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| 28 GVEXECUTIVO • V 18 • N 6 • NOV/DEZ 2019 • FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS

CE | INOVAÇÃO NO ENSINO • DESAFIOS DA INOVAÇÃO

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DESAFIOS DA INOVAÇÃO

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| POR CARLA CAMPANA

A educação tem sofrido pressão para se transformar. Mudanças na sociedade, na organização do trabalho, na forma de competição das empresas e nas tec-nologias da informação impulsionam um conjunto de iniciativas emergen-tes no campo educacional. Implantar

tais inovações, entretanto, é um processo que enfrenta uma série de desafios, que vão das resistências dentro das orga-nizações à redefinição do papel de professores e alunos em sala de aula.

Nos cursos de Administração de Empresas e Pública da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fun-dação Getulio Vargas (FGV EAESP), há uma experiência inovadora que revela caminhos para lidar com dilemas em projetos que modifiquem estruturas educacionais. Trata-se do Intent, um programa de formação integrada para lide-rança empreendedora. Ofertado desde 2017, começou a ser desenhado dois anos e meio antes por um grupo de profes-sores, pesquisadores e profissionais, sob a coordenação do Centro de Desenvolvimento do Ensino e da Aprendizagem (CEDEA) da FGV EAESP. Tem como propósito formar

líderes criativos, com senso de direção e espírito colabora-tivo, por meio da criação e sustentação de um espaço peda-gógico voltado à experimentação, à reflexão e ao crescimen-to pessoal e profissional. Neste artigo, serão abordados os desafios enfrentados no processo de criação e implementa-ção do programa, destacando ações que foram importantes para a sua superação.

O LUGAR DA INOVAÇÃO EDUCACIONALEstudos apontam que o desenvolvimento e a adoção das

ideias inovadoras começam com esforços individuais ou de pequenos grupos. As pessoas inovadoras são aquelas que estão em contato com os avanços do conhecimento em sua área e pessoalmente mobilizadas para as causas a que se dedicam.

Em uma instituição educacional, atores inovadores em-preendem o tempo todo. No entanto, para o desenvolvimen-to de iniciativas de maior escopo, é fundamental que exista um espaço delimitado e sustentado de apoio aos projetos. Modificar elementos estruturantes do modelo educacional envolve desafios de diversas ordens, do relacionamento com os estudantes até as regulações governamentais, passando

Implantar novos projetos na educação traz riscos. Explicitá-los e geri-los adequadamente é fundamental, como revela a experiência da FGV EAESP com o Intent.

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pela redefinição de papéis, da estrutura física e até do per-fil da instituição.

Sejam incrementais ou disruptivas, inovações envolvem mudanças e mudanças são sempre arriscadas. Assim, ter um lugar (físico e simbólico) para explicitar, calcular e ge-rir esses riscos é essencial para qualquer proposta inovado-ra, além de facilitar à instituição comunicar sua visão sobre inovação. No caso da FGV EAESP, esse papel tem sido de-sempenhado pelo seu CEDEA.

COCRIAÇÃO E INCUBAÇÃOProcessos inovadores são naturalmente acompanhados

de resistências. Um dos motivos está na distinção que fre-quentemente ocorre entre quem idealiza as mudanças e quem deve implementá-las ou sofrer suas consequências. A adoção de processos de criação coletiva costuma ser re-comendada para mitigar essa resistência. Ocorre que nem todos estão inclinados, capacitados ou mesmo orientados à inovação, e o projeto original pode acabar descaracterizado nesse processo. Para que o caráter inovador não acabe di-luído em concessões, é importante que o projeto mantenha identidade, fundamentos, valores, público-alvo e objetivos.

A estratégia adotada para o desenho do Intent foi uma mistura de cocriação (envolvimento dos stakeholders no

processo de desenho e prototipação do programa) e incu-bação (hospedagem dos protótipos no CEDEA antes de en-tregá-lo para operação). Apenas quando a primeira versão do programa ganhou mais corpo é que o Intent foi apresen-tado de forma ampla. Essa escolha possibilitou, ao mesmo tempo, ouvir e trabalhar com as expectativas de uma mul-tiplicidade de vozes e preservar as características mais im-portantes do programa, que foi posto em funcionamento apenas quando estava pronto para receber críticas e sofrer os ajustes necessários à operação.

ADEQUAÇÕES ESTRUTURAISAlgum nível de mudanças estruturais é sempre neces-

sário para acomodar iniciativas inovadoras. A instituição precisa estar aberta à possibilidade de discutir ajustes de carga horária, atribuição de créditos, perfil de professor, orçamento etc. A experiência do Intent mostrou que, para isso, contribui flexibilidade, boa vontade e paciência. Pro-totipar parece sempre ser uma boa saída. Por exemplo, antes de desenvolver e implantar um novo procedimento de matrícula para atender a um programa inovador, vale mais a pena testar soluções (experimentais, manuais, sob demanda) até que se mapeiem de forma mais precisa quais são as novas necessidades.

O QUE É O INTENTO programa adota princípios de aprendizagem por meio da experiência, com base em workshops e projetos, incluindo interação com clientes externos; no trabalho em equipe, como forma organizativa básica; e na ênfase no desenvolvimento de competências relacionais e cooperativas. O Intent dura 15 semanas, divididas em três ciclos:

Ciclo 1 – Formação do time. Introduz, de forma vivencial, os conceitos e as ferramentas que constituem a metodologia, por meio de atividades e reflexões individuais e em grupo.

Ciclo 2 – Projeto pessoal. Mobilizando o autoconhecimento trabalhado no ciclo 1, os participantes experimentam colocar em prática projetos de caráter pessoal, individualmente ou em grupo.

Ciclo 3 – Projeto com cliente real. Empresas são chamadas para um workshop de um dia, conduzido pelos team members. Após esse evento, al-gumas empresas são convidadas pelo grupo para um processo de consultoria de cinco semanas.

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CARLA CAMPANA > Professora da FGV EAESP > [email protected]

PARA SABER MAIS:− Michael Barber, Katelyn Donnelly e Saad Rizvi. An avalanche is coming: higher education

and the revolution ahead, 2013.− Clayton M. Christensen e Henry J. Eyring. The innovative university: Changing the DNA of

higher education from the inside out, 2011.− Ei! Ensino Inovativo, v.3, 2018. Disponível em: bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/ei/issue/

view/4282− Intent. Site. Disponível em: intenters.com.br

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Ainda sobre estrutura, dois aspectos foram extremamente importantes para o Intent e merecem destaque. O primei-ro diz respeito à estrutura física da sala de aula. Em geral, práticas educacionais inovadoras demandam novas confi-gurações, que facilitem o trabalho em grupo, o recebimen-to de participantes externos, a exploração da criatividade e outras montagens experimentais. O Intent pôde contar com o laboratório de colaboração (COLAB), uma sala desenha-da para atender a essas demandas. O segundo aspecto diz respeito ao tempo. Para o tipo de formação pretendida, a grade horária tradicional não se ajustava. Foi preciso rema-nejar disciplinas e oferecer equivalências para que o caráter de formação integrada fosse alcançado. Esse ajuste só foi possível com o apoio da coordenação do curso.

RELAÇÕES PEDAGÓGICASA relação entre professores e alunos é o aspecto mais im-

portante do processo de ensino-aprendizagem escolar. Nesse campo, muitos ajustes precisam ser feitos, sobretudo quando as práticas inovadoras se propõem a repensar os papéis tra-dicionalmente desempenhados por esses atores. Além disso, aspectos relacionados à formação dos professores também se configuram como desafios a superar.

Uma das características do Intent é a redefinição do pa-pel de professores e alunos em, respectivamente, team lea-ders e team members. A função do team leader é sustentar o espaço de aprendizagem, desenhando e conduzindo ati-vidades que auxiliem o grupo no alcance dos seus objeti-vos. As atividades propostas têm progressivamente menor teor de diretividade. A intenção é que o papel do team lea-der se desvaneça com o tempo, dando aos team members a oportunidade de serem protagonistas de sua aprendizagem. Sustentar essa relação requer uma mudança comportamen-tal radical de alunos e professores.

Por não ser esse o costume nos programas educacionais tradicionais, alunos experimentam sentimentos divergen-tes quando se deparam com a possibilidade de tomar deci-sões referentes à própria aprendizagem. O desejo manifesto de autonomia convive com uma postura reativa, de quem aguarda receber instruções. É comum aparecerem compor-tamentos que denotam dependência de uma liderança for-mal. Reconhecer e refletir sobre esses sentimentos levam os alunos, não sem frustrações, a tomarem suas decisões de forma mais ativa, a buscarem suporte e feedback para seus projetos e a assumirem responsabilidade pelo processo e pelo resultado de seus empreendimentos.

Os professores, por seu turno, precisam estar conscien-tes de seu papel, criando e sustentando um espaço no qual

seja possível ao estudante, genuinamente, escolher, errar, refazer, receber feedback e refletir. Para que isso seja pos-sível, devem abrir mão daquilo que praticamente caracte-riza a sua profissão – a transmissão polarizada de conhe-cimentos e a hierarquia do saber – e se apropriar de outras funções, como as de facilitador, mediador, curador, líder, avaliador formativo e orientador. Além de uma profunda mudança de identidade profissional, assumir esses novos papéis requer formação e, também, mudanças estruturais no sistema educacional.

Atualmente, a formação requerida dos professores univer-sitários são a capacitação técnica em sua área de especiali-dade e a habilidade de pesquisa, desenvolvida nos cursos de mestrado e doutorado. Para empreender práticas inovadoras consistentes, no entanto, o professor precisa se capacitar em áreas que geralmente lhe são pouco familiares, como peda-gogia, sociologia e psicologia. Em geral, ele não recebe essa formação e aquele que a busca precisa fazê-lo às próprias expensas. Isso acontece principalmente pela forma como o sistema educacional superior está organizado, valorizando mais a pesquisa do que o ensino. Na FGV EAESP é esco-po do CEDEA oferecer ao corpo docente uma parte da for-mação necessária ao desempenho desse novo papel. Além disso, novas políticas de avaliação docente estão sendo de-senhadas, incluindo critérios relacionados aos processos de ensino-aprendizagem.

INOVAÇÃO É INTENÇÃOO caso do Intent ilustra o quanto o processo de inovação

é complexo, multifacetado e requer, acima de tudo, inten-ção manifesta de parte dos inovadores, dos professores, dos alunos, dos funcionários e, sobretudo, da instituição. Em nossa experiência ficou claro que o fator mais importante para o sucesso na implementação das práticas inovadoras é o apoio formal continuado da instituição, pois esse suporte permite que ideias possam ser criadas com liberdade, tes-tadas, implementadas, revisadas e que as adequações orga-nizacionais necessárias sejam realizadas. Vencidos esses desafios, é tempo de se reinventar. Afinal, inovar é tão fas-cinante quanto necessário.