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creative | design pesquisas em relações internacionais de santa maria Por Núcleo Prisma www.nucleoprisma.com.br Por Núcleo Prisma Apoio: Revista Inter Ação | UFSM - Universidade Federal de Santa Maria | v. 1, nº 1 | jul./dez. 2010 ISSN 2178-1842

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pesquisas em relações internacionais de santa maria

Por Núcleo Prisma

www.nucleoprisma.com.br

Por Núcleo Prisma

Apoio:

Revista Inter Ação | UFSM - Universidade Federal de Santa Maria | v. 1, nº 1 | jul./dez. 2010

ISSN 2178-1842

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Revista Inter Ação | UFSM - Universidade Federal de Santa Maria | v. 1, nº 1 | jul./dez. 2010

ISSN 2178-1842

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UniversidadeREITOR

Prof. Felipe Martins MüllerVice-Reitor: Prof. Dalvan José Reinert

CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS – CCSH

DIRETOR

Rogério Ferrer KoffVice Diretor: Mauri Leodir Löbler

DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS ECONÔMICAS

CHEFE

Uacauan Bonilha

SUBCHEFE

Paulo Ricardo Fiestel

Corpo EditorialDIRETOR RESPONSÁVEL

José Renato Ferraz da Silveira EDITOR RESPONSÁVEL

Daniel do Nascimento Paim SC -00295-JP CONSELHO EDITORIAL

Andressa Coelho Freitas, Cristina Farias, Fernanda Maschio, Guilherme da Cruz Backes, Juliana Graffunder Bar-bosa, Leonardo Augusto Peres, Lia Fernanda da Rosa, Mateus Cunha Lara, Thales da Silva Carvalho, Vitor André Giacomini Nunes.

DIREÇÃO DE PUBLICIDADE

Andressa Coelho Freitas, Mateus Cunha Lara, Vitor André Giacomini Nunes

PARECERISTAS

Álvaro Barreto, Danilo da Cás, Fernando Camargo, Reginaldo Teixeira Perez, Sebastião Peres

Nota: Os trabalhos assinados exprimem conceitos da responsabilidade de seus autores, coincidentes ou não com os pontos de vista da redação da Revista.

Todos os direitos Reservados: Proibida a reprodução total ou parcial, sem a prévia autorização do Núcleo, por qualquer meio ou proces-so, especialmente por sistemas gráficos, microfílmicos, fotográficos ou videográficos. Vedada a memorização e/ou recuperação total ou parcial, bem como a inclusão de quaisquer partes desta obra em qualquer sistema de processamento de dados. Essas proibições aplicam-se também às características da obra e à sua editoração. A violação dos direitos autorais é punível como crime (art. 184 e §§, do Código Penas, cf Lei nº 6.895, de 17-12-1980) com pena de prisão e multa, conjuntamente com busca e apreenção e indenizações diversas (arts. 122, 123, 124 e 126, da Lei nº 5.988 de 14-12-1973, Lei dos Direitos Autorais).

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Índice

Apresentação

Entrevista

Ensaio

Artigos

Os países centro-asiáticos e as grandes potências mundiais: um estudo das

relações exteriores desde as suas independências

A Vitória do Realismo Defensivo na Nova Doutrina de Política Externa Russa

Inserção externa e crescimento econômico: quais os argumentos anti-

liberais?

Política Externa do governo Juscelino Kubitschek: a Operação Pan-Americana

A Questão do Acre: internacionalização dos interesses sobre a contenda

acreana

Discurso, prática e poder: o Brasil na Liga das Nações

Para além das fronteiras políticas: os fluxos da atividade comercial na

província do Rio Grande de São Pedro no século XIX

A União Européia dos 27 (milhões) e o Conselho da Europa

OS EDITORES

Apresentação 07

PROF. DR. RICARDO SEITENFUS

Entrevistas 09

PROF. DR. FLORISBAL DE SOUZA DEL´OLMO

Paradoxo Latina-Americano: porque o governo Chávez é considerado mais

democrático que o de Porfirio Lobo

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Apresentação

Concretizar as atividades acadêmicas, cada vez mais, tem se dado por conta da publicação de artigos que espelham a pesquisa ou as atividades de extensão. Principalmente as atividades docentes têm, por esta produção, sido aferidas; as discentes também deverão seguir o mesmo caminho.

Por conta dessa realidade, o Núcleo de Pesquisa em Relações Internacionais de Santa Maria (PRISMA), afeto ao de recente criação curso de Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Maria, traz a público o primeiro número da Revista InterAção.

InterAção nos remete a ações conjuntas, cooperação, colaboração, não conflitos. PAZ.Em um mundo internacionalizado, globalizado, com questões planetárias, a InterAção já se

impõe como uma benfeitoria às populações. Por acreditar que essa consigna servirá de referência aos homens de todos os países, houvemos por bem nominar a revista, ainda em seu status nascendi.

A Revista InterAção foi imaginada pra se constituir, num futuro próximo-vindouro, em uma publicação de qualidade. O grau mais elevado do Sistema Qualis é o nosso objetivo, declarado desde agora. Para tanto, já em nosso primeiro número, apresentamos artigos previamente analisados por um corpo de pareceiristas independentes, que julgaram os textos de modo cego – procedimento que será seguido na restante trajetória.

Agradecemos aos autores que submeteram seus produtos, aos pareceiristas que em tempo recorde concluíram seu trabalho. E, desde já, colocamos a revista InterAção à disposição da comu-nidade acadêmica das Relações Internacionais, seja a brasileira, seja a mundial.

Os Editores

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Entrevista

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PROF. DR. RICARDO SEITENFUS1

Entrevista

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1. De onde surgiu a ideia de rumar à Europa aos vinte anos, quais foram

suas principais motivações, objetivos e o que esperava encontrar lá?

Trata-se de uma conjunção de fatores. Aos 20 anos de idade provavel-mente fazemos coisas que mais tarde nos perguntamos como fomos capazes. Estava vivendo um momento que é crucial na vida das pessoas e eu decidi continuar o que já havia feito em anos anteriores, ou seja, buscar minha in-dependência e exercer uma liberdade percebida como essencial. Com efeito, aos 11 anos saí de Arroio do Tigre e fui estudar em Sobradinho (meros 10 km de distância mas que me pareceram uma mudança considerável). Antes de completar 16 anos, fui estudar no Colégio Estadual Júlio de Castilhos em Porto Alegre. Estudava a noite e trabalhava durante o dia. Quando concluí o “Julinho” um amigo meu de Sobradinho, que estudava Medicina em Lisboa no âmbito do Programa de cooperação educacional existente entre os dois países, me sugeriu que viesse estudar em Portugal. Reuni minhas economias e fui. Me matriculei em Engenharia (havia feito o Cientifico no Julinho). Dupla decepção: com o Curso e com a ditadura lusa, ainda mais retrógrada e obscurantista que a brasileira. Convencido que a Europa começava após os Pirineus, decidi ir para Genebra onde pude percorrer toda a trajetória uni-versitária. Portanto, se tratou de uma dupla viagem de iniciação: por um lado ao especial e fascinante mundo universitário e por outro um mergulho em culturas distintas que me deram o gosto da mudança, do desafio, da aceitação do outro e do viver intensamente.

2. Tendo em vista a época anterior ao nascimento do senhor, três anos

após o término da segunda guerra mundial, período de exaltação aos

‘pracinhas’ da Força Expedicionária Brasileira em âmbito nacional, o

que o levou a escolher trinta anos mais tarde o tema “A entrada do Brasil

na Segunda Guerra Mundial” para defesa em sua tese de doutorado?

“(...) eu decidi continuar o que já havia feito em anos anteriores, ou seja, buscar minha independência e exercer uma liberdade percebida como essencial”

1 Ricardo Antônio Silva Seitenfus possui graduação em Ciência Política - Universite de Genève (1973), graduação em Economia do Desenvolvimento - Universite de Genève (1973), graduação em Histó-ria Moderna e Contemporânea - Universite de Genève (1978), e doutorado no Institut Des Hautes Etudes Internationales (IHEI) - Universite of Genève (1980). Foi (atualmente cedido a OEA) professor titular da Universidade Federal de Santa Maria, editor da Revista de Integração Latino-Americana (RILA), foi Diretor geral e acadêmico da Faculdade de Direito de Santa Maria (FADISMA), consultor do Ministério das Rela-ções Exteriores, da Organização das Nações Unidas (ONU), do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CA-

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O tema escolhido, embora inserido num contexto de profunda crise internacional, é um tema clássico de política externa. Essa razão seria suficiente. Todavia, a escolha do tema deveu-se a vários outros fatores. Em primeiro lugar, trata-se de um tema importante e pouco conhecido. Em seguida, como pretendia lançar mão das fontes primárias que se encontravam nos arquivos diplomá-ticos alemães e italianos, praticamente inéditos, poderia prestar um serviço a outros pesquisadores interessados na temática. Além disso, o que me chamava a atenção, inclusive constitui a espinha dorsal de minha tese, era a tentativa de responder a seguinte pergunta: como um regime imposto ao país em novembro de 1937 e que advogava abertamente sua filiação ideológica ao totalitarismo europeu, em menos de dois anos se transforma em inimigo do futuro Eixo e colaborador indefectível dos futuros Aliados? Como imaginar o ditador Vargas travestido de defensor da democracia liberal? Enfim, pensava eu que com esta escolha teria não somente um tema original, pouco tratado na his-toriografia brasileira (desde a publicação da 1ª. edição de minha tese em 1985, essa situação mudou muito e atualmente existe uma importante comunidade de pesquisadores brasileiros trabalhando sobre este período), como também teria acesso a fontes primárias ainda não exploradas. Portanto os ingredientes para uma boa tese estavam reunidos. Pude, então, lançar-me nesta aventura que durou sete anos e fizeram de mim o primeiro brasileiro a doutorar-se em RI.

3. Num mundo em constante mudança, em sua opinião, o estudo das Relações Internacion-

ais, hoje, dá conta da complexidade das relações no mundo? Em que medida, e com qual

grau de resolutividade?

Essa pergunta parte do pressuposto que existe “um” estudo das Relações Internacionais, o que é, sem sombra de dúvidas, uma visão demasiadamente otimista de nossa disciplina, que é marcadamente indisciplinada...

O extraordinário desenvolvimento dos estudos internacionais no Ensino Superior brasi-leiro nestes últimos 15 anos constitui o melhor exemplo da diversidade de abordagem, de teorias – por vezes díspares, por vezes complementares – de metodologias distintas, de pressupostos, de fontes, de formações e de horizontes distintos. Analisando o currículo de cada curso de RI no Bra-sil, poderíamos melhor compreender que a matéria-prima objeto de nossa preocupação ocupa um campo dificilmente delimitado. Onde começam os estudos das RI? O processo decisório interno dos Estados (ou das corporações) não é importante para o estudo das RI?

PES) e do Ministério da Educação. Foi Vice-Presidente da Comissao Juridica Interamericana (CJI) da Organização dos Estados Ameri-canos (OEA). Atualmente e Representante Especial do Secretario Geral da OEA e Chefe do Escritorio da OEA no Haiti. Tem experiência na área de Ciência Política, com ênfase em Política Externa do Brasil, atuando principalmente nos seguintes temas: Mercosul, relações internacionais, diplomacia brasileira, organizações internacionais, relações Brasil-Haiti e política externa brasileira.

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4. Quais, portanto, as diferenças, a seu ver, dentre o estudo das Relações Internacionais e de

sua prática, de parte de seus principais executores: seja os diplomatas, seja os dirigentes

dos estados-nação? Haveria um gap entre essas duas possibilidades?

Defendo que as RI não podem ser percebidas como um fenômeno estanque, mas, ao con-trário, elas devem ser entendidas como o cruzamento de várias disciplinas em um mundo cujos interesses e valores se interprenetram de maneira irrefreável. O internacionalista competente será aquele capaz de trilhar caminhos para os quais ele não se preparou. Que tenha a coragem de en-frentar o novo, de compreender o outro, de observar e avaliar o mundo com olhos que não são seus. Claro está que devemos privilegiar os três pilares clássicos do estudo das RI: História, Economia e Direito. A esses agrega-se a Política – que se esforça para ser “ciência” – e que continua em sua (fe-lizmente vã) tentativa de transformar as RI em uma área de seu domínio exclusivo. Apesar de todas as precauções enumeradas e a exigência de um espírito inquieto e aberto, as relações internacionais vividas tendem a escapar do analista. Minha atual experiência na qualidade de Representante Es-pecial do Secretário Geral e Chefe do Escritório da OEA no Haiti conforta essa convicção. Toda-via, os analistas em RI possuem uma tripla vantagem em relação aos atores das RI. Por um lado, o distanciamento que permite uma visão panorâmica. Por outro, a independência de julgamento e, enfim, utensílios teóricos e metodológicos que os atores raramente possuem.

5. Considerado o pós 2ª Grande Guerra como um dos parâmetros temporais das ações em

RI, no momento, quais seriam as competências fundamentais de um internacionalista, seja

no âmbito oficial, seja no âmbito privado?

Creio que há alguns predicados gerais dos intelectuais: curiosidade, inquietação, incon-formismo, disciplina criativa, independência de julgamento, honestidade científica, etc. Outros, próprios aos do ramo das RI: gosto pelas relações inter-culturais, aceitação do outro, dos diferentes, humanismo exacerbado, aptidão ao aprendizado de idiomas, paixão pela geografia sob todos seus aspectos (física, humana, econômica), considerar que o mundo é sua casa e que antes de sermos “nacionais” de uma país somos parte do gênero humano. Sobre esse alicerce deve ser construída uma formação sólida que permita ao internacionalista não ser somente um ser adaptado ao mundo mas um ator capaz de participar na construção do mundo.

6. Em seu livro “Os desafios internacionais do Brasil” declara: “Os assuntos internacionais

são percebidos como secundários nas preocupações públicas ou privadas dos países, seja

por desconhecimento seja por desinteresse...”. Se o governo continuar tomando como priori-

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dades questões eleitorais e corporativas e deixando de lado os interesses de se aprofundar

em temas internacionais, o país poderá futuramente perder a credibilidade para manter diál-

ogos abertos e democráticos em suas relações internacionais?

É imperioso enfatizar que raros são os países cujos governos promovem a discussão de temas internacionais e de política externa. De fato, a grande maioria deles exerce um verdadeiro monopólio sobre os além fronteiras. Assim, eles proíbem o acesso aos arquivos diplomáticos, não participam de debates com os especialistas, desconfiam e discriminam os pesquisadores universi-tários (particularmente os nacionais, o que provocou, no caso brasileiro, o surgimento da Escola Brazilianista), manipulam a opinião pública e não prestam contas ao Parlamento. As motivações que levam os Estados a agir de tal maneira são de natureza variada: complexidade do tema; deli-cadeza de certas questões envolvendo a segurança nacional; necessidade de apresentar uma única e exclusiva posição (a do Governo de plantão) frente ao exterior; concepção radical do princípio do interesse de Estado que conduz ao segredo de Estado, etc. Contudo, considero que a situação em nosso país muito evoluiu nestes últimos anos. O surgimento de novos atores públicos nacionais que possuem um alcance internacional (estados da Federação, certas Municipalidades) os quais, embora não pratiquem diplomacia, interagem com seus pares do exterior, fazendo com que nem sempre a posição brasileira seja apresentada de forma unívoca (inclusive o Itamaraty criou um Departamento que trata da “diplomacia Federativa”). Por sua vez, o sistema brasileiro de Ensino Superior desper-tou para a temática internacional. Hoje pode-se afirmar que existe uma comunidade nacional cujo campo de interesse científico são as relações internacionais. Enfim, a própria evolução do Brasil e do mundo contemporâneo fizeram com que um duplo movimento se manifestasse: o mundo está cada vez mais presente na cultura, na politica, na economia e no cotidiano dos brasileiros fazendo com que o país se internacionalizasse. Concomitantemente abandonamos o respeito estrito ao tradicional princípio que considerava o pais desprovido de excesso de poder e portanto sem condições de tomar inciativas internacionais. Embora observamos ainda muita cautela com relação ao mundo, não mais desfraldamos a bandeira de uma diplomacia reacionária – no duplo sentido de somente reagir aos acontecimentos e igualmente de não colocar em questão os fundamentos das RI. De certa forma, essa evolução imprimiu uma velocidade e um aprofundamento dos temas internacionais que se impõem a todos. Não há mais como o governo resistir a um movimento que lhe transcende. Outra situação encontramos no Congresso Nacional. De maneira singela Senadores e Deputados explicam a relutância em operar com temas internacionais porque seus eleitores não o exigem deles. Alem disso, o internacional é sempre percebido pelo Legislativo através da agenda do Executivo (para criticá-lo ou defendê-lo).

