifal eacute possiacutevel tambeacutem relacionar-se o verbo a cuidadores com sentido de trazer seguranccedila e firmeza

86 Romanos 43 Gaacutelatas 36 Tiago 22387 A traduccedilatildeo correta seria creratildeo yarsquomīnū88 A palavra feacute em Habacuque 24 na LXX eacute traduzida por pistis no Genitivo singular feminino 89 ROSALES A D Re-discovering the semantics of ןמא in qal Theologica Xaveriana 67 (Grammar Philology Semantics) 431-46090 rsquoāman in WILLIAM B EERDMANS PUBLISHING COMPANY 197491 Nuacutemeros 1112 ldquoConcebi eu porventura todo este povo Dei-o eu agrave luz para que me digas Leva-o ao teu colo como a ama [particiacutepio] leva a crianccedila que mama agrave terra que sob juramento prometeste a seus paisrdquo 92 2Reis 101 ldquoAchando-se em Samaria setenta filhos de Acabe Jeuacute escreveu cartas e as enviou a Samaria aos chefes da cidade aos anciatildeos e aos tutores [particiacutepio] dos filhos de Acabe dizendordquo 93 Isaiacuteas 604 ldquoLevanta em redor os olhos e vecirc todos estes se ajuntam e vecircm ter contigo teus filhos chegam de longe e tuas filhas satildeo trazidas [Nifal imperfeito 3feminina plural] nos braccedilos

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22 ʾmN COmO SUBSTaNTivO e aDjeTivO

Ainda relacionada agrave credibilidade a palavra utilizada para nomear as vigas sobre as portas do templo que deram sustentaccedilatildeo agrave construccedilatildeo tem em sua raiz ʾmn em 2Reis 1816 encontramos a palavra traduzida por ombreiras 94 das portas do templo de Israel95 Na LXX a traduccedilatildeo eacute de uma palavra derivada de stērizō algo que daacute estabilidade Quando se avalia toda a estrutura do templo evidencia-se que tais ombreiras natildeo poderiam ser algo sem uma firmeza e que garantissem seguranccedila

Como sustentaccedilatildeo e credibilidade relacionadas a pessoas ʾmn encontra-se em Ecircxodo 1712 na conhecida passagem em que os filhos de Israel perdiam a batalha quando Moiseacutes baixava as suas matildeos Percebendo isso Aratildeo e Hur seguraram os seus braccedilos e ldquo() assim lhe ficaram as matildeos firmes [ʾ ĕmucircnacirc] ateacute ao pocircr-do-solrdquo96 Com a firmeza veio a certeza da vitoacuteria Novamente atraveacutes da raiz o texto atribui agrave atitude desses homens o sinocircnimo de seguranccedila e firmeza

Essa credibilidade se observa tambeacutem como sinocircnimos de guardas e segu-ranccedilas porteiros (1Crocircnicas 922) pessoas responsaacuteveis por atividades diversas em quem se depositou total confianccedila (1Crocircnicas 931 2Crocircnicas 3412)

Haacute vaacuterios substantivos que satildeo derivados da raiz ʾ mn e todos eles transmitem a ideia baacutesica de ldquosuporte firmezardquo ou ldquoconfirmaccedilatildeordquo Haacute variantes da palavra traduzidas por ldquopai adotivordquo algueacutem que apoia e nutre um grupo familiar dando-lhe estabilidade e firmeza A forma feminina com essa raiz ʾomenet significa ldquomatildee adotivardquo e inclui a ideia de ldquonutrirrdquo ldquofortalecerrdquo Outra palavra que demonstra essa firmeza agora na arte eacute ʾuman denota ldquoum operaacuterio habi-lidosordquo traduzido por ldquoartesatildeordquo97

O texto biacuteblico apresenta uma relaccedilatildeo curiosa entre o homem e ʾmn falando em termos da natureza humana ele eacute falho e inseguro pode vacilar Os adjetivos relacionados com ʾ mn atribuiacutedos aos seres humanos nunca englobam a sua tota-lidade mas sim aspectos e momentos pontuais que viveram Nem mesmo a Joacute que recebeu os elogios do Senhor por sua integridade eacute atribuiacutedo esse adjetivo

No entanto eacute a Deus que ʾ āman eacute atribuiacutedo Para Flor isso acontece especial-mente no livro de Salmos (mas natildeo soacute) porque Deus eacute imutaacutevel estaacutevel e firme

94 A mesma palavra pode ter dois significados diferentes um se refere a m ezuwzah (laterais) enquanto que a palavra de 2 Reis 1816 se refere agrave parte superior da porta A LXX traduz por estērigmena 95 2Reis 1816 ldquoFoi quando Ezequias arrancou das portas do templo do Senhor e das ombreiras o ouro de que ele rei de Judaacute as cobrira e o deu ao rei da Assiacuteriardquo96 A LXX traduz este texto com a mesma ideia97 FLOR E N op cit p 15

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enquanto o ser humano frequentemente eacute fraco instaacutevel e inconstante98 Por essa razatildeo acreditando nisso em Lamentaccedilotildees 323 se lecirc a respeito das misericoacuterdias de Deus ldquo() renovam-se cada manhatilde Grande eacute a tua fidelidade [ʾ ĕmucircnātekā]rdquo

A palavra do Senhor tambeacutem eacute tida por fiel e verdadeira digna de credibili-dade e aiacute tambeacutem se encontra a raiz da palavra em questatildeo O salmo 119 nos versos 75 86 90 138 o poeta homenageia a Lei de Deus qualificando-a de fiel e verdadeira

3 āʾmaN e ldquoaSSim Sejardquo

A palavra ldquoAmeacutemrdquo aparece vinte e quatro vezes no Antigo Testamento (doze delas apenas em Deuteronocircmio 2715ss) Devido agrave variedade de possibilidades torna-se difiacutecil identificar o seu real sentido no hebraico99

Haacute textos que sugerem a expressatildeo ldquoassim sejardquo em sua traduccedilatildeo com uma conotaccedilatildeo de confirmaccedilatildeo daquilo que estava sendo dito como nos versos de Jeremias 115100 286101 e 1Reis 136 37102 Nesses textos eacute possiacutevel interpretar que Deus daria a sua becircnccedilatildeo ao que jaacute havia sido planejado e dito Nessas passagens a referecircncia eacute feita aos oradores somente porque eles reconheceram o que jaacute havia sido determinado por YHVH e confirmaram a afirmaccedilatildeo Suas declaraccedilotildees podem significar ldquoPrecisamente Eu sinto o mesmo a respeito que Deus o faccedilardquo103 Eacute como uma aceitaccedilatildeo do que foi estabelecido natildeo uma esperanccedila em algo que aconteceria

Existem tambeacutem ao menos trecircs passagens nas quais a palavra ldquoameacutemrdquo estaacute em uma situaccedilatildeo diferente da mencionada anteriormente todas elas relacionadas a uma maldiccedilatildeo contra a pessoa envolvida em Deuteronocircmio 2715-26 (declara-ccedilatildeo de maldiccedilotildees no caso do natildeo cumprimento das leis e estatutos estabelecidos por Deus) em Nuacutemeros 522104 (declaraccedilatildeo solene acontecia no momento em que

98 ibidem p 1799 WILLIAM B EERDMANS PUBLISHING COMPANY op cit p 320100 Jeremias 115 ldquoPara que confirme o juramento que fiz a vossos pais de lhes dar uma terra que manasse leite e mel como se vecirc neste dia Entatildeo eu respondi e disse ameacutem oacute Senhorrdquo101 Jeremias 286 ldquoDisse pois Jeremias o profeta Ameacutem Assim faccedila o Senhor confirme o Senhor as tuas palavras com que profetizaste e torne ele a trazer da Babilocircnia a este lugar os utensiacutelios da Casa do Senhor e todos os exiladosrdquo102 1Reis 136 37 ldquoEntatildeo Benaia filho de Joiada respondeu ao rei e disse Ameacutem Assim o diga o Senhor Deus do rei meu senhor Como o Senhor foi com o rei meu senhor assim seja com Salomatildeo e faccedila que o trono deste seja maior do que o trono do rei Davi meu senhorrdquo103 WILLIAM B EEDERMANS PUBLISHING op cit pp 320104 Nuacutemeros 522 ldquoE esta aacutegua amaldiccediloante penetre nas tuas entranhas para te fazer inchar o ventre e te fazer descair a coxa Entatildeo a mulher diraacute Ameacutem Ameacutemrdquo

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a mulher era confrontada sobre o adulteacuterio) e em Neemias 513105 (compromisso contra a usura) Por serem maldiccedilotildees que recairiam sobre quem natildeo cumprisse a sua palavra ou imprecaccedilatildeo sobre a pessoa condenada a expressatildeo sugere uma declaraccedilatildeo solene de que aqueles castigos iriam acontecer106 Seria o conhecido ldquoassim sejardquo pronunciado em declaraccedilatildeo solene de aceitaccedilatildeo do castigo contra aquele que estava assumindo o compromisso

Em algum momento a expressatildeo passou a ser tambeacutem usada na Doxologia em resposta da congregaccedilatildeo diante de uma declaraccedilatildeo de Deus em Neemias 86 a congregaccedilatildeo diz ldquoameacutem ameacutemrdquo levantando as suas matildeos Natildeo se sabe dizer se este jaacute era um costume seguido (conforme 1Crocircnicas 1636) ou se passou a ser regular a partir daquele momento107 Sobre os cacircnticos do salteacuterio a palavra aparece no final dos primeiros quatro livros (Salmos 4113 7219 8952 10648)

CONCLUSAtildeO Os exemplos apresentados ilustram a importacircncia de o estudante do hebraico

biacuteblico analisar as palavras a partir de suas raiacutezes para poder interpretar melhor o texto biacuteblico sempre considerando prioritariamente o contexto que eacute deter-minante na interpretaccedilatildeo108 Dificilmente haveraacute um uacutenico significado oriundo de uma uacutenica raiz portanto conhecer os seus significados seraacute uma grande contribuiccedilatildeo no estudo do texto biacuteblico

Quando um hebreu ouvia as vaacuterias palavras derivadas da raiz ʾmn a ideia baacutesica que lhe vinha agrave mente era aparentemente ldquoconstacircnciardquo ldquoestabilidaderdquo Quando se referiam a objetos significavam ldquocontinuidaderdquo quando relacionadas a pessoas ldquoconfiabilidaderdquo Outros derivados da raiz satildeo ldquodurabilidaderdquo ldquoesta-bilidaderdquo ldquoverdaderdquo ldquofeacuterdquo ldquocompletuderdquo ldquoaquele que protegerdquo109 No entanto Deus eacute aquele que plenamente tem essas virtudes e atributos o ser humano tem essas qualidades ateacute certo ponto devido agrave sua limitaccedilatildeo e fragilidade

Quanto agrave palavra ldquoameacutemrdquo que proveacutem da raiz que expressa todas as qualida-des mencionadas anteriormente a expressatildeo tem o sentido de feacute e confianccedila em algo previamente estabelecido mas tambeacutem expressa uma certeza e confianccedila 105 Neemias 513 ldquoTambeacutem sacudi o meu regaccedilo e disse Assim o faccedila Deus sacuda de sua casa e de seu trabalho a todo homem que natildeo cumprir esta promessa seja sacudido e despojado E toda a congregaccedilatildeo respondeu Ameacutem E louvaram o Senhor e o povo fez segundo a sua promessardquo106 Barry J D Mangum D Brown D R Heiser et al Faithlife Study Bible (Dt 2715) Bellingham WA Lexham Press 2016107 WILLIAM B EEDERMANS PUBLISHING op cit pp 321108 Osborne (2009 paacutegs 101-139 especialmente as paacutegs 104-108) trata do exagero que muitos estudiosos da Biacuteblia datildeo agraves palavras analisadas de forma isolada descontextualizada109 WILLIAM B EEDERMANS PUBLISHING op cit pp 323

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quanto ao futuro Quando observada no Antigo Testamento ela eacute feita de forma solene e consciente e por isso mesmo raramente eacute encontrada no texto

A expressatildeo que sugere uma ratificaccedilatildeo eacute cuidadosamente aplicada nas paacutegi-nas da Biacuteblia natildeo sendo uma palavra dita em qualquer momento ou por qualquer situaccedilatildeo A conclusatildeo de Lande eacute que ldquoameacutemrdquo eacute usado como confirmaccedilatildeo de uma situaccedilatildeo muito especial e que a expressatildeo natildeo pertence agrave fala cotidiana110 Hulst expressa a mesma opiniatildeo ao afirmar ldquoA palavra ameacutem natildeo pertence agraves palavras do uso diaacuterio constante eacute mantido para uso em situaccedilotildees muito especiais e aleacutem disso raramente ocorre111 Por sua raridade no texto biacuteblico os personagens do Antigo Testamento tinham consciecircncia do seu sentido e o respeitavam

No AT a palavra eacute usada tanto pelo indiviacuteduo quanto pela comunidade para 1) confirmar a aceitaccedilatildeo de uma tarefa designada por homens mas a sua exe-cuccedilatildeo envolve a vontade de Deus (1Reis 136) 2) ratificar a aplicaccedilatildeo pessoal de uma ameaccedila ou maldiccedilatildeo divina (Nuacutemeros 522 Deuteronocircmio 2715ss Jeremias 115 Neemias 513) e 3) para declarar o louvor a Deus em resposta a uma doxologia (1Crocircnicas 1636 Neemias 86) como mostram os textos finais dos primeiros quatro livros dos Salmos (4113 7219 8952 10648)112

110 LANDE 1949 paacuteg 112 apud FLOR 2000 pp 16 17111 HULST 1953 p50 apud FLOR E N ldquoAmenrdquo in Old Testament liturgical texts a study of its meaning and later development as a plea for ecumenical understanding University of South Africa novembro de 2000 p17112 RENGSTORF ἀμήν in Wm B Eerdmans Publishing Co 1964 paacuteg 335

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A ANAacuteLISE DO DISCURSO NA INTERPRETACcedilAtildeO BIacuteBLICA

DISCOURSE ANALYSIS IN BIBLICAL INTERPRETATIONMe Thaiacutes de Oliveira Viriacutessimo113

Universidade Federal do Rio de Janeiro

RESUMO A Anaacutelise do Discurso tida como relevante para a interpretaccedilatildeo dos inuacutemeros

gecircneros textuais existentes eacute uma teoria linguiacutestica com extensiva abrangecircncia e aplicabilidade Sua importacircncia tem sido reconhecida inclusive por aqueles que manuseiam textos antigos entre os quais a Biacuteblia eacute encontrada Por ser ainda escassa a interaccedilatildeo entre estudos da linguagem e teologia no ambiente acadecircmico brasileiro objetiva-se neste artigo apresentar a Anaacutelise do Discurso como ferramenta possiacutevel de interpretaccedilatildeo biacuteblica Para isso interpretou-se Evangelho de Marcos 11-4 por meio do meacutetodo desenvolvido por Viriacutessimo (2018) sob os pressupostos da linguiacutestica textual (HORTA 1991 WALLACE 2009 GUTHRIE DUVALL 1998 OLSSON 2013) A pesquisa resultou na compilaccedilatildeo de informaccedilotildees criacuteticas acerca do texto biacuteblico

Palavras-chave Anaacutelise do Discurso Novo Testamento Grego koineacute Evan-gelho de Marcos

