· o ascensor funciona raramente ... passo pela estação do caminho‑de‑ferro com o majestic...

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Relógio D’Água EditoresRua Sylvio Rebelo, n.º 15

1000 ‑282 Lisboatel.: 218 474 450

[email protected]

© John Berger, 1995 and John Berger Estate

Título: Para o CasamentoTítulo original: To the Wedding (1995)

Autor: John BergerTradução: Luísa Feijó

Revisão de texto: Joana NunesCapa: Carlos César Vasconcelos (www.cvasconcelos.com)sobre fragmento de As Três Velas (1938), de Marc Chagall

© Relógio D’Água Editores, Fevereiro de 2018

Encomende os seus livros em:www.relogiodagua.pt

ISBN 978 ‑989 ‑641 ‑816‑8

Composição e paginação: Relógio D’Água EditoresImpressão: Europress, Lda.

Depósito Legal n.º 438057/18

John Berger

Para o CasamentoTradução deLuísa Feijó

Ficções

No comboio de regresso a Atenas, nessa mesma noite, ouvi mú‑si ca de piano a ser tocada noutra cidade.

Uma escadaria larga que não tem alcatifa nem papel de parede, mas que tem um corrimão de madeira polida. A música vem de um apartamento no quinto andar. O ascensor funciona raramente aqui. Não pode ser nem um disco nem um CD, é uma cassete banal. Há uma leve camada de pó em todos os sons. Um nocturno para piano.

No interior do apartamento, uma mulher está sentada numa ca‑dei ra de espaldar direito em frente a uma janela alta que dá para uma varanda. Acabou de abrir as cortinas e fita algo por sobre os telhados nocturnos de uma cidade. Tem o cabelo amarrado atrás num puxo e os olhos cansados. Todo o dia trabalhou em porme‑norizados desenhos de engenharia para um parque de estaciona‑mento subterrâneo. Suspira e esfrega os dedos da mão esquerda que lhe doem. O nome dela é Zdena.

Há vinte e cinco anos era estudante em Praga. Tentou argumentar com os soldados russos que entraram na cidade com os seus tanques do Exército Vermelho na noite de 20 de Agosto de 1968. No ano seguinte, no aniversário da noite dos tanques, juntou ‑se a uma mul‑tidão na Praça Venceslau. Milhares de pessoas foram levadas pela polícia e cinco foram mortas. Passados alguns meses, vários amigos

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próximos foram presos, e, no Dia de Natal de 1969, Zdena conse‑guiu atravessar a fronteira e ir até Viena e de lá viajar para Paris.

Conheceu Jean Ferrero num serão organizado por refugiados checos em Grenoble. Reparou nele mal ele entrou na sala, porque se parecia com um actor que ela tinha visto em tempos num filme checo sobre trabalhadores dos caminhos ‑de ‑ferro. Posteriormen‑te, quando descobriu que ele trabalhava de facto nos caminhos‑‑de ‑ferro, teve a certeza de que ele estava destinado a ser seu amigo. Ele perguntou ‑lhe como se dizia em checo: a Boémia é o meu país. E isto fê ‑la rir. Tornaram ‑se amantes.

Sempre que o ferroviário tinha dois dias de folga em Modane, ia ver Zdena a Grenoble. Viajavam na moto dele. Ele levou ‑a ao Mediterrâneo, que ela nunca tinha visto. Quando Salvador Allen‑de ganhou as eleições no Chile, falaram de ir viver para Santiago.

Depois, em Novembro, Zdena anunciou que estava grávida. Jean convenceu Zdena a não abortar. Eu tomo conta de vocês os dois, disse ele. Vem viver para a minha casa em Modane, tem três divi‑sões, uma cozinha, um quarto para nós e um quarto para ele ou ela. Acho que o nosso bebé é uma menina, disse ela, subitamente encantada.

No cais em Atenas alguém se ofereceu para me acompanhar. Fiz de conta que era surdo além de cego.

Quando Ninon, a filha deles, tinha seis anos, Zdena ouviu na rádio uma noite que cem cidadãos checos em Praga tinham assi‑nado uma petição a exigir direitos humanos e civis. Tratar ‑se ‑ia, interrogou ‑se ela, de um ponto de viragem? Estava fora havia oito anos. Precisava de saber mais.

Vai, disse Jean, sentado na mesa da cozinha, ficamos bem, a Ninon e eu. Fica o tempo que quiseres, talvez até consigas que te prolonguem o visto. Volta para o Natal e descemos de trenó até lá abaixo a Maurienne. Não, não estejas triste Zdena. É o teu de ver, Camarada, e voltas feliz. Nós ficamos bem.

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Continuando a escutar o nocturno no quarto do quinto andar, Zdena corre as cortinas e dirige ‑se para um espelho junto de um fogão forrado a azulejos azuis e brancos. Olha para o espelho.

Que aconteceu realmente naquela noite há dezassete anos, quan‑do ela interrogou Jean acerca do visto? Tinham concordado, como gente possessa, como os loucos, que os três nunca mais conhece‑riam o mesmo lar?

Como é que decidimos coisas?Enfiado no canto inferior do espelho está um bilhete de auto‑

carro: Bratislava — Veneza. Apalpa o bilhete com a mão esquer‑da, aquela mão cujos dedos doem.

A moto tem um cobertor dobrado enrolado no selim. Sobre o cobertor dormem três gatos.

Jean Ferrero desce as escadas para a cozinha de botas calçadas e vestido de couro preto. Abrindo um alçapão no fundo da porta, bate palmas e, um a seguir ao outro, os gatos saltam da mota e es guei ram ‑se para o jardim. Abrira o alçapão havia quinze anos, quando Ninon tinha um cachorrinho chamado Majestic.

Então ouvi a voz que me lembrava fatias de melão. A mesma voz, mas que pertencia agora a uma menina de oito ou nove anos. Ela diz: Tenho o Majestic debaixo do meu casaco, quando passo junto à nossa estação de comboios. Passam sessenta e um com‑boios pela nossa estação em cada vinte e quatro horas. Tudo o que é carga para Itália passa pelo nosso túnel. Trago ‑o debaixo do casaco e ele pousa o queixo no botão de cima e abana as ore‑lhas de encontro às lapelas. Se não contar os caracóis, as minho‑cas, as lagartas, os girinos, as joaninhas e os lagostins, ele é o meu primeiro animal de estimação. Chamo ‑lhe Majestic porque é tão pequenino.

Jean abre a porta da rua, monta na mota e empurra com o pé. Mal a roda traseira toca na soleira da porta, a mota rola sozinha

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para a estrada. Jean olha para o céu. Não há estrelas. Escuridão, uma escuridão visível.

Passo pela estação do caminho ‑de ‑ferro com o Majestic dentro do casaco, e toda a gente pára e aponta com os dedos e sorri. Quem nos conhece e quem não nos conhece. Ele é uma criatura nova. Monsieur le Curé pergunta ‑me o nome dele como se fosse organizar um baptismo! Majestic! digo ‑lhe eu.

O ferroviário vai fechar a casa. Roda a chave na fechadura, como se o acto de rodar fosse já uma garantia de que regressará na próxima semana. O modo como faz coisas com as mãos inspi‑ra confiança. É daqueles homens para quem os gestos das mãos são mais dignos de confiança do que as palavras. Enfia as luvas, liga o motor, dá uma olhadela ao nível da gasolina, mete a primei‑ra, larga a embraiagem e parte.

O semáforo junto da estação está no vermelho. Jean Ferrero espera que mude. Não há mais trânsito. Podia facilmente passar sem qualquer risco. Mas toda a vida controlou sinais e por isso espera.

Quando o Majestic tinha sete anos, foi atropelado por um ca‑mião. Desde o primeiro dia em que o apanhei e ele pousou o fo‑cinho no botão de cima e o levei para casa dentro do meu casaco, dizendo Majestic, meu Majestic, ele foi sempre um mistério.

O sinal passa a verde e homem e mota adquirem velocidade, Jean deixa ficar para trás o pé direito enfiado na bota enquanto com o esquerdo mete a segunda e, na altura em que chega às ca‑binas telefónicas, sobe para terceira.

*

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Vi ‑o ontem, pendurado numa vitrine perto do Hôtel du Com‑merce, aquele vestido tem o meu nome, ninon! Todo o corpo em seda preta chinesa com flores brancas aqui e ali. O comprimento perfeito, três dedos acima do joelho. Decote em V, com lapelas compridas, cortadas, não cosidas. Botões a todo o comprimento. Em contraluz é um bocadinho transparente, mas não o suficiente para ser provocante. A seda é sempre fresca. Se o balançar para cima e para baixo, a minha coxa lambe ‑o como se fosse um gela‑do. Hei ‑de encontrar um cinto de prata, um cinto prateado largo a condizer com ele.

A moto com os seus faróis acesos sobe em ziguezague a mon‑tanha. De vez em quando, desaparece por detrás de escarpas e rochas e sobe sempre e vai ficando mais pequena. Agora a luz oscila como a chama de uma pequena vela votiva de encontro a uma imensa face de pedra.

Para ele é diferente. Vai furando a escuridão como uma toupei‑ra fura a terra, o foco dos seus faróis rasga o túnel e as curvas do túnel à medida que a estrada vai curvando para contornar rochas e para subir. Quando volta a cabeça para olhar para trás — como acaba de fazer — não existe nada para além do farolim traseiro e de uma imensa escuridão. Aperta o depósito de gasolina com os joelhos. Cada curva, quando homem e máquina entram nela, re ce‑be ‑os e iça ‑os com um sacão. Entram nelas devagar e saem rapi‑damente. Quando entram, inclinam ‑se para a frente o mais possí‑vel, esperam que a curva lhes dê o seu arqueamento e depois sal tam em frente.

Entretanto, aquilo que estão a escalar torna ‑se cada vez mais desolado. No escuro a desolação é invisível, mas o ferroviário con‑se gue senti ‑la no ar e nos sons. Voltou a abrir o visor. O ar é fino, gélido, húmido. O ruído do motor devolvido pelas rochas parece serrilhado.