[ história ] · o cristal de quartzo é usado na relojoaria devido às suas propriedades...

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A 3 de Março de 1969, a nata da imprensa es- pecializada é convocada para viver um momento único: à mesma hora, num salão do Hotel Conti- nental de Genebra e no Copter Club do edifício da PAN-AM, em Nova Iorque, é apresentado ao mundo o primeiro cronógrafo de pulso com corda automática. Depois de quatro anos de intenso trabalho, sur- gia um calibre com micro-rotor, revolucionário, e que iria equipar modelos Breitling, Hamilton- -Buren e Heuer. O extraordinário desenvolvimento micro- -mecânico tinha saído dos ateliês de relojoaria e engenharia de Bienne, na Suíça. Isto num mo- mento em que a indústria se debatia com a es- tagnação nas vendas dos cronógrafos de corda manual e se perfilava no horizonte um fantasma poderoso: o movimento de quartzo. É no início dos anos 60 que Jack Heuer entra em acordo com o seu grande rival, Willy Bretil- ing. A aliança vai incluir, dentro de pouco tempo, Hans Kocher, director-técnico da Buren Watch S. A., e a Dubois-Dépraz S. A. De fora fica a Zenith, que também está a trabalhar num calibre cronógrafo automático. No Japão, de onde viria, dentro em pouco, a ofensiva maciça do quartzo, os gigantes Seiko e Citizen também estavam na corrida do cronógrafo automático. O consórcio a quatro, iniciado em 1965, tem para o seu plano secreto um nome de código: “99”. Em 1966, os americanos da Hamilton Watch Company juntam-se na prática ao grupo, ao ficarem com a maioria do capital da Buren. Na Primavera de 1968, são efectuados os primei- ros ensaios conclusivos e experimentados os pro- tótipos. Tinha nascido o calibre 11 “Chronoma- tic”, de 31 mm de diâmetro e 7,7 mm de altura. Mesmo em condições extremas, a sua precisão não estava longe da exigida aos cronómetros. (Nesta altura talvez seja conveniente explicar uma confusão frequente entre cronómetro e cronó- grafo: o primeiro tem de obedecer a determi- nados requisitos de exactidão, mesmo em situa- ções extremas; o segundo tem a função suplemen- tar de medir tempos intermédios. Há cronóme- tros que não são cronógrafos e a maioria dos cronógrafos não exibe a qualidade de cronóme- tro certificado). Havia qualquer coisa no ar. Os filhos da geração que tinha sobrevivido à II Guerra Mundial, do chamado baby boom, entravam na adolescência e não se sentiam bem na realidade que lhes era imposta. A verdade estava no vento, mas os mais velhos não queriam ouvi-la. E os tempos estavam a mudar, quer se quisesse, quer não, como vaticinava um Bob Dylan febril. Na Relojoaria, o quartzo não iria deixar pedra sobre pedra, apesar da resistência heróica da tradicional escola mecânica, que lançava então os primeiros cronógrafos automáticos de pulso. [ História ] texto Fernando Correia de Oliveira 57 História Maio de 68

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A 3 de Março de 1969, a nata da imprensa es-pecializada é convocada para viver um momen to único: à mesma hora, num salão do Hotel Conti-nental de Genebra e no Copter Club do edifício da PAN-AM, em Nova Iorque, é apresentado ao mundo o primeiro cronógrafo de pulso com corda automática.Depois de quatro anos de intenso trabalho, sur-gia um calibre com micro-rotor, revolucionário, e que iria equipar modelos Breitling, Hamilton- -Buren e Heuer.

O extraordinário desenvolvimento micro- -me câ nico tinha saído dos ateliês de relojoaria e engenharia de Bienne, na Suíça. Isto num mo-mento em que a indústria se debatia com a es-tagnação nas vendas dos cronógrafos de corda

manual e se perfilava no horizonte um fantasma poderoso: o movimento de quartzo.

É no início dos anos 60 que Jack Heuer entra em acordo com o seu grande rival, Willy Bretil-ing. A aliança vai incluir, dentro de pouco tempo, Hans Kocher, director-técnico da Buren Watch S. A., e a Dubois-Dépraz S. A. De fora fica a Zenith, que também está a trabalhar num calibre cronógrafo automático. No Japão, de onde viria, dentro em pouco, a ofensiva maciça do quartzo, os gigantes Seiko e Citizen também estavam na corrida do cronógrafo automático.

O consórcio a quatro, iniciado em 1965, tem para o seu plano secreto um nome de código: “99”. Em 1966, os americanos da Hamilton Watch Company juntam-se na prática ao grupo,

ao ficarem com a maioria do capital da Buren. Na Primavera de 1968, são efectuados os primei-ros ensaios conclusivos e experimentados os pro-tótipos. Tinha nascido o calibre 11 “Chronoma- tic”, de 31 mm de diâmetro e 7,7 mm de altura. Mesmo em condições extremas, a sua precisão não estava longe da exigida aos cronómetros. (Nes ta altura talvez seja conveniente explicar uma confusão frequente entre cronómetro e cronó- grafo: o primeiro tem de obedecer a determi-nados requisitos de exactidão, mesmo em situa- ções extremas; o segundo tem a função suplemen-tar de medir tempos intermédios. Há cronóme- tros que não são cronógrafos e a maioria dos cronógrafos não exibe a qualidade de cronóme- tro certificado).

Havia qualquer coisa no ar. Os filhos da geração que tinha sobrevivido à II Guerra Mundial, do chamado

baby boom, entravam na adolescência e não se sentiam bem na realidade que lhes era imposta.

A verdade estava no vento, mas os mais velhos não queriam ouvi-la. E os tempos estavam a mudar,

quer se quisesse, quer não, como vaticinava um Bob Dylan febril. Na Relojoaria, o quartzo não iria

deixar pedra sobre pedra, apesar da resistência heróica da tradicional escola mecânica, que lançava

então os primeiros cronógrafos automáticos de pulso.

[ História ]

texto Fernando Correia de Oliveira

57História Maio de 68

Mas voltemos à saga “99”, consi de rada como um dos projectos in dustriais mais secretos que alguma vez ocorreu no sector relojoeiro. O acordo entre os parceiros estipulava que, depois de conseguido o calibre, cada um ia à sua vida. A Heuer lançou-se na batalha comer-cial com três modelos diferen-tes, o Autavia (“para aqueles a quem a vida e o gosto de aventura são apenas e só uma realidade), o Carrera (mais elegante, integrando uma escala taquimétri-ca que permitia a medição de velocidades médias) e o Monaco (o modelo mais avant-gard, equi-pado com a primeira caixa quadrada estanque). Em todos os modelos, a coroa estava situada no lado esquerdo da caixa. No mostrador, a inscrição “Chronomatic” vai figurar até 1970, seguindo-se depois “Automatic Chronograph”.

Quanto à Zenith, iria lançar pouco depois o mítico El Primero. Seria o primeiro cronógrafo automático capaz de medir intervalos de tempo até um décimo de segundo. Desenvolvido em 1969, e com o nome em Esperanto, pretendendo assim traduzir um espírito universalista, este cali-bre, que continua hoje em produção, tem como característica principal uma frequência de 36 000 alternâncias por hora. A sua exactidão permitiu- -lhe, desde o início, passar nos testes de cronome-tria do COSC (autoridade suíça independente

de controlo de cronómetros, que emite um certificado com o mesmo nome).

Quanto a um dos mais fa-mosos cronógrafos do mundo,

o Rolex Cosmograph Day-tona, lançado em 1961, ape nas em 1988 passaria a ter um calibre automático

(exac tamente o El Primero, da Zenith), e a partir de 2000

um da própria Rolex.Há 40 anos atrás e

para além da preocupação com um cronógrafo automático, as grandes manufacturas tenta-vam melhorar a estanquicida-de dos seus relógios. Enquan-to a Rolex lançava, em 1968, uma série de variações auto-máticas dos seus modelos Oys-ter Perpetual, a Jaeger-LeCoultre apresentava, no mesmo ano, o Memo-vox Polaris, relógio de mergulho cujo design ins-piraria em 2002 a linha Master Compressor (e que teve este ano uma reedição histórica).

Chegariam estes esforços da micro-mecânica para fazer sobreviver um sector ‘ameaçado’ pelo quartzo? Os relógios mecânicos quase iam mor-rendo; a Suíça, tradicionalmente na vanguarda, deixou-se ultrapassar pela ofensiva nipónica. Mas, desde há aproximadamente 20 anos, assis-tiu-se ao regresso do mecânico, gloriosamente e

em força, de novo com a Suíça a comandar. Mas, de 1968 a 1988, foram vinte anos muito difí-ceis… se não, vejamos:

Há precisamente 40 anos, o cantão suíço de Neuchâtel recebia de volta, e em festa, o seu mais ilustre ’cidadão’, o relógio atómico Oscilatom, fabricado pela principal empresa de então no sector, a Ebauches S. A., em colaboração com o Laboratório Suíço de Investigação Relojoeira, sediado na região.

O Oscilatom tinha partido no ano ante-rior, para uma viagem à volta do mun-

do ‘em oito milhões de segundos‘, num périplo que o levou a

Paris, Nova Iorque, Greenbelt (NASA), Washington, Ota-va, Montreal (onde decor-ria uma Exposição Mun-

dial), Hong Kong, Singapura, Tóquio, Manila e, finalmente,

de regresso a Neuchâtel.O Oscilatom era, à altura, o mais

preciso relógio do mundo, um exemplar atómico que levava consigo a célebre Hora do Observató- rio Astronómico de Neuchâtel, e que ia sendo com parada com relógios atómicos seus pares. Tra tado como um verdadeiro passageiro VIP, o Osci latom fez a sua volta ao mundo a bordo de aviões da Swissair (recentemente desaparecida), que lhe reservava sempre dois lugares.

Com esta iniciativa, a Suíça pretendia de- monstrar ao mundo que continuava na vanguarda

O mítico Daytona da Rolex. Peça emblemática que foi lançada após

esta evolução dos mecanismos mecânicos, nomedamente dos

cronógrafos. O El Primero também chegou a equipar este modelo

da Rolex.

Nikki Lauda, Jack Heuer e Clay Ragazzoni.

O envolvimento da TAG Heuer no desporto automóvel, nomeada-

mente na Fórmula 1, fazia-se ao mais alto nível e foram criadas

relações que ainda hoje se mantêm.

Desenho de estudo do “El Primero”, famoso movimento que viria

a equipar alguns dos mais famosos cronógrafos.

Em baixo: O El Primero e o Calibre 11 da TAG Heuer, que equipava

o primero Carrera Chrono

da medição do tempo, posição praticamente in-contestada em que se encontrava desde meados do século XIX, destronando a pouco e pouco as duas anteriores potências do Tempo: a Inglaterra e a França. Mas os tempos estavam a mudar…

No 28.º Salão de Relógios e Jóias de Gene-bra, noticiava em 1968 a revista Belora, a tendên-cia era para «o relógio grande, até mesmo quase gigante», na forma predominava «o oval ou o quadrado arqueado», nos mostradores, as cores dominantes eram o azul ou o cinzento. Mas a grande feira do sector era a que se realizava em Basileia, que, em 1968, ia na sua 38.ª edição e que hoje continua a liderar à escala global, agora com o nome de Baselworld.

A Suíça, que em 1968 detinha cerca de meta-de da produção mundial, em termos de valor, era de longe o maior fabricante e exportador, com as suas marcas a serem as de maior prestígio. A seguir, vinham a União Soviética (onde a in-dústria de relojoaria fazia parte do estratégico e secreto Complexo Industrial Militar), o Japão e os Estados Unidos, que, em conjunto, represen-tavam 35 por cento da produção mundial. Mas, enquanto a Suíça exportava praticamente tudo o que produzia, os outros três consumiam pratica-mente todos os relógios que fabricavam. Mesmo assim, um país despontava no horizonte como exportador: o Japão, que já tinha à sua conta seis por cento do mercado.

O Jornal Português de Economia e Finanças fazia, numa das suas edições de 1968, uma análise

59História Maio de 6858 Espiral do Tempo 30 Outono 2008

do sector relojoeiro mundial, fazendo notar a onda de fusões a que se estava a assistir no te-cido empresarial helvético, de que a concentração Movado / Zenith era o exemplo mais recente.

Tudo isto porque já apareciam nuvens no hori-zonte – falta de liquidez, concorrência nipónica em relógios baratos e em métodos de produção inovadores. Todo este fenómeno de adaptação da indústria iria ter como pano de fundo o reló-gio de quartzo. Uma história que já tinha alguns anos, mas que estava agora finalmente a chegar à boca de cena, ao consumidor final.

O cristal de quartzo é usado na relojoaria de vi do às suas propriedades piezoeléctricas. O efeito piezoeléctrico foi descoberto em França, em 1880, pelos Curie. Bombardeado um cristal de quartzo por uma carga de uma determinada frequência, ele vibra de forma constante, poden-do assim ser usado como órgão oscilador (em vez

do pêndulo ou do balanço-espiral empregues na relojoaria mecânica), dando uma precisão muito superior ao relógio.

Em finais de 1949, a Ebauches S. A. tinha criado um departamento a que deu o nome de Oscilo-quartzo, dando continuidade a trabalhos de investigação levados a cabo pelo Professor E. Baumannn na Escola Politécnica Federal, com o apoio da empresa. No ano anterior, tinha apare-cido na exposição marcando o 100.º aniversário da República e Cantão de Neuchâtel o primeiro relógio de quartzo de fabricação suíça e um dos primeiros fabricados na Europa. Esse relógio foi posto ao serviço do Observatório de Neuchâtel e um outro exemplar semelhante foi fornecido aos Correios e Telégrafos Suíços, destinado à sua es-tação de recepção e medição de Châtonnnaye.

A Ebauches S. A. produzia anualmente mais de 41 milhões de “ébauches” (movimentos ou

calibres base, por acabar), fornecendo só por si mais de 60 por cento das necessidades do mer-cado suíço de relojoaria e mais de 30 por cento do mercado mundial.

Em 1961 a Ebauches S. A. deposita no Obser vatório de Neuchâtel o seu primeiro cro-nó metro de marinha, de quartzo. A miniaturiza-ção avançava. Em 1966, aparecem os protótipos de pulso Beta 1, da Ebauches S. A., e o X-8, da Seiko. Nesse ano, Eiichi Yamada, o presidente da Seiko (segundo maior fabricante nipónico, atrás da Citizen), previa que o Japão seria, dentro de cinco anos, o maior fabricante mundial de relógi-os. Iria acertar Acertiu. Há 40 anos, fabricavam-

se cerca de 135 milhões de relógios no mundo, dos quais 52,5 milhões na Suíça.

Em 1967, o Centre Electronique Horloger (CEH), de Neuchâtel, desenvolvia aquilo que se considera ser o primeiro movimento de quartzo para relógio de pulso comercial, o célebre Beta 21. Na mesma altura, no Japão, a Seiko desen-volvia o mesmo projecto, e ainda hoje se discute a primazia na invenção de um objecto que iria transformar radicalmente a realidade da indústria relojoeira mundial.

De qualquer modo, em finais de 1969, a Seiko lançava no mercado o Astron 355Q, en-quanto o Beta 21 tardava em aparecer ao público,

pelo menos em quantidades suficientes e a preços competitivos para um consumidor sedento de relógios mais fiáveis e mais baratos (começou a ser comercializado em 1970, nos Estados Unidos, sob a marca Pulsar, e apenas mil exemplares).

De qualquer modo, no filme Vive e Deixa Morrer, nesse mesmo ano, o agente secreto britânico James Bond, 007, ostenta no pulso um Beta 21, cujo ecrã de diodos electroluminescentes se activa mediante o carregar de um botão. Os espectadores murmuram de admiração, a pilha sofre uma descarga imensa… mas, mesmo assim, terá sido a última e efémera vitória do quartzo suíço face ao ‘inimigo’ nipónico.

61História Maio de 6860 Espiral do Tempo 30 Outono 2008

A guerra dos relógios de quartzo passava há 40 anos pelos concursos de cronometria, sendo os mais famosos os realizados nos observatórios de Neuchâtel ou de Besançon (França). Há 40 anos, os helvéticos cilindravam os nipónicos, obtendo os dez primeiros lugares em termos de precisão. Mas isso não chegaria para vencer as próximas batalhas, nem muito menos a guerra…

Num dos seus números de 1968, a revista Europa Star, um título que ainda hoje existe e que é um dos mais respeitados entre os da imp-rensa relojoeira especializada, publicava um ar-tigo de um tal J. Hanhart, onde se vaticinava que os movimentos electrónicos iriam, num futuro mais ou menos breve, suplantar os movimentos mecânicos.

As primeiras tentativas de colocar no pulso um relógio electrónico fizeram-se nessa época com o revolucionário Acutron, da Bulova. Trat-ava-se de um relógio eléctrico, movido a pilha, e onde o órgão oscilatório era um diapasão. Esse relógio, extremamente preciso, se comparado com os relógios mecânicos, não chegaria a vingar – pelo preço, elevado, e pela chegada maciça dos relógios de quartzo.

Rémy Chopard, engenheiro da Ebauches S. A., escrevia em 1968 um artigo interessante,

interrogando-se sobre os resultados obtidos pe-los relógios de pulso que iam a concurso nos ob-servatórios, autênticos protótipos. Seria que es-sas iniciativas teriam qualquer valor do ponto de vista industrial?

Ele fazia o paralelo com a indústria automó- vel, onde os desenvolvimentos nos carros de com-petição chegavam, mais cedo ou mais tarde, aos carros de série. «É necessária uma grande pre-cisão para um relógio corrente?», interrogava-se o técnico. «É frequente ouvir observações como esta: ‘para mim, o segundo não tem interesse, basta que o meu relógio esteja certo ao minuto’».

Mas talvez, quem faz tal observação se queixe ao seu relojoeiro, dizendo que o seu relógio já não está certo ao fim de um mês de marcha, «esque-cendo-se que um minuto por mês não representa mais do que uma variação de dois segundos por dia», sublinhava.

E prosseguia, agora claramente na defesa do relógio do quartzo: «Se se disser ‘o vosso relógio não variará mais de 0,15 de segundo por dia’, não haverá qualquer reacção contra este elemento de precisão; mas se, pelo contrário, se disser: ‘não será preciso acertar o vosso relógio electrónico senão uma vez por ano, quando se mudar a pilha, e du-rante esse lapso de tempo ele não variará mais

de um minuto’, esse relógio terá, certamente, um grande êxito; e, contudo, a precisão exigida é a mesma».

A revolução do quartzo foi tão grande que, em 1968, o Observatório de Neuchâtel suspen-deu os concursos de precisão para relógios de pulso. Os relógios de quartzo tinham batido no ano anterior todos os recordes, obtendo classifi-cações de precisão 12 vezes superiores aos mel-hores mecânicos e seis vezes superiores aos tipo Acutron (com oscilador eléctrico, de diapasão). Dizem as más-línguas que os concursos de pre-cisão foram suspensos quando os suíços viram que os japoneses iriam passar a ganhar tudo…

Depois, foi o descalabro. A indústria suíça foi caindo no declínio, mercê da feroz competição japonesa, que fornecia os mercados com milhões de relógios de pulso baratos, fiáveis. As falências iriam suceder-se, o desemprego afectaria dezenas de milhares de operários especializados, a agonia iria prolongar-se, adivinhando os observadores uma morte final. Só que vinha aí um fenómeno helvético, também ele baseado na tecnologia do quartzo e, há precisamente 25 anos, a indústria suíça de relojoaria começaria a dar os primeiros passos para um renascimento, qual Fénix me-cânica. Mas isso já é outra história.

Há 40 anos, manifestações estudantis ocorriam no México, na Polónia, na Jugoslávia,

na Alemanha. Maio, em França, tinha feito com que os sonhos se soltassem debaixo

das pedras da calçada. A Primavera de Praga iria ser esmagada pelos tanques do Pacto

de Varsóvia, comandados por Moscovo e com o apoio expresso do Partido Comunista

Português, Robert Kennedy e Martin Luther King eram assassinados. O mundo estava

em brasa.

Em Portugal, o ano de 1968 começava também com manifestações estudantis, em

Lisboa e no Porto, contra a presença norte-americana no Vietname e contra a guerra

colonial que Lisboa mantinha em Angola, Guiné-Bissau e Moçambique.

Mário Soares era preso e deportado para São Tomé e Príncipe, Salazar comemorava em

Abril 40 anos no poder, mas em Agosto caía da cadeira e, com o seu estado de saúde a

agravar-se, é substituído em Setembro à frente do Governo por Marcello Caetano.

Nesse ano, dá-se num país parado, isolado, pacóvio e pobre um evento de que ainda

hoje se fala: Antenor Patiño, magnata do estanho, organizou uma festa na sua quinta

em Colares, para a qual convidou a «fina-flor da alta sociedade internacional». Portugal

ficou de boca aberta perante tanta gente rica e bonita.

Na fugaz Primavera Marcelista, Mário Soares é autorizado a regressar, mas o ano termina

com vigílias de católicos contra a política africana do Governo e com o encerramento do

Instituto Superior Técnico, em Lisboa, por o regime o considerar como local de subversão.

A Academia de Lisboa decretava o luto académico.

E, em termos de relojoaria, o que se passava em Portugal há 40 anos? Desde logo,

a importação e o retalho debatiam-se com um problema endémico, provocado por

fronteiras fechadas e direitos aduaneiros demasiado elevados: o contrabando. O país

estava inundado de relógios de pulso Cauny, uma marca que nunca chegou sequer a

ter representação oficial. Depois, o sector debatia-se com outro mal endémico: a falta

de formação profissional. A Escola de Relojoaria da Casa Pia, que tinha sido fundada em

1894, mas que nunca funcionara regularmente, estava aberta desde 1950 sob direcção

de mestres suíços, mediante um acordo entre Portugal e a Indústria Relojoeira Helvética.

Em 1968, ela era dirigida pelo mestre suíço Jean-Pierre Delay, que ia fazendo o que

podia, formando relojoeiros e dando cursos de formação por todo o país.

A Belora, título especializado que se manteve décadas sozinho no mercado, falava em

1968 da guerra que houve quando os relojoeiros foram incluídos no Regulamento de

Carteira Profissional dos Oficiais de Ourives e Ofícios Correlativos. Apesar dos protestos,

os relojoeiros não conseguiram uma Carteira Profissional à parte.

Um ano antes tinha decorrido em Lisboa, no Hotel Ritz, uma ‘Jornada do Relógio Francês‘,

e onde esteve exposto ’o relógio mais complicado do mundo‘, o exemplar de bolso L1,

da firma Le Roy, uma encomenda do milionário português Carvalho Monteiro, peça que

hoje se encontra no Museu do Tempo, em Besançon.

No mercado nacional, onde os relógios de bolso estavam a desaparecer rapidamente do

uso quotidiano – as ‘cebolas‘ – o relógio de pulso começava a chegar a camadas mais

desfavorecidas da população, mas apenas os tais exemplares de contrabando, e numa

altura em que um relógio ainda era um investimento de vulto, para ser estimado e

usado toda a vida, e deixado em herança…

Os relógios de quartzo ainda não tinham aparecido em 1968 no mercado nacional,

havia apenas exemplares de corda manual (os relojoeiros queixavam-se dos maus

tratos do utilizador luso, que partia cordas atrás de cordas, talvez por excesso de força),

automáticos (demasiado caros para o comum dos cidadãos), alguns electrónicos, tipo

Bulova Acutron.

Para fintar a Alfândega, importadores compravam calibres na Suíça e fabricavam em

Portugal caixas em ouro para esses movimentos, pois os direitos aduaneiros para metais

preciosos eram proibitivos. Em artigo publicado em 1969, a Belora perguntava: «Vai

aparecer no mercado o relógio de pulso de quartzo?». Ia, de facto, aparecer, e em força.

Conseguindo colocar relógios no pulso de gente que nunca julgara ter dinheiro para isso.

Era a democratização do tempo, mesmo em Portugal.

Dois anúncios da Jaeger-LeCoultre e um outro da Rolex.

Capitalizando a evolução da relojoaria mecânica, com a criação

do cronógrafo automático e querendo reagir face ao quartzo a in-

dústria relojoeira suíça nunca abandonou a sua alma: a relojoaria

mecânica.

Um modelo de Quartzo da Patek Philippe

e respectivo mecanismo. Mesmo um dos

maiores gigantes da relojoaria mecânica

suíça fez uma incursão no mundo dos

relógios de quartzo. A sobrevivência da

marca assim o ditou.