ABSTRACTConsidered as relevant for interpreting many existing textual genres Discour-

se Analysis is a linguistic theory with wide scope and applicability Even those who handle Ancient texts among which the Bible is found have recognized its importance As the interaction between studies in languages and Theology in Brazilian colleges is still rare this paper aims to present Discourse Analysis as a tool for biblical interpretation Using the method developed by Viriacutessimo (2018) the Gospel of Mark 11-4 was observed through linguistic assumptions (HORTA 1991 WALLACE 2009 GUTHRIE DUVALL 1998 OLSSON 2013) As a result it was developed a critical compilation of informations about the text

Keywords Discourse Analysis Biblical interpretation New Testament Koine Greek Gospel of Mark

113 Mestre em Letras Claacutessicas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro Possui tambeacutem os tiacutetulos de Licenciada em Portuguecircs-Grego pela supracitada instituiccedilatildeo e de Especialista em Antropologia Intercultural pelo Centro Universitaacuterio de Anaacutepolis (UniEvangeacutelica) Email virissimoprotonmailcom

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1 INTRODUCcedilAtildeOEacute lugar comum afirmar que nenhuma outra obra literaacuteria foi e permanece sen-

do tatildeo citada comentada traduzida e questionada na histoacuteria da humanidade como a Biacuteblia ndash coletacircnea de livros sagrados para o cristianismo e igualmente respeitada por outros segmentos religiosos globais114 A influecircncia da Biacuteblia eacute notoacuteria inclusive no que se refere agrave formaccedilatildeo cultural brasileira Suas histoacuterias inspiraram a arquitetura a exemplo do Redentor de braccedilos abertos sobre a Baiacutea de Guanabara a literatura como os personagens machadianos Esauacute e Jacoacute a muacutesica conforme a mistura dos amores poeacuteticos cantada por Renato Russo em seu Monte Castelo

Ainda assim a abordagem da Biacuteblia como um objeto de estudo suscetiacutevel ao escrutiacutenio por meacutetodos multidisciplinares continua sendo miacutenima no espaccedilo acadecircmico nacional Eacute certo que avanccedilos promissores precisam ser destacados nessa aacuterea como o recente ldquoEstudos Biacuteblicos em Foco I Congressordquo evento promovido pelo Instituto de Letras da UERJ em novembro de 2019 Contudo faz-se indispensaacutevel natildeo apenas a criaccedilatildeo mas a manutenccedilatildeo de iniciativas de pesquisas biacuteblicas fora dos ambientes confessionais de reflexatildeo

A promoccedilatildeo pois de uma metodologia de pesquisa ancorada na Anaacutelise do Discurso destacando-se a sua utilidade no ensino de liacutengua e teologia eacute a linha de chegada que se pretende alcanccedilar com esta publicaccedilatildeo Para tal o artigo foi organizado nas seguintes seccedilotildees 2 Anaacutelise do Discurso em que conceitos fundamentais acerca do assunto seratildeo apresentados 3 Metodologia em que o meacutetodo proposto seraacute passo a passo descrito numa siacutentese teoacuterica e exemplificado com sua aplicaccedilatildeo em Segundo Marcos 11-4 conforme os itens subsequentes ndash 31 Contextualizaccedilatildeo 32 Etapas de anaacutelise 33 Notas e 34 Interpretaccedilatildeo e 4 Consideraccedilotildees finais em que se registraraacute a importacircncia do diaacutelogo entre as Ciecircncias da Linguagem e a Teologia

2 ANAacuteLISE DO DISCURSOA Anaacutelise do Discurso (doravante AD) eacute um quadro teoacuterico com vaacuterias pos-

sibilidades de aplicaccedilatildeo visto que nele podem ser considerados na anaacutelise de

114 O islamismo por exemplo tem registrado no Alcoratildeo a validade da Toraacute e da Biacuteblia como escrituras inspiradas por Deus Alguns versiacuteculos em que isso pode ser percebido satildeo ldquoEle te revelou (oacute Mohammad) o Livro (paulatinamente) com a verdade corroborante dos anteriores assim como havia revelado a Toraacute e o Evangelhordquo (33) ldquoDize Cremos em Allah no que nos foi revelado no que foi revelado a Abraatildeo a Ismael a Isaac a Jacoacute e agraves tribos e no que do Senhor foi concedido a Moiseacutes a Jesus e aos profetas natildeo fazemos distinccedilatildeo alguma entre eles porque somos para Ele muccedilulmanosrdquo (384) ldquoE se tivessem sido observantes da Toraacute do Evangelho e de tudo quanto lhes foi revelado por seu Senhor alimentar-se-iam como que estaacute acima deles e do que se encontra sob seus peacutes [hellip]rdquo (566)

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um texto os seus aspectos extralinguiacutesticos (contexto de produccedilatildeo tipografia meio de apresentaccedilatildeo etc) paralinguiacutesticos (pontuaccedilatildeo entonaccedilatildeo atos de fala gecircnero textual etc) e linguiacutesticos (ordem lexical nominalizaccedilatildeo estilo etc) (LOUW 1992 p18) Mesmo textos antigos com sua exiguidade de formas podem ser observados agrave luz da AD quando definida como ldquoum processo de investigaccedilatildeo pelo qual algueacutem examina a forma e a funccedilatildeo de todas as partes e niacuteveis de um discurso escrito com o objetivo de melhor compreender tanto as partes como o todo daquele discursordquo (GUTHRIE 2001 p 255 traduccedilatildeo nossa)115 Contudo para melhor compreensatildeo do que eacute a AD faz-se necessaacuterio definir o que se entende como discurso

Funcionando ldquoao mesmo tempo como referindo objetos empiacutericos (lsquohaacute discursosrsquo) e como algo que transcende todo ato de comunicaccedilatildeo particular (lsquoo homem eacute submetido ao discursorsquo)rdquo (MAINGUENEAU 2015 p 23) ldquodiscursordquo eacute um termo polivalente Por um lado em associaccedilatildeo a ldquoobjetos empiacutericosrdquo refere-se a ldquoum conceito superordenador no que diz respeito agraves questotildees tradicionais dos filoacutelogos e dos literatosrdquo por abranger ldquotoda uma variedade de gecircneros literaacuterios de registros de niacuteveis de textualizaccedilatildeo das obras bem como as distinccedilotildees formais entre poesia e prosardquo (BONDARCZUK 2017 p 61) Por outro lado extrapolando o ato comunicativo discurso eacute ldquoum processo e natildeo um objeto apresentando um movimento que tem sua dinacircmica proacutepria (ou dyacutenamis) e que por sua vez envolve a negociaccedilatildeo de significado entre os interlocutoresrdquo (BONDARCZUK 2017 p 61) A proacutepria etimologia da palavra mostra que discurso ldquotem em si a ideia de curso de percurso de correr por de movimentordquo sendo assim ldquopalavra em movimento praacutetica de linguagem com o estudo do discurso observa-se o homem falandordquo (ORLANDI 2000 p 15)

Frente a tal complexidade a AD se configura como uma aacuterea de estudos da linguagem que perpassa procedimentos de anaacutelise linguiacutestica tradicionais chegando aos campos de atuaccedilatildeo das teorias linguiacutesticas modernas No que diz respeito aos estudos biacuteblicos somam-se deacutecadas de aplicaccedilatildeo da AD com propoacutesitos diversos ndash desde a traduccedilatildeo da Biacuteblia ateacute a interpretaccedilatildeo desta propriamente dita Porter (2015 p 134) identifica cinco tipologias de AD desen-volvidos para esses fins (1) a Sulafricana (2) a da Sociedade Internacional de Linguiacutestica (Summer Institute of Linguistics SIL) (3) uma abordadem ecleacutetica (4) a amparada na Linguiacutestica Sistecircmico-Funcional e (5) a Continental Euro-peia116 Como se veraacute adiante eacute nessa uacuteltima tipologia em que o meacutetodo a ser apresentado foi ancorado

115 ldquoa process of investigation by which one examines the form and function of all the parts and levels of a written discourse with the aim of better understanding both the parts and the whole of that discourserdquo116 Para maiores detalhes cf Breve histoacuterico entre Anaacutelise do Discurso e os estudos do Novo Testamento subcapiacutetulo da dissertaccedilatildeo de mestrado da presente autora (VIRIacuteSSIMO 2018)

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3 METODOLOGIAA Anaacutelise do Discurso Continental Europeia especificamente nos trabalhos

desenvolvidos pela escola escandinava eacute base dessa metodologia porque sendo sua ecircnfase o texto escrito o que com ela objetiva eacute o esclarecimento das relaccedilotildees de conteuacutedo entre as partes do texto explicando-as em termos da proacutepria liacutengua original Por isso eacute comum essa tipologia ser comparada agrave Linguiacutestica Textual e conforme o teoacutelogo e analista do discurso sueco Birger Olsson ldquouma anaacutelise linguiacutestico-textual eacute um componente baacutesico de todas as exegesesrdquo117 (OLSSON 1985 p 107 apud GUTHRIE 2001 p 256 traduccedilatildeo nossa)

Em suma na tipologia Continental Europeia segundo a elaboraccedilatildeo que Reed (1996) faz das formulaccedilotildees de David Hellholm professor emeacuterito da Faculdade de Teologia da Universidade de Oslo

a anaacutelise do discurso estaacute amplamente preocupada com a comunicaccedilatildeo (Ausdruck) dos signos (Zeichn) por um autorfalante (Sender) e o efeito (Appell) que eles tecircm em um leitorouvinte (Empfaumlnger) Tais signos representam arbitrariamente (Darstellung) coisas como objetos assunto e circunstacircncias (Gegenstaumlnde und Sachverhalte) dos mundos externo e interno dos textos Isso eacute basicamente o que a parte de anaacutelise do termo ldquoanaacutelise do discursordquo envolve (REED 1996 p 225 traduccedilatildeo nossa)118

Feitas tais consideraccedilotildees sobre a tipologia empregada cabe dizer que as subseccedilotildees a seguir estatildeo divididas em explicaccedilatildeo do processo e a aplicaccedilatildeo a fim de exemplificaacute-lo no corpus neotestamentaacuterio

31 CONTEXTUALIZACcedilAtildeO

O primeiro passo da contextualizaccedilatildeo do corpus eacute a leitura integral de uma traduccedilatildeo jaacute existente sempre que disponiacutevel da obra em que ele se encontra A versatildeo biacuteblica aqui consultada foi a Almeida Revista e Atualizada (seguidamente ARA) em funccedilatildeo de nela ser respeitada ldquona medida do possiacutevel a forma da liacutengua em que se encontra a mensagem originalrdquo (BARNWELL 2011 p 15) Ademais no estudo da Biacuteblia eacute oportuna a leitura em diferentes versotildees para comparaccedilatildeo ldquotraduccedilotildees entre as quais vocecirc consiga perceber os pontos de divergecircnciardquo (FEE STUART 2011 p 43) e caso o pesquisador assim queira

117 ldquoA text-linguistic analysis is a basic component of all exegesisrdquo118 ldquoDiscourse analysis is broadly concerned with the communication (Ausdruck) of signs (Zeichen) by an authorspeaker (Sender) and the effect (Appell) they have on a readerlistemer (Empfaumlnger) Such signs arbitrarily represent (Darstellung) such things as objects subject matter and circumstances (Gegenstaumlnde und Sachverhalte) of the external and internal worlds of the texts This is largely what the analysis part of the term lsquodiscouse analysisrsquo entailsrdquo

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fazer sugere-se que essa leitura comparativa esteja focada no corpus propria-mente dito

No mesmo passo da leitura realiza-se uma pesquisa histoacuterico-literaacuteria e formula-se uma redaccedilatildeo a respeito de questotildees gerais como autoria dataccedilatildeo gecircnero puacuteblico alvo entre outras informaccedilotildees que o pesquisador julgar perti-nentes Para este exemplar consultou-se o livro Introduccedilatildeo ao Novo Testamento (CARSON MOO MORRIS 1997) e a partir dele expandiu-se a bibliografia Eacute profiacutecuo que o pesquisador jaacute nessa etapa comece a estabelecer suas convicccedilotildees a respeito das questotildees gerais pontuando em seu texto quais variedades satildeo-lhe mais coerentes no todo conforme o resultado a seguir

ΚΑΤΑ ΜΑΡΚΟΝ como apresenta a 5ordf ediccedilatildeo de The Greek New Testament (ALAND 2014) traduzido como Segundo Marcos refere-se ao tiacutetulo atribuiacutedo pela tradiccedilatildeo eclesiaacutestica ao segundo evangelho da ordem canocircnica Contudo a nomenclatura mais popular para a obra eacute a de Evangelho de Marcos ou sim-plesmente Marcos isso por dois fatores Em primeiro lugar os quatro escritos dedicados agrave vida e ao serviccedilo de Jesus satildeo tradicionalmente tidos como ldquoevan-gelhordquo ndash palavra extraiacuteda justamente do primeiro versiacuteculo de Marcos Eacute vaacutelido dizer que Marcos esteve agrave margem dos estudos neotestamentaacuterios por muito tempo possivelmente em funccedilatildeo de ser esse o evangelho de menor extensatildeo (16 capiacutetulos em comparaccedilatildeo aos 28 de Mateus 24 de Lucas e 21 de Joatildeo) Jaacute nos dias atuais o relato tem ganhado proeminecircncia por ser o mais antigo de que se dispotildee acerca de Jesus tendo servido como base para os textos mateano e lucano (PAGOLA 2013 p 11)

A outra razatildeo pela qual a obra tem o tiacutetulo exposto deve-se ao fato de a primeira atribuiccedilatildeo de um suposto Marcos como autor do livro datar do II seacutec Euseacutebio historiador cristatildeo do IV seacutec dedica boas porccedilotildees de seu livro Histoacuteria Eclesiaacutestica (326 d C) discutindo a formaccedilatildeo do cacircnone evangeacutelico Ao escre-ver acerca de Segundo Marcos Euseacutebio primeiramente registra o depoimento de um presbiacutetero testemunhado por Papias bispo da Friacutegia por volta de 120 d C o qual dizia que embora natildeo tivesse ouvido e seguido diretamente a Jesus Marcos veio a escrever sobre suas accedilotildees por ter sido disciacutepulo e inteacuterprete do apoacutestolo Pedro (CESAREacuteIA III 39 15) Euseacutebio citaria ainda outros Pais da Igreja como Irineu (185 d C) e Clemente (195 d C) e justificaria a criaccedilatildeo do texto em muito pela insistecircncia da comunidade para que um relato evangeacutelico fosse escrito

A figura desse Marcos segundo o testemunho biacuteblico (TENNEY 2008 v 4 p 117) poderia ser construiacuteda a partir da fuga de Pedro da prisatildeo o apoacutestolo

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logo se dirigiu ldquoagrave casa de Maria matildee de Joatildeo tambeacutem chamado Marcos onde muita gente se havia reunido e estava orandordquo (Atos dos Apoacutestolos 1212 - ARA) Marcos cujo nome hebraico era Joatildeo parece ter sido um jovem financeiramente abastado levando-se em conta o fato de sua matildee acolher a receacutem-nascida co-munidade cristatilde em sua proacutepria casa pondo inclusive servos agrave disposiccedilatildeo dos seus integrantes (Atos dos Apoacutestolos 1213) Um detalhe interessante sobre a figura de Maria matildee de Marcos eacute seu provaacutevel status de viuacuteva uma vez que a propriedade era considerada como dela o que seria inconcebiacutevel agrave eacutepoca caso o marido ainda vivesse

O valor da mulher oriental no periacuteodo de Jesus estava ligado agrave fecundidade e ao lar natildeo se comparando ao homem na perspectiva da religiatildeo (JEREMIAS 1983 p 493) Contudo o papel desempenhado por Maria junto a essa comuni-dade cristatilde chama ainda a atenccedilatildeo para a importacircncia de natildeo se subestimar a atuaccedilatildeo das mulheres no ambiente cristatildeo natildeo apenas no sustento dos evange-lizadores mas sobretudo na divulgaccedilatildeo da mensagem de Jesus desde os dias em que o Nazareno iniciou sua missatildeo na Galileia Os registros evangeacutelicos mostram Jesus sempre disposto a posicionar a figura da mulher dentro do vindouro Reino de Deus dando-lhe voz e importacircncia ndash tanto por meio dos diaacutelogos estabelecidos com mulheres como por paraacutebolas contadas cujo enredo as tinha como personagens

Joatildeo Marcos tambeacutem possuiacutea parentesco com o proeminente liacuteder cristatildeo Barnabeacute (Colossenses 410) que o levou em sua primeira viagem missionaacuteria com Paulo (Atos dos Apoacutestolos 135) Entretanto agrave eacutepoca da empreitada Joatildeo acabou retornando a Jerusaleacutem (Atos dos Apoacutestolos 1313) Os motivos dessa desistecircncia satildeo desconhecidos sabe-se no entanto que eles foram prejudiciais a ponto de separar Paulo e Barnabeacute nas viagens posteriores (Atos dos Apoacutestolos 1537-39a) Tempos depois o jovem viria a ser considerado com respeito por Paulo aquele que antes o rejeitara (Colossenses 410 1Timoacuteteo 411 Filemom 24) Tambeacutem Pedro diria ldquoMarcos meu filhordquo (1Pedro 513) ao citaacute-lo como companheiro na chamada ldquoBabilocircniardquo ndash provavelmente Roma

Haacute quem infira ldquoassinaturas ao peacute do quadrordquo ou seja evidecircncias autorais textuais deixadas no proacuteprio evangelho (POHL 1998) Um exemplo eacute o excerto de Marcos 1017-22 o qual se refere ao encontro de Jesus com um homem rico tambeacutem relatado em Mateus 1916-22 e Lucas 1818-23 Para alguns estudiosos eacute sugerido um testemunho pessoal no versiacuteculo 21 ldquoJesus entatildeo tendo olhado para ele com olhos de amor []rdquo (traduccedilatildeo nossa) Uma informaccedilatildeo dessa natureza argumentam esses estudiosos somente poderia ser registrada pela pessoa presente em tal situaccedilatildeo ou seja o jovem e rico Joatildeo Marcos de Atos dos Apoacutestolos

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Ainda que haja consenso na Tradiccedilatildeo quanto agrave autoria de Segundo Marcos o mesmo natildeo se pode afirmar no que diz respeito ao local de publicaccedilatildeo embora a inclinaccedilatildeo da maioria seja Roma (CARSON MOO MORRIS 1997 p 107) Tambeacutem quanto agrave data de criaccedilatildeo do texto quatro satildeo as deacutecadas sugeridas Sendo a primeira delas os anos 40 d C jaacute se mostra evidente o texto escrito ser o produto de uma tradiccedilatildeo preacute-literaacuteria extensa jogando luz sobre o caraacutecter oral do evangelho Endossa-se aqui a suposiccedilatildeo da publicaccedilatildeo de Segundo Marcos ter ocorrido em meados dos anos 60 d C muito em funccedilatildeo de seu conteuacutedo e do que disseram os primeiros liacutederes acerca de sua produccedilatildeo

A principiante feacute cristatilde do I seacutec estava imersa em um amaacutelgama religioso que a ela fortemente se opunha Por um lado as pressotildees teoloacutegicas dos judeus como os escritos neotestamentaacuterios bem expotildeem por outro a repressatildeo do Im-peacuterio Romano a partir do governo de Nero (CAIRNS 1995 p 73) quando teve iniacutecio o grande massacre tanto de judeus como de cristatildeos crentes opositores agrave religiatildeo oficial sendo estes torturados como uma forma de entretenimento puacuteblico (GONZAacuteLEZ 1995 p 25) Justifica-se assim a feitura de Marcos como o apelo agrave firmeza em resposta a difiacuteceis tempos de perseguiccedilatildeo e martiacuterio e o combate ao sincretismo das divisotildees religiosas

Voltando ao evangelho como texto literaacuterio Marcos eacute parte do tetraeuangeacute-lion ldquoisto eacute os quatro Evangelhos vistos como um conjunto de documentos sal-viacuteficos que tinham o mesmo valor veio a ter ampla circulaccedilatildeo e reconhecimento como nos mostram os escritos de Irineu (bispo de Lyon por volta de 180 d C)rdquo (ALAND ALAND 2013 p 53) Seu gecircnero eacute ldquoevangelhordquo propriamente dito algo proacuteprio do cristianismo ou seja ldquoum modo de expressar-se uacutenico que natildeo pode ser identificado com nenhuma outra obra do tempo antigordquo (MARCON-CINI 2012 p 9) Embora haja quem veja semelhanccedilas dos escritos evangeacutelicos com os modelos das leituras feitas nas sinagogas ou que os vincule ldquoao gecircnero da biografia greco-romana e suas variantesrdquo (ZABATIEIRO LEONEL 2011 p 41) o objetivo dos evangelistas era divulgar a mensagem de Jesus particu-larmente para as pessoas natildeo radicadas na Palestina e a forma adotada para isso foi inovadora

A liacutengua de Marcos eacute o grego koineacute em sua variaccedilatildeo semiacuteticavulgar o que a torna fascinante Um livro escrito para o povo

[] composto de aproximadamente 95 narrativas com 11240 palavras 1345 vocaacutebulos 30 aacutepax ou seja vocaacutebulos natildeo usados em outros lugares do Novo Testamento A liacutengua eacute o grego popular da koineacute com semitismos (talithagrave kum effethacirc korbacircn Abbagrave) poreacutem natildeo de tal modo

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a justificar um original aramaico com alguns latinismos (praitoacuterion kentyrion) com estilo vivaz proacuteprio da liacutengua falada pouco cuidado gramatical e sintaticamente que privilegia a parataxe ou coordenaccedilatildeo assindeacutetica (cf 630-33) inclinado a empregar anacolutos (cerca de 20) com repeticcedilatildeo de frases Tudo evidencia o estilo do narrador atestado tambeacutem pelo frequente lsquologo em seguidarsquo e pelo presente histoacuterico (150 ocorrecircncias) [] (MARCONCINI 2012 p 90)

32 ETAPAS DE ANAacuteLISE

Esta eacute de longe a parte que exige maior dedicaccedilatildeo do pesquisador pois natildeo se resume a fichar autores mesmo que de maneira criacutetica Trata-se do exame deta-lhado do corpus em sua liacutengua original Nesse ponto faz-se sobretudo necessaacuteria a escolha consciente do texto grego que melhor ofereccedila subsiacutedios de consulta a respeito de sua formaccedilatildeo Por isso as opccedilotildees adotadas pela autora deste artigo satildeo continuamente as publicaccedilotildees da Sociedade Biacuteblica da Alemanha como a quinta ediccedilatildeo do Novo Testamento grego (ALAND 2014)

A periacutecope selecionada deve entatildeo ser lida em grego ndash ato imprescindiacutevel pois ldquoseja para a estrutura seja para a especificidade do ato de ler o texto natildeo oferece suporte a um significado inequiacutevoco mas eacute lsquoo lugar de possiacuteveis significadosrsquordquo (EGGER 1994 p 92) Isto feito o texto eacute quebrado em oraccedilotildees seus elementos analisados morfossintaticamente e todo o conjunto disposto em diagrama De fato a anaacutelise morfossintaacutetica natildeo eacute um fim em si mesma mas o meio pelo qual se poderaacute dispor o texto analiticamente dividindo-o em partes ainda menores na diagramaccedilatildeo semacircntico-gramatical 119 processo em que melhor se visualizam as relaccedilotildees de niacutevel estrutural

Na disposiccedilatildeo gramatical do texto podem-se observar todos os seus consti-tuintes linguiacutesticos e as regras que os coordenam (EGGER 1994 p 74) Jaacute na disposiccedilatildeo semacircntica satildeo retratadas ldquoas relaccedilotildees de significadofunccedilatildeo entre palavras frases oraccedilotildees sentenccedilas e ateacute mesmo paraacutegrafosrdquo 120 (DUVALL GUTHRIE 1998 p 40 traduccedilatildeo nossa) pois ldquosob o aspecto semacircntico o texto eacute visto como o conjunto de relaccedilotildees (estrutura) entre os seus elementos significantes forma um todo constituindo uma espeacutecie de lsquomicro-universo semacircnticorsquordquo (EGGER 1994 p 91)

119 Embora siga o modelo proposto por Guthrie e Duvall (1998) a diagramaccedilatildeo semacircntico-gramatical aqui empregada eacute uma adaptaccedilatildeo feita por Viriacutessimo (2018) Sendo uma ferramenta ainda em desenvolvimento ela eacute por isso amplamente passiacutevel de receber criacuteticas120 ldquothe meaningfunction relationships between the words phrases clauses sentences and even paragraphsrdquo

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O diagrama conteacutem o texto grego e uma traduccedilatildeo em portuguecircs de aparecircncia interlinear Esta traduccedilatildeo eacute preliminar vindo a sofrer sucessivas revisotildees ateacute que se constitua a proposta final Contudo ela eacute importante em funccedilatildeo de o texto original ter sido redigido em grego de modo que Wegner (1998 p 28) a considera o ldquoprimeiro passo a ser realizado na exegeserdquo Uma inovaccedilatildeo da dia-gramaccedilatildeo neste artigo eacute a numeraccedilatildeo para referenciaccedilatildeo sobrescrita antes dos termos aos quais se refere Como uacuteltimo passo tem-se a redaccedilatildeo do comentaacuterio das relaccedilotildees linguiacutesticas observadas

Exemplo

Marcos 11-4

Continua

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continuaccedilatildeo

O substantivo (1) introduz Marcos delimitando o tema de toda a obra sob a construccedilatildeo em genitivo propriamente dito (2 3 4) Haacute um sentido baacutesico de posse entre (2) (3) e (4) embora este natildeo tenha sido representado por setas Optou-se por deixar os modificadores juntos na mesma linha tanto (3) como (4) por eles funcionarem como uma unidade devendo por isso ser interpretados em conjunto Outro sentido passiacutevel de ser destacado tambeacutem natildeo exposto no

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diagrama eacute de especificaccedilatildeo entre os elementos em (3) e de relacionamento em (4)

Na parte a do versiacuteculo 2 o adveacuterbio (5) verifica ou seja fornece uma evidecircncia que comprove a validade da introduccedilatildeo por meio da foacutermula de invocaccedilatildeo veterotestamentaacuteria em perfeito resultativo (6) o qual se refere a ldquouma accedilatildeo inteiramente acabada e por conseguinte tambeacutem o resultado de uma accedilatildeo passada cujos efeitos perduram (ideia de estado)rdquo (HORTA 1991 p 208) O redobro (γε-) caracteriacutestico dos tempos passados marca esse grau de acabamento da accedilatildeo que na esfera expressa em (7) reforccedila ser o agora o momento do cumprimento de algo predito O autor pela obra metoniacutemia em (8) que ligada a (7) o especifica como ecircnfase ndash repeticcedilatildeo do artigo equivalendo a adjunto adnominal enfaacutetico Na parte b do versiacuteculo a partiacutecula demonstrativa (9) chama a atenccedilatildeo para a accedilatildeo que a segue (ROBINSON 2012 p 430) o verbo (10) prefixado pela preposiccedilatildeo que despede o objeto em (11) ldquopara determinado propoacutesitordquo (LOUW NIDA 2013 p 172) Esse objeto (11) tem sua natureza especificada em (15) e pertence a (12) Tambeacutem estaacute expressa a relaccedilatildeo de posse entre (13) e (14) (16) e (17)

No versiacuteculo seguinte a construccedilatildeo (18) e (19) explica como se deu a accedilatildeo (10) sobre o objeto (11) e qual foi a sua esfera (20) de ocorrecircncia Duas exortaccedilotildees entatildeo satildeo expressas e o contraste entre elas estaacute no tempo verbal Por um lado tem-se o imperativo aoristo (21) traduzindo ldquoordem particular e momentacircneardquo por outro haacute o imperativo presente (24) exprimindo ldquouma ordem geral que perdurardquo (HORTA 1991 p 282) Transmitem assim sob ilustraccedilatildeo a impressatildeo de grande urgecircncia e necessidade de permanecircncia tanto a forccedila de significado do verbo (19) como o seu discurso (21) e (24) A relaccedilatildeo de posse em (22) e (23) eacute um paralelismo com (16) e (17) especificando em (23) a figura do (17) Ainda outra relaccedilatildeo de posse haacute entre (25) e (26)

No versiacuteculo final sem preocupaccedilatildeo com o processo mas acompanhando o tempo da narraccedilatildeo histoacuterica o tempo aoristo em (27) expressa a accedilatildeo instantacircnea (WALLACE 2009 p 554) de chegada do sujeito (28) especificado em (29) ndash subjetivaccedilatildeo do particiacutepio Nota-se um paralelismo entre as esferas expressas em (20) e (30) de modo que (28) descreve (18) dando-lhe detalhes viacutevidos A accedilatildeo (27) entatildeo eacute ligada por (31) agrave maneira como aconteceu (32) ndash noccedilatildeo adverbial presente no modo particiacutepio A mensagem (33) dessa circunstacircncia eacute especiacutefica (34) para um fim (35)

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33 NOTAS

Esta parte do meacutetodo a seguir consiste na elaboraccedilatildeo de notas explicativas acerca de palavras-chave ou passiacuteveis de esclarecimento no corpus as quais acabam por compor um dicionaacuterio proacuteprio do pesquisador Segundo Egger (1994) o processo de compreensatildeo dos significados de um texto depende do repertoacuterio de conhecimentos preacutevios do leitor jaacute que sem o arcabouccedilo cultural necessaacuterio ele natildeo seraacute capaz de apreender os sentidos velados de um escrito especialmente se este for de tempos longiacutenquos Acerca do Novo Testamento demanda-se ldquoque se aproximem ao menos os principais paralelos do ambiente p ex os do AT e do mundo heleniacutestico contemporacircneordquo (EGGER 1994 p 92)

Os verbetes da anaacutelise que se segue foram escritos com base na Enciclopeacutedia da Biacuteblia (TENNEY 2008) e apresentados com o item a respeito do qual se pretende dissertar em negrito e em portuguecircs conforme a traduccedilatildeo interlinear seguido da forma grega em itaacutelico como aparece no corpus e introduzida pela abreviaccedilatildeo ldquogrrdquo Veja a seguir

Versiacuteculo 1

Evangelho gr εὐαγγελίου Vocaacutebulo que em sua origem ldquonatildeo se referia aos quatro escritos mas a anuacutencios proclamados oralmenterdquo (MARCONCINI 2012 p 5) Sob o advento messiacircnico significa o bom anuacutencio da possibilidade de recomeccedilo e renovaccedilatildeo Seu uso eacute encontrado no Antigo Testamento com o sentido religioso da comunicaccedilatildeo da mensagem profeacutetica (cf Isaiacuteas 527) bem como para a anunciaccedilatildeo feita em cenaacuterios de guerra ou por ocasiatildeo do nascimento de uma crianccedila (cf Jeremias 2015 1Samuel 319) Esse segundo uso estaacute conectado agrave forma de uso que os gregos faziam da palavra ndash a ideia da proclamaccedilatildeo de uma notiacutecia alegre de cunho poliacutetico ou pessoal referindo-se agrave recompensa dada ao mensageiro que proclamou tal ldquoboa novardquo Novamente trata-se de uma palavra associada a contextos basicamente orais

Jesus gr Ἰησοῦ A Jesus eacute atribuiacutedo o papel mais importante em todo o Novo Testamento sendo apresentado como a chave de interpretaccedilatildeo do Antigo Nos Evangelhos Ele eacute apresentado como um homem judeu nascido milagrosa-mente nos limites da Palestina (cf Mateus 21 Lucas 24-7) pela concepccedilatildeo espiritual de Maria virgem por ainda ser noiva de Joseacute na ocasiatildeo (cf Mateus 118 Lucas 127) Sabe-se pouco acerca de sua infacircncia (cf Mateus 219-23 Lucas 241-52 416) o relato de suas accedilotildees estatildeo concentrados em sua idade adulta (cf Lucas 323)

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Cristo gr Χριστοῦ Do hebraico mashiach aquele sobre o qual Deus der-ramou a autoridade sacerdotal e real do esperado messias dos judeus (STERN 2008 p 26) Esse tiacutetulo era concedido a reis e a sacerdotes ensejando portanto aleacutem da religiosa uma interpretaccedilatildeo poliacutetica sobre Jesus

[filho de Deus] gr [υἱοῦ θεοῦ] Pode ter sido parte original ou um acreacutescimo posterior ldquopara indicar que natildeo se tem certeza quanto ao texto original as palavras υἱοῦ θεοῦ aparecem no texto entre colchetesrdquo (OMANSON 2010 p 56) Opta-se aqui pela originalidade visto que a paternidade celestial dispen-sada sobre Jesus seraacute confirmada na forma de ilustraccedilatildeo no evangelho poucos versiacuteculos depois (Marcos 110-11) sendo o Jesus evangeacutelico uma percepccedilatildeo do evangelista Assim a expressatildeo deve ser entendida como a preocupaccedilatildeo de um autor que escreve para romanos acostumados a cultuar heroacuteis nacionais atribuiacutedos de caracteriacutesticas divinas por forccedila do arcabouccedilo miacutetico grego na religiatildeo imperial

evangelho de jesus Cristo filho de Deus gr τοῦ εὐαγγελίου Ἰησοῦ Χριστοῦ [υἱοῦ θεοῦ] Mais do que pertencer a Jesus o ldquoevangelhordquo eacute o designador da boa notiacutecia acerca daquele que se tornou ldquoportador de toda novidade sendo portador de si mesmordquo (MARCONCINI 2012 p 7)

Versiacuteculo 2

Isaiacuteas o profeta gr τῷ Ἠσαΐᾳ τῷ προφήτῃ Inspirado orador que previu a vinda do salvador e servo sofredor Jesus (Isaiacuteas 9 53) cerca de 700 anos antes de ela acontecer Foi um importante profeta veterotestamentaacuterio com clara influecircncia na esfera poliacutetico-religiosa de seu tempo (2Reis 191-7) Ao longo da histoacuteria o profetismo entre os hebreus assumiu um caraacuteter vocacional e natildeo institucional em contraste agrave profecia profissional cultual popular eou monaacuter-quica (FOHRER 1982 p 289) O que se quer dizer com isso eacute que os profetas profissionais perderam sua importacircncia para ldquoos grandes profetas individuais incluindo Amoacutes e Oseacuteias Isaiacuteas e Miqueacuteias Sofonias e Jeremias Ezequiel e em parte o Deuteroisaiacuteasrdquo (FOHRER 1982 p 291) agrave medida que o povo tomava consciecircncia de que estes estavam certos contrariamente aos profetas profissionais Foi dessa maneira que se deu iniacutecio agrave compilaccedilatildeo dos discursos dos grandes profetas individuais formando coleccedilotildees que posteriormente ficaram conhecidas como escritura sagrada (FOHRER 1982 p 291)

Eia envio meu mensageiro diante da tua face gr Ἰδοὺ ἀποστέλλω τὸν ἄγγελόν μου πρὸ προσώπου σου A citaccedilatildeo no versiacuteculo 2 pertence ao profeta

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Malaquias (Malaquias 31) enquanto a metoniacutemia enfatiza Isaiacuteas A Biacuteblia que os cristatildeos do primeiro seacuteculo liam e ouviam era a Septuaginta ndash a traduccedilatildeo grega do Antigo Testamento tradicionalmente atribuiacuteda a 72 filoacutelogos durante o periacuteodo poacutes-exiacutelico conhecida tambeacutem como LXX Grande parte das citaccedilotildees no NT era baseada nessa traduccedilatildeo e muitas vezes por meio da memoacuteria auditiva que se tinha das leituras feitas em voz alta durante as concentraccedilotildees populares Ao citar apenas Isaiacuteas Marcos parece ter cometido um ato falho que priorizou o profeta maior ou seja aquele que tinha a maior quantidade de escritos sob a influecircncia divina A seguir uma exposiccedilatildeo paralela da fonte na LXX (RAHLFS 1979) e da citaccedilatildeo em Marcos

LXX NTMalaquias 31 Marcos 12ἰ δ ο ὺ ἐ γ ὼ ἐξαποστέλλω τὸν ἄγγελόν μου καὶ ἐπιβλέψεται ὁδὸν π ρ ὸ π ρ ο σώ π ο υ μου καὶ ἐξαίφνης ἥξει εἰς τὸν ναὸν ἑαυτοῦ κ ύριος ὃν ὑμεῖς ζητεῖτε κ α ὶ ὁ ἄ γ γ ε λ ο ς τ ῆ ς δ ι α θ ή κ η ς ὃν ὑμεῖς θέλετε ἰ δ ο ὺ ἔ ρ χ ε τ α ι λ έ γ ε ι κ ύ ρ ι ο ς παντοκράτωρ

Καθὼς γέγραπται ἐν τῷ Ἠσαΐᾳ τῷ προφ ήτ ῃ Ἰδο ὺ ἀποστέλλω τὸν ἄγγελόν μου πρὸ προσώπου σου ὅς κατασκευάσει τὴν ὁδόν σου∙

Isaiacuteas 403 Marcos 13φ ω ν ὴ β ο ῶ ν τ ο ς ἐ ν τ ῇ ἐ ρ ή μ ῳ ῾Ετοιμάσατε τὴν ὁ δ ὸ ν κ υ ρ ί ο υ εὐθείας ποιε ῖτε τὰς τρίβους τοῦ θεοῦ ἡμῶν

φ ο ν ὴ β ο ῶ ν τ ο ς ἐ ν τ ῇ ἐ ρ ή μ ῳ Ἑτοιμάσατε τὴν ὁ δ ὸ ν κ υ ρ ί ο υ εὐθείας ποιε ῖτε τὰς τρίβους αὐτοῦ

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Versiacuteculo 3

Deserto gr τῇ ἐρήμῳ Frequente cenaacuterio no texto biacuteblico o deserto tinha grande influecircncia na vida e na cultura da Palestina (TENNEY 2008 v 2 p 95) Em Marcos Joatildeo estava proacuteximo ao rio Jordatildeo na altura de Nazareacute da Galileacuteia (cap 1 vv 5 e 9)

Senhor gr κυρίου Trata-se de um tiacutetulo dado a Deus e a Cristo com a ideia de ldquoaquele que governa a humanidade com autoridade sobrenaturalrdquo (LOUW NIDA 2010 p 126)

Versiacuteculo 4

Joatildeo o que batiza gr Ἰωάννης [ὁ] βαπτίζων Personagem neotestamentaacuterio tido como aquele que antecederia a vinda do Cristo (Mateus 3 Marcos 12-11 Lucas 31 15-17 21-22) Filho de sacerdote (Lucas 18-25 157-80) Joatildeo Batista rompeu com as expectativas eclesiaacutesticas de sua linhagem exercendo uma vocaccedilatildeo na medida dos profetas antigos sendo por vezes associado agrave figura de Elias (Mateus 117-14) ndash ldquoesse formidaacutevel asceta frequentador do deserto em sua vestimenta grosseira fazia reviver a imagem popular de um profeta inspirado e como os antigos profetas anunciava o iminente julgamento de Deus sobre um povo infielrdquo (DODD 1977 p 137)

Batismo gr βάπτισμα Vocaacutebulo que literalmente significa imersatildeo mas que na mentalidade judaica do seacutec I ldquopoderia incorporar ambas as realidades espirituais e os siacutembolos fiacutesicos Em outras palavras quando algueacutem falava de batismo comunicava ambas as ideias ndash a realidade e o ritualrdquo (WALLACE 2009 p 370 grifo do autor)

Batismo de arrependimento gr βάπτισμα μετανοίας Expressatildeo usada nos evangelhos (Marcos 14 Lucas 38) que revela uma das tarefas da missatildeo a qual Joatildeo estava atrelado No contexto da personagem parece que

o batismo de Joatildeo Batista reflete muito mais o costume dos banhos rituais entre os judeus do que o tipo de batismo praticado pelos cristatildeos que era um siacutembolo de iniciaccedilatildeo na comunidade cristatilde baseada na feacute em Jesus Cristo e na lealdade para com ele como Senhor e Salvador (LOUW NIDA 2013 p 479)

Libertaccedilatildeo gr ἄφεσις Consiste no ldquocancelamento da culpa do pecadordquo121 (BAUER 1979 p 125 traduccedilatildeo nossa)

121 ldquocancellation of the guilt of sinrdquo

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Pecados gr ἁμαρτιῶν A transgressatildeo da medida justa em que se deveria viver tanto conforme as coisas humanas como as divinas (BAUER 1979 p 43) Por medida justa na esfera biacuteblica o paracircmetro eacute o caraacuteter de Deus (Deu-teronocircmio 324 Salmos 117 Miqueacuteias 68) A humanidade criada agrave imagem e semelhanccedila de Deus (Gecircnesis 127) assim foi feita para viver e ser conforme seu Criador (Isaiacuteas 437 1 Coriacutentios 1031) O pecado consiste pois numa desconfiguraccedilatildeo do ser humano em referecircncia a Deus Em diferentes textos do Novo Testamento (Hebreus 1012 Gaacutelatas 14 1 Joatildeo 17) nota-se que a condiccedilatildeo pecaminosa da humanidade natildeo eacute um simples erro do alvo mas um estado de degradaccedilatildeo que soacute pocircde ser transposto por Jesus em sua entrega voluntaacuteria para morrer agrave semelhanccedila dos animais usados nos sacrifiacutecios judaicos

Perdatildeo dos pecados gr εἰς ἄφεσιν ἁμαρτιῶν O desconhecido autor da Epiacutestola aos Hebreus desenvolve a ideia de perdatildeo em comparaccedilatildeo com a lei mosaica Tratando-se de uma representaccedilatildeo do que haveria de vir (Hebreus 101) a lei teve em Jesus o seu cumprimento pois por ele foi ldquooferecido para sempre um uacutenico sacrifiacutecio pelos pecadosrdquo (Hebreus 1012) Os sacrifiacutecios de animais embora fossem aceitos por Deus dentro das condiccedilotildees estabelecidas natildeo eram suficientes para apagar a consciecircncia de pecado ou seja a culpa que reside sobre aquele que peca visto que vez apoacutes vez ao espiar o sangue de um cordeiro o indiviacuteduo se lembrava de sua condiccedilatildeo de portador da transgressatildeo (Hebreus 103) O perdatildeo dos pecados configura-se pois como aquilo que tem o poder que a lei natildeo tinha a anulaccedilatildeo total da culpa (Hebreus 10 17)

34 INTERPRETACcedilAtildeO

Eis a uacuteltima etapa do meacutetodo Nela satildeo encontradas a proposta definitiva de traduccedilatildeo amparada sobre o tripeacute exatidatildeo clareza e naturalidade (BARNWELL 2011 p 25) o esboccedilo do texto parcialmente formulado neste artigo conforme os tiacutetulos encontrados na obra Synopsis Quattuor Evangeliorum (ALAND 1967) e o comentaacuterio final em que se privilegiam apenas alguns aspectos de todo o material produzido respeitando-se as conclusotildees obtidas das relaccedilotildees intra e extra textuais dos elementos estruturantes do texto de maneira a explicitar o que seja relevante para dentro do escopo da pragmaacutetica Exemplo

Esboccedilo

11 O PROacuteLOGO12-4 JOAtildeO AQUELE QUE BATIZA

12-3 Profecia veterotestamentaacuteria14 O surgimento de Joatildeo

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Proposta de traduccedilatildeo

1 Iniacutecio do evangelho de Jesus Cristo Filho de Deus 2 Assim como perma-nece escrito em Isaiacuteas o profeta ldquoAtenccedilatildeo Despeccedilo antes de tua presenccedila o meu mensageiro o qual colocaraacute em ordem o teu caminho 3 Uma voz trovejante no deserto Preparai o caminho do Senhor fazei retas as suas veredasrdquo 4 Surgiu no deserto Joatildeo aquele que batiza anunciando o batismo de arrependimento para o perdatildeo dos pecados

Reflexatildeo

O primeiro versiacuteculo de Marcos uma sentenccedila que sendo incompleta em si funciona como o tiacutetulo a obra define os paracircmetros de leitura da histoacuteria que haacute de ser contada o evangelho pertence a Jesus Eacute esse personagem o iniacutecio da causa evangeacutelica bem como o tema do livro Sem a preocupaccedilatildeo de fornecer dados histoacutericos Marcos o apresenta como o libertador prometido e resume sua genealogia filho de Deus Ao se pensar nos primeiros leitores-ouvintes pessoas ansiosas por novos tempos de prosperidade e paz a imagem de um Jesus heroico e divino mais forte que a humanidade mortal cativa a atenccedilatildeo para o que haacute de ser dito

No versiacuteculo seguinte Marcos gera ainda mais expectativa em seu puacuteblico recorrendo agrave memoacuteria coletiva das profecias antigas para mostrar a validade de sua mensagem Ele assim o faz por meio da foacutermula ldquoconforme escritordquo mos-trando sua credencial de inspiraccedilatildeo Marcos inaugura a interpretaccedilatildeo evangeacutelica do Antigo Testamento Pode-se inferir que atribuindo a referecircncia somente a Isaiacuteas profeta de singular importacircncia o evangelista procura confirmar suas palavras como dotadas da mesma autoridade da tradiccedilatildeo profeacutetica de Israel E essa antiga profecia invocada por Marcos permanece presente enquanto o texto existir Surge entatildeo o mensageiro que haveria de ser enviado da parte de Deus

Antecedendo o Cristo esperado o mensageiro aparece sob a forma de um som uma voz que se faz ouvir no deserto Satildeo duas as exortaccedilotildees que essa voz traz agora eacute hora de preparar o caminho do Senhor e permanentemente se deve preparar as suas veredas Uma mensagem urgente e contiacutenua A voz entatildeo simplesmente aparece sob o nome de Joatildeo Do ponto de vista de quem ouve a voz tudo o que foi dito ateacute agora se afigura como o preluacutedio perfeito para a chegada do novo personagem ndash que natildeo eacute o messias mas possui grande importacircncia histoacuterica na tradiccedilatildeo profeacutetica

Eis uma obra prima a imagem desse Joatildeo que surge no ermo lugar como um som trovejante irrompendo e se transformando gradativamente em homem

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numa espeacutecie de efeito sinesteacutesico Joatildeo eacute o que batiza ou seja aquele que anuncia a outros a imersatildeo na mudanccedila da forma como se vecirc e se pensa a proacutepria existecircncia para assim se alcanccedilar a possibilidade de soltura das amarras que aprisionam O misteacuterio sendo revelado sobre a figura angelical faz com que a seacuteria narrativa assuma a delicadeza de uma contaccedilatildeo de histoacuterias sem contudo anular a forccedila das verdades para aqueles que nelas creem

CONSIDERACcedilOtildeES FINAISAs etapas de execuccedilatildeo neste artigo foram aqui descritas partindo de 2

Anaacutelise do Discurso em que se procurou elucidar essa aacuterea da linguiacutestica de maneira acessiacutevel a leitores especializados em outros saberes Em 3 Metodo-logia o meacutetodo foi explanado em detalhes nos toacutepicos subsequentes Em 31 Contextualizaccedilatildeo pretendeu-se a delimitaccedilatildeo dos sentidos de produccedilatildeo do texto Em 32 Etapas de Anaacutelise foi disposta a diagramaccedilatildeo semacircntico-gramatical desse texto e uma breve anaacutelise de suas relaccedilotildees linguiacutesticas Em seguida em 33 Notas houve a elucidaccedilatildeo de termos especiacuteficos constantes do fragmento examinado Por fim em 34 Interpretaccedilatildeo a autora pretendeu alcanccedilar uma compreensatildeo mais apurada do enredo

Conclui-se que o meacutetodo apresentado figura como um instrumental interes-sante de pesquisa e de ensino ndash objetivo primeiro para o qual foi desenvolvido ndash oferecendo subsiacutedios para os dispostos a se debruccedilar sobre o aprofundamento de sua praacutetica acadecircmica eou religiosa Num contexto de impressionante preconceito da Academia para com a Biacuteblia como objeto de estudo literaacuterio eacute essencial que o inteacuterprete do texto biacuteblico esteja disposto a reinventar sua praacutetica de pesquisa por meio da dialeacutetica multidisciplinar Existe uma instrumentalidade na diversidade das teorias cientiacuteficas e esta pode ser aproveitada sem que se extrapolem os possiacuteveis sentidos do texto

Como ressalta Egger (1994 p 9) ldquouma metodologia neotestamentaacuteria eacute antes de tudo uma introduccedilatildeo agrave correta leitura dos textos do Novo Testamentordquo As distacircncias existentes entre um texto antigo e o leitor atual constituem um grande desafio dada a imensa diferenccedila entre uma eacutepoca e outra natildeo raro se afigurando praticamente impossiacutevel o pleno resgate do entendimento do modo de pensar de um narradornarrataacuterio inserido no contexto originaacuterio e o leitorinteacuterprete atual voltado para a pesquisa na constante busca do conhecimento Tanto a liacutengua como a cultura em geral passam por mudanccedilas as mais variadas ao longo do tempo e caso o pesquisador tenha um compromisso confessional com o texto ele lhe imporaacute tambeacutem distanciamentos de ordem divina (LOPES 2004 p 25)

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O reconhecimento das aparentes barreiras exige o esforccedilo do estranhamento por parte desse leitorinteacuterprete que por um lado pode estar preso agrave familia-ridade encontrada no texto ou que por outro lado pode ler equivocadamente sob seu perspectivismo o que lhe eacute desconhecido Por isso trabalhar com textos da Antiguidade eacute tambeacutem uma provocaccedilatildeo das Ciecircncias Sociais Assim para ambas as situaccedilotildees supracitadas pode-se parafrasear o antropoacutelogo Gilberto Velho (1978 p 45) e dizer que eacute necessaacuterio ao que se propotildee agrave pesquisa o confronto intelectual e emocional de diferentes versotildees e interpretaccedilotildees do texto a fim de se tornar capaz de estranhaacute-lo Soacute assim se consegue alcanccedilar a erudiccedilatildeo prometida pela reflexatildeo cientiacutefica

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ldquoNO DIA DO SENHORrdquo ndash OS ATOS O EVENTO A AUTOEXPRESSAtildeO

Uma breve reflexatildeo sobre as tradiccedilotildees lituacutergicas e sobre os termos liturgia culto e adoraccedilatildeo

Theoacutegenes Eugecircnio Figueiredo122

RESUMO No presente artigo satildeo apresentados os nuacutecleos lituacutergicos herdados do cris-

tianismo primitivo que no decorrer dos seacuteculos tiveram em si alguns elementos agregados constituindo-se posteriormente em grandes famiacutelias lituacutergicas Os protestantes satildeo caracterizados historicamente pela diversidade lituacutergica por possuiacuterem nove famiacutelias lituacutergicas No Brasil os protestantes se caracterizam como igrejas livres que fogem das foacutermulas lituacutergicas preacute-fixadas Liturgia culto e adoraccedilatildeo satildeo conceitos abordados atraveacutes dos siacutembolos ldquoos atosrdquo ldquoo eventordquo e ldquoa autoexpressatildeordquo Comenta-se a criacutetica de Kierkgaard agrave inversatildeo das funccedilotildees dos partiacutecipes de um evento cultual O evento culto eacute definido como o trabalho do povo e o evento da ldquovisatildeo de Isaiacuteasrdquo eacute apresentado como um dos modelos cultuais

Palavras-chave Culto Liturgia Adoraccedilatildeo Famiacutelias lituacutergicas Batistas

ABSTRACTThis article presents the liturgical nuclei inherited from primitive Christianity

which over the centuries had some elements aggregated to later constituting large liturgical families Protestants are historically characterized by liturgical diversity as they have nine liturgical families In Brazil Protestants are charac-terized as free churches diverting from pre-fixed liturgical formulas Liturgy worship and adoration are concepts commented by the symbols ldquothe actsrdquo ldquothe eventrdquo and ldquoself-expressionrdquo Kierkgaardrsquos critique about the inversion of the roles of participants in a worship event is commented The worship event is defined as the job of the people and the event of the ldquovision of Isaiahrdquo is commented as one of the worship models

Keywords Worship service Liturgy Worship Liturgical families Baptist

122 Doutor em Ciecircncias da Religiatildeo pela UFJF e mestre em muacutesica pela UNIRIO Professor do Curso de Licenciatura em Muacutesica com Gestatildeo da Muacutesica Eclesiaacutestica da Faculdade Batista do Rio de Janeiro - STBSB

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1 AS FAMIacuteLIAS LITUacuteRGICAS ndash O LEGADOOs elementos lituacutergicos herdados do cristianismo primitivo formaram dois

nuacutecleos o nuacutecleo da Palavra (proveniente do culto judaico que passou a ser chamado de Liturgia da Palavra nas celebraccedilotildees da Igreja Catoacutelica) e o nuacutecleo da Ceia do Senhor ou da Eucaristia Este pode ser considerado ldquocomo uma marca genuinamente cristatilderdquo123 da liturgia

Ao longo dos seacuteculos alguns elementos foram agregados a esses dois nuacutecleos da liturgia da Igreja Cristatilde surgindo uma ordo124 isto eacute ldquoum conjunto de ele-mentos e formas usados para realizar o encontro entre Deus e a comunidade E eacute a partir desse processo que se constituiacuteram as grandes famiacutelias lituacutergicas que mantecircm os nuacutecleos baacutesicos comunsrdquo125

Essas famiacutelias satildeo centralizadas em

a) Alexandria (Egito) conhecida como a liturgia de Satildeo Marcos

b) Jerusaleacutem e Antioquia (Siacuteria Ocidental) conhecida como a liturgia de Satildeo Tiago

c) Siacuteria Oriental

d) Cesareia conhecida como a liturgia de Satildeo Basiacutelio

e) Constantinopla conhecida como a liturgia bizantina ou liturgia de Satildeo Crisoacutestomo

f) Roma conhecida como a liturgia de Satildeo Pedro que se encontra em uso mais amplo no catolicismo romano

g) a liturgia gaacutelica que compreende o clatilde ocidental natildeo-romano126

Os protestantes possuem nove famiacutelias lituacutergicas tendo desde o iniacutecio o culto protestante se caracterizado pela diversidade lituacutergica O diagrama a seguir mostra essas famiacutelias

123 MARTINI 200223124 Palavra latina que significa ordem significando uma disposiccedilatildeo metoacutedica um arranjo de coisas segundo certas relaccedilotildees uma boa disposiccedilatildeo um bom arranjo um arrumaccedilatildeo (Dicionaacuterio Aureacutelio)125 MARTINI 200224126 WHITE 199728

88 TeoloacutegicaRevista Brasileira de Teologia ISSN 1807-7056 nordm 8 outdez Rio de Janeiro 2020 p 86 - 97

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Diagrama 1127

Ala esquerda significa uma ruptura radical com a liturgia medieval tardia encontrando-se nela os Anabatistas que segundo uma corrente histoacuterica originou os Batistas atuais ala Centro significa os grupos mais moderados em relaccedilatildeo a uma ruptura com a liturgia histoacuterica e ala Direita mostra os grupos mais conservadores em termos de preservaccedilatildeo da liturgia histoacuterica

As igrejas de tradiccedilatildeo lituacutergica possuem os livros lituacutergicos que contecircm os ritos e as leituras de suas celebraccedilotildees Um deles eacute o Palavra do Senhor I ndash Lecionaacuterio dominical ABC que tem a sua imagem apresentada a seguir e a especificaccedilatildeo do seu conteuacutedo128

Lecionaacuterio dominicalConteacutemRito da Missa (partes fixas)Proacuteprio do tempo advento natal quaresma tempo comum etcProacuteprio dos santosVasta coleccedilatildeo de prefaacuteciosVaacuterias oraccedilotildees eucariacutesticasMissas rituais Batismo confirmaccedilatildeo profissatildeo religiosa etcMissas e oraccedilotildees para diversas necessidades pelo papa pelos bis-pos pelos governantes pela conservaccedilatildeo da paz e da justiccedila etcMissas votivas Santiacutessima Trindade Espiacuterito Santo Nossa Senhora etcMissas dos fieacuteis defuntosNo iniacutecio o Missal apresenta longa e preciosa introduccedilatildeo con-tendo a Instruccedilatildeo Geral sobre o Missal Romano e as Normas Universais para o Ano Lituacutergico e o Calendaacuterio1

127 WHITE 199729128 PERES 2018

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O Livro lituacutergico ldquoeacute um livro grande que conteacutem todo o formulaacuterio e todas as oraccedilotildees usadas nas celebraccedilotildees da missa para todo o ano lituacutergico Fitas marcadoras indicam as diversas partes da celebraccedilatildeo []rdquo129

11 OS BATISTAS BRASILEIROS E SUA TRADICcedilAtildeO LITUacuteRGICA

No Brasil o protestantismo de missatildeo chegou com suas tradiccedilotildees lituacutergicas tendo os batistas seguido a tradiccedilatildeo das ldquoigrejas livres da poacutes-Reforma e principalmente dos reavivamentos ingleses e americanos somados agraves formas de cultos das fronteiras da expansatildeo norte-americana para o oesterdquo130

O quadro a seguir mostra a data da chegada das diversas denominaccedilotildees protestantes em terra brasileira e sua linha lituacutergica

Protestantes Entrada no Brasil Igrejas livres (natildeo-lituacutergicas)Congregacionais 1855 SimPresbiterianos 1859 SimBatistas 1881 SimMetodistas 1886 SimEpiscopal 1898 Natildeo

Antonio Gouvecirca de Mendonccedila afirma que a liturgia dos batistas ldquoeacute uma das mais informaisrdquo131 isso significa dizer que os batistas tecircm uma praacutetica lituacutergica ldquoque foge a foacutermulas prefixadas aos rituais e aos aparato lituacutergico [] O culto e demais rituais preestabelecidos satildeo virtualmente condenados e quase sempre com a alegaccedilatildeo de que sugerem a missa catoacutelicardquo132 Donald P Hustad afirma que ldquoa heranccedila dos evangeacutelicos tiacutepicos eacute uma adoraccedilatildeo natildeo-liacutetuacutergica isto quer dizer eles rejeitam todas as formas ou liturgias estabelecidasrdquo133

Entatildeo se as igrejas batistas satildeo de tradiccedilatildeo lituacutergica livre as liturgias satildeo fundamentadas em quecirc

2 LITURGIA CULTO E ADORACcedilAtildeO ndash OS ATOS O EVEN-TO E A AUTOEXPRESSAtildeO CULTUAL

O termo liturgia eacute muitas vezes considerado sinocircnimo dos termos culto e adoraccedilatildeo Entretanto eacute necessaacuterio que se faccedila a distinccedilatildeo entre esses termos Os

129 PERES 2018130 MENDONCcedilA e VELASQUES FILHO 2002171 Grifo nosso131 MENDONCcedilA e VELASQUES FILHO 200244132 MENDONCcedilA e VELASQUES FILHO 2002156133 HUSTAD 1986166

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atos praticados durante o culto satildeo considerados liturgia culto eacute um evento total que abrange um conjunto de elementos lituacutergicos sendo um desses elementos a adoraccedilatildeo (em seu sentido estrito) a atitude do indiviacuteduo Adoraccedilatildeo eacute uma autoexpressatildeo em resposta agrave accedilatildeo divina

21 LITURGIA ndash OBRA DO POVO TRABALHO DO POVO OS ATOS CULTUAIS

Voltemos a nossa atenccedilatildeo ao termo liturgia e vejamos o que podemos de-preender do proacuteprio termo

Liturgia foi traduzida para o portuguecircs da palavra grega leitourgeo composta dos vocaacutebulos gregos LEITOSLAOS que significa povo e ERGON que significa trabalho Haacute um consenso entre os estudiosos do assunto que o significado seja ldquoobra do povordquo ldquotrabalho do povordquo

Essa ideia de trabalho do povo tambeacutem pode ser inferida da maioria dos vocaacutebulos originais da Septuaginta traduzidos para o idioma portuguecircs como liturgia Satildeo eles 134

Vocaacutebulo Significado Passagem biacuteblica

Leitourgiacutea (6 vezes)

Ministeacuterio Lc 123Assistecircncia 2 Co 912Serviccedilo Fp 217Socorro Fp 230Ministeacuterio Hb 86Serviccedilo Sagrado Hb 921

Leitourgoacutes (5 vezes)Ministro

Rm 136Rm 1516Hb 17Hb 82

Auxiliar Fp 225

Leitourgeacuteotilde (3 vezes)Servindo At 132Servi-los Rm 1527Serviccedilo Sagrado Hb 1011

Leitourgikoacutes (1 vez) Ministradores Hb 114

134 COSTA 198715-16

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Como visto o termo liturgia ocorre no Novo Testamento num total de quinze vezes tendo o seu significado se consolidado como ldquoo conjunto das falas e praacuteti-cas de culto dos seguidores de Jesusrdquo135 Essas praacuteticas de culto ou decorrentes do culto satildeo a assistecircncia o socorro o auxiacutelio o serviccedilo etc

22 CULTO O EVENTO CULTUAL TOTAL

Culto eacute uma reaccedilatildeo do humano agrave uma accedilatildeo divina Um bom exemplo eacute a atitude de Noeacute narrada em Gecircnesis 6-8 Depois do diluacutevio Noeacute ldquoconstruiu um altar dedicado ao Senhor e tomando alguns animais e aves puros ofereceu-os como holocausto []136 Liturgia no caso de Noeacute foi o evento constituiacutedo do ldquoconjunto de atos palavras e formas carregados de significado expressos de um certo jeito numa certa sequecircnciardquo137 realizados na reaccedilatildeo de Noeacute agrave bondade de Deus para consigo

23 A ADORACcedilAtildeO UMA AUTOEXPRESSAtildeO CULTUAL

Em relaccedilatildeo ao conceito de adoraccedilatildeo Bob Sorge em seu livro Exploring worship apresenta-nos dois exemplos que ajudam no entendimento dessa au-toexpressatildeo Satildeo os exemplos de Joacute e Abraatildeo

Joacute foi atingido por uma extrema calamidade perdendo todos os seus bens e perdendo todos os seus filhos

A resposta de Joacute eacute emocionante ldquoEntatildeo Joacute se levantou rasgou o manto e raspou a cabeccedila e ele caiu no chatildeo e adorourdquo (Joacute 120) Se concordamos que esta eacute a primeira menccedilatildeo de adoraccedilatildeo na Biacuteblia entatildeo podemos dizer que a adoraccedilatildeo eacute o que fazemos em face de grande trageacutedia e julgamento pessoal Adoraccedilatildeo em sua essecircncia natildeo eacute o que fazemos quando a vida eacute feliz e nos sentimos abenccediloados eacute o que fazemos quando perdemos as coisas que satildeo mais caras para noacutes o teste de adoraccedilatildeo natildeo eacute no domingo de manhatilde quando nos reunimos com o povo de Deus De manhatilde eacute faacutecil adorar Os crentes estatildeo reunidos em santa convocaccedilatildeo os liacutederes oram e estatildeo preparados para liderar o canto do Senhor comeccedila a surgir a presenccedila de Deus enche a casa Se vocecirc natildeo pode adorar no domingo de manhatilde vocecirc provavelmente estaacute morto138

135 MIRANDA 201239 Grifo nosso136 BIacuteBLIA ONLINE Gn 820137 MARTINI 200221 Grifo nosso138 SORGE 2018 cap 4 Grifo nosso

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Nesse ato de culto de Joacute a adoraccedilatildeo pode-se verificar uma expressatildeo original ndash uma autoexpressatildeo ndash que tem como essecircncia a espontaneidade da expressatildeo em resposta agrave percepccedilatildeo da trageacutedia ocorrida em sua vida

O conceito de autoexpressatildeo eacute definido como uma expressatildeo original que responde espontaneamente agrave percepccedilatildeo de algo A autoexpressatildeo acontece em resposta a um dado sensorial especiacutefico tendo como essecircncia a espontaneidade Contrariamente a expressatildeo pode ser um ato intencional servindo mais para demonstrar os sentimentos dos indiviacuteduos do que se apresentar como uma expressatildeo primaacuteria uma autoexpressatildeo139

O segundo exemplo citado por Sorge se encontra em Gecircnesis 225 passagem biacuteblica da narrativa de um episoacutedio muito marcante na vida de Abraatildeo que denota sua atitude de adorar mesmo quando Deus ordenara que sacrificasse o seu proacuteprio filho seu uacutenico herdeiro que o proacuteprio Deus tinha providenciado de forma milagrosa Mesmo naquela situaccedilatildeo desesperadora Abraatildeo teve a atitude de adorar a Deus Assim comenta Sorge

Quando Abraatildeo estava a caminho da montanha onde pretendia matar o seu uacutenico filho o que disse ele aos criados ldquoEntatildeo disse a seus servos Esperai aqui com o jumento eu e o rapaz iremos ateacute laacute e havendo ado-rado voltaremos para junto de voacutesrdquo (Gecircnesis 225) Na ansiedade mental de planejar matar o seu proacuteprio filho quando Deus sem duacutevida parecia estar a milhas de distacircncia Abraatildeo adorou Ele natildeo podia entender por-que Deus tinha ordenado que ele sacrificasse o seu uacutenico filho o uacutenico e verdadeiro herdeiro que Deus tinha providenciado milagrosamente Mas apesar da sua incapacidade em compreender as intenccedilotildees de Deus Abraatildeo adorou A sua adoraccedilatildeo natildeo teria sido completa sem a sua total obediecircncia140

139 FIGUEIREDO faz o seguinte comentaacuterio sobre a diferenciaccedilatildeo entre esses dois conceitos ndash autoexpres-satildeo e expressatildeo ldquouma autoexpressatildeo de juacutebilo realizada por um indiviacuteduo pela presenccedila apresentaccedilatildeo ou contemplaccedilatildeo de um ldquodeusrdquo ou de algum objeto que o represente pode resultar no nascimento de uma praacutetica ritual Nesse momento originaacuterio de um ritual a demonstraccedilatildeo de juacutebilo gradativamente se propaga agraves pessoas presentes e todos satildeo possuiacutedos do mesmo sentimento as emoccedilotildees humanas satildeo tocadas profundamente nesse momento Numa segunda ocasiatildeo tal demonstraccedilatildeo de juacutebilo eacute repetida mas agora sem aquele fator gerador da expressividade do grupo como ocorrido na primeira ocasiatildeo o segundo momento eacute realizado portanto como uma accedilatildeo intencional do grupo servindo mais para demonstrar os sentimentos dos indiviacuteduos do que uma autoexpressatildeo ou servindo para aliviar os sentimentos do grupo Neste caso ocorre a execuccedilatildeo de um ato supostamente expressivo porque natildeo possui a respectiva motivaccedilatildeo interior Eacute um ato ritual e natildeo um ato expressivo em sua essecircncia (um ato autoexpressivo) Sua suposta expressividade tem uma motivaccedilatildeo loacutegica racional intencional em contraposiccedilatildeo a um ato fisioloacutegico e espontacircneo caracteriacutestica daquele primeiro momento de juacutebilordquo (FIGUEIREDO 2010124-125) Leia mais sobre esse assunto em FIGUEIREDO 2010123-125140 SORGE 2018 cap 4 Grifo nosso

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Essa expressatildeo primaacuteriaoriginal de adoraccedilatildeo de Joacute e Abraatildeo em resposta agrave atuaccedilatildeo de Deus em suas vidas satildeo exemplos de autoexpressatildeo

3 CULTO UM EVENTO NO QUAL Eacute O POVO QUEM TRA-BALHA

Haacute uma criacutetica do filoacutesofo-teoacutelogo dinamarquecircs Soren Kierkgaard que aponta para a inversatildeo das funccedilotildees dos partiacutecipes nos atos de culto (liturgia) a qual deve ser levada em consideraccedilatildeo

Kierkgaard criticou a natildeo participaccedilatildeo ativa do povo da sua igreja lituacutergica luterana ldquoInsistiu em que na verdadeira adoraccedilatildeo a congregaccedilatildeo satildeo os atores o ministro e o coro satildeo os lsquopontosrsquo e Deus eacute o auditoacuteriordquo141 Kierkgaard afirma que ldquono sentido mais enfaacutetico Deus eacute o criacutetico frequentador de teatro que observa para ver como o texto eacute declamado e como ele eacute ouvido O orador portanto eacute o ponto e o ouvinte encontra-se abertamente diante de Deus O ouvinte se posso assim dizecirc-lo eacute o ator que verdadeiramente atua diante de Deus142

A sua criacutetica estava fundamentada nos fatos ocorridos na Idade Meacutedia quan-do ldquoa missa era essencialmente lsquoobra dos sacerdotesrsquo a congregaccedilatildeo natildeo era nem de bons espectadores visto que natildeo entendia as palavras [porque a missa era realizada no idioma latino] e em uma grande catedral natildeo conseguia nem ver a accedilatildeordquo143 Nos dias de hoje

em algumas situaccedilotildees evangeacutelicas parece claro tambeacutem que a adoraccedilatildeo eacute obra do ministro e do coro a congregaccedilatildeo eacute o ldquoauditoacuteriordquo o que suge-re que eles [fieacuteis] agem mais como ouvintes Em muitas situaccedilotildees eles [fieacuteis] nunca satildeo encorajados a falar uma soacute palavra nos cultos lendo as Escrituras ou participando das oraccedilotildees [] Indubitavelmente lhes eacute per-mitido cantar os hinos embora algumas vezes estes sejam bem poucos e ateacute mesmo esta oportunidade eacute ignorada por muitas pessoas em algumas congregaccedilotildees Eacute verdade que pode-se envolver na adoraccedilatildeo ndash pode-se ateacute falar com Deus ndash sem pronunciar nem um som audiacutevel mas cremos que eacute desejaacutevel ter o maacuteximo de participaccedilatildeo da congregaccedilatildeo tanto do que se fala como do que se canta e tambeacutem da accedilatildeo fiacutesica 144

141 HUSTAD 1986165142 HUSTAD 1986165143 HUSTAD 1986165144 HUSTAD 1986165

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Os encontros cultuais puacuteblicos devem priorizar portanto a participaccedilatildeo ativa do povo o trabalho do povo isto eacute os elementos lituacutergicos de um culto (adoraccedilatildeo leitura biacuteblica canto coletivo oraccedilatildeo testemunho mensagem muacutesica instrumental coro etc) devem propiciar a participaccedilatildeo plena do povo

Outro autor que trabalha esses dois termos ndash liturgia e culto ndash eacute o teoacutelogo Nelson Kirst Ele compara o momento do culto com o ldquorancho na roccedilardquo O culto eacute o encontro de Deus com a sua comunidade e a ldquoliturgia eacute o conjunto de elementos e focircrmas (espaccedilos lugares tempos objetos funccedilotildees gestos foacutermu-las histoacuterias instruccedilotildees olhares siacutembolos e significados) atraveacutes dos quais se realiza o encontro de Deus com sua comunidaderdquo145

Imagine-se uma famiacutelia de agricultores que sai para trabalhar um pedaccedilo de terra localizado a 1 ou 2 km de casa De manhatilde bem cedo potildeem-se todos a caminho de carroccedila levando enxadas foices facotildees arado e o cesto com o lanche Laacute chegando dividem as tarefas e se lanccedilam ao trabalho Mourejam por umas duas horas e entatildeo se recolhem para um descanso Em algum ponto daquela roccedila ergue-se o rancho construccedilatildeo tosca de trecircs paredes e um telhado em meia-aacuteguaEacute no aconchego do rancho na roccedila que a famiacutelia camponesa depois da primeira arrancada de enxada e arado se recolhe descansando o corpo fortalecendo-se de patildeo aacutegua fresca e conversa - para meia horinha depois voltar agrave enxada e ao arado e misturar seu suor agrave terra em outro tanto de jornada A famiacutelia vai da enxada para o rancho e sai fortalecida do rancho para a enxada A parada no rancho natildeo faz sentido sem o trabalho na roccedila E o trabalho na roccedila se esgota em agitaccedilatildeo e cansaccedilo sem a parada no rancho146

O culto entatildeo eacute o lugar para renovaccedilatildeo de energias espirituais lugar onde o povo busca ldquoalimentordquo espiritual atraveacutes dos atos de adoraccedilatildeo e louvor ao Deus criador ao Deus salvador Atos de enunciaccedilatildeo de suas alegrias e suas tristezas de exposiccedilatildeo suas ansiedades e vitoacuterias e o retorno para a vida ordinaacuteria das atividades seculares

O culto constituiacutedo pelo conjunto de elementos lituacutergicos eacute um evento total que possui situaccedilotildees momentacircneas cultuais diversas Qual eacute a origem desses momentos determinados constantes de uma liturgia

145 KIRST 1998119146 KIRST 1998119

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4 ldquoA VISAtildeO DE ISAIacuteASrdquo UM DOS MODELOS DE EVENTO CULTUAL

Apesar da origem natildeo-lituacutergica dos batistas sua liturgia segue alguns princiacutepios modelos Os atos lituacutergicos natildeo satildeo propostos aleatoriamente Entatildeo de onde vecircm esses princiacutepiosmodelos que norteiam uma liturgia

Esses elementos vecircm dos exemplos biacuteblicos de adoraccedilatildeo O teoacutelogo Romeu R Martini nos apresenta no seu livro Liturgia e culto o exemplo biacuteblico de Noeacute (Gn 6-8) e o teoacutelogo Russel P Shedd no seu livro Adoraccedilatildeo biacuteblica elenca vaacuterios exemplos biacuteblicos de adoraccedilatildeo afirmando que ldquoas sagradas letras satildeo o nosso manual de adoraccedilatildeordquo147

O salmista no Salmo 96 Enoque em Gn 522-24Hb 56 Jacoacute em Gn 3222ss Moiseacutes em Ex 3312-33 Isaiacuteas em Is 61-8 e Maria em Jo 121-8 satildeo os exemplos apresentados por Shedd

De todos esses exemplos biacuteblicos de adoraccedilatildeo haacute uma convergecircncia entre os teoacutelogos de que a experiecircncia de Isaiacuteas eacute a que mais detalhes apresenta sobre os diversos atos ocorrentes em um encontro de um ser humano com o Deus criador Do texto de Isaiacuteas 6-1-9a emergem os seguintes atos lituacutergicos

- Consciecircncia da presenccedila de Deus (Is 61) ndash Preluacutedio

- Adoraccedilatildeo (Is 62-3)

- Confissatildeo (Is 65)

- Perdatildeo (Is 66-7)

- Apelo (Is 68) ndash Palavra do SenhorEnsino

- Consagraccedilatildeo (Is 68) ndash Resposta do homem

- Disponibilidade para o serviccedilo (Is 69a) ndash Posluacutedio

Nelson Kirst fala de uma forma mais abrangente que a liturgia ndash a sequecircncia de atos elementos eventos ornamentos e momentos lituacutergicos ndash precisa ser moldada Utiliza o exemplo de uma casa com seus cocircmodos para o entendimento dessa questatildeo

Uma casa eacute composta de diversas dependecircncias Haacute certas dependecircncias que natildeo podem faltar numa casa p ex a cozinha ou o dormitoacuterio Satildeo imprescindiacuteveis Haacute outras partes que satildeo uacuteteis sem ser imprescindiacuteveis

147 SHEDD 1987113

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p ex a sala de estar a sala de jantar ou a varanda Assim tambeacutem a liturgia tem partes imprescindiacuteveis que nunca podem faltar e partes que satildeo uacuteteis mas podem faltar num cultoNa comparaccedilatildeo da liturgia com uma casa tambeacutem se aprende alguma coisa sobre a disposiccedilatildeo das diversas partes dentro do conjunto A entrada de uma casa geralmente vai ser pela sala de estar ou perto da sala de estar e natildeo pela cozinha ou pelo dormitoacuterio Por outro lado o banheiro pode localizar-se entre o dormitoacuterio e a sala ou entre o dormitoacuterio e a cozinha e a sala de estar pode encontrar-se do lado esquerdo ou do lado direito da entrada Assim tambeacutem na liturgia haacute certas partes que tecircm seu lugar fixo p ex o canto de entrada soacute pode estar no iniacutecio do culto e a interpretaccedilatildeo da Palavra soacute pode vir depois das leituras biacuteblicas E haacute outras partes que podem ser dispostas com certa flexibilidadeFinalmente haacute muita maleabilidade na maneira como satildeo configuradas as diversas dependecircncias de uma casa O material as cores as cortinas a decoraccedilatildeo dependeratildeo de quem haacute de utilizar essa casa para morar Assim tambeacutem haacute muita liberdade quanto agrave maneira ou ao estilo de se realizar as partes da liturgia148

5 CONSIDERACcedilOtildeES FINAISFinalizando liturgia significa os atos ocorrentes no momento de culto isto

eacute os atos praticados pelos indiviacuteduos em reaccedilatildeo agrave accedilatildeo divina Os batistas satildeo uma igreja livre (natildeo-lituacutergica) em relaccedilatildeo agrave orientaccedilatildeo lituacutergica A liturgia dos batistas procura seguir os exemplos de adoraccedilatildeo encontrados na Biacuteblia sendo a experiecircncia de Isaiacuteas com Deus a mais ensinada nas casas teoloacutegicas como modelo de atos cultuais

Para que a liturgia natildeo se transforme em um ritual ndash uma monoacutetona repeticcedilatildeo de atos lituacutergicos ndash existe uma liberdade na sua elaboraccedilatildeo preservando-se alguns dos elementoseventos cultuais de adoraccedilatildeo biacuteblica bem como a omissatildeo de outros

Hustad afirma que em resumo a liturgia de um culto deve contemplar duas accedilotildees baacutesicas da adoraccedilatildeo ldquouma revelaccedilatildeo plena de Deus seus atos e sua vontade para noacutes e uma reaccedilatildeo dos homens e mulheres incluindo corpo emoccedilatildeo intelecto e vontaderdquo149

148 KIRST 1998125149 HUSTAD 1986166 Grifo nosso

97TeoloacutegicaRevista Brasileira de Teologia ISSN 1807-7056 nordm 8 outdez Rio de Janeiro 2020 p 86 - 97

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LITURGIA E IDENTIDADE RELIGIOSA NO APOCALIPSE DE JOAtildeO

Valtair A Miranda150

RESUMONosso propoacutesito neste artigo eacute analisar as peccedilas hiacutenicas descritas nos capiacutetulos

quatro e cinco do livro de Apocalipse e refletir sobre o papel que executam na construccedilatildeo e manutenccedilatildeo da identidade social e religiosa dos leitores e ouvintes desse livro no momento da sua produccedilatildeo Argumentamos que os hinos registrados nas obras do movimento de Jesus possuiacuteam um papel significativo na definiccedilatildeo da autodescriccedilatildeo dos membros das igrejas quer por representarem o que se cantava nas comunidades quer como sugestatildeo do que cantar Cantar entatildeo natildeo apenas descreve a pessoa de Deus ou o falar com ele mas propicia a quem canta um forte senso de identidade pessoal e social Nos hinos o fiel expressa o que ele se ainda natildeo eacute pelo menos gostaria de ser

Palavras-chave Apocalipse de Joatildeo Culto e ritual hino e liturgia Cristianismo antigo

ABSTRACTOur purpose in this article is to analyze the hymn pieces of Revelation 4 and

5 and to reflect on their role in building and maintaining the social and religious identity of the readers and listeners of this book at the time of its production We argue that the hymns recorded in the works of the Jesus movement had a signifi-cant role in defining the self-description of church members either because they represent what was sung in the communities or rather as a suggestion to sing Singing then not only describes God or speaks to him but gives the person who sings a strong sense of personal and social identity In the hymns the faithful express what he if he still is not at least would like to be

Keywords Revelation of John Worship and ritual worship and liturgy Ancient Christianity

150 Valtair Afonso Miranda eacute Doutor em Ciecircncias da Religiatildeo (UMESPSP) e Doutor em Histoacuteria (UFRJ) Eacute Diretor Acadecircmico da Faculdade Batista do Rio de Janeiro onde leciona Histoacuteria da Igreja e Exegese do Novo Testamento

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O capiacutetulo 4 de Apocalipse inicia uma longa seccedilatildeo descritiva de um tipo de culto celestial Aparentemente este livro poderia ser dividido em trecircs partes uma seccedilatildeo para descrever a visatildeo do Filho do Homem que aparece a Joatildeo para narrar sete cartas para sete igrejas (capiacutetulos 1 a 3) uma seccedilatildeo para descrever a visatildeo do rolo selado com sete selos (capiacutetulos 4 a 11) e uma uacuteltima para apresentar o conflito escatoloacutegico entre o Cordeiro e o Dragatildeo (capiacutetulos 12 a 22)151

Nesse sentido o capiacutetulo 4 seria o iniacutecio da segunda seccedilatildeo Sua narrativa co-meccedila com o ingresso do visionaacuterio por uma porta aberta no ceacuteu e o subsequente acesso ao Templo Celestial Na perspectiva da audiecircncia desse texto a cena elabora uma narrativa a partir de uma preacutevia experiecircncia extaacutetica Afinal Joatildeo continua na Ilha de Patmos apesar de o seu espiacuterito vislumbrar o trono divino e uma seacuterie de personagens que participam da liturgia celestial Embora se apresente como a narrativa de uma experiecircncia visionaacuteria entretanto o Apocalipse ecoa por meio dessa cena um conjunto de tradiccedilotildees e passagens provavelmente bem conhecidas de sua audiecircncia como Ecircxodo 249-11 Isaiacuteas 6 Ezequiel 126-28 Daniel 79-28 1Reis 2219-23 1Enoque 39 e 2 Enoque 20-22 entre outras

O primeiro versiacuteculo do capiacutetulo 4 apresenta um anjo convocando Joatildeo para subir ao ceacuteu Esse anjo promete mostrar ao visionaacuterio o que aconteceria ldquodepois destas coisasrdquo O cumprimento dessa promessa do anjo se daacute nos termos do relato quando o Cordeiro siacutembolo do Jesus crucificado rompe sete selos de um livro e provoca sete trombetas escatoloacutegicas Isso aparece no capiacutetulo 6 em diante jaacute que os dois primeiros capiacutetulos da seccedilatildeo (4 e 5) se dedicam ao ato lituacutergico em um ritmo muito lento apresentando as cenas e os atores do culto celestial

Nosso propoacutesito neste artigo eacute analisar as peccedilas hiacutenicas desses dois capiacutetulos do Apocalipse e refletir sobre o papel delas na construccedilatildeo e manutenccedilatildeo da identidade social e religiosa dos leitores e ouvintes do livro no seu momento de produccedilatildeo152

151 Para uma discussatildeo dessa estrutura no formato de trecircs seccedilotildees conferir o meu livro MIRANDA Valtair Afonso O caminho do Cordeiro representaccedilatildeo e construccedilatildeo de identidade no Apocalipse de Joatildeo Satildeo Paulo Paulus 2011152 Pressupomos que esta obra foi escrita no final do seacuteculo I e enviada para membros do movimento de Jesus na proviacutencia romana da Aacutesia especificamente para comunidades nas cidades de Eacutefeso Esmirna Peacutergamo Tiatira Saacuterdis Filadeacutelfia e Laodiceia Para uma anaacutelise mais ampla do contexto de produccedilatildeo do Apocalipse de Joatildeo conferir MIRANDA Valtair A Revisitando o contexto de produccedilatildeo do Apocalipse de Joatildeo Reflexus ano IX n 14 p 389-416 2015 FRIEDRICH Paulo Nestor Apocalipse 2ndash3 Sete cartas Uma anaacutelise literaacuteria Estudos de Religiatildeo Satildeo Bernado do Campo n 19 p 149-173 2000 WIKENHAUSER Alfred El Apocalipsis de San Juan p 25-34

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CELEBRANDO A CRIACcedilAtildeO O CULTO AO DEUS ENTRONI-ZADO

O capiacutetulo 4 do Apocalipse apresenta um trono no ceacuteu e em torno dele ele-mentos tiacutepicos de uma teofania da Escritura judaica (Is 61-4) Como na visatildeo de Isaiacuteas esse trono divino eacute uma peccedila central Tudo gira em torno dele Ao seu redor estatildeo quatro criaturas denominadas de Seres Viventes Aleacutem destes o relato apresenta tambeacutem vinte e quatro tronos menores nos quais se assentam vinte e quatro anciatildeos vestidos com roupas brancas tendo coroas de ouro na cabeccedila Independentemente da forma como os inteacuterpretes contemporacircneos interpretam esses personagens celestiais o essencial eacute que todos estatildeo envolvidos em atos lituacutergicos Eles adoram o anciatildeo que se assenta sobre o trono

Os Quatro Viventes especificamente tecircm como missatildeo sem descanso dia e noite expressar adoraccedilatildeo (Ap 48) Deles Joatildeo ouve ldquoSanto Santo Santo eacute o Senhor Deus o Todo-Poderoso aquele que era que eacute e que haacute de virrdquo O hino comeccedila com uma expressatildeo triacuteplice originada em Isaiacuteas 63 ldquoE clamavam uns para os outros dizendo Santo santo santo eacute o Senhor dos Exeacutercitos toda a terra estaacute cheia da sua gloacuteriardquo No texto de Isaiacuteas a canccedilatildeo eacute entoada por Serafins figuras parecidas com serpentes aladas Essa passagem foi largamente usada em textos apocaliacutepticos para compor as cenas do santuaacuterio celestial (1En 3012 2En 211 Ap Abr 16) Os grupos judaicos do segundo Templo frequentemente viam no triacuteplice ldquosantordquo a expressatildeo perfeita do culto dos anjos deduzindo daiacute um modelo para o culto na terra153

Eacute interessante comparar a versatildeo de Isaiacuteas com a LXX e o Apocalipse e assim verificar a forma como as tradiccedilotildees literaacuterias satildeo retomadas no Apo-calipse A LXX que normalmente traduz o termo tsabaoth por pantokrator dessa vez simplesmente transliterou o termo sabaoth Joatildeo entretanto de forma consistente continuou usando pantokrator no lugar de tsabaoth De qualquer forma ambas as expressotildees denotam um ser soberano sobre todos os outros deuses e senhores da terra Ele eacute o Senhor dos Exeacutercitos o Todo-poderoso o Senhor da terra toda Isso daacute ao conjunto da canccedilatildeo um tom de natureza poliacute-tica A acentuaccedilatildeo do ldquoSenhor Deus Todo-Poderosordquo eacute ainda maior porque o hino acrescenta agrave descriccedilatildeo divina a expressatildeo ldquoaquele que era que eacute e que haacute de virrdquo no que se configura uma afirmaccedilatildeo da eternidade imutabilidade e autonomia divinas uma evocaccedilatildeo do ldquoeu sourdquo de Ecircxodo 314 Um Deus eterno natildeo estaacute sujeito agraves variaccedilotildees do tempo ou agraves transiccedilotildees dos domiacutenios humanos

153 PRIGENTE P O Apocalipse p 104

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No momento em que os Quatro Viventes cantam o hino de Isaiacuteas denominado frequentemente de ldquokedushaacuterdquo os Vinte e Quatro Anciatildeos se prostram diante do que se assenta no trono depositando aos seus peacutes suas coroas de ouro Dessa vez satildeo eles que adoram ldquoTu eacutes digno Senhor e Deus nosso de receber a gloacuteria a honra e o poder porque todas as coisas tu criaste sim por causa da tua vontade vieram a existir e foram criadasrdquo (Ap 411)

A forma literaacuteria eacute de aclamaccedilatildeo mas configurada em expressatildeo hiacutenica no texto do visionaacuterio A estrutura do hino consiste do adjetivo ldquodignordquo seguido do verbo ser (na terceira pessoa do singular) mais uma seacuterie de atributos Esse eacute um hino de dignidade A divindade eacute adorada porque eacute digna e eacute digna em funccedilatildeo da sua obra de criaccedilatildeo

Esse hino tambeacutem levanta a questatildeo de quem eacute digno de ser adorado Possi-velmente eacute uma peccedila lituacutergica que surge em meio agrave disputa por adoraccedilatildeo Com um hino desse tipo o Apocalipse tenta apontar quem eacute digno de adoraccedilatildeo e consequentemente quem natildeo o eacute

Essas expressotildees querem responder agrave questatildeo ldquoquem eacute o verdadeiro senhor da terrardquo ou entatildeo quem eacute digno de ser A resposta do Apocalipse eacute clara o Senhor da terra eacute aquele que a criou A ele pertencem todas as coisas

Esses hinos poderiam atuar na identidade da audiecircncia de diversas maneiras mas destacamos aqui apenas trecircs Primeiramente ao ouvir tais hinos ou cantaacute--los a audiecircncia acompanha os seres celestiais declarando o senhorio exclusivo de Deus sobre o mundo154 Deus eacute o verdadeiro Senhor da Terra o que promove uma determinada filosofia da histoacuteria Um Deus Soberano estaacute acima dos poderes e governos do mundo Esse tipo de divindade tem poder para controlar e dirigir a histoacuteria da humanidade e o faraacute levando-a ateacute a instalaccedilatildeo efetiva do seu Reino sobre a terra (Ap 510) O olhar sobre esse futuro - mas iminente - reino alerta as comunidades de crentes que a vida que eles vivem no presente eacute circunstancial e peregrina O seu destino ainda natildeo chegou Um primeiro efeito plausiacutevel entatildeo se daria na postura poliacutetica dos fieis cantantes ao promover a perspectiva de oposiccedilatildeo agrave sociedade circundante155

Segundo ao afirmar que somente Deus eacute digno de receber adoraccedilatildeo honra poder o hino afirma a singularidade da figura divina diante das pretensotildees im-

154 BORTOLINI Joseacute Como ler o Apocalipse p 53155 Para uma reflexatildeo mais ampla sobre posturas de oposiccedilatildeo do movimento de Jesus agrave estrutura imperial romana cf MIRANDA Valtair A Religiatildeo e sociedade na Aacutesia romana Religare v13 n1 p150-179 2016 LAZIER Josueacute Adam A estrateacutegia cristatilde no contexto da Pax Romana Estudos Biacuteblicos n 36 p 37-40 1992 MESTER Carlos OROFINO Francisco A violecircncia do Impeacuterio Romano e a sua influecircncia na vida das comunidades cristatildes do fim do primeiro seacuteculo Estudos Biacuteblicos n 69 p 72-82 2001

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periais romanas E ao afirmar a singularidade de Deus o hino tambeacutem reforccedila a singularidade de seus adoradores Mesmo que experimentando o desprezo da sociedade romana os seguidores de Jesus se percebem como figuras especiais pois formam o povo de Deus na terra

Terceiro esse conhecimento do senhorio de Deus sobre o universo e da singu-laridade do seu povo eacute um conhecimento profundo que somente quem acessa as regiotildees celestiais conhece Ningueacutem consegue enxergar o que eles veem naquele momento Essa ldquovisatildeo profundardquo era dada aos seguidores do Cordeiro quando se reuniam em seus encontros de culto Dessa forma o culto se torna o espaccedilo privilegiado para o acesso a um ldquooutro mundordquo no interior ldquodeste mundordquo

CELEBRANDO A REDENCcedilAtildeO O CULTO AO CORDEIROO capiacutetulo 5 do Apocalipse apresenta uma crise Qual eacute a crise Joatildeo eacute infor-

mado de que haacute um rolo que ningueacutem pode abrir Ele comeccedila a chorar ateacute que algueacutem bate no seu ombro e diz ldquoNatildeo chores eis que o Leatildeo da tribo de Judaacute a Raiz de Davi venceu para abrir o livro e os seus sete selosrdquo (Ap 55) Ele ouve falar de um leatildeo mas quando olha o que vecirc eacute um cordeiro Eacute Jesus Cristo na forma simboacutelica de um cordeiro ensanguentado representando a centralidade do seu sacrifiacutecio na cruz no projeto de redenccedilatildeo divino Daqui em diante o Cordeiro Jesus Cristo jaacute com o rolo na matildeo vai comeccedilar a quebrar os selos do rolo um por um Agrave medida que cada selo eacute removido uma cena eacute testemunhada por Joatildeo

Jesus que jaacute aparecera antes na forma do Filho do Homem (Ap 113) agora eacute descrito como um cordeiro com aparecircncia de ter sido morto com sete chifres e sete olhos Satildeo imagens que devem ser menos entendidas e mais sentidas Chifres e olhos tecircm a ver com a presenccedila do poder e do espiacuterito de Deus Mas de onde vem a imagem do Cordeiro

Essa imagem tem analogia com o sacrifiacutecio e a morte Uma passagem relevante para estudar o significado de ldquocordeirordquo estaacute no Antigo Testamento especifica-mente em uma profecia de Jeremias 1119 ldquoEu era como manso cordeiro que eacute levado ao matadouro porque eu natildeo sabia que tramavam projetos contra mim dizendo Destruamos a aacutervore com seu fruto a ele cortemo-lo da terra dos vi-ventes e natildeo haja mais memoacuteria do seu nomerdquo O profeta fala de si mesmo como um cordeiro que eacute levado mansamente para a morte

A passagem mais proacutexima de Jeremias eacute Isaiacuteas 537 ldquoEle foi oprimido e humilhado mas natildeo abriu a boca como cordeiro foi levado ao matadouro e como ovelha muda perante os seus tosquiadores ele natildeo abriu a bocardquo O relato de Isaiacuteas 53 sobre o ldquoservo sofredorrdquo reaparece no Novo Testamento de diversas

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formas para falar do ministeacuterio de Jesus e sua morte (Lc 2237 At 832-33 1Pe 222) sendo muito importante para responder agrave questatildeo de como o sofrimento e a morte de Jesus poderiam ser explicados diante da sua natureza messiacircnica

Eacute exatamente isso que aparece quando o Apocalipse descreve Jesus como um Cordeiro Ele eacute o Messias pelo caminho do sacrifiacutecio Mais ainda o Cordeiro Jesus

- Eacute aquele que morreu e ressuscitou (Ap 56)

- Eacute adorado pelas figuras celestiais (Ap 581213)

- Eacute o que tem o poder de revelar os eventos celestiais (Ap 61)

- Eacute o que julgaraacute todas as pessoas (Ap 616 717) pois possui o Livro da Vida (2127)

- Eacute o que lavou as vestes dos salvos com o seu proacuteprio sangue (Ap 791014)

- Eacute o que vence o Dragatildeo em funccedilatildeo do seu sangue (Ap 1211)

- Venceraacute as bestas (Ap 1714)

- Se casaraacute com sua noiva a Nova Jerusaleacutem o povo de Deus (Ap 1979 219)

- Iluminaraacute a Nova Jerusaleacutem (Ap 2123)

A imagem do cordeiro sacrificial entatildeo no Apocalipse faz referecircncia natildeo apenas ao sofrimento e agrave morte mas tambeacutem agrave vitoacuteria reinado poder e gloacuteria Eacute a esse Cordeiro exaltado que toda a adoraccedilatildeo do capiacutetulo 5 se dirige Ele eacute digno de ser adorado porque segundo os vinte e quatro anciatildeos e os Quatro Viventes morreu e com seu sangue comprou pessoas de todas as naccedilotildees constituindo-as reino e sacerdotes para Deus (Ap 59-10) Os mesmos seres que adoraram a Deus no capiacutetulo 4 agora se rendem em adoraccedilatildeo ao Cordeiro de Deus no capiacutetulo 5 (Ap 59-10) ldquoDigno eacutes de tomar o livro e abrir-lhe os selos porque foste morto e compraste para Deus atraveacutes do teu sangue pessoas de toda tribo liacutengua povo e naccedilatildeo e os constituiacuteste para o nosso Deus reino e sacerdotes e reinaratildeo sobre a terrardquo

Adela Yarbro Collins estudiosa da Yale University (EUA) interpretou esse rolo como uma epiacutestola celestial na forma de um livro de destino Em outras palavras ele seria uma taacutebua de eventos futuros Os sete selos enfatizam simbolicamente a intensidade do segredo do conhecimento sobre os eventos futuros cujo conteuacutedo eacute dado na forma de duas seacuteries de sete visotildees (selos e trombetas)156 O Cordeiro seria o uacutenico digno de revelar para o visionaacuterio e sua comunidade o conhecimento escatoloacutegico A base dessa dignidade eacute a morte de Jesus Cristo

156 COLLINS Adela Yarbro The combath myth in the Book of Revelation p 25

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A imagem de um cordeiro imolado jaacute seria evocaccedilatildeo suficiente agrave morte de Jesus da mesma forma como sua posiccedilatildeo em relaccedilatildeo ao trono o afirma vivo e com poder para fazer especificamente duas coisas comprar para Deus um povo exclusivo e fazecirc-los reino e sacerdotes de Deus Essa afirmaccedilatildeo jaacute apareceu antes (Ap 15-6) na forma de um hino entoado pelo autor na primeira pessoa do plural ldquoAgravequele que nos ama e pelo seu sangue nos libertou dos nossos pecados e nos constituiu reino sacerdotes para o seu Deus e Pai a ele a gloacuteria e o domiacutenio pelos seacuteculos dos seacuteculos Ameacutemrdquo Jaacute nesse hino ao Cordeiro satildeo os Vinte e Quatro Anciatildeos diante do Trono no ceacuteu que declaram esta mesma realidade Seria uma maneira de indicar que os seres celestiais confirmam o status real e sacerdotal cantado pelos crentes na terra

A origem dessas pessoas como ldquode toda tribo liacutengua povo e naccedilatildeordquo afirma o caraacuteter natildeo mais eacutetnico do povo de Deus A filiaccedilatildeo natildeo seria mais uma questatildeo de sangue mas de compromisso com o Cordeiro

As formas verbais satildeo bem precisas Os seguidores do Cordeiro jaacute foram comprados e jaacute receberam a investidura real e sacerdotal Seriam accedilotildees realizadas por Jesus no momento de sua morte e ressurreiccedilatildeo Mesmo assim uma reserva escatoloacutegica se manifesta eles ainda reinaratildeo sobre a terra Eles jaacute fazem parte do reino de Deus e seu filho Jesus Cristo mas esse reino ainda natildeo eacute visto por quem natildeo faz parte dele O cacircntico expressa a esperanccedila entretanto somente na intervenccedilatildeo uacuteltima de Deus esse reinado se materializaraacute157

Os cantores desse hino de dignidade ao Cordeiro satildeo os Quatro Viventes e os Vinte e Quatro Anciatildeos A cena ganha proporccedilotildees ainda maiores quando apoacutes o hino anjos em nuacutemero de ldquomilhotildees de milhotildees e milhares de milharesrdquo tambeacutem cantam a mesma temaacutetica (Ap 512) ldquoDigno eacute o Cordeiro que foi morto de receber o poder e riqueza e sabedoria e forccedila e honra e gloacuteria e louvorrdquo

Enquanto a primeira canccedilatildeo de dignidade ao Cordeiro estaacute na segunda pessoa do singular (um hino que fala com o Cordeiro) a canccedilatildeo dos anjos estaacute na terceira pessoa do singular (um hino que fala do Cordeiro) Em ambas as canccedilotildees o objeto de adoraccedilatildeo eacute descrito numa linguagem poliacutetico-religiosa do antigo Israel

Ele eacute o Leatildeo da Tribo de Judaacute a raiz de Davi que conquistou e portanto eacute digno de abrir o rolo que Deus entregou em suas matildeos Mas eacute ao mesmo tempo um Cordeiro em peacute como se tivesse sido morto Eacute ele que tem o rolo na matildeo

157 Isto configura um determinado tipo de milenarismo como analisado em MIRANDA Valtair A Maacutertires e monges milenarismos antigos e medievais Santo Andreacute Kapenke 2018 p 43-72

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O Leatildeo era usado como siacutembolo de poder no mundo antigo (Pr 3030) e se tornou associado com o trono de Davi atraveacutes da caracterizaccedilatildeo de Judaacute feita por Jacoacute (Gn 499) A raiz de Davi eacute uma metaacutefora para a linhagem de Davi (Is 1110) e se tornou siacutembolo da restauraccedilatildeo da monarquia daviacutedica (Jr 235) Essas tradiccedilotildees do restabelecimento do reino de Deus como um ato de forccedila e poder eram tradicionais Mas essa natildeo eacute a perspectiva de Apocalipse que inverte a imagem O leatildeo se torna cordeiro Existe violecircncia sim mas contra o cordeiro natildeo do Cordeiro Ele tem poder e tem forccedila para conquistar mas seus atos de conquista passaram pela sua morte158

Se Deus eacute digno por causa de sua obra de criaccedilatildeo o Cordeiro eacute digno por causa da redenccedilatildeo Somente ele entatildeo eacute capaz de abrir os selos somente ele venceu a morte Ao inserir o tema da morte do Cordeiro na tradiccedilatildeo messiacircnica daviacutedica o visionaacuterio insere na esperanccedila messiacircnica poliacutetica os aspectos da tradiccedilatildeo sacrificial

As cenas de culto celestial natildeo eram novidades na apocaliacuteptica Entretanto a presenccedila do Cordeiro ldquocomo que mortordquo no Templo celestial participando ou mesmo recebendo o culto eacute uma grande novidade do Apocalipse de Joatildeo Um nuacutemero muito maior de epiacutetetos nesses hinos de dignidade eacute lanccedilado sobre o Cordeiro do que ao proacuteprio Anciatildeo que estava assentado sobre o trono central do Santuaacuterio

Apoacutes a adoraccedilatildeo ao Cordeiro o relato acrescenta que ldquotoda criatura que haacute no ceacuteu e sobre a terra debaixo da terra e sobre o mar e tudo o que neles haacuterdquo e se volta novamente para aquele que se assenta no trono A descriccedilatildeo do culto celestial assim extrapola os espaccedilos celestiais pois envolve tambeacutem o acircmbito da terra e do mar bem como todos os seus seres A natureza inteira aparece envolvida na adoraccedilatildeo celestial O que eles cantam eacute ldquoAo que se assenta sobre o trono e ao Cordeiro o louvor e a honra e a gloacuteria e o domiacutenio para os seacuteculos dos seacuteculosrdquo (Ap 513)

Finalmente ambos os personagens celebrados no culto celestial recebem simultaneamente a adoraccedilatildeo As claacuteusulas de dignidade se parecem com o hino dos anjos (Ap 512) e com o hino a Deus em Apocalipse 411 A gloacuteria e a honra aparecem nos trecircs hinos O poder eacute dado a Deus pelos Vinte e Quatro Anciatildeos e ao Cordeiro pelos anjos mas natildeo aparece na lista quando ambos satildeo louvados juntos Na adoraccedilatildeo a Deus e ao Cordeiro por sua vez ainda se manifestam o domiacutenio e o louvor que natildeo apareceram antes para Deus De qualquer forma todas

158 BARR David L Tales of the End p 70

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as dignidades de Deus pertencem tambeacutem ao Cordeiro que ainda suporta outras Somente Ele nesses trecircs hinos de dignidade teve celebrada a riqueza a sabedoria e a forccedila Esses elementos sinalizam que diferentemente das visotildees tradicionais do Templo celestial no Apocalipse de Joatildeo natildeo eacute Deus a figura principal mas sim o Cordeiro Ele eacute o personagem central da revelaccedilatildeo do visionaacuterio

Nos termos de Hurtado

judeus convertidos se reuniam para adorar em nome de Jesus oravam a ele cantavam para ele entendiam que ele estava em uma posiccedilatildeo celestial acima de toda a ordem angelical usaram para ele tiacutetulos e passagens das Escrituras judaicas originalmente usadas para Deus procuraram convencer outros judeus e tambeacutem gentios a reconhece-lo como o redentor messiacircnico escolhido por Deus e em geral redefiniam a devoccedilatildeo tradicional ao uacutenico Deus para incluir a veneraccedilatildeo a Jesus159

Ao apresentar a adoraccedilatildeo de elementos da natureza o visionaacuterio ainda demons-tra a possibilidade de elementos de fora do acircmbito celestial participarem de algu-ma maneira do culto no ceacuteu O que esses elementos celebram eacute a manifestaccedilatildeo do Reino de Deus e seu domiacutenio perpeacutetuo Os cantores desse hino representam toda a ordem da criaccedilatildeo que juntos adoram o que se assenta no trono e o Cordeiro160

Como um responsoacuterio coral a resposta vem daqueles que se encontram bem perto do trono os Quatro Viventes que respondem ldquoAmeacutemrdquo

A conclusatildeo da cena eacute um novo ato de prostraccedilatildeo e adoraccedilatildeo dos Anciatildeos (Ap 513-14) O verbo usado no Apocalipse para adoraccedilatildeo eacute predominantemente proskuneo Ele aparece 60 vezes no Novo Testamento mas em nenhum outro livro tem a importacircncia que tem no livro de Joatildeo no qual aparece 24 vezes indicando o quanto a questatildeo da adoraccedilatildeo eacute central para o visionaacuterio O termo denota prostraccedilatildeo postura de submissatildeo e homenagem atitude que seraacute repetida vaacuterias vezes no Apocalipse

Finalmente o culto ao Anciatildeo e ao Cordeiro dos capiacutetulos 4 e 5 de Apocalipse seraacute interrompido pela seacuterie de selos e trombetas mas apareceraacute novamente em vaacuterios outros lugares da obra

159 HURTADO Larry W One God One Lord p 17-18160 MESTER Carlos OROFINO Francisco Apocalipse de Joatildeo p 182-183

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CONCLUSAtildeORetomando a questatildeo inicial sobre o papel dos hinos dos capiacutetulos 4 e 5 de

Apocalipse na autocompreensatildeo religiosa e social da audiecircncia ali descrita acreditamos que eles funcionariam para afirmar um status exaltado dos segui-dores de Jesus que foram comprados para Deus e lhe pertencem agora Como propriedade exclusiva de Deus satildeo seus sacerdotes fazendo parte do reino de Deus e do Cordeiro jaacute no presente tempo Por isso eles jaacute podem cantar todas as expectativas que as antigas tradiccedilotildees judaicas esperavam para a intervenccedilatildeo escatoloacutegica divina

Profeticamente o reinado de Deus e seu ungido se manifestam jaacute no espaccedilo sagrado do culto O Templo celestial sede do reino de Deus tem seu equivalente na terra no ajuntamento da comunidade de fieacuteis em adoraccedilatildeo Assim separados da vida ordinaacuteria dentro do limite do tempo e espaccedilo ritual na assembleia de adoraccedilatildeo no dia do Senhor os seguidores de Jesus conseguiam ver o que ningueacutem mais via e mais do isso jaacute antecipavam prolepticamente sua participaccedilatildeo no Reino de Deus e seu Cordeiro

Como contraponto entretanto essa perspectiva identitaacuteria promoveria algum tipo de rejeiccedilatildeo agrave ordem social romana A grande pergunta que os capiacutetulos 4 e 5 de Apocalipse quer responder eacute Quem eacute digno de adoraccedilatildeo Muita gente na eacutepoca do Apocalipse dizia que o Imperador Romano era digno de adoraccedilatildeo Para aqueles que cantavam esses cacircnticos entretanto a sociedade romana paganizada estava equivocada

Eacute certo que os imperadores romanos eram pessoas muito poderosas Tatildeo poderosas que imaginavam poder receber honras e adoraccedilatildeo como se fossem divindades O culto imperial era efetivamente um problema para as comunidades receptoras do Apocalipse Entretanto em oposiccedilatildeo a essa estrutura religiosa imperial o Apocalipse responde com o convite para uma adoraccedilatildeo exclusiva a Deus e seu Cordeiro mesmo que o preccedilo para isso fosse o caminho do martiacuterio (Ap 1413)

Valtair Afonso MirandaRua Uruguai 514202

20510-060 ndash Rio de Janeiro RJvaltairmirandagmailcom

108 TeoloacutegicaRevista Brasileira de Teologia ISSN 1807-7056 nordm 8 outdez Rio de Janeiro 2020 p 98 - 108

Teoloacutegica | Revista Brasileira de Teologia

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