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7. O Brasil vive um crescendo de importância econômica, diplomática e militar. Concomitante

a esse crescimento, há notícias de que nossos vizinhos da América Central e do Sul, cada vez

mais, reclamam de “ações imperialistas” de parte de nosso país. A seu ver, essas opiniões

são fundamentadas, ou ilusórias? Ou por outro, há possibilidades de que um país cresça, sem

que a manifestação de seu poderio transpasse suas fronteiras?

Sim, o gigante está se despertando e saindo de seu “berço esplêndido”. Isso é muito positivo. Sobre as eventuais críticas de seus vizinhos não as tenho notado. Ao contrário das críticas internas – agudas e eleitoreiras – acusando o governo de generosidade e de não saber defender os interesses nacionais com o vigor necessário. Meu conhecimento acadêmico e minha experiência como profis-sional em missões no exterior me convencem que o crescimento da influência brasileira no exterior constitui não somente novidade mas também elemento altamente positivo para as RI, especial-mente as do Sul. Sem a presença ativa e propositiva do Brasil, certamente não teríamos o G20, não teríamos alcançado um incremento das relações Sul/Sul, não teríamos voz num mundo dominado por poucas potências que pretendem possuir o direito de dominação (através do CS/ONU) como também à força, já que se trata de países nucleares. O Brasil possui o que alguns denominam de soft power e que eu prefiro qualificar de good power.

8. A Estratégia de Defesa Nacional, ora em implementação, objetiva garantir ao Brasil a pos-

sibilidade dissuasória diante de ameaças externas desconhecidas. Para um país que cresceu

geograficamente de maneira tão expressiva quanto o nosso, de modo nem sempre tão pací-

fico quanto se sabe, um “armar-se” não contradiz uma eventual postura pacífica, de modo a

inspirar uma corrida armamentista de parte de seus limítrofes?

A região que abrange a América Latina e o Caribe constitui, historicamente, um espaço de paz e de estabilidade única no mundo. Após a independência, suas fronteiras permaneceram prati-camente intactas, com escassas e marginais exceções. Essa situação contrasta com a fúria das guerras territoriais que assolaram a Europa e a África. Muitas explicações podem ser fornecidas. Contudo, ressalte-se que o baixo nível de gastos com armamento na região está na raiz dessa tranquilidade. Portanto, o Brasil não será o país a romper um ciclo histórico e virtuoso das relações regionais.

9. Em declaração à questão eleitoral haitiana: “A democracia é uma exceção à história do

Haiti”, o que o senhor tem a dizer sobre o trabalho dos representantes internacionais do

Haiti, do comentário do cônsul haitiano no Brasil que considera a desgraça vivida pelo país

boa para promover o mesmo internacionalmente e se a instalação permanente da Minustah

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conseguiria instaurar a democracia naquele país?

São três perguntas. Vamos começar pela mais simples, ou seja, o comentário do cônsul do Haiti em São Paulo. Seu autor tentou explicar, minimizar, interpretar e culpar outros, pois o impacto de suas infelizes declarações foram enormes. De fato, trata-se de um cônsul que está no Brasil desde a década de 1970 e portanto foi nomeado pela ditadura duvalierista. Nesse sentido, não deve haver nenhuma surpresa com o desprezo que ele trata o povo que representa. Não posso ir além, pois nesse caso defendo que não se deve “gastar pólvora em chimango”. Sobre o trabalho dos representantes internacionais no Haiti, sou qualificado para responder, embora mal colocado para fazê-lo. Mesmo antes do mortífero terremoto de 12 de janeiro de 2010, o Haiti estava sob os holofotes da comuni-dade internacional. Desde 1993, nada menos de seis missões de paz das Nações Unidas (por vezes em colaboração com a OEA) foram ao Haiti. Portanto, há um problema com o Haiti. Mas o que chama a atenção é o fato de que a comunidade internacional teve que regressar cinco vezes ao Haiti num período relativamente curto. Isso significa que também há um problema com a qualidade, a natureza, a forma e o desempenho das missões internacionais enviadas ao Haiti. De fato há uma profunda contradição entre os problemas fundamentais haitianos – baixíssimo nível socio-econômi-co e a altíssima instabilidade política – e o cardápio de ações ostentado pelas missões de paz, que se resume, essencialmente, em propostas securitárias, pois inspiram-se no capitulo VII da Carta de São Francisco. Frente a esse divórcio, pouco há o que fazer. Espero que a terrível tragédia que assolou o país no inicio deste ano, incite a comunidade internacional a reconsiderar sua estratégia no Haiti. Caso a cooperação internacional continue trilhando os mesmo caminhos que no passado, ela colherá os mesmos amargos frutos. Em todo caso, a experiência haitiana demonstra que a democracia não é um produto que pode ser adquirido nos supermercados políticos estrangeiros. Ao contrário. Ela resulta de um processo histórico, de uma experiência socio-política e de um querer comum – ou pelo menos majoritário – da comunidade nacional. Portanto, nada pode estar mais distante de um sonhado Haiti, democratizado por obra e graça da MINUSTAH a qual se transformaria em tropa de ocupação já que a democracia não pode impor-se pelas baionetas.

10. A emergência de novos atores no cenário internacional, não detentores de soberania,

matizam ou inflexionam as RI de modo a uma nova configuração admissível? Por quê?

O final da Segunda Guerra Mundial provocou dois fenômenos contraditórios. Por um lado, assistimos ao surgimento de um processo de divisão do mundo em pólos opostos e irreconciliáveis. Foi o longo período da Guerra Fria. A fratura das RI foi confirmada por uma Revolução Chinesa autárquica e auto-suficiente. Entre as diferentes e profundas consequências advindas da disputa, está

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a percepção simplista dos conflitos – por exemplo, o processo de descolonização – exclusivamente através do prisma dos distintos pólos de poder. Ou seja, o denominado Terceiro Mundo tornou-se refém de uma luta que não era sua. Por outro lado e confrontando o processo de fragmentação e de alinhamento, surge uma teia, que se densificou ao longo do tempo, de organizações internacionais – privadas inter-governamentais – bem como um forte desenvolvimento econômico provocando um sensível incremento do comércio internacional e da interdependência entre os povos. Como o comércio adocica os costumes, aparecem, na esteira do que alguns denominam globalização, novos atores que atuam na margem do sistema internacional. Não por isso que todos esses atores devam ser considerados ilegais, embora todos sejam marginais. Não creio que tal fenômeno mude a natureza da ação e as prerrogativas políticas e os privilégios jurídicos dos Estados. A ideia de uma crescente autonomia dos atores marginais não se sustenta. Assim, em meu Manual das Organizações Inter-nacionais enfatizei o grau de dependência – por vezes de total submissão – das OI aos Estados. Considero que mais importante que esta evolução é levarmos em consideração em nossas análises das RI, o processo de tomada de decisão em política externa no interior de cada Estado (ou ator internacional). Considero esse campo como sendo um dos mais férteis e ao mesmo tempo um dos menos considerados pela pesquisa em RI.

11. É de se acreditar que os Estados-Nação, herdeiros da soberania de reis e imperadores,

abram mão de seu reconhecido monopólio da violência?

Não. Não acredito que essa possibilidade esteja num horizonte previsível. Não se deve con-fundir a operacionalização do exercício da violência, na qual instrumentos de coerção privados são utilizados, com o monopólio das decisões de fazer a guerra ou firmar a paz. Movimentos armados considerados irregulares durante a luta pela descolonização ou em guerras de agressão, como a do Vietname, aspiram, invariavelmente a conquistar uma situação de regularidade ou legalidade. Todos esses movimentos, quando vitoriosos, desembocaram na formação de Estados. Alem disso, o proces-so de privatização da Guerra do Iraque é conduzido pelo governo dos Estados Unidos. Enfim, não será porque Estados sejam incapazes de exercer de maneira permanente o monopólio da violência em certas partes de seu território que eles abrirão mão desse direito, que somente pode ser exercido de maneira monopolista. Por sinal, essa conquista constitui elemento fundador do Estado, sem o qual regrediríamos à situação que vigorava antes do Tratado de Vestfália.

12. Dentre as várias “teorias da conspiração”, uma das mais recorrentes é a que trata de

um “governo mundial”. Em sua opinião, essa possibilidade seria bem-vinda? Necessária?

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Obrigatória? Ou dispensável? Por quê?

Há muitas concepções e, consequentemente, diferentes etapas históricas para que venhamos alcançar um “governo mundial”. Sem entrar nos debates de como deveria ser esse modelo, que eta-pas já foram cumpridas nessa direção. Com a universalização da Carta de São Francisco, todos os Estados membros das Nações Unidas aceitaram abandonar a ação bélica como sendo seu atributo exclusivo e princípio de política exterior. O princípio da segurança coletiva tornou-se elemento fun-damental da arquitetura das RI. Portanto, do ponto de vista jurídico e tratando-se de tema central de sua agenda – a sobrevivência dos Estados – houve avanço significativo porque é consagrada a transferência da responsabilidade de defesa nacional para um ente externo aos Estados. No caso das Américas, os Estados (e as respectivas populações) não são mais livres para escolher a forma de sua organização política. Desde a adoção da Carta Democrática Interamericana em 2001, a natureza do regime político dos Estados membros da OEA está sob tutela dos princípios derivados de um documento internacional (não ouso designá-lo como “tratado”) chamado de “Carta”. O recente exemplo de Honduras e o impasse sobre Cuba constituem exemplos marcantes. Desembocamos, em nossa região hemisférica, no que chamo de “ditadura da democracia”. Do ponto de vista da organi-zação econômica das RI, há um rosário de instrumentos – mais ou menos eficazes – e de espaços de diálogo que podem configurar um modelo informal de governo econômico mundial ou, ao menos, de coordenação transnacional de políticas macro-econômicas nacionais. Finalmente, do ponto de vista dos valores, há uma formidável interpenetração – poderíamos dizer uma homogeneização – de conceitos, atitudes e princípios aplicados à administração interna dos Estados. São os denominados princípios da boa governança. Trata-se de evolução irrefreável das RI a qual, todavia, não deve de-sembocar num governo mundial nos moldes que conhecemos e que vigora nos atuais Estados. Essa evolução terá um desenho distinto dos Estados e uma nova engenharia, embora real, nem sempre será institucionalizada, das RI.

13. Consideradas as possibilidades não militares do tráfico de drogas, do terrorismo, das

milícias paramilitares, das máfias que imperam em nossas principais cidades e em alguns

países vizinhos e que se afiguram como ameaças às fronteiras políticas brasileiras, a milita-

rização das fronteiras, tal qual se desenha (notadamente na Amazônia), justifica-se ou outras

possibilidades deveriam ser consideradas? Se sim, quais seriam?

Somente é possível combater o crime transnacional com cooperação transnacional. Indispen-sável se torna a cooperação judicial, policial e dos serviços de inteligência. Sem uma estratégia regional, o controle militar – por sinal praticamente impossível – da fronteira amazônica, não será suficiente.

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14. A UFSM criou um curso [em implantação] de Relações Internacionais. Qual sua men-

sagem para seus alunos e professores?

Por um lado fico muito feliz em constatar que a nossa querida UFSM despertou – ela também – para o mundo. Por outro, permanece uma ponta de tristeza em não poder estar presente em Santa Maria para participar do nascimento e desenvolvimento do Curso. Será, como sempre foi em circunstâncias parecidas, também uma aventura humana e social. Desejo que todos aqueles que dela fazem parte tenham êxito em seus propósitos, fortaleçam a ciência e, sobretudo, socializem o conhecimento.

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Ensaio

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PROF. DR. FLORISBAL DE SOUZA DEL´OLMO1

Paradoxo Latina-Americano: por que o governo de Chávez é considerado mais democrático que o de Porfirio Lobo

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Considerações iniciais

No dia 28 de junho de 2009, o então Presidente de Honduras, Ma-nuel Zelaya, foi destituído do cargo pela Corte Suprema de Justiça, com endosso do Congresso Nacional, da Procuradoria-Geral da República e das Forças Armadas. Ele foi enviado durante a noite para a Costa Rica, fato que ocasionou repulsa na maioria dos países americanos, incluindo a Organização dos Estados Americanos (OEA), e europeus, que consideraram ter havido um golpe de estado. A própria Organização das Nações Unidas (ONU) não reconheceu o governo investido pelo Congresso hondurenho, que substituiu interinamente Zelaya, posição que é mantida por diversos países, inclusive o Brasil, em relação ao Presidente Porfírio Lobo Soza, empossado em 27 de janeiro de 2010. Lobo foi eleito em novembro de 2009, em pleito com aparência de legalidade e lisura, no qual os candidatos haviam sido escolhidos antes da deposição de Zelaya.

Por outro lado, o Presidente Hugo Chávez Frías, da Venezuela, em-possado democraticamente em 1999, e que se tem mantido no poder por meio de referendos, com longo acervo de medidas antidemocráticas, como fechamento de veículos de comunicação, cerceamento da oposição e prisão arbitrária de pessoas, é considerado um democrata pelos mesmos países. Este artigo vai trazer algumas reflexões sobre esse contexto.

1. Honduras no Século XX e a República das Bananas

Honduras, com cerca de sete milhões e meio de habitantes e super-fície de cento e doze mil quilômetros quadrados – números ligeiramente su-periores aos do Estado de Santa Catarina –, é um dos países mais pobres do continente americano. Mais de um décimo de sua população vive nos Estados Unidos, o que provoca substancial ingresso de recursos enviados por esses emigrantes na economia hondurenha. O turismo é outro setor relevante na economia do País, especialmente por estarem situadas em Honduras as ruínas

“(...) incluindo a Organização dos Estados Americanos (OEA), e europeus, que consideraram ter havido um golpe de estado”

1 Mestre (UFSC), Doutor em Direito (UFRGS) e Pós-Doutor em Direito (UFSC). Professor do Programa de Mestrado em Direito da URI, Santo Ângelo, RS. Líder do Grupo de Pesquisas CNPq Tutela dos Direitos e sua Efetividade. Autor de Direito Internacional Público, 4ª ed., 2009, e Direito Internacional Privado, 8ª ed., 2010, ambos pela Editora Forense. Membro da Sociedade Brasileira de Direito Internacio-nal, da Academia Brasileira de Direito Internacional e da Associação Americana de Direito Internacional Privado (ASADIP).

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maias de Copán, mais importante centro religioso da cultura maia no período pré-colombiano e hoje considerado patrimônio histórico da Humanidade pela Unesco.2

Contudo, durante o século XX, Honduras acabou associada à expressão República das Bana-nas. Essa expressão surgiu em 1904, em contos de O. Henry, pseudônimo do escritor estadunidense William Sydney Porter, em alusão à presença de empresas norte-americanas no País, como a United Fruit Company, que ostensivamente interferiam na política hondurenha, inclusive com emprego da força para impor seus interesses comerciais.

Como a banana era o principal produto de exportação de Honduras, a ingerência de empre-sas transnacionais que a comercializavam fragilizou os governantes hondurenhos de então, interes-sados apenas nesse negócio em proveito pessoal e de seus grupos. Houve uma sucessão de ditadores, que perdurou por várias décadas, sendo Honduras um dos países latino-americanos que mais sofreu golpes de estado ao longo de sua História. Estima-se que setenta por cento do montante das ex-portações hondurenhas são para os Estados Unidos – além da banana, o País exporta café e açúcar.

2. Constituição de 1982 e Resgate da Dignidade Nacional Hondurenha

Em 11 de janeiro de 1982, com a promulgação da vigente Constituição, Honduras deu alentado passo na busca da superação dessa inglória fase. Na Carta, foram estabelecidos mecanismos para impedir a perpetuação de governantes, tornando-se cláusula pétrea a alternância de poder e se considerando crime de extrema gravidade qualquer tratativa direcionada contra esse princípio. As-sim, no art. 4º consigna-se que a alternância no exercício da Presidência da República é obrigatória e a infração dessa norma constitui “delito de traição à Pátria”.

Inseriu-se entre os dispositivos geradores da perda da condição de cidadão hondurenho, no inc. 5º do art. 42, “incitar, promover ou apoiar o continuísmo ou a reeleição do Presidente da Repú-blica”. Já o art. 239 do texto constitucional estabelece que proposta de reforma desse dispositivo, bem como apoio direto ou indireto a essa alteração constitucional, faz cessar de imediato o desempenho dos cargos exercidos por seus autores, os quais ficam inabilitados por dez anos para o exercício da função pública.

No que tange às missões das Forças Armadas, o art. 272 da Carta Magna atribui-lhes a manutenção do império da Constituição, a defesa dos princípios do sufrágio livre e da alternância do exercício da Presidência da República, entre outras atribuições. Elas têm seu Chefe eleito pelo Con-gresso Nacional em lista tríplice proposta pelo Conselho Superior das Forças Armadas (art. 279),

2 ALMANAQUE Abril 2010, pp. 489-490.

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só podendo ser removido do cargo pelo Congresso Nacional, com aprovação de dois terços dos seus membros.

O art. 319, inc. 2º, da Constituição hondurenha atribui à Corte Suprema de Justiça conhecer dos delitos oficiais e comuns dos altos funcionários da República quando o Congresso Nacional te-nha entendido haver motivo para esse julgamento. O art. 374, que trata de Reforma da Constituição, coíbe qualquer alteração nos dispositivos que se referem à forma de governo, ao período presidencial e à possibilidade de cidadão que haja desempenhado, sob qualquer título, o cargo de Presidente da República vir a exercê-lo novamente.

O conhecimento dessas regras constitucionais hondurenhas é importante para melhor com-preensão da deposição do Presidente Manuel Zelaya, que tem sido considerada, como referido, um golpe de estado.

3. Ascensão e Queda do Presidente Manuel Zelaya

José Manuel Zelaya Rosales, o Mel Zelaya, nascido em 1952, é filho de um grande proprie-tário de terras e abandonou o curso de Engenharia para se dedicar aos negócios da família (pecuária e extração de madeira), posteriormente ingressando na política, quando exerceu três mandatos de deputado e foi Ministro de Investimentos.

Em 2005, foi eleito Presidente de Honduras pelo Partido Liberal com um programa de centro-direita. Com aprovação popular decrescente e em meio às dificuldades econômicas do País, Zelaya, em 2008, se aproximou do Presidente Hugo Chávez, da Venezuela, recebendo substancial ajuda financeira: cento e trinta milhões de dólares e cem tratores agrícolas, entre outras.3 Adotou, então, reformas econômicas e sociais consideradas de esquerda, bem como se tornou crítico dos Estados Unidos – principal importador dos produtos hondurenhos –, do setor empresarial e da imprensa de seu país. Um jornalista que se opunha a Zelaya foi morto e dois outros optaram por se afastar de Honduras.

Manuel Zelaya integrou Honduras à Aliança Bolivariana das Américas (ALBA), liderada por Chávez e formada por vários países cujos presidentes têm se caracterizado pelo apego ao poder, buscando a permanência na Chefia de seus Estados.

Inspirado no modelo bolivariano, Zelaya tentou reformar a Constituição hondurenha, con-vocando, em 23 de março de 2009, um plebiscito, que seria realizado em 29 de junho. Nesse pleito os eleitores responderiam à pergunta: Você está de acordo que, nas eleições gerais de novembro de 2009,

3 O Pesadelo é Nosso. Veja – edição 2132. 30.09.2009, p. 124.

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se instale uma quarta urna para decidir sobre a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte, que aprove uma nova Constituição política? Eventual vitória do “sim” possibilitaria a Zelaya concorrer novamente.

Dias antes do plebiscito, Zelaya conclamou seus partidários em Tegucigalpa: “Agora o povo pode ter opinião, para que aprendamos a ser mais patrióticos e mais democráticos. É isso que quere-mos no próximo domingo”. 4 O conturbado ambiente gerado em todo esse contexto, especialmente em vista da determinação do Presidente de realizar o referendo, ainda que contrariando as mais importantes instituições de Honduras, acabou por conduzir ao lamentável desfecho.

Comentaristas de todos os matizes ideológicos da imprensa hondurenha e de outros países, bem como atenta análise dos fatos ocorridos, nos conduzem ao entendimento de que Zelaya buscava sua manutenção no poder. No entanto, como a consulta havia sido embargada pelo Ministério Pú-blico, não houve a distribuição das cédulas de votação. Então, em 25 de junho de 2009, três dias antes da sua destituição, o Presidente dirigiu pessoalmente uma incursão de partidários, uma caravana popular, que irrompeu na sede da Força Aérea – na Base Aérea de Tegucigalpa – para “resgatar” as urnas e cédulas que seriam usadas no referendo. Na ocasião, Zelaya afirmou que muitos queriam im-pedir a consulta, como o Tribunal Nacional de Eleições, a Procuradoria-Geral da República, a Corte Suprema de Justiça e o Congresso Nacional, que seriam instituições vinculadas a setores poderosos e oligárquicos, conforme a edição digital do jornal oficial de Cuba, Granma.5 Zelaya entendia ser impossível realizar reformas profundas com a vigente Constituição de Honduras.

Embora a consulta tenha sido rejeitada pelo Congresso Nacional e considerada inconsti-tucional pela Suprema Corte de Justiça, Zelaya resolveu mantê-la, alegando que teria valor simbó-lico e determinou que os militares distribuíssem as urnas pelo país. A recusa do Chefe do Estado Maior Conjunto das Forças Armadas, com base na ilegalidade da ordem presidencial, levou Zelaya a demiti-lo. O militar não acatou a medida, sendo respaldado pelo Conselho Superior das Forças Armadas, pelo Congresso Nacional e pela Suprema Corte de Justiça. Em 28 de junho, dia anterior ao aprazado para a consulta, houve a deposição do Presidente Manuel Zelaya e sua expulsão do país. Seguiram-se a declaração de vacância do cargo e a posse do sucessor em conformidade com a linha sucessória estabelecida pela Constituição.

Observa Everaldo Maciel que a ilegalidade da deportação de Zelaya não elide seu crime de traição à pátria, constitucionalmente capitulado, cuja pena é a imediata destituição do cargo ocupado.

4 Manuel Zelaya, uma figura controversa. Site: http://pt.euronews.net/2009/07/06/manuel-zelaya-uma-figura-controversa/ Acesso em 09.02.2010.

5 Hondurenhos respaldam a Zelaya rumo ao referendo. Gramma Internacional. 26.06.2009. Site: http://www.granma.cu/por-tugues/2009/junio/vier26/Hondurenhos.html. Acesso em 11.04.2010.

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O retrospecto de golpes de estado nos países latino-americanos acabou sancionando o entendimento de que ocorrera mais um golpe, merecedor de condenação: “No contexto de uma governança mun-dial, ainda imberbe, essa condenação evoluiu para aplicação de sanções econômicas, não reconheci-mento do governo empossado e exigências intervencionistas para ‘restituir’ Zelaya à Presidência”. 6

4. Indignada Reação dos Países Americanos e Isolamento de Honduras

A deposição do Presidente Manuel Zelaya, ocorrida durante a noite, e seu imediato envio à Costa Rica – ato flagrantemente inconstitucional, já que o art. 102 da Carta Magna hondurenha proíbe a expatriação dos cidadãos do País ou sua entrega a autoridades de Estado estrangeiro – provocou indignação nos demais países, que imediatamente congelaram suas relações diplomáticas com Honduras. Isso se tornaria extremamente nocivo ao País, que teve seus bens bloqueados e as transações comerciais suspensas, no exterior, com enormes custos econômicos. De Washington a Bruxelas, de Brasília a Buenos Aires, o discurso inicial contra Honduras foi uníssono: tratava-se de golpe de estado e essa prática deveria ser repelida por todos com veemência.

Identificar o afastamento de Manuel Zelaya da Presidência de Honduras como procedi-mento constitucionalmente admitido requer, como observou Dalmo de Abreu Dallari, atenta aná-lise, a fim de entender de onde provém a autoridade da Suprema Corte de Justiça para ordenar a deposição de um presidente eleito e ser obedecida pelas Forças Armadas: “A par disso, é importante procurar saber por que motivo e com que base jurídica a Suprema Corte tomou sua decisão e orde-nou ao Exército que a executasse”. 7

No dia 30 de junho de 2009, a Assembleia Geral da ONU condenou o “coup d’état” em Honduras, aprovando uma resolução, patrocinada por dezenas de países (desde Venezuela até os Es-tados Unidos), na qual deixava claro que a ONU não reconheceria qualquer governo que não fosse o do Sr. Zelaya.8 Essa resolução ocasionou que a diplomata hondurenha não fosse admitida na 64ª Assembleia Geral da megaorganização, em setembro de 2009, uma vez que estaria representando um governo ilegítimo. Acentue-se que Roberto Micheletti, então Presidente interino de Honduras, era o Presidente do Congresso Nacional até a deposição de Zelaya e foi investido na Chefia do Estado seguindo a linha sucessória constitucional.

A reação à destituição de Zelaya no exterior ignorou quaisquer fundamentos da legislação

6 MACIEL, Everaldo. Lições hondurenhas. Jornal do Brasil on-line (11.10.2009). Site: http://www.mre.gov.br/. Acesso em 07.04.2010. Ver, ainda, MARTINS, Ives Gandra da Silva. Reflexões sobre Honduras. Jornal Carta Forense (04.11.2009). Site: http://www.cartaforense.com.br/Materia.aspx?id=4897. Acesso em 06.04.2010.

7 DALLARI, Dalmo de Abreu. Crise em Honduras: O fundamento legal omitido. 30.09.2010. Site: http://www.observatorio-daimprensa.com.br/artigos.asp?cod=557IMQ011. Acesso em 06.04.2010.

8 Site: http://www.un.org/apps/news/story.asp?NewsID=31314&Cr=honduras&Cr1. Acesso em 31.10.2010.

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interna hondurenha e assumiu aspectos que chegam a ser desumanos: a condenação ao golpe em Honduras, na ONU, pelo Presidente Lula, com amplo apoio dos demais países presentes à 64ª Assembleia Geral e o veto à Embaixadora de Honduras transformaram o país caribenho no único Estado soberano do planeta impedido de participar do magno evento, no qual dirigentes de países com notório currículo contra os princípios democráticos e os direitos humanos, como o líbio Mu-ammar Kadafi – no poder há quatro décadas – e o iraniano Mahmoud Ahmadinejad – conhecido por executar opositores –, eram saudados sem qualquer reserva pelo próprio Presidente brasileiro.

Reconhecida a ilegalidade da deportação de Zelaya, o caminho natural seria recorrer à Corte Suprema de Justiça, de onde proveio a destituição do mandatário. No entanto, a ação de âmbito internacional provocada por todo um contexto acabou desconsiderando os poderes Judiciário e Le-gislativo do País, e causou dificuldades à sua economia, já fragilizada, com consequências negativas para a população. Verificou-se deliberada disposição de ignorar o ordenamento jurídico de Hondu-ras, que julgou inconstitucional as ações continuístas do primeiro mandatário, constrangendo-o ao afastamento e ao julgamento de seus atos ilícitos à luz da Carta Magna, tão protetiva em relação aos princípios morais e culturais que o País busca penosamente preservar.

5. Retorno de Zelaya e Ocupação da Embaixada Brasileira em Tegucigalpa

Manuel Zelaya retornou inesperadamente a Honduras no dia 21 de setembro de 2009, ins-talando-se na Embaixada brasileira em Tegucigalpa, com cerca de trezentos seguidores, em operação que contou com apoio do Presidente Hugo Chávez, da Venezuela. Essa participação na operação foi confirmada pelo próprio mandatário venezuelano, quando afirmou que, em encontro com sin-dicalistas em Nova Iorque, anunciara que Zelaya participaria da 64ª Assembleia Geral das Nações Unidas, buscando confundir seus opositores sobre o paradeiro do dirigente deposto. Chávez disse ter telefonado para o hondurenho em um aparelho que estaria grampeado9, afirmando que monitorou a entrada de Zelaya em Honduras por intermédio de um telefone de satélite, e anunciado, no dia seguinte, o retorno do mandatário afastado.

Duas semanas após, em entrevista a José Roberto Burnier, Zelaya afirmou que sua opção pela nossa representação diplomática deveu-se a ser o Brasil um país democrático: “Eles [as autoridades brasileiras] não sabiam de nada. Os planos fui eu que fiz. Fiz os planos com hondurenhos e entrei com hondurenhos”.10

9 Chávez diz que ‘despistou’ autoridades sobre retorno de Zelaya. Site: http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticia. Acesso em 11.04.2010.

10 Manuel Zelaya explica volta a Honduras. Site: http://g1.globo.com/Noticias/Mundo/0,,MUL1329304-5602,00.html. Acesso em 09.02.2010.

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A permanência do presidente deposto – acusado em seu país dos crimes de traição à pátria, abuso de autoridade, delito contra a forma de governo e usurpação de funções – na representação di-plomática brasileira gerou situações inusitadas: não houve a concessão de asilo a Zelaya pelo Brasil, que o considerou hóspede; as autoridades hondurenhas cercaram a Embaixada com forças militares, impondo o toque de recolher; e o dirigente afastado se dirigiu aos partidários – discursando da sacada da representação brasileira e dando entrevistas a emissoras de televisão –, enquanto o Brasil afirmava não reconhecer o Governo Micheletti. Enfim, ocorreram fatos alheios aos princípios e às finalidades da representação entre os Estados soberanos.

Os especialistas em relações internacionais divergem quanto à postura brasileira de acolher o mandatário deposto em nossa Missão Diplomática em Tegucigalpa. Assim, José Flávio Saraiva concorda com a medida, entendendo que, ao produzir esse ato jurídico e político, o governo bra-sileiro agiu no âmbito do campo humanitário e na defesa do conceito democrático nas relações internacionais das Américas. Por outro lado, Maristela Basso discorda, acentuando que a acolhida a Zelaya na Embaixada desvirtuou os seus objetivos, tendo ele passado “a usá-la para seus próprios interesses, gerando confusão e insegurança na comunidade local”.11

Observa o mestre em relações internacionais Oscar Valente Cardoso que, embora possa ser questionada a legalidade da retirada de Manuel Zelaya de seu país, essa ilegalidade não justifica a prática de outra. Nesse contexto, o Brasil poderia acolher o ex-presidente se ele tivesse buscado abrigo em nossa legação para sair de Honduras, ou tivesse requerido proteção no território brasileiro, mas não contribuir para seu retorno a Honduras, desvirtuando os fins da inviolabilidade da embaixada e aumentando os conflitos internos do país caribenho, além de violar o princípio da não intervenção.12

A acolhida de Zelaya na Embaixada brasileira em Tegucigalpa desafia os estudiosos por não se adequar perfeitamente a qualquer dos institutos aplicáveis ao caso. Em obra sobre Direito Interna-cional Público, buscando conceituar o instituto do asilo político, consignamos: “A garantia de perma-nência no Estado em que encontra abrigo destina-se a proteger o ser humano que sofre perseguição por haver discordado, especialmente no campo político, contra os detentores do poder em seu país. Encerrando essa postura do Estado perseguidor um juízo de valores que não é universalmente aceito como bem jurídico, por embasar-se em ideologia, mutável no espaço e no tempo, prospera a aceitação do asilo como um meio de evitar um dano maior ao espírito de humanidade e de justiça”.13

11 Foi correto o Brasil dar refúgio a Zelaya? Opinião: O Povo Online. 03.10.2009. Site: http://opovo.uol.com.br/. Acesso em 14.04.2010.

12 CARDOSO, Oscar Valente. Asilo e refúgio políticos: o caso Honduras. Site: http://jus2.uol.com.br/Doutrina/. Acesso em 11.04.2010.

13 DEL´OLMO, Florisbal de Souza. Curso de Direito Internacional Público, p. 221.

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Nesse contexto, os fatos em estudo conduzem ao entendimento de que estamos diante de um caso de asilo diplomático. Contudo, o asilado ingressou voluntariamente no Estado em que estaria sujeito a perseguição e desse país era o Presidente legal, tendo sido afastado do cargo por violações ao texto constitucional. O Governo de fato tinha sua investidura questionada internacio-nalmente, mas estava respaldado pelas mais importantes instituições do País, as quais entendiam que, à luz da sua Constituição, o dirigente asilado devia ser afastado e julgado, tendo procedido à sua destituição. Ademais, o país asilante, o Brasil, não reconhecia o governo de fato, mas considerava o político abrigado no interior de sua Embaixada o Chefe de Estado do país sede da legação.

6. Tratativas Infrutíferas de Solução da Crise com Retorno de Zelaya à Presidência

Durante os meses de outubro e novembro de 2009 foram intensas as tratativas na busca de uma solução para a crise, em Honduras e nos países engajados no processo de pacificação hondu-renha. Assim, no dia 29 de outubro, uma delegação de alto escalão dos Estados Unidos pressiona ambos os lados a fim de que assinem acordo que submete ao Congresso de Honduras, depois de consultada a Suprema Corte do País, a questão da volta de Manuel Zelaya ao poder, prevendo ainda a formação de um governo de unidade nacional.

Esse acordo fracassa no dia 06 de novembro porque o Congresso demora a votar e o mandatário deposto, ainda na embaixada brasileira, afirma que o Presidente interino Roberto Micheletti manobra para formar um novo governo sem ele. Zelaya pede então aos hondurenhos que boicotem a eleição pre-sidencial marcada para 29 de novembro. No dia 14 de novembro, Manuel Zelaya declara que rejeita sua volta ao poder como parte de qualquer acordo destinado a encerrar a crise, pois isso legitimaria o golpe.

Ainda em novembro, no dia 25, a Corte Suprema de Justiça opina que Zelaya não deve voltar ao cargo. Após as eleições presidenciais, no dia 02 de dezembro, o Congresso vota contra a restauração do poder a Zelaya. Uma semana após, no dia 09 de dezembro, Zelaya se prepara para deixar a Embaixada brasileira com destino ao México, mas acaba sendo barrado pelo governo interino, devido a discordância sobre seu status político no exílio. Já no dia 13 de janeiro de 2010, o Presidente eleito Porfírio Lobo e o governo da República Dominicana assinam um acordo que garante salvo-conduto para que Zelaya deixe a Embaixada com destino ao país caribenho. Por fim, em 26 de janeiro, véspera da posse de Lobo e do término oficial do mandato de Zelaya, um juiz da Suprema Corte absolve a cúpula militar das acusações de abuso de poder relativas ao golpe, enquan-to o Congresso concede anistia política a Zelaya, embora não o isentando de acusações penais.14

14 Ver, entre outras fontes, Lobo toma posse e Zelaya deixa Honduras. O Globo – Mundo. 27.01.2010. Site: http://oglobo.globo.com/mundo/mat/2010/01/27/lobo-toma-posse-zelaya-deixa-honduras-915715948.asp. Acesso em 11.04.2010.

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7. Eleição de Porfírio Lobo e Reintegração de Honduras à Comunidade Internacional

As eleições para o sucessor de Manuel Zelaya se efetivaram em 29 de novembro de 2009, con-correndo cinco candidatos, todos escolhidos por seus partidos políticos, antes da deposição de Zelaya. Embora a permanente acusação de golpista atribuída a Micheletti pelos demais países, em nenhum momento ele deixou de encarecer a importância do cumprimento do calendário eleitoral, demonstran-do a interinidade de seu governo e a preocupação com os mandamentos constitucionais hondurenhos.

O pleito presidencial hondurenho foi vencido pelo candidato Porfírio Lobo Soza, o Pepe, do Partido Nacional, que venceu Elvin Santos, do Partido Liberal, vice-presidente de Zelaya. Lobo, que havia sido derrotado por Zelaya nas eleições de 2005, recebeu agora o maior número de votos da história de Honduras.15 Contudo, o resultado não é reconhecido pelo Brasil, sob a alegação de que a eleição fora organizada pelo governo de fato.

A posse do Presidente Porfírio Lobo ocorreu na data constitucionalmente aprazada, 27 de janeiro de 2010, em cerimônia realizada no Estádio Nacional, em Tegucigalpa, podendo ser consi-derado o primeiro passo para encerrar a crise política iniciada em junho de 2009. O ato teve lugar perante o Deputado Juan Orlando Hernández, que presidia o Congresso, tendo Lobo prometido “ser fiel à República e cumprir e fazer cumprir as leis” e imediatamente referendado o salvo-conduto que permitiu a Manuel Zelaya sair de Honduras.

Zelaya, juntamente com sua família e colaboradores, deixou a Embaixada brasileira ainda no dia 27 de janeiro, em automóvel cercado por mais de vinte veículos, dirigindo-se para o aeroporto de Tegucigalpa e seguindo para Santo Domingo, na República Dominicana, em companhia do Presidente Leonel Fernández, desse país, na condição de convidado especial.

8. Dificuldades de uma Identificação Precisa do Caso Honduras

Lamenta Dalmo de Abreu Dallari a imprecisão nas informações sobre a deposição do Presi-dente Manuel Zelaya, que acabaram dificultando e distorcendo uma análise serena dos acontecimentos de Honduras, tendo substancial parcela da imprensa brasileira apresentado o presidente deposto como vítima inocente de golpistas, quase nada informando sobre os aspectos jurídicos do caso. Trata-se de omissão que impediu uma adequada avaliação dos fatos, pois não foi publicada pela imprensa a fun-damentação constitucional precisa do afastamento de Zelaya, falando-se, “genericamente, em golpistas sem informar quem decidiu tirá-lo da presidência, por que motivo e com qual fundamento jurídico”,16

15 Milhares se despedem de Zelaya em Honduras. BBC Brasil. 27.01.2010. Site: http://www.bbc.co.uk/. Acesso em 11.04.2010.

16 DALLARI, D. A. Op. cit.

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elementos indispensáveis para uma análise idônea e isenta dos fatos que tantos transtornos ocasiona-ram à população hondurenha.

Restabelecida a ordem legal em Honduras, com a posse, em 27 de janeiro de 2010, do Presidente Porfírio Lobo Soza, escolhido em pleito eleitoral com aparência de plena regularidade, seguindo os preceitos constitucionais do País, que não sofreram – nesse aspecto – qualquer contesta-ção interna ou internacional, persistirá a dúvida sobre a legalidade da destituição de Manuel Zelaya.

O próprio mandatário deposto, de forma deliberada ou não, contribuiu para essa polêmica: sua migração para uma posição ideológica antagônica à qual pautara sua vida pública como parla-mentar e como integrante do poder executivo, na condição de ministro de Estado, provoca naturais críticas de uns e aprovações de outros. Ademais, a omissão do texto constitucional hondurenho quanto ao processo formal para eventual afastamento do seu Chefe de Estado contribuiu para o desastrado procedimento adotado na hora da execução: “Tendo em conta que o respeito à Cons-tituição é fundamental para a existência do Estado Democrático de Direito, não há dúvida de que Zelaya estava atentando contra a normalidade jurídica e a democracia em Honduras”.17 A ausência de informações completas e precisas sobre a configuração jurídica conduz a conclusões apressadas que desfiguram a realidade do caso Honduras.

Como não havia previsão de procedimento para o afastamento do primeiro mandatário hondurenho que transgrediu os mandamentos constitucionais, caberia à Corte Suprema de Justiça indicar a forma de sua destituição. No entanto, a remoção manu militari do Presidente Manuel Ze-laya acabou por configurar, no entendimento da maioria dos países, um golpe de estado, com a gama de prejuízos diplomáticos e econômicos para Honduras.

9. Democracia Venezuelana de Hugo Chávez

O Presidente Hugo Rafael Chávez Frías, que surgiu no cenário político venezuelano em 1992, quando liderou tentativa de golpe militar, abortada pelo governo constituído, encontra-se no poder desde 1999, tendo sido reeleito em 2000 e em 2006. Ainda em 1999, viu aprovada a chamada Constituição Bolivariana, que extinguiu o Senado, ampliou os poderes do Presidente da República e passou o seu mandato de cinco para seis anos. Graças a boicote da oposição, em 2005, o partido de Chávez elegeu as 167 cadeiras da Assembleia Nacional (Parlamento).

Dotado de personalidade forte, polêmico e loquaz, elegeu os Estados Unidos como alvo de seus inflamados discursos. Não aceita a globalização, colocando-se por vezes em flagrante des-

17 DALLARI, D. A. Op. cit.

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compasso com a realidade internacional, haja vista sua simpatia pelas políticas nucleares do Irã e da Coreia do Norte, rejeitadas, em tese, pela sociedade internacional. O lançamento de mísseis norte-coreanos, em julho de 2006, foi por ele defendido, com o argumento de que os países têm direito de desenvolver sua tecnologia logística. A política nuclear do Presidente do Irã, Mahmoud Ahmadine-jad, rejeitada pelo Conselho de Segurança da ONU, tem merecido enfático apoio de Chávez, com quem já se encontrou uma dezena de vezes.

O mandatário venezuelano lançou, em 2005, o chamado socialismo do século XXI e em 2006 encampou os campos petrolíferos das empresas estrangeiras. Decidido a permanecer no poder, Chá-vez propôs a reeleição ilimitada, sendo derrotado no referendo de dezembro de 2007. No entanto, alcançou seu desiderato no novo referendo que foi convocado em fevereiro de 2009. Enfatize-se que esse pleito porta flagrante inconstitucionalidade, pois de acordo com a legislação venezuelana proposta rejeitada não pode ser reapresentada na mesma legislatura.

Em abril de 2009, a oposição venezuelana se torna alvo do Presidente Chávez. O prefeito de Maracaibo, a segunda maior cidade do País, Manuel Rosales, foge para o Peru, onde recebe asilo político, após ser ameaçado de prisão por suposto enriquecimento ilícito. Sob a acusação de desvio de recursos, é preso o General Raúl Baduel, antigo Ministro da Defesa de Chávez, que havia aban-donado o chavismo, enquanto o prefeito da capital, Antonio Ledezma, teve seus poderes limitados, com a criação do cargo de chefe de governo do distrito federal.

Avesso à imprensa livre, o que lembra as ditaduras latino-americanas do século passado, com crimes de imprensa, Chávez chegou a apresentar ao Parlamento projeto da lei especial sobre crimes midiáticos, em julho de 2009, com previsão de pena de até quatro anos de prisão. Segundo o Presi-dente, o terrorismo da mídia causa pânico, perturba a paz social e compromete a segurança nacional. A proposta recebeu veemente censura do então Presidente da Sociedade Interamericana de Im-prensa, Enrique Santos Calderón, que a considerou um golpe devastador contra o que ainda restava de democracia na Venezuela. Acentuou que a aprovação da medida “viola o direito à liberdade de opinião, de imprensa e de expressão, legaliza o castigo contra os meios de comunicação e jornalistas independentes e reverte a tendência atual na América Latina de despenalizar os crimes contra a imprensa”. Diante da imediata e indignada reação de jornalistas, organizações civis e entidades in-ternacionais de defesa dos direitos humanos o Governo venezuelano considerou contraproducente a nova lei e arquivou o projeto.18

Chávez não renovou a concessão para as transmissões, em maio de 2007, determinado o

18 PARLAMENTO venezolano detiene ley de delitos mediáticos. Site: http://www.rnw.nl/espanol/article/parlamento-venezola-no-detiene-ley-de-delitos-medi%C3%A1ticos. Acesso em 01.06.2010.

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fechamento da RCTV, tradicional rede de televisão que detinha a maior audiência na Venezuela. A Associação Internacional de Radiodifusão (AIR) considerou o fechamento da RCTV um dos mais graves atentados contra a liberdade de expressão na Venezuela e em toda a América Latina.19 Em ja-neiro de 2010, o Presidente Chávez ordenou a suspensão do sinal de televisão a cabo dessa emissora.

Em agosto de 2009, são fechadas trinta e quatro emissoras de rádio, em um programa re-gulatório para democratizar a mídia e o espaço radioelétrico. A ONG Repórteres Sem Fronteiras divulgou nota, acentuando que o fechamento em massa de meios de comunicação, a maior parte considerada como de oposição, é um perigo para o futuro de um debate democrático na Venezuela e se deu pelo desejo do governo de silenciar opiniões divergentes, o que somente irá agravar as divisões sociais.20

Essas ações do Governo Chávez foram condenadas pela Comissão Interamericana dos Di-reitos Humanos e pela Diretora da Anistia Internacional. O que estamos presenciando é o mais am-plo ataque à liberdade de expressão na Venezuela desde que Chávez chegou ao poder, afirmou José Miguel Vivanco, diretor da Human Rights Watch para o continente americano: “Com exceção de Cuba, a Venezuela é o único país da região em que há um flagrante menosprezo a critérios universais de liberdade de expressão”.21 Em 2010, prisões, agressões, desaparecimentos e morte de jornalistas e fotógrafos no País ainda fazem parte do noticiário internacional.22

Em 07 de maio de 2009, o Parlamento Europeu aprovou resolução proposta por três grupos políticos, na qual manifesta enorme preocupação com a degradação da situação e da qualidade da democracia na Venezuela, que se encontra “gravemente ameaçada de colapso devido à concentração de poder e ao crescente autoritarismo exercido pelo Presidente da República”. Solidariza-se com todos aqueles que são alvo de perseguição política na Venezuela, simbolizada, na ocasião, na pessoa de Manuel Rosales, congratulando-se com a decisão adotada pelo Governo do Peru de conceder asilo político ao líder oposicionista venezuelano. Outrossim, rejeita com veemência “a ameaça e a violência, o abuso do poder, a difamação e o uso da justiça como arma política de intimidação e eliminação de opositores”.23

As atitudes do Presidente Hugo Chávez, por meio de declarações, decretos, apoio a ditado-res de outros países e cerceamento dos meios de comunicação no País, conduzem inexoravelmente

19 RCTV completa três anos fora do ar. Site: http://www.abert.org.br:8080/abert/?q=node/55742. Acesso em 30.05.2010.20 Ver site: http://en.rsf.org/venezuela-34-broadcast-media-shut-down-at-02-08-2009,34056.html. Acesso em 30.05.2010.21 Ver site: http://www.hrw.org/en/news/2009/07/31/venezuela-repeal-measures-aimed-critics. Acesso em 30.05.2010.22 Site: http://www.sipiapa.org/v4/index.php?page=det_informe&asamblea: A Comissão Interamericana de Direitos Huma-

nos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos publicou, em fevereiro de 2010, um Relatório no qual aponta “sérias restrições ao pleno gozo dos direitos humanos na Venezuela”. Acesso em 26.05.2010.

23 Ver site: http://www.europarl.europa.eu/sides/getDoc.do?pubRef=-//EP//TEXT+TA+P6-TA-2009-0393+0+DOC+XML+ V0//PT. Acesso em 30.05.2010.

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ao entendimento de que a democracia – assim entendido o sistema político que adota o pluralismo político, a independência dos poderes, a liberdade de opinião, imprensa e religião, a alternância de poder e a segurança jurídica –, está cada vez mais distante do cotidiano do povo venezuelano.

10. Democracia Venezuelana e Democracia Hondurenha

Breve cotejo entre as liberdades democráticas na Venezuela e em Honduras não favorece o Estado sul-americano. Assim, Chávez retirou do ar trinta e quatro emissoras de rádio, sem qualquer perspectiva de que voltem a transmitir. Já o Governo interino hondurenho suspendeu duas emis-soras, mas as autorizou a retomar suas atividades, duas semanas depois, enfatizando a importância desse ato para as eleições nacionais que ocorreriam em 29 de novembro de 2009. Quanto ao Gover-no de Porfirio Lobo, não há registro de restrições aos meios de comunicação.

No que tange à oposição política, há cerceamento na Venezuela, inclusive tendo em vista o asilo no Peru de Manuel Rosales, candidato presidencial derrotado por Chávez em 2006. Em Hon-duras todos os partidos políticos continuam atuantes, estando afastado do País o antigo Presidente Zelaya, que está indiciado em vários ilícitos penais relacionados com a determinação, durante o seu mandato, de realizar o referendo que permitiria a reeleição.

O discurso chavista é nitidamente maniqueísta, tendo o mandatário acusado os oposicio-nistas venezuelanos de apátridas, termo com nítida conotação de inimigos da pátria. Em Honduras, cinco partidos políticos concorreram nas eleições de novembro de 2009, inclusive o Partido Liberal, do Presidente deposto, não havendo referência à impugnação de alguma agremiação política.

Considerações finais

Este artigo se ocupou da deposição do então Presidente de Honduras, Manuel Zelaya, em junho de 2009, admitida internacionalmente como golpe de estado. Buscou-se elementos e fatos que possam conduzir a uma análise menos passional do caso, incluindo posicionamento de estudiosos e internacionalistas com opiniões diversas. Após, teceu-se reflexões sobre o atual momento político da Venezuela, com notório viés ditatorial sob o governo de Hugo Chávez. O objetivo foi refletir sobre a admissão do mandatário venezuelano como Chefe de um Governo democrático, enquanto Honduras, do Presidente Porfírio Lobo, é ainda vista como uma Administração golpista.

Zelaya permaneceu mais de quatro meses na Embaixada brasileira em Tegucigalpa, dela se afastando no dia 27 de janeiro de 2010, data que assinala o último dia de seu mandato presidencial. Na ocasião ele recebeu salvo-conduto do Presidente Porfírio Lobo. Restou ao Brasil a nostalgia de ter admitido ver sua representação diplomática, em pequeno e pobre país centro-americano, trans-

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formada em hospedaria para um dirigente afastado do poder por tratativas tendentes à sua continui-dade no cargo, em flagrante acinte à Carta Magna desse país.

Diante da admissão tácita pelo Governo brasileiro das ações de Zelaya, de nítido cunho político e condenação às autoridades de seu país, conclamando os correligionários a partir do inte-rior da legação brasileira, o Governo de Roberto Micheletti levou o caso para a Corte Internacio-nal de Justiça (CIJ), em Haia, em 28 de outubro de 2009 (República de Honduras contra República Federativa do Brasil – disputa relacionada a questões legais sobre relações diplomáticas, associada com o princípio de não intervenção em assuntos que são de natureza essencialmente interna).24 Acusava o Brasil de permitir que Zelaya e seu grupo utilizassem as instalações diplomáticas brasileiras para se evadir da Justiça hondurenha. Em 30 de abril de 2010, o Ministro das Relações Exteriores de Honduras, Mario Miguel Canahuati, informou à Corte, por meio de carta, que o Governo hondurenho não daria continuidade ao processo. O presidente da CIJ ordenou em 12 de maio de 2010 que o caso fosse retirado da Corte.25

Acentue-se que isso ocorreu em momento no qual o Brasil atravessa fase de saudável vivên-cia democrática, intenso progresso, economia em franca expansão e reconhecimento internacional. O envolvimento brasileiro na guarida a Zelaya, em situação tão diversa do paradigma diplomático, sem razões expressivas e por tempo tão dilatado, em nada contribuiu para a Diplomacia brasileira, que goza de merecido respeito há mais de um século graças ao trabalho de Rio Branco, Ruy Barbosa e Epitácio Pessoa, entre outros.

A posse, em 27 de janeiro de 2010, do Presidente Porfirio Lobo Soza – escolhido em pleito sem ilegalidade aparente ou maiores incidentes –, que solucionou a crise no plano interno, permite antever que os demais países darão fim às medidas restritivas contra Honduras. O desfecho da crise pode ser tido como favorável, pois não houve derramamento de sangue e se verifica a pacificação da sociedade nacional hondurenha.

Contudo, o Governo de Honduras ainda não é reconhecido pela maioria dos países. A União das Nações Sul-Americanas (UNASUL), em maio de 2010, ameaçou boicotar a cúpula da União Europeia caso o presidente Porfirio Lobo fosse convidado.26 Esse contexto conduz a questio-namentos que consideramos oportunos e pertinentes:

– Transcorrido o prazo do mandato do presidente Zelaya e eleito seu sucessor, em eleição

24 Press release ICJ nº 2009/30, de 29.10.2009. Site: http://www.icj-cij.org/docket/files/147/15585.pdf. Acesso em 25.05.2010. Ver, ainda, PERDEU o Bigodão. Revista VEJA, edição de 04.11.2009, p. 82.

25 Press Release da ICJ, nº 2010/15, de 19.05.2010. Site: http://www.icj-cij.org/docket/files/147/15937.pdf?PHPSESSID=cf55f59b3909dbd5f02b46f39475a703. Acesso em 25.05.2010.

26 Site: http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2010/05/100504_unasul_honduras_rc.shtml. Acesso em 31.10.2010.

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prevista antes da sua remoção do governo, como pode ser resolvido o impasse para o reconhecimen-to internacional do governo hondurenho?

– Dada a postura internacional majoritariamente contrária ao golpe, o que poderia configu-rar, então, um governo democrático e o retorno da ordem constitucional?

– Caso a sociedade internacional, em sua maior parte, reconheça o novo governo hondure-nho, qual seria o impacto para a postura brasileira?

– A justificativa para o não reconhecimento das eleições (já que foram realizadas pelo gover-no de facto) se conforma com precedentes da política externa brasileira? Nesse viés, convém lembrar que, em 2004, o presidente do Haiti foi removido do governo por tropas estrangeiras e o governo interino solicitou auxílio da ONU, o que resultou na missão liderada pelo Brasil.

O cotejo com a Venezuela de Chávez, que merece enfática simpatia do Presidente Lula, gera interrogações, pois o dirigente andino já ostenta um elenco de medidas divergentes dos padrões tidos como plenamente democráticos. Somos levados a entender que a Venezuela já deixou de ser um Estado democrático, caracterizando-se como uma ditadura.

Outros possíveis motivos para a condenação pelo Brasil ao golpe em Honduras e a aproxi-mação com o governo Chávez, além da afinidade política entre os governantes:

• adoção(pragmática?)deposturasdiferentes(liberal,nocasodeHonduras,erealista,nocaso venezuelano) pelo governo brasileiro; • crescentetendênciaaumamaioratuaçãobrasileiranaAméricaCentraleCaribe(Minus-tah, adesão da Venezuela ao MERCOSUL, acordo Brasil – Estados Unidos para desenvol-vimento de biocombustíveis na América Central e Caribe,27 CALC, CELAC,28 primeira Cúpula Brasil – Caricom, etc.); • adoçãoseletivadoprincípio da não indiferença;• adoçãodeumaposturainternacionalmaisassertiva(oquevaiaoencontrodapostulaçãoa uma vaga permanente no Conselho de Segurança da ONU) pelo Brasil.As lições do caso Zelaya perdurarão com ensinamentos para todos os envolvidos e seus

adeptos em Honduras e no exterior. A condenação do afastamento do então Presidente caribenho, considerando esse ato pura e simplesmente golpe de estado, não encerra a questão. A indicação de que a busca de reeleição em qualquer cenário – incluindo desrespeito às normas constitucionais

27 Site: http://ictsd.org/i/news/12479/. Acesso em 31.05.2010.28 Site: http://www.itamaraty.gov.br/temas/america-do-sul-e-integracao-regional/celac. Acesso em 31.05.2010. A Comuni-

dade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC) foi criada na “Cúpula da Unidade da América Latina e do Caribe”, realizada na Riviera Maya (México), em fevereiro de 2010, em histórica decisão dos Chefes de Estado e de Governo da região. A Cúpula da Unida-de compreendeu a II Cúpula da América Latina e o Caribe sobre Integração e Desenvolvimento – CALC e a XXI Cúpula do Grupo do Rio.

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democráticas – pode conduzir a resultado imprevisto sinaliza alerta para dirigentes que se imaginam superiores a todas as leis em seu país.

Um aspecto interessante é como o caso Honduras evidencia o jogo de interesses nas relações internacionais. Alguns episódios curiosos:

• HondurasreconheceTaiwan,aoinvésdaChinacontinental.OgovernodeTaiwancensu-rou o golpe; porém, reconheceu o governo interino de Micheletti;29

• AChina,quenãotemrelaçõesformaiscomHonduras,nãocondenouogolpe,apenasdemonstrou preocupação sobre a situação e deixou subentendido que poderia estabelecer relações diplomáticas caso o governo hondurenho adotasse o princípio de uma só China;30

• OsEstadosUnidosmudaramsuaposturainicialdevidoàpressãocontrárianoSenado,que forçou o governo Obama a barganhar a mudança em relação a Honduras em troca da nomeação do novo embaixador americano no Brasil;31

• Ogovernode Israel, que foi acusadode tomar parte no golpe, reconheceu o governoMicheletti e apoiou as eleições em novembro.32 Honduras é tradicional comprador de ar-mamentos israelenses, além de empresas israelenses terem investimentos na produção de bananas. Por fim, a comparação proposta conduz a entendimentos diversos. Pode-se afirmar que

a escolha entre um país, com quase trinta milhões de habitantes e um dos maiores produtores de petróleo do planeta, e um Estado com população quatro vezes menor e que tem na banana o seu principal produto de exportação leva à opção pelo primeiro. Mas essa postura estaria adotando o viés puramente econômico, quando os liderados de Chávez fora de seu país exatamente adotam a linguagem de censura aos impérios em favor dos países mais pobres. De nossa parte, a explicação para a ampla receptividade ao Presidente Hugo Chávez e a indiferença ao Presidente Porfírio Lobo está no posicionamento ideológico: os ditadores de esquerda são considerados democratas para os adeptos desse viés ideológico, enquanto os de posicionamento oposto são colocados na condição em que deveriam estar todos os chefes de Estado que colocam a sua vontade acima das leis do país, da moral e do interesse coletivo como um todo, sem privilegiar os segmentos da sociedade que lhe são simpáticos.

29 Site: http://www.etaiwannews.com/etn/news_content.php?id=991380&lang=eng_news&cate_img=logo_taiwan&cate_rss=TAIWAN_eng. Acesso em 31.05.2010.

30 Site: http://news.xinhuanet.com/english/2009-06/30/content_11628385.htm. Acesso em 31.05.2010.31 Site: http://www.estadao.com.br/noticias/nacional,shannon-afirma-querer-parceria-para-seculo-21-com-pais,492590,0.

htm, http://oglobo.globo.com/pais/mat/2010/01/08/thomas-shannon-novo-embaixador-americano-diz-que-quer-aprofundar-parceria-dos -eua-com-brasil-915489238.asp. Acesso em 31.10.2010.

32 Site: http://www.elheraldo.hn/Ediciones/2009/11/28/Noticias/Israel-apoya-las-elecciones-de-Honduras. Acesso em 31.10.2010.

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Artigos

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MARTHA LUCÍA OLIVAR JIMENZES1

MARC ANTONI DEITOS2

CAMILA VICENCI3

A União Européia dos 27 (milhões) e o Conselho da Europa

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Resumo

O artigo verifica as possíveis incompatibilidades que podem surgir entre a nova política imigratória comum da União Européia e o Conselho da Europa, com base no texto da “Diretiva do Retorno”. Em 2008, a aprovação dessa Diretiva constituiu o ápice da política imigratória comum e implica pa-drões mínimos para identificar, deter e expulsar imigrantes indocumentados. Em processo concomitante, mas alocado em outra organização internacional – o Conselho da Europa – abriu-se a possibilidade de submissão do direito comunitário europeu à Convenção Européia dos Direitos do Homem. Esse desenho institucional sugere uma experiência ainda desconhecida nas rela-ções internacionais.

Palavras-chave: União Européia; Conselho da Europa; Imigrantes Indocumentados; Diretiva do Retorno.

Abstract

This articled verifies the potential conflicts that may arise between the new common European Union immigration policy and the Council of Europe, based on the “Directive on Return”. In 2008, the adoption of this Directive represented the culmination of the common immigration policy and requires minimum standards to identify, detain and expel undocumented immigrants. A concomitant process, but allocated in other international or-ganization – the Council of Europe – made possible to submit the European community law to the European Convention of Human Rights. This insti-tutional design suggests an unknown experience in international relations.

Key words: European Union; Council of Europe; Undocumented immigrants; Directive on Return.

“Se essas primeiras linhas não causam verdadeira vertigem ao leitor, é porque, normalmente, confundem-se duas organizações internacionais distintas: a União Européia e o Conselho da Europa”.

1 Doutora em Direito Comunitário pela Université Robert Schuman Strasbourg III. Coordenado-ra do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professora da Faculdade de Direito da UFRGS, e-mail: [email protected]

2 Mestre em Relações Internacionais pela UFRGS. Professor Convidado da Pós-Graduação Lato Sensu “O Novo Direito Internacional” da UFRGS, e-mail: [email protected]

3 Mestre em Direito pela UFRGS. Professor Convidado da Pós-Graduação Lato Sensu “O Novo Direito Internacional” da UFRGS, e-mail: [email protected]

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1 Introdução

Em 1˚ de junho de 2010, inaugurou-se um diálogo institucional nas relações internacionais sem precedentes e que influirá na evolução do direito internacional e dos direitos humanos pelas próximas décadas: a submissão das normas de um processo de integração regional a um sistema regional de proteção dos direitos humanos. Refere-se à vigência do Protocolo No. 14 da Convenção Européia dos Direitos do Homem (CEDH), que concedeu à União Européia a possibilidade de aceder à categoria de sujeito internacional perante o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), o que implica a sujeição do direito comunitário à análise jurídica de uma organização internacional exterior ao bloco regional.4

Se essas primeiras linhas não causam verdadeira vertigem ao leitor, é porque, normalmente, confundem-se duas organizações internacionais distintas: a União Européia e o Conselho da Eu-ropa. Por isso, torna-se imprescindível, antes de ingressar no fulcro deste artigo, delimitar a compe-tência das duas organizações para bem compreender o avanço que o Protocolo No. 14 da CEDH aporta às relações internacionais.

A União Européia constitui a forma atual do processo de integração político-econômica de 27 países da Europa, iniciada, em 1951, com a criação da Comunidade Européia do Carvão e do Aço. O avanço do processo de integração europeu é compartilhado por três instituições básicas: o Conselho da União Européia, a Comissão Européia e o Parlamento Europeu. Além desses três órgãos com poder normativo, o bloco regional dispõe, desde 1953, de um Tribunal de Justiça respon-sável pela guarda da aplicação do direito comunitário nos Estados-membros.

O Conselho da Europa (CE) foi estabelecido, em 1949, para promover os direitos huma-nos e os princípios democráticos no âmbito regional europeu, que se identifica com a criação, nas Américas, da Organização dos Estados Americanos (OEA). Em 1950, o CE aprovou a Convenção Européia dos Direitos do Homem (CEDH) que, dentre as suas instituições, estabeleceu o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) com a responsabilidade de assegurar o respeito aos compromissos da CEDH e de seus Protocolos. Desde então, o TEDH alavanca o mais avançado sistema regional de proteção dos direitos humanos. Atualmente, 47 Estados são membros do CE, inclusive os 27 países da União Européia (UE).

O Protocolo No. 14 da CEDH inova ao submeter, além de cada um dos 27 países da UE, individualmente, à jurisdição do TECH, o próprio direito comunitário e, portanto, a UE como blo-

4 O Artigo 17 do Protocolo No. 14 modifica o Artigo 59 da CEDH, que passa a incluir: “The European Union may accede to this Convention”. Para a completa adesão da UE à CEDH, é, ainda, necessário a ratificação do Acordo pelo bloco regional e o seu depósito junto ao Secretário-Geral do Conselho da Europa.

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co regional. O Protocolo No. 14 é responsável por inaugurar uma dimensão e um diálogo até então desconhecido na história das organizações internacionais - a conexão entre o direito de um bloco regional e de uma organização regional de proteção dos direitos do homem. Para a nítida percepção do avanço aportado pelo Protocolo No. 14, é útil fazer um exercício de transposição para âmbito do continente americano. Nessa perspectiva, corresponderia à submissão de, por exemplo, o direito do MERCOSUL ou do NAFTA à Corte Interamericana de Direitos Humanos, órgão jurídico, no âmbito da OEA, responsável por velar pelo cumprimento da Convenção Interamericana sobre Direitos Humanos.

O objetivo deste artigo é inserir a política imigratória da União Européia - instituída, no final de 2008, pela chamada “Diretiva do Retorno” - nessa nova realidade institucional, ou seja, o artigo verifica a compatibilidade desse ato comunitário, referente à política imigratória, com a CEDH, e sinaliza as violações latentes aos direitos humanos presentes em seu texto. Para tanto, o artigo divide-se em duas partes. Na primeira parte, aborda-se o âmbito de aplicação da política imigratória da União Européia e os indivíduos sobre os quais incide. Na segunda parte, trata-se do direito processual da Diretiva do Retorno, no sentido de identificar as questões mais problemáticas que a acessão da UE à CEDH pode acarretar para a consecução de sua política imigratória. Na conclusão, apontam-se os artigos da CEDH que podem embasar a incompatibilidade da política imigratória européia perante o TEDH.

2 Desenvolvimento

2.1 A Construção de uma política imigratória para a União Européia

Em 23 de dezembro de 2008, foi publicada, no Jornal Oficial da União Européia, a “Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho da União Européia relativa a Normas e Procedimentos comuns nos Estados-membro para o Regresso de Nacionais de Países Terceiros em Situação Irregular” (Diretiva do Retorno). O objetivo basilar da Diretiva é assegurar que a expulsão de um indivíduo, por qualquer Estado-membro do bloco, signifique a expulsão das fronteiras de toda União Européia (UE).

A Diretiva do Retorno constitui o ápice do processo de coordenação das políticas imigra-tórias da União Européia iniciada com a aprovação da Diretiva sobre o reconhecimento mútuo das decisões de expulsão de nacionais de terceiros países (2001/40/EC). Essa Diretiva visava que, nos casos de emissão de uma ordem de expulsão de um indivíduo não-nacional de um país da UE por motivos criminais, de segurança nacional ou de ameaça à segurança pública, essa decisão fosse reconhecida pelos demais Estados do bloco. A Diretiva 2001/40/EC capacitou os países para a cooperação juris-dicional a respeito das decisões de expulsão, contudo não os obrigava a executar a medida, pois, se o

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fizessem, teriam que fundamentá-la no direito nacional de cada Estado-membro, já que o tema não se encontrava regulamentado no direito comunitário.5

A adoção, pelo Conselho da União Européia, de uma proposta da Comissão Européia para um “Programa de Ação de Retorno” constituiu o segundo passo em direção a uma política imigratória comum. A proposta da comissão baseava-se na necessidade de se priorizar e incentivar o retorno voluntário, tendo em vista o menor custo operacional do procedimento em comparação ao retorno forçado. Além disso, visava estabelecer acordos entre a UE e os países emissários de grande número de imigrantes indocumentados, com o objetivo de facilitar sua readmissão nos países de origem e evitar os difíceis procedimentos de retorno forçado.

Apesar do Programa de Ação de Retorno focar o retorno voluntário, na prática, foi aplicado com mais intensidade para efetivar casos de retorno forçado, dentre outros motivos, pela falta de campanhas que incentivassem o retorno voluntário entre as comunidades de imigrantes. O resultado desse Programa se traduziu na aprovação da Diretiva sobre a cooperação no trânsito de imigrantes expulsos (2003/110/EC), notadamente, voltada para os imigrantes sujeitos aos mecanismos de retorno forçado. Para efetivar a Diretiva 2003/110/EC, o Conselho da União Européia emitiu a Decisão 2004/573/EC, com o fim de organizar vôos conjuntos para a remoção de não-nacionais da UE, provenientes de dife-rentes países do bloco, e que foram objeto de ações de remoção individuais (SCHAIN, 2009, p. 105).

O Programa, contudo, guardava grandes impasses, pois, apesar de assentados os critérios de organização dos vôos compartilhados, não existia um fundo comunitário para essas despesas. Os pro-blemas gerados por essa lacuna provocaram uma subutilização do sistema, uma vez que a divisão dos assentos nos vôos, dos custos da operação e da responsabilidade pelo trânsito dos expulsos, dentro das fronteiras da UE, não estavam regulamentados e dependiam de acertos periódicos entre os países do bloco. Para estabelecer esses encargos, o Conselho da União Européia aprovou a Decisão 2004/110/EC, que determinou a compensação dos gastos financeiros resultante do mútuo reconhecimento das decisões de expulsão e da remoção nos vôos conjuntos (CANETTA, 2007, p. 447).

As duas Diretivas da UE (2001/40/EC e 2003/110/EC) e as duas Decisões do Conselho da UE para instrumentalizá-las (2004/110/EC e 2004/573/EC) forjaram a arquitetura da Diretiva do Retorno. Proposta, em 2005, e aprovada, em 2008, em primeira leitura no Parlamento Europeu, ela estabelece um conjunto de normas horizontais aplicáveis aos nacionais de países terceiros que não preencham ou que deixaram de preencher as condições de entrada, permanência ou residência em qualquer Estado-membro da UE.

5 Ocorria que, na grande maioria dos casos, a legislação do Estado, que embasava a ordem de expulsão, não encontrava correspondência na legislação do Estado onde se encontrava a pessoa destinatária da decisão, impedindo a execução da medida.

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2.2 Âmbito de aplicação da Diretiva - Implicações do Código de Fronteiras Schengen

O âmbito geográfico de aplicação da Diretiva do Retorno envolve alguns aspectos particu-lares que requerem precisão. A internalização gradual dos acordos comunitários implica diferentes estágios de integração entre os Estados-membros, além da possibilidade de não-participação em temas específicos, como a unificação das fronteiras.

O Acordo Schengen, assinado em 1985, tinha como objetivo primordial efetivar um dos principais aspectos da integração comunitária: o livre trânsito de pessoas no bloco. Contudo, des-de o início do projeto para uma área fronteiriça comum, o tema mais controverso pautou-se na abolição ou não das fronteiras para os nacionais de Estados não-pertencentes à EU, quando em deslocamento interno no bloco. Por resultado da divergência dos países quanto ao tema, o Acordo Schengen foi, originalmente, concebido fora do âmbito da UE pela França, Alemanha, Holanda, Bélgica e Luxemburgo.

Somente após doze anos, em 1997, o Acordo Schengen foi incorporado ao Tratado de Amsterdã e passou a fazer parte do acervo comunitário, com a possibilidade dos Estados optarem em integrá-lo ou não, além da discricionariedade para internalizá-lo de forma parcial. A admi-nistração do acordo, antes de responsabilidade de um comitê executivo autônomo, passou para a competência da Comissão Européia. Desde 1997, a Comissão tem proposto Diretivas em diversas áreas que tangem à livre circulação de pessoas e que foram aprovadas pelo Parlamento Europeu e pelo Conselho da União Européia. Dentre esses temas, encontram-se as regras comuns para o pedi-do de asilo, a possibilidade da polícia perseguir criminosos além das fronteiras do Estado-membro e a criação de setores especiais de entrada nos aeroportos para passageiros em trânsito dentro das fronteiras Schengen.

Atualmente, o Acordo Schengen engloba 25 países. Em 1997, além dos cinco países ori-ginários, passaram a ser parte: Portugal, Espanha, Itália e Áustria. Em 2000, foi a vez da Grécia e, logo após, em 2001, adentraram Dinamarca, Suécia, Finlândia, Noruega e Islândia. Outros nove países aboliram as fronteiras internas para a livre circulação de pessoas em 2007: República Tcheca, Estônia, Lituânia, Letônia, Malta, Polônia, Eslováquia e Eslovênia. E, em 12 de dezembro de 2008, a Suíça ingressou no Acordo das fronteiras Schengen.

A expansão bastante flexível das fronteiras Schengen criou uma série de situações singulares que, com a aprovação da Diretiva do Retorno, devem ser adaptadas às restrições impostas por cada país ou conforme sua participação ou não na própria UE. A maleabilidade com que os pilares da UE foram aplicados (alargamento e aprofundamento) se refletiu na política de livre circulação de pesso-as, criando três formas distintas de participação dos Estados-membros da UE no Acordo Schengen:

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I. Países parte da União Européia e do Acordo Schengen;II. Países que adotam o Acordo Schengen e não são parte da União Européia;III.Países que, apesar de membros da União Européia, não participam do Acordo Schengen. Essa acomodação ocorre por dois motivos principais. Por um lado, os Estados-membro da

UE podem, no momento de internalizar o Acordo Schengen, escolher não fazer parte de todas suas disposições, ou mesmo, manter sua soberania em relação às fronteiras. Por outro lado, a Comissão da União Européia deve aprovar o Estado que deseja fazer parte do Acordo Schengen, por meio da análise dos requisitos que o tornam apto a integrar as fronteiras comuns. Constitui-se, portanto, num encontro de vontades – da Comissão aprovar o Estado e do Estado desejar fazer parte do Acordo.

Quanto à primeira situação (I), esses Estados devem cumprir com os parâmetros estabeleci-dos na Diretiva, sem restrições. Esse contexto não prejudica os países com garantias mais amplas em relação às asseguradas no acervo comunitário, cabendo adotar exceções, exclusivamente nos casos em que a própria Diretiva as permite, como, por exemplo, proporcionar um defensor público aos imigrantes indocumentados sujeitos ao retorno forçado ou voluntário.

A segunda situação (II) refere-se aos países que, mesmo participando das fronteiras Schen-gen, não são membros da União Européia (Suíça, Noruega e Islândia). A condição especial desses países, contudo, não lhe conferem flexibilidades quanto ao cumprimento da Diretiva em relação aos membros do bloco, pois ratificaram acordos bilaterais que os obrigam aos mesmos termos. Em 1999, em acordo celebrado pela Islândia e Noruega e pelo Conselho da União Européia (Decisão 1999/437/CE), os dois países se comprometeram a aplicar os desenvolvimentos do Acordo Schen-gen aos seus territórios. Da mesma forma, a Suíça obrigou-se com o cumprimento da Diretiva do Retorno pela Decisão 2008/146/CE.

A terceira situação (III), ou seja, países que, apesar de membros da União Européia, não participam do Código de fronteiras Schengen, guarda uma condição bastante particular. Esse grupo de países não pode ser analisado de forma monolítica, uma vez que as razões para não participarem da fronteira comunitária são distintas. Enquanto Inglaterra, Irlanda e Irlanda do Norte optaram por não aderir ao Acordo Schengen e manter a soberania sobre suas fronteiras, Romênia, Bulgária e Chipre não reúnem os requisitos para o cumprimento do Acordo Schengen, segundo o Conselho da UE. A Diretiva do Retorno, portanto, é mitigada pela não-outorga da livre circulação às pessoas que ingressam na UE por esses seis países. Ainda, pelo fato da Romênia e da Bulgária constituir parte da fronteira leste do bloco, a UE serve-se da Hungria, Eslováquia e Eslovênia como Estados-tampão do ingresso de imigrantes indocumentados nas fronteiras comuns.

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2.3 Os sujeitos à expulsão – para quem é a Diretiva?

Além da delimitação geográfica, a Diretiva é dirigida a pessoas que reúnam duas condições específicas: sejam nacionais de países não-parte da UE e que se encontram em situação irregular nesse espaço geográfico. Ou seja, por exclusão, a Diretiva do Retorno não se aplica aos cidadãos da UE, definidos no Artigo 17.1 do Tratado que institui a Comunidade Européia: “É cidadão da União qualquer pessoa que tenha a nacionalidade de um Estado-Membro.” A Diretiva também não se aplica àqueles “beneficiários do direito comunitário à livre circulação” definidos, no Artigo 5˚ do Código de Fronteiras Schengen, como “os nacionais de países terceiros membros da família de um cidadão da União” e, ainda, aos “nacionais de países terceiros e membros de suas famílias, indepen-dentemente da sua nacionalidade que, por força de acordos celebrados entre a Comunidade e os seus Estados-membro (...) se beneficiem de direitos em matéria de livre circulação equivalentes aos dos cidadãos da União.”

Para o enquadramento fático na Diretiva do Retorno, além de suprir a condição de não-nacional da UE e nem se subsumir nas condições especiais elencadas, é necessário estar em situação irregular. A “regularidade” da entrada de nacionais de estados terceiros está definida no Artigo 5˚ do Código de Fronteiras Schengen e se resume, basicamente, a três obrigações:

• possedeumdocumentoválidoquepermitaapassagemnafronteira(passaporteououtroequivalente, como no caso dos apátridas). • terumvistodeentradaválidoparaospaísesquenãotemacordodesupressãododocu-mento com o bloco. • fazerprovadosmeiosdesubsistênciareferenteaoperíododeestadianaUE,assimcomo,possuir meios suficientes para deixar o bloco.Se, por um lado, os requisitos para a entrada regular aparentam não se constituir em meca-

nismo intrincado e laborioso, por outro lado, a verificação da documentação pelas autoridades ad-ministrativas de fronteiras torna o processo bastante arbitrário. O exame dos meios de subsistência, por exemplo, é discricionário e depende dos preços médios calculados para os gastos diários nos diferentes países da EU.

O aspecto mais preocupante, contudo, da caracterização da irregularidade do não-nacional da UE é a ampla margem de apreciação aberta pelo Artigo 6.6 da Diretiva: “A presente diretiva não obsta que os Estados-membro tomem decisões de cessação da permanência regular (…) por decisão ou ato administrativo ou judicial previsto no respectivo direito interno (…)”. Ou seja, mesmo que o imigrante esteja ciente das condições de entrada e regularidade previstas no direito comunitário, de-cisões administrativas internas, as quais são particulares e difíceis de conhecer, podem tatuá-lo com a

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irregularidade e sujeitá-lo ao retorno forçado ou voluntário, ou ainda, à detenção com o fim de afas-tamento, sem que adequadas garantias processuais estejam disponíveis (ver item 2.2 deste artigo).

2.4 Aspectos processuais da Diretiva e as violações a CEDH

A Diretiva do Retorno caracteriza-se por uma flexibilidade preocupante no que tange aos métodos de expulsão, a arbitrariedade das decisões e, principalmente, as amplas possibilidades de abandono das garantias processuais mínimas asseguradas ao ser humano. Temas tão sensíveis como os largos períodos de detenção para providenciar o afastamento, a oferta de um defensor público, o aprisionamento de crianças e famílias, além da faculdade para fundamentar e motivar as deci-sões podem causar constrangimentos insuperáveis àqueles a mercê do Estado e de suas decisões unilaterais.

Nesta parte do artigo, se abordará o método de aplicação da Diretiva, a discricionariedade das autoridades competentes e as diferentes fases do retorno voluntário e forçado, como foco da análise voltado para os dispositivos mais sensíveis a violações sistemáticas dos direitos humanos. Para tanto, a abordagem se organiza em três momentos: a decisão de regresso (2.1), a proibição de entrada (2.2) e, por último, a decisão de afastamento (2.3).

2.4.1 Decisão de regresso

O primeiro ato do processo de retorno do imigrante indocumentado é a decisão de regresso, que declara sua situação irregular e sua obrigação de deixar as fronteiras do bloco. Essa decisão pode ser um ato administrativo dos policiais de fronteira ou de qualquer órgão (público ou privado) encarregado pelo Estado do controle de imigrantes. No Reino Unido, o serviço foi terceirizado para o setor privado.

A decisão de regresso pode dispor um prazo para a partida voluntária do imigrante entre sete e trinta dias, que pode ser dilatado ou suprimido, conforme decisão embasada no direito interno dos Estados. Os casos de procrastinação do prazo incluem a existência de filhos que freqüentam a escola, de outros membros familiares, assim como laços sociais. O prazo pode ser suprimido nos casos em que houver risco de fuga, ou se o imigrante constituir um risco para a ordem pública ou para a segurança nacional. Se, por um lado, para ter o prazo estendido o imigrante deve apresentar e fazer prova, por exemplo, da matrícula e freqüência de seus filhos à escola, por outro lado, a amplitude dos conceitos de segurança nacional ou de ordem pública, como se verificará ao longo deste artigo, deixa o imigrante impossibilitado de defesa. Não se deve subestimar a hipótese do simples fato de “ser imi-grante” ou “estar irregular” ser definido, no direito interno, como caso de risco à segurança nacional.

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A decisão de regresso pode subtrair qualquer possibilidade de defesa quando o imigrante é classificado como de risco à segurança nacional ou à ordem pública. Em primeiro lugar, as deci-sões, nesses casos, não precisam ser fundamentadas, portanto, o imigrante não saberá a razão que o torna uma ameaça ao Estado. Em segundo lugar, cabe a cada país definir, na sua legislação nacional, quando a assistência jurídica deve ser considerada necessária. Ou seja, no caso do imigrante não ter recursos financeiros e a assistência jurídica não for classificada como necessária, a pessoa será usur-pada de qualquer possibilidade de defesa, além de estar diante de uma decisão despida dos motivos de fato e de direito que a motivaram.

Dois outros aspectos da decisão de regresso merecem temperamentos importantes: o direito do imigrante ser informado da decisão e a partir de que momento flui o prazo para a partida volun-tária. A diretiva estabelece que os Estados podem determinar, no respectivo direito interno, que o prazo para o regresso voluntário só será concedido mediante requerimento do imigrante, portanto o Estado tem o dever de informar sobre possibilidade de apresentar tal pedido. São preocupantes os casos em que o imigrante, mesmo informado da possibilidade de requerer o prazo para a partida voluntária, não dispõe dos meios e do conhecimento para fazê-lo, uma vez que não há obrigação de implementar a assistência judiciária aos imigrantes durante os três primeiros anos de vigência da Diretiva.

Em documento preparado pelo Departamento de Direito Internacional da Organização dos Estados Americanos, ressalta-se a ausência de previsão quanto ao direito do imigrante ser infor-mado da emissão de sua ordem de retorno e, portanto, não ter ciência do início da fruição do prazo para o regresso voluntário (OEA, 2008). Exige-se, tão somente, que a decisão de regresso, caso não compreendida nas situações de exceção, seja emitida por escrito e contenha as razões de fato e de direito que as fundamentam, além das vias de recurso disponíveis.

Diante dessa previsão, pode-se supor a seguinte conjectura: uma vez que o sistema eletrô-nico das fronteiras Schengen já se encontra integrado e informatizado, qualquer indivíduo tem sua data de ingresso na UE registrada. Se, ao término do prazo concedido para permanência regular, não conste, no sistema, o abandono das fronteiras Schengen e nem qualquer outro documento que possibilite a estada prolongada, o indivíduo, presumidamente, se encontra em “situação irregular”, e como não há obrigação de informá-lo acerca da decisão de regresso, essa pode ser emitida sem seu conhecimento.

Essa hipótese conduz à reflexão acerca do prazo inicial para a concessão do retorno volun-tário: seria desde a comunicação ao sujeito da decisão de regresso; ou da expedição da decisão de regresso pela autoridade responsável? Caso se interprete a Diretiva no sentido da desnecessidade de

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comunicação, o estrangeiro pode ser surpreendido sem qualquer prazo para o retorno voluntário, e, por conseguinte, ser encaminhado, imediatamente, à detenção para preparar seu afastamento.

A limitação da língua é outra dificuldade que se impinge à defesa dos imigrantes indo-cumentados e lhes dificulta o acesso à via recursal. A decisão de regresso não, necessariamente, precisa ser traduzida para uma língua acessível ao estrangeiro. A tradução só será fornecida quando, devidamente, requerida, e o Estado não está obrigado a informar o imigrante da possibilidade de solicitá-la. Além disso, caso o estrangeiro requeira informações em sua língua, a Diretiva permite uma tradução dos principais elementos numa língua que se possa, razoavelmente, presumir que o imigrante compreenda.

2.4.2 Proibição de entrada

Na decisão de regresso, a vida do imigrante pode ser assinalada com uma pena por meio de uma proibição de entrada. As proibições de entrada serão sempre emitidas em dois casos: (1) quando não foi concedido ao imigrante qualquer prazo para a partida voluntária; e (2) quando a obrigação de retorno voluntária não tenha sido cumprida. Nos demais casos, as autoridades locais, por decisão ou ato administrativo ou judicial, podem anexar à decisão de regresso a proibição de entrada. Por exemplo, concedido o prazo para o retorno voluntário e, sendo tal adimplido pelo imigrante, não se lhe garante o direito de não sofrer o castigo da proibição de entrada. A Diretiva, portanto, forjada no temor do aprisionamento, não disponibiliza ao imigrante nenhuma condição que, se suprida, lhe isentará de uma pena. A única previsão da Diretiva que permite certa maleabilidade na aplicação da proibição de entrada incita a ponderação sobre a revogação ou a suspensão da pena, caso o estrangeiro deixar o Estado-membro em plena conformidade com a decisão de regresso.

Para determinar o período de vigência da proibição de entrada, as autoridades devem consi-derar todas as circunstâncias do caso concreto e, em princípio, não exceder a cinco anos. A Diretiva, contudo, não elucida quais circunstâncias reduzem ou agravam o período da proibição de entrada, deixando-as para apreciação do direito interno dos Estados, o que, de fato, pode acarretar situações intensamente arbitrárias. Outro aspecto preocupante é a ausência de previsão de prazo máximo, nos casos em que o estrangeiro constitua uma ameaça grave para a ordem pública, a segurança pública ou a segurança nacional. A Diretiva se restringe a afirmar que a proibição de entrada pode ser superior a cinco anos. Diante dessa perspectiva pergunta-se: poderia uma pessoa que, por sua simples condi-ção de imigrante indocumentado, receber a pena vitalícia de proibição de ingresso no território da UE? Parece que sim, desde que sua condição imigrante seja interpretada como uma ameaça à ordem ou a segurança pública, possibilidade que não é descartada pela Diretiva.

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2.4.3 Decisão de afastamento

O ato ainda mais preocupante, para a efetividade dos direitos humanos na Europa, constitui a decisão de afastamento ou ordem de expulsão. Essa fase do processo de retorno é a execução da decisão de regresso, quando não foi concedido prazo para o retorno voluntário, ou quando o prazo expirou e o nacional de Estado terceiro não deixou as fronteiras em tempo hábil. Nessa fase, para preparar o retorno do estrangeiro, a Diretiva autoriza sua detenção por um prazo de até um ano e seis meses.

A detenção de nacional de país terceiro é autorizada quando houver risco de fuga (1) ou quando o estrangeiro evitar ou entravar a preparação do regresso ou o procedimento de afastamento (2). Esses dois conceitos são flexíveis o suficiente para incluir, sem dificuldades, grande parte dos imigrantes. Um amplo espectro de comportamentos pode levar a subsunção do imigrante ao con-ceito de risco de fuga. A grande maioria dos imigrantes são homens, com famílias em seus países de origem, que não criam laços duradouros nas fronteiras européias e, portanto, podem se locomover mais facilmente entre os Estados (EUROPEAN MIGRATION NETWORK, 2007, p.4). Esses imigrantes, pela alta probabilidade de ultrapassar as fronteiras, quando emitida a decisão de regresso, podem ser incluídos no conceito de risco de fuga, que será objeto de deliberação nacional.

A falta de cooperação com as autoridades administrativas e judiciais responsáveis pela exe-cução do afastamento - segunda hipótese de detenção dos imigrantes indocumentados - é, igual-mente, ampla e inclui grande parte dos nacionais de país terceiro. Segundo o estudo da European Migration Network, realizado no ano prévio a aprovação da Diretiva do Retorno, e durante os de-bates para a consolidação do texto, as principais razões que dificultam a execução do regresso são:

• faltadedocumentosdeidentificação;• capacidadeadministrativainadequada;• faltadecooperaçãodospaísesderetornoouresistênciaemprovidenciarosdocumentosde viagem necessários (EUROPEAN MIGRATION NETWORK, 2007, p.5);É notório que as razões apontadas pelo estudo transformaram-se num dispositivo legal

que prolonga o prazo da detenção dos imigrantes. Ou seja, o Parlamento Europeu, o Conselho da União Européia e a Comissão, que financiou o estudo, conheciam os principais impedimentos que levavam ao insucesso do retorno forçado. Diante dessa perspectiva, o Parlamento Europeu aprovou a possibilidade da privação de liberdade do imigrante por até 18 meses nos casos de:

• faltadecooperaçãodonacionaldepaísterceiro;ou• atrasosnaobtençãodadocumentaçãonecessáriajuntodepaísesterceiros;Essa segunda hipótese é, por sem dúvida, mais anacrônica e que pode causar amplas viola-

ções aos direitos humanos, uma vez que o imigrante, por não ter a cooperação de seu país de origem

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na obtenção de documentos necessários, pode ficar detido por tão longo prazo. A autorização para o aprisionamento de um imigrante não criminoso, sobre o qual não pende uma condenação judicial, por motivos que se referem à ausência de provisão do órgão estatal responsável pelos documentos ou pela burocracia e procrastinação da prestação efetiva de informações, infringe sistematicamente a CEDH e os princípios democráticos na Europa. Penaliza-se a pessoa pelo simples fato de Ser/Estar em determinado momento de sua existência na condição de imigrante.

A Diretiva prevê que os imigrantes devem ser detidos em centros especializados e que, salvo em condições de emergência, devem ser mantidos separados dos presos comuns. A Diretiva não exclui a possibilidade de detenção de famílias, crianças, deficientes ou idosos, sendo-lhes garantidos alguns direitos básicos, contudo, derrogáveis nos casos em que o grande número de detentos impos-sibilite o funcionamento razoável do sistema prisional.

Um ponto relevante da Diretiva diz respeito ao deslocamento de imigrantes para prisões comuns, caso ocorra a superlotação dos centros de detenção especializados e, desde que, os man-tenham em local apartado dos presos comuns. Essa garantia, contudo, pode ser derrogada, se o número excessivo de imigrantes sobrecarregar o sistema, ou seja, os imigrantes serão aprisionados junto aos presos comuns. Além disso, a garantia de um local que proporcione certa privacidade às famílias aprisionadas fica igualmente revogada no caso de superlotação. Essa previsão pode levar ao convívio de crianças, filhos de imigrantes em situação irregular, com criminosos em penitenciárias. Dessa perspectiva duas soluções são possíveis: a apenas mencionada (1) ou a separação da criança dos progenitores (2) e seu internamento em centro específico para menores. Parece que nenhuma das duas consegue suprir o conceito de “respeito pela vida privada e familiar” adotado no Artigo 8˚ da CEDH (PHUONG, 2007, p. 112).

A capacidade total conhecida dos centros de detenção para imigrantes (cerca de 60%, pois não se tem acesso a 40% deles) é de 32 mil postos. Dessa perspectiva e diante de uma realidade de 27 milhões de imigrantes, uma situação dramática se alinha, caso as políticas nacionais adotem as decisões de afastamento como praxe de suas política imigratórias. Nesse sentido, as condições dos centros de detenção de imigrantes e o acesso de organizações não-governamentais, órgãos nacionais ou internacionais para inspecioná-los tornou-se foco de debate. O Conselho Econômico e Social do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos tem produzido relatórios individuais para cada Estado-membro acerca das condições das prisões em que os imigrantes se encontram. Chama atenção o relatório sobre as condições dos campos fechados no sul da Itália, particularmente, na Ilha de Lampedusa. Neste local, onde se encontram o maior número de imi-grantes indocumentados detidos na Itália, há uma superlotação de 30% sobre o número máximo

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de imigrantes que a prisão comporta. Em Lampedusa, a relatora da ONU não pode realizar seu trabalho quando percebeu que todos os presos haviam sido removidos, um dia antes, para uma ilha vizinha de forma a impedir sua inspeção (UNITED NATIONS, COMISSION ON HUMAN RIGHTS, 2004, p. 14).

O aspecto do controle dos campos de imigrantes é bastante delicado. Os Estados não estão obrigados a receber inspetores internacionais ou civis de organizações não-governamentais nesses locais. Qualquer atividade deve ser autorizada pelo Estado, que detém controle sobre a visita, po-dendo limitá-la a algumas áreas ou mesmo intimidar os imigrantes a não prestar informações aos relatores.

3 Considerações finais

Ao longo deste artigo, por meio da abordagem da aplicação e do processo da Diretiva do Retor-no, identificou-se uma série de violações latentes aos direitos humanos decorrentes da aplicação desse ato comunitário. O direito da UE, até então, incólume ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, que analisava, exclusivamente, o direito nacional ou doméstico, passa a se sujeitar à observância da CEDH, a partir da conclusão do processo de acessão do bloco regional, possibilitado pelo Protocolo No. 14.

Pela previsão, na CEDH, do direito a um processo equitativo (Artigo 6˚) e a um recurso efetivo (Art. 13), da proibição de discriminação quanto à origem nacional ou social (Art. 14), da proibição da expulsão coletiva de estrangeiros (Art. 4˚, do Protocolo No. 4) e das garantias processuais em caso de expulsão de estrangeiros (Art. 1˚, do Protocolo No. 7), infere-se a incompatibilidade entre a política imigratória européia, assentada na Diretiva do Retorno, e a CEDH. A contar que, historicamente, assim que um novo sujeito de direito internacional acedeu ao Tribunal, assistiu-se a uma enxurrada de ações em busca da efetividade dos direitos humanos,6 nos próximos meses, muito provavelmente, presenciar-se-á a sujeição do direito comunitário aos direitos humanos e o esforço da União Européia em moldar-se a esse novo diálogo institucional no continente. Sem dúvida, assim como, na última me-tade do século passado, a CEDH constituiu o corpo regional de proteção dos direitos humanos mais avançado juridicamente, ela prossegue sua trajetória vanguardista ao inserir um novo sujeito de direito internacional sob a égide do TEDH.

6 No mesmo dia 1˚ de novembro de 1998, quando entrou em vigor o Protocolo No. 11 da CEDH, que incluiu o indivíduo como sujeito de direito internacional perante o TEDH, e representou um dos grandes avanços do direito internacional no século passado, muitos particulares ingressaram com pedidos diretamente no Tribunal.

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Referências

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MÁRCIO ADRIANO DE LIMA RODRIGUES1

Para além das fronteiras políticas: os fluxos da atividade comercial na província do Rio Grande de São Pedro no século XIX

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Resumo

O presente artigo tem como objetivo analisar e descrever os fluxos do comércio na Província do Rio Grande de São Pedro, ao longo do século XIX, apresentando as características do mercado de gêneros de subsistência e dos mercados locais em áreas limítrofes, identificando a capacidade dos grupos humanos em desenvolver formas de vida sem a interferência do Estado.

Palavras-chave: fluxos, comércio, século XIX.

Abstract

This article aims to analyze and describe the flows of trade in the province of Rio Grande de San Pedro, throughout the nineteenth century, with the market characteristics of genres from subsistence and local markets in neighboring areas, identifying the ability of groups human life forms to develop without interference from the state.

Key-words: flows, trade, nineteenth century.

1 Introdução

1.1 A realidade vivida pelos homensa no século XVIII: o homem e

a máquina no cenário europeu e seus reflexos nos movimentos

de comércio nas colônias do novo mundo

Ao longo do século XIX, o direito dos Tratados2 permitiu identificar particularidades concernentes a regiões específicas, onde predominaram du-rante anos fortes substratos costumeiros, representando a busca dos homens por meios de subsistência, chegando a negar por vezes a jurisdição dos Esta-dos, a partir de suas Instituições.

Nesses territórios limítrofes, as regras escritas e formais, não tinham capacidade de coação, por exercerem as práticas de quebra de monopólios e de normas legais, importância primordial na constituição das formas de vida dos

1 Graduação em História pelo Centro Universitário Franciscano e Graduando no Curso de Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Maria. UFSM. [email protected]

2 OLIVEIRA, Odete Maria de. Relações Internacionais: estudos de introdução. 2. ed. Curi-tiba: Juruá, 2002.

“(...) as regras escritas e formais, não tinham capacidade de coação, por exercerem as práticas de quebra de monopólios e de normas legais, importância primordial na constituição das formas de vida dos sujeitos históricos”.

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sujeitos históricos, margeando as relações econômicas, culturais, sociais e políticas nesses espaços. Santos apud Maheirie (1994)3 vê no espaço de fronteira a permanência de intercâmbios

culturais e em alguns momentos, econômicos e sociais, num eterno processo de criação e recria-ção. Nota-se que nesse espaço de integração cultural, as maneiras de viver, lutar, e adquirir víveres possibilitam a interação entre valores, práticas e experiências particulares que passam a moldar os comportamentos dos homens.

Segundo autores como Cardoso; Vainfas (1983), em História Econômica da América Latina, “os processos econômicos e conseqüentemente sociais, ideológicos e políticos que se manifestaram em território americano, seriam um legado da dominação colonial”.4

Desse modo, pode-se destacar a complementaridade nas relações que já se delineavam desde o cenário de uma Europa em plena industrialização, e as terras de além-mar, que surgiriam como mercados consumidores de grande importância para as crescentes ofertas de bens e produtos, tendo nos portos e no grande comércio marítimo, importantes elementos para a ramificação e ampliação dos mercados.

Assim, a análise desses grandes aglomerados humanos na região de fronteira, favoreceu o desenvolvimento de novas formas de abordagem, principalmente no que se refere ao estudo de uma duração mais longa, caracterizada pela dimensão social e econômica no processo de formação e evolução das comunidades, identificando formas particularizadas de atividades econômicas, como o comércio, tratado especificamente em nível local e regional.

Nesse tipo de prática historiográfica, fruto do movimento dos Annales,5 exerce forte influ-ência a análise interna das estruturas, objetivando identificar as dinâmicas que podem se manifestar no interior de cada estrato social, descrevendo ramificações e características específicas, alianças e conflitos, que identificariam os componentes de um determinado espaço, assim como a natureza de suas relações, em se tratando das diversas articulações que comandam o comportamento dos indivíduos.

Dosse apud Cardoso (1997), 6 é um dos autores que destacam a importância de se estabe-lecer a decomposição da história em fragmentos, que unidos permitirão a análise da totalidade que caracteriza o real. Assim, faz-se necessária a formulação de uma visão macro-historiográfica acerca do século XIX e as condições que favoreceram a descrição de uma série de transformações sociais e econômicas, tendo a Europa como centro irradiador de novas tecnologias e mentalidades, que viriam

3 MAHEIRIE, Kátia. Ageonor no mundo: um estudo psicossocial da identidade. Florianópolis: Letras Contemporâneas, 1994.4 CARDOSO, Ciro Flamarion S. VAINFAS, Ronaldo. História Econômica da América Latina. Rio de Janeiro: Graal. 1983.5 CARDOSO, Ciro Flamarion S. Domínios da História: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro, RJ: Campus, 1997.6 CARDOSO, Ciro Flamarion S. Domínios da História: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro, RJ: Campus, 1997.

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a se perpetuarem nas terras do Novo Mundo. Segundo Rioux (1975),7 em A Revolução Industrial (1780-1880), um grande número de

países sofreu mudanças significativas, nas últimas décadas do século XVII e ao longo do século XVIII, envolvendo movimentos internos de populações na Europa, no sentido campo-cidade, onde o artesanato e as técnicas manuais de produção foram substituídos parcialmente, surgindo novos ofícios e atividades como a maquinofatura e o comércio.

Para Cardoso; Brignoli (1983),8 nas sociedades pré-industriais, a agricultura desenrola-se como a principal atividade econômica, fornecendo os ritmos crescentes de produção que constitui-riam as bases dos demais setores da produção como a manufatura e o artesanato, assim como do próprio comércio, no século XVII, incidindo, assim, sobre temas da vida cotidiana como: a alta dos preços, a fome, as crises demográficas e de mão-de-obra.

Assim, para os autores:

A demografia de “antigo regime” caracteriza-se por um crescimento lentís-

simo da população, e em certos períodos – como o século XVII em muitas

regiões européias – por um decréscimo absoluto. Já analisamos a conexão:

crise agrícola, escassez (ainda quando os cereais fossem abundantes em ou-

tras regiões, a precariedade dos transportes e os óbices à livre circulação das

mercadorias em muito limitavam a possibilidade do abastecimento de grãos

em quantidade suficiente para evitar a carestia), alta de preços, fome, crise

demográfica (alta súbita da mortalidade, queda da fecundidade). Em alguns

casos, as epidemias aparecem como um fator relativamente “exógeno” e

ocasionam grandes mortandades (CARDOSO; BRIGNOLI, 1983, p. 31).

Quanto aos meios de transporte, as novas tecnologias permitiram que as vias fluviais per-manecessem as mais utilizadas por serem mais seguras e suportarem uma maior tonelagem, prin-cipalmente, o setor do grande comércio marítimo com as colônias americanas. A população cresce à medida que a produção agrícola já favorece uma melhor resistência às doenças e às epidemias na Europa Ocidental.

As evoluções na atividade agrícola concederam uma ampliação na quantidade de alimen-

7 RIOUX, Jean Pierre. A Revolução Industrial 1780-1880. São Paulo, SP: Pioneira, 1975.8 CARDOSO, Ciro Flamarion S., BRIGNOLI, Héctor Perez. História econômica da América latina: sistemas agrários e

história colonial, economias de exportação e desenvolvimento capitalista. Rio de Janeiro: Graal, 1984.

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tos, orientados para as novas populações que passam a emigrar para os grandes centros urbanos e industriais, gerando, ao mesmo tempo, excedentes em capitais para a aplicação em setores como o comércio, encontrando nas economias coloniais baseadas no mercantilismo “ares” favoráveis aos mo-vimentos de expansão sem a onerosidade dos entraves de impostos e taxas, que já se faziam presentes entre as nações mais desenvolvidas da Europa (HOBSBAWN, 1991).9

Para Rioux (1975), esta nova realidade fundamenta um processo, onde hierarquias se im-plantam entre regiões, homens e entre as atividades, impetrando uma série de relações e mentalida-des cada vez mais racionalizadas, objetivando o lucro e a extração da maior quantidade possível de excedentes comercializáveis.

As conseqüências da introdução das ferrovias se sobrepõem a tal ponto, que já conectam vastas regiões, diminuindo as superfícies e a distância entre os homens e as mercadorias, na mesma proporção que gera desigualdades e supremacia de uma região sobre as demais (RIOUX, 1975).

De 1770 a 1800, a Revolução Industrial se inflama. Estimulados pela for-

ça do mercado interno, onde toda uma classe média aspira ao consumo e,

sobretudo, pela amplitude do mercado externo conquistado pelo comércio

colonial durante o decorrer do século, os empresários, para baixar nos custos

de produção, evitar pagar altos salários e compensar a fraqueza inicial da

mão-de-obra, renunciam ao desenvolvimento de suas fábricas, baseadas na

madeira e na água, e se inclinam para as técnicas novas: mecanização do tra-

balho, concentração em fábricas das massas de trabalhadores, concentração

de zonas industriais em torno do carvão (RIOUX, 1975, p. 85).

Segundo Hobsbawn (1991), nas últimas décadas do século XVIII e princípios do XIX, os novos grupos ligados à indústria aspiram novas fontes de lucro, baseando-se na introdução de novas técnicas, como o navio a vapor e o motor a combustão, que expandiriam por si só os mercados e diminuiriam a quantidade de mão-de-obra demandada.

A Revolução Industrial concede aos países da Europa Ocidental os monopólios de expor-tação que fundamentam os desejos de lucro das camadas de burgueses, envolvidos com as eco-nomias de agroexportação da América Latina. Destaca-se uma divisão internacional do trabalho entre fornecedores de matérias-primas e de outro lado produtores de manufaturados, os países da

9 HOBSBAWN, Eric J. A era das Revoluções: Europa 1789-1848. Rio de Janeiro, RJ: Paz e Terra, 1991.

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Europa, carentes de mercado consumidor para seus tecidos, vinhos, e gêneros de uma indústria já consolidada.

Assim a produção primária passa a ceder lugar para novas formas de produção baseadas no comércio e na industrialização como roda mestra para o desenvolvimento das economias do velho continente, personificando-se o avanço tecnológico sobre as regiões recém conquistadas.

1.2 Movimentos do comércio platino: economias independentes ou subsidiárias?

Na América luso-espanhola, para Colvero (2004), a presença de estrangeiros nesses mercados ao longo do Uruguai e na Bacia do Prata já se apresentava, desde longa data, desde o século XVII. A instalação da Colônia do Sacramento, marca a presença de um intenso comércio de manufaturas, nos povoados da chamada região da Campanha.

Os povoados das regiões limítrofes ao Prata e ao rio Uruguai apresentavam-se como cidades próprias para o desenvolvimento de relações comerciais, face aos movimentos e realidades de uma zona de fronteira aberta, que facilitava o ir e vir dos comerciantes, dispostos a comercializar erva-mate com as áreas sob a influência dos portos de Buenos Aires e Montevidéu.

A obra desse autor revela uma descrição das nações que compunham relativo comércio, exer-cendo o domínio e monopólio que certos setores detinham na comercialização de gêneros nas locali-dades limítrofes. Segundo o relato das fontes os ibéricos, segundo Colvero (2004), exerciam atividades ligadas às bebidas e gêneros alimentícios, assim como os franceses que atuavam com produtos de alto nível como: jóias, vinhos, licores, além de algodão, e finalmente os têxteis de lã de posse dos ingleses, caracterizados pela baixa lucratividade, formavam tal comércio.

Nesse artigo, em termos mais específicos e particularizados, identificou-se uma atividade exerci-da na Paróquia de São Patrício de Itaqui, baseada na atividade mercantil, surgindo através das fontes de caráter judicial e administrativo, dos Inventários Post-Mortem e as Ações Ordinárias (Cível e Crime).

Logo se destaca uma realidade que personifica a interligação entre diversos mercados, fru-to dos avanços das tecnologias de transportes e a ampliação da ação de grupos sediados nos portos, associando-se aos constantes afluxos de comerciantes estrangeiros nos novos mercados assolados pelo ideário capitalista e mercantil.

Os Inventários arrolaram uma ampla descrição da rede comercial da sociedade, buscando narrar as atividades exercidas pelos proprietários das casas comerciais, a forma de vida, bem como o cabedal de suas fortunas, a partir dos relatos acerca de estoques, e o envolvimento com uma ampla ou limitada rede de devedores ou credores que se manifestaram a partir de suas dívidas ativas e passivas.

A Mesa de Rendas de Itaqui, através das Listas de Alfândega, é o fundo documental de im-

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portância primordial para a determinação dos fluxos do comércio da região de fronteira oeste, ao longo da segunda metade dos oitocentos. A partir dos quadros estatísticos identificaram-se os produtos que participam dos mapas de exportação, envolvendo a erva-mate (produto característico da região), além de outros produtos como o fumo, o açúcar e demais gêneros primários,10 que tinham no porto sua forma de ampliar a capacidade de acumulação dos comerciantes, baseados em formas de acumulações endógenas, via atividade mercantil.

Identifica-se que ao longo dos povoados dessa fronteira, na Paróquia de São Patrício de Itaqui e nas povoações de São Borja e Uruguaiana, desenvolvia - se um ativo movimento de comércio através dos testemunhos dos agentes responsáveis pela sua fiscalização,11 utilizando-se do rio Uruguai, identificado pela Thesouraria12 da Fazenda Provincial, como importante rota do comércio fluvial.

Todas as localidades, citadas segundo fontes primárias, respondiam à Alfândega de São Borja, que pelo fato de grande movimento portuário, registraram-se nos autos pedidos dos funcionários da Alfândega de São Borja, para a criação de novos portos de arrecadação na região, devido principalmente à dificuldade de fiscalização,13 em áreas tão vastas.

Sendo assim, os rendimentos do Itaqui, segundo a resolução de 22 de junho de 1836, passaram a ser coletados pela Renda do Itaqui, com a função de administrar a importação, exportação, entrada de dízimos, receitas, despezas e capatasias sobre a atividade de navegação do rio Uruguai, um dos pontos de grande fluxo de comércio, rendendo a Itaqui, em meados dos oitocentos, o título de maior exportador de erva-mate da fronteira oeste da província.14

Salienta-se nesse comércio um intenso movimento de gêneros onde se discerniam produtos de base primária, orientados para a região do Prata, na sua maior parte, salientando-se a Argentina,15 como maior parceira do comércio da região de fronteira, principalmente da localidade de Itaqui.16

Assim, a partir de meados dos oitocentos, já se discerniam grandes rotas de comercialização ligando as posses do Império aos mercados ao longo do Rio Uruguai, compreendendo chalupas, lan-chões, vapores, com destino ao Salto, no Uruguai, à Federação (Argentina), 17 identificando levas de mercadorias de origem lícita e ilícita,18 e monopólios de produção e consumo.

10 Mesa de Rendas de Itaqui. Listas de Alfândega. 2º semestre do biênio 1857-185811 Mesa de Rendas de Itaqui. Listas de Alfândega. Doc. Nº: 18. São Borja, 17/04/1844. AHERGS. Porto Alegre.12 O termo foi registrado segundo a ortografia que consta nas fontes primárias. Mesa de Rendas de Itaqui. Listas de Alfân-

dega. Doc. Nº: 18. data: 17/04/1844. AHERGS. Porto Alegre.13 Mesa de Rendas de Itaqui. Listas de Alfândega. Doc. Nº: 18. data: 17/04/1844. AHERGS. Porto Alegre.14 Mesa de Rendas de Itaqui. Listas de Alfândega. Doc. Nº: 289. AHERGS. Porto Alegre.15 Denominada pelas fontes primárias como Federação.16 Paróquia de São Patrício de Itaqui.17 Mesa de Rendas de Itaqui. Listas de Alfândega. Relação dos passes da Presidência expedidos pela Mesa de Rendas de

Itaqui no mês de maio de 1861.18 RODRIGUES, M. A. O Comércio na Paróquia de São Patrício de Itaqui, nas décadas de 60 e 70, do século XIX.

Trabalho final de Graduação. 2006. p. 18-19.

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2 Desenvolvimento

2.1 Relação dos passes da Presidência expedidos pela Meza de Rendas Gerais de

Itaqui durante o mez de março de 1861.

As Fontes de caráter jurídico, através dos Inventários Post-Mortem, contribuíram para a descrição mais pormenorizada dos agentes que desempenhavam o comércio nos limites internos da Paróquia, ou seja, os homens que permitiam o desenvolvimento de um ativo comércio de gêneros de consumo local, exportados para várias regiões do Prata, e manufaturados que acharam na população dessa localidade um mercado consumidor capaz de absorver uma produção proveniente dos mais diversos mercados, Constituição, Federação, Salto, Restauração, entre outros.19

Têm-se como um bom exemplo dessa prática, a atividade executada pela família Ribeiro, aparecendo ao longo dos autos jurídicos dos inventários Post-Mortem se aproveitando de uma as-sociação entre o capital mercantil, a posse de parcelas de terras e a criação de gado. A mesma família foi arrolada como possuindo uma escravaria de valor considerável, além de desenvolver atividades específicas, ao serem identificadas como restritas a esta família nos autos.20

Salienta-se, a partir dessa descrição, uma atividade comercial fundamentada na atividade primária, onde a família descrita utilizou-se do cabedal de capitais provenientes da atividade comer-cial de suas terras e orientou-o para outra forma de atividade,21 por meio de financiamentos conce-didos a comerciantes e uma suposta comercialização de escravos, pois os mesmos foram arrolados juntamente com seus preços, determinados segundo ofícios específicos.

As fontes primárias expuseram um mercado, relativo ao comércio, dominado pelo capital estrangeiro envolvendo italianos, franceses, alemães e portugueses que se apossaram de atividades como a mercancia de secos e molhados, têxteis e itens diversos de rouparia, que mesmo restrito ao interior da Paróquia, foi capaz de envolver camisas importadas de Gênova,22 salientando ao longo dos inventários a amplitude dessa atividade mercantil.

A via fluvial de comunicação, o rio Uruguai, revela a sua relevância no comércio da região quando se têm as descrições dos Ofícios (ativa) da Mesa de Rendas, onde por meio do depoimento de seus funcionários salienta-se o crescente movimento no porto da Paróquia,23 sendo que os ma-pas demonstrativos revelaram uma descrição dos itens que se orientavam aos mercados do Prata,

19 Citam-se nos autos a ação de franceses, ingleses, norte-americanos, espanhóis e luso-brasileiros que executavam ativi-dades baseadas em produtos diversos como jóias, têxteis, bebidas e gêneros de alimentação.

20 Atividade de financiamento21 RODRIGUES, M. A. O Comércio na Paróquia de São Patrício de Itaqui, nas décadas de 60 e 70, do século XIX.

Trabalho final de Graduação. 2006. p. 18-19.22 Inventário Post-Mortem, Cartório de órfãos e Ausentes. APERGS (Porto Alegre). Doc: 231, maço: 8, ano: 1874.23 Mesa de Rendas de Itaqui, 22 de maio de 1855, Ofícios (ativa).

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distinguindo-se a erva-mate, o fumo, o açúcar, no biênio 1857-1858.24 A partir da descrição dos mapas demonstrativos, salienta-se um comércio dedicado a expor-

tação orientado ao Prata, que serviria como importante escoadouro para os tipos de mercadorias que se comercializavam nessa região,25 haja vista a precariedade dos fluxos de circulação que teriam limites às outras áreas do Império. Somavam-se, nesse ponto, as dificuldades de comunicação, as restrições impostas pela distância, que limitariam a capacidade de comercialização dos mercados, através do enca-recimento decorrente dos fretes, que incidiriam sobre o preço dos bens.

Tendo como referência as Listas de Alfândega da Mesa de Rendas da Paróquia, foi possível dimen-sionar, no período que envolve o quinto decênio dos oitocentos, um movimento que já se fazia presente nos mapas de importação, colocando-se como uma atividade em ascensão, envolvendo as cidades às margens do Uruguai, ou seja, o porto de São Borja que abarcava, no período, as Alfândegas de Uruguaiana e Itaqui.

Essa atividade envolvia um fluxo de exportação de gêneros primários como couros, fumo e açúcar relacionados pelos registros da atividade alfandegária que se apresentava nos portos da região.26

2.2 Relação dos passes da Presidência expedidos pela Meza de Rendas Gerais de

Itaqui durante o mez27 de maio de 1861

O intenso movimento de embarcações de pequeno porte como lanchões, chalupas e palhabo-tes, embora as fontes revelem uma atividade quase que rudimentar, proporcionou o surgimento de uma atividade econômica moderna, citando-se a presença de vapores na navegação do Uruguai e a formação de redes familiares de comercialização de itens atendendo territórios heterogêneos, e por muitas vezes limitado a um número específico de agentes comerciais. Nos mapas que descrevem as relações dos passes liberados pela Mesa de Rendas de Itaqui, distinguimos a ação das famílias Veppo e Rodrigues.

Os Veppo atendiam apenas o mercado da Constituição, no Uruguai, mais heterogêneo apresen-tando um grande número de comerciante que mantinham relações com esse mercado, em comparação com a Federação, um mercado cativo, apresentando um pequeno número de agentes que mantinham uma rede restrita de negócios com essa região.

A presença de um fluxo mais constante de comercialização pode ser manifestada pela intensa navegação no rio Uruguai do vapor de mesmo nome, que respondia pelos contatos com a Constituição, território em terras do Uruguai e explorado por Antônio Eugênio de Freitas Guimarães.28

24 Mesa de Rendas de Itaqui, Mapa de gêneros nacionais exportados pela Mesa de Rendas de Itaqui no 2º semestre de 1857-1858.

25 Fumo, açúcar, erva-mate, arrolados nas fontes primárias da Alfândega da Paróquia.26 Mesa de Rendas de Itaqui. Listas de Alfândega. AHERGS. Porto Alegre. Maio de 1861.27 A ortografia adotada foi a registrada nas fontes primárias.28 Mesa de Rendas de Itaqui. Listas de Alfândega. AHERGS. Porto Alegre. Maio de 1861.

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2.3 Relação dos passes da Presidência expedidos pela Meza de Rendas Gerais de Itaqui

durante o mez de maio de 1861 – destino dos agentes de maior atividade no comércio de

cabotagem da região com destaque para Antônio Eugênio de Freitas Guimarães.

De posse dos mapas dos gêneros que se apresentavam nesse comércio, ao cruzar os mapas de maio de 1861, que descrevem os destinos das embarcações, seus proprietários e os períodos que se desenrolam esses movimentos, podemos relacionar os artigos que supostamente o navio Uruguai movimentava nesse comércio envolvendo a erva-mate, que na Constituição revela sua preponderân-cia com 4850 arrobas e uma pequena quantidade de couros,29 para o período registrado.

A erva-mate já se mantinha como sendo de grande relevância nesses mercados e na consti-tuição das rendas das Alfândegas das cidades limítrofes ao Uruguai, mesmo considerando a dificul-dade de se estabelecer uma atividade coerente de extração de rendas desse mercado. Tal fenômeno se identifica quando da dificuldade em conter o contrabando por parte dos fiscais, as condição de fronteira aberta e as falhas na constituição de uma fiscalização, decorrente da limitação imposta pela extensão da faixa de fronteira junto ao Prata.

As Listas de Alfândega apresentam algumas peculiaridades quando cruzadas com outro tipo de fonte de caráter jurídico, as Ações Ordinárias (Cível e Crime), onde através de autos judiciais que puderam ser identificados, a partir do sistema de fichamento, destacam-se redes de fornecimento de gêneros baseadas em itens e produtos de natureza primária como a erva e os couros.

Identificam-se na mesma medida, a partir dos relatos das fontes, fluxos entre Província-Província, ou nações diferentes que desempenham atividades de circulação de capital mercantil, negando as fronteiras políticas e estabelecendo novas categorias de relações mediante o comércio.

O cruzamento entre fