· director: josé paulo serralheiro · [email protected] ano xii | nº 120 | fevereiro | 2003 ·...

48
Director: José Paulo Serralheiro · http://www.a-pagina-da-educacao.pt/ [email protected] ano XII | nº 120 | FEVEREIRO | 2003 · Mensal | Continente e ilhas 2 Euros [IVA incluído] Devesas – V. N. Gaia TAXA PAGA Tel.: 226002790 · Fax: 226070531 www.a-pagina-da-educacao.pt/livros Profedições [email protected] livros consulte o catálogo 03 18 08 A cereja do bolo “Neste início de Fevereiro o coro dos contentes anda radiante. Por todo o lado, os governos que contam, mos- tram-se exigentes para com os po- bres e remediados. O controle sobre o trabalho é maior. Os trabalhadores, essas almas danadas, estão a ser metidos na ordem. Os patrões recu- peram poder, prestigio, sabedoria e santidade. (...) E a cereja no bolo é que vamos ter mais uma guerra a sé- rio com vitória previamente assegu- rada. O coro canta apaixonadamen- te a nova ordem internacional e o poder paga-lhe com mãos largas.” Um “despudorado acto de vassalagem” No Sublinhado desta edição, João Rita, destaca, entre outras, uma citação de Vi- tal Moreira: “Os impérios sempre tiveram fiéis vassalos, cortesãos e favoritos ca- pazes de aplaudir todas as iniciativas do suserano contra infiéis e bárbaros de to- dos os matizes, em favor da “civilização” e do bem comum do império. Mas pou- cas vezes terá havido na História um tão despudorado acto de vassalagem do que a declaração dos oito chefes de go- verno europeus a favor da guerra dos Es- tados Unidos contra o Iraque”. Controlar a água e a terra “A importância cada vez mais decisiva do petróleo aponta novamente o cora- ção do mundo (Euro-Ásia) como o alvo do desígnio de dominação planetária. Mas outros interesses estratégicos se revelam: o controlo das águas e das re- servas de minérios, os tecnopólos e as bases militares. As inovações da máqui- na militar, com uma logística nuclear so- fisticada, aérea e marítima, introduziram no esquema geo-estratégico variações técnicas operativas. Porém, de Hitler a Bush verifica-se uma mesma constância das políticas imperiais pelo desejo de conquista territorial da “Euro-Ásia” para o controlo mundial. A batalha de Estali- negrado partiu os dentes ao Nazismo. O que acontecerá numa nova guerra?” Negócios do Ensino Um dossier sobre os caminhos do “Superior” cada vez mais transformado em oportunidade empresarial Páginas 11 a 13 Agostinho Santos Silva, ex-presidente da Confederação Portuguesa de Quadros Técnicos e Científicos Portugueses, põe o dedo na ferida Incapacidade de gestores e governantes gera muita da debilidade portuguesa Entrevista na página 35

Upload: hoangkiet

Post on 19-Nov-2018

229 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1:  · Director: José Paulo Serralheiro ·  apagina@spn.pt ano XII | nº 120 | FEVEREIRO | 2003 · Mensal | Continente e ilhas 2 Euros

Director: José Paulo Serralheiro · http://www.a-pagina-da-educacao.pt/[email protected]

ano XII | nº 120 | FEVEREIRO | 2003 · Mensal | Continente e ilhas 2 Euros [IVA incluído]

Devesas – V. N. GaiaTAXA PAGA

Tel.: 226002790 · Fax: 226070531www.a-pagina-da-educacao.pt/livros

Profediçõ[email protected]

livros

consulte o catálogo

03

18

08

A cereja do bolo

“Neste início de Fevereiro o coro doscontentes anda radiante. Por todo olado, os governos que contam, mos-tram-se exigentes para com os po-bres e remediados. O controle sobreo trabalho é maior. Os trabalhadores,essas almas danadas, estão a sermetidos na ordem. Os patrões recu-peram poder, prestigio, sabedoria esantidade. (...) E a cereja no bolo éque vamos ter mais uma guerra a sé-rio com vitória previamente assegu-rada. O coro canta apaixonadamen-te a nova ordem internacional e opoder paga-lhe com mãos largas.”

Um “despudorado actode vassalagem”

No Sublinhado desta edição, João Rita,destaca, entre outras, uma citação de Vi-tal Moreira: “Os impérios sempre tiveramfiéis vassalos, cortesãos e favoritos ca-pazes de aplaudir todas as iniciativas dosuserano contra infiéis e bárbaros de to-dos os matizes, em favor da “civilização”e do bem comum do império. Mas pou-cas vezes terá havido na História um tãodespudorado acto de vassalagem doque a declaração dos oito chefes de go-verno europeus a favor da guerra dos Es-tados Unidos contra o Iraque”.

Controlar a águae a terra

“A importância cada vez mais decisivado petróleo aponta novamente o cora-ção do mundo (Euro-Ásia) como o alvodo desígnio de dominação planetária.Mas outros interesses estratégicos serevelam: o controlo das águas e das re-servas de minérios, os tecnopólos e asbases militares. As inovações da máqui-na militar, com uma logística nuclear so-fisticada, aérea e marítima, introduziramno esquema geo-estratégico variaçõestécnicas operativas. Porém, de Hitler aBush verifica-se uma mesma constânciadas políticas imperiais pelo desejo deconquista territorial da “Euro-Ásia” parao controlo mundial. A batalha de Estali-negrado partiu os dentes ao Nazismo. O que acontecerá numa nova guerra?”

Negócios do EnsinoUm dossier sobre os caminhos do “Superior” cada vez mais transformado em oportunidade empresarial

Páginas 11 a 13

Agostinho Santos Silva, ex-presidente da Confederação Portuguesa de Quadros Técnicos e Científicos Portugueses, põe o dedo na ferida

Incapacidade de gestores e governantesgera muita da debilidade portuguesa

Entrevista na página 35

Page 2:  · Director: José Paulo Serralheiro ·  apagina@spn.pt ano XII | nº 120 | FEVEREIRO | 2003 · Mensal | Continente e ilhas 2 Euros

a páginada educaçãofevereiro 2003

02

um conto

Está a iniciar-se um novo período es-colar e começo a pensar que serámelhor dizer-vos tudo quanto seiacerca do Berto. Há uns tempos queme tem andado a preocupar. A últimavez que apareceu, tive de me sentarnuma cadeira de palha e monologar.Foi a primeira noite de luar depois deuma série de noites estreladas. Nes-te momento, até sei como é Berto.Pálido, cabeça assente num pesco-ço delgado, testa congeminadorasob um tufo de cabelo espetado.

O primeiro assunto que atraiu a mi-nha pobre imaginação e que me tor-nou preso e ligado para sempre a Ber-to foi a história do caracol. Pois bem,todos pensamos saber o que é umcaracol. Berto, porém, abordou o as-sunto de maneira absolutamente indi-vidualista. Consultemos o seu cader-no. Sob o título “Deus nos abençoe”,lê-se o seguinte ensaio: “O caracol éuma pequena criatura que se equilibrafazendo sair os cornos. Como recom-pensa recebe certa quantidade dequeijo com que faz queijadas.”

Na escola Berto perguntou: “Quan-do um caracol vai passear e lhe ape-tece dar um pontapé numa pessoa,qual é o pé que ele usa?”

O professor respondeu: “Berto,devias saber que o caracol só temum pé. Porque não estiveste maisatento quando estudámos isso? Ah!Agora me lembro, estavas sentadodebaixo da mesa.”

Berto não desistiu. Devo ser fran-co: Berto mente. Quando chegou acasa e lhe perguntaram o que se

“Quero-me confessar, Padre… Não es-

tou certa de ser capaz… Pode confes-

sar-me, Padre? Tenho um homem.”

“Como? Oh não, de forma alguma!

Evidentemente que somos casados. De

branco, órgão e tudo. Incenso e lírios. E

eu disse sim, e todos estavam conten-

tes e a minha mãezinha chorava e…”

… ?

“Só um momento. Já lá vamos. Eu

era uma pobre rapariguinha. Olhos

grandes e tranças. Ele chegou de car-

ro. Era grande e forte. Levou-me ao ci-

mo de um monte e, com voz clara e

ressoante, falou do futuro. Tinha tan-

tos planos. Eu acariciava os botões

brilhante de metal da sua farda. Gos-

tava de aproximar o meu rosto deles e

ver-me reflectida como um espelho.”

…?

“Sim, sim, Padre. Evidentemente:

eu sabia que isso era vaidade. Estou

arrependida. Depois casámos.”

…?

“Não, de maneira nenhuma. Ele não

mudou depois de casarmos. Sempre foi

firme, mas também muito carinhoso. É

claro, tivemos as nossas desavenças,

mas nunca nada de grave. Estávamos

quase sempre juntos, praticamente

nunca me deixou só.”

…?

“Deus meu, Padre, como pode pen-

e verás. Quando Deus te apanhar,mostra-te como é que é.”

Contudo, há algo em Berto quelevanta suspeitas. Uma vez esque-ceu-se de tirar o boné ao entrar naaula. O professor admoestou-o.“Porque não tiraste o boné?”

“Porque a minha mãe diz que onão devo tirar, senão constipo-me.”

Quando chegou a casa, disse:“Mãe, constipei-me, porque o pro-fessor me obrigou a tirar o boné.”

No dia seguinte, não foi à escola.Quando reapareceu, o professorperguntou-lhe: “Porque faltaste on-tem à escola, Berto?”

“Porque a minha mãe diz: Orien-te ou ocidente, em casa é que estámais quente.”

No prosseguimento dos seus es-tudos, houve uma altura em que oprofessor explicou como o homemtinha aprendido a defender-se dofrio servindo-se de lã e fibras ani-mais, fabricando fatos quentes ecoisas para proteger a cabeça.

Berto digeriu esta informação edeclarou: “O meu pai diz que usasempre chapéu, porque, se passarpor um lago e cair à água, o chapéufica a boiar e saberão, assim, onde oprocurar.”

Continuou a pensar e depoisacrescentou: “Já lhe reservámos umlugar no jazigo de família. A minhatia diz que é muito mais divertido fi-carmos todos juntos.”

Era assim Berto. Um rapaz sim-pático, mas…

Em breve teremos lua cheia.sobre Berto

MrozeckO elefante;

editorial estampa; livro-B

Confissão

© is

to é

© is

to é sar uma coisa dessas? Francamente…

Sim, já ouvi falar disso, mas ele não é.

Nunca. Nada que se pareça.”

…?

“Talvez. Não sei ao certo. Mas não

foi ele quem veio confessar-se, fui eu.

Estou aqui em busca de ajuda. Preci-

so dos seus conselhos. Quero ser

con…solada. Não, não estou a chorar.

Pegue na minha mão, Padre.”

…?

“Pois. É claro que casei com ele

por amor. Qual é o meu pecado? Pode

perguntar a qualquer pessoa. Todos

lhe dirão como ele é, respeitado e

cheio de boas qualidades.”

…?

“Como?”

“Não, nunca. Defacto, jamais. Nun-

ca lhe fui infiel, nem mesmo em pen-

samentos. Sempre fui uma esposa fiel.

Acredita-me, Padre?”

…?

“Não.”

…?

“Não.”

…?

“Também não.”

…?

“Qual é então o meu problema? Pa-

dre, eu vim aqui… Não! É inacreditável.

Depois de ter vivido sete anos com ele…

O Verão passado fomos de férias. Con-

venci-o a descansar. Tem um trabalho

importante, muito trabalho, de enorme

responsabilidade. Todo o país… Uma

manhã, ao pequeno almoço, sentáva-

mo-nos nós um em frente do outro. Atrás

dele estava uma janela aberta. Por ela via

eu o jardim, as árvores… O papel da pa-

rede da sala tinha desenhos de florinhas,

milhares de florinhas cor-de-rosa. Erguia

ele a chávena quando o olhei. Não havia

qualquer razão especial ou intenção

atrás do meu olhar. Foi então que vi…”

…?

“Que vi? Como é que só após sete

anos reparei… Depois de partilhar a

sua mesa e o seu leito… Aconselhe-

me, Padre, porque pequei.

…?

“Foi só então que dei conta que ele

era de plasticina.”

…?

“Sim, completamente. Todo artifi-

cial. Inclinei-me para ele. Os meus

olhos deviam estar muito esgazeados,

porque ele pousou a chávena e disse

calmamente: - Que aconteceu? – Não,

desta vez não estou enganada. Sempre

fora de plasticina. Todo! Mas porquê,

porque nunca reparara antes? E agora

que vai ser de mim?”

…?

“Anulação do casamento? Mas Pa-

dre, isso é impossível! – Temos filhos.”

passara na escola, declarou: “O pro-fessor disse-nos que o caracol dápontapés com o pé esquerdo, e euobservei que isso era impossível,porque o caracol só tem pé direito.Mas o professor estava distraído:estava sentado debaixo da mesa.”

Os caracóis preocupavam o es-pírito de Berto. Dias mais tarde, per-guntou ao tio: “Se um caracol for àinspecção militar e quiser ter duaspernas para passar o exame médi-co, pode pedir uma perna empres-tada a um amigo?”

“Não, Berto, o amigo dele tam-bém só tem uma perna. Ficaria semnenhuma.”

“Mas, e não poderia esse amigopedi-la emprestada a um terceirocaracol?”

“Não, porque o terceiro caracolficaria sem nenhuma.”

“E não podia pedir emprestada aum quarto?”

“É tarde, Berto. Vai para a cama.”“E o quarto ao quinto?”“Desaparece, Berto. Vai brincar

para o pátio.”“E o quinto ao sexto?”“Berto!”“Tio…”“Sim?”“Se eu fosse caracol, havia de ter

três pernas, para as poder empres-tar aos amigos.”

“Muito bem. Só mostras ter bomcoração.”

E de facto assim era. Um dia,quando o ruivo Tomás estava a mal-tratar um gato, Berto disse: “Espera

Um facto

Page 3:  · Director: José Paulo Serralheiro ·  apagina@spn.pt ano XII | nº 120 | FEVEREIRO | 2003 · Mensal | Continente e ilhas 2 Euros

03a páginada educaçãofevereiro 2003

editorial

Nos últimos tempos, tem-se vindo a

afirmar, com vigor público e notório,

um novo coro. Trata-se do coro dos

contentes. Fazem parte dele inúmeras

pessoas, mas as que dele mais so-

bressaem são alguns políticos e, par-

ticularmente, alguns fazedores da opi-

nião pública. Estes cantores andam

felizes e excitados com o poder domi-

nante. No peito, o coração pula-lhes

de alegria sempre que o governo toma

mais uma medida penalizadora dos

trabalhadores. Se alguém insultar

quem trabalha, o coro eleva a voz de

felicidade. Se a medida for no sentido

de defender a destruição do Estado,

então o coro harmoniza vozes para

exaltar o feito.

O coro dos contentes não canta só

o poder nacional. Os cantores conhe-

cem o repertório oficial do poder inter-

nacional. Este coro detesta a Europa e

canta com paixão as músicas que lhes

distribui o Governo americano. Para

eles Bush é o maior compositor destes

últimos decénios. Nem Reagan nem

Thatcher se lhe comparam. A ideia de

mandar soldados americanos e ingle-

ses matar iraquianos, produz um frémi-

to e enche o peito aos cantores soltan-

do-lhes as vozes movidas pelo orgulho

e pela paixão. Cantam dizendo que os

maus, escondidos nos corpos das

crianças, das mulheres, dos jovens e

dos velhos iraquianos, vão finalmente

ser esmagados sem dó nem piedade.

O coro canta contra os demónios

que põem entraves aos negócios do

petróleo e das armas e põem em cau-

sa a superioridade da raça branca,

caucasiana, sobre as restantes raças

que poluem o mundo. Os brancos,

canta o coro, nasceram para gerir, vi-

ver bem, avaliar e mandar. A gente de

outras cores para obedecer e traba-

lhar. Os brancos, canta o coro noutra

estrofe, que não exaltem a superiori-

dade da civilização ocidental, não me-

recem a vida, não são brancos, são

negros disfarçados, são comunistas

com pactos com o demónio negro,

árabe, índio, mestiço, asiático, hispâ-

nico ou disfarçado de qualquer outra

raça ou cor.

Neste início de Fevereiro o coro dos

contentes anda radiante. Por todo o la-

do, os governos que contam, mos-

tram-se exigentes para com os pobres

e remediados. O controle sobre o tra-

balho é maior. Os trabalhadores, essas

almas danadas, estão a ser metidos na

ordem. Os patrões recuperam poder,

prestigio, sabedoria e santidade. O po-

vo dispõe-se a obedecer-lhes. O deus

capital é cantado na imprensa, rádio e

televisão e nas várias instâncias inter-

nacionais. Os apóstolos do poder do-

minante sentem os seus esforços re-

compensados. E a cereja no bolo é

que vamos ter mais uma guerra a sério

com vitória previamente assegurada.

O coro canta apaixonadamente a nova

ordem internacional e o poder paga-

lhe com mãos largas.

Cada época constrói o seu futuro e

as suas ruínas. É tão importante pen-

Os do costumeandam felizes e contentes

sarmos no futuro que queremos deixar

aos vindouros como nas ruínas que fa-

rão parte dele. Mas isso o coro não sa-

be. Os elementos do coro não querem

saber das ruínas que o poder domi-

nante provoca. Miséria, exclusão, fo-

me, doença, analfabetismo, a maior

parte da população do mundo a viver

como se os últimos séculos de traba-

lho humano não tivessem existido.

Cegos, vivem a paixão do poder do-

José Paulo Serralheiro

Em Portugal sempre existiram coros. Para além dosbelos coros alentejanos, colectividades de todo opaís dinamizam este tipo de canto. Até as universi-dades jovens vão tendo os seus coros à semelhan-ça das mais antigas. Os coros para além do prazerque dão aos cantores são motivo de prazer para osque gostam de os ouvir. Mas o que agora canta maisalto é o coro dos contentes.

suportável.

O Estado, aqui com o silêncio cúm-

plice e comprometido do coro, têm-se

demitido da responsabilidade de colo-

car à disposição das jovens gerações

a educação política. Este mesmo Esta-

do, aqui suportado pelo canto do coro,

é zeloso no que toca à garantia do di-

reito à educação religiosa nas escolas.

Ora a César o que é de César e a Deus

o que é de Deus. A educação religiosa

é uma tarefa da responsabilidade úni-

ca das igrejas a que os jovens even-

tualmente pertençam. Separar as

águas é uma exigência da democracia.

O Ministério da Educação, na sua frá-

gil proposta de reforma do ensino se-

cundário, devia ser obrigado a acolher

a formação política devida a toda a po-

pulação. Sem esta formação seremos

mais pobres e mais incapazes de dis-

tinguir o som de um coro alentejano do

coro dos contentes do neoliberalismo.

A futbolização da vida política

Pelo menos da boca para fora, são

muitos os que se lamentam da cres-

cente indiferença dos cidadãos face à

política. O aumento da abstenção elei-

toral, a reduzida participação na vida

cultural, cívica e política, o encolher de

ombros face ao que nos é comum, são

comportamentos correntes de muitos

cidadãos. Não é de estranhar que uma

maioria crescente da opinião pública

vá encolhendo os ombros e dizendo

que os políticos são todos iguais, ou,

que nada sabem ou querem saber de

política. O poder dominante, para do-

minar, precisa que predomine o anal-

fabetismo político.

Quando o analfabetismo político

predomina é natural que tudo pareça

igual e seja visto com a mesma indife-

rença um político que deseja que se

vão matar iraquianos e outro que se

opõe a tais assassínios. Por outro la-

do, a falta de formação permite que a

actividade política seja cada vez mais

futbolizada. Assim, muitos políticos

adoptam o comportamento dos hooli-

gans, defendendo fanaticamente as

suas cores e, pelo seu lado, os meios

de comunicação social preocupam-se

apenas em transmitir os resultados

das contendas entre adeptos.

O neoliberalismo é a nova religião

do capital. Os apóstolos e os cantores

da nova religião não estão interessa-

dos na formação política dos cida-

dãos. Essa formação tornaria mais di-

fícil a hegemonia da religião neoliberal

dominante. A religião neoliberal fo-

menta o desmantelamento do Estado.

O coro canta diariamente o desprezo

pela política enquanto organização do

espaço público partilhado e canta,

com fervor, o predomínio dos interes-

ses privados. O deus mercado é exal-

tado como voz única que define o

pensamento único e o fim da história.

Cabe aos que não fazem parte do co-

ro dos contentes, juntar-se, criar e fa-

zer soar as melodias da civilização

que se pode opôr à barbárie.

minante. Cantam a subjugação do

mundo a um punhado de gente que

não sabe que a vida é efémera e que

vive como se fossem os donos da his-

tória. Mas a realidade não é assim. De-

les ficarão no futuro as carcaças das

guerras e da miséria que provocaram

no presente. E ficará o ódio, a raiva e a

revolta. Ruínas a dificultarem o cami-

nho que nos poderia levar da barbárie

à civilização.

Falta-nos formação política

A maior parte da população mundial

ouve o coro dos contentes porque a is-

so é obrigada. Não escolhe a música,

tropeça constantemente nela. E não

está preparada para se defender dela.

Entre nós, para já não falar dos mais

velhos, uma maioria dos nossos jovens

mostra-se indiferente à coisa pública.

Sabem mais de telemóveis do que da

organização da sociedade e do Esta-

do. Sucessivas gerações de portugue-

ses transitam para a universidade ou

directamente para o mercado de tra-

balho sem conhecerem sequer os tra-

ços mais elementares da organização

do poder público, desde o modo como

se elege e funciona uma junta de fre-

guesia ou câmara municipal, até à dife-

rença de poderes e competências dos

tribunais, do Parlamento, do Presiden-

te da República e do Governo.

Falta educação cívica e política lo-

go no ensino básico. Falta uma disci-

plina obrigatória em todo o ensino se-

cundário sobre as linhas fundamentais

da organização política da sociedade

e do Estado, do Poder Local ao Go-

verno central, e sobre os mecanismos

fundamentais em que assenta a vida

social e política. É lamentável que en-

tre nós persista o total analfabetismo

político. A democracia exige a alfabe-

tização política da população o que

nada tem a ver com doutrinação e tu-

do a ver com informação, conheci-

mento, aumento da autonomia e da

capacidade crítica de cada um. Fosse

a população mais politizada e o canto

do coro dos contentes ser-lhes-ia in-

Page 4:  · Director: José Paulo Serralheiro ·  apagina@spn.pt ano XII | nº 120 | FEVEREIRO | 2003 · Mensal | Continente e ilhas 2 Euros

04a páginada educaçãofevereiro 2003

fórum educação

Foi há trinta anos atrás. Em Madrid.Deambulava eu pelas ruas, com ofebril desejo de encontrar uma livra-ria. Chegara-se aos fins de Abril e aprimavera deixava cair sobre a ci-dade a benção suave de uma carí-cia tépida. Até que (recordo-mebem), à beira do Palácio do Oriente,encontro uma pacata livraria, ondeentrei guloso das últimas novidadesliterárias. Açodado pela presençade um cliente, um velho enérgicoaproxima-se de mim e pergunta-me: “Em que posso ser útil?”.Apressei-me a dizer que eu mesmoescolheria, sem ajuda, o livro queme interessava. E ele, encomiandocom sinceridade: “Já leu Humanis-me et Terreur? É uma obra prima”.Naquela altura, da escola fenome-nológica eu só lera a Crise dasCiências Europeias e a Fenomeno-logia Transcendental de EdmondHusserl. E, por isso, sem hesita-ções, encaminhei-me para a estan-te de onde o Merleau-Ponty mechamava. Comprei o livro, com de-senvoltura, e sentei-me num “café”a auscultar o fervor combativo dogrande filósofo. Retenho este pará-grafo: “A supressão da filosofia ésempre historicamente errada. A fi-losofia será ultrapassada quando oser humano deixar de ter crises,enigmas, dificuldades, para alémde todas as descobertas científicas.Digo mais: não acredito que os pró-prios problemas possam com-preender-se sem formação filosófi-ca. Um ensino apenas científicodeixará os jovens sem recursos crí-ticos para enfrentar a vida”.

De facto, o altruismo de uma hu-manidade fraterna e lúcida, que ab-dicasse do seu individualismo ferozem prol dos grandes interesses co-lectivos, precisaria sempre da refle-xão filosófica. Pode-se passar, du-rante algum tempo, sem pão, mas émuito difícil viver um minuto sem

A propósitoda Filosofia

EDUCAÇÃO desportiva

Manuel SérgioUniversidade Técnica

de Lisboa

dia-a-dia

A partir do ano lectivo de 2004/2005,quando a reforma do ensino secun-dário entrar em vigor, os cursos tec-nológicos passarão a incluir um es-tágio obrigatório no 12º ano. Para tero "diploma", cada aluno que seguiresta via de ensino terá de passar 240horas numa entidade pública ou pri-vada para aprender, "em situaçãoreal", as práticas profissionais "re-presentativas do perfil funcional" docurso que escolheu.

Um euro por aluno, durante um mês,foi quanto receberam, das câmarasmunicipais, em média, em 2001, asescolas do 1º Ciclo do distrito de Vi-seu. No mesmo ano, os clubes des-portivos, a maioria ligados ao fute-bol, receberam, das mesmas autar-quias, mais de doismilhões e meiode euros. "Um verdadeiro escânda-lo". Foi assim que o Sindicato dosProfessores da Região Centro, autordo estudo que revela os números,(...) classificou a disparidade da polí-tica autárquica de apoios financeiros

O Sindicato dos Professores doNorte acusou (...) o Ministério daEducação de, "por razões economi-cistas", deixar sem aulas váriascrianças de escolas do ensino bási-co do distrito de Bragança, ao recu-sar a substituição dos respectivosprofessores. A delegação de Bra-gança do SPN denunciou, em con-ferência de imprensa, que as esco-las primárias de Miranda do Douro,Felgueiras (Torre de Moncorvo) eFranco (Mirandela) estão encerra-das desde o regresso das férias deNatal, a seis de Janeiro.

O financiamento das escolas do en-sino básico e secundário passará aser feito com base nos resultadosdos estabelecimentos de ensino.Esta alteração do modelo de finan-ciamento, privilegiando o desempe-nho, é uma das medidas que está aser preparada pelo Ministério daEducação, juntamente com a profis-sionalização da gestão, no processode revisão da autonomia e gestãodos estabelecimentos de ensino.

esperança. Não sei se assim pen-sam os actuais “positivistas” (e por-tanto bolorentas e bafientas pes-soas) do Ministério da Educaçãoque afirmam ser a filosofia um saberperfeitamente dispensável. É evi-dente que a filosofia não tenta pro-var nada, nem apropriar-se intelec-tualmente de um campo empírico.Ela nada tem a pro-var... a não ser quenão pode haver cul-tura (no sentido glo-bal do termo) ape-nas na e pela ciên-cia! A filosofia é maisuma lição de cons-ciência do que deciência – no entanto, lição preciosapara que nenhum saber se julgueabsoluto, acabado, completo. Aprópria investigação científica é tri-butária de uma visão do Homem, daVida, da Sociedade, da História –que é filosófica, indubitavelmente. OMinistério da Educação pretendeimpor um saber racional e objectivo,estreitamente vinculado à ausênciade contradição. Ora, os filósofos sa-

bem que a escassez de contestaçãocriadora a qualquer poder político ecorporativo e de questionamento aosaber instituído e institucionalizadoconduz inevitavelmente a ditadurasde todos os matizes. Quando a filo-sofia se cala ou, por timidez, abaixaa sua voz, cede a palavra a outrodiscurso: o violento e o despótico!

Filosofar equivale aelaborar uma críticapermanente das su-per-estruturas rígi-das, inteiriças, queparalisam e dificul-tam a liberdade cria-dora das “ciênciasvigilantes”.

Daí o receio da filosofia (e até daepistemologia), por parte dos quepretendem transformar em doutrinao seu pequenino saber, os seus pe-queninos ódios, as suas pequeninasambições. Já senti o rancor de fari-seus puritanos desembestar em fú-ria brava, quando quis trazer à tonaos pressupostos filosóficos da mo-tricidade humana em geral e do des-porto em particular. Sem o saberem,

eles faziam (fazem) suas as velhaspalavras de Max Plank, em L’Imagedu monde dans la physique con-temporaine: “O positivismo não dei-xa qualquer lugar à metafísica”(p.98). No entanto, depois de Gas-ton Bachelard e de Thomas Kuhn opensamento científico deverá con-ceber-se como uma dialéctica per-manente com o mundo psico-so-cial. Foi Popper a sublinhá-lo: apreocupação de um cientista ho-nesto não deve residir na cega sus-tentação da sua teoria, mas na pro-cura sincera e corajosa dos seuspontos negativos. Assim, a grande“técnica” para o desenvolvimentode uma disciplina científica é o “es-pírito crítico”. Uma teoria científica“verdadeira” não passa de um mito,de uma ilusão, ou de um saber miti-ficado. Um cientista não é defensorde alguns conhecimentos, é seupesquisador. Quem vive apenas decertezas sofre de esclerose de pen-samento e de esterilidade do podercriador. Ora, tudo isto se aprende nafilosofia! E tudo isto convém saber!Mesmo os agentes do futebol. Nãose nega a verdade. Só que ela deveintroduzir-se, no tempo humano.Também a verdade é história.

Por isso, a pedagogia do despor-to, os métodos de treino, o modo eo conteúdo da arbitragem devemser questionados. A verdade, só o éverdadeiramente, quando é umaprocura incessante da verdade!Mesmo que o não entendam as as-sembleias riscadas de imprecaçõesraivosas! Mesmo que o não entendao ignorante Ministério da Educaçãoque, segundo se diz, vai terminarcom a Filosofia no 12º ano! Não sa-be o Ministro que, sem a Filosofia,há todo um “espírito crítico” que seperde? E, sem ele, há-de ser maisevidente e profundo o processo debarbarização da sociedade portu-guesa – do desporto português?

A propósito da proposta de terminar com a disciplina

de Filosofia no 12º ano diz Manuel Sérgio: "não acre-

dito que os próprios problemas possam compreen-

der-se sem formação filosófica. Um ensino apenas

científico deixará os jovens sem recursos críticos pa-

ra enfrentar a vida".

O Ministério da Educação pretende impor um saber

racional e objectivo,estreitamente vinculado

à ausência de contradição

04.01Alunos do ensino tecnológico vão ter de fazer estágiosde 240 horas

09.01Viseu: Câmaras gastam no futebol o que poupam nas escolas

10.01Professores acusamGoverno de deixarcrianças sem aulas sópara poupar dinheiro

13.01Escolas vão ser financiadas em função do desempenho

Page 5:  · Director: José Paulo Serralheiro ·  apagina@spn.pt ano XII | nº 120 | FEVEREIRO | 2003 · Mensal | Continente e ilhas 2 Euros

a páginada educaçãofevereiro 2003

05

fórum educação

DO primárioJosé PachecoEscola da Ponte,

Vila das Aves

O Miro (pode ser este o fictício nomedo jovem) percorreu a via-sacra devárias escolas, até chegar àquela,por recomendação de uma técnicade serviço social e de uma psicólo-ga. O seu calvário académico incluíavárias passagens pelo ensino espe-cial e por outros padecimentos.

Um professor aproximou-se dojovem recém-chegado e propôs-lheque escrevesse as suas primeirasimpressões da nova escola.

– Não sei, não sou capaz, não fa-ço. E você não me pode obrigar!...

O professor insistiu com jeitinho.Mas…

– …Mas eu não sou obrigado afazer. Você num manda em mim. Vo-cê não é meu pai!

Sozinhos na escolaO professor era dos teimosos,

mas logo ouviu a sugestão:– Ponha-me lá fora. Na outra es-

cola, quando me portava mal, os se-tôres punham-me lá fora. Marque-me uma falta e pronto!

O Miro não sabia que só estavacarente de firmeza e carinho. O painão poderia dar-lho porque há mui-to abandonara a família. A mãe “jánão tinha mão nele e que nem pen-sasse tocar-lhe”. Professores, a jul-gar pelo condicionamento que nelese tinha operado, poucos teria en-contrado pelo caminho. O Miro tinhapassado sete anos sozinho em casae outros tantos na escola, e deixarade acreditar ser possível aprender:

– Ó setôr, você num sabe que eu,na outra escola, só tinha aulas deEducação Física, EVT e Moral?

À quarta tentativa de persuasão,quando lhe pediram que fizesse al-

go de que ainda se lembrasse, oMiro pediu-lhe que o dispensassemda tortura da escrita e lhe “ditas-sem umas contas, mas só de doisnúmeros”, pois apenas se recorda-va (e mal) das contas de somar e dediminuir.

– Eu sou assim, setôr. No hospi-tal, a psicólica até disse à minhamãe que eu sou atrasado da cabeçap´raí uns cinco anos.

Todas as escolas deveriam serespaços produtores de culturas sin-gulares, mas também espaços demúltiplas interacções, comunica-ção, cooperação, partilha... Sabe-mos que não é bem assim. As esco-las são, quase sempre, espaços desolidão. O trabalho dos professores

é um trabalho feito de solidão e asolidão dos professores é da mes-ma natureza da solidão dos alunos –professores e alunos estão sozinhosnas escolas.

Decorridos dois meses, o Miro jáescrevia algumas frases, já fazia assuas preparações no laboratóriodas Ciências, até já lia palavrasem… Inglês! E foi a professora deInglês que protagonizou um episó-dio que viria a influenciar o curso darecuperação do Miro.

Perante uma atitude menos cor-recta do Miro, a professora repreen-deu-o. Porém, apercebendo-se dasnefastas consequências da repri-menda num momento ainda tão frá-gil da reciclagem dos afectos,emendou a mão como pôde, expli-cou-lhe o essencial da asneira, e pe-diu desculpa ao Miro pelo exageroposto na repreensão.

– Aqui, os professores pedemdesculpa? – inquiriu o Miro, estupe-facto.

– Claro – respondeu a professorade Inglês.

O Miro reagiu com um esgar deespanto, deu uma volta e seguiu via-gem, para que a professora não vis-se que pela sua cara de traquina in-veterado passeava a manga da ca-misola com que limpava uma lágri-ma teimosa.

Em todos os anos lectivos, háalunos que mudam de escola, porqualquer razão. Se aos pais assisteo direito constitucional de escolhera escola que consideram mais ade-quada aos seus filhos, ainda bemque tal acontece. Mas disse-me

uma amiga que alguém lhe disseque outro alguém lhe dissera que al-guém terá dito que a escola queacolheu o Miro “não aceita qualqueraluno, que os selecciona”.

Este e outros malfazejos dispara-tes visam denegrir a imagem dessaescola, pelo que se justifica divulgaro exemplo do Miro. Por mais invero-símil que possa parecer, é bem real.E não se pense ser um caso isolado.Poderia aqui trazer dezenas de ca-sos semelhantes, que têm por cen-tro os tais “alunos seleccionados”.Poderia contar-vos muitas históriasde crianças recuperadas nesta es-cola de última oportunidade. A his-tória da Ana liberta de quatro anosde degredo num fundo de sala, rotu-lada de burra. A do Francisco, que,chegado à nova escola, desatou aospontapés nos novos colegas, a cus-pir e a insultar, por ser a gramática

que secretamente aprendera emtrês anos de insultos e humilhações.O Eduardo, após meses de privaçãode recreio, só porque o seu braçodoente o impedia de acompanhar aturma na escrita de carreirinhas deletras. O Joaquim, que se gabavade, na outra escola, “ter posto umprofessor no hospital”. O Pedro, ochoro em forma de criança nos pri-meiros dias na nova escola, porque,se já sabia ler quando entrou para aantiga, foi forçado a esquecê-lo e a“acompanhar o resto da classe”,acumulando cansaços e desgostosque, face ao estado em que chegou,quase diríamos ser possível a umacriança odiar. Do órfão ao maltrata-do, chegam encaminhados por ins-

tituições de reinserção social, che-gam de lugares distantes, com mar-cas de violência e experiências deindiferença, que é a pior forma deabandono. Estavam sozinhos na es-cola. Deixaram de estar sozinhos naescola dos alunos “seleccionados”,escolhidos, apartados, rejeitados…noutros lugares. Dentro dos seushumanos limites, a escola de quevos falo a todos acolhe, a todos aju-da na recuperação da auto-estima,do respeito por si próprios. Dirão al-guns leitores que todas as escolastêm este tipo de alunos. A diferençaestá em que a nova escola do Mirotem mais. Tem os que lhe cabe emsorte e os que outras rejeitam.

Os habituais “críticos” da escolaque acolheu o Miro terão aqui maté-ria para reflexão. Já algum desses“críticos” se terá lembrado de de-nunciar esta “selecção”?

© is

to é

Page 6:  · Director: José Paulo Serralheiro ·  apagina@spn.pt ano XII | nº 120 | FEVEREIRO | 2003 · Mensal | Continente e ilhas 2 Euros

06

fórum educação

Uma pesquisa recentemente feitaem França evidencia que o telemó-vel se tornou um meio imprescindí-vel para a convivência juvenil já queserve, numa significativa percenta-gem de casos, para a transmissãode mensagens e de afectos que asinibições e o medo impedem quesejam expressos sem a sua media-ção. É assim que 40% das chama-das entre adolescentes são feitaspara colegas que residem num raioinferior a 10 Km e que 60% dasmesmas são dirigidas a pessoascom as quais eles se encontramquotidianamente.

Sendo evidente que muitas vezessão as famílias que utilizam o tele-móvel enquanto recurso preciosonuma sociedade marcada pela so-breocupação, pela intensidade dosritmos de vida e pela insegurança, éverdade também que muitos dos jo-vens indagados reconheceram queo telemóvel serve, com frequência,para transmitir sentimentos e re-ceios que não conseguem comuni-car directamente.

Assim, seja por razões pragmáti-cas, seja por preconceitos e temo-res, a verdade é que cada vez sãomais numerosas e poderosas as ins-tâncias que medeiam as relaçõesentre as pessoas, sobretudo entreos mais novos, circunstância queameaça tornar a tão propalada rela-ção face-a-face um desígnio educa-tivo remoto ou, talvez, quimérico ...Na verdade, a solidariedade tende ater lugar apenas na medida em queo outro que será ocasião da minhaentrega me chegue devidamentepreparado, para me sensibilizar,através da imagem da televisão:uma solidariedade para que sou im-pelido e que, no fundo, não escolho;uma solidariedade instantânea, sú-bita, massificadora e, por isso, con-traditoriamente, pública (aos meus –aos nossos - olhos) e íntima (para osoutros que não me vêem mas cujaprivacidade eles me expõem). Osdramas dos meus vizinhos e até dosque vivem dentro da minha casa,esses, eu ignoro-os porque, afinal, atelevisão não me deixa tempo, nem

Inti

mid

ade s

em

pro

xim

idade?

Aos estudos quepunham a claro a importância da televisão e do computadorcomo instrumen-tos privilegiadosda informação eda comunicaçãoentre as pes-soas, muito es-pecialmente entreas crianças e osjovens, juntam-seagora os que nosmostram o papelcrescente que,também aqui,desempenha ouso do telemóvel.

ÉTICA e profissãoAdalberto Dias

de [email protected]

Universidade do Porto

dia-a-dia

disposição, para com eles conver-sar. Só me vão interessar se um diaalguém os fizer aparecer no ecrã,prontos para me comoverem.

A internet permitiu, por seu turno,a criação de redes de contacto à dis-tância, diálogos sem rostos e atécom máscaras. Permitiu criar outraspartilhas e, com elas, novas solidões.É cada vez mais possível estar comos outros à distância tanto quanto éindesejável estar com eles perto.

Entretanto, o toque melodioso deum telemóvel soa mais forte do queum grito: por ele, por causa dele,por causa daquele, interrompe-seuma conversa, uma refeição, sus-pende-se um silêncio ... do gritotem-se medo, suspeita-se e foge-se. Eu vou com o outro, lado a lado,mas não é com ele que eu falo, pelo

a páginada educaçãofevereiro 2003

educativo pendularmente distorcidopelas ideologias administrativistas epelo militantismo ideológico – con-tém precisamente esta dissonânciavivencial relativamente ao universoda sociedade mediatizada. Disso-nância fecunda em termos ético-an-tropológicos que, sem pôr em causaa realidade tecnológica e humanados nossos dias, poderá, todavia,possibilitar, desde que, de facto,educativamente aproveitada, a suamobilização crítica.

A escola asseguraria, deste mo-do, o aprofundamento da multidi-mensionalidade e da complexidadeda sociedade contemporânea, po-tenciando-as, evitando a desumani-zação do seu afunilamento virtual eproporcionando, antes de mais, aconstrução de competências que

… O toque melodioso de um telemóvel soa mais forte do que

um grito: por ele, por causa dele, por causa daquele,

interrompe-se uma conversa, uma refeição, suspende-se

um silêncio ... do grito tem-se medo, suspeita-se e foge-se.

(...) O Secretariado Nacional da Fen-prof entregou (...) no Ministério daEducação, um documento, já assi-nado por mais de 1250 membros deórgãos de gestão de 331 escolasum pouco de todo o país, em que seprotesta contra o agravamento das-dificuldades financeiras que as es-colas dos segundo e terceiro ciclo edo Ensino Secundário já sofriam.

O Conselho de Ministros aprovou (…)novas regras para selecção e recru-tamento de docentes do pré-escolar,básico e secundário, que passampela existência de um único concur-so a nível nacional. O ministro daEducação, David Justino, garantiuque «os mini-concursos acabam jáeste ano» e que o novo modelo fun-cionará em pleno no ano de 2004.

A CGTP-IN quer que o Governo sejaresponsabilizado pelo resultado daspolíticas económicas e sociais queestá a empreender. Carvalho da Sil-va considera que o País vai atraves-sar um processo de regressão so-cial, «ficando grande parte da popu-lação no patamar da pobreza».

As universidades e os politécnicosterão de encontrar alternativas aosdinheiros públicos para sobrevive-rem. Durão Barroso garantiu (…) queo Governo não vai aumentar os im-postos e que terão de ser os estu-dantes a pagar pela qualidade doensino que recebem.

17.01 Escolas têm cada vez mais dificuldadesfinanceiras

25.01Governo obriga Ensino Superior a prestar contas

18.01Novas regras pararecrutar professores

21.01Carvalho da Silva falaem «regressão social»

menos enquanto ele estiver ao meulado. Conversarei com ele quandoao meu lado estiver um outro e eleme telefonar.

(...)Neste contexto, a escola corre o

risco de ser um espaço social anó-malo em que as crianças, os jovense os adultos são obrigados a enfren-tarem-se, a confrontarem-se, a con-viverem numa proximidade pessoalreal. Proximidade que, todavia, po-derá ser pedagogicamente impul-sionada e explorada. Apesar da bu-rocratização pedagógica dos espa-ços e dos tempos escolares, estesproporcionam, mesmo assim, pon-tos de encontro em que é necessá-rio tomar decisões, construir pro-postas, avaliar comportamentos,partilhar êxitos e fracassos, etc.Dentro de espaços que é precisopercorrer, saber utilizar e adaptar;por referência a tempos em que énecessário esperar e em que se temde recordar ... e esquecer. A peda-gogia do projecto – esse desafio

permitam a cada um viver com osoutros e não apenas junto deles. Ou,se se quiser também, que permitama cada um não estar junto dos ou-tros apenas quando não está comeles.

A comunicação, independente-mente da forma de que se reveste,só é solidária se não constituir umfim em si e se, portanto, redundarem partilha crítica, consciente econsequente. Se não pactuar com omarketing da solidariedade-espec-táculo e, afinal, indiferente.

A intimidade sem proximidade queas novas tecnologias da informação eda comunicação proporcionam, de-semboca, no fundo, numa vergonhasem pudor, numa distância que se temmedo de vencer por ser surpreenden-temente curta. Desagua num bloqueiointerpessoal que, no lugar de libertar,constrange e confrange.

Então, a educação escolar – pre-cisamente esta mais do que qual-quer outra – não pode permanecerindiferente...

Page 7:  · Director: José Paulo Serralheiro ·  apagina@spn.pt ano XII | nº 120 | FEVEREIRO | 2003 · Mensal | Continente e ilhas 2 Euros

ram expostas e, consequentemente, poderiam ser re-mediadas, representando uma grande e calorosa novaforma de resposta aos dois critérios de legitimação deLockwood. Contudo, dois factores ofuscaram estatransparência. Primeiro, foi essencialmente confinadaao sector público, com o objectivo específico de de-senraizar e substituir a ‘captação por fornecedores’, is-to é, a alegada capacidade daqueles com experiênciae saber num serviço para determinar a sua direcção enão apenas a sua implementação. Isto criou uma es-pécie de super transparência, sob a forma de uma cul-tura de auditoria que se abateu sobre o sector público.

O outro limite era o de que a prestação de contasera operada predominantemente numa direcçãoque ia de baixo para cima; não se chegava a con-

frontar a prestação de contas daqueles que determi-navam aquilo que se devia tornar transparente e os in-dicadores através dos quais tal desígnio devia ser al-cançado. Assim, e paradoxalmente, uma transparênciadistorcida tornou-se numa ocultação da desigualdade.

A questão central passou a ser a de saber se a Eco-nomia do Conhecimento é susceptível de prover umabase mais segura para a igualdade de oportunidadeseducativas — e em caso negativo, quais serão as for-mas de ocultação que poderia despoletar. Tal pareceser plausível de ser assumido como meio fundamentalatravés do qual a Economia do Conhecimento pode li-dar com a questão de fazer ‘quem é ensinado o quê’mais igual, determinando-o objectivamente, dado que

o projecto da Economia do Co-nhecimento está intrinsecamen-te envolvido na e é dependentedaquela distribuição. Mais, elecontém os meios, na forma daTecnologia da Informação, paralegitimar essa mesma distribui-ção através da sua colocaçãoacima e fora da disputa social epolítica. Contudo, quando exa-minamos as bases deste tipo depostura, podemos ver que nestecaso, também, a desigualdadedas oportunidades educativasestá igualmente a ser ocultada enão superada. Efectivamente,pode conter elementos simulta-neamente quer da mística, querda transparência distorcida eofuscada. Nos termos desta últi-ma, vemos limitações similares

de âmbito daquilo que foi identificado na cultura da au-ditoria; mais uma vez, são aqueles que fazem as regrase aqueles que desenham o sistema (neste caso moti-vados mais pelo lucro privado, do que pelo bem públi-co, ainda que limitado) quem determina o que é que sedeve tornar transparente a quem. Nos termos do pri-meiro, estes processos são avançados por uma ofus-cação técnica que, como as regras não codificadas dosistema de classes inglês, ocultam as bases da desi-gualdade.

O que nos conduz, tanto no caso da Economia doConhecimento como nos casos anteriores, à possibili-dade de podermos encontrar o elemento comum nasbases da legitimação. Todos eles são, de maneiras di-ferentes, construções de grupos poderosos que procu-ram, e que possuem os meios para, perpetuar e au-mentar o seu poder nos e pelos meios que empregamou que permitem legitimar ou esconder esse poder.Portanto, se as formas de ocultação do poder forampossivelmente reconfiguradas, a desigualdade que ve-lam permanece.

a páginada educaçãofevereiro 2003

07

fórum educação

RECONFIGURAÇÕESRoger Dale,Universidade de Bristol,

Inglaterra.

O meu foco é um elemento centralda coesão social, a legitimação que,na esteira de David Lockwood, as-sumo que está relacionada com aspercepções das bases e dos produ-tos da distribuição de bens sociais,neste caso, de oportunidades edu-cativas. Em particular,gostaria de considerara relação entre a mu-dança qualitativa in-troduzida pela Econo-mia do Conhecimentoe ‘quem é ensinado oquê’; assumo estaquestão, e não o aces-so, como sendo a ba-se das oportunidadeseducativas, porque oacesso só por si, pormais importante queseja, é um indicadormuito grosseiro dasoportunidades educa-tivas. (E é assaz signi-ficativo neste contextoque os 16 Indicadoresde Qualidade para osSistemas EducativosEuropeus promulga-dos pela UE utilize oacesso ‘simples’ e não o ‘acessoqualitativo’).

Vou enfatizar as formas pelasquais a desigualdade é justificada,explicada – ou, como irei sugerir,ocultada – como um indício de se aEconomia do Conhecimento repre-senta uma real reconfiguração, ouuma continuidade em relação aosdiscursos iniciais. Há 25 anos eu de-fendi que as desigualdades em‘quem ensina o quê’ no sistemaeducativo inglês eram justificadas eexplicadas por uma forma de meri-tocracia, mas que as desigualdadesmais profundas do sistema, espe-cialmente entre as escolas estatais eas escolas privadas, eram ocultadasatravés da operação de regras e deprocedimentos que eram apenasconhecidas daqueles que delasmais aproveitavam; não havendopara a maioria maneira de descobrircomo é que poderia alcançar osmesmos níveis dos das escolas pri-vadas, porque as regras e os meiospara tal não só não estavam codifi-cados, como não havia provas deque existissem efectivamente. Estaocultação foi então referida por mimcomo mística.

A Nova Gestão Pública que var-reu grande parte do mundo ociden-tal nos anos 1990 parecia reconhe-cer isto na ênfase que colocava naprestação de contas. Em vez da ver-são mística, a transparência foi exi-gida a todos os serviços públicos.Isto poderia ter significado que asdesigualdades e as suas bases fo-

A declaração no final da cimeira de Lisboa em 2000apelava para que a UE se tornasse a mais competitiva e dinâmica economia do mundo, com mais e melhoresempregos e com maior coesãosocial. É sobre a relação entreo motor fundamental deste objectivo, o desenvolvimentode uma Economia do Conheci-mento Europeia, e o apelo para uma maior coesão social(que, como tem sido referido,foi incluída a instâncias da presidência portuguesa) que eu gostaria de brevemente me deter.

Há 25 anos eu defendi que as

desigualdades (…) no sistema

educativo inglês eram justifica-

das e explicadas por uma forma

de meritocracia, mas que as

desigualdades mais profundas

do sistema, especialmente en-

tre as escolas estatais e as es-

colas privadas, eram ocultadas

através da operação de regras e

de procedimentos que eram

apenas conhecidas daqueles

que delas mais aproveitavam… Ocultandoa desigualdade

© is

to é

Page 8:  · Director: José Paulo Serralheiro ·  apagina@spn.pt ano XII | nº 120 | FEVEREIRO | 2003 · Mensal | Continente e ilhas 2 Euros

08a páginada educaçãofevereiro 2003

fórum educação

Os portugueses, profundamente cho-

cados pelas perturbantes revelações

em torno de uma rede de pedofília que

integrará gente até agora acima de

qualquer suspeita, pouco relevo terão

dado às declarações de Mário Soares

sobre a guerra a dizer, por exemplo,

que a carta dos oito líderes europeus

(entre os quais Durão Barroso) em

apoio das posições norte-americanas

na crise do Iraque "foi um acto de se-

guidismo que veio enfraquecer as po-

sições europeias".

Mais duro, sublinhe-se, foi Vital

Moreira, em artigo publicado no jornal

“Público”. Cite-se: “Os impérios sem-

pre tiveram fiéis vassalos, cortesãos e

favoritos capazes de aplaudir todas

as iniciativas do suserano contra in-

fièis e bárbaros de todos os matizes,

em favor da “civilização” e do bem co-

mum do império. Mas poucas vezes

terá havido na História um tão despu-

dorado acto de vassalagem do que a

declaração dos oito chefes de gover-

no europeus a favor da guerra dos Es-

tados Unidos contra o Iraque”.

Remetido no próprio jornal que o en-

trevistou para o rodapé da primeira pá-

gina, Mário Soares confessa-se “pró-

americano, amigo da América e amigo

do pluralismo dos EUA”, mas não ami-

go da administração Bush. “Porque es-

ta tem a ver com o mccarthysmo, o ku-

klux-klan, as religiões sombrias, essa

coisa fanática de pensar que o mundo

vai acabar e começar a rezar antes dos

conselhos de ministros e coisas desse

estilo, que é o contrário do laicismo, de

todo o progresso”...

Num outro discurso, os governantes

de Portugal garantem que o país nada

perdeu e já ganhou com a posição as-

sumida de apoiar Washington na cru-

zada contra Bagdad. Terá ficado -– di-

zem - - na primeira linha da visibilidade

mediática, o que potenciará o papel de

Lisboa na geopolítica mundial. Fomos

notícia em todo Mundo por alinharmos,

incondicionalmente, com Blair ao lado

de Bush... Contra a Alemanha e a Fran-

ça, suposta e excessivamente compla-

centes com o Iraque.

Com as televisões entretidas em

bombardear audiências alheias com

confissões antigas e rumores actuais,

não haverá nada mais bombástico,

aos olhos dos portugueses, do que a

passagem, pela base aérea que os

norte-americanos alugaram nos Aço-

res, de gordos aviões de guerra carre-

gadinhos de armas, quiçá, até, de ar-

mas nucleares. Em nome de uma no-

va estratégia para o Mundo, que, nas

palavras de Mário Soares, “se chama

a guerra preventiva para defender os

interesses vitais dos Estados Unidos”.

Sublinhe-se que Condoleeza Rice,

conselheira de Segurança Nacional do

presidente norte-americano, admite

estarem os EUA a preparar um governo

mais funcional para o Iraque, com base

num grupo de iraquianos que vivem na

América, governo esse que terá a mis-

são de manter a ordem no país, após a

previsíevl derrota de Saddam Hussein.

SUBLINHADOJoão Rita

Quase tudo bombástico

TERRITÓRIOS & labirintos

Jacinto RodriguesFaculdade de Arquitectura

da Universidade do Porto

Durante o século XIX e XX a elaboração

do pensamento geopolítico foi reservada

a elites de governos nacionais com inte-

resses geoestratégicos de dominação

de fontes energéticas e de localizações

territoriais privilegiadas em função de

transportes e riquezas locais.

A geo-estratégia tornou-se um méto-

do de acção política no território ao ser-

viço dos actores que representavam nos

governos nacionais os interesses de ex-

ploração colonial.

Nos finais do séc. XIX, o pensamento

geo-estratégico é dominantemente uma

preocupação militar enquanto que a refle-

xão geo-política se vai elaborando em

meios universitários e da investigação sem

contudo abandonar os desígnios bélicos.

Frederich Ratzel fundamenta todo o

seu discurso no darwinismo social e, co-

mo membro da Liga Pangermanista, pre-

tende fornecer aos políticos governantes

uma orientação de dominação planetária

pelo Império alemão.

O sentido político deste discurso tem

como base a ideologia do racismo na su-

perioridade dos germanos – raça ariana.

Aponta já a Euro-Ásia como o “coração

territorial” essencial para se partir à con-

quista do mundo.

A geo-política entre as duas guerras

constituiu-se como um saber que se pre-

tendia ser “objectivo” pois preocupava-

se em fazer um levantamento de forças

antagónicas ao mesmo tempo que assi-

nalava os factores geográficos , popula-

ções, recursos, vias de comunicação,

etc., que facilitavam ou dificultavam a

dominação de lugares por determinados

actores do poder político-militar.

É com Karl Hausofer (1869-1946) que

a geopolítica contemporânea se inicia.

Trabalhando como conselheiro militar na

Embaixada de Tóquio entre 1908-1910,

articula óptica militar com a percepção

sociológica dos diplomatas. Tem o privi-

légio de alargar conhecimentos da reali-

Pensamento político e território

dade oriental e das realidades continen-

tais e insulares da Europa e Ásia através

das inúmeras viagens que realizou.

Depois da experiência da Grande Guer-

ra , Karl Hausofer elabora uma visão pros-

pectiva para que as escolhas sejam racio-

nalizadas. Revelar perspectivas antagóni-

cas, no sentido de uma decisão objectiva.

O Nacional Socialismo servir-se-á

destas achegas para manobrar o exérci-

to em função da conquista do coração

euro-asiático (heartland), insistindo na

mitologia racista de Rotzel.

Porém, a derrota em Estalinegrado

porá termo à veleidade estratégica de

domínio planetário do III Reich.

O pensamento geopolítico, na Ingla-

terra, das classes dirigentes, nasce dos

interesses das instituições coloniais do

Império Britânico, particularmente atra-

vés da Royal Geographical Society.

Esse pensamento geopolítico conso-

lidar-se-á com Haltfor Makinder que sob

o comando de Lord Curzon, em 1919, se

põe ao serviço do exército branco contra

a União Soviética.

É que também Makinder considerava

essencial o comando da Europa de Leste

para se obter o domínio do “heartland” e

deste modo, comandando a “Ilha do Mun-

do” Euro-Ásia, dominar-se-ia o mundo.

Nos Estados Unidos Thomas Renner

publica em 1942 um texto “Cartas para

um novo mundo”, pretendendo uma

“geografia política”. Porém, é Nicholas

Spykman (1893-1943) que desenvolverá

o essencial da geopolítica do imperialis-

mo americano que assenta mais uma

vez na ideia de que o “heartland” era o

território essencial para a hegemonia

mundial. Defende porém uma nova ideia

defensiva: criar instabilidades no “rim-

land”, a zona periférica desse coração,

para que a hegemonia não se faça a par-

tir dum só pólo político dominador do lu-

gar estratégico privilegiado.

No seio dessa geo-política clássica,

surgiram contudo pontos divergentes.

Na esteira de Albert Demangeon e Vi-

dal de La Blache, Jean Monnet em cola-

boração com Paul Mantoux, Pierre Denis

e Henri Hauser, contribuem nos círculos

da Sociedade das Nações para uma

perspectiva de coexistência pacífica e

redistribuição mais descentralizada dos

recursos estratégicos. Cooperação e

planificação poderiam assim constituir

um largo espectro de aspiração e inte-

resses federativos.

Na Segunda Guerra Mundial vieram a

adoptar-se algumas variantes. As refe-

rências eram diferentes. O darwinismo

social, o racismo chauvinista, o poderio

colonizador e dominador do Estado Na-

ção deram lugar a uma concepção da

economia cada vez mais mundializada.

Os grandes interesses monopolistas

do capital financeiro revelaram formas

mais complexas do novo império. A im-

portância cada vez mais decisiva do pe-

tróleo aponta novamente o coração do

mundo (Euro-Ásia) como o alvo do desíg-

nio de dominação planetária. Mas outros

interesses estratégicos se revelam: o con-

trolo das águas e das reservas de miné-

rios, os tecnopólos e as bases militares.

As inovações da máquina militar, com

uma logística nuclear sofisticada, aérea e

marítima, introduziram no esquema geo-

estratégico variações técnicas operativas.

Porém, de Hitler a Bush verifica-se

uma mesma constância das políticas im-

periais pelo desejo de conquista territorial

da “Euro-Ásia” para o controlo mundial.

A batalha de Estalinegrado partiu os

dentes ao Nazismo. O que acontecerá

numa nova guerra?

A fundamentação desta lógica de do-

minação e exploração do império, assen-

ta no esbanjamento energético e de ma-

térias-primas, do modelo de crescimento.

20% da população usufrui de 80%

das riquezas mundiais. E 80% da popu-

lação sobrevive com os restantes 20% .

O planeta não tem possibilidades de

dar resposta aos gastos exponenciais do

modelo americano de crescimento, gene-

ralizado a todo o mundo. Como explicita-

ram Butros Gali e Jacques Attali, equiva-

leria a uma quantidade de recursos equi-

valente a três planetas como a terra!...

Uma outra alternativa, com outros

fundamentos ideológicos, terá de nascer

para fazer face à geo-estratégia deste

império.

Territórios de auto-suficiência alimentar,

formas novas de habitat, energias renová-

veis, mudanças de estilo de vida e consumo

são objectivos essenciais para uma mobili-

zação concreta que, profilacticamente,

contribua para o desaparecimento das cau-

sas materiais da destruição planetária.

Trata-se de uma mudança de problemá-

tica. A solução não pode surgir de uma

qualquer outra estratégia militar que se opo-

nha a um outro militarismo. É necessário

mudar de problemática, pois a guerra não

contribuirá para a solução do problema.

Mudar de problemática é mobilizar as

populações para novas relações sociais,

sem exploração e dominação e envere-

dar-se por um modelo de desenvolvi-

mento ecologicamente sustentado em

que os objectivos centrais são salvar o

planeta, impedir poluições globais e

contaminantes e eco-gerir os bens natu-

rais para a sua renovação.

O pensamento político nem sempre aparece de uma forma explícita no território. Algumas vezes a estratégia do poder fica voluntariamente es-condida para que o exercício de dominação se torne desapercebido pelosopositores. Outras vezes a visibilidade é mostrada como força de ameaça.Assim, a explicitação do conteúdo geo-estratégico em morfologia territorial,depende de razões conjunturais.

Page 9:  · Director: José Paulo Serralheiro ·  apagina@spn.pt ano XII | nº 120 | FEVEREIRO | 2003 · Mensal | Continente e ilhas 2 Euros

09

fórum educação

O recrutamento de docentes e aprogressão nas carreiras surgem, aeste propósito, como áreas espe-cialmente sensíveis a exigirem umareflexão desassombrada acerca dosseus pressupostos. Mas é também,de facto, vital que os propósitos detransparência que inspiram o ideáriodemocrático não redundem, se des-virtuados, em atentados à identida-de das escolas universitárias, à cul-tura de cada uma delas e à especifi-cidade das suas dinâmicas evoluti-vas. Todos estas dimensões igual-mente valorizadas pela grandemaiorias dos estudos e recomenda-ções que se conhecem.

Na verdade, cada escola univer-sitária tem de ser uma Escola emtermos de produção científica e deorientação pedagógica que, assim,permita, perante a comunidade aca-démica e a sociedade em geral, oreconhecimento do seu perfil bemcomo a filiação institucional dosseus membros, desde os professo-res aos estudantes. Esta trata-se,porém, não apenas de uma questãoacadémica mas também de umaexigência organizativa de valor ines-timável para a saudável conjugaçãodos objectivos de preservação e deevolução das próprias instituições.Uma escola com identidade será,com certeza, uma instituição comorgulho que incentiva os seus prota-gonistas a contribuírem para algoque lhes pertence e que faz real-mente parte das suas vidas.

DO superiorAdalberto Dias de [email protected]

Universidade do Porto

A universidade e o sentido de escolaÉ, sem dúvida, importante que a Universidade combata o fechamento e a lógica da auto-suficiência,

nomeadamente, no capítulo da sua actividade científica e pedagógica que é, no fundo, o que constitui o cerne da sua existência. É decisivo que, nesta matéria, se evitem, por isso, os excessos

de um corporativismo inspirado, inclusive, pelos interesses de famílias ideológicas instaladas.

No nosso país, é com excessiva frequência que as energias se esgotam num confronto interno demolidor e estéril cristalizado em pequenas vaidades ou, em contrapartida, em investidas

globais devastadoras mas justificadas por obscuros propósitos de racionalização.

Todos conhecemos – ou tivemospelo menos noticia – dos exageros,das sobrancerias, das impunidades edas cumplicidades em que acabarampor naufragar muitas das concep-ções e práticas tradicionais de gestãoe funcionamento das universidades,mas conhecemos de igual modo afalta de equilíbrio que tende a acom-panhar as intervenções que, semmais, pretendem ultrapassar aquelasmesmas concepções e práticas.

Uma instituição universitáriaaberta não tem de ser necessaria-mente uma escola desventrada emque as regulações identitárias soço-brem diante das interpelações exte-riores, seja nos domínios anterior-mente referidos, seja ainda nos ca-pítulos da avaliação e da acredita-ção. Assim, importa sempre que,por exemplo, ao serem recrutados epromovidos os melhores quadros, o

sejam dentro de parâmetros ineren-tes e coerentes com o projecto decada escola. Da mesma maneira, oscritérios de avaliação e acreditaçãoterão de respeitar as especificida-des institucionais, naturalmentedentro de limites socialmente con-sensuais, ou seja, no quadro de pa-râmetros que sustentem a própriademocraticidade interna e não le-sem, em geral, os princípios funda-mentais das sociedades democráti-cas contemporâneas.

O que é realmente importante – oque constituirá a mola produtiva dacultura escolar – será a imposiçãosocial de cada escola incentivar aqualidade – inclusive por acolhimen-to de críticas externas – , sob penade sucumbir.

Por aqui passa – ou deverá pas-sar - a grande diferença entre a au-tonomia democrática e o proteccio-nismo autoritário. A primeira, é meri-tocrática; o segundo, é conivente. Aprimeira tem de construir a sua legi-timidade e assegurar o seu direitode existir, o segundo dimana de umabstracto direito à perenidade. Aprimeira, acolhe e impulsiona a di-versidade; o segundo, impõe a arbi-trariedade. A primeira, responsabili-za porque liberta; o segundo, des-responsabiliza porque coage. O quenão podemos aceitar é que tudo seconfunda e querer, antes de mais,responsabilizar constrangendo arbi-trariamente em nome seja do quefor, até mesmo da democracia ...

Só haverá escolas realmente uni-versitárias quando e enquanto hou-ver Escolas de saber reconhecidas,reconhecíveis e que reconheçam osseus protagonistas e estes nelas sereconheçam. Quando e enquantoprojectarem os seus contributos nasociedade, não sendo nem merasconsumidoras, nem reprodutoraspassivas, nem entrepostos cinzentosao serviço de lógicas economicistasou sociais politicamente avalizadas.

No nosso país, é com excessivafrequência que as energias se esgo-tam num confronto interno demoli-dor e estéril cristalizado em peque-nas vaidades ou, em contrapartida,em investidas globais devastadorasmas justificadas por obscuros pro-pósitos de racionalização. O primei-ro caso é expressão de uma medio-cridade académica e cultural; o se-gundo, resulta de uma menoridadepolítica revestida de verniz pragmá-tico e tecnocrático. Em ambos oscasos, a Universidade fragiliza-senão tendo, afinal, Escolas, (nem em-presas, nem sequer corporações!).Descaracterizada entre o imobilis-mo de uma tradição obsoleta e odesajustamento de projectos dema-gógicos, corre o risco de perder oespaço do seu sentido cultural.

Uma Escola autêntica tem o direi-to e o dever de afirmar e reproduzircriativamente o seu modelo. A partirdaqui fundamenta-se, com exigên-cia, o dever de diversificar e o direi-to de escolher ...

a páginada educaçãofevereiro 2003

© is

to é

© is

to é

Page 10:  · Director: José Paulo Serralheiro ·  apagina@spn.pt ano XII | nº 120 | FEVEREIRO | 2003 · Mensal | Continente e ilhas 2 Euros

10a páginada educaçãofevereiro 2003

fórum educação

dia-a-dia

dia-a-diaFernando Bessa Ribeiro

[email protected])

Universidade de

Tras-os-Montes

e Alto Douro - UTAD

O ministro da Educação, David Jus-tino, insistiu (...) na intenção de alar-gar os horários de funcionamentodo ensino pré-escolar, ajustando-osàs necessidades dos pais. "Talvezseja possível que possam abrir porexemplo às oito da manhã e fecharmais tarde, isso sim é bom serviçopúblico", disse o ministro. Presente-mente, os jardins-de-infância públi-cos estão abertos das nove da ma-nhã às três da tarde.

A recusa determinante do aumentodas propinas, admitido (...) por Du-rão Barroso, foi uma das principaisresoluções saídas do Encontro Na-cional de Direcções Associativas(...). Os resultados de um referendo,decidido à última da hora, veio legi-timar os futuros protestos dos estu-dantes do Ensino Superior: 80%dos dirigentes associativos votoucontra o aumento das propinas.

A Federação nacional de Professo-res concorda que a prestação dosdocentes e o desempenho pedagó-gico sejam tidos em conta na pro-gressão na carreira dos docentes doensino superior.

João Cunha e Serra, dirigentesindical, subscreve a necessidade«de valorizar a componente peda-gógica» na avaliação dos docentese admite discutir o princípio de «re-muneração diferenciada de acordocom a prestação do docente» con-cordando que «o bom desempenhodeve ser premiado».

Apenas um em cada quatro alunos édiplomado após frequentar durantetrês anos o ensino tecnológico naescola secundária. Se se tratar deum curso geral na mesma escola, apercentagem ronda os 44 por cento,enquanto o ensino profissional a ta-xa de sucesso atinge os 66 por cen-to. Estas são as principais conclu-sões de uma investigação sobre aimportância estratégica do ensinoprofissional, (...) revelado pela pri-meira vez num seminário promovidopela Associação Empresarial dePortugal, no Porto.

25.01Mais horasde pré-escolar

29.01Ensino tecnológicoem falência

27.01Não ao aumentode propinas

28.01Fenprof aceitaavaliações

Como hoje, naquela primavera o arestava impregnado de um hálito in-tenso ao Chile de Allende. A dúvidanão era se o golpe se daria ou não,mas quando é que ele se daria. Sim-patizante da causa bolivariana, afrustração tomou conta de mimquando as notícias falaram na der-rubada da ordem constitucional eno encarceramento do Comandanteno forte Tiuna. Como era isso possí-vel, se Chávez, um bravo oficial pá-ra-quedista com prestígio entre osseus camaradas de armas, tinha oapoio das classes populares e deoutras camadas sociais, se as pro-messas do neoliberalismo já não fa-ziam vencimento na América Latinae Bush se encontrava empenhadono Afeganistão, a contas com a talguerra contra o terrorismo?

As coisas acabariam, contudo,por conhecer desenvolvimentosinesperados. O governo instituído àpressa pelos golpistas e liderado pe-lo patrão dos patrões foi imediata-mente contestado pela insubordina-ção popular e pelos sectores nacio-nalistas do exército. Desafiando os-tensivamente os canalhas que usur-param o poder, tomaram as ruas pa-ra exigir o regresso do seu Coman-dante e a deposição imediata dosgolpistas. Regressado ao poder pelavontade e acção colectivas das clas-ses populares e dos soldados que serecusaram a obedecer ao golpe or-questrado por Washington, pareciaque o líder bolivariano estava maisforte do que nunca para empreenderuma transformação radical nas es-truturas económicas e sociais da Ve-nezuela, sem a qual não será possí-

Nos últimos anos a Venezuela tem sido tema recorrente nos media. Foi através deles, sobretudo pela televisão, que acompanhei com viva inquietação o golpe de Abril de 2002

contra Hugo Chávez. Para os mais atentos ele não terá sido inesperado.

Salvar a Venezuela

vel resgatar a colos-sal dívida social queo país tem para comos mais pobres, asgentes das favelas,os camponeses, osmeninos da rua, osnegros, os mestiçose os indígenas. Noseu discurso de reto-mada de posse,Chávez manifestoudesejar fazê-lo aoproclamar “a Deus oque é de Deus, a César o que é deCésar e ao Povo o que é do Povo”.

Quase um ano depois, e sem queas mudanças tenham avançadograndemente, a Venezuela está denovo num impasse. Com o apoio daalta hierarquia católica, da burocra-

cia sindical corruptae de algumas cama-das da pequena bur-guesia, também elasgolpeadas pelo neo-liberalismo mas con-taminadas pelo re-ceio infundado deperderem o poucoque ainda detêm, aselites tentam umavez mais derrubar oregime. No momentoem que escrevo, a

oposição esvaziou-se: a produçãopetrolífera foi normalizada, as ruascontinuam nas mãos dos bolivaria-nos, Chávez conta com o apoio pre-cioso de Lula e do PT que não igno-ram que a Venezuela é uma das li-nhas da frente das lutas emancipa-

tórias contra a globalização neolibe-ral na América Latina.

Chávez e o movimento bolivaria-no – o mesmo se aplica aos nossoscompanheiros brasileiros – que secuidem. Apesar das derrotas suces-sivas, as elites estão apostadas emcorrer todos os riscos, incluindo ode mergulhar o país numa guerra ci-vil, como justamente observou Igna-cio Ramonet. Apoiadas nos seuslargos recursos económicos e nassuas televisões, rádios e jornais, vãocontinuar a sabotar o enorme sola-vanco de esperança e dignidadeque a Venezuela vive. Como diligen-temente nos é servido pelos mediacaseiros comparsas, a estratégiados poderosos assenta na mentira ena calúnia. Desde acusar Chávez dealiado do narcotráfico até ao de cri-mes contra a humanidade, passan-do por coisas “menores” como seramigo de Fidel Castro, tudo servepara tentar manipular as angústiasdos menos politizados e incitar ascamadas sensíveis aos discursosdas classes dominantes ao boicoteda ordem constitucional.

O Manifesto ensina-nos que “ho-mem livre e escravo, patrício e ple-beu, barão e servo, mestre de cor-poração e companheiro, numa pala-vra, opressores e oprimidos, emconstante oposição, têm vivido nu-ma guerra ininterrupta, ora franca,ora disfarçada”. O tempo neste pe-daço sofrido da América Latina é deluta aberta, sem tréguas, opondo ospoderosos e privilegiados aos opri-midos, aos explorados, a todos osque simplesmente exigem justiça.Hugo Chávez sabe-o muito bem!

“homem livre e escravo, patrício e

plebeu, barão e servo,mestre de corporação e companheiro, numapalavra, opressores

e oprimidos, em constante oposição,

têm vivido numa guerra ininterrupta,

ora franca, ora disfarçada”.

Page 11:  · Director: José Paulo Serralheiro ·  apagina@spn.pt ano XII | nº 120 | FEVEREIRO | 2003 · Mensal | Continente e ilhas 2 Euros

11a páginada educaçãofevereiro 2003

dossier

Luís Areal RothesEscola Superior

de Educação do Porto

1. A expansão da participação dosadultos em todo o sistema educati-vo e designadamente no ensino su-perior constitui um desafio funda-mental para a sociedade portugue-sa e vem-se tornando um temacentral nos debates técnicos e polí-ticos sobre a educação.

Para nos ajudar a ponderar as de-cisões políticas e as opções estraté-gicas a tomar nesta matéria temosde partir de dois princípios funda-mentais. O primeiro é um axioma de-cisivo da educação de adultos: todosos adultos são portadores de com-petências. Em Portugal, este princí-pio tem que ser considerado comparticular atenção, já que, por razõeshistóricas bem conhecidas, há umdesequilíbrio claro entre as estrutu-ras das habilitações escolares e adas habilitações profissionais, que semanifesta, sobretudo nos mais ve-lhos, numa generalizada subcertifi-cação escolar, sinal de que os adul-tos, nomeadamente os activos, dis-põem de um conjunto de competên-cias adquiridas por via das experiên-cias profissionais e de vida que pre-cisamos de reconhecer e validar.

Entrementes, é bom considerarque, na "sociedade de conheci-mento" em que vivemos, aqueleprincípio tem de ser sempre com-plementado por um outro, tambémessencial: todas as competênciassão sempre insuficientes e podem,por isso, ser melhoradas. Se quere-mos afirmar a educação ao longoda vida há que permitir aos adultosreflectir sobre os seus percursos eprojectos de vida e proporcionar-

lhes novas oportunidades educati-vas. É uma preocupação que ganhaparticular relevo num país que, noque diz respeito às qualificaçõesescolares, apresenta uma fortefractura geracional, que penaliza asgerações mais velhas. Os quadrosnormativos e os processos de edu-cação de adultos que desenvolver-mos têm que considerar que as bai-xas qualificações, com esta disso-nância entre gerações, são o nossoprincipal problema para garantirnão só a sustentabilidade do siste-ma de emprego mas, de um modomais abrangente, do próprio siste-ma de cidadania.

2. É por isso que a expansão dastaxas de frequência dos estudantesmais velhos no ensino superior éuma aposta decisiva em Portugal.Este alargamento tem-se vindo adar, mas continuamos, relativamen-te a este aspecto, muito aquém damaioria dos países desenvolvidos. Éóbvio que todos (ou quase todos) osestudantes deste nível de ensinosão já adultos. Agora, é necessárioque aqueles que interromperam oseu percurso regular de formaçãotenham também a possibilidade deaceder ao ensino superior e que es-ta não lhes seja limitada às institui-ções de ensino e/ ou áreas de for-mação com procura insuficiente.Não estamos a procurar resolverproblemas conjunturais de escas-sez de alunos nas instituições deensino superior. A questão tem queser encarada pela positiva, pois oque queremos é alargar as oportuni-dades de acesso ao ensino superior.

É um desafio que precisa de es-forços sérios por parte das institui-ções de ensino superior, mas queexige, também, iniciativas governa-mentais que os enquadrem e conso-lidem. Àquelas pede-se, designada-mente: que construam novas moda-lidades de acesso dirigida aos adul-tos e processos adequados de re-conhecimento e validação de com-petências; que desenvolvam cursosgerais ou disciplinas específicaspara apoiar o acesso de novos pú-blicos ao ensino superior; que pro-movam a modularização das forma-ções; que estimulem novas aborda-gens pedagógicas, recorrendo no-meadamente ao ensino à distância eo apoio tutorial; e que diversifiquemos modos e instrumentos de avalia-ção e classificação.

Do governo, esperam-se medi-das de estímulo à participação dosadultos no ensino superior, espe-cialmente dos socialmente maisdesfavorecidos, que favoreçam de-signadamente: a articulação entre otrabalho e a formação; o reconheci-mento e validação de competên-cias; a criação de serviços de orien-tação, a promoção de cursos paraacesso de novos públicos; o desen-volvimento do ensino à distância.

Temos ainda que diversificar asofertas formativas no ensino supe-rior, promovendo cursos de curtaduração com diferentes configura-ções, os quais, desde que estejainstalado um sistema eficaz de vali-dação, poderão, mesmo não confe-rindo um grau académico, atrair pú-blicos cada vez mais alargados.

3. Obviamente, uma expansão doensino superior às gerações mais ve-lhas tem implicações sérias que ex-travasam o sistema de ensino supe-rior. Vamos desencadear práticasque vão obrigar a reequacionar, no-meadamente: as relações entre for-mação inicial e contínua e entre for-mação formal e não formal; a relaçãoentre aprendizagens de cariz maisprofissionalizante e aquelas que, ain-da que com repercussões óbvias naspráticas profissionais, têm um carác-ter técnico, cultural e científico maisabrangente; o modo como articula-mos a promoção de competênciaspara a cidadania e para a empregabi-lidade; as relações entre reconheci-mento, validação e promoção decompetências e as políticas de tra-balho, designadamente as políticassalariais ou as questões relacionadascom a mobilidade dos trabalhadores.

Temos que ser determinados,mas também prudentes. Isso signifi-ca fazer coexistir, nas políticas epráticas de promoção educativados adultos, duas posturas intrinse-camente distintas, mas que não sequerem antagónicas. Por um lado, aque apela a uma atitude crítica e re-flexiva, capaz de perspectivar de ummodo amplo e ambicioso o campoem que se move e de encarar sem-pre a possibilidade de soluções al-ternativas. Por outro lado, a que nosimpele a centrar em prioridades, atomar decisões, a confiar nas solu-ções adoptadas e a mobilizar a so-ciedade portuguesa para os desa-fios essenciais da educação deadultos e do desenvolvimento.

garantir um direito para colmatar uma injustiça

Adultos no Ensino Superior:

© is

to é

Page 12:  · Director: José Paulo Serralheiro ·  apagina@spn.pt ano XII | nº 120 | FEVEREIRO | 2003 · Mensal | Continente e ilhas 2 Euros

12a páginada educaçãofevereiro 2003

dossier

J. Cadima RibeiroEconomista

Professor da Escola

de Economia e Gestão

da Universidade do Minho

A sociedade portuguesa viu insta-lar-se nos derradeiros anos, de for-ma progressivamente acentuada,um discurso negativo sobre os seusrecursos e capacidades. É, de certomodo, o retorno cíclico ao espiritodo “Velho do Restelo”.

Esse discurso descrente e de-sencantado tem intérpretes em múl-tiplos sectores da sociedade e ní-veis de decisão económica e políti-ca, mas parece ter penetrado maisfundo no sector da educação, in-cluindo o ensino superior. Curiosa-mente, ou talvez não, os estudantese os seus representantes associati-vos encontram-se entre os maioresarautos dessa mensagem, quaselenga-lenga. A rivalizar com eles su-gere-se só o discurso governamen-tal, falho de convicção, falho de es-tratégia e amarrado a grupos de in-teresses que não vêem no ensino eformação senão o negócio.

São pedras de toque da mensa-gem da desgraça, especialmente:

i) a suposta degradação da quali-dade do ensino superior oferecido(com ênfase maior no ensino público);

ii) a perda de pertinência da for-mação ministrada face às solicita-ções do mercado de trabalho (vulgoempresas);

iii) a culpabilização dos professo-res e da autonomia das instituiçõespela proliferação de cursos que nãooferecem perspectivas de saídaprofissional aos seus diplomados.

Colocadas num contexto geral dereflexão sobre a evolução e futuro da

formação graduada e pós-gradua-da, estas questões têm merecido aatenção de diversas instâncias na-cionais e internacionais, não sendodifícil invocar documentos onde asproblemáticas de fundo que lhe sub-jazem são convenientemente diluci-dadas. Para reter um desses docu-mentos apenas, menciono aqui o re-latório da UNESCO sobre “HigherEducation in the Twenty-first Cen-tury: Challenges and Tasks Viewed inthe Light of the Regional Conferen-ces” (Word Conference on HigherEducation, Paris, Outubro de 1998).

Recomendando vivamente aosinteressados em aprofundar a pro-blemática a leitura do citado docu-mento, de forma necessariamentebreve e sumária não queria deixarde dar aqui o meu testemunho so-bre as questões mencionadas.

1. Há quem pretenda confundirEducação e Economia. Conforme osublinha o documento da UNESCOjá identificado, “a Educação não éum ramo da Economia, nem o pro-cesso educativo, os seus propósitosúltimos ou os seus resultados ou‘produção’ são comparáveis aos daEconomia” (UNESCO, 1998, p.3). Econtinua, é, antes, “um sector es-sencial da sociedade e uma condi-ção da existência social”

Naturalmente que a formação uni-versitária deverá também formar téc-nicos, que sirvam as empresas, quesirvam as organizações, que sirvam asociedade. Mas são, deverão ser, aslicenciaturas assimiladas simples-

mente a cursos de formação profis-sional? E porquê então subsistemsistemas de ensino universitário, po-litécnico, de formação profissional,de graduação e de pós-graduação?

Obviamente que a sociedade dopresente, a sociedade do conheci-mento, e o ritmo das rupturas tecno-lógicas e organizacionais impõemum outro projecto de universidade eum outro modelo de parceria entre auniversidade e a economia. Isto por-que o conhecimento cria-se, cres-centemente, através da acção euma nova partilha de tarefas se ins-titui entre investigação fundamental,investigação aplicada, inovação etransferência, e porque, nesse con-texto (que só parcialmente é ainda odo presente), a formação não estarámais a montante da investigação.Mas quem é que em Portugal já en-carou seriamente isso? Que políti-cas activas estão esboçadas paraaproximar o presente do futuro?

2. É recorrente o discurso culpa-bilizando os professores e a gestãouniversitária pública pela frustaçãodos estudantes em matéria de saí-das profissionais, e, antes disso, anível de sucesso escolar. Isso temservido de pretexto para atingir for-temente a autonomia das institui-ções de ensino público consagradanas leis que a essa matéria se refe-rem, publicadas nos anos 80. Nestavertente, convergem o discurso dosestudantes, de alguns sectores em-presariais e o dos governos (o pre-sente e os anteriores, de iniciativa

do PS, particularmente).O discurso é de tal modo des-

qualificado e demagógico que seemaranha nas suas próprias contra-dições. Brevemente, para sublinharalgumas dessas contradições, dei-xemos algumas (poucas) perguntasde resposta óbvia: i) quem viabilizouo estatuto que permitiu a inúmerasinstituições privadas operar comoinstituições de ensino superior equem autorizou o funcionamentodos respectivos cursos? ii) Quem re-gula as condições de acesso ao en-sino superior e define os contingen-tes de alunos que ingressam no sis-tema público? Quem é que, enfeu-dado a um discurso moralista, veioproclamar a necessidade de regulara criação de cursos superiores (nosistema público e privado) quando omercado já dispensava essa inter-venção reguladora?

As considerações que antes dei-xo e, especialmente, as perguntasque formulo dão conta da complexi-dade do que está em causa nas po-líticas de ensino superior em Portu-gal. Antes disso, porém, pretendemsublinhar que não é matéria onde odiscurso fácil e a demagogia devamser incentivados, exactamente emrazão da relevância estratégica doensino e da formação para o evoluirda nossa economia e para o desen-volvimento da nossa sociedade. In-felizmente, o que se tem visto emPortugal em período recente é o ri-goroso contraponto do ponto devista que aqui enuncio.

A Educação não é um ramo da Economia: contribuição para um manifesto contra o discurso fácil e a demagogia.

© is

to é

Page 13:  · Director: José Paulo Serralheiro ·  apagina@spn.pt ano XII | nº 120 | FEVEREIRO | 2003 · Mensal | Continente e ilhas 2 Euros

13a páginada educaçãofevereiro 2003

dossier

Rui Namorado RosaUniversidade de Évora

Para entendermos o que se passano Ensino Superior em Portugal, emparticular no que respeita ao pro-cesso de Bolonha, convém olhar-mos também, para as linhas de for-ça do que se passa na Europa e noMundo, a fim de alcançarmos umavisão mais exacta.

Em Lisboa, em Abril de 1997, oConselho da Europa e a UNESCOpromoveram uma convenção con-junta em que foi adoptado o texto deuma Convenção sobre o reconheci-mento de qualificações relativas aoEnsino Superior (de acesso e de gra-duação) na Região Europa. No anoseguinte (Setembro 1998) e já noâmbito da União Europeia, o Conse-lho de Ministros adoptou uma Reco-mendação (Nº 561/98) para a coope-ração na garantia de qualidade noEnsino Superior. Entretanto, a Decla-ração da Sorbonne (Maio 1998), dainiciativa da França, Alemanha e Itá-lia, havia já antecipado a criação deuma Área Europeia de Ensino Supe-rior, proposta que foi depois refor-mulada e retomada em Bolonha (Ju-nho 1999) pela cimeira de Ministrosda Educação europeus (29 países) -a Declaração de Bolonha. A cimeirade Praga (Maio 2001) dos ministrosda educação europeus (32 países),veio confirmar e fixar medidas e me-tas concretas para esse processo deintegração no espaço europeu. Ochamado processo de Bolonha, deque aqui registamos apenas algunsdos passos próximos, tem sido, co-mo se verifica, um processo com di-

versificados interventores e comgeometria muito variável.

A Área Europeia do Ensino Supe-rior comporta os seguintes concei-tos-chave : a capacidade de atrac-ção mundial da formação superioroferecida pela UE; comparabilidadeentre formações homólogas adquiri-das em países distintos; um sistemade unidades de crédito acumuláveise transferíveis entre estabelecimen-tos de ensino e países (ECTS); amobilidade de estudantes e profes-sores; a cooperação na elaboraçãoe a integração de programas de en-sino; a organização do percurso es-colar em dois ciclos (graduação epós-graduação); a garantia de quali-dade mediante orientações comunsrelativas a avaliação do ensino,acreditação de habilitações profis-sionais e certificação de habilita-ções académicas.

Este processo de Bolonha deveser enquadrado num processo maisvasto que abarca todas as activida-des de ensino e formação no seio daEuropa e também à escala mundial.A mudança de ênfase do Ensino pa-ra a Aprendizagem; da Educaçãopara a Formação; a "nova" Aprendi-zagem ao longo da vida são mudan-ças que têm operado e acelerado naúltima década. Não seria essencialintroduzir novos termos, mas novostermos facilitam a introdução de ou-tras políticas. É subtil, mas pode serperigosamente eficaz: a sociedadedeixa de ter o dever de educar e en-sinar as crianças e os jovens; são

estes que têm o dever de obter (sepuderem) aprendizagem; o termo"direito" esvanece-se.

Por outro lado, num plano maisgeral ainda, mundial, assistimos auma arrebatadora integração econó-mica quer de empresas quer de tec-nologias de informação e comunica-ção. Serviços multimédia, serviçosde relações públicas e de publicida-de, agora também serviços de ensi-no e formação, são progressivamen-te integrados no seio de mega-em-presas transnacionais (liderados, nosEUA, por empresas mas associandoempresas tecnológicas e universida-des). São "experiências" viabilizadasinicialmente (como é tradição) peloorçamento da defesa nacional e quedepois são transferidas para o planocivil e transnacional.

Conceitos empresariais como com-petitividade, empregabilidade, mer-cado de trabalho, gestão estratégi-ca, eficiência, recursos mínimos eefeito máximo, "just in time", certifi-cação, etc., são acolhidos nos textosde política educativa independente-mente da sua acepção precisa ou dasua adequabilidade no contexto daescola e do sistema de ensino. O dis-curso sobre o ensino surge então emtermos de discurso económico comose aquele fosse mera componenteparticular deste. Aos estudantes nãose quer oferecer um sistema de ensi-no público mas antes um mercadode aprendizagens. (...)

Amplas camadas sociais espe-ram legitimamente a "universalida-

de" de acesso à escola pública. Po-rém, o ensino público é por vezesatacado, criticado como insuficienteou ultrapassado, e os próprios go-vernos nem sempre cumprem o de-ver de executar políticas positivaspara o seu reforço e bom desempe-nho. O ensino privado é por vezespromovido, como negócio respeitá-vel, até mesmo com o apoio de go-vernos e com recursos públicos. (...)

As directivas da União Europeiaque acompanham o processo deBolonha reflectem naturalmente osinteresses do poder económico e asorientações políticas prevalecentesno seio da União - a "competitivida-de mundial", a "empregabilidade", a"mobilidade", etc.. O que não exclui,porém, a expressão política de nu-merosas preocupações sociais tam-bém. Oportunidades e ameaças aque devemos de estar atentos. (...)

É nosso dever acompanhar oprocesso de Bolonha, não por se-guidismo ou por direcção impostamas por interesse próprio, sem in-genuidade face aos objectivos deoutrem e aos riscos próprios. O en-sino nunca foi um tema e um siste-ma acabado. São precisas refor-mas? São. Precisas para melhor, sa-bendo que caminhos há muitos.

*Texto publicado parcialmente

O ensino superior e o processo de Bolonha*

© is

to é

Page 14:  · Director: José Paulo Serralheiro ·  apagina@spn.pt ano XII | nº 120 | FEVEREIRO | 2003 · Mensal | Continente e ilhas 2 Euros

14a páginada educaçãofevereiro 2003

verso e reverso

Sentado a uma pequena mesa à en-trada do edifício o porteiro folheia ojornal. “O meu trabalho é estar aquitodo o dia”, diz sem querer muitaconversa. “É chatíssimo.”

As horas demoram a passar. Oprédio já teve mais cor. Os seus cin-co andares situados na Baixa doPorto alojaram grandes e conceitua-dos escritórios de médicos, advo-gados e engenheiros. Restam aindaalguns, poucos a contar pelo núme-ro de placas a anunciar os diferentesserviços e os nomes dos “douto-res”. Mas a antiguidade da estruturaainda revela beleza.

Aos 67 anos, António (nome fictí-cio) explica que a desertificação doedifício causou alguma insegurançaaos últimos ocupantes que lá per-maneceram: “Quando [os médicos]deram por ela já tinham uns droga-dos a viver no quinto e no quartoandar.” E essa foi a razão da sua“contratação”. “Eles escondiam-see assaltavam os doentes”, acres-

centa sem tirar os olhos do Jornalde Notícias.

Taciturno, bem podia esperar ou-tro modo de gozar a sua reforma.Mas não. “O dinheiro é pouco e asdespesas são muitas”, desabafa.Por isso aceitou “vigiar as entradas”.Com uma condição: a de não fazerdescontos. “Já viu? 65 contos e iafazer descontos, para quê? Para nãolevar nenhum ao fim do mês?”

Menos incomunicável após abreve revelação António explica-se:“É por isso que não lhe posso dizero meu nome. Ainda vem aí a minis-tra [Manuela Ferreira Leite], está aperceber?”

Retratos[De gente que toda a gente conhece.

Gente que está nos sítios por onde toda a gente passa. Gente como a gente com vidas para contar]

RETRATOS da cidade

Andreia Lobo

Ser professor · Assinar a Página

desconto sócios Sindicatos FENPROF

Na assinatura mencionarnº sócio e iniciais do Sindicato

1 ano1520

2 anos3040

PortugalEstrangeiro

1 ano2025

2 anos4050

PortugalEstrangeiro

A sala está cheia de tabuleiros va-zios. A hora do jantar já passou hápelo menos duas horas. Ao frenesimdas refeições sucede um tempo deabandono. Os restos nos pratosaguardam alguém que os leve dasmesas para o lixo. Um rapaz more-no, cabelo espetado, magricela, tal-vez 16 anos e um homem loiro es-branquiçado, mais de 1,90m, talvez40, lançam um olhar rápido sobre osdestroços, como a tirar as medidas.“Limpar tudo?”, pergunta o homemnum português de Leste. O rapaz,sem olhar para o colega mais velhoabana a cabeça em sinal afirmativo.E começam de imediato a limpeza.

Poucas palavras. Gestos ligeiros.Mesa a mesa. O lixo vai sendo meto-dicamente empilhado. Pratos sobrepratos. Garrafas de vidro amortecidasdentro de copos de plástico. E tudoem cima de conjuntos de tabuleiroscolocados uns em cima de outros.

A sala ganha um aspecto mais as-seado à medida que o homem e o ra-

paz a vão percorrendo. Canto a canto.“Pssst!” - chama o rapaz, talvez

ainda sem saber pronunciar o nomeestrangeiro do colega. “Leva este!”- ordena, apontando para uma daspilhas de lixo. O homem obedeceàquele que podia ser seu filho, co-mo a seu pai. Carrega tudo escadaa baixo e logo sobe para iniciar no-va viagem. Duas, três, quatro ve-zes… O rapaz limpa as mesas, ago-ra vazias, com um pano. Falta ape-nas uma pilha, mas a sala está ou-tra vez a querer encher-se de gente.O homem olha para o rapaz comum semblante cansado e este per-cebe que, a bem do seu colega, de-ve ser ele a carregar a última pilha.O rapaz encosta os tabuleiros aopeito, mas o monte de lixo chega-lhe até ao queixo. O desequilíbrio éiminente. E então um prato cai. Eparte-se. O homem baixa-se comsacrifício e apanha os cacos. “Dei-xa, eu levo” , diz ao rapaz como umpai diria a seu filho.

Um porteiro (i)migrante

© is

to é

© is

to é

Page 15:  · Director: José Paulo Serralheiro ·  apagina@spn.pt ano XII | nº 120 | FEVEREIRO | 2003 · Mensal | Continente e ilhas 2 Euros

15a páginada educaçãofevereiro 2003

verso e reverso

NÓS e os outros

TECNOLOGIASLuísa Margarida Cagica CarvalhoBoguslawa M. Barszczak SardinhaEscola Superior de

Ciências Empresariais

Instituto Politécnico

de Setúbal

A tabela mostra como se repartiu em 2000 o orçamento destinado ao consumo das famílias dos Dez novos países candidatos à União Europeia por comparaçãoaos Quinze que já a constituem.

Consumo das famílias

Gastos relativos ao consumo das famílias (2000)

TotalCom a alimentação e bebidas não alcoólicos

Com vestuário e calçado

Com a casa Com os transportesCom o lazer e a cultura

Chipre

República Checa

Estónia

Hungria

Letónia

Lituânia

Malta

Polónia

Eslováquia

Eslovénia

6.5

29.6

3.2

25.7

4.8

7.8

2.5

109.9

11.0

10.5

26.4

20.0

29.1

20.7

25.6

32.0

21.5

21.6

27.0

19.3

10.8

5.7

6.0

5.5

10.9

6.5

7.2

4.7

6.9

7.0

10.1

21.5

23.4

20.0

14.9

14.7

5.7*

23.9

20.7

19.1

16.4

10.7

14.5

15.4

9.3

14.7

17.3

13.3

9.6

17.3

9.4

10.9

7.1

9.2

5.6

6.4

9.6

6.6

6.8

10.4

Média dos Dez novos candidatos 211.5 22.2 5.6 21.5 13.3 7.8

Média dos Quinze 4 852.5 12.8 6.5 21.0 14.0 9.8

Durante o mês de Novembro de2002 tivemos o prazer de participarnuma Conferência on-line intitulada“2002 International on-line Confe-rence on Teaching on-line in HigherEducation: Expanding the Frontiers”promovida pela Indiana University –Purdue University Fort Wayne, USA.

Atendendo à importância e diver-sidade dos temas debatidos, consi-deramos relevante apresentar al-guns aspectos que preocupam pro-fessores de países como os EUA aAustrália ou o Canadá, para perce-bermos que caminhos seguir e queproblemas podemos encontrar nofuturo.

Foi interessante verificar que al-gumas preocupações são seme-lhantes às nossas. Num dos arti-gos apresentados na conferência,intitulado “Distance Education Stu-dent Orientention: Start Righ, Fi-nish Right”, o autor apresentava al-gumas sugestões pedagógicas aseguir com o objectivo de baixar astaxas de desistência nos cursoson-line, as quais passavam pelacompreensão por parte dos estu-dantes das orientações emanadason-line pelo tutor e pelo recurso aoutros materiais para complemen-tar o curso e servir de apoio aos es-tudantes.

Nos países onde o ensino on-lineestá mais desenvolvido, as preocu-

pações são diversas das portugue-sas. Adiantando alguns exemplos detemas discutidos, nomeadamente autilização de estratégias pa-ra incrementar aafectividadenos cur-sos

on-line,reconhe-cendo-se a im-portância dos domí-nios psicomotor, afectivo e cogniti-vo no processo de aprendizagem.

Outros aspectos relevantes sãoos relacionados com o design doscursos e com os currículos.

Chega-se a pormenorizar modosde escrita e de apresentação quepersonalizem a mensagem, referin-

do-se, por exemplo, “Editwith a smile”, iden-

tificando-seas técni-

cas a

se-

guir paraconseguir se-

melhante proeza. Avançam-se técnicas para pro-

mover o desenvolvimento do espíri-to crítico, promovendo a discussãoem ambiente virtual.

Explica-se como é possível ensi-

nar Biologia Molecular através deum curso on-line, utilizando um en-sino "just-in-time".

Discute-se muito acerca do on-li-ne "copyright" e da legislação para aprotecção dos direitos de autor.

A situação portuguesa relativa-mente a este tipo de ensino é aindaprecoce, contudo no futuro o siste-ma educativo português não poderáser indiferente à importância e po-tencialidades apresentadas pelo en-sino on-line.

Muitos dos problemas e perspec-tivas discutidas à volta do mundo,sobretudo nos países onde este tipode ensino atinge maior grau de ma-turação, são extremamente com-plexas e vão sobretudo no sentidode considerar o factor humano co-mo essencial no processo ensino/aprendizagem, descobrindo, adap-tando e criando técnicas e platafor-mas tecnológicas cada vez mais“humanizadas”.

REFERÊNCIAS“2002 International on-line Conference on Tea-ching on-line in Higher Education: Expanding theFrontiers” promovida pela Indiana University –Purdue University Fort Wayne, USA. Resultadosdisponíveis em http://www.ipfw.edu/as/2002tohe/

O Ensino On-line à Volta do Mundo“Métodos, Técnicas e Reflexões sobre o ensino on-line”

A situação portuguesa relativamente a este tipo de ensino é ainda precoce, contudo no futuro o sistema edu-cativo português não poderá ser indiferente à importância e potencialidades apresentadas pelo ensino on-line.

Page 16:  · Director: José Paulo Serralheiro ·  apagina@spn.pt ano XII | nº 120 | FEVEREIRO | 2003 · Mensal | Continente e ilhas 2 Euros

16a páginada educaçãofevereiro 2003

verso e reverso

A versão "islâmica" da Coca-Cola, aMeca-Cola, está a conquistar todo oMédio Oriente. Produzida pela Me-ca-Cola Beverage Company, a bebi-da já vendeu mais de 2,2 milhões degarrafas em menos de dois meses."A Arábia Saudita já fez um pedidode cinco milhões de garrafas de 1,5litros", afirmou o inventor da bebida,Tawfik Mathluthi, um franco-tunisinoque fundou, em 1987, a Rádio doMundo Árabe. "Vários países doOriente Médio, entre eles a Síria, oLíbano, o Sudão, o Irão, o Iraque, oIémen, a Jordânia e a Líbia, já con-cordaram em distribuir o produto",afirma Mathluthi.

O nome Meca-Cola inspira-se nacidade de Meca, o principal lugarsanto do Islão, situado na ArábiaSaudita, e pretende ser "uma funda-ção e um meio de combater a hege-monia norte-americana", diz Mathlu-thi, que se considera, no entanto, um"admirador" dos Estados Unidos.

A Meca-Cola é apresentada co-mo um produto com "consciênciasocial", pois cede 20% dos seus lu-cros líquidos para obras de carida-de, sendo que 10% são destinadosa obras palestinianas estritamentehumanitárias para a infância, a edu-cação e a conservação do patrimó-nio, explica o inventor. "Os outros

10% são dados a associações naEuropa que trabalham pela paz nomundo e apoiam o povo palestinia-no na sua luta legítima pela inde-pendência".

A garrafa menciona no rótulo ocompromisso de destinar essas per-centagens e incentiva os consumi-dores a beber com "compromisso"para "defender a nossa dignidade",dizem as os slogans sobre um fundovermelho. A imagem da mesquita deAl-Qods (Jerusalém), terceiro lugarsanto do Islão, aparece no fundo dorótulo. O inventor diz que se inspirouna Zamzam-Cola, a versão iranianada Coca-Cola, que também tem um

grande êxito em vários países ára-bes, onde a população boicota deforma crescente os produtos norte-americanos. "Nestes tempos de 'is-lamofobia' parece-nos importanteter um signo unificador", explica.

Animado com o sucesso da bebi-da, Mathluthi sonha com uma produ-ção de 200 milhões de garrafas até aofinal do ano e pretende lançar no mer-cado o "Halal Fried Chicken", umaversão islâmica do "Kentucky FriedChicken", e a nova bebida "Mecca-Cola-Café", com sabor a café.

Fonte: AFP

Meca-Cola conquista o Médio Oriente

solta

A m

erc

anti

liza

ção

chega à

s calo

rias

À LUPAIracema Santos Clara

Escola Pires

de Lima, Porto

A Organização Mundial de Saúde“atira” números verdadeiramentealarmantes: o planeta tem 300 mi-lhões de obesos, 45 por cento dosquais são cidadãos da União Euro-peia. É a factura que os países de-senvolvidos têm de pagar por custosde saúde associados à inactividade.

E a pobreza e a fome aumentam,não páram de crescer, matando pes-soas, muitas delas de tenra idade...crianças com menos de 5 anos! Paraalém de outras medidas, o relatóriomundial sobre a população (Dezem-bro de 2002) aponta o planeamentofamiliar como factor de diminuiçãoda tragédia. A Escola diz: presente.

[A obesidade] está a crescer auma velocidade alarmante configu-rando uma "epidemia pan-europeiaque oferece uma encorpada barreiraà prevenção de doenças crónicas econstitui uma ameaça directa à saúdedas crianças". São já cerca de 135milhões (75 milhões de homens e 60milhões de mulheres) os cidadãos daUE cuja ficha clínica inclui a expres-são “excesso de peso” - com o alar-gamento, serão mais 70 milhões.

(relatório "Obesity in Europe - ACase for Action",

Um estudo da Roche Farma con-cluiu que um obeso-tipo gasta, en-tre produtos parafarmacêuticos, gi-násios, massagens e consultas, cer-ca de 58 euros por mês. O estudosublinha que é urgente regulamentaro mercado paralelo da obesidade -"médicos não ortodoxos que apre-goam grandes taxas de sucesso,clubes de emagrecimento que co-bram à sessão, produtos dietéticos"-, uma indústria que, calcula-se,movimenta em toda a UE cerca de15 biliões de euros/ano.

A obesidade europeia é induzidapor uma dieta hipercalórica e porum estilo de vida cada vez mais se-dentário, que rarefaz as oportunida-des para fazer exercício físico. A cul-tura do snack promove um sobre-consumo passivo de energia que se

Há 22 milhões de crianças commenos de cinco anos que têm

peso a mais. Na Europa, os níveis de obesidade infantil

estão a crescer vertiginosamente,atingindo em média,

um sexto das crianças.

É a epidemia da socie-dade da abundância:

só na UE há cerca de 135 milhões de

pessoas com peso amais, revela um relatório

recente. Na Europa, o excesso de peso já é o principal problema

de saúde pública do século XXI.

(“Público” 13/10/02)

[a obesidade]

destina quase exclusivamente aoarmazenamento: graças à tecnolo-gia, as tarefas domésticas e laboraisexigem cada vez menos esforços.Até os mais velhos são encorajadosa gozar uma reforma relaxada.

A obesidade é um problema cujaresponsabilidade é partilhada. Os pri-meiros agentes responsáveis são co-merciais. A conspiração envolve es-tratégias de "marketing" e manobrasde "lobbying" - mas usa tambémagentes como a predisposição genéti-ca para o excesso de peso, as famíliasque trocam comida caseira por uma"pizza" aquecida no micro-ondas, asescolas e as comunidades que não in-vestem em estruturas desportivas eáreas de lazer, os poderes locais quenão libertam ruas para bicicletas epeões e os media que veiculam ima-gens corporais estereotipadas.

O alerta é da Organização Mun-dial de Saúde: já há 22 milhões decrianças com menos de cinco anosque têm peso a mais. Na Europa, osníveis de obesidade infantil estão acrescer vertiginosamente, atingindoem média, um sexto das crianças.

As escolas estão numa posição--chave para lidar com o problema.Há medidas simples, como retirardas escolas as máquinas que servembolos e refrigerantes, estabelecer rí-gidas obrigações contratuais com asempresas de catering. A receita podeser: menos televisão, mais actividadefísica, menos consumo de gorduras,mais consumo de frutos e vegetais,novos currículos escolares e educa-ção das famílias para a saúde.

Os mais novos, especialmente vul-neráveis ao habilidoso "marketing"dos produtos hipercalóricos, devemser o público-alvo preferencial dascampanhas de combate à obesida-de. As crianças obesas enfrentam umrisco acrescido de doenças e distúr-bios psicológicos vários, que, não ra-ro, desaguam num mar de dificulda-des de socialização e atrasos educa-tivos. A Escola está aqui!©

isto

é

Page 17:  · Director: José Paulo Serralheiro ·  apagina@spn.pt ano XII | nº 120 | FEVEREIRO | 2003 · Mensal | Continente e ilhas 2 Euros

“ 17a páginada educaçãofevereiro 2003

verso e reverso

Política de "discriminação positiva" posta em causa nos EUA

CARTAS na mesaAgência France Press- AFP

Ao tomar posição contra as quotas des-

tinadas aos negros na Universidade de

Chicago, que estão a ser alvo de dis-

cussão no Supremo Tribunal, o presi-

dente George W. Bush põe em causa

as políticas de discriminação positiva

instauradas nos anos 60.

A "discriminação positiva" nos Esta-

dos Unidos, objecto de apaixonados

debates, reflecte a dificuldade de inte-

grar as minorias na sociedade america-

na, com um passado segregacionista e

cada vez mais multiétnica. Ao tomar

posição contra as quotas destinadas

aos negros na Universidade de Chica-

go, que estão a ser alvo de discussão

no Supremo Tribunal, o presidente

George W. Bush relançou o debate na-

cional sobre estas políticas instauradas

nos anos 60.

"Em princípio terminamos com a

separação das sociedades branca e

negra há 40 anos (...) mas na realidade

os Estados Unidos ainda continuam

muito divididos racialmente", refere

Allan Lichtman, professor de ciências

políticas na American University. A

maioria dos afro-americanos continua

a frequentar estabelecimentos escola-

res separados, negros e brancos não

vão aos mesmos restaurantes e os ca-

samentos interraciais continuam a ser

raros, observa este especialista. Eco-

nomicamente, a distância "continua a

ser muito grande", tanto em relação

aos salários quanto à riqueza, adverte

Lichtman, acrescentando que nos Es-

tados Unidos não há governadores

nem senadores negros.

Por outro lado, quase todos os le-

gisladores negros da Câmara de Re-

presentantes vêm de distritos de maio-

ria negra e pobre, em geral do sul do

país. Os negros e os hispânicos, que

representam respectivamente 12% e

10% da população, estão desempre-

gados numa proporção muito maior do

que a população branca. Há três me-

ses atrás, a taxa de desemprego entre

os negros era de 11,5%, contra 7,9%

dos hispânicos e 5,1% dos brancos.

Segundo Lichtman, os brancos con-

tinuam a ser o "grupo privilegiado" e os

negros sentem-se, em parte, como uns

"excluídos da sociedade". Os progra-

mas de promoção social e económica

das minorias, conhecidos como discri-

minação positiva, têm sido "um dos su-

cessos" nos esforços feitos para derru-

bar as barreiras raciais nos Estados

Unidos, acrescenta. Além do acesso à

educação, estas medidas abriram aos

negros, e também às mulheres e outras

minorias, postos de trabalho na polícia,

no goveno federal e no funcionalismo

público das autarquias locais.

Para o professor Derek Bok, ex-rei-

tor da Universidade de Harvard e es-

pecialista dos efeitos da discrimina-

ção positiva nas universidades, sem

estes programas voluntaristas a situa-

ção das minorias seria notoriamente

pior. "A grande maioria dos estudan-

tes negros e hispânicos não seria ad-

mitida nas prestigiadas escolas de

medicina, direito e de administração

de empresas sem estes programas",

refere o analista. Para ele, a proporção

de estudantes negros nestas grandes

universidades, actualmente de 6 ou

7%, cairia para menos de 1%.

Um desmantelamento das políticas

de discriminação positiva poderia cau-

sar, numa sociedade cada vez mais et-

nicamente diversificada, uma maior

percentagem de brancos nas profis-

sões liberais e outras posições de po-

der nos próximos 25 ou 30 anos, afirma

Bok. Por essa altura, os negros e os his-

pânicos deveriam representar um terço

da população, segundo as projecções

demográficas.

Assim escrevia uma aluna do 2º ano, nu-

ma reflexão sobre o contributo da So-

ciologia da Educação para a sua forma-

ção, enquanto futura professora do

1ºCEB. Tal fez-me retomar a ideia de

que o Ensino Superior, por razões várias,

escapa a quase todas as teorias educa-

cionais, não sendo por isso passível de

se lhe aplicar grande parte dos ensina-

mentos da Sociologia da Educação.

Assim, julgava eu, acontecia com a

questão da interculturalidade! Até por-

que, do meu ponto de vista, a filtra-

gem feita no Ensino Básico e mesmo

no Secundário faria com que os alu-

nos presentes na sala de aula fossem

relativamente homogéneos.

Mais uma vez, grande daltonismo cul-

tural da minha parte! Em primeiro lu-

gar, a massificação parece ter atingido

os níveis mais altos de ensino, sim-

plesmente pela extensão da escolari-

dade obrigatória e consequente de-

créscimo do número de retenções,

pelo menos até ao 9º ano de escolari-

dade. A filtragem é portanto hoje bem

diferente da de há alguns anos atrás.

Por outro lado, as licenciaturas para o

ensino não registam médias de aces-

so particularmente altas. Assim, te-

mos “bons” alunos do secundário a

frequentar esta escola porque fica

perto de casa e temos “maus” alunos

que não conseguiram entrar na Uni-

versidade e por isso foram parar ao

Politécnico. O cenário pode ser dema-

siado linear, mas demonstra que a ex-

celência escolar, com todas as deter-

Entre a teoria e a prática...

minações sociais e

culturais que o con-

ceito carrega, não é

um filtro tão “eficien-

te” quanto eu pensa-

va e que, portanto, a

realidade é bastante

mais heterogénea do

que eu acreditava.

Neste sentido, parece-

me estar na altura de

percebermos que a

prática de uma educa-

ção intercultural deve

passar a figurar entre

as preocupações de

um Ensino Superior

que se quer, também

ele, promotor de igualdades de suces-

so. No caso concreto de uma escola de

formação de professores, esta preocu-

pação deve ser redobrada já que a fre-

quente discrepância entre o que aque-

les alunos ouvem e aquilo a que assis-

tem só deixa aparentemente duas hi-

póteses: ou passam a pensar como eu

pensava e entendem

que o Ensino Superior

é uma realidade a que

não se aplica nenhum

princípio educacional

e esperam por ser pro-

fessores para pôr em

prática o que ouviram

durante quatro anos;

ou, então, concluem

que uma coisa é o que

o professor diz e outra

é o que o professor.

Neste caso, quando ti-

verem a seu cargo

uma turma, longe do

olhar avaliador dos

professores, envere-

darão possivelmente também eles pela

via da monoculturalidade.

Por outro lado, este é um problema

que não se põe só ao nível das aulas

mais ou menos teóricas a que, de fac-

to, me parece aplicar-se o velho ditado

do “faz o que eu digo não faças o que

eu faço!”, mas, também a julgar pelos

ecos que nos chegam por parte dos

alunos, se estende às práticas peda-

gógicas. É que, muitas vezes, os mo-

delos que lhes são apresentados na

prática correspondem ao professor

monocultural, ao que acresce que nem

sempre lhes é deixada margem sufi-

ciente de manobra para, nas suas ac-

tuações, porem em prática aquilo em

que acreditam, gerando-se mesmo al-

gumas situações de conflito entre as

orientações dadas pelo professor coo-

perante e pelo professor supervisor.

Pois bem, eu acredito que, com todas

estas dificuldades, algo fica nos alunos

quando são sensibilizados para estas

questões e que, nesse sentido, talvez

um dia, quando as dificuldades da pro-

fissão docente começarem a surgir, se

lembrem destes ensinamentos e come-

cem a olhar a profissão de outra forma,

levando a cabo uma prática pedagógi-

ca mais reflexiva e enformada por preo-

cupações interculturais. Afinal de con-

tas estamos a actuar ao nível da forma-

ção pessoal, sobre valores e atitudes

que estruturam a própria identidade,

profissional mas também pessoal.

Assim se explica, em meu entender, o

reconhecimento no currículo de áreas

disciplinares como a Sociologia e a An-

tropologia enquanto saberes relevan-

tes para a formação de professores, as

quais, pela compreensão da complexi-

dade da realidade social que viabili-

zam, estarão em condições de contri-

buir para a formação do professor re-

flexivo, actuando ao nível do saber ser.

E AGORA professor?Susana [email protected]

Escola Superior

de Educação de Lisboa

(…) as licenciaturaspara o ensino não registam médias

de acesso particular-mente altas. Assim,temos “bons” alunos

do secundário a frequentar esta escolaporque fica perto de

casa e temos “maus”alunos que não

conseguiram entrarna Universidade e por

isso foram parar aoPolitécnico.

Se conseguirmos ser professores intermulti-culturais, talvez não venhamos a ser, (...) pois

não podemos esquecer que as pessoas que nos jul-gam hoje são fruto de uma escola ditatorial, onde o sa-ber ler, escrever e contar, as ditas pedagogias visíveis,é que eram valorizadas e contestam de alguma formaas pedagogias invisíveis que tentamos implantar actual-mente nas escolas.

Ao tomar posição contra as quotas destinadas aos negros na Universidade de Chicago, que estão a ser alvo de discussão noSupremo Tribunal, o presidente George W. Bush põe em causa as políticas de discriminação positiva instauradas nos anos 60.

Page 18:  · Director: José Paulo Serralheiro ·  apagina@spn.pt ano XII | nº 120 | FEVEREIRO | 2003 · Mensal | Continente e ilhas 2 Euros

18a páginada educaçãofevereiro 2003

verso e reverso

Uma equipa de pesquisa da Univer-sidade japonesa de Gifu descobriuque uma chávena de café diária po-de reduzir para metade o risco decancro de cólon entre as mulheres,informou recentemente o jornal Mai-nichi Shimbun.

A equipa dirigida pelo professorHiroyuki Shimizu acompanhou des-de 1992 a dieta de 30 mil moradoresde Gifu, todos com mais de 35 anose não portadores do cancro de có-

lon. Em 2000, foi diagnosticada adoença em 111 homens e 102 mu-lheres do grupo estudado. Os inves-tigadores dividiram então os partici-pantes em três

categorias: os que não bebiamcafé, os que bebiam menos de umachávena de café por dia e os quebebiam mais de uma chávena decafé por dia.

Depois de avaliar os hábitos dosparticipantes, como fumar ou con-

sumir gordura e álcool, entre outrosfactores de risco, a equipa tentoucalcular a possibilidade de desen-volvimento de cancro do cólon echegou à conclusão que entre asmulheres que tomavam mais de umachávena de café por dia o risco erametade relativamente às que não ofaziam. Quanto aos homens, aindanão existem conclusões válidas quepermitam estabelecer o mesmo tipode comparação, segundo o estudo.

Embora informe que existam pes-quisas anteriores relacionando o ca-fé com um risco menor de contraircancro, o jornal alerta também quesão necessários estudos mais abran-gentes, que envolvam uma análiseindividual dos hábitos de vida de ca-da participante, antes de se concluirque o café reduz efectivamente o ris-co de contrair esta doença.

Fonte: AFP

Café pode reduzir para metade o risco de cancro do cólon entre as mulheres

“A nossa vitória”, disse Lula no dis-

curso do parlatório, “não foi o resulta-

do apenas de uma campanha que

começou em junho do ano passado e

terminou dia 27 de outubro. Antes de

mim, companheiros e companheiras

lutaram. Antes do PT, companheiros

e companheiras morreram neste país

lutando por conquistar a democracia

e as liberdades.[...] Eu não sou o re-

sultado de uma eleição. Eu sou o re-

sultado de uma história. Eu estou

concretizando o sonho de gerações e

gerações que antes de mim tentaram

e não conseguiram”.

Convido o leitor a fazer uma breve

reflexão sobre o significado da vitória

da democracia política de Lula, pro-

curando descobrir as perspectivas

que se abrem para a democracia par-

ticipativa no Brasil, e continuar atento

aos dilemas de uma sociedade capi-

talista que persistem no cenário da

globalização neoliberal.

Emocionados ainda com as ima-

gens da posse de Lula, transmitidas

por todas as televisões, e embalados

todos os dias pelas manchetes de jor-

nais, não tivemos tempo para digerir to-

das as perspectivas políticas, sociais,

econômicas, ideológicas e culturais

que poderão advir da eleição de um tra-

balhador com o perfil de Lula, para a

presidência da república. De acordo

com a sua biógrafa, a cientista política

Denise Paraná, Lula aprendeu a dar um

salto da cultura da pobreza para a cul-

tura da transformação e a acreditar pro-

fundamente na democracia como pos-

sibilidade de transformar a sociedade.

Na minha opinião, esta vitória

abre três perspectivas básicas. Pri-

Gestão Democrática:

AFINAL onde está a escola?

João Baptista [email protected]

Professor da Universidade

Federal Fluminense

meira, um governo voltado para os

direitos e os interesses dos trabalha-

dores e classes populares. Segunda,

melhoria da qualidade dos serviços

públicos. Terceira, uma economia

que cumpra seus deveres sociais e

promova o desenvolvimento do Bra-

sil e da América Latina.

A democracia política não se

transforma em democracia participa-

tiva num passe de mágica, mas é um

processo político, lento, complexo

em permanente construção. Marile-

na Chaui (1) nos lembra que “...A de-

mocracia não é algo que foi inventa-

do certa vez. É reinvenção contínua

da política”. A participação de todos

os setores da sociedade é uma con-

dição fundamental para a transfor-

mação da democracia política em

solta

A vitória de Luiz Inácio Lula da Silva em 27 de outubro de 2002, com 52 milhões de votos, para a presidência da República do Brasil e a ascensão do PT, com uma expressiva bancada

de parlamentares ao Congresso Nacional, constituem os acontecimentos mais importantes da história recente, para a consolidação da democracia política no Brasil e na América Latina.

pergunta: “Se você fosse presidente,

o que faria?” Suas respostas foram

colocadas abaixo de suas fotografias

nas paredes da sala. Os mesmos

alunos conversaram comigo durante

a visita à sua sala de aula, sobre as

consequências sociais da ALCA e

das reformas das leis trabalhistas.

A democracia política não elimina

os dilemas de sociedade capitalista,

principalmente, hoje, no cenário da

globalização neoliberal, a crise das re-

lações entre os Estados ricos e po-

bres. Os efeitos desta crise são as

guerras, a fome instalada em certas

regiões do planeta, o desemprego es-

trutural e os novos tipos de trabalho

escravo. Estes são macro dilemas,

que provocam micro dilemas perma-

nentes na vida cotidiana. Convivemos

com inúmeros dilemas – salários de

fome, pobreza, doenças, estresse.

Não é por acaso que estamos às vés-

peras do Fórum Social Mundial e do

Fórum Econômico Mundial. O primei-

ro discute a democracia entre os po-

vos e o segundo os interesses econô-

micos em disputa.

É como nos ensinou Marx (2); “Os

homens fazem a sua história, mas

não a fazem como querem; não a fa-

zem sob circunstâncias de sua esco-

lha e sim sob aquelas com que se

defrontam diretamente, ligadas e

transmitidas pelo passado”.

2) Chaui, Marilena. In Lefort, Claude. A invençãodemocrática: os limites do totalitarismo. S.Paulo: Brasiliense, 1981.

2) Marx, Karl. O 18 Brumário de Luiz Bonaparte.In Obras Escolhidas, São Paulo, Alfa-Ômega,vol. 1, ncd.

perspectivas que se abrem, dilemas que continuam

democracia participativa.

Os meus estudos sobre gestão

democrática me permitem relacionar

o exercício da democracia política na

escola como o primeiro passo para a

construção da democracia participa-

tiva. As escolas públicas que aderi-

ram ao movimento da gestão demo-

crática estão conseguindo dar um

salto da cultura da pobreza para a

cultura da transformação. Seus diri-

gentes abandonaram a burocracia e

adotaram o diálogo e a participação

como seus caminhos. Entre elas,

duas se destacam, a primeira na ci-

dade do Rio de Janeiro – Escola

Aracy Muniz Freire e a segunda na ci-

dade de Duque de Caxias (RJ) – Es-

cola Barro Branco.

Na primeira, professores, funcioná-

rios e alunos estão produzindo textos

sobre o cotidiano escolar e suas vidas.

Nesta escola, dirigentes e dirigidos

formam um coletivo, cujas decisões

são tomadas em conjunto, com parti-

cipação de todos os segmentos. Não

são os conteúdos que constituem a

principal preocupação, mas a forma-

ção política e cultural. Os alunos são

interessados nas aulas, porque co-

nhecem e gostam de suas professo-

ras. A comunidade encontra sempre a

porta aberta. O centro de estudos é o

espaço onde todos têm assento.

Na segunda, a escola pública mu-

nicipal Barro Branco, da cidade de

Duque de Caxias no Estado do Rio

de Janeiro, constatei a formação de

dirigentes entre os alunos da quarta

série. Durante a campanha eleitoral,

de junho a outubro de 2002, os alu-

nos foram convidados a responder à

Page 19:  · Director: José Paulo Serralheiro ·  apagina@spn.pt ano XII | nº 120 | FEVEREIRO | 2003 · Mensal | Continente e ilhas 2 Euros

quer tipo de tarefa que não fosse aleitura do jornal.

A angústia do jovem contagiou atodos os que trabalhavam à noite. Acoordenadora e o auxiliar de admi-nistração, cada um a cada vez, to-maram a si a tarefa de ensiná-lo aler. Em ambas as ocasiões, quandojá começavam a achar que ele esta-va progredindo, ei-lo que entra emminha sala novamente, com o jornaldebaixo do braço, para comunicarque estava deixando a escola, quenão aprendia mesmo, que era um“cabeça dura”, que ia perder a na-morada, mas que ia desistir. Antes

que eu pudesse responder, virava ascostas e ia embora.

Um belo dia, lá aparecia o jovemde novo, jornal embaixo do braço...Um mês e pouco depois, lá ia eleembora de novo. Essas idas e vin-das se prolongaram bem por unsdois anos, quando, afinal, não só játínhamos avançado na mudança denossas práticas, como ele, também,se dispôs a ter mais paciência co-nosco e, finalmente, aprendeu a ler.E não perdeu a namorada!

Seu desejo era intenso e sua co-brança de imediatez colocava emcheque essas certezas da cultura

19a páginada educaçãofevereiro 2003

verso e reverso

Uma equipa de cientistas canadia-nos anunciou recentemente a des-coberta de um novo método, aplica-do até agora exclusivamente em ra-tos, que permite medir a taxa de cé-lulas responsáveis pela diabetes, oque poderá permitir, no futuro, diag-nosticar precocemente a doença etratar os indivíduos em risco. Se-gundo a equipa do professor Ru-sung Tan, do hospital infantil de Van-couver (Canadá), cujos trabalho foipublicado na revista especializadaJournal of Clinical Investigation, esta

técnica poderia ser igualmente utili-zada na detecção de outras doen-ças do foro imunológico.

No comentário que acompanha apublicação do relatório científico, osprofessores George Eisenbarth eBrian Kotzin, do Centro Barbara Da-vis de estudos sobre a diabetes daUniversidade do Colorado, desta-cam a importância da pesquisa daequipa de Vancouver e acreditamque os mesmos procedimentos po-deriam aumentar a capacidade dediagnóstico precoce da diabetes e,

de forma mais ampla, das doençasauto-imunes.

A diabetes afecta cerca de 17 mi-lhões de pessoas só nos EstadosUnidos - cerca de 150 milhões emtodo o mundo - e constitui a quartacausa de morte neste país. Mais dedois milhões de pessoas sofrem daforma mais grave da doença, a dia-betes insulino-dependente, tambémconhecida pelo nome de diabetesjuvenil ou diabetes de tipo 1.

A diabetes faz com que os glóbu-los brancos do paciente, normal-

mente encarregues de combater asinfecções, actuem contra o próprioorganismo do doente. Os glóbulosbrancos atacam células específicasdo pâncreas, as células beta ou cé-lulas de Langherans, encarregadasde produzir a insulina, o hormónioque transforma os alimentos emenergia. Com o tempo, o número decélulas beta destruídas é tal que oorganismo do doente carece de in-sulina e desenvolve a diabetes.

Fonte: AFP

Novo método de detecção da diabetes

A história a seguir ocorreu numa dasescolas públicas de horário integral,na cidade do Rio de Janeiro, no ho-rário noturno em que funciona oPrograma de Educação Juvenil,destinado a jovens analfabetos ousemi-alfabetizados.

Um jovem, de uns 15 ou 16 anos,não me recordo com certeza, nosprocurara, jornal dobrado embaixodo braço, para se matricular porque«queria muito aprender a ler jornal».Namorava uma sua vizinha que cur-sava a 4ª série em outra escola e es-tava preocupado com o fato de queela, ao ir para a série seguinte, co-nheceria meninos “mais adiantados”,“mais informados”, com “mais co-nhecimentos” e que, talvez por isso,não quisesse mais namorá-lo. Assim,resolvera aprender a ler para se man-ter atualizado através da leitura dojornal. Segundo sua percepção, lerjornal diariamente seria uma formade manter-se informado e atualizadopodendo, portanto, estabelecer umaconversação com a namorada capazde se igualar ao tipo de conversasque a mesma teria com seus colegasde escola, vistos todos como possí-veis e ameaçadores rivais.

Passado um mês, ou um poucomais, entrou ele em nossa sala e di-rigindo-se a mim, abriu o jornal e memostrou, com a voz embargada,que ainda não conseguia lê-lo. Con-versei com ele, tentando fazê-lo en-tender que o processo não se davade uma hora para outra, que, comcerteza, algumas palavras ele jáconseguiria identificar, mas nãohouve jeito. Ele sabia que não sabia.Chamei a coordenadora do progra-ma e a professora da turma para meinteirar do que acontecia e ambasforam unânimes em afirmar que,apesar do esforço por ele demons-trado, se recusava a realizar qual-

FORA da escolatambém se aprendeJoanir Gomes de AzevedoFaculdade de Educação

da Universidade Federal

Fluminense, UFF, Brasil

solta

AlfabetizaçãoUm jovem, de uns 15 ou 16 anos, nos procurara,

jornal dobrado embaixo do braço, porque «queria muito aprender a ler jornal». Namorava uma sua vizinha que cursava a 4ª série em outra escola e estava preocupado com o fato de que ela, ao ir para a série seguinte, conheceria meninos “mais adiantados”,“mais informados”, com “mais conhecimentos” e que,

talvez por isso, não quisesse mais namorá-lo.

escolar. O envolvimento de sujeitosque desempenhavam outras fun-ções na escola foi-se dando comoforma de responder a uma situaçãoque a todos incomodava. Ninguémqueria que ele perdesse a namora-da; ninguém queria que a escolafosse responsável por isto. E, cadaum tentava de um jeito diferente. Odesejo dele mobilizou nosso desejode ajudá-lo. A última a ser mobiliza-da foi a própria professora da turma.Quando isto ocorreu, sentiu-se ca-paz de abandonar a segurança docaminho já conhecido e partir parao que de fato interessava, não só aele, mas aos demais, trilhando umoutro caminho, com todas as inse-guranças que um novo percursonos proporciona. Suas aulas torna-ram-se mais vivas, promovendodiscussões sobre fatos que os alu-nos demonstravam curiosidade. Anecessária paciência e persistên-cia para decodificar o código letra-do foram sendo conquistadas namedida em que assuntos da atuali-dade eram também discutidos emaula, ampliando e aprofundandosaberes.

A tendência à rotina, à repetiçãodos mesmos passos, das mesmasetapas, ainda que obtendo resulta-dos adversos, pode estar presa ànão identificação de quais são osdesejos de nossos estudantes. Oque querem? Para que desejamaprender a ler? O que pretendem fa-zer com a leitura e a escrita? O queelas podem lhes proporcionar? Sãoperguntas que podem nos dar pis-tas para examinarmos até que pon-to esses múltiplos desejos se en-contram e se confrontam em nossassalas de aula; e nos encorajam aabandonar nossas muitas certezas,iniciando a difícil trajetória por «ma-res nunca dantes navegados».

© is

to é

encontro ou confronto de desejos?

Page 20:  · Director: José Paulo Serralheiro ·  apagina@spn.pt ano XII | nº 120 | FEVEREIRO | 2003 · Mensal | Continente e ilhas 2 Euros

Éramos gente comumque, naquele contexto, sedefrontava com um desa-fio incontornável, o de en-frentar os exames finais da responsabilidade de algunstécnicos zelosos que o próprio Ministério mandatara parao efeito. Um desafio que se ia tornando cada vez mais an-

gustiante à medida que oano avançava, obrigando-nos a constatar que osentido daquele empreen-

dimento dependia menos do sentido e do significado dasaprendizagens realizadas do que da aprovação que seobtinha, ou não, numa prova derradeira e decisiva.

20a páginada educaçãofevereiro 2003

verso e reverso

A Universidade Livre de Berlim ini-ciou o recrutamento de vinte pes-soas que se sujeitarão a examesmédicos no âmbito de um programacujo objectivo é a preparação deuma futura viagem a Marte, infor-mou recentemente aquela institui-ção. Os vinte elementos que foremescolhidos deverão ficar deitados

durante oito semanas em depen-dências da clínica universitária, on-de serão observados os efeitos dorepouso obrigatório.

Segundo os investigadores, o es-tado físico dos astronautas quandovoltam do espaço é semelhante aodos pacientes que ficam muito tem-po na cama. A circulação do san-

gue, a atrofia muscular e a resistên-cia dos ossos serão estudados natentativa de criar métodos apropria-dos de treino. Cada "cobaia" rece-berá 5.000 euros pela participação.Este estudo, que deverá começar jáeste mês, será conduzido pelo Cen-tro berlinense de pesquisa musculare osteológica (ZMK), em colabora-

ção com a Agência Espacial Euro-peia.

Os cientistas acreditam que umprimeiro vôo tripulado a Marte, pla-neta do nosso sistema solar situadoa 55 milhões de quilómetros da Ter-ra, poderá ter lugar já em 2015.

Fonte: AFP

Universidade de Berlim recruta "cobaias" para viagem a Marte

Tínhamos trabalhado, noite apósnoite, a prepararmo-nos para aque-le dia. O quadro negro no alpendre,os paus de giz nas mãos e as quatroou cinco garrafas de Cicer, com pa-vios acesos mergulhados em petró-leo, a iluminar em círculo a escuri-dão de Nhala. As contas de dividireram o seu ponto fraco, as opera-ções que incluíssem fracções porvezes confundiam-no e a leitura dosnúmeros decimais nem sempre eratão bem sucedida como seria dese-jável. Para piorar as coisas, as rela-ções com o Júlio, o professor deMatemática, não eram, na altura, asmelhores. Situação que acabou porjustificar a minha subtil entrada emcena, como responsável por um dosgrupos de alunos que necessitavade apoio pedagógico acrescidonessa disciplina. Buli Sané estava,obviamente, incluído nesse grupo.

Era um dos muitos alunos daque-la escola-internato que o Ministérioda Saúde da Guiné-Bissau tutelava.Homens e mulheres que, como so-corristas, tinham sido combatentesdo PAIGC durante a guerra colonial eque agora se preparavam, ali, paraingressarem na escola de enferma-gem de Bolama. Vivi e trabalhei comeles durante um ano. Um ano intensoe único, difícil, numa escola diferenteque se caracterizava mais pela am-plitude e a diversidade dos momen-tos de encontro, pela partilha de umprojecto que entendíamos como co-mum, do que propriamente pela ex-celência das nossas práticas peda-gógicas ou tão pouco pelos resulta-dos académicos brilhantes obtidospor aqueles alunos. Éramos gentecomum que, naquele contexto, sedefrontava com um desafio incon-tornável, o de enfrentar os examesfinais da responsabilidade de algunstécnicos zelosos que o próprio Mi-nistério mandatara para o efeito.

DISCURSO directoAriana Cosme

Rui [email protected]

Universidade do Porto

solta

E o dia do exame oral chegou.Ouvi o examinador chamar pelo no-me de Buli Sané. O mesmo Buli Sa-né inquieto que, na noite anterior, meconfessava o medo que o assolavaquando era obrigado a enfrentar oalgoritmo de uma divisão. Vi-o sen-tar-se, responder às primeiras ques-tões e ler os números que o profes-sor tinha escrito no quadro. Quandose levantou para resolver uma contade dividir com três cruéis algarismosno divisor levantei-me e foi já encos-tado à parede, no fundo da sala,que, a pouco e pouco, fui reconhe-cendo todos os passos e os truquesque havíamos meticulosamente en-saiado nas semanas anteriores. Nema maldita prova dos nove fora dis-pensada da exibição daquele buro-crata investido do poder de exami-nar. Agora no entanto só faltava ditaro problema. Ditou-o à velocidade daescrita que o Buli imprimia ao giz tra-çando as letras no quadro. Até se fa-zer silêncio. Um silêncio longo que,mesmo sem a gravata de elástico domeu exame da 4ª classe, me esga-nava o pescoço naquela manhãequatorial desse Julho de 82. Cum-prindo o guião estipulado, vi-o subli-nhar correctamente, no enunciadodo problema, a informação relevantee, no lado esquerdo superior do qua-dro, enunciar a operação aritméticaque tinha que resolver para respon-der à questão que lhe era colocada.Mais uma divisão que ele resolveu apreceito no lado direito do espaçoque lhe restava. Faltava a resposta,por escrito, que não tardou. Sem umerro, longa, formal e completa.

O abraço longo e festivo que nosuniu no terreiro da escola é o últimogesto dele que a minha memória con-serva. Um gesto que, hoje sei, explicamuitos outros gestos. Um gesto que,também sei, muitos outros professo-res poderiam evocar como seu.

Um desafio que se ia tornando cadavez mais angustiante à medida queo ano avançava, obrigando-nos aconstatar que o sentido daqueleempreendimento dependia menosdo sentido e do significado dasaprendizagens realizadas do que daaprovação que se obtinha, ou não,numa prova derradeira e decisiva. Oafastamento das famílias, que a es-

cassez de dinheiro e de transportesnão permitia visitar ao longo do ano,os muitos dias do arroz com arrozou o cansaço das aulas que o pesodos anos agravava não seriam es-pantados, desta vez, com a resigna-ção de um Djitu ka tem, se à frentedo nome, na pauta, o indesejávelveredicto estivesse anunciado avermelho.

Quando se levantou para resolver uma conta de dividir com três cruéis al-garismos no divisor levantei-me e foi já encostado à parede, no fundo dasala, que, a pouco e pouco, fui reconhecendo todos os passos e os tru-ques que havíamos meticulosamente ensaiado nas semanas anteriores.

Buli Sané

© is

to é

Page 21:  · Director: José Paulo Serralheiro ·  apagina@spn.pt ano XII | nº 120 | FEVEREIRO | 2003 · Mensal | Continente e ilhas 2 Euros

21a páginada educaçãofevereiro 2003

verso e reverso

solta

Uma equipa internacional de radioas-trónomos mediu pela primeira vez avelocidade de propagação da forçada gravidade, confirmando um dado,até agora hipotético, teorizado por Al-bert Einstein em 1916. "Newton pen-sava que a força da gravidade fosseinstantânea e Einstein supunha queela se movimentava à velocidade daluz, mas até agora ninguém a tinhamedido", refere Serguei Kopeikin,professor de física e de astronomiada Universidade de Missouri-Colum-bia, nos Estados Unidos.

Na sua teoria geral da relativida-de, Einstein postulou que a veloci-dade da gravidade era igual à velo-cidade da luz, ou seja, cerca de300.000 km/seg (no vácuo). Kopei-kin, que dirigiu a equipa de astróno-mos e apresentou o resultado dosseus trabalhos no encontro anual daSociedade da Astronomia de Esta-

dos Unidos, assegura que a veloci-dade da gravidade é de 1,06 vezes avelocidade da luz.

A investigação consistiu em me-dir com precisão a distância angularque separa os quasars, astros de as-pecto estelar de grande luminosida-de e situados em galáxias distantes.Para isso, os astrónomos aproveita-ram uma alineação visual excepcio-nal em 8 de setembro entre o plane-ta Júpiter e um destes quasars.

A hipótese formulada pelos in-vestigadores era de que a gravidadede Júpiter se deveria a uma distân-cia mínima em relação a este qua-sar. Este deslocamento, observadona forma de uma rápida deformação

das ondas de rádio emitidas peloquasar, dependia da velocidade depropagação da força da gravidade.

Devido à falta de instrumentos deobservação suficientemente sensí-veis, ninguém ainda tinha consegui-do comprovar a teoria de Einsteinsobre a velocidade de propagaçãoda gravidade. Para fazer esta des-coberta, a equipa de astrónomos re-correu à radiointerferometria, quecombina diversos radiotelescópiossobre uma vasta distância para ob-ter uma imagem em conjunto.

"Determinamos que a velocidadede propagação da gravidade é igual àda velocidade da luz com uma exati-dão de 20%", precisou o astrónomo

Ed Folamont do Observatório Nacio-nal de radioastronomia (National Ra-dio Astronomy Observatory, NRAO).A ser confirmada, esta descoberta,muito próxima da teoria de Einstein,colocará em xeque as teorias segun-do as quais a gravidade exerce suaforça de modo instantâneo ou infinito.

A gravidade é a força exercida porum astro sobre um corpo. Sobre aTerra, acredita-se que a gravidadeseja responsável por manter as pes-soas e os objectos no chão. Na es-cala do Sistema Solar, a gravidadedo Sol atrai os planetas e fá-los girarem seu redor. Sendo assim, se nãoexistisse o Sol, a Terra seguiria suatrajectória como se nada aconteces-se durante pelo menos oito minutose meio, ou seja, o tempo que a gravi-dade do Sol demora a atingir a Terra.

Fonte: AFP

Einstein tinha razão sobre a velocidade da gravidade

Mais uma vez se estão a realizar, simul-

taneamente, o Fórum Económico Mun-

dial (FEM) em Davos- Suíça e o III Fó-

rum Social Mundial (FSM) em Porto

Alegre – Brasil. No primeiro fórum, os lí-

deres do chamado primeiro mundo re-

flectem sobre problemas económicos e

sociais sendo estes dominantemente

equacionados na óptica da racionali-

dade económica neoliberal e da globa-

lização que incorpora no seu domínio

os interesses das empresas transna-

cionais e das elites políticas. À seme-

lhança do que tem acontecido nos últi-

mos fórums, provavelmente, o grande

debate centrar-se-á na procura de so-

luções para a crise do capitalismo de

onde surgirão, entre outras estratégias,

medidas que reduzirão a intervenção

social do Estado em diversas áreas e

actividades. No segundo fórum, reúne-

se um grupo heterogéneo de persona-

lidades como líderes de ONG, líderes

de partidos políticos e de movimentos

sociais, sindicalistas, intelectuais, nu-

ma tentativa de chamar à atenção ao

mundo da necessidade de se construir

uma nova ordem económica mundial

mais justa que seja uma alternativa à

que impera no mundo. A simultaneida-

de temporal destes eventos é intencio-

nal e este evento, ao contrário do que

arautos do neoliberalismo fazem crer,

tem o grande mérito de demonstrar

que a discussão política entre as dife-

rentes formas de organização econó-

mica, entre diferentes formas de distri-

buição dos recursos, entre diferentes

visões sobre produção e consumo e

entre diferentes definições do social e

do político não está esgotada.

Vivemos momentos de grande défice de

discussão política. A “onda” neoliberal

que se foi disseminando pelos países

centrais instrumentalizou um conjunto

de valores, práticas, sujeitos, instâncias

que foi despolitizando os conflitos so-

ciais e desresponsabilizando a interven-

ção do Estado na resposta aos proble-

Davos, Porto Alegree a expansão do terceiro sector

LUGARES da educaçãoMaria Emília [email protected]

Instituto de Educação

e Psicologia da Universi-

dade do Minho

Objecto de políticas contraditórias, só muito raramente e

de forma intermitente conhecendo algum protagonismo,

a educação de adultos representa hoje o sector mais crí-

tico e mais débil, por referência a um sistema público de

educação ao longo da vida em Portugal.

A “onda” neoliberal que se foi disseminando pelos países centraisinstrumentalizou um conjunto de valores, práticas, sujeitos, instân-cias que foi despolitizando os conflitos sociais e desresponsabilizan-do a intervenção do Estado na resposta aos problemas sociais (…) emmuitos países a nova modalidade de resposta à questão social tem si-do a retirada paulatina das políticas sociais da esfera do Estado e asua transferência para o mercado e/ou para as organizações da socie-dade civil, o chamado terceiro sector.

mas sociais. De facto, temos observado

em muitos países que a nova modalida-

de de resposta à questão social tem si-

do a retirada paulatina das políticas so-

ciais da esfera do Estado e a sua trans-

ferência para o mercado e/ou para as or-

ganizações da sociedade civil, o chama-

do terceiro sector. As organizações do

terceiro sector, segundo posições mais

críticas, transformam a sociedade civil

em meio para a reestruturação do capi-

tal, particularmente no que se refere à

reforma da segurança social, dos siste-

mas de saúde e de educação. A funcio-

nalidade do terceiro sector ao neolibera-

lismo consiste em torná-lo instrumento

para atingir os seus objectivos. Associa-

do ao discurso ideológico da virtualida-

de do terceiro sector tem surgido a de-

fesa da solidariedade. Sendo este um

dos grandes valores da modernidade,

em torno do qual há, aparentemente,

consenso universal, com alguma facili-

dade se torna “presa fácil” na mão da-

queles que comandam o mundo. Numa

era de despolitização dos problemas

sociais, os factores estruturais que ge-

ram as rupturas sociais são mais difíceis

de identificar pelos cidadãos, o que per-

mite um trabalho de dominação ideoló-

gica que transforma o valor da solidarie-

dade numa estratégia de responsabili-

zação individual dos cidadãos e da so-

ciedade civil.

Neste cenário, o que pode significar o

FSM que se está a realizar em Porto Ale-

gre? Não é nele que estão representa-

das muitas das ONG mundiais? Não é

neste fórum que se tem defendido a ex-

pansão das organizações da sociedade

civil e o reforço dos movimentos sociais?

Afinal o que substancia “a alternativa”

tão apregoada? Alguns elementos, quer

dos discursos quer das práticas, suge-

rem algumas diferenças. Deixarei para a

próxima oportunidade que me derem

para escrever neste espaço a reflexão

em torno destas diferenças e a pertinên-

cia deste debate para a educação.

© is

to é

Page 22:  · Director: José Paulo Serralheiro ·  apagina@spn.pt ano XII | nº 120 | FEVEREIRO | 2003 · Mensal | Continente e ilhas 2 Euros

22a páginada educaçãofevereiro 2003

verso e reverso

Os restos de um naufrágio ocorridohá quase 2500 anos, o mais antigodos registados no Mar Negro, estão aser explorados em frente à costa daBulgária por um grupo de cientistasamericanos, entre eles um professorde antropologia da Universidade Es-tadual da Flórida (FSU). O navio, pro-vavelmente de carácter comercial, te-ria entre 2280 e 2490 anos, segundo

estudos feitos com carbono emespinhas de peixes encontradas emvasos de argila que se encontravama bordo, informou a equipa da FSU.

"Estes são os primeiros vestígiosde um navio que nos dão provas di-rectas da existência de comércionum período importante do antigomundo grego", segundo refereCheryl Ward, professora da FSU queparticipa nesta exploração, junta-mente com o pesquisador sub-aquático Robert Ballard, da NationalGeographic Society.

Os restos do navio, que estão auma profundidade de 275 pés (82metros), foram encontrados duranteuma expedição no verão de 2002.

Segundo Ward, a investigação pros-seguirá no próximo verão. "Nessaaltura ficaremos a saber mais sobreo comércio, as técnicas e o tipo depessoas que estava a bordo".

Apesar de a estrutura de madeirado barco ter sido praticamente "de-vorada" pelos organismos mari-nhos, algumas partes ainda estarãoenterradas. A única parte visível donaufrágio é uma série de ânforas uti-lizadas pelos mercadores gregos eromanos. As ânforas continhampescado e ainda não se sabe se se

destinavam ao consumo da tripula-ção ou ao comércio. Os recipientestêm um desenho característico dalocalidade de Sinop (na costa daTurquia, sobre o Mar Negro), de on-de supostamente partiu o navio.

"Esta descoberta proporcionaaos historiadores uma visão inéditade um naufrágio numa época chavedo comércio no Mar Negro, conhe-cido até agora apenas por registosescritos", assegura Ballard.

Fonte: AFPsolta

É um facto hoje adquirido e incon-troverso que a avaliação, tanto emteoria como na prática, há muito jáultrapassou os limites da sala de au-la, onde timidamente ensaiou os pri-meiros passos como matéria cientí-fica sob o “arrevesado” nome dedocimologia - quem se lembra dis-so? - para se instalar em gabinetesministeriais poderosamente instru-mentados (e instrumentadores) don-de faz emanar as mais decisivasmedidas sobre o futuro das escolas,que o mesmo é dizer, sobre o futurode gerações inteiras.

O que é propriamente novo, to-davia, na mensagem que está sub-jacente ao documento em referên-cia, é o grau de assertividade e deincondicionalidade universalmentepositiva que caracteriza o discursodas novas disposições legislativas,como se a matéria de avaliação ti-vesse perdido, de repente, o estatu-to problemático e constitutivamenteviscoso que a caracteriza para assu-mir o carácter de padrão inquestio-nável de todas as medidas políticasque, enquanto tais, são por esta viacaucionadas sem mais delongas.

Esta indissociabilidade entre ocarácter assertivo do discurso e as

FORMAÇÃO e desempenho

Manuel MatosUniversidade do Porto

características do objecto a que odiscurso se reporta, ultrapassandosem a menor hesitação a complexi-dade crónica que habita a realidadeem questão, não significa, obvia-mente, nenhuma forma de ingenui-dade científica, nem tão pouco a ex-pressão da perda de alguma sensi-bilidade crítica. Nenhuma destasduas preocupações parece preten-der enformar esta modalidade de in-tervenção na realidade educativaque a Lei do Sistema de Avaliaçãorepresenta. Pelo contrário, umapostura assumidamente político-administrativa, directa e imperante,configura a opção consagrada.

A adopção do paradigma avalia-tivo universal como forma de regularo sistema e, mais do que isso, de olegitimar, já não pressupõe a suacaução científica, como foi a estra-tégia relativamente em uso ao longoda década de oitenta. O que então

estaria em causa – a afirmação e aautonomia dos profissionais de en-sino face ao exercício do poder po-lítico – justificaria o recurso às refe-rências científico-técnicas comofundamento da negociação e da de-finição do estatuto profissional.

No momento que passa, a legiti-mação das decisões em matéria deeducação, mais do que ao mundointerior da classe profissional dosprofessores e educadores, é impu-tada aos mecanismos do mercado,isto é, aos valores de troca na suarelação com a produção, ou, talvezmelhor, com a produtividade, o quecoloca o problema da legitimidadeda avaliação no exterior da escola.Dada esta relação como determi-nante do sentido da educação, aavaliação torna-se crucial não ape-nas para o funcionamento do siste-ma, como para os seus utentes di-rectos, alunos, pais e professores. É

nestes termos que “o sistema deavaliação, enquanto instrumentocentral de definição de políticaseducativas, prossegue, de formasistemática e permanente, os objec-tivos que lhe estão adstritos” (In do-cumento em referência).

Este carácter “sistemático e per-manente”, que torna o processo deavaliação idealmente copresente atodos as actividades, iniciativas eagentes, envolvendo todos os níveisdo sistema (nacional, local regional),implicando modalidades auto-exer-cidas no plano interno ou exercidasexternamente através de agentesespecializados, perfila-se como adimensão estruturante de todo sis-tema de ensino não só pelas valên-cias simbólicas que veicula (um sis-tema sob avaliação permanente in-duz uma cultura vivida como perma-nentemente deficitária e, logo, inse-gura), mas também materiais e insti-tucionais, já que determinará a exis-tência de figuras e funções que al-terarão significativamente o quoti-diano das escolas. Os reflexos so-bre os processos e estilos de for-mação não se farão esperar, sobre-tudo se se aceitar que “o mercadonão dorme”.

Cientistas começam a explorar restos de um naufrágio com 2500 anos

Avaliação e FormaçãoA leitura, se possível cuidada e reflectida, do texto que dá forma à Lei do Sistema de Avaliação

da Educação do Ensino Não Superior (Lei nº 31/2002 de 20 de Dezembro) pode ser um bom

ponto de partida para a compreensão do modelo de funcionamento que vai caracterizar o sistema

educativo português no futuro próximo. Se é certo que a doutrina aí expendida não é propriamente

nova no que respeita aos princípios, objectivos e metodologias de desenvolvimento, já o mesmo não se

poderá dizer quanto à forma como eles são afirmados, nem quanto aos domínios a que são aplicados,

nem quanto às finalidades e funções que lhes estão reservadas.

No momento que passa, a legitimação das decisões em matéria de educação, mais do que ao mundo interior da classe

profissional dos professores e educadores, é imputada aos mecanismosdo mercado, isto é, aos valores de troca na sua relação com

a produção, ou, talvez melhor, com a produtividade, o que coloca oproblema da legitimidade da avaliação no exterior da escola.

Page 23:  · Director: José Paulo Serralheiro ·  apagina@spn.pt ano XII | nº 120 | FEVEREIRO | 2003 · Mensal | Continente e ilhas 2 Euros

23a páginada educaçãofevereiro 2003

verso e reverso

CARTA de mulheresManuela CoelhoEscola de Ensino Artístico

Soares dos Reis, Porto

Penso muitas vezes em vocês,colegas jovens, em princípio decarreira. Sermos professores obri-ga-nos – julgo que mais do que aqualquer outro profissional – apormo-nos na pele do outro, sejaele colega, aluno, pai ou mãe. Éum exercício fundamental parapodermos avaliar com algumajusteza a imensidade de situaçõesproblemáticas com que diaria-mente temos que lidar e a que te-mos de dar resposta, sem lame-chice, com rigor e com dignidade.

Vocês, que nasceram já numpaís democrático, não experimen-taram o medo nem a coragem deexprimir uma opinião ou assumiruma atitude fora do senso co-mum. Pelo menos é essa a expe-riência que tenho através das su-cessivas gerações de alunos queconheci nas minhas aulas, ondese abordam sem peias os maisvariados temas da actualidade. Eporque a partir de Abril de 74 po-díamos falar de forma livre é quenós, professores, tínhamos a imen-sa preocupação de não inculcarjuízos de valor, mas sim os valoreseles mesmos; de incentivar a pro-cura de informação, a reflexão, oraciocínio honesto e sem precon-ceito; de não os deixarmos insta-lar-se comodamente na imobilida-de maniqueísta, em que tudo oque vem dos ditos bons é bom etudo o que vem dos ditos maus émau. Queríamos que cada um dosnossos alunos construísse de for-ma livre e lúcida o seu código éti-co, desenhasse o seu programade vida e encontrasse o seu pró-prio caminho. Em suma, que fos-se um cidadão responsável, cons-ciente e solidário.

Carta às minhas e aos meus colegas mais jovens

Vocês foram nossos alunos e,pelos profissionais que de entre vósconheço, verifico que o sentido daresponsabilidade está bem presenteno cuidado com que preparam asaulas e organizam actividades di-dáctico- pedagógicas, com que ob-servam a evolução de cada aluno,com que procuram identificar e re-solver problemas não só de aprendi-zagem mas também de atitude pe-rante a escola e a comunidade. Veri-fico o vosso interesse em ouvir anossa opinião, dos que estamos jáperto da reforma, e só espero que osaldo das nossas discussões sejatão positivo para vocês como é pa-ra nós, que quem lucrará serão osnossos alunos e, com eles, a socie-dade que irão construir. Será puracoincidência que a minha escola e omeu grupo sejam tão privilegiadosque só recebam a nata dos jovensprofessores? E será sorte minha sótravar conhecimento com colegasque me fazem continuar a acreditarque vale a pena o nosso trabalho?

Sei que a vida para a maioria devocês é difícil. Muitas vezes longede casa e da família – tendo de de-cidir entre fazer 200 Km por dia,com gasolina e portagens, ou pagaruma segunda renda, e sem que es-sas despesas possam sequer serdeclaradas para IRS – têm ainda deouvir os nossos governantes e ospapagaios de serviço insinuar queos funcionários públicos ganham demais para o que trabalham; vocêsque, nem é preciso fazer contas, pa-gam para trabalhar! Pouca gente sa-be – e os que sabendo alinham nocoro são perversos – que vocês têmde assumir nessas escolas a leccio-nação de níveis de preparação damáxima exigência; que são perma-nentemente postos à prova pelosmais temíveis, embora também ge-ralmente mais justos avaliadoresque são os alunos; que têm de sercriativos para os interessarem commatérias imprescindíveis à sua com-preensão do mundo e dos fenóme-nos da vida; que têm de ser credí-veis para se imporem, pois pelaaparência é fácil que vos tomem co-mo um deles; que partilham dupla-mente a ansiedade dos alunos pe-rante os resultados que lhes permi-

tem o acesso às suas vias de opção.Além disso, quem valoriza o factode frequentemente interpretarempapéis de pai, de mãe, de irmãomais velho, de terapeuta familiar?

Cada vez se exige mais dos pro-fessores. E não vale a pena pensar-mos em reconhecimento se não lu-tarmos por ele. Vocês, a meu ver,porque pertencem a gerações pou-co politizadas, não tomam cons-ciência do vosso valor social. Seique continuam a educar os vossosalunos para a verdade, para a justi-ça e para a paz. Mas um dia eles te-rão de competir fora da escola, ecomo é que vocês os preparam pa-ra ver premiados os que mais gros-seiramente achincalham esses valo-res, se não admitirem que a realida-de é essa? Dizem-me que a vossaluta passa sobretudo pelo interior devocês mesmos e que o percurso élongo. Mas não será assim que mui-tas vezes se divorciam das grandesquestões, de cuja resposta dependeo destino da humanidade? É issoque neste momento se joga. Valemais a vida humana na sua dignida-de ou os interesses mesquinhos dealguns homens que a história segu-ramente virá a classificar de loucos,como sempre faz mais tarde oumais cedo ? O delírio do poder éuma doença perigosa e ainda por ci-ma contagiosa. Como nas demais,os mais vulneráveis são os mais in-seguros, os mais débeis, os de me-nos defesas e os que são herdeirosgenéticos da patologia ou de outraafim. Merecem ser estudados e tra-tados. Mas entretanto, cuidado comeles. São peritos na sedução, namanipulação, na batota, e os maisincautos são facilmente enredadosnuma causa com a qual nada têm aver. Não é só a SIDA que precisa deprevenção. O delírio do poder, ousodizer, mais ainda, porque é ele queestá na origem de tudo. Pois não foiele o pecado original?

Por isso, queridos colegas, étempo de alerta. Não se deixem in-timidar pelos magos da economiaque consultam as constelaçõesnuméricas transnacionais e nosaterrorizam com sentenças de ine-vitabilidade. Exijam explicaçõesclaras. Nunca lhes aconteceu pedira um desses magos que fossemais claro, e ele meter os pés pe-las mãos e mudar de assunto, ouescudar-se com palavreado pseu-do-técnico para os fazer crer quesão vocês que não estão à alturade Sua Sumidade? Não vão nisso.Vocês sabem bem que o discursodo verdadeiro cientista é cristalino.Nem se deixem impressionar pelosnovos eufemismos de guerras pro-filácticas; terapêuticas e cirúrgicas.Palavreado intelectualoide paraencandear papalvos com a visãosalvadora do hospital e encami-nhá-los para a morgue. Comoiriam vocês repreender um edu-cando que partisse a cabeça docolega à pedrada só porque as pe-dras estavam ali e podiam ser usa-das pelo outro contra ele? Não sepode aceitar passivamente o quenão faz sentido. Não receiem dizerque não percebem o que não per-cebem. É que no mundo real, talcomo na fábula, o rei vai nu.

© is

to é

Page 24:  · Director: José Paulo Serralheiro ·  apagina@spn.pt ano XII | nº 120 | FEVEREIRO | 2003 · Mensal | Continente e ilhas 2 Euros

24a páginada educaçãofevereiro 2003

reportagem

A Europa dos Vinte e Cinco

Quando chegaram a Portugal fica-ram surpreendidas com o poucoque os portugueses conheciam daRepública Checa. Nadia Haicenova,23 anos, assegura – olhos arregala-dos – que até lhe perguntaram se oseu país ficava perto da RepúblicaDominicana. O espanto surge quan-do a ouvimos falar português. Não épara menos. Ela e Kreta Mrazíkova,24 anos, frequentam o 5º ano de Es-panhol/ Português na Universidadede Olomouc. O interesse pelos idio-mas é bastante pragmático. Com osolhos postos na União Europeia(UE), esperam que a adesão da Re-pública Checa, prevista para 2004,suscite mais oportunidades de em-prego no estrangeiro. Sobretudo pa-ra quem, como elas, domine “lín-guas pouco conhecidas”.

De facto, os Quinze são vistoscomo um destino de fuga aos bai-xos salários praticados no seu país,onde o ordenado mínimo ronda os200 euros. Para Nadia a origem des-te problema está no facto de nãohaver uma correspondência entre acategoria profissional e o salário. Osexemplos sucedem-se: “Um médi-co, um professor ou um arquitectorecém-licenciado ganha 6 mil co-roas (cerca de 200 euros) por mês”,insurge-se Kreta. Para alterar estasituação, as checas dizem contarcom a intervenção da UE.

Mas há quem não deseje qual-quer tipo de ingerência. Os mesmosque temem que a UE proíba a pro-dução tradicional do queijo típico deOlomouc e da aguardente da Morá-

via por esta não obedecer às nor-mas comunitárias. A iminência daproibição está a gerar um sentimen-to de antipatia em relação à UE. E aservir de argumento aos partidáriosdo ‘não’ à adesão. Facto que Kretadiz compreender, apesar de se mos-trar a favor da entrada da RepúblicaCheca para a UE. É que a importân-cia destes dois produtos, mais doque económica, é cultural.“A aguar-dente é uma bebida muito forte[com valores de álcool muito eleva-dos] que é produzida em cada famí-lia da aldeia e é também é usada co-mo medicamento”, explica.

Geograficamente um pouco maisabaixo, na Hungria, a adesão à UE ébem-vinda, mas as vozes discor-dantes têm subido de tom. O moti-vo: receio da especulação imobiliá-ria. Kristian Molnar, 25 anos, estu-dante do 5º ano de Relações Inter-nacionais da Universidade de Eco-nomia e Administração Pública deBudapeste, conhece bem as conse-quências desta prática no Algarve eem Palma de Maiorca, Espanha. Porisso compreende os seus compa-triotas. “Os húngaros têm medo queos cidadãos dos países ocidentaischeguem ao seu país e comecem acomprar as casas, as propriedadese as terras que agora não custamquase nada, mas que depois pode-rão vir a representar valores incom-portáveis para qualquer húngaro.”Face a este cenário, Kristian acredi-ta que se o seu governo não puderevitar uma provável especulação, os70 a 80% da população que semostram favoráveis à adesão pos-sam deixar de o ser. Até porque, ex-

plica, “os partidos de direita estão aaproveitar esta questão para dividira opinião pública.”

Ainda assim, a opinião de Kristianestá formada. Fervoroso adepto daUE, este aspirante a diplomata querver os fundos monetários aplicadosna construção de auto-estradas ena melhoria do sistema de saúdepúblico, onde se incluem as estrutu-ras hospitalares, mas também dosordenados dos médicos. Este últi-mo desejo tem uma explicação in-sólita. É que na Hungria, conta Kris-tian, “o salário oficial de um médicoexperiente ronda os 500 euros (umrecém-licenciado ganha o saláriomínimo, cerca de 220 euros). Por is-so, os doentes têm de lhes dar um‘apoio’ monetário extra.” A históriaganha contornos obscuros. “Não éobrigatório, mas quase! Quem nãoquer ser mal tratado no hospital temde ‘apoiar’ o médico.” O preçáriovaria. “Há uma taxa convenienteque ronda os 20/30 euros. E depoisdepende do tipo de operação. Sefor grave a taxa pode atingir os100/200 euros.” Logo, se a UE“apoiar” os médicos húngaros, osdoentes agradecem.

Apesar da expectativa criada emtorno da adesão da Hungria, Kris-tian reconhece que o país pode vir asofrer com o facto de as suas fron-teiras virem a coincidir com as daUnião. Isto caso a Roménia e a Bul-gária fracassem os seus planos deadesão em 2007. Um cenário queKristian acredita ser o mais prová-vel, dada a pobreza de ambos. Seisso acontecer “acho que vai haveruma grande vaga de emigração pro-

Fizeram as malas e deixaram a casa para trás. Vieram estudar para Portugal. São todos europeus. Uns gozam o que, na sua

opinião, a União Europeia de melhor lhes proporciona: a mobilidade. Outros aspiram às mesmas oportunidades, mas para já

ainda precisam de vistos para residir no espaço Schengen. As opiniões destes estudantes espelham o puzzle multicultural da

Europa. E deixam antever o modo como se encaixarão as peças no futuro.

Estados Unidos da Europa(A metamorfose dos Quinze para os Vinte e Cinco)

© is

to é

Page 25:  · Director: José Paulo Serralheiro ·  apagina@spn.pt ano XII | nº 120 | FEVEREIRO | 2003 · Mensal | Continente e ilhas 2 Euros

25a páginada educaçãofevereiro 2003

reportagem

ceiras aos países da Europa Centrale Oriental começaram em 1989, lo-go após a queda dos regimes co-munistas, através do programaPHARE. Para o período de 2000 a2006, este programa prevê uma aju-da de 10 mil milhões de euros. Ac-tualmente, os apoios revertem paratreze beneficiários: Albânia, Bósnia– Herzegovina, Bulgária, Estónia,ex-República Jugoslava da Mace-dónia, Hungria, Letónia, Lituânia,Polónia, Roménia, República Che-ca, Eslováquia e Eslovénia.

Quem não teme que a factura doalargamento dos Quinze para osVinte e Cinco saia do bolso do seupaís é Tina Van den Brocck, 21anos. “A Bélgica [país contribuinte]deu mais do que recebeu da UE, porisso a adesão dos novos países nãovai causar problemas económicosao país.” Para a estudante do 3º anode Desporto na Universidade deGent, “o mesmo não poderá dizerPortugal”, que é um país beneficiá-rio. Pelo que deve contar com umaforte diminuição dos apoios comu-nitários que serão canalizados paraos novos Estados-membros.

Custos à parte, os 75 milhões denovos cidadãos da UE são bem vin-dos. Por razões éticas. Motivos quenão convencem Irene Veloso, 24anos. “É ingénuo pensar-se que oalargamento se está a fazer paraajudar esses países do ponto de vis-ta social”, contesta a finalista de Di-reito da Universidade da Corunha,Espanha. E acrescenta: “Uma uniãoterritorial é mais benéfica política eeconomicamente do que um espa-ço que ora pertence à UE ora não.”

To be or not to be

É quase unânime entre os entrevis-tados que a moeda única foi umadas grandes vantagens trazidas pe-la União Europeia para quem gostade viajar. Sem os câmbios semprese poupam uns trocos nas transfe-rências bancárias e tornam-se maisfáceis as comparações entre tabe-las de preços. Sem saudades dasmoedas “antigas”, sem receio deque as novas resultem em perda deidentidade nacional, o único senãodo Euro, também ele consensual,está no facto de logo após a sua cir-culação os preços terem disparadoem todos os países. Mesmo assim,o Euro agrada a todos.

A todos excepto a Sarah Dicken eEmily Dyson, 21 anos, no 3º ano dePortuguês Espanhol na Universidadede Nottingham. Apesar de reconhece-rem as facilidades da moeda comumas inglesas ainda suspiram pela Libra.“A sua perda resultaria numa perdahistórica e patrimonial muito grande”,desabafa Sarah. Por isso, o ReinoUnido aguarda um referendo sobre amudança para o Euro ou a continuida-de da Libra. Entretanto – sorriem as in-glesas – “Tony Blair [primeiro-ministrobritânico] espera, espera…” Esperapelo momento oportuno de lançar oreferendo. Aquele em que possa ter acerteza de que os britânicos votarãopelo Euro, explicam Sarah e Emily.

Não só a indecisão quanto àadopção do Euro, mas também oposicionamento britânico entre apertença à União Europeia e a sim-patia pela sua ex-colónia, os Esta-dos Unidos da América (EUA), en-

veniente daqueles países com des-tino à UE que vai acabar por ficar naHungria. O que pode vir a agravar osproblemas que já temos com outroscidadãos emigrantes do Iraque e doAfeganistão”, explica.

Quem paga o alargamento?

Se a leste e a oriente, Nadia, Kreta eKristian ainda têm uma visão turvasobre as consequências da adesãodos seus países à UE, a ocidente asopiniões dos entrevistados cujospaíses fazem parte dos Quinze sãofavoravelmente reservadas. A ideiaromantizada de que “os ricos de-vem ajudar os pobres” subsiste emcada argumento a favor da adesãodos Dez – Hungria, República Che-ca, Polónia, Eslováquia, Eslovénia,Estónia, Letónia, Lituânia, Malta eChipre. Existem, no entanto, algunssenãos.

Para Kristina Reinwart, 22 anos,estudante do 4º ano de Gestão naUniversidade de Bayreuth, na Ale-manha, um desses senãos prende-se com o ‘timing’. “A União Europeiadevia ter esperado pela retoma eco-nómica dos países contribuintes lí-quidos [que suportam grande partedo orçamento comunitário] e só de-pois equacionar o alargamento”, re-fere. “Não sei se estamos [Alema-nha] nas melhores condições parasuportar os custos da adesão”,questiona Kristina. Uma questãoque ganha relevo para esta estudan-te uma vez que a Alemanha assegu-ra 50% do orçamento comunitário.

Mas os custos da pré-adesão jáse têm feito sentir. As ajudas finan-

“Os húngaros têm medo

que os cidadãos dos

países ocidentais

cheguem ao seu país

e comecem a comprar

as casas, as propriedades

e as terras que agora

não custam quase nada,

mas que depois poderão

vir a representar valores

incomportáveis para

qualquer húngaro.”

Kristian Molnar, Hungria

“Quando eu cheguei

ao Brasil ninguém

sabia nada sobre

a Áustria mas todos

sabiam que o Hitler

tinha nascido lá!”

Johanna Mayr, Áustria

“As directivas

comunitárias interferem

demasiado em leis

nacionais que têm

por base questões

culturais.”

Irene Veloso, Espanha

© is

to é

© is

to é

Page 26:  · Director: José Paulo Serralheiro ·  apagina@spn.pt ano XII | nº 120 | FEVEREIRO | 2003 · Mensal | Continente e ilhas 2 Euros

26a páginada educaçãofevereiro 2003

reportagem

contra algum eco nas opiniões dasestudantes. Admitindo que percebepouco de política, Sarah arrisca umainterpretação: “A Grã-Bretanha temuma ligação muito forte aos EUA ese fortalecemos as nossas relaçõescom a UE podemos perdê-la!” Alémdisso, “quando se pensa na UE en-quanto abstracção é fácil dizer quefoi uma boa ideia, mas se nos deti-vermos nas pequenas consequên-cias que a pertença foi originandoem cada país já não parece assimtão boa”, explica a estudante. Aquestão da pertença à União Euro-peia ganha outros contornos paraEmily. “A Grã- Bretanha já é quaseum continente, para quê pertencer aalgo ainda maior?”, questiona-se.

“É deixá-los!”

A Guerra dos Cem Anos entre a Fran-ça e a Inglaterra parece ter deixadopara sempre uma certa antipatia mú-tua entre os países. Sentimento quefaz com que os franceses recusem fa-lar a língua inglesa e algo mais… So-bre a indecisão do Reino Unido em re-lação ao Euro, Benôit Yacine, 23 anos,a frequentar o 4º ano de Arquitecturada Universidade de Lille, França, é ra-dical: “Não querem fazer parte daUnião Europeia, então é deixá-los!”

Enquanto futuro arquitecto, Benôitvê na livre circulação de pessoas umaoportunidade para “participar activa-mente na construção da Europa.” Is-to é, de poder ver os seus futuros pro-jectos ganhar forma em qualquer umdos estados-membros. Aproveitandoa deixa, Alexandre Plantão, 22 anos,colega de turma de Benôit, completa-lhe o raciocínio informando que os ar-quitectos são “mal vistos pela popu-lação francesa”. A “crise da arquitec-tura” terá começado, explica Alexan-dre, depois da II Guerra Mundial.“Quando os arquitectos franceses ti-veram de reconstruir a França, aca-baram por fazer muitas habitaçõessociais que por sua vez acarretaramproblemas sociais e a culpa dessa si-tuação recaiu sobre eles.”

De facto o Tratado de Schengen,que garantiu a livre circulação depessoas e a eliminação de fronteirasentre os Estados-membros, é vistocomo a cereja em cima do bolo eu-ropeu. No entanto, Alexandre la-menta o facto de a UE “ainda estarmuito esclerosada e fechada em simesma”. E por isso, insurge-se: “Omodo como funciona e a sua políti-ca são demasiado complicados.”

O fantasma de Hitler

Há 58 anos que a Europa enterrou aII Guerra Mundial, mas o fantasmade Hitler parece ainda assombrar aAlemanha e a Áustria. Para KristinaReinwart, “o passado alemão” aindagera alguma desconfiança entre osparceiros europeus, sobretudo entreos franceses. É neste ‘pé atrás’ que

a estudante de Gestão encontra aexplicação para algo que a incomo-da. O facto de achar que a Alema-nha está “sub-representada” noConselho Europeu uma vez que oseu país “tem o mesmo número devotos [10] que a França apesar deter mais população”, explica. Pelocontrário, “os países mais ‘peque-nos’ estão sobre-representados,porque têm mais votos do que de-veriam tendo em conta a sua popu-lação”, afirma Kristina. Apesar deachar que o sistema deveria ser mu-dado Kristina sabe que tal seria difí-cil porque “os ‘pequenos’ paísestambém têm o direito de defenderos seus interesses e se tivessemmenos votos não o conseguiriam.”

É tudo uma questão de números:os votos atribuídos aos Estados-membros no Conselho Europeu sãodeterminados em função da popula-ção de cada país e de um ajusta-mento que leva a uma sobre-repre-sentação relativa dos Estados commenos população. Este sistema im-pede que na votação por maioriaqualificada os ‘grandes’ países co-loquem os ‘pequenos’ em situaçãode minoria e vice-versa. Com o alar-gamento está prevista uma revisãoda escala de ponderações. O objec-tivo é assegurar que o peso relativodos ‘pequenos’ e ‘médios’ paísesseja proporcional à sua população.

Atenta às contestações de Kristinaestá Johanna Mayr, 23 anos, estu-dante de Antropologia e Português naUniversidade de Wien, Áustria. Comum sotaque do Brasil, país onde já vi-veu, Johanna deixa escapar um la-mento pelo facto de a Áustria ser umpaís pequeno e, por isso, ter direito amenos votos. Mas não discute asideias da amiga em relação à UniãoEuropeia. Prefere falar do sentimentode “permanente culpa pelo passadonazi” que divide com Kristina.

“Quando eu cheguei ao Brasil nin-guém sabia nada sobre a Áustria – re-para Johanna – mas todos sabiamque o Hitler tinha nascido lá!” En-quanto Johanna fala, Kristina acenacom a cabeça em sinal de subscriçãoabsoluta das palavras da amiga. “Éterrível!” O aborrecimento sobe detom: “Eu nunca fui racista, nem nazi enão tenho nada a ver com ele [Hitler]!”Johanna e Kristina não querem apa-gar o nazismo da história europeia,antes “discutir a II Guerra Mundial talcomo devemos discutir a Guerra dosCem Anos entre a França e a Inglater-ra”, concordam. Ao invés disso, quei-xa-se Kristina, “quando falam da IIGuerra Mundial fazem-no de um mo-do que me faz sentir culpada pelo queaconteceu. Às vezes dá-me a impres-são que também eu fiz aquelas coi-sas!” Agora é Johanna quem solida-riamente dá sinal de concordar. “Nin-guém acusa os americanos pela es-cravatura, nem os portugueses pelamatança de indígenas no Brasil. E osespanhóis? Quantos povos massa-Andreia Lobo

craram na América Latina?”, interro-ga Johanna. “Eu não tive culpa doHolocausto!”, remata, olhando para aamiga que atesta: “Nem eu!”

Identidade ou uniformidade

Para além de se saberem europeuspor razões geográficas, Chiara Sabat-tini e Fabio Giulianini, 22 e 25 anos,sentem-se europeus. A razão é sóuma: a existência do que acreditamser uma “identidade europeia”. “Háuma história que nos une, uma arqui-tectura que nos assemelha, algo quenos é comum!”, diz Chiara, estudantede Arquitectura em Florença, Itália. Éesse sentimento que a leva à consta-tação de que “trocar a Itália por qual-quer outro país dentro da UE seriamais fácil do que trocá-la pelos EUA”.A ideia agrada a Fabio, também eleestudante de Arquitectura, em Ferra-ra. Até porque “não há emprego paraquem tira este curso”, sorri.

Mas há quem veja na “identidadeeuropeia” uma uniformidade força-da. Koldo Goenaga, 21 anos, a fre-quentar o 4º ano de Direito na Uni-versidade do País Basco, Espanha,admite não ser partidário da UniãoEuropeia. “Muitas das directivas uni-formizam sem atender às especifici-dades culturais de cada país.” E pa-ra que se entenda bem do que é queestá a falar, o futuro advogado dá umexemplo: “A UE está a fazer leis pa-ra uniformizar os horários de funcio-namento de bares, fazendo com queencerrem mais cedo.” Ora esta me-dida, na opinião de Koldo, vai inter-ferir com os hábitos do seu país.“Em Espanha às 21h janta-se e às24h ainda há gente na rua pronta a irpara os bares, quer seja à semanaou ao fim-de-semana. O mesmo nãoacontece em Londres.” Mas o exem-plos não se ficam por aqui. “Na Fran-ça – continua Koldo – as pessoasdeitam-se tão cedo que às 23h po-des ver filmes pornográficos na tele-visão. Isso seria impensável em Es-panha.” Por todas estas diferençasculturais, Koldo não admite que se"regule a vida nocturna" em todos ospaíses pela mesma directiva. “Estão[UE] a querer que toda a gente sedeite à mesma hora!”, ironiza.

Apesar de ser partidária da causaeuropeia, Irene Veloso concorda como seu conterrâneo no que toca ao pe-rigo da uniformização cultural. “As di-rectivas comunitárias interferem de-masiado em leis nacionais que têmpor base questões culturais”, adverte.Estas ‘interferências’ – seja ao encer-rar os bares espanhóis de acordo como horário dos ingleses, seja ao proibira produção artesanal da aguardente edo queijo checos – constituem as ‘pe-quenas’ consequências da pertençaao todo a que Sarah Dicken se referia.Areias provenientes de uma multicul-turalidade que podem vir a emperrar agrande máquina da União Europeia,ou talvez não.

“Há uma história

que nos une, uma

arquitectura que nos

assemelha, algo

que nos é comum!”

Chiara Sabattini, Itália

“A Grã- Bretanha já

é quase um continente,

para quê pertencer

a algo ainda maior?”

Emily Dyson, Reino Unido

“Não querem [Reino

Unido] fazer parte

da União Europeia,

então é deixá-los!”

Benôit Yacine, França

© is

to é

Page 27:  · Director: José Paulo Serralheiro ·  apagina@spn.pt ano XII | nº 120 | FEVEREIRO | 2003 · Mensal | Continente e ilhas 2 Euros

27a páginada educaçãofevereiro 2003

olhares de fora

PROTAGONISTASAndreia Lobo

Começam pela mesma letra,tudo o resto é diferente

Diz que em Portugal se sente “fora daEuropa”, sobretudo, quando vê aspessoas a cuspir para o chão, na rua.Arek Dziewónsk, 24 anos, deixou aPolónia rumo ao Porto para fazer umestágio de dois anos na área doscomputadores. Sandriana Araújo, 24anos, fez o caminho inverso. Viajouaté à Polónia para durante três mesesdar aulas de inglês numa escola se-cundária em Sucha Beskidzka, a 70Km a sul de Cracóvia, e ficou sur-preendida pelo facto de as discotecaspolacas passarem música dos anos60, 70 e 80 “como se fosse a últimamoda”. A Página juntou-os e jogoucom eles o ‘descubra as diferenças’.

Ainda a cuspir para o chão

Quando pensa nas razões que o leva-ram a escolher Portugal como destinoArek Dziewónsk ironiza: “Quis ir parafora da Europa!” Sandrina Araújo olha-o com desagrado. Afinal o seu país éeuropeu de direito e até pertence à

Portugal versus PolóniaUnião Europeia. O que não deixa mar-gem para qualquer ironia. Mas Areknão está a pôr em causa a geografia,nem tão pouco a geo-política. O quefaz Arek sentir-se fora da Europa quelhe está mais próxima, a Central, é umhábito que ainda persiste na socieda-de portuguesa: cuspir para o chão. “Énojento!”, queixa-se enquanto torce onariz. Sandrina suspira e contrapõe:“Os jovens não fazem isso, só as pes-soas mais velhas.” Arek não se deixaconvencer pelo fraco argumento daidade. E por isso Sandrina avança comuma explicação ‘cultural’. “Esse hábitofaz-me lembrar o Norte de África e ospovos árabes…” , reflecte enquantoolha o infinito. “Talvez o hábito de cus-pir para o chão seja uma influência dosmouros.” A indignação de Arek enfra-quece depois da explicação. Sandrinasorri e entre dentes lá vai dizendo quereparou que na Polónia ninguém cos-pe para o chão.

À espera de um autocarro

A primeira vez que Sandrina teve deapanhar um autocarro deparou-se comuma cena curiosa. A entrada e a saídade passageiros faz-se sem diferencia-ção por qualquer uma das portas. “Éuma confusão”, sorri. “Dá ideia quenão há controle de quem tem ou nãobilhete de transporte, mas os revisoresandam ‘à paisana’ e podem entrar aqualquer momento”, adverte Sandrina.

Também Arek tem algo a dizer so-bre os autocarros portuenses. “Nãocompreendo por que as paragens nãotêm os horários dos autocarros”, re-clama Arek. “Porque os autocarrosnunca chegam a horas!”, ironiza San-drina. Arek, habituado à lógica precisa

dos computadores estranha a respos-ta ‘ilógica’ de Sandrina. Mas ela igno-ra a estranheza do polaco e continuaa sua teoria: “Em Portugal não temoshorário para nada! Se uma conferên-cia está marcada para as 21h, já sesabe que só começa às 21h30…” Oraciocício é interrompido. Sandrina vaià carteira e tira um dos horários dosSTCP. “Aqui está! Tens aqui um horá-rio”, diz mostrando o papel a Arek.“Entre as 9 e as 14h o autocarro pas-sa de 10 em 10 minutos. A partir das14h já passa de 30 em 30 minutos.”Arek arregala os olhos: “Ok, já perce-bi. Mas isso quer dizer que tenho deesperar 30 minutos pelo autocarro. Émuito tempo! Por isso é que andoquase sempre a pé!” Apesar de levaros reparos de Arek na ‘desportiva’,Sandrina dá razão às queixas do cole-ga. E confessa que na cidade ondeesteve para além de existirem horáriosnas paragens, havia imensos autocar-ros, logo o tempo de espera era muitomenor do que no Porto.

Contacto interpessoal

Menos visível mas mais susceptívelde causar mal entendidos, são as di-ferenças ao nível do contacto inter-pessoal. “Aqui as pessoas tocam-semuito. Enquanto conversam, porexemplo, põem as mãos no braço ouno ombro da outra pessoa”, repara. Éalgo a que já está habituado, mas noinício Arek estranhou. Para melhor ex-plicar a razão da sua observação Arekcontinua a dar exemplos. “Repareique quando duas pessoas são apre-sentadas cumprimentam-se com bei-jos na cara. Isto desde que não sejamdois homens”, sorri. “Mas na Polónia

estende-se sempre a mão, tanto paraos homens como para as mulheres!”

Até agora calada, Sandrina confir-ma ter sentido na Polónia uma estra-nheza contrária à de Arek. “Há uma au-sência de contacto incrível!” Uma dife-rença comportamental à qual, tal co-mo Arek, se habituou. De tal modo que“ao fim de algum tempo se alguém metocava até me assustava”, confessaSandrina. Susto apanhou Arek quan-do, ainda ‘caloiro’ em matérias de inte-relacionamento, entrou num restauran-te e o empregado lhe pôs uma mão nascostas para com a outra lhe indicar amesa. “Na Polónia, isso nunca aconte-ceria”, confirma Arek. “Se acontecesse– diz em jeito de brincadeira (?) -– ocliente tirava uma faca do bolso eapontava-a ao empregado.”

Sandrina também teve alguns em-baraços nos seus tempos de ‘caloira’na Polónia. Uma vez ao despedir-sede um rapaz polaco deu-lhe um beijona cara. Um gesto simples mas quelevou a que uma rapariga polaca pen-sasse que o rapaz era seu namorado.“Isso nunca aconteceria em Portugal”,sorri Sandrina.

© is

to é

Page 28:  · Director: José Paulo Serralheiro ·  apagina@spn.pt ano XII | nº 120 | FEVEREIRO | 2003 · Mensal | Continente e ilhas 2 Euros

Caro José Paulo Serralheiro:

Em primeiro lugar venho expressar a minha enorme tris-

teza, como sócia do SPN e leitora da Página, pela cha-

mada na primeira página referente à entrevista com

Francisco Maia Neto (FMN). Mais uma vez, e suponho

que não intencionalmente, as expressões denotam

uma profunda e enraízada discriminação contra as mu-

lheres, neste caso, contra as mães.

"FMN fala de delinquência juvenil, dos meninos que

roubam afectos roubados e diz que o Estado gastaria

muito menos se “pagasse às mães para não trabalhar

durante os primeiros três anos de vida dos filhos."

Esta ideologia, que conhecemos já do pós-guerra e

dos famosos estudos de Bowlby quando o Estado

americano pretendia reenviar as mulheres para casa,

foi e tem sido amplamente denunciada pelos movi-

mentos de mulheres e pelo feminismo internacional e

em Portugal. Que FMN expresse essa opinião tem pa-

ra mim um significado, mas que a PÁGINA a coloque

em chamada na primeira página sem um reparo, é já

um outro assunto. Para mais que este sindicato apelou

à greve geral e, entre outras coisas, a nossa luta na

greve geral era contra um código de trabalho que vai

neste sentido: enviar as mulheres mães para casa.

Aliás, solicitei a Mário de Carvalho que me enviasse as

alterações que Bagão Félix fez do Anteprojecto para a

Proposta de Lei, e segundo o e-mail que dele recebi (o

que fico muito grata) os ataques ao apoio à maternida-

de e paternidade continuam na Proposta.

Mas a própria entrevista de Francisco Maia Neto é

contraditória:

Ele afirma que os menores são "abandonados pe-

los pais", mas depois acha que devem ser as mães a

ficar em casa.

Afirma que o Estado colocava em conjunto, até

2001, as crianças em risco e abandonadas com as

crianças acusadas de crimes ˜ situação que diversas

pessoas denunciaram e felizmente que a Lei mudou,

embora as práticas institucionais ainda não tenha mu-

dado (veja-se Colégio Santo António, para além de que

têm dispensado animadores e trabalhadoras/es nes-

sas instituições). Mas logo em seguida considera que

o problema reside nos primeiros anos de vida. (Mais

uma vez, assisitimos ao reemergir da literatura de tipo

científico que já conhecemos do pós-guerra, onde se

tentava que a delinquência ficasse sobre as costas das

mães, já que o Estado precisa de um bode espiatório).

Num país onde as mulheres não têm ainda possibili-

dade de escolher se podem ou se querem ou não ser

mães (o aborto continua clandestino), onde alguns pa-

trões as obrigam a um compromisso de não engravida-

rem; onde as actuais leis da maternidade, paternidade,

parentalidade, aleitação, etc., têm sido ignoradas em

muitos sectores privados; onde um código de trabalho

em aprovação significa um retrocesso enorme a este res-

peito, onde todos os estudos indicam que grande maio-

ria dos homens não comparticipa nas despesas da casa

e com os seus filhos, onde 80% dos homens divorciados

com filhos não pagam as pensões de alimentos, onde

99% das famílias monoparentais são encabeçadas por

mulheres, o que signifca para uma mulher ficar 3 anos

em casa a ser paga pelo Estado para se dedicar com-

pletamente aos filhos? Em termos de carreira, de ascen-

ção nos empregos, não é preciso dizer mais nada. Será

que o Estado estará disposto a pagar-lhe o défice que ela

vai sofrer em termos de carreira (por exemplo, docente)?

E nas pensões de reforma, esse dinheiro durante os pri-

meiros anos de vida vai contar para a reforma quando os

filhos forem maiores e ela estiver velha?

Mais ainda, se o abandono é dos «pais» porque

não colocamos a nossa reflexão sobre as soluções

para o problema também nos «pais»?

Há mais uma coisa a referir: não está provado que

as mães que ficam a tempo inteiro com os filhos evi-

tam problemas de delinquência futura. Este foi um de-

bate extremamente vivo nos Estados Unidos a seguir

às publicações de Bowlby. As investigações feminis-

tas (ver Andreé Michel, Ann Phoenix, McRobbie, entre

muitas outras) mostram que as mães "domésticas"

têm mais probabilidade de desenvolver relações pato-

lógicas menos saudáveis com os seus filhos, para

além de que mostraram maior probabilidade de doen-

ças psiquiátricas com o sindroma do "ninho vazio".

Pelo contrário, estudos extensivos mostraram que as

e os filhos de mães trabalhadoras têm mais sucesso es-

colar, têm uma auto-estima mais elevada, têm mais su-

cesso no emprego quando adultos e mais capazes de

organizarem a sua vida profisisonal e familiar. Estatistica-

mente, isto é ainda mais relevante para as raparigas fi-

lhas de mães trabalhadoras.

Isto são resultados dos Estados Unidos.

Mas se pensarmos na situação aqui em Portugal,

será que FMN tem noção da trajectória de vida das

crianças acusadas de crimes? Estou em crer, dos estu-

dos que têm sido levados a cabo por alunas/os mi-

nhas/meus aqui das Ciências da Educação, e pelos re-

latórios de estágio, que es-

tas crianças são maioritaria-

mente provenientes de fa-

mílias onde a mãe não tra-

balha, e o pai muito menos.

Claro que não discordo

da ideia de que estas famí-

lias precisam de apoio fi-

nanceiro. Precisam. Mas

não concordo que seja para

a mãe ficar em casa a tomar

conta dos filhos. Algumas

experiências com o Rendi-

mento Mínimo Garantido,

que exigia um plano de

reinserção social, mostra-

ram muito bem sucedidas,

e estou convicta que muito

mais do que qualquer solu-

ção tipo "Obra das Mães".

Pertenço a uma ONG de

Direitos das Mulheres

(UMAR) e temos já bastante

experiência de trabalho com mulheres. Precisamente,

aqui no Porto, seguimos alguns casos de mães e tenta-

mos acompanhar os cuidados que são prestados às

crianças. Digo já que é infinitamente mais complicado

com as mulheres desempregadas reflectir com elas co-

mo organizar as horas das refeições, os momentos de

levar as crianças a entrar em contacto com outras para

se socializarem, as horas dos banhos, as idas ao médi-

co, etc. O facto de terem um emprego significa para elas

uma ideia de utilidade, têm um ritmo e uma atitude de vi-

da que lhes permite colocar a criança num infantário, ou

organizar as solidariedades familiares ou de vizinhança.

E para acabar, não são as crianças das mães que

trabalham que estão na rua nem as que se deitam à

meia-noite.

Muitas experiências haveria para contar, muitos

estudos para citar.

Apenas esta nota, José Paulo: por favor, escreva

alguma coisa na próxima PÁGINA. E por favor dê-lhe

o destaque de primeira página, também.

O acesso das mulheres ao trabalho, a reivindica-

ção "salário igual trabalho igual", a luta pela concilia-

ção entre vida familiar e vida profissional para mulhe-

res «e para homens», os direitos de «parentalidade», e

não só da maternidade, etc., são aspectos da vida so-

cial que um sindicato de docentes que se diz e esta-

mos em crer que o seja, de esquerda, não pode pas-

sar por cima com esta ligeireza.

Um abraço,

Maria José Magalhães

FPCE da Universidade do Porto

Exmº Director José Paulo Serralheiro

Em primeiro lugar gostaria de agradecer e louvar à D. Joa-

quina Oliveira a sua colaboração por ter salientado o que de

bom há no Lagarteiro, nomeadamente na Escola Básica 1

nº10, onde ocupo a posição de Presidente da Assembleia de

Pais. Como tal expresso o meu desapontamento por não me

terem sido dadas a conhecer, nas Assembleias Gerais que se

realizam há mais de 3 anos, todas as inovações e melhora-

mentos efectuados.

Também gostaria de deixar aqui sublinhado que, aquando

da entrevista no vosso jornal, as palavras por mim proferidas

não o eram só referentes à estrutura educacional, mas sim à es-

trutura global do Bairro do Lagarteiro, que felizmente para a D.

Joaquina Oliveira e sua família, nele não habitam, não conhe-

cendo por isso o que nele se vive, noite após noite, das pro-

messas não cumpridas ano após ano, dos urbans que para trás

puseram o Lagarteiro, de obras prometidas e nunca realizadas.

Eu acho bem que se escreva o que escreveu, mas tam-

bém pergunto, se era tudo tão bom, porque razão o Verea-

dor Paulo Morais acabou com a Fundação do Vale de Cam-

panhã a 31 de Outubro? Alguma

coisa deveria passar-se, caso

contrário nunca teria acabado

com os projectos que tanto louva.

Por isso D. Joaquina Oliveira

não me venha com “palavrinhas

mansas”, pois o que pretendo pa-

ra o lugar em que vivo, e tenho o

meu lar, é que o mesmo continue

a ser valorizado, filtrado das coi-

sas menos boas, e melhorado

com o que é essencial para prover

à educação dos meus filhos e dos

filhos dos outros pais e que, não

hajam professores que no mesmo

não queiram ser colocados. Toda

a minha actuação é para que es-

tas crianças possam crescer num

ambiente de segurança, e que

lhes sejam proporcionadas as

condições de educação, quer a

nível de escola, quer de activida-

des de tempos livres, que os pre-

parem para uma vida futura que se avizinha difícil, e que sem

essa estrutura educacional, será difícil enfrentarem as res-

ponsabilidades que lhes serão exigidas enquanto Homens e

Mulheres da nossa sociedade.

Lembro ainda, como moradora no Bairro do Lagarteiro que

em 100% de coisas más a D. Joaquina Oliveira só salientou

10% de coisas boas e – o que quero dizer é simples – muita coi-

sa podia ser feita caso as promessas estivessem a ser cumpri-

das. Mais uma vez, digo ainda, com mais desalento dentro de

mim, que lamentavelmente agora começo a acreditar que afi-

nal o Lagarteiro é um Bairro «esquecido» não só da Câmara Mu-

nicipal do Porto, mas de toda a comunidade política.

Aproveito esta oportunidade, para de forma pública ex-

pressar o agradecimento à Junta de Campanhã, não só ao

Exmº. Sr. Presidente Fernando Amaral, mas também ao anti-

go Presidente Exmº. Sr. Rodrigo Oliveira que me apoiou in-

condicionalmente quando iniciei a “Comissão dos Barracos”

envolvendo-se e abraçando o nosso projecto, bem como to-

do o apoio concedido quando lhe apresentei os membros da

Associação de Pais.

Quanto à D. Joaquina Oliveira espero, como Presidente

da Assembleia da Associação de Pais da Escola, bem como

moradora deste Bairro, poder continuar a contar com o seu

apoio e colaboração às crianças do Bairro do Lagarteiro, na

sua qualidade de educadora e de pessoa, bem como com a

sua cooperação em futuros projectos que venham a ser de-

senvolvidos e tragam mais valias ás nossas crianças, e à nos-

sa comunidade.

Fernanda Gomes

Presidente da Assembleia da Associação de Pais

da Escola Básica 1 nº 10, Bairro do Lagarteiro, Porto

a Página on-line - participe em www.a-pagina-da-educacao.pt/inqueritos

cartas “on-line”

28a páginada educaçãofevereiro 2003

olhares de fora

CARTASdos leitores

Page 29:  · Director: José Paulo Serralheiro ·  apagina@spn.pt ano XII | nº 120 | FEVEREIRO | 2003 · Mensal | Continente e ilhas 2 Euros

inquérito/página “on-line”

29a páginada educaçãofevereiro 2003

olhares dos fora

1. A praxe académicadevia ser…

A praxe é boçalA praxe praticada em todo o país é bo-

çal. Mostra que os jovens que vêm das

aldeias, dos meios e das famílias mais

carenciadas culturalmente têm necessi-

dade de práticas que lhes dêem a ilusão

de terem mudado de classe social. Des-

graçadamente a única coisa que lhe ofe-

recem é um conjunto de práticas "pim-

ba". A sociedade precisa de fazer sentir

aos estudantes o ridículo e o vazio das

suas práticas praxistas. As novas gera-

ções têm o direito de entrar no ensino

superior como quem entre num lugar de

educação e de cultura e não num estúpi-

do café de bairro camarário.

José Paulo

Praxes académicasQuanto ao assunto em questão, é óbvio

que, o que deve ser abolido não são as

praxes, mas sim aquilo que as torna vio-

lentas e inaceitáveis. Os excessos devem

sempre ser abolidos, seja do que fôr.

Sofia Gonçalves

Praxe?Segundo a versão oficial, a praxe serve

como forma de integrar o aluno no seu

novo meio!!!!! Mas não é isto que acon-

tece, a praxe é apenas um meio de hu-

milhar e subjugar, mostrando uma conti-

nua cultura de não dignificação do ser

humano, mas sim de um ser completa-

mente irracional (animalesco).

Paulo L.

Praxe académicaQuando eu era caloira, tinha um medo de

morte das praxes mas, quando comecei

a ser praxada, vi que não tinha razão pa-

ra tal, pois diverti-me muito e conheci

muitos amigos.

Actualmente, sou membro da Comis-

são de Praxe (CP) na escola onde me en-

contro e tenho por função, entre outros

membros, de assegurar que a praxe não

fira a integridade física, moral e psicoló-

gica dos caloiros, visto esta ter como ob-

jectivo a integração dos mesmos na sua

nossa nova vida académica.

Apesar de já estar no 3.ºano e na CP,

deixei-me praxar novamente este ano,

pois este é o melhor tempo da vida de

qualquer estudante.

Se não fosse a praxe, não conhecia

nem um terço dos amigos que tenho hoje.

Espero que esta minha mensagem

desanuvie um pouco o medo que têm

das praxes.

Saudações académicas

Ana Cárina Raposo Oliveira

2. Na sua opinião, regra geral, os empresários portugueses são…

Temos patrões biscateirosA maior parte dos empresários portu-

gueses são de fresca data. A nossa bur-

guesia é muito recente. Muitos dos nos-

sos empresários começaram por ser bis-

cateiros e o biscate, pela facilidade dos

salários baixos, deu lucro para passar a

empresa. Mas os conhecimentos e a

mentalidade continuam a ser de bisca-

teiro. Nós não temos empresários, te-

mos patrões biscateiros.

Uma das medidas mais urgentes é a

formação contínua para os chamados

empresários. Outra medida seria obrigar

as empresas a ter um mínimo de pessoal

qualificado em função da dimensão da

empresa e do negócio. Mas nesta eco-

nomia aberta o mais provável é que as

empresas com algum interesse sejam

adquiridas por estrangeiros.

Para o país é mais importante ter em-

presários estrangeiros competentes do

que biscateiros portugueses incompe-

tentes. Pode ser que uma nova geração

de portugueses aprenda alguma coisa

com os estrangeiros e daqui a alguns

anos tenhamos alguma competência

empresarial portuguesa.

José Paulo

Mentalidade empresarial obsoletaInfelizmente, os nossos empresários não

se actualizaram com a entrada na U.E.

Continuam mais preocupados com o

seu enriquecimento pessoal do que a

modernização das suas empresas. Pou-

co empreendedores, de vistas curtas,

vêem essencialmente o lucro fácil e não

demonstram visão perspectiva e ampla

que pudesse propiciar efectiva produtivi-

dade, criação de postos de trabalho e ri-

queza nacional. Pelo contrário; conside-

ram o trabalho como um custo em vez

de o assumirem como verdadeiro inves-

timento, o que implicaria uma completa

inversão nos valores orientadores da re-

lação laboral patrão-empregado. A for-

mação destes últimos é negligenciada, o

que se repercute na falta de qualidade

do produto final, perda de capacidade

competitiva com o exterior e compensa-

ções economicamente obsoletas atra-

vés do aumento dos preços.

Só quando o trabalhador for valoriza-

do enquanto profissional e como pessoa

de direitos é que estaremos perante uma

dinâmica empresarial positiva, assente

em critérios de inteligência, objectivida-

de e visão global e integrada do progres-

so económico. E tudo isto só pode ocor-

rer com uma mudança drástica da men-

talidade dos empresários nacionais.

Paulo Gonçalves

3. Concorda com as portagens nas circularesdas grandes cidades?

Não concordoSe estas vias são portajadas não vejo

porque não devem ser também portaja-

das as melhores ruas das cidades. Quem

vive no Algarve não utiliza diariamente as

ruas do Porto e vice-versa. Se o princípio

é o do utilizador pagador então pague-se

tudo. Mal saiamos da porta de casa é

começar a pagar. Até podem criar um

passe de circulação em cada cidade.

Dentro de casa já pagamos a contribui-

ção autárquica!

Como eu não utilizo este governo não

percebo porque é que tenho de lhe pa-

gar! Pague quem o utiliza. Como eu não

os elegi, porque é que lhes pago? O Go-

verno devia ser pago apenas por aqueles

que o elegeram.

João Serra

4. Acha que o novo código detrabalho é favorável aos tra-balhadores e ao país?

Um código contra a aprendizagemO novo código de trabalho vai no senti-

do de destruir a relação do trabalhador

com a empresa. A moda hoje é a preca-

riedade. É usar e deitar fora. O trabalha-

dor não chega a ter tempo de criar uma

relação afectiva com o seu local de tra-

balho. Tem ainda menos tempo para fa-

zer uma aprendizagem continua que,

com o tempo, vá aumentando a sua

competência profissional e portanto a

sua produtividade. Neste sentido o novo

código de trabalho é contra a produtivi-

dade e a favor da política de baixos salá-

rios. Vai ter um efeito negativo no tecido

económico português.

Serras Pereira

Lá vamos de marcha atrásPara quem considera que o trabalho pres-

supõe um conjunto de direitos de cidada-

nia do trabalhador, o novo código do tra-

balho não é favorável aos trabalhadores.

Os patrões procuram extrair o maior lucro

possível do trabalho produzido pelos tra-

balhadores. O novo código vai no sentido

de permitir que os patrões explorem mais

e com mais facilidade os trabalhadores.

Não se pode dizer que o código sirva

o país porque o que o país precisa não é

de criar condições que permitam uma

maior exploração da mão-de-obra mas

de qualificar a mão-de-obra, de reorgani-

zar o trabalho e de assim aumentar a pro-

dutividade e a capacidade de Portugal

competir nos mercados mais evoluídos.

O código é feito por quem tem uma

visão ultrapassada do desenvolvimento

e por quem de facto, pesem todas as re-

zas e poses cristãs, tem um profundo

desprezo pelo trabalho.

Joel Pinto

opinião “on-line”

A praxe académica devia ser

Apoiada16%

Abolida65%

Ridicularizada10%

Respeitada7%

Total respostas673

Concorda com as portagens nas cir-culares das grandes cidades?

Concordo25%

Discordo74%

Total respostas529

Acha que o novo código de trabalho éfavorável aos trabalhadores a ao país?

Sim16%

Não83%

Total respostas472

Na sua opinião geral, os empresáriosportugueses são:

Muito competentes0%

Competentes23%%

Incompetentes61%

Muito incompetentes14%

Total respostas512

Page 30:  · Director: José Paulo Serralheiro ·  apagina@spn.pt ano XII | nº 120 | FEVEREIRO | 2003 · Mensal | Continente e ilhas 2 Euros

30a páginada educaçãofevereiro 2003

olhares de fora

Sociedade de desinformação, de in-segurança (veja-se o que acontecequando se deslocaliza uma fábrica);não falemos sempre e apenas dosassaltos, se bem que eles façamparte da insegurança típica da so-ciedade em que vivemos. Socieda-de da vigilância, das câmaras queespiam e gravam sem serem vistas,do cruzamento de dados a que nãotemos acesso mas dizem muito denós. Como compreender a "Socie-

dade" anti-social,do fim da solidarie-dade, de inexplicá-veis inter-relaçõesocultas, de lealda-des múltiplas naqual habitamos? É aInternet vigiada pelarede Echelon o símbolo do presente,a antecipação do nosso futuro co-mum? Que comportamento deve-mos cultivar, como professores?

Possivelmente o quejá temos, mesmosem sabermos: des-viante e normativo,em relação aos nos-sos alunos, nossasvítimas indefesas,como nós ignorantes.

Pretendemos impôr normas decomportamento num ambiente glo-bal de regras/ordens múltiplas, con-tradições visíveis? Que norma se

ajusta aqui e hoje, na pluralidade deimposições sem destino em que nosmovemos? Custa falar de valores,de algo mais que não seja poder,quanto mais quanto vemos que ousomos cínicos, ou mal informados etemos a obrigação de não ter a des-culpa dos pobres de espírito. Conti-nuemos, portanto; mas paremospara pensar, pelo menos de vez emquando: faz bem, não custa nada,pode ajudar a viver.

QUOTIDIANOMaria Gabriel Cruz,

Universidade de Trás-os-

-Montes e Alto Douro,

UTAD, Vila Real.

Somos seres sociais, não existimos sós,

formamos parte de um lar, mais tarde re-

paramos na existência de outros paren-

tes, para continuarmos pelos amigos

com os amigos de rua, mais tarde os ín-

timos, até ficarmos com a pessoa mais

perto da nossa afectividade e, na base

da mesma, somos capazes de reprodu-

zir. Parece ser que o destino do ser hu-

mano é não ser indivíduo: é ser um ser

social. Já Daniel Defoe em 1719 tinha ex-

perimentado, com base na vida de Ale-

xander Selkirk, o náufrago que viveu só e

isolado numa ilha do Pacífico, criar a fi-

gura do indivíduo, capaz de ser autóno-

mo e de se servir e sustentar a si próprio

inserido na natureza. No entanto, a reali-

dade foi mais forte e, após várias pági-

nas de aventuras e descobertas heroica-

mente isoladas, Defoe teve que criar ou-

tro ser humano, Sexta-Feira, nativo da

ilha sem o qual Robinson não subsistia.

Os detalhes todos não são entregues

pelo autor, mas pelo nosso imaginário

milenar que pode pensar o que o curto

imaginário do Século XVIII da Europa

permitia pôr em papel: sem a amizade ín-

tima de Robinson e Sexta- Feira, nem

um nem outro teriam sobrevivido. Tal co-

mo aconteceu na Espanha de 1939, du-

rante a guerra civil da qual Hemingway e

Dos Passos fizeram parte activa: o se-

gundo já sabia, porque era mais velho,

que a morte fratricida é também a morte

dos que ficam vivos. Robinson foi o ca-

risma de Sexta- Feira e vice-versa, como

Dos Passos de Hemingway, e vice versa.

Carisma, esse processo social que

imprime o carácter de um no carácter do

outro, um sacramento social, gostaria de

dizer. Especialmente se essa impressão

de ideias, emoções e comportamentos,

é a transferência feita dos adultos às

crianças. A criança está a entender, já

sabemos, enquanto o adulto tem a ca-

pacidade de optar entre várias alternati-

vas sintetizadas normalmente entre o

bem e o mal, para simplificar. Bem e mal

heterogéneo. O bem dos poderosos, é o

meu mal; o meu mal, é a mais valia dos

proprietários de bens e do poder de de-

finir a lei. Dafoe tentava criar, no século

da subordinação absoluta de grupos so-

DA criançaRaúl Iturra

[email protected]

ISCTE/CEAS

Amnistia Internacional

Sociedade de Informação?

É a Internet vigiadapela rede Echelon

o símbolo do presente,

a antecipação do nosso futuro comum?

Sociedade de desinformação, de insegurança, não falemos sempre e apenas dos assaltos, se bem que eles façam parte da insegurança típica da sociedade em que vivemos.

Ser figura carismática, impõe um dever no adulto de aprender a vidade uma forma nova, enquanto cresce junto aos seres humanos poreles reproduzidos.

ciais a apenas um outro-a aristocracia -,

uma figura capaz de definir o que mais

tarde aconteceria devido a criação de

denominado mercado livre: o dito homo

economicus, solitário perante a opção

do investimento que procura a salvação

do lucro. É perante este desenho das ac-

tividades humanas que a criança é colo-

cada. É a criança estudada por Sigmund

Freud, Melanie Klein, Françoise Dolto,

Alice Miller, Daniel Sampaio, Manuela

Ferreira, Ana Nuno de Almeida, Eduardo

Sá, outros, eu próprio entre eles e a mi-

nha equipa, na Europa e noutros conti-

nentes. Nenhum destes investi-

gadores determina o compor-

tamento da criança dentro

de modelos. Todos, procu-

ramos entender a impor-

tância da figura carismáti-

ca que a criança imita du-

rante o seu crescimento,

saiba ou não, seja cons-

ciente o adulto, ou não.

E, como sabemos - por-

que se não soubésse-

mos, não teríamos tra-

balhado com em-

penho

em Antropologia da Educação, nem na

Epistemologia da Criança e da Puberda-

de -, o adulto sofre da problemática de

tentar ajustar a vida da criança à sua, às

suas ideias, formas de vida, horários,

emotividade, ritos e mitos.

Mitos, essas ideias da realidade, ditas

de forma metafórica, como as que são

usadas por Alice Miller ao referir a vida

de Jesus, José e Maria de forma para-

digmática, como um grupo doméstico

com objectivos específicos para serem

parte do mundo e assim, colaborar nos

objectivos pessoais e históricos esca-

tológicos dos outros. Sin-

tetizada a História,

com o sincretismo

cultural da vida

de outros se-

res humanos

que fizeram

arder a vida

social - Hi-

tler, Mao-

tsé-Tung, Sta-

line - ou tiveram

que calar perante

uma infância repri-

mida - co-

mo

Charles Chaplin, Buster Keaton, Pablo

Picasso, esta forma de comparar usada

por Alice Miller, denota a existência de fi-

guras carismáticas, que a criança imita e

acaba por resultar no tipo de personali-

dades referidas. Miller não cria um mo-

delo: luta contra os modelos que medem

o comportamento da infância para anali-

sar, de forma dialéctica, as figuras que

imprimem carácter no inconsciente da

descendência. Inconsciente, o qual a vi-

da social não está capacitada para en-

tender, para planificar o seu dia-a-dia

conforme a idade dos mais novos. Plani-

ficação que é preciso fazer apenas du-

rante um tempo, durante o processo de

entendimento da criança, do começo do

desenvolvimento baixo, no qual a infân-

cia cresce. Se existe uma obrigação pa-

ra sermos adultos de carisma positivo, é

a de explicar com paciência e palavras

adequadas à epistemologia dos mais

novos, o que acontece durante a Histó-

ria do tempo em que eles vivem como

grupo. Ser figura carismática, impõe um

dever no adulto de aprender a vida de

uma forma nova, enquanto cresce junto

aos seres humanos por eles reproduzi-

dos. Alice Miller não determina: procura

retirar ideias dos factos para os adultos

entenderem o seu dever de educadores,

processo que decorre a par e passo do

crescimento mútuo, dentro de uma vida

social em comum.

Este tem sido o debate do meu Semi-

nário de Antropologia da Educação, de-

bate que me tem permitido criar novos

conceitos, os quais me fizeram crescer a

par e passo com os discentes. E, tudo is-

to, porque os sinos não dobram apenas

para quem aprende, eles dobram tam-

bém para o Catedrático que com eles

debate e envelhece. Pode dizer-se que

queremos crescer sem modelos, tal co-

mo os autores invocados procuram na

sua pesquisa e dizem nos seus textos.

Para sabermos sempre quem são os ou-

tros para quem também os sinos do-

bram, porque os sinos não dobram só

para mim.

Para os meus discentes

de Antropologia da Educação do ISCTE

Ernest Hemingway baseou o seu livro de 1940, Porquem os sinos dobram, numa ideia do seu amigo ecompanheiro de luta, John Dos Passos que tinhaescrito em 1930 a frase ninguém é uma ilha, todoser humano é um Continente, pelo que não é preci-so perguntar por quem os sinos dobram, porquequando dobram, dobram por ti.

A figura carismática

Page 31:  · Director: José Paulo Serralheiro ·  apagina@spn.pt ano XII | nº 120 | FEVEREIRO | 2003 · Mensal | Continente e ilhas 2 Euros

31a páginada educaçãofevereiro 2003

olhares de fora

As técnicas de reprodução assistida

aumentam os riscos de anomalias ge-

néticas nos bebés, segundo revelam

pesquisas publicadas na edição de ja-

neiro do Journal of Medical Genetics.

Os cientistas estudaram os casos de

149 bebés afectados pela Síndrome

de Wiedemann-Beckwith (SWB), um

transtorno do crescimento excessivo

que conduz ao aparecimento de tu-

mores e cuja frequência é da ordem de

1/13.700 nascimentos.

Os bebés que sofrem desta síndro-

me têm um tamanho fora do comum,

defeitos no encerramento da parede

abdominal, tendência à hiploglicemia,

anomalias nos rins e maiores riscos de

desenvolver tumores - dez por cento

das crianças com esta síndrome de-

senvolvem tumores na infância, princi-

palmente nos rins.

De acordo com os investigadores, o

número de crianças que apresenta es-

ta síndrome é quatro vezes maior em

bebés concebidos com ajuda de técni-

cas de reprodução assistida, como a

fecundação in vitro (FIV) ou a injecção

intracitoplasmática de esperma (ICSI),

que consiste em injectar directamente

um espermatozóide no óvulo.

Seis dos 146 bebés (4%) com esta

síndrome que fizeram parte da pesqui-

sa foram concebidos com a ajuda

destas técnicas médicas, três com FIV

e três com ISCI, números que corres-

ponderão a aproximadamente 1% da

população mundial, segundo um estu-

do realizado pela equipa do professor

Eamon Maher e Louise Brueton, de

Birmingham, Inglaterra. Mais de 43 mil

bebés nasceram na Grã-Bretanha en-

tre 1995 e 2000 graças a técnicas de

reprodução assistida FIV e ISCI.

Os autores desta investigação afir-

mam que recentemente se deram tam-

bém conta de uma "possível associa-

ção" entre uma dessas técnicas, a ISCI,

com casos de síndroma de Angelman,

que afecta o desenvolvimento neuroló-

gico, ligados a uma anomalia genética

ao nível do cromossoma 15. "À medida

que estas técnicas de reprodução se

tornam mais comuns, torna-se igual-

mente cada vez mais importante o

acompanhamento das crianças conce-

bidas de acordo com estas técnicas pa-

ra identificar possíveis problemas gené-

ticos", destacam aqueles especialistas.

Fonte: AFP solta

Técnicas de reprodução assistida aumentam riscos de anomalias genéticas

EDUCAÇÃO e cidadaniaJosé Paulo SerralheiroProfessor

O neoliberalismotransporta um fascínio gestionário

A confiança é uma das bases do de-

senvolvimento social e humano. As

pessoas e as sociedades, para progre-

direm, necessitam de se sentir con-

fiantes nos investimentos que fazem. E

necessitam de sentir que confiam ne-

las. Os discursos catastrofistas e gera-

dores de desconfiança, são negativos

para o progresso, seja pessoal, seja

social. Os professores sabem quanto é

importante confiar nos seus alunos e

deixar que estes sintam, com profundi-

dade, que confiam e acreditam neles e

nas suas capacidades.

O desenvolvimento humano e so-

cial precisam de outros ingredientes

para além da confiança. A coesão so-

cial ou a coesão entre pares, é também

um valor fundamental ao progresso.

Uma sociedade não progride quando

se apresenta socialmente fracturada. É

por isso negativa toda a política que

fomenta divisões e conflitos entre a

população de um país. A coesão so-

cial, promove a procura de objectivos

comuns e provoca movimentos e es-

forços compensadores para as pes-

soas e para os grupos. Esta coesão é

um elemento indispensável ao estabe-

lecimento de acordos entre cidadãos.

Acordos e relações sociais necessá-

rios às trocas que se estabelecem en-

tre cidadãos estimulando a criativida-

de individual e a acção colectiva.

Por opção política do nosso actual

governo, a sociedade portuguesa atra-

vessa uma fase de falta de confiança,

de fractura social e de retrocesso no

processo de desenvolvimento. O go-

verno, desde o início das suas funções,

tem lançado sobre os portugueses e o

país, um conjunto de discursos e de ac-

ções todos convergindo na perda de

confiança dos diferentes actores so-

ciais. Querendo, entre outros objecti-

vos, diminuir o valor do Estado e exaltar

o valor do sector

privado, o go-

verno lançou

desde início um

ataque particu-

larmente agres-

sivo aos traba-

lhadores da ad-

ministração pú-

blica. Com este

discurso provo-

cou uma profun-

da fractura na

sociedade por-

tuguesa, entre

trabalhadores

do sector públi-

co e do privado,

e desmotivou profundamente os pri-

meiros para qualquer acção de mudan-

ça no sector onde trabalham.

O neoliberalismo apresenta um

enorme fascínio gestionário sobre to-

do o campo social. Para os nossos ac-

tuais governantes, governar, é gerir.

Note-se como para o governo, todos

os problemas se resolvem através da

introdução de novas regras de gestão.

Os problemas da saúde, se os houver,

resolvem-se com a introdução de no-

vos modelos de gestão. A Administra-

ção Pública, a Justiça, a Segurança

Social, recebem a mesma receita. A

educação básica, secundária ou su-

perior, dizem, precisa de novos mode-

los de gestão. De gestão privada, ou

melhor, repressiva, autoritária, norma-

tiva, impositiva, etc.

Para as escolas, este fascínio ges-

tionário traduz-se na ideia de quebrar

as relações de

confiança entre

pares. O Minis-

tro da Educa-

ção entende

que a «boa»

gestão não ad-

mite relações

dialécticas, mas

apenas de um

sentido: quem

gere manda,

quem não gere

obedece e cala.

Entende por is-

so ser funda-

mental eliminar

todos os em-

briões democráticos que possam exis-

tir nas escolas e pauta-se pela peregri-

na ideia de que é punindo e premiando

que se melhora a qualidade do traba-

lho no ensino.

O discurso e a prática do actual go-

verno são também uma mistura de

Mao Tsetung com catolicismo asceta.

Exaltam o sacrifício e condenam o pra-

zer. Impõem o sacrifício ao povo, em

nome das contas públicas, e esperam

a caridade dos que beneficiam com

esta política. O voluntarioso maoista

Durão Barroso e o espantado católico

asceta Bagão Félix, fazem bem a sín-

tese e a imagem do actual poder esta-

belecido. Uma mistura de neoliberalis-

mo burocrata com água benta.

Estes neoliberais perfumados com

incenso e água benta, apontam a ges-

tão como os profetas apontam o ca-

minho da salvação. Mas estão enga-

nados no caminho. Hoje, como é pú-

blico e notório, os problemas sociais

tendem a ser transformados em pro-

blemas escolares. Ou seja, tudo quan-

to é problema social é atirado para

dentro das escolas. É por isso ainda

mais espantoso que o governo pense

por as escolas a serem geridas, prefe-

rencialmente, pelos rapazes e rapari-

gas das juventudes que colam carta-

zes em nome dos partidos do actual

governo. Ou que considere que o ges-

tor de uma loja de hortaliças é o ges-

tor ideal para governar uma escola.

Como se o fundamental fosse retirar a

competência de gestão das escolas a

quem as conhece e a entregar a quem

as desconhece. Como se a escola

ideal fosse aquela em que os profes-

sores são tidos como criados para to-

do o serviço às ordens de comissários

políticos do governo.

Com estas medidas, marcadas por

este fervor gestionário e por esta polí-

tica de galinheiro, onde quem manda é

apenas o galo que canta, não vamos

lá. É preciso dizê-lo, o número de ve-

zes que fôr preciso, com clareza e on-

de fôr necessário. O país, pelo menos

por enquanto, não é um galinheiro e

ainda é democrático. Não serão uns

quantos burocratas ignorantes que

nos farão desistir do desenvolvimento

que já se alcançou.

O governo destruiu a confiança das pessoas. Como neoliberais que são, julgam que todos os problemas se resolvem por alterações dos aspectos gestionários.

O seu modelo de gestão é repressivo, normativo, impositivo. Estão convencidos que a qualidade e o desenvolvimento se alcançam através do jogo do prémio e do castigo.

Nas escolas, este fascínio gestionário traduz-se na quebradas relações de confiança entrepares. O Ministro da Educaçãoentende que a «boa» gestão

não admite relações dialécticas,mas apenas de um sentido:

quem gere manda, quem nãogere obedece e cala. Entende por isso ser

fundamental eliminar todos os embriões democráticos quepossam existir nas escolas…

Page 32:  · Director: José Paulo Serralheiro ·  apagina@spn.pt ano XII | nº 120 | FEVEREIRO | 2003 · Mensal | Continente e ilhas 2 Euros

32a páginada educaçãofevereiro 2003

olhares de fora

A camada de gelo na Antártica co-meçou a derreter há cerca de 10 milanos e o processo permanece emcurso, revela um estudo publicado re-centemente pela revista Science. Es-tas conclusões foram retiradas daanálise de fragmentos de rocha disse-minados por glaciares que desapare-ceram há cerca de 10 mil anos, revelauma equipa de investigadores da Uni-versidade de Washington, em Seattle.

"Este trabalho estabelece umcomportamento constante na redu-ção da camada de gelo da Antárti-

Precisamos das línguas para tudo(de todas as línguas vernáculas enão apenas de algumas) porque to-das elas nos atestam que a humani-dade é una e múltipla no que toca apensar o universo com as ferramen-tas intelectuais que precederam asda ciência— que, de resto, não exis-tiria sem elas.

Mais, em domínios como a políti-ca, a educação, a religião e os cos-tumes, onde só muito esporádica-mente e a muito custo o escalpeloda ciência consegue penetrar a fun-do para cortar os nós cegos dasideologias antagónicas que nelescampeiam, a única protecção quetemos contra o rolo compressor dopensamento único e as mistifica-ções planeadas, assenta na integri-dade dos vernáculos que falamosem cada país.

Acontece que há, hoje em dia,muita gente em Portugal que prati-ca, seja por inadvertência ou porcálculo, o exercício, nada inocente,que consiste em falar e escrever co-mo se o idioma português fosseaquela pedra com o que o frade es-pertalhão do conto popular cozinha-va as suas sopas à custa do alheio.Os resultados são dignos de registo,mais que não seja porque revelam oestado da nação num domínio emque poucos parecem reparar (ou,nele reparando, o achem apenas ri-sível). Mas ver-se-á mais adianteque o caso não se reduz a um moti-vo de chacota; tem uma dimensãopolítica global. Antes, porém, de aíchegarmos, eis alguns exemplos.

Em Quasinglês soa mais finoe mais caro

Atente-se nos títulos de certos con-domínios: “Atlantic Park de Chelas,Pacific Ocean da Estrada de Benfica,Hawaiian Paradise das Laranjeiras, e,

Camada de gelo na Antártica começou a derreter há 10 mil anos

OFNI’sJosé Catarino Soares

Instituto Politécnico

de Setúbal

solta

Origens e funções do Quasinglês2003, o seu 5º curso de Direitos Hu-manos e Democratização. Na maisvelha universidade portuguesa, osmódulos a leccionar nesse curso se-rão todos (com excepção de "Ledroit à l´éducation") na mesma lín-gua que soa a música das esferasaos ouvidos da Associação Nacio-nal de Bebidas Espirituosas, dospromotores imobiliários e dos ven-dedores de telemóveis: "Introduc-tion to Human Rights. National andinternational mechanisms of protec-tion. Democracy and rights of politi-cal participation. Women´s humanrights. East Timor. Feedom of ex-pression. Human Rights and inter-national politics. Inclusiveness andmulticulturalism. The right to envi-ronment and the right to sustainabledevelopment. Children´s Rights.Current human rights issues."

A gerência agradece

Quando tanta gente se prostra pe-rante o Quasinglês e até mesmovetustas instituições escolares lheentregam as chaves de casa, o si-nal de alarme deve soar. O cúmulode provas não deixa escolha. Todaselas se resumem neste facto, qua-se sempre passado em silêncio,mas assinalado num livro escritoem 1990 (“Os Novos Poderes”, Al-vin Toffler): “A primeira enorme van-tagem de que os Estados Unidosda América desfrutam, neste mo-mento, é, simplesmente, a sua lín-gua. O Inglês é a língua mundial naciência, no comércio e na aviaçãointernacionais, além de dezenas deoutros domínios. (…) O facto decentenas de milhões de seres hu-manos compreenderem pelo me-nos um pouco de Inglês dá umapoderosa vantagem mundial àsideias, estilos, inventos, e produtosamericanos”.

em breve, espera-se, as Coconut To-wers da Falagueira. Em Inglês soamais fino e mais caro”. (Clara FerreiraAlves. Expresso. 18.01.03). Aos no-vos ricos, claro está. Parece, no en-tanto, que de novo rico todos temosum pouco, cá por estas bandas. Se-gundo um estudo promovido pelaNokia, Portugal é o 2º país europeucom maior percentagem de penetra-ção de telemóveis, à frente da própriaFinlândia, o país onde são fabricadosos Nokia. Estamos perto dos 100%.Só os italianos nos batem neste tipode consumo. Mas a publicidade dostelemóveis, essa, é do mesmo estilopato-bravo dos títulos dos condomí-nios. Coisas assim: Nokia: “Connec-ting people”. Vodafone: “How areyou? Vodafone Live! Agora é o mo-mento”. Siemens: “Cada um tem osom que merece. Grave-o. Be inspi-red”. TMN: “Big smile cool= a ti≠ dosoutros. O telemóvelque te permite orde-nar os itens do me-nu, escolher o teuscreensaver anima-do e mixar melodiaspré-definidas juntan-do efeitos aos instru-mentos”. Os seusautores podem rei-vindicar, dado o vo-lume de vendas, queé exactamente com esse tipo de par-lapié que se atingem tais miríficos re-sultados.

Em 2001 registaram-se cerca de600 mil sinistros automóveis emPortugal, ou seja, uma média de1600 acidentes por dia. Os aciden-tes que provocaram mortos e feri-dos graves ascenderam a 60 mil,com a morte de 1520 pessoas. Ospeões representaram 19% destasmortes — a terceira mais alta taxada Europa — atingindo sobretudocrianças e idosos. Mas alegremo-

nos. Cerca de 14 mil jovens aderi-ram ao cartão “100% Cool", lança-do em Outubro de 2002 pela Asso-ciação Nacional de Bebidas Espiri-tuosas. “A campanha “100% Cool”visa levar os jovens a designar, sem-pre que saiam para diversão, um dopróprio grupo que não beba paraconduzir o carro em segurança”.(Expresso.14.12.02) Assim, deduz-se, basta um jovem 100% sóbrio —perdão “100% Cool” — para levaruma carrada de outros 100% bêba-dos, desculpem, “drunkards”.

Em Quasinglês soa mais inteligente e profundo

A Academia Militar oferece umapós-graduação em “guerra de infor-mação/ competitive intelligence”,para o seu ano lectivo de2002/2003. (Expresso de 4.01.03). O

tema de estudo pa-rece uma charada.Mas só se julgarmosque "competitive in-telligence" é um dosmodos possiveis dedesignar, em Inglês,aquela variável inte-lectual que acompa-nhou o crescimentoevolutivo do cérebrodos nossos remotos

antepassados (de 600 cm3 no Ho-mo Habilis, há cerca de 2 milhões deanos, para 900 cm3 nos primeirosHomo Erectus, 300 mil anos maistarde, e para 1500 cm3, em média,no Homo Sapiens, a nossa gente) eque nos permitiu sobreviver até ho-je. Em Quasinglês, porém, significaapenas exercitar a propaganda econtra-propaganda.

Mas o caso mais impressionanteé o da Faculdade de Direito da Uni-versidade de Coimbra, que vai reali-zar, de 14 de Fevereiro a 24 de Maio

ca", disse o professor de ciênciasda Terra e do Espaço da Universida-de de Washington, John Stone. Os932.000 km2 da camada de gelo naAntártica estarão completamentederretidos dentro de cerca de 7 milanos se o processo prosseguir naactual escala, advertiu Stone, lem-brando que a camada de gelo naAntártica tem água suficiente paraelevar em 5% o nível do mar em to-do o mundo.

Fonte: AFP© is

to é

(..) basta um jovem100% sóbrio

— perdão “100%Cool” — para levar

uma carrada de outros 100%

bêbados, desculpem,“drunkards”.

Page 33:  · Director: José Paulo Serralheiro ·  apagina@spn.pt ano XII | nº 120 | FEVEREIRO | 2003 · Mensal | Continente e ilhas 2 Euros

33a páginada educaçãofevereiro 2003

olhares de fora

Ficha Técnica

Director e Coordenador editorial José Paulo Serralheiro | EditorJoão Rita | Editor Gráfico Adriano Rangel | Redacção Andreia Loboe Ricardo Costa | Secretariado Lúcia Manadelo | Paginação--Digitalização Ricardo Eirado e Susana Lima | Fotografia JoãoRangel (Editor) | Ana Alvim | Joana Neves.

Rubricas

À Lupa Ana Maria Braga da Cruz, Comissão para a Igualdade epara os Direitos da Mulher, Lisboa. Manuela Coelho, Escola Es-pecializada de Ensino Artístico Soares dos Reis, Porto. IracemaSantos Clara, Escola Pires de Lima, Porto. | AFINAL onde está aescola? Coordenação: Regina Leite Garcia, Colaboração: Gru-palfa—pesquisa em alfabetização das classes populares, Univer-sidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, Brasil. | ANDARILHODiscos: Andreia Lobo, Em Português: Leonel Cosme, investiga-dor, Porto. Galerias e palco: António Baldaia, Livros: RicardoCosta, Música: Guilhermino Monteiro, Escola Secundária doCastêlo da Maia. O Espírito e a Letra: Serafim Ferreira, escritor ecritico literário. O vício das imagens: Eduardo Jaime Torres Ri-beiro, Escola Superior Artística do Porto. Paulo Teixeira de Sou-sa, Escola Especializada de Ensino Artístico Soares dos Reis,Porto. | CARTAS aos professores convidado do mês | CARTAS deMulheres — convidada do mês | DA Ciência e da vida ClaudinaRodrigues-Pousada, Instituto de Tecnologia Química e Biologicada Universidade Nova de Lisboa. Francisco Silva, Portugal Tele-com. Rui Namorado Rosa, Universidade de Évora. | DA criançaRaúl Iturra, ISCTE Universidade de Lisboa. | DISCURSO DirectoAriana Cosme e Rui Trindade, Universidade do Porto. | Do Pri-mário José Pacheco, Escola da Ponte, Vila das Aves. | Do supe-rior Adalberto Dias de Carvalho, Universidade do Porto. AlbertoAmaral, Centro de Investigação de Políticas do Ensino Superior,Universidade do Porto. Bártolo Paiva Campos, Universidade doPorto. Ana Maria Seixas, Universidade de Coimbra. | E AGORAprofessor? — José Maria dos Santos Trindade, Pedro Silva e Ri-cardo Vieira, Escola Superior de Educação de Leiria. Rui Santiago,Universidade de Aveiro. Susana Faria, Escola Superior de Educa-ção de Leiria. | EDUCAÇÃO desportiva Gustavo Pires e ManuelSérgio, Universidade Técnica de Lisboa. André Escórcio, Funchal.EDUCAÇÃO e Cidadania Américo Nunes Peres, Universidade deTrás-os-Montes e Alto Douro, Chaves. Miguel Ángel Santos Guer-ra, Universidade de Málaga, Espanha. Otília Monteiro Fernandes,Universidade de Trás-os Montes e Alto Douro, Chaves. Xesús R.Jares, Universidade da Corunha, Galiza. Xurjo Torres Santomé,Universidade da Corunha, Galiza. | EDUCAÇÃO e ComunicaçãoCoordenação: Guadelupe Teresinha Bertussi, Universidade Na-cional do México. | ESTADOS Translúcidos Luís Fernandes, Uni-versidade do Porto. Luís Vasconcelos, Universidade Técnica deLisboa. Rui Tinoco, CAT-Cedofeita e Universidade Fernando Pes-soa, Porto | ÉTICA e Profissão Docente — Adalberto Dias de Car-valho, Universidade do Porto. Isabel Baptista, Universidade Por-tucalense, Porto. José António Caride Gomez, Universidade deSantiago de Compostela, Galiza. | FORA da escola também seaprende Coordenação: Nilda Alves, Universidade do Estado doRio de Janeiro UERJ, Brasil. Colaboração: Grupo de pesquisaRedes de Conhecimento em Educação e Comunicação: questãode cidadania | FORMAÇÃO e Desempenho Carlos Cardoso, Es-cola Superior de Educação de Lisboa. Manuel Matos, Universi-dade do Porto. | IMPASSES e desafíos João Barroso, Universi-dade de Lisboa. Pablo Gentili, Universidade do Estado do Rio deJaneiro, Brasil. José Alberto Correia, Universidade do Porto.Agostinho Santos Silva, Eng. Mecânico CTT. LUGARES da Edu-cação Almerindo Janela Afonso, Licínio C. Lima, Manuel AntónioFerreira da Silva e Maria Emília Vilarinho, Universidade do Minho.| OFNI´s José Catarino Soares, Instituto Politécnico de Setúbal.| OLHARES: Apontamentos José Ferreira Alves, Universidade doMinho. Registos Fernando Bessa, Universidade de Trás-os-Mon-tes e Alto Douro, Vila Real. José Miguel Lopes, Universidade doLeste de Minas Gerais, Brasil. Maria Antónia Lopes, Universida-de Mondelaine, Moçambique POSTAL de: da Cidade do México,Guadelupe Teresinha Bertussi, Universidade Nacional do México.do Rio, Inês Oliveira, Universidade do Estado do Rio de Janeiro.de Paris, Isabel Brites, coordenação do ensino do português emFrança. do Rio de Janeiro, Regina Leite Garcia, Universidade Fe-deral Fluminense, Brasil | QUOTIDIANOS Carlos Mota e GabrielaCruz, Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, Vila Real. |RECONFIGURAÇÕES Coordenação: Stephen R. Stoer e AntónioMagalhães, Universidade do Porto. Fátima Antunes, Instituto deEducação e Psicologia da Universidade do Minho.Fernanda Ro-drigues, Instituto de Solidariedade e Segurança Social e CIIE daFPCE Universidade do Porto. Roger Dale, e Susan Robertson,Universidade de Bristol, UK. Xavier Bonal, Universidade Autóno-ma de Barcelona. | SOCIEDADE e território Jacinto Rodrigues, Uni-versidade do Porto. | TECNOLOGIAS Celso Oliveira, Escola JoséMacedo Fragateiro, Ovar. Ivonaldo Neres Leite, Universidade doEstado do Rio Grande do Norte, Brasil. Luisa Carvalho e Bogusla-wa Sardinha, Escola Superior de Ciências Empresariais de Setúbal.TERRITÓRIOS & labirintos — António Mendes Lopes, InstitutoPolitécnico de Setúbal.|

Administração e Propriedade Profedições. lda · Porto Conselhode gerência Abel Macedo. João Baldaia. José Paulo Serralheiro. |Registo Comercial 49561 | Contribuinte 502675837 | Depósitolegal 51935/91 | DGCS 116075 | Administração, redacção e pu-blicidade Rua D. Manuel II, 51 – C – 2º andar – sala 2.5b — 4050-345 PORTO | Tel. 226002790 | Fax 226070531 | Correio electró-nico [email protected] | Edição na Internet www.a-pagina-da-edu-cacao.pt/ | Impressão Naveprinter, Maia | Distribuição VASP - So-ciedade de Transportes e distribuição, Embalagem AP - embala-dora, lda, Maia | Serviços Agência France Press, AFP. | Membroda Associação Portuguesa de Imprensa – AIND

No telejornal, em horário nobre, tudo se prepara para a evocaçãoda figura estigmatizada. Entrevista-se uma sombra que relata a suapretérita experiência nos casinos. A voz foi distorcida, ampliando aestranheza da situação. Ouvimos: o jogo é um vício que obrigou o su-jeito aos actos mais irracionais. Destruiu inúmeras dimensões da suavida desde a esfera familiar, ao emprego, passando pelas dívidas in-comportáveis.

O discurso de heroinómano com um percurso considerável com asubstância é, de algum modo, semelhante: “a droga é má, destrói tu-do; a droga obrigou-me a este acto e àquele”. Em ambos os casosexiste uma dificuldade na integração dos comportamentos adictivosnuma coerência biográfica. É recorrente ouvirmos esta frase aos toxi-codependentes que atendemos: “antes de me meter nisto estava tu-do bem, era feliz, depois foi a desgraça”. Não existe continuidade, háalguma coisa que se interrompeu. O eu presente não consegue re-gressar ao passado numa perspectiva globalizadora.

Sabemos que isto não foi sempre assim: um consumidor de dro-gas dos anos sessenta, no contexto contracultural norte-americano ebritânico, explicava o seu consumo como uma atitude de protesto.Aliás, o título de uma obra sobre as subculturas dessa época sinteti-za admiravelmente a ideia: Resistência Através de Rituais. No pre-sente, o heroinómano de rua não se afirma como agente mas sim co-mo coisa agida. O seu gesto não é de protesto mas o do sofrimentoda subjugação à substância.

Mas por que é que consome? Silêncio. Não há resposta plausível:“foram os amigos, foi por acaso”. Aliás, existe até alguma relutânciaem responder à interrogação: como corresponde a algo inexplicável,a vontade maior é a do esquecimento. A coisa agida vive sempre omesmo dia: a existência é totalmente preenchida por algo exterior, to-talmente ocupada pela adicção.

Um heroinómano actual explica, profusamente até, a sua vida deconsumidor. Desenrola os motivos por ter feito esta opção e nãoaquela – mas explica as opções da sua história com a substância enão o modo como ela apareceu. O termo fissura biográfica pretende,pois, englobar qualquer acontecimento de vida que impossibilite a

construção de uma coerência longitudinal do su-jeito para si mesmo. A entrada nas drogas é vivi-da, frequentemente, como não tendo nada que vercom o que a precede; e, por outro lado, destrói oque está depois. O indivíduo adicto ao jogo pode-rá defrontar-se com a mesma dificuldade biográfi-ca.

Em ambos os casos há um ‘pôr fora’ da res-ponsabilidade dos actos (externalização). Repa-rem: o indivíduo age por obrigação da droga. Asubstância está fora dele e persegue-o. O jogodescoordenou uma vida sem que se possa expli-car o motivo do acontecimento.

O sucesso de estruturas de recuperação queapelam a dimensões religiosas e que cultivam omito do fundador da instituição (indivíduo que évisto como sendo possuidor de uma excepcionalestrutura moral) pode explicar-se por elas seremcapazes de fornecer ao ex-consumidor uma forteestrutura de explicações de si. O indivíduo que

percorre todas as etapas propostas por este tipo de instituição torna-se seu militante ideológico.

Eis a grande dificuldade de um processo de recuperação de um to-xicodependente: os antecedentes não têm continuidade na históriado indivíduo. Os comportamentos adictivos implodiram a continuida-de biográfica do indivíduo. O heroinómano recém recuperado conti-nua a não saber explicar-se perante si mesmo. A desorganizaçãocomportamental não tem explicação.

O desafio é conseguir que o sujeito se afaste destas perguntas semresposta. A reactivação de diversos interesses de vida e a descober-ta de novas áreas da existência permitem um afastamento do confli-to irresolúvel que nomeámos e que, por vezes, assume contornosbem profundos.

A distanciação permitirá, mais tarde, um retomar do passado, aapropriação da fase de consumos como uma etapa de vida, menosfeliz é certo, mas já não vivida como algo exterior ou alienígena. Tra-ta-se de uma operação de acomodação de memórias. Um percursosólido, já construído sem a substância, permitirá ao sujeito a reapro-priação de um sentido de poder sobre os seus actos que implicará, deigual forma, a apropriação do seu passado de um modo mais activo:a lenta reconstrução das fissuras biográficas.

Acto

res

desv

iante

s e fi

ssura

s bio

grá

ficas

ESTADOS translúcidos Rui TinocoCAT - Cedofeita

Universidade Fernando

Pessoa, Porto

Um heroinómano actual explica, profusamente até, a sua vida de

consumidor. Desenrola os motivos por ter feito esta opção e não aquela

– mas explica as opções da sua história com a substância e não

o modo como ela apareceu. O termofissura biográfica pretende, pois, englobar qualquer acontecimento

de vida que impossibilite a construçãode uma coerência longitudinal do

sujeito para si mesmo.

© is

to é

Page 34:  · Director: José Paulo Serralheiro ·  apagina@spn.pt ano XII | nº 120 | FEVEREIRO | 2003 · Mensal | Continente e ilhas 2 Euros

34a páginada educaçãofevereiro 2003

olhares de fora

SeriaçãoA Gazeta de Matemática convidou um mate-mático, especialista de renome internacional emEstatística, o Professor Dinis Pestana, do De-partamento de Estatística e Investigação Opera-cional da Universidade de Lisboa, para escreverum artigo sobre a seriação das escolas.

IMPASSES e desafios

Graciano de OliveiraDirector da Gazeta

de Matemática

Av. Da República, 37 - 4º

1050-187 LISBOA

Telefone: 217939785

Recentemente a comunicação social deu grande ênfase a um estudo que oMinistério da Educação encomendou à Universidade Nova de Lisboa para se-riação das Escolas Secundárias. Esse estudo originou grande polémica e semuitos o puseram em dúvida, ficou por outro lado, a pairar a ideia de ser qua-se indiscutível uma vez que fazia uso da Estatística a qual se fundamenta naMatemática, a Ciência Exacta por excelência. Assim, mais ou menos vaga-mente, ficou no ar a dúvida: os resultados obtidos serão, no mínimo, tão exac-tos como certas leis da Física, ou não o sendo, darão uma ideia aproximadado que se passa nas escolas ou ainda, poder-se-á dizer que não significamnada e o lugar que uma escola ocupou na escala é arbitrário, como se resul-tasse de um sorteio, e deve ser esquecido?

… O critério de seriação das Escolas é inadequado bem como os modelos utilizados(…) a seriação padece de confundimento (…) a percentagem da variância que fica por explicar é sempresuperior a 75%, chegando a exceder 98% – e para que servirá um modelo em que uma percentagem tão elevada da informação fica por explicar?

A Gazeta de Matemática convidou um matemático, especialista de renome inter-nacional em Estatística, o Professor Dinis Pestana, do Departamento de Estatísticae Investigação Operacional da Universidade de Lisboa, para escrever um artigo so-bre este assunto.

A opinião do Professor Dinis Pestana é discutível como qualquer outra mas é útilestudá-la. A sua compreensão na íntegra necessita de alguns conhecimentos de Es-tatística embora contenha partes que não precisam de tais conhecimentos. Intitula-se Apologia da Estatística (A Pretexto da Seriação das Escolas Secundárias) e sairáno volume 144 (Janeiro de 2003) da Gazeta de Matemática, merecendo chegar aoconhecimento de todos os interessados em manter uma opinião bem fundamentada.

Diz o Professor Dinis Pestana, referindo-se ao estudo encomendado pelo Minis-tério, que as conclusões dificilmente poderiam gerar consenso e que, no seu enten-der, o critério de seriação das escolas é inadequado bem como os modelos utiliza-dos; acrescenta que a seriação padece de confundimento e questiona os modelosde regressão múltipla usados, uma vez que a percentagem da variância que fica porexplicar é sempre superior a 75%, chegando a exceder 98% - e para que serviráum modelo em que uma percentagem tão elevada da informação fica por explicar?

Segundo Dinis Pestana, "... em Ciên-cias Humanas, a tentação de propor mo-delos simples para fenómenos complexostem levado a polémicas ..." e " As Ciên-cias Exactas tem a tendência a ser maisprudentes, e a incorrer menos no fascínioque as Ciências Humanas parecem terpelos números ..." E cita, como exemplo,um raciocínio inspirado num conto deGraham Greene, que conclui que se100% das pessoas que morrem com umcancro praticaram relações sexuais ousão filhas de pessoas que praticaram rela-ções sexuais, então aquela prática explicaa preocupante prevalência da doença.Poderia também citar-se a afirmação,muito em voga, de que se uma altíssima

percentagem de condutores vítimas de acidentes de viação tem muito álcool no sangue, então o ál-cool é perigoso para a condução. O raciocínio é completamente errado (note-se que se podia subs-tituir álcool no sangue por ter os cabelos escuros) o que obviamente também não significa que a in-gestão de álcool não tenha influência nos acidentes.

Várias personalidades, de matemáticos a políticos, como Nuno Crato e Marcelo Rebelo de Sousajá se pronunciaram sobre o estudo do Ministério da Educação mas a controvérsia subsiste. A pro-fundidade e o ponto de vista adoptados no estudo de Dinis Pestana tornam este estudo imprescin-dível para um boa interpretação dos resultados apresentados pelo Ministério da Educação.

Tendo em conta o interesse estratégico das questões do ensino, permito-me chamar a atençãopara o assunto.

das Escolas©

isto

é

© is

to é

© is

to é

Page 35:  · Director: José Paulo Serralheiro ·  apagina@spn.pt ano XII | nº 120 | FEVEREIRO | 2003 · Mensal | Continente e ilhas 2 Euros

35a páginada educaçãofevereiro 2003

entrevista

Fraca capacidade de gestão e de visão estratégica dos gestorese dos governantes portugueses é a principal debilidade do país

Foi presidente da Confederação Portuguesa de

Quadros Técnicos e Científicos Portugueses ao longo dos

últimos treze anos, tendo abandonado este cargo, há me-

nos de um mês, por considerar que "estava na altura de

renovar a direcção". Agostinho Santos Silva, Engenheiro

Mecânico formado pelo Instituto Superior Técnico e até ao

ano passado director de informática dos CTT, faz nesta en-

trevista – realizada uns dias antes da sua sucessão – o ba-

lanço das actividades da confederação ao longo do seu

mandato e analisa a actual situação dos quadros técnicos

e científicos em Portugal, criticando a falta de "estratégia" e

de "diálogo" dos gestores portugueses.

Em que contexto foi criada a Con-federação Portuguesa de Qua-dros Técnicos e Científicos?A Confederação é uma ideia que nas-ce com o primeiro encontro nacionalde quadros portugueses, realizadoem Maio de 1988, ele próprio umanecessidade sentida há muito por umgrande número de profissionais.

Uma das conclusões retiradasdesse encontro mostrava que emPortugal existia na altura um eleva-do número de quadros não sindica-lizado, por não encontrarem nas or-

por apoiar os sindicatos associadosa encontrar linhas de actuação co-muns, levando para a mesa das ne-gociações questões que tradicional-mente não são abordadas, como é ocaso da formação profissional, umaquestão fulcral para este país. Esteserá talvez o exemplo mais flagran-te, porque é uma área onde as ca-rências são por demais evidentes.Como exemplo, refira-se que não hápraticamente nenhum acordo colec-tivo de trabalho que contemple umplano de formação profissional ob-jectivo e prático. O que existe estáno papel, mas não surte efeito.

Esta questão é tão mais centralse pensarmos que a actualização desaberes assume hoje uma importân-cia sem precedentes. Se até há unsanos ainda se tinha a ilusão de po-der passar-se vários anos sem qual-quer actualização profissional, hojeem dia isso é impossível. E se nãoformos capazes de fazer com queapareçam compromissos sériosnesse sentido Portugal vai continuara ter quadros sem formação ade-quada aos desafios do futuro.

Outra das questões a abordar nocongresso será a revisão da Cartade Direitos e Garantias dos QuadrosPortugueses, que constituiu um ins-trumento importante para melhorar

De forma a obtermos um retratoactual das expectativas dos quadrosportugueses, realizamos um inquéri-to, a ser apresentado neste encon-tro, onde pedimos aos inquiridosque fizessem uma apreciação dasua situação profissional e sindical,questionando-os, nomeadamente,sobre se os sindicatos estão ou nãoa cumprir o seu papel e o que devemfazer para melhorar a sua prestação.

Um dos dados curiosos retiradosdeste estudo, e comparando os re-sultados actuais com os de um tra-balho de natureza semelhante reali-zado há oito anos, permite-nos per-ceber que a principal preocupaçãodos quadros portugueses é hoje ainstabilidade do emprego, ao con-trário das questões salariais referi-das há uma década.

Esta preocupação pode resultardo facto de se ter registado uma for-te participação dos professores noinquérito - indício de que a classe vi-ve uma situação particularmentegrave -, mas estende-se, de umaforma geral, aos restantes partici-pantes. Devo dizer, aliás, que osprofessores tiveram uma participa-ção maioritária neste trabalho - e oSindicato dos Professores do Nortefoi quem mais contribuíu para esseresultado expressivo.

ganizações sindicais uma alternati-va que os satisfizesse, uma entida-de que fosse capaz de abordartransversalmente os problemas dosquadros técnicos e científicos. Em-bora se deva reconhecer que foi di-fícil ultrapassar alguns obstáculospróprios de um país com uma fortecultura corporativa, num certo senti-do a confederação conseguiu atingiresses objectivos.

A confederação funciona comouma organização sindical ou maiscomo um conselho?A confederação é uma organizaçãosindical, embora, à semelhança detodas as organizações sindicaiscom características semelhantes,não intervindo directamente em ne-gociações. Apesar de ter havidouma tentativa de aproximação aoConselho de Concertação Social,foi muito difícil obter espaço parauma organização relativamente pe-quena face à influência de centraissindicais como a CGTP e a UGT.

Mas não temos como objectivonegociar. O nosso esforço passa

a qualidade da nossa intervenção,marcada essencialmente, como járeferi, pelo estatuto de observador.

Que temas vão ser abordados emcongresso?O tema do congresso poderá, à par-tida, parecer um pouco agressivo - einclusivamente gerou-se uma dis-cussão interna relativamente a essaquestão -, mas resume bem as preo-cupações da confederação: "Maisemprego, menos precaridade, maisdesenvolvimento".

No entanto, o inquérito foi baseadoexclusivamente numa amostra dequadros sindicalizados, o que não nospermitiu obter uma leitura mais repre-sentativa. Nesse sentido, estamos apensar em pedir um esforço aos sindi-catos do sector no sentido de nos aju-darem a completar a amostra e obterresultados com uma margem de erroaceitável, inferior a quatro por cento.

Outra das conclusões interes-santes retiradas deste inquérito éque, ao contrário do que possa pen-sar-se, a precaridade de emprego

© is

to é

© is

to é

Page 36:  · Director: José Paulo Serralheiro ·  apagina@spn.pt ano XII | nº 120 | FEVEREIRO | 2003 · Mensal | Continente e ilhas 2 Euros

36a páginada educaçãofevereiro 2003

entrevista

ao nível dos quadros é maior nasempresas públicas do que nas em-presas privadas. Esta ainda não éuma conclusão definitiva, já que onúmero de respostas por parte dequadros do sector privado é diminu-ta, mas parece constituir uma ten-dência bastante clara.

Este vai ser o último congressocom o Agostinho Santos Silva napresidência da confederação. De-cidiu que era tempo de passar otestemunho?Sim. A actual direcção vai propôr umalista de candidatura, na qual colaboreio mais activamente que pude, para aconstituição de uma nova direcção.Entendo que a minha saída resulta deuma necessidade de renovação e jul-go que os motivos para a minha saí-da foram compreendidos pelos ele-mentos da confederação. Quero con-tinuar a dar o meu contributo mas nãoenquanto membro da direcção.

É um processo de renovaçãoque, na minha opinião, deverá con-servar um núcleo forte, activo, quetransite da direcção anterior, apos-tando, ao mesmo tempo, na entradade novos elementos. Substituir umadirecção de uma assentada é tãomau como manter as mesmas pes-soas indefinidamente. E estou con-victo de que esta direcção sairá for-talecida em relação à anterior.

Os quadros em Portugal e na Europa

Qual é a taxa de colocação dequadros em Portugal por compa-ração à média europeia? A percentagem de quadros superio-res em Portugal é ainda muito baixase a comparamos com a dos paíseseuropeus e outros tecnologicamen-

deverá situar-se entre os quinze e osvinte por cento do total da popula-ção activa. Em países mais desen-volvidos essa percentagem atingeos trinta por cento.

Apesar de se ter verificado umaevolução sem precedentes do núme-ro de quadros presentes no mercadode trabalho, assiste-se, desde há cin-co ou seis anos, a um ligeiro decrés-cimo do número de saídas profissio-nais de nível superior, com o númerode pessoas formadas para o desem-prego ou colocada em empregos quenão correspondem às suas habilita-ções a aumentar progressivamente.

Em que medida varia essa per-centagem entre o sector público eo sector privado?Não detectamos, através do nossotrabalho, referências suficientes quepossam clarificar essa diferença.Mas um dado é certo: no sector pri-vado os vínculos contratuais dosquadros são mais estáveis, ao con-trário do que acontece com os res-tantes trabalhadores.

Não pensa que a discrepância desalários entre quadros e trabalha-dores de base é demasiado alta?Sim. E essa discrepância é muitomaior em Portugal do que noutrospaíses, inclusivamente os mais de-senvolvidos. O salário mínimo na-cional, por exemplo, é um terço ouum quarto do praticado em França,mas o presidente de uma empresacomo os Correios recebe mais oumenos o equivalente ao seu congé-nere português. Acha que se justifica o pagamen-to de valores tão elevados? Essadiscrepância não contribuirá paraenfraquecer a relação entre che-fias e trabalhadores?

Esse é mais um dos problemas cultu-rais do nosso país. Em Portugal con-sidera-se que os decisores devemser muito bem remunerados, mas es-sa opção não justifica o pagamentode salários tão elevados... E vai che-gar-se a uma altura em que não serápossível manter essa situação.

E estou de acordo consigo quan-do diz que esta discrepância é maisuma barreira entre quem gere equem é gerido. Quando se pedepoupança nas contas habitualmenteessa medida destina-se apenas aalguns. No nosso país não existeuma cultura de gestão que entendaque para conseguir empenho porparte dos outros é preciso dar oexemplo, que parte, nomeadamen-te, do comportamento do dia-a-dia,muitas vezes de coisas aparente-mente simples, como a forma de ga-nhar e de gastar o dinheiro...

Há pouco pedi-lhe para comparara percentagem do número dequadros em Portugal e nos paísesda UE. No próximo ano dez paísesda Europa de leste irão tornar-semembros de pleno direito daUnião. Qual é a presença de qua-dros nos países de leste e queefeitos poderá trazer a países pe-riféricos como Portugal? Não conheço com exactidão o con-texto desses países para adiantarum número. Os países de leste ti-nham um modelo educativo que nãopode ser directamente comparadocom o nosso, mas o facto é que ain-da hoje retiram alguns benefíciosdesse sistema educativo. São paí-ses com uma taxa de alfabetizaçãoperto dos cem por cento, uma for-mação técnica elevada e uma gran-de taxa de licenciados. A aberturados países da UE a leste vai certa-

te e economicamente mais fortes(se são ou não mais desenvolvidosisso é uma questão discutível...).

Devo referir que o conceito dequadro não é igual em todos os paí-ses. Em Portugal designa-se habi-tualmente por quadro um profissio-nal licenciado; em França usa-setambém a expressão "cadre", masmais para designar um cargo dechefia; já na língua inglesa, porexemplo, não existe qualquer desig-nação equivalente.

Além disso, vai-se verificando umesbatimento progressivo entre estascarreiras e as carreiras altamente

qualificadas, entre os quadros supe-riores e os quadros intermédios. Osquadros intermédios têm tendência adesaparecer das empresas, já que háuma polarização dos dois sistemas,resultado sobretudo da evoluçãotecnológica, que dispensa, de formacrescente, os patamares intermédiosna monitorização dos processos.

Tem alguma ideia de qual poderáser essa percentagem?Os números que temos não são to-talmente fiáveis porque, tal como járeferi, o próprio conceito de quadronão se enquadra nas estatísticas.Mas na nossa opinião esse número

O salário mínimo nacional, por exemplo,

é um terço ou um quarto do praticado

em França, mas o presidente de uma

empresa como os Correios recebe

mais ou menos o equivalente

ao seu congénere português."

© is

to é

© is

to é

© is

to é

Page 37:  · Director: José Paulo Serralheiro ·  apagina@spn.pt ano XII | nº 120 | FEVEREIRO | 2003 · Mensal | Continente e ilhas 2 Euros

37a páginada educaçãofevereiro 2003

entrevista

Ricardo Jorge Costa

mente gerar algum impacto, princi-palmente em países como Portugal,que pode estar num patamar de de-senvolvimento ligeiramente superiormas possui um baixo nível de for-mação geral da população.

Produtividade versus gestão

Onde é que Portugal regista a suaprincipal debilidade?Não tenho pretensão de ter uma res-posta qualificada para essa questão,mas vamo-nos confrontando com si-nais negativos que nos mostram queeste, certamente, não é o caminho...

Um desses sinais prende-se coma forma como abordamos a gestãoe a participação na gestão. E se merefiro mais concretamente ao papeldos quadros, poderia referir-metambém ao dos trabalhadores quali-ficados em geral. Quer no sectorpúblico quer no sector privado veri-ficamos que, em geral, as adminis-trações têm receio de ser confronta-das com a energia criativa das pes-soas. Em vez de serem chamadas aparticipar - diria quase a protestar,se for caso disso -, as pessoas ha-bitualmente limitam-se a fazer o quelhes mandam.

Aqui há uns anos foi publicadoum livro, chamado Em Busca da Ex-celência, que abordava os casos dehistoriais de sucesso prolongado dealgumas empresas americanas eonde se percebia que o factor queas diferenciava era o modelo degestão, de preservação e de desen-volvimento do conhecimento. Oranão é possível desenvolver o capitalde conhecimento de uma empresaamordaçando as pessoas... É ne-cessário haver elementos que to-mem iniciativas, mesmo contra aopinião dos gestores, que pensem,

que criem... São estas pessoas fa-zem falta em Portugal.

Na minha opinião, um dos primei-ros passos para inverter este maras-mo seria criar condições para queos quadros qualificados pudessemter uma intervenção mais activa, eisso passa por negociar estratégiascom as pessoas. E esta prática nãoexiste no nosso país, ninguém falacom ninguém.

Não pensa que esta questão àvolta da produtividade nacionalestará a ser abordada de uma for-ma um tanto ou quanto demagó-gica, isto é, com a tónica postaexclusivamente na produtividadedos trabalhadores e não no pro-cesso organizativo e na gestãodos recursos?Sim, e a confederação de quadros jádenunciou isso mesmo, engrossan-do o coro de protestos que conti-nuam a afirmar que a produtividadenão está directamente relacionadacom as leis do trabalho. A lei não al-tera o nosso principal ponto fracoque é a fraca capacidade de gestãoe de visão estratégica dos gestores edos governantes no sentido de apro-veitarem as potencialidades do país.

Essa falta de estratégia é visível,nomeadamente, na formação pro-fissional, que os trabalhadores têmpraticamente de andar a mendigar...Quanto mais não seja por umaquestão de inteligência, os gestoresdeveriam dar mais importância aodiálogo e à negociação com os tra-balhadores.

Uma das questões mais aborda-das recentemente tem sido a pro-gressão por mérito na administra-ção pública. Qual é a vossa opi-nião nesta matéria?

A Confederação de Quadros nãodefende a instauração de uma meri-tocracia, embora concorde que eleseja melhor do que uma autocracia.Mas sabemos que a avaliação domérito pode, por vezes, ter contor-nos desviantes, como é o caso dosrankings das escolas, que por algu-ma razão tem sido contestada. Ava-liar a qualidade de uma escola combase nos resultados dos exames éalgo que não só é injusto como ine-ficaz. A questão do mérito é, apesarde tudo, um mal menor. A avaliaçãoglobal das escolas deve ser feito,mas partindo de um modelo que

permita fazer isso de uma forma jus-ta, acordada entre as partes.

Numa empresa também é possí-vel avaliar o mérito com base numaavaliação objectiva, mas partindo deum plano de trabalho previamentenegociado entre as partes - e subli-nho a palavra negociado. Porém, nãohá nenhum método perfeito. A minhaexperiência de gestor diz-me que es-ta é uma abordagem difícil, porquehá sempre quem fique descontente.mas um modelo que não seja aceitepor ambas as partes é bom.

O ensino superior irá atravessarmudanças significativas na europa,consequência nomeadamente doactual processo de convergênciapara o sector e da proposta ameri-cana na Organização Mundial deComércio de mercadorização dosserviços educativos a nível mun-dial. Não se estará a potenciar ummercado educativo orientado paraactividades comerciais lucrativas,provocando uma descida do nívelgeral da qualidade do ensino? Exis-te uma proposta para as licenciatu-ras se limitarem a três anos...Devemos questionar-nos sobre o quesignifica ser mais ou menos especia-lizado e se isso estará ou não relacio-nado com a qualidade do ensino.Quando entrei para os CTT o tempomédio de formação de um funcioná-rio era de meio ano; nos últimos anosdurava um mês e meio; hoje, recor-rendo a ferramentas informáticas, otempo dispendido na formação nãoultrapassa uma semana. Quererá issodizer que estes funcionários são me-nos especializados? Não necessaria-mente, porque para adquirirem estascompetências em apenas uma sema-na precisaram de ter uma formaçãode base mais completa e actualizadado que os seus antecessores.

Quanto à padronização niveladapelo baixo, como refere, é um es-forço que os grandes deste mundoestão a tentar impôr para formaruma barreira maior entre a massa ea excelência, que cada vez mais vaiestar apenas ao alcance de pou-cos. Nos Estados Unidos as melho-res universidades são inatingíveispara a larga maioria das pessoas ejá se fundem com as empresas deuma forma que em Portugal aindanem se sonha... E essa é uma ten-dência inevitável.

"Quanto mais não seja por

uma questão de inteligência,

os gestores deveriam dar mais

importância ao diálogo e à

negociação com os trabalhadores."

© is

to é

© is

to é

Page 38:  · Director: José Paulo Serralheiro ·  apagina@spn.pt ano XII | nº 120 | FEVEREIRO | 2003 · Mensal | Continente e ilhas 2 Euros

38a páginada educaçãofevereiro 2003

modos de viver

Estou retornando do Fórum Social

Mundial de Porto Alegre transbordan-

te de entusiasmo que, de tão grande,

precisa ser compartilhado. Eis porque

lhes escrevo, companheiros e compa-

nheiras leitores e leitoras da Página da

Educação.

Cem mil pessoas, vindas de todos

os cantos do mundo, ali se reuniram

para pensarem juntas um mundo me-

lhor, congregadas pela esperança de

que é possível se construir um mundo

melhor. Eram homens e mulheres; jo-

vens, idosos e crianças; europeus,

africanos, latino-americanos, norte-

americanos, asiáticos, eurasianos e,

quem sabe, até alguns extra-terrestes.

O que havia de comum entre tantas

diferentes pessoas? Respondo eu,

que o que o ser humano tem de melhor

– a generosidade, a solidariedade, a

capacidade de compartilhar, de doar-

se, a esperança e a capacidade de lu-

tar por um mundo melhor.

Estas cem mil pessoas que circula-

vam nos diferentes espaços em que

aconteciam conferências, debates,

mesas-redondas, painéis, entremea-

dos por shows musicais e teatrais e ci-

nematográficos e por simples e coti-

dianos encontros, no dia 23 foram se

aproximando do ponto de encontro

para a Passeata pela Paz. Cada grupo

carregava as suas bandeiras, suas pa-

Postal de Porto Alegre

POSTAL de Porto AlegreRegina Leite GarciaUniversidade Federal

Fluminense, Brasil

A escola da nossa saudade · Luís Souta · Preço 5,00 € : : A escola para todos e a excelência académica · António Magalhães ·

Stephen Stoer · Preço 6,00 € : : Carta de chamada: depoimento da última emigrante portuguesa em Habana · Aurélio Franco

Loredo · Preço 4,00 € : : Como era quando não era o que sou: o crescimento das crianças · Raúl Iturra · Preço 5,00 € : : Edu-

cação intercultural: utopia ou realidade · Américo Nunes Peres · Preço 8,00 € : : Escolas superiores de educação e ensino po-

litécnico: uma década de debates, algumas polémicas e critica que baste · Luís Souta · Preço 3,00 € : : Fiat Lux: regime disci-

plinar dos alunos e regime de autonomia das escolas · Manuel Reis · Preço 3,00 € : : Multiculturalidade & Educação · Luís Sou-

ta · Preço 6,00 € : : Orgulhosamente filhos de Rousseau · António Magalhães · Stephen Stoer · Preço 3,00 € : : Paixão segundo

José Saramago · Conceição Madruga · Preço 4,00 € : : Pedagogia para a igualdade, uma escola não sexista : Iracema Santos Cla-

ra · Maria Manuela Silva · Ariana Cosme · Preço 2,00 € : : Por uma escola para todos · Unidade didáctica · Preço 2,00 € : : Por

uma pedagogia da não violência · Unidade didáctica · Preço 2,00 € : : Princípios e orientações para a administração da esco-

la secundária · Eurico Pina Cabral · Preço 3,00 € : : Quando eu for grande quero ir à Primavera e outras histórias · José Pacheco ·

Preço 7,00 € : : Ser igual ser diferente, encruzilhadas da identidade · Ricardo Vieira · Preço 4,00 € : : Viver Abril com Zeca Afonso

· Unidade didáctica · Preço 2,00 € : : Pensar o ensino básico · vários · Preço 5,00 € : : Por falar em formação centrada na escola ·

Manuel Matos · Preço 6,00 €

Editora ProfediçõesLivros em venda directa *

Nota: Os preços indicados correspondem à venda directa e têm cerca de 50% de desconto em relação ao preço de venda nas livrarias. Podem ser enviados contra

cheque passado em nome da Profedições ou à cobrança. Os pedidos podem ser feitos por qualquer dos endereços indicados no boletim de assinatura de a PÁGINA.

Venho comunicar-vos que quero ser assinante do jornal a PÁGINA da educaçãoNome Morada Código Postal -

Assinatura por:1 ano de 2003 a de 2004 | 20 €

2 anos de 2003 a de 2005 | 35 €

Cheque nº do Banco Em nome de Profedições, lda.

Boletim de Assinatura

Pedidos de LIVROS e JORNAISCheques em nome de Profedições, lda.

Rua D. Manuel II, 51 C

2º andar · sala 2.5

4050-345 PORTO

Tel.: 226002790

Fax: 226070531

E-mail: [email protected]

lavras de ordem e seus cantos. Quilô-

metros do centro da cidade cobertos

pelo colorido das bandeiras pelas co-

res diferentes das peles e dos cabelos,

pelo desenho diferente das roupas que

se mesclavam num imenso rio multi-

cultural. Diferentes nacionalidades, di-

ferentes etnias, diferentes ritmos, dife-

rentes línguas, que compunham um

desenho multicolorido mostrando que

a paz é multicolorida pois é o resultado

do mais rico processo de hibridização

de que se tem notícia.

Ali estavam palestinos e israelen-

ses, ali estava o MST do Brasil e o MST

do Paraguai, ali estavam catadoras de

lixo e um grupo de poetas, ali estava a

CUT, o PC do B e o PSTU, ali estava a

população de Porto Alegre aplaudindo

a massa colorida que passava.

No dia seguinte, a mesma multidão

convergiu no final da tarde para um

imenso espaço denominado Pôr do

Sol, para ouvir o Lula, para ouvir a sua

explicação para ir a Davos, o que tan-

tos e tantas discordavam que o fizes-

se. Era a hora do pôr do sol, o Lula fa-

lava e a energia que circulava era tão

forte que entrava pelos corpos e se

espalhava pela terra e produzia uma

luminosidade que a todos emociona-

va. E a palavra de Lula ia convencen-

do os mais resistentes, que os outros

já há muito estavam convencidos, da

importância de se apresentar em Da-

vos, não como devedor, destino es-

perado de um representante do Ter-

ceiro Mundo, mas como credor, que

vem altivamente para, em nome dos

povos deserdados da terra, cobrar

uma velha conta. Seu discurso foi do-

ce mas firme, amoroso mas contun-

dente, sem deixar qualquer dúvida do

papel que primeiro o Brasil, mas ago-

ra o mundo lhe outorgava.

Era o estadista do mundo que fala-

va e que nos enchia de orgulho.

Eu poderia falar nos brilhantes con-

ferencistas, na fala de portugueses

como Boaventura Santos ou Mário

Soares, de norte-americanos como

Noam Chomsky ou Fredric Jameson,

de uruguaios como Eduardo Galeano,

de argentinos como Fernando Sola-

nas ou Adolfo Perez Esquivel, de fran-

ceses como Armand Mattelard ou

Ignácio Ramonet, de egipcios como

Samir Amin, de africanos como Willy

Madisha, de Susana George das Filipi-

nas, de Tarik Ali do Paquistão, de Is-

ztvan Mészáros da Inglaterra e de tan-

tos e tantas outros que traziam as

suas experiências e as suas esperan-

ças para generosamente compartilhar.

Mas a grande estrela foi o Lula, espe-

rança do mundo por um mundo melhor.

Um outro mundo é possível

Un outro mundo es posible

Un autre monde est possible

Another world is possible

Este slogan carregamos cada um de

nós e nos inspira por continuar a lutar.

© is

to é

Pacote: 1 exemplar de cada um dos livros desta lista ( 18 títulos)- Preço único 50,00 €(Envie cheque em nome de Profedições. lda, no valor de 50,00 €, indicado: quero receber o pacote dos livros indicados na venda directa).

Page 39:  · Director: José Paulo Serralheiro ·  apagina@spn.pt ano XII | nº 120 | FEVEREIRO | 2003 · Mensal | Continente e ilhas 2 Euros

39a páginada educaçãofevereiro 2003

modos de viver

A correr o mais depressa que as per-nas deixam, um miudinho, franzino,irrompe pelo corredor fora. Atrás amãe esbaforida ralha: “Espera!” Masa corrida continua e a criança só pá-ra às pernas da “avó” Geninha.

Quando começou a fazer volunta-riado no Instituto Português de Onco-logia (IPO), no Porto, há 21 anos, Eu-génia Ribeiro era “Gena” para quem aquisesse chamar. Com o passar dotempo foi rebaptizada de “tia” Geni-nha. Aos 73 anos Geninha é “avó”. Étambém a coordenadora das voluntá-rias da Liga Portuguesa Contra oCancro (LPCC) que prestam apoio aoserviço de pediatria naquele hospital.Mas este é apenas um dos serviçosassegurados pelos 450 voluntáriosda Liga no IPO. Existem outros.

À chegada ao hospital é impossí-vel não reparar no serviço de acolhi-mento. Há um voluntário em cadacanto para encaminhar as pessoaspara os serviços que procuram. “Dodoutor ao analfabeto, todos ficamdesorientados quando aqui che-gam, sejam doentes ou familiares”,explica Dinora Freitas, voluntária há22 anos e coordenadora deste ser-viço. As voluntárias sabem que ocancro ainda é um tabu e que há umestigma em torno da sigla IPO. Daíque para Dinora a simpatia e a pres-tabilidade sejam essenciais paraquem se vê forçado a percorrer oscorredores do IPO.

A par do acolhimento, a linha dafrente do voluntariado, existe aindaum outro serviço que salta à vista: o

ONG’sAndreia Lobo

Núcleo Regional do Norte da Liga Portuguesa Contra o Cancro

Tipo: Instituição de Utilidade Pública

Objectivos: Desmistificar o cancropromovendo uma imagem realista dasua natureza e causas, mas tambémapostar na sua prevenção, tratamentoe cura.

Direcção: José Cardoso da SilvaMorada: Estrada Interior da Circunva-lação 6657/ 4200-177 PortoTelefone: 225492423

Página na Net:www.ligacontracancro.pt

Voluntários da Liga Portuguesa Contra o Cancro

A militância da ternuracafé com leite. A Liga dispõe de seiscarrinhos que percorrem os mean-dros do hospital a distribuir café comleite e bolachas, gratuitamente. To-dos podem ser clientes deste serviço:quem aguarda por consultas, osacompanhantes e o pessoal hospita-lar. Só que os voluntários não ficam àespera que as pessoas se dirijam aocarrinho; vão ter com elas e pergun-tam: “Não quer tomar um cafezinho?”

Menos visíveis são os serviços devisita às enfermarias e o acompa-nhamento de doentes e seus fami-liares. Mas requerem uma boa pre-paração por parte das voluntárias. Aprimeira lição sobre como apoiarconsiste em desmistificar o cancro.Geninha não deixa margem para dú-vidas: “Aqui ninguém é coitadinho.”No seu português do Brasil a volun-tária esclarece que “estar doente éum percalço que qualquer um pode

ter” e insiste: “Ninguém é doente, aspessoas ficam doentes.”

Desmistificar não significa, con-tudo, desvalorizar o sofrimento dosdoentes e dos que os acompanham.Esta é a segunda lição. “Não pode-mos bater nas costas das pessoas edizer que isto vai passar, devemosantes transmitir confiança e tranqui-lidade”, ensina Dinora. A função dovoluntário no que toca ao seu rela-cionamento com doentes e família éouvir o que estes têm a dizer semcuriosidade de saber para além doque é contado. Sem dar conselhos esem interferir na questão médica.“Muitas vezes os pais das criançasvêm ter comigo e dizem que o médi-co sugeriu determinado tratamentoe depois perguntam: se fosse teu fi-lho o que fazias?” A resposta só po-de ser uma e Geninha não hesita emdá-la: “A decisão tem de ser vossa!”

“Boa disposição controlada”

Local de cura para uns, de doençapara outros, o IPO carrega em si umquê de tristeza inevitável. As volun-tárias sabem-no bem. A sua presen-ça e amabilidade servem para ame-nizar a atmosfera hospitalar. Para is-so é essencial ter uma “boa disposi-ção controlada”, explica Dinora. Euma “apresentação cuidada, massem exageros”, acrescenta Geni-nha. Características estéticas quenão maquilham uma outra qualida-de vital para o exercício do volunta-riado no IPO: “força interior”, avisaGeninha. “Não é qualquer pessoaque consegue ser voluntária nestehospital”, garante. A experiência en-sinou-as que é preciso dar muitaatenção às recaídas que se suce-dem a períodos de relativa melhora.Quando isto acontece nas crianças“muitas recusam os tratamentosporque estão cansadas”, observaGeninha. Neste caso “não devemosforçar a criança a fazer o que a prio-ri não quer”, alerta. “Devemos con-tornar a situação com jeitinho.”

A recompensa por esse “jeitinho”vem do reconhecimento do pessoalmédico e dos doentes, dizem as vo-luntárias. Muitos voltam ao hospitalcom o único intuito de as visitar e deagradecer, mais uma vez, os seuscuidados. E é por isso que o miudi-nho franzino corre em direcção àspernas da “avó” Geninha abraçan-do-as como se tivesse acabado decortar a meta.

© is

to é

© is

to é

Page 40:  · Director: José Paulo Serralheiro ·  apagina@spn.pt ano XII | nº 120 | FEVEREIRO | 2003 · Mensal | Continente e ilhas 2 Euros

40a páginada educaçãofevereiro 2003

Todos os dias, por volta das 6,30 da manhã, ElsaSoares deixa o conforto da casa para se aventurarem mais um dia de aulas. Apanha o comboio dassete para Ovar, onde chega cerca de 45 minutosmais tarde. Já a caminho da escola sobra aindatempo para um café e uma curta leitura do jornaldiário. Três, quatro, sete horas mais tarde, confor-me o dia da semana, esta professora está de re-gresso ao Porto, onde reside, cansada de mais umdia de trabalho e de viagens. Um esforço, admite,que por vezes "não compensa".

"O mais desmotivante nesta profissão é talvez ofacto de os alunos, a comunidade e o próprio mi-nistério nem sempre reconhecerem o esforço diáriode milhares de colegas na minha situação ou emcondições precárias de emprego". Quotidianos deinstabilidade e de desmotivação, desconhecidosda maioria da opinião pública, que fazem com queconsidere os jovens professores portugueses umaespécie de "heróis". O estatuto profissional é cadavez mais um documento de "boas intenções", ex-plica com alguma indignação. "Os professores con-tratados praticamente só têm deveres; os direitos

estão a ser progressivamente alienados".Apesar de, nos últimos tempos, se ter vindo a as-

sistir a uma crescente desconfiança em torno daqualidade do ensino e dos próprios professores, El-sa Soares considera que a imagem positiva que es-tes têm junto da sociedade está "longe de se esgo-tar". E não há nada que retire à profissão a sua aurade romantismo: "Mesmo se por momentos pudésse-mos estabelecer algum tipo de comparação com ou-tras profissões socialmente relevantes, o acto deeducar, pela sua própria natureza, continua a ser umdos mais belos e reconhecidos".

Apesar de concordar com esta opinião, Fernan-da Santos, 46 anos, professora do 2º e 3º ciclo, dizque as palavras bonitas não podem inverter a pro-gressiva deterioração das condições de trabalhodos professores, e principalmente dos que agorase iniciam na carreira. A precariedade da profissãoé, na sua opinião, o factor que mais tem contribuí-do para a crescente desmotivação entre os maisnovos e para a falta de candidatos que estejam"realmente à altura" do desafio que vão ter pelafrente. O que depois acontece, prossegue, é "ver-

Ser professor já não parece ter a mesma aura de outrora. De uma profissão

ambicionada e respeitada, a docência chega hoje a ser encarada como uma

mera alternativa ao desemprego (como comprova um recente inquérito rea-

lizado aos docentes do ensino secundário, a cargo do Instituto Irene Lisboa

e a pedido do Sindicato dos Professores da Grande Lisboa, onde cerca de

dois terços dos professores deste nível de ensino admitiram ter escolhido a

profissão por "inexistência de outras opções"). Ser professor hoje é diferente

em relação ao que era? O prestígio social associado à profissão mantém-se?

Ou os tempos mudaram e os jovens procuram hoje actividades que, mais

do que conferir um determinado estatuto, sejam melhor remuneradas? Fo-

mos ouvir algumas opiniões.

Outros modosde ser professor

Imagens sociais dos professores

© is

to é

Page 41:  · Director: José Paulo Serralheiro ·  apagina@spn.pt ano XII | nº 120 | FEVEREIRO | 2003 · Mensal | Continente e ilhas 2 Euros

41a páginada educaçãofevereiro 2003

FACE a faceRicardo Jorge Costa

mos professores que não se adaptam ou que co-meçam a ficar rapidamente desgastados".

A partir daí, conclui Fernanda Santos, não é di-fícil gerar-se um efeito "bola de neve" que conduzà progressiva "desconfiança" relativamente àprestação dos professores e das escolas portu-guesas, o que, por sua vez, vai "retirando prestí-gio" à classe no seio da opinião pública.

A avaliar pelas conclusões de um recente estu-do coordenado pelo psiquiatra Rui Mota Cardososobre as origens de stress nos professores (ver en-trevista com Mota Cardoso no número de Maio de2002 da PÁGINA), as questões relacionadas como estatuto profissional são as principais responsá-veis pelo aparecimento de situações de stresscom "algum significado" na profissão, sendo refe-ridas por 33% dos inquiridos. A "estabilidade" e o"gradualismo nas mudanças" são dois dos facto-res apontados pelos professores como "essen-ciais à qualidade do seu desempenho".

O mérito de persistir em ser professor

De acordo com a generalidade das opiniões reco-lhidas pela PÁGINA, a profissão está longe de per-der o prestígio que desde sempre a caracterizou,mas longe vai o tempo em que ser professor erauma actividade amplamente reconhecida, valoriza-da e, por isso, procurada. Os professores mais ve-

lhos, que viveram esta lenta transmutação, consi-deram mesmo que ela perdeu algum "carisma".

É o caso de Carlos Pereira, 52 anos, professor doensino secundário, que diz ainda recordar-se da es-pécie de "sentimento de admiração" com que aspessoas olhavam um professor, mesmo tratando-se do seu início da carreira, como lhe aconteceu aos23 anos. Actualmente, refere com alguma mágoa,"os pais chegam a ir à escola bater nos professo-res", facto que revela, na sua opinião, a perda do"poder simbólico" que a classe detinha.

"Hoje em dia só escolhe a profissão quem real-mente sente vocação ou quem tem algum estô-mago para aguentá-la", afirma por seu lado Eliza-bete Soares, 49 anos, professora desde 1974.Quando começou a dar aulas, explica, a docênciaera encarada como uma "garantia de futuro" e es-tava equiparada a outras profissões socialmentevalorizadas como a medicina ou a advocacia.

Hoje, garante, os mais jovens "não ligam tantoao prestígio" que isso lhes traga e procuram pro-fissões que, acima de tudo, sejam melhor remune-radas e que não tragam tantas "aflições". Além

disso, sublinha, o vínculo vitalício associado aosempregos do Estado é um "mito" que se tem dis-sipado e que contribui, em grande medida, para ofacto de a docência ser olhada com cada vez me-nor apetência pelos jovens.

E a julgar pela opinião dos próprios, esta pro-fessora não andará longe da verdade. Andreia Vas-concelos, 27 anos, desde há um ano com horáriocompleto numa escola dos arredores do Porto,afirma que um dos principais responsáveis pela"crescente desvalorização" da profissão se deveprecisamente a quem deveria incentivá-la: o Minis-tério da Educação.

"Num país onde mais de 15 mil professores fi-cam colocados no sistema de forma precária nãose torna apetecível seguir uma carreira no ensino",diz. O reflexo desta política de desinvestimento es-tá à vista. É que, apesar de a profissão ainda man-ter o seu prestígio, esta jovem professora conside-ra que as áreas de trabalho mais conceituadaspassaram a ser as engenharias e tudo o que se re-laciona com o mundo da gestão e das finanças.Parece ser caso para dizer que "ser professor estáfora de moda...".

Mas não é só em Portugal que a crise de iden-tidade na profissão atinge níveis preocupantes.Em França, um estudo realizado em Agosto do anopassado pelo ministério da educação daquelepaís, citado pela Agência France-Press, revelava

que, apesar de a maioria dos professores se mos-trar satisfeito com a sua profissão, perto de 85%queixava-se que o seu trabalho "não é suficiente-mente reconhecido" pela sociedade e 51% acha-va que se verifica uma crescente "desvalorizaçãoda profissão".

E os alunos? O que pensam eles da profissãoe do papel do professor? Desde quem encare oprofessor como uma figura ainda respeitada, aosque consideram como uma personagem em "de-suso", que um dia será substituída por um com-putador-professor, as respostas variam e, por ve-zes, surpreendem.

Apesar de aparecer sempre referida na hierarquiadas profissões associadas a um estatuto social maiselevado, foram poucos os alunos que mostraramvontade de trilhar o caminho dos seus professores.Num grupo de oito alunos entrevistados, apenasuma, a Célia Martins, aluna do 10º ano, está certa dequerer fazer carreira no ensino, mesmo sabendo queé uma profissão "exigente" e que arranjar empregona área nem sempre é fácil. De qualquer modo, ga-rante, "a decisão está tomada".

© is

to é

Page 42:  · Director: José Paulo Serralheiro ·  apagina@spn.pt ano XII | nº 120 | FEVEREIRO | 2003 · Mensal | Continente e ilhas 2 Euros

42a páginada educaçãofevereiro 2003

praça da república

OPINIÃONoel Maria Carvalho

de MirandaEscola Secundária

de Rocha Peixoto

Há dois factores absolutamente letais que fazem com que medidas deste tiposurjam e que justificam o atraso que se verifica no nosso país ao nível da edu-cação dos cidadãos e ao nível da qualificação profissional e do desenvolvi-mento tecnológico:

— Nos últimos vinte e cinco anos o nosso país nunca teve uma política edu-cativa coerente, com objectivos bem definidos e um período de vigência maisou menos programado, que pudesse desenvolver-se mais depressa ou maisdevagar, conforme os sucessivos governos do país, mas que mantivesse sem-pre o seu rumo. Aquilo que temos tido sempre são apenas medidas educativas,completamente subsidiárias de políticas económicas e financeiras de momen-to e ainda de estratégias políticas dos sucessivos governos, que se sucedempor vezes a ritmo alucinante para padrões de tempo histórico, sem que se façaqualquer avaliação do efeito das medidas tomadas anteriormente;

— No mesmo período de tempo e na generalidade dos sucessivos gover-nos sempre se evidenciou a falta de coordenação entre as políticas dos dife-rentes ministérios, não sendo nada difícil encontrar declarações completa-mente contraditórias entre responsáveis de pastas como a educação, a eco-nomia, o trabalho e o emprego;

Tentarei mostrar que são fundamentalmente estes dois factores que estãopor trás desta pretensão de extinção do Curso Tecnológico de Mecânica:

— Tem sido repetidamente dito ao nível dos responsáveis da economia e doemprego que o desenvolvimento do país e a sua aproximação ao nível dos ou-tros parceiros comunitários, passa por modificações estruturais na nossa in-dústria, com o empenho e investimento na qualidade e em tecnologias de pon-ta, abandonando o recurso a mão-de-obra barata e pouco qualificada e apos-tando na formação de quadros intermédios. O vasto campo da mecânica temaqui um papel fundamental e insubstituível. Como resposta a este desafio es-sencial o ministério da Educação extingue o Curso Tecnológico de Mecânicado ensino secundário;

— Já há alguns anos que especialistas em trabalho e emprego afirmam queáreas como a electrónica e a informática, no campo das novas tecnologias,deixam de fazer grande sentido como áreas puras de formação, mas passama fazer todo o sentido como áreas de aplicação ao desenvolvimento e moder-nização tecnológicos na indústria e consequentemente no vasto campo daMecânica aí predominante. Como resposta, o ministério da Educação mantémos Cursos Tecnológicos de Electricidade/Electrónica e de Informática, mas ex-tingue o Curso Tecnológico de Mecânica;

— Ao nível do acesso ao ensino superior os cursos de engenharia são dosque têm apresentado médias de ingresso mais acessíveis porque a oferta decursos continua a ser maior que a procura. Os engenheiros recém-formadosnão têm dificuldades em arranjar emprego logo à saída das faculdades. É opi-nião generalizada ao nível das instituições de ensino superior que os alunos doCurso Tecnológico de Mecânica apresentam uma preparação que os alunosdos cursos de prosseguimento de estudos não têm. É fundamental e urgenteque se formem quadros intermédios na vasta área de mecânica. O número deescolas e centros profissionais que formam técnicos de nível III nesta área ébastante reduzido, tomando o País no seu todo. As escolas secundárias como Curso Tecnológico de Mecânica asseguram as duas situações referidas an-teriormente. Por um lado fornecem alunos aos cursos de engenharia do ensi-no superior, por outro lado formam técnicos com qualificação profissional denível III, assegurando a realização de um estágio de três meses após o curso.Como resposta às necessidades o Ministério da Educação extingue o CursoTecnológico de Mecânica;

— No dia 13 de Novembro de 2002 a nossa escola foi convidada a levar osalunos do Curso Tecnológico de Mecânica à Exponor, numa acção organiza-

A reforma curricular no ensino secundário e a extinção do curso tecnológico de mecânica

Esta pretensão ministerial, que tanto toca todos os cole-

gas da área de mecânica ( 2º Grupo-A e 12º Grupo-A ),

surge na continuação de muitas outras anunciadas por

sucessivos ministros da educação ao longo das últimas

décadas e que com certeza não chocaram da mesma

maneira muitos colegas, porque aparentemente não

lhes diziam tão directamente respeito.

da pelo CATIM – Centro de ApoioTecnológico à Indústria Metalome-cânica, sob o lema “Metalurgia eMetalomecânica – Um Sector comFuturo” e no âmbito da ExposiçãoInternacional de Máquinas-Ferra-menta. Esta acção teve o apoio daAIMMAP – Associação dos Indus-triais Metalúrgicos, Metalomecâni-cos e Afins de Portugal, da ANEM –Associação Nacional das EmpresasMetalúrgicas e Metalomecânicas, doInstituto de Emprego e FormaçãoProfissional, do Ministério do Em-prego e ainda o alto patrocínio doPresidente da República. Após umavisita à exposição, mais de mil alu-nos provenientes de escolas de dife-rentes pontos do país, todos da áreade mecânica, foram concentradosno grande auditório, sendo incenti-vados por responsáveis das diferen-tes entidades referidas anteriormen-te a prosseguir com éxito os seusestudos. Também as escolas foramincentivadas a promover os cursosda área de mecânica. No prossegui-mento destes esforços o ministérioda Educação pretende extinguir oCurso Tecnológico de Mecânica;

— Adoptando uma postura detentar compreender alguns especia-listas de gabinete em pedagogia,cujas teorias são aproveitadas peloministério da Educação quandoconvém, poder-se-ia hesitar peranteum postulado do estilo – “A forma-ção académica no ensino secundá-rio deve ter um carácter mais gene-ralista não entrando em especializa-ções técnicas da competência deoutras instituições ou graus de ensi-no”. Mas, neste caso, porque é quena proposta do ministério da Educa-ção continuam a existir, por exem-plo, os Cursos Tecnológicos deElectricidade/Electrónica e de Infor-mática? Mais ainda, pretende o mi-nistério da Educação alargar a atri-buição da qualificação profissionalde nível III a todos os alunos, obri-gando todos a fazer o estágio emempresa, para que tenham os cur-sos tecnológicos concluídos;

— Verificando-se a falta de fun-damentação do argumento anterior,só resta tentar encontrar uma outrajustificação para a pretensão do mi-nistério da Educação. As turmas doCurso Tecnológico de Mecânica dasnossas escolas têm poucos alunos.É um facto que as turmas das áreastecnológicas mais tradicionais –electricidade e mecânica – têm me-nos alunos inscritos do que as ou-tras áreas. Este facto não deve serimputado às escolas, que tudo fa-

zem para divulgar os cursos, massim às medidas educativas dos su-cessivos governos das últimas dé-cadas. Muito do atraso que apre-sentamos em relação a sistemaseducativos de outros países deve-se a uma confusão básica dos nos-sos dirigentes políticos em torno dedois conceitos: “igualdade de opor-tunidades no acesso à educação” e“uma educação igual para todos”.São conceitos completamente dis-tintos, mas muitos dos nossos go-vernantes, daltònicamente, a pensarno primeiro conceito acabaram poraplicar o segundo. Ao longo de su-cessivos anos a prática educativaacabou por incutir, sobretudo nosencarregados de educação mastambém nos alunos, a ideia de que oensino secundário servia na melhordas hipóteses para levar os alunosao ensino superior e na pior das hi-póteses para dar um emprego “lim-po” atrás de uma secretária, de pre-ferência com um computador em ci-ma. Daí a falta que se faz sentir nonosso país de técnicos intermédiose a pouca procura de cursos que àprimeira vista não são socialmentemuito bem vistos. Perante estes fac-tos só há dois caminhos a seguir.Procurar combater o atraso tecnoló-gico e seguir o caminho do desen-volvimento, incentivando e promo-vendo os cursos da área de mecâni-ca, como propuseram os promoto-res da acção “Metalurgia e Metalo-mecânica – Um Sector com Futuro”,no dia 13 de Novembro de 2002 naExponor, é a opção lógica e certa.Navegar na estagnação, enterrandoa cabeça na areia e tomando a posi-ção que de imediato é mais fácil, ex-tinguindo o curso Tecnológico deMecânica, é a opção do ministérioda Educação;

— Por fim, surge o fantasma tute-lar da ministra das Finanças que de-sencadeia um último possível argu-mento a favor da extinção. O CursoTecnológico de Mecânica fica muitocaro ao Estado devido ao investi-mento que é necessário fazer emequipamento e materiais. Mas, nes-te caso, porque é tomada agora es-ta decisão e não há dez ou cincoanos atrás? É que o ministério daEducação nunca investiu de umaforma séria nos equipamentos doscursos tecnológicos e particular-mente na área de mecânica nasduas últimas décadas. Na generali-dade, o pouco equipamento forne-cido às escolas foi sempre de fracaqualidade e tecnològicamente pou-co evoluído. O grosso do reapetre-

Page 43:  · Director: José Paulo Serralheiro ·  apagina@spn.pt ano XII | nº 120 | FEVEREIRO | 2003 · Mensal | Continente e ilhas 2 Euros

43a páginada educaçãofevereiro 2003

praça da república

OPINIÃOPaulo Frederico Ferreira GonçalvesEscola Básica 2/3 de

S. Torcato, Guimarães

Actualmente, tudo aponta para uma sociedade a privilegiar o su-cesso individual e o isolamento da pessoa humana face ao co-lectivo. Os fantasmas do comunismo alimentados pelo "establis-hment", o poder instituido, servem sobretudo para enfatizar assupostas virtualidades da sociedade ocidental em oposição aoutros modelos de formulação social, cuja concretização históri-ca não encontrou resposta nas populações, por força de vonta-des singulares e não pela menor vitalidade das ideias. Ou seja, ofalhanço do socialismo deveu-se, exactamente, ao que motiva asenormes disparidades sociais e humanas nas actuais sociedadesditas demo-liberais.

Neste contexto, o papel do ensino pode seguir dois caminhos:o do seguidismo fácil, enaltecendo as ideias força do capitalismo,da competição desenfreada, da caridade como forma de reajusta-mento e acerto dos desníveis sócio-económicos, ou então, o daEscola a desempenhar o papel corrector de uma cultura decaden-te, promíscua e a atingir o paroxismo da hipocrisia, integrando numsegundo momento, na sua dinâmica de processo, uma compo-nente reformuladora que retome os valores verdadeiros da solida-riedade, democracia, justiça social, aplicando-os em prol de umahumanidade mais justa e independente do atavismo dos conser-vadores reaccionários, subservientes aos desígnios do dinheiro, àsmanobras do capital, aos negócios subterrâneos da droga e dasarmas, só por si fazedores de guerras, terrorismo e morte.

Pode e deve a escola formar os jovens no sentido da coope-ração entre homens, comunidades, países, valorizando nas suascomponentes curriculares os conteúdos que proporcionem aojovem a experiência e a vivência da liberdade, apetrechando-osintelectualmente de modo a serem capazes de discernir o uso in-devido dos valores universais da Revolução Francesa, futurosadultos capazes de distinguir entre respeito e subserviência, hu-mildade e humilhação, verdadeira inteligência de mera habilida-de cognitiva, revolução de reacção, jovens politicamente activos,ou seja, capazes de intervir enquanto agentes transformadoresdo factor social, imunes aos virus da estupidez e da obtusidadecerebral inculcada pelos fazedores de notícias e de programassupostamente de entretenimento, manipulações publicitárias,falsos modelos de felicidade, uma falsidade exterior aos homens,só dependendo do valor dos números, e cuja principal finalidadeé torná-los numa espécie de "robots" do futuro, clones eugéni-cos à medida do “Admirável Mundo Novo” de Aldous Huxley,mundo de mortos-vivos para onde caminhamos todos, à forçados aviões, das bombas, das armas nucleares dos poderosos,únicos argumentos dos fortes e ignorantes. E por força tambémde modelos errados de ensino, envoltos em falsos princípios dejusteza a ocultar desígnios de selecção e exclusão, recuperandoesse instrumento degradante que é o quadro de honra, ondemeia dúzia de bons alunos são sujeitos à exposição do seu no-me em oposição aos colegas de turma, quando deveriam ser pu-blicados mapas de dificuldades a superar, tarefas a desempe-nhar pelas turmas, numa verdadeira estratégia de grupo, integra-dora, progressiva no conhecimento e, indubitavelmente, valoriza-dora do mérito. Mas sem quadros de honra, por favor! Semprenum esforço redimensionador dos curriculos e filosofias que lhesestão subjacentes, na linha do humanismo e do reconstrucionis-mo, contrariando a tendência excessivamente directivista do en-sino actual, não obstante as boas intenções das reformas curri-culares iniciadas nos governos socialistas, anteriores à inversãoà direita das últimas eleições, a complicar um processo de mo-dernização já de si difícil e complexo, mesmo sem os preconcei-tos e demagogia próprios do actual governo.

Uma escola a trabalhar por uma sociedade mais humana, cria-tiva, enaltecedora do eu mas sem perder de vista a dimensão so-cial na formação de todos os jovens. Um ensino que nunca anate-mize ideais cujos pressupostos assentam naquilo que há de maisvalioso no ser humano: a liberdade, a fraternidade e a igualdade.Marcas de uma cultura e de um tempo, para sempre indeléveis.

chamento e modernização foi con-seguido nos últimos quinze anosgraças ao trabalho dedicado dosconselhos executivos das escolas edos colegas do 2º Grupo-A e 12ºGrupo-A que, através de sucessivascandidaturas a programas do FundoSocial Europeu, foram suprimindoas enormes lacunas existentes a ní-vel laboratorial e oficinal. Será que adecisão é tomada agora porque em

… o desenvolvimento do País e a sua aproximação ao nível dos outros parceiroscomunitários, passa por modificações estruturais na nossa indústria, com o empenho e investimento na qualidade e em tecnologiasde ponta, abandonando o recurso a mão-de-obra barata e pouco qualificada ..

2006 acabam os programas comu-nitários e o Ministério da Educaçãonão vê forma de se assumir comoalternativa às fontes actuais de fi-nanciamento, diluindo e disfarçandono tempo, aos olhos dos interessa-dos e da opinião pública, a relaçãocausa-efeito?

Em jeito de conclusão pode-seafirmar que esta decisão a ser toma-da terá efeitos profundamente ne-gativos a nível da educação, sectorhá muito tempo sem rumo no nossoPaís e que continuará hipotecadoenquanto for considerado um fardode despesas e não um sector estra-tégico de desenvolvimento. Estesefeitos nefastos transmitir-se-ãoinevitàvelmente ao sector produtivo,com reflexos imediatos no desen-volvimento tecnológico e na quali-dade dos serviços prestados.

Infelizmente pressinto que nadadisto afligirá significativamente osnossos governantes. Continuarão aaparecer nos telejornais, sorridentes,gabando as virtudes do desenvolvi-mento tecnológico de meia dúzia deempresas visitadas e apontadas àopinião pública como exemplos, aomesmo tempo que em todo o país agrande maioria das empresas secontinuará a arrastar em situação dedesvantagem na concorrência aber-ta com as congéneres de outros paí-ses, aproveitando o último fôlegopouco edificante da mão de obra ba-rata, enquanto não chegam os pro-cessos de falência, umas vezes frau-dulentas, outras vezes inevitáveis.

Por um ensinodemocrático

© is

to é

Page 44:  · Director: José Paulo Serralheiro ·  apagina@spn.pt ano XII | nº 120 | FEVEREIRO | 2003 · Mensal | Continente e ilhas 2 Euros

44a páginada educaçãofevereiro 2003

praça da república

OPINIÃOÂngela Leite

Educadora de Infância,

mãe do Duarte

OPINIÃOFernando Manuel

Silva PintoEducador

Os educadores de infância têm reali-zado, ao longo do destes últimosanos, um trabalho no sentido do de-senvolvimento de uma educaçãopré-escolar com qualidade, promo-vendo actividades que estimulem odesenvolvimento global das criançasdos três aos 5 anos. A qualidade temuma relação directa com a assunçãode práticas educativas intencionais esistemáticas, directamente ligadas auma intervenção que implique obser-vação, planificação e avaliação. Estatríade, assim como a participaçãodos educadores nos órgãos de ges-tão e nas estruturas educativas dosagrupamentos de escolas, previstano Decreto-Lei 115-A/98, de 4 deMaio, está posta em causa pelo des-pacho acima referido.

Ao contrário do que o Ministro daEducação afirmou, através dos ór-gãos de comunicação social, oseducadores avaliam trimestralmenteo desenvolvimento dos projectosrealizados com as crianças no jardimde infância ou com outros elementosda comunidade educativa do agru-

pamento. A grande maioria dos edu-cadores faz uma avaliação individualdas crianças, não no sentido escolardo termo, mas numa perspectiva deconhecimento do nível de desenvol-vimento das mes-mas, para proporcio-nar uma planificaçãoque vá de encontroàs suas dificuldadese interesses.

Os educadores sãoprofissionais respon-sáveis, não necessi-tam de imposições le-gais para pôr em práti-ca processos educati-vos indutores de mu-dança e de melhoriade qualidade na suaintervenção.

Relativamente àcomponente sócio-educativa, con-vém lembrar que esta é da respon-sabilidade das autarquias e/ou as-sociações de pais, conforme art.os5º e 6º do Decreto-Lei nº 147/97, de11 de Junho, cabendo ao director

pedagógico do jardim de infância acoordenação das actividades de-senvolvidas nesses tempos.

Numa amostra realizada aleato-riamente em jardins de infância da

rede pública do dis-trito de Braga, verifi-quei que a frequên-cia das crianças bai-xou significativamen-te nos dias em queocorreu a interrup-ção lectiva do Natalpara o 1º ciclo doensino básico. Ape-sar da amostra nãoser significativa, nãopodendo ser gene-ralizada ao nível dopaís, não tenho dúvi-das que se fosse fei-ta com um número

representativo de instituições pré-escolares, o resultado seria seme-lhante. Constatei que, dos jardins deinfância contactados, só um teveuma frequência aproximada da nor-mal. Nos outros a redução foi de

100% ou muito próximo.Se os educadores, neste período,

estivessem reunidos nas diferentesestruturas educativas para avaliar otrabalho realizado, planificar as acti-vidades que correspondam aos in-teresses das crianças ligadas àsáreas de conteúdo em que manifes-tam mais dificuldades, previamenteobservadas/avaliadas, assim comoplanificar conjuntamente com osdocentes do 1º ciclo para propor-cionar uma transição o mais harmo-niosa possível, não teriam sido re-metidos para um papel de guardade crianças, contra o qual se têmdebatido ao longo dos últimos anos.

A educação pré-escolar sofreuum rude golpe na caminhada que oseducadores vêm fazendo para pres-tigiar a sua actividade e demonstrarque uma educação pré-escolar dequalidade contribui sobremaneirapara o futuro sucesso escolar dascrianças e para a formação de cida-dãos activos e conscientes do seupapel numa sociedade cada vezmais descaracterizada.

Para com as pessoas portadoras dedeficiência tem, toda a humanidade,uma dívida impagável de séculosobscuros e tortuosos. Do apedreja-mento até à morte em praça públicae ao abandono nas florestas, tudofoi permitido e legítimo. “O cego, ocoxo, o deficiente mental” consti-tuíam pela sua diferença uma provo-cação com direito à morte na fo-gueira da inquisição sob suspeita debruxaria e pactos com o diabo.

No entanto, o tempo mostrouque a diferença é a única fonte decrescimento para cada um de nós.O grande desafio da humanidadeserá compreender, como PierreLevy, que o “outro”, seja quem for,sabe coisas que eu não sei, consti-tuindo, por isso, uma fonte inesgo-tável de sabedoria. As pessoas comdeficiência já mostraram que sãotão ou mais capazes de ter uma vi-da autónoma e feliz, como qualquerum de nós, que choramos porqueestá frio e temos saudades da chu-va quando o sol arde.

Curiosamente, muitos anos de-pois de aprovadas em 1993 as “Nor-mas sobre Igualdade de Oportuni-

dades para Pessoas com Deficiên-cia” alguém, no colégio D. Diogo deSousa, com responsabilidades pe-dagógicas, disse na minha cara, nado meu marido e da minha cunhada:-“O seu filho é deficiente e eu nãoaceito deficientes”.

No jornal fez questão de frisar que“todos já sabem como o colégio funcio-na e nem sequer os tentam inscrever”.

Hoje o problema identificado pas-sou a ser outro. Fala-se na falta decondições para receber uma criançacom Trissomia 21. Porque será?

Mas, afinal o que falta no ColégioD. Diogo de Sousa para receber omeu filho? Tem espaço interior e ex-terior de qualidade, lecciona todasas valências de ensino, tem um cor-po docente estável, oferece activi-dades múltiplas de enriquecimentocurricular e há até quem fale numapiscina para o próximo ano lectivo.É caso para dizer que todas as ou-tras escolas terão que ser encerra-das por falta de condições. Relativa-mente a docentes de apoio educati-vo restará apenas solicitá-lo à Equi-pa de Coordenação dos ApoiosEducativos de Braga que ainda há

três anos lá colocou um. Porquemotivo se fala agora num contratode associação, se o mesmo apenasprevê a gratuitidade do ensino pri-vado em zonas carecidas de esco-las públicas? Esta é mais uma falsaquestão. Não pretendi, nem preten-do, que o meu filho frequente o co-légio gratuitamente. Além disso, háoutros colégios na cidade de Bragae em todo o país, sem contrato deassociação, onde estão criançascom deficiência e onde são coloca-dos professores de apoio educativo.Porque razão seria o D. Diogo deSousa uma excepção?

Custa-me muito acreditar que se-rei a única mãe a não ter direito talcomo prevê a Lei nº 9/97 de 19 deMarço e 65/79 de 4 de Outubro anão poder escolher a escola quequero para o meu filho.

Na comunicação social, nos con-gressos e seminários deste país e domundo, a todas as horas, se discutea escola multicultural e democrática.No entanto, para quem nunca ouviufalar de escola inclusiva e respeitopela diferença passo a citar Ana Ma-ria Bérnard da Costa: “A educação

inclusiva, ou seja, o direito de todasas crianças, independente dos pro-blemas ou deficiências que pos-suam frequentarem as escolas dasua área – as mesmas escolas paraonde iriam se não tivessem qualquerproblema ou deficiência – e o conse-quente direito de viverem na sua fa-mília, de participarem da sua comu-nidade, de conviverem com os seusvizinhos, é, antes de mais uma ques-tão de direitos humanos. Decorre di-rectamente da primeira frase da De-claração Universal dos Direitos doHomem onde se lê: -«Todos os sereshumanos nascem livres e iguais emdignidade e em direitos»”.

Depois de tudo, não será casopara questionar: - Quem me pergun-tou se tinha condições para, no dia25 de Abril de 2000 ser mãe de umacriança diferente? Quem me ensinoua amá-lo e a tratá-lo como igual?Pois, há questões para as quais nosescapam as respostas. É por issoque me apetece terminar com umapergunta de José Torentino de Men-donça dirigida a quem nunca sequestionou sobre o respeito: - “Aque distância deixaste o coração?”

O prolongamento do calendário da educação pré-escolar, promulgado pelo Despacho nº 19310/2002, provocou uma situação de injustiça à educação pré-escolar.

As «férias» dos educadores de infância

Ao contrário do que o Ministro

da Educação afirmou(…) os educadoresavaliam trimestral-mente o desenvolvi-mento dos projectosrealizados com ascrianças no jardim de infância e com

outros elementos dacomunidade educativa

do agrupamento.

O que falta no colégio D. Diogo de Sousa para receber o meu filho?

Direito à indignação

Page 45:  · Director: José Paulo Serralheiro ·  apagina@spn.pt ano XII | nº 120 | FEVEREIRO | 2003 · Mensal | Continente e ilhas 2 Euros

45a páginada educaçãofevereiro 2003

andarilhoGuias Práticos de InformáticaMargarida MagalhãesMaria Clara FernandesMaria João BarbotVictor SarmentoPorto Editora

Os guias práticos de informática daPorto Editora foram concebidos paraajudar o utilizador a realizar, passo a

passo, as operações mais frequentes nos computadorespessoais: processador de texto, internet e e-mail, folhade cálculo, apresentações electrónicas e gestor de infor-mação pessoal.

Como Ajudar os Filhos no EstudoManuela MonteiroPorto Editorapp. 112

É comum ouvir os alunos lamenta-rem-se porque estudam e não obtêmos resultados esperados. Numa lin-guagem clara e acessível, os livrosdesta colecção visam ajudar os alu-

nos a desenvolver um conjunto de técnicas e hábitos deestudo. Outros livros desta colecção: Como organizar oestudo; Como tirar apontamentos e fazer esquemas; Co-mo preparar testes e exames.

Memórias de História NaturalColecção Ciência e IluminismoDomingos VandelliPorto Editorapp. 104

Domingos Vandelli notabilizou-se pe-los diversos testemunhos que legouda sua sistemática e persistente acti-vidade de inventário e descrição dos

recursos naturais do reino e das colónias (...). Os textosagora reunidos, inéditos na sua maioria, inscrevem-senessa tradição de escrita a que Vandelli se dedicou, so-bretudo através da sua colaboração com a AcademiaReal das Ciências de Lisboa.

Itinerários Histórico-naturaisJosé Correia da SerraPorto Editorapp. 104

O Abade Correia da Serra foi uma fi-gura ligada às ideias liberais e maçó-nicas, criticou profundamente a si-tuação estagnada da cultura portu-guesa e procurou contribuir, de forma

activa, para a integração de Portugal no novo contextocientífico e intelectual europeu de finais do século XVIII.Com este livro pretende-se, no plano da investigação,"fixar" a sua obra, fundamentalmente na área da geolo-gia, através dos seus manuscritos e publicações de via-gens e de trabalhos de campo(...).

A Comunidade Britânicano PortoInter-relações históricas, econó-micas, culturais e educativasMaria Guilhermina Bessa GonçalvesEdições Afrontamentopp. 284

O livro constitui uma análise, históri-ca, cultural e económica sobre o pa-

pel desempenhado por uma das mais importantes co-munidades estrangeiras em Portugal e na cidade do Por-to: a comunidade britânica.

A Alegria de EnsinarRubem AlvesEdições Asapp. 95

“São textos que dizem a alegria e osofrimento da relação pedagógica;as missões (im)possíveis dos educa-dores e dos professores. (…) São ummodo de fuga ao labirinto pós-mo-

derno em que nos vamos perdendo…”

EM portuguêsLeonel Cosme

O inimaginável interesse que os portugueses mani-

festaram, através dos diversos órgãos de comunica-

ção social, desde o início da campanha eleitoral, pe-

la ascensão de Lula da Silva à presidência do Brasil,

será logo explicado pela excepcionalidade de um

facto que ainda remetia a memória dos jornalistas

com mais de cinquenta anos pa-

ra a ficção dos filmes "populis-

tas" de Frank Capra, - como "Um

Homem do Povo" ou "Peço a pa-

lavra" - nos quais o "impossível"

acontecia: um "homem do povo"

lograva galgar as fronteiras do

"poder instalado", que o "costu-

me" identificava como uma ine-

rência das oligarquias.

Com efeito, havia de sensibili-

zar a opinião pública a singulari-

dade desse facto único num país

onde o Poder fora sempre uma

emanação das classes dominan-

tes, com o seu rosto militar ou ci-

vil, e precisara de esperar quase

oitenta anos para ver despontar o

"tempo fraternal", em que "qualquer brasileiro digno

poderia governar o Brasil", como augurava Gilberto

Freyre, num entusiástico poema de 1926... Pois bas-

tava a expectativa para justificar as notícias, geral-

mente temperadas com uma interrogação ou uma

dúvida: até que ponto os "donos do poder" permiti-

riam que a "torrente popular" de Lula da Silva che-

gasse à "foz".

No mesmo plano das expectativas, aliás, se colo-

cavam as interrogações ideológicas comuns à Direi-

ta e à Esquerda, em que a apreensão, a dúvida e a

esperança, perante uma erupção das "forças popula-

res", abalavam igualmente os pressupostos da actual

"lógica" das democracias europeias, segundo a qual

já não é pensável uma revolução social, ou uma mu-

dança que se lhe equipare, sem a participação ou o

consentimento do poder militar. Os portugueses ti-

nham o exemplo do "25 de Abril"...

Pois Lula chegou à presidência, cumprindo rigoro-

samente a "lógica" da democracia parlamentar (é

sempre útil lembrar que há outras formas de demo-

cracia), e hoje, conservadores ou progressistas, to-

dos esperam para ver o resultado final de uma esco-

lha feita pela primeira vez unanimemente por todos

os eleitores pobres e também por muitos dos reme-

diados, que constituem a maioria esmagadora do po-

vo brasileiro.

É que a própria história do Brasil, designadamente

a dos últimos cinquenta anos, faz de Lula um desafio

à lógica getuliana da "revolução

de cima para baixo" e a si pró-

prio: não se tendo apagado da

memória colectiva desfechos co-

mo o desconcertante suicídio de

Getúlio Vargas, a renúncia de Jâ-

nio Quadros e o exílio de João

Goulart, devidos às pressões das

forças económicas e militares, in-

ternas e externas, o desafio a que

Lula se propôs, encorajado pela

fé do seu povo até agora despoja-

do de razões para acreditar numa

mudança vinda de baixo para ci-

ma, é um desafio à sua capacida-

de e resistência para alterar o mo-

delo dos regimes "vigiados" que

até há pouco enformaram o Brasil

- e que reaparecem, ciclicamente, em quase toda a

América Latina, como vulcões não extintos.

O que está hoje à prova e se espera, no Brasil e

no mundo que a ele está ligado por interesses mate-

riais ou culturais, como Portugal, é o resultado de

uma desejável "solução social", sem tiros nem pri-

sões, exigida pelo voto pacífico do povo em liberda-

de, que aspira a não ver repetidas as expectativas

frustradas na Argentina, no Peru e no México ou no

Chile "social" de Salvador Allende antes de Pinochet

e Fujimori.

O que todo o mundo espera é que o presidente Lu-

la - na "literatura de cordel" ele será cantado, certa-

mente, como outro mítico "Cavaleiro da Esperança",

em refigurada encarnação de Prestes, Villa ou Zapata

- consiga provar que ainda é possível realizar uma ver-

dadeira democracia plena, em que as sindromáticas

contradições sociais sejam dirimidas por consenso;

que a classe média é capaz de se pôr ao lado dos po-

bres; e que os ricos, transfigurados por uma súbita

consciência recristianizada, podem evitar que a luta de

classes se afirme, inelutavelmente, como uma alavan-

ca da justiça social.

À espera de Lula

Page 46:  · Director: José Paulo Serralheiro ·  apagina@spn.pt ano XII | nº 120 | FEVEREIRO | 2003 · Mensal | Continente e ilhas 2 Euros

46a páginada educaçãofevereiro 2003

andarilho

O ESPÍRITO e a letra

Serafim FerreiraCrítico literário

Nascido na Figueira da Foz em 25 de Fevereiro de 1903 e falecido em Lisboa em Janeiro de1987, João Gaspar Simões foi crítico literário, mas também dramaturgo, romancista, ensaís-ta e historiador da Literatura Portuguesa num percurso que se estendeu quase por sessentaanos bem contados. Polémico e ousado nas suas opiniões críticas e estéticas desde os tem-pos da revista Presença, que em 1928 fundou em Coimbra com José Régio e Branquinho daFonseca, o autor da História do Romance Português nunca deixou de ser um dedicado estu-dioso do fenómeno literário e criador, impondo-se pela sua coerência e honestidade crítica,indiferente aos muitos remoques ou até insultos com que tantas vezes foi mimoseado.

No prosseguimento da publicaçãodas “Obras Completas” de Abel Sa-lazar (1889-1946), a “Campo dasLetras” acaba de editar o IV volumeRecordações do Minho Arcaico,acompanhado por um minucioso,longo e interessante prefácio do en-saísta e crítico Ramiro Teixeira. Ostextos ou descrições impressivasque foram antes publicados em jor-nal entre 1936 e 1937 (e reunidospela primeira vez em livro numa edi-ção da Tipografia Civilização - Por-to, 1939) falam-nos de um Minhoque já não existe, evoca usos, cos-tumes e tradições que morreramcom o correr dos tempos, mas ain-da sabe bem ou é curioso conhecera prosa (que não é ficcional, masmeramente descritiva) de Abel Sala-zar que, como se sabe, foi um cria-dor multímodo e médico e cientistados mais importantes da primeirametade do século XX. Mas se acasonão tivesse nascido em Portugal,onde durante anos foi perseguidopolítica e intelectualmente, talvez asua obra não se mostrasse “ultra-passada” como hoje se nos afigura(e isso mesmo, de algum modo, Ra-miro Teixeira não deixa de pôr emevidência no seu prefácio deste IVvolume). Porém, apesar de tudo, di-zemos que vale a pena reler algunspedaços de boa prosa literária quese revelam nas Recordações do Mi-nho Arcaico, trazendo assim ao nos-so convívio uma realidade passadae um mundo português felizmentebem longe da nossa memória.

Obras Completas

de ABEL SALAZAR

Recordações do Minho ArcaicoPrefácio de Ramiro TeixeiraEd. Campo das Letras / Porto, 2002

JOÃO GASPAR SIMÕES

Primeiro como leitor entusiasta e depois como autor ecrítico, João Gaspar Simões desempenhou, durante toda asua permanente e fecunda actividade em jornais e revistasliterárias, um papel que foi único na cultura portuguesa doséculo passado e ao longo dos anos o seu nome e a sua in-fluência afirmou-se em todos os quadrantes da nossa lite-ratura. Ambíguo e contraditório, mas independente, lúcido equase sempre muito atento, João Gaspar Simões congre-gou em si mesmo todos os defeitos e virtudes da função crí-tica por entre muitos sobressaltos e dificuldades. Contam-se por várias e variadas as polémicas em que teve de inter-vir, foram diversos os ataques pessoais à sua própria acçãocrítica, mas foram muitos mais os momentos que guardoude reconhecida atenção por parte de tantos autores, comoconfessa Pessoa numa carta de de 26 de Junho de 1929, apropósito de Temas, um livro de ensaios em que Gaspar Si-mões publicou talvez um dos primeiros estudos sobre apoesia pessoana:

“Venho agradecer-lhe o seu livro Temas e não sei comolhe agradecer o estudo com que nele me honra. (...) Escreverei por ora,só do coração, e para assinalar o quanto me comoveu o estudo em meanalisa. Sou, como é de ver, incompetente pelo desconhecimento ínti-mo que cada um, por lúcido que seja, tem de si mesmo, para medircom metro objectivo qual seja a porção de justiça abstracta com queconcluiu a meu respeito. (...) Comoveu-me, digo, o seu estudo porqueme trata como realidade espiritual e, por assim dizer, reconhece a mi-nha existência como nação independente”.

Ainda hoje, sim, não há badanas, anúncios, folhetos ou contracapasde livros que não se transcrevam (em autores de todas as tendênciase opções estéticas) as opiniões mais “simpáticas” ou “favoráveis” doautor de Novos Temas. Os quase sessenta anos de intensa actividadecrítica foram muitos para um só homem (que acabou mesmo por ficarmais só nos anos derradeiros de vida) e tantas vezes foi vilipendiadosem razão, porque alguns não lhe regatearam insultos quando teve acoragem de dizer mal de A ou de B, condenar o livro X ou Z: o Sainte-Beuve da Figueira ou o Moniz Barreto da Calçada das Necessidades,o crítico “impressionista”, “ultrapassado” ou “arqueológico“, ou maisisto e mais aquilo, a verdade é que todos, cada qual a seu modo, tira-ram partido e proveito do que João Gaspar Simões colocava em evi-dência, deixando na sombra os aspectos negativos que como críticotambém salientava. Mas ~eram esses realmente os espinhos do críti-co: é preciso ter muita coragem para aguentar e cumprir, através doexercício activo em muitos anos, o desempenho da crítica nesta terraem que saber criticar e saber aceitar as críticas sempre andou muitopor baixo ou não é do nosso feitio.

No entanto, com razão ou sem ela, ninguém pode retirar a JoãoGaspar Simões um dos seus maiores méritos: o de ter sabido, nos al-tos e baixos da acção literária e crítica, mesmo com as frequentes con-tradições dos juízos críticos, na sua proclamada e constante teimosiaem relação a valores estéticos que desde sempre defendeu, realizar averdadeira função do crítico - ou seja, dizer em voz alta com o que es-tava ou não de acordo, o que era bom ou mau, o que era ter talento eo que não passava de uma simples mediocridade apadrinhada porcompradios de outra ordem. E foi essa verdadeiramente a função dacrítica em João Gaspar Simões: a de ter estado atento a tudo, não dei-xar passar em claro ou sem uma referência qualquer obra literária dequalidade. E mais ainda: soube preservar dos “maus fados” da nossacultura um direito quase indipensável - o de saber assumir em termosprofissionais uma actividade que teve e sempre tem os seus riscos.Mas, para se avaliar do valor e importância da obra realizada pelo au-tor de Vestido de Noiva, vale a pena ter em conta a sua própria activi-dade criadora e literária como escritor, crítico, ensaísta e tradutor.

Neste 2003 e na memória dos cem anos do seu nascimento, impõe--se evocar o exemplo e a obra de João Gaspar Simões e esperar queas suas obras sejam reeditadas ou estudado como merece o espólio li-terário (ou grande parte dele) que está silenciado numa sala com o seupróprio nome no Museu Municipal Santos Rocha, nessa Figueira daFoz onde nasceu e passou bons períodos de férias.

No centenário de nascimento de

Recordações do Minho ArcaicoObras completas de Abel Salazar

Page 47:  · Director: José Paulo Serralheiro ·  apagina@spn.pt ano XII | nº 120 | FEVEREIRO | 2003 · Mensal | Continente e ilhas 2 Euros

47a páginada educaçãofevereiro 2003

CINEMAPaulo Teixeira de SousaEscola Secundária

Artística Soares dos Reis

Há filmes assim. Que não nos lar-gam, nem que passem dias, sema-nas, meses...anos(?). É o caso de“Intervenção Divina” de Elia Sulei-man. Um filme palestiniano, imagi-nem ...e ainda por cima estreado emPortugal. E aquele último plano damãe e filho a olharem para a panelade pressão e a mãe a dizer: “É me-lhor apagar, está quase a rebentar”.Posso dizer que nem que viva maiscem anos me vou esquecer...

Mas o melhor é deixar o realiza-dor falar:

“Acabei de fazer explodir um tan-que israelita. Por causa da guerranão pude fazê-lo em Israel, mas fi-lonum campo militar francês. Mesmoassim fiz de propósito. Cumpri a mi-nha missão durante a visita de ArielSharon ao Eliseu. Com uma misturade 75 Kg de explosivos e seis Kg depó. Trabalho bem feito, sem nenhumrasto. Adeus, tanque! Se o meu paiainda fosse vivo estaria orgulhosode mim, ele que combateu com osresistentes em 1948 e foi torturadopor soldados israelitas até ficar emcoma, porque se recusava a denun-ciar El-Husseini, um líder políticopalestiniano da época.

Havia nove câmaras no “plateau”.Eu dirigia as operações: dava or-dens, fazia a contagem decrescenteantes da explosão e dizia “acção “, oque neste caso queria dizer “fogo “!

A nossa colaboração foi eficaz eprodutiva. Ou melhor eficazmentedestrutiva...” (Cahiers du CinémaMaio de 2001)

«Quando o filme estreou em Can-nes ,eu e George Ibrahim, o Pai Na-tal do meu filme que é o director do“Al Kasaba” decidimos organizar aestreia do filme na Palestina em Ju-lho, mas a reinvasão pô-la em causa.O exército israelita tinha dinamitadoas entradas e saqueado o seu inte-rior . O lugar foi reconstruído graçasao Ministério dos Negócios Estran-geiros francês e à Europa Cinemas,mas as barragens de estrada cria-ram tais engarrafamentos que temique o projecto fosse impossível. Foiuma surpresa enorme ver a sala en-cher-se e as pessoas desafiarem orecolher obrigatório para ficar a dis-cuti-lo no final... embora tivessemapreendido os códigos linguísticos eculturais de “ Intervenção Divina”, osespectadores de Ramallah viram-nocomo um filme e aplaudiram-no on-de nenhum outro público o fez, omomento onde Manal Khader fran-queia num passo ligeiro a barragem.Esse pequeno passo, eles conhe-cem o seu peso, pois tinham-no da-do para chegar ao cinema e teriamque o tornar a dar para regressar.Nesse pequeno território onde umapequena parte da população perten-ce à classe média, os israelitas ficam

furiosos por ver palestinianos a viverbem, e as extorsões (roubos, vanda-lização de lugares culturais ) sãoagora piores do que se passavaquando realizei a “Intervenção Divi-na”. Mas mesmo que esta projecçãofosse para mim um símbolo político,o entusiasmo dos espectadoresdespojou-me de todas as intenções“estratégicas!”( Cahiers du Cinéma,Dezembro de 2002)

“Não procurei autorizações paranada. Foi o chefe de produção, umisraelita chamado Avi Kleinberguer,que é meu amigo. Arranjou umacompanhia testa de ferro israelitapara tratar de todos os preparati-vos... a mim não me teriam dado ne-nhuma autorização...

Nunca estudei cinema. A primei-ra vez que descobri o cinema foiatravés da leitura de Godard. Fui pa-ra Nova Iorque e durante um anoapenas li e vi filmes, às vezes trêspor dia. Antonioni foi amor à primei-ra vista, mas também Hou Hsiao-Hsien, Tsai Ming-Liang . Não tinhavisto Jacques Tati antes de ter feitoo meu primeiro filme “Crónica de umDesaparecimento”.O responsávelpelo som desse filme insistiu comi-go para que visse Tati e Buster Kea-ton. E fi-lo, então verifiquei que nomeu filme havia duas cenas iguaisàs do filme “O Meu Tio”, de Tati.

(...) O dinheiro para o filme veio

principalmente de França. E tambémalgum de Fundações. Não dinheirode Israel- o único dinheiro que tivede Israel, foi para o meu primeiro fil-me, e quase chegou ao Supremo Tri-bunal. Bloquearam o dinheiro e qui-seram prender-me. Quando o filmeestreou em Veneza , disse ao públi-co “Isto está a acontecer . Só queriaque soubessem.” Depois o filme ga-nhou o prémio para a primeira obra... e tornou-se muito embaraçoso... ederam-me o dinheiro...

O “ Le Monde” perguntou a doisjornalistas israelitas o que pensa-vam do filme. Ambos deram quatroestrelas - que é o máximo - e disse-ram , “Tivemos vontade de nos es-conder debaixo das cadeiras de ver-gonha e angústia”. Há um sector dapopulação que é cinéfilo, mas é tãopequeno que se podem contar.”(Sight and Sound, Janeiro 2003).

O filme está a ser projectado regu-larmente em Ramallah; às 15 e 17 ho-ras devido ao recolher obrigatório.Elia Suleiman exigiu no contrato como distribuidor israelita uma cláusulaestipulando que só seria distribuídoem Israel “se fosse primeiro projecta-do na Palestina”. Em Dezembro, o ci-neasta apresentou o filme em Nazaré.

“Intervenção Divina” não foi aceitecomo candidato ao Óscar de melhorfilme em língua estrangeira deste anoporque “a Palestina não existe”.

You put a spell on me“Intervenção Divina”

GALERIA

andarilho

“Francis Bacon é talvez o pintor mais conhecido mundial-mente na segunda metade do século XX. A obra de Baconocupa um lugar único na Pintura do nosso tempo, pelo modocomo assume o retrato como um ensaio sobre a representa-ção da condição humana no seu confronto com o Mundo. Es-ta será a primeira grande exposição em Portugal de FrancisBacon, um nome fundamental no cenário europeu da artecontemporânea, reunindo alguns dos seus trabalhos maisconhecidos. (...) Não sendo uma exposição retrospectiva, oseu ponto de vista incidirá especificamente sobre uma das li-nhas centrais do trabalho de Bacon evidenciada ao longo detodo o seu trabalho. A exposição procura mostrar a pinturacomo um conflito onde o artista confronta o homem com asua própria condição de modo a descobrir a sua verdadeiranatureza. Muitas das pinturas de Francis Bacon representamo ser individual encerrado num espaço indefinido que sugereuma atmosfera claustrofóbica. Noutras, as paisagens suge-rem uma transição para o exterior, como se o verde e as ár-vores libertassem o indivíduo das sua prisão”

Comissariado: Vicente Todolí

Visitas Guiadas07 Mar 2003 (Sex), 18h30 por João Bénard da Costa30 Mar 2003 (Dom), 17h00 por Fernando Pernes

No Mercado de Ferreira Borges, noPorto, até ao dia 23, mais de 100 millivros, de uma centena de editoras,oferecem-se a preços especialmen-te baixos. Sem novidades (todos ostítulos, em nome da boa concorrên-cia, apareceram, no mínimo, há 18meses), este Mercado do Livro ofe-rece, mais uma vez este ano, umaprogramação cultural paralela queinclui uma homenagem ao poetaEugénio de Andrade, um debate so-bre a movida da rua Miguel Bombar-da (a das galerias de Arte do Porto)e um colóquio sobre a globalização.

Organizado, como sempre, pelaEmpresa de Comércio Livreiro, esteMercado do Livro 2003 conta com oapoio do Sindicato dos Professoresdo Norte (SPN) e da Câmara Munici-pal do Porto.

Mercado de livros

Até 23 de Fevereirono Ferreira Borges

Até 20 de Abril de 2003

Francis Bacon em Serralves

Francis Bacon“Três estudos para figuras na base de uma crucificação”, 1994

Page 48:  · Director: José Paulo Serralheiro ·  apagina@spn.pt ano XII | nº 120 | FEVEREIRO | 2003 · Mensal | Continente e ilhas 2 Euros

48a páginada educaçãofevereiro 2003

Esta é a imagem da galáxia NGC

1700, obtida recentemente pelo ob-

servatório orbital de raios X Chan-

dra. Segundo os cientistas o gás

aquecido a vários milhões de graus,

aqui registado, suporta a ideia de

que se trata da fusão de duas galá-

xias menores. Isso terá ocorrido há

três mil milhões de anos. Foi obser-

vado um grande disco em rotação

que, aparentemente, está a arrefe-

cer e que é indicador da «colisão»

de uma galáxia espiral com uma ga-

láxia elíptica. No ano passado, um

dos prémios Nobel da Física foi atri-

buído ao pioneiro do estudo dos

raios X provenientes do universo: o

norte-americano de origem italiana

Riccardo Giacconi.

FOTO ciência com legenda

Luís Tirapicos

Não é a primeira vez que nos apare-ce a designação da “banda larga”.Há cerca de duas décadas ela jáaparecia sob a forma de acessos aserem materializados em fibras ópti-cas. Estas “deveriam” substituir os jáobsoletos pares metálicos de fio decobre, usuais nos acessos à rede te-lefónica - as nossas conhecidas li-nhas telefónicas. Estas, num extre-mo, são ligadas ao telefone e, no ou-tro, ao ponto, geralmente “privativo”,de acesso à rede telefónica, atribuí-do ao “assinante”. Com o acesso emfibra óptica, passava-se a poder ter,em simultâneo, acesso ao videotele-fone e aos canais de televisão (tele-fonar ainda? - perguntava-se então).

Enfim, esta tentativa de soluçãonão pegou. Uma solução bem acari-nhada pelos fabricantes de fibrasópticas e equipamentos necessá-rios ao seu funcionamento que viamaí um grande mercado e negócio.Pois tratava-se “apenas” de cons-truir toda uma nova infra-estruturapara substituir a dita mina de cobreconstituída pelas dezenas e deze-nas de milhões de linhas telefónicas.Solução no cemitério ou, pelo me-nos por uns tempos, uma soluçãocongelada. A banda, da ordem dasdezenas de Mbit/s , era não apenaslarga, mas larguíssima. Não era co-mo a que hoje nos é oferecida comgrandes parangonas: um acessopermitindo umas centenas de bit/s.

Contudo, a banda larga, que ago-ra nos é disponibilizada, não se des-tina em primeiro lugar - desde logo -à videotelefonia e à distribuição aodomicilio (ou a quaisquer outrosdestinos) de canais de televisão. E,em certa medida por isso, tambémnão obriga à instalação de uma no-va infra-estrutura em fibras ópticas.Aliás, neste mais modesto cenário,passadas as tais duas décadas, o

DA CIÊNCIAe da vida

Francisco [email protected]

Portugal Telecom

De novo, a banda largaOutra vez, mais ou menos de repente, chegou-nos a novi-dade. Desta feita, foi a “banda larga”. Já não tinham bastadoas telecomunicações móveis, mais os seus telemóveis. Nemo aparecimento quase em simultâneo da Internet. Agora, é avez da banda larga e as suas “fabulosas” – supersónicas (?),segundo publicitários pouco escrupulosos quanto às metá-foras por eles empregues – velocidades de transmissão nosacessos à Internet a sugerirem-nos mesmo a realização deum sonho – seria este, de facto, um sonho nosso? –, o sonho de estarmos ligados em permanência, ou seja, co-mo dirão os “mais entendidos”, always on.

que se faz é aproveitar as redes decabos existentes: ou a rede das li-nhas utilizadas para o telefone (e, noessencial, esta continua a ser ape-nas uma) ou as mais novas redespara distribuição de canais de tele-visão via cabo coaxial (pelo menosno troço final das ligações).

Com efeito, um dos argumentosavançados pelos defensores / ofere-cedores de ADSL (Assymetrical Di-gital Subscriber Line), pois é este onome consagrado para a tecnologiautilizada e respectivos sistemas uti-lizando o mesmo meio de transmis-são que as vulgares e tradicionais li-nhas telefónicas, tais como as co-nhecemos em pares de finos fios decobre, é que é possível aceder embanda larga à Internet sem ter que“incomodar” as ligações do serviçotelefónico. Mais. Passa a dispor-se,deste modo, de uma conexão queestá sempre ligada, ou seja, alwayson (tal como acontece com a luz daslâmpadas, um vez que o seu inter-ruptor esteja on, ligado).

Da mesma maneira está alwayson o nosso acesso de banda larga àInternet quando este for realizadosobre a mesma ligação que, atravésdo cabo coaxial que ligamos aonosso receptor, nos traz os canaisde televisão. E, claro, também po-demos dispor deste serviço, e con-sequentemente dos seus canais,em permanência, tal como com oADSL continua a ser possível utilizaro telefone sempre que o pretenda-mos. Para tal, basta seleccionar ocanal pretendido por meio do res-pectivo telecomando (ou seja, omesmo “interessante” dispositivoque nos proporciona a tão exclusivaactividade de zapping).

Enfim, é uma outra banda larga,mais modesta, é certo, mas assimmesmo relevante.

Foto: Thomas S. Statler, Brian R. McNamara NASA, Univer. Ohio, Chandra

A banda larga, que agora nos é disponibilizada, (…) não obriga à ins-

talação de uma nova infra-estrutura em fibras ópticas (…) o que se faz

é aproveitar as redes de cabos existentes: ou a rede das linhas utili-

zadas para o telefone (e, no essencial, esta continua a ser apenas

uma) ou as mais novas redes para distribuição de canais de televisão

via cabo coaxial (pelo menos no troço final das ligações).

Fusão de Galáxias

© is

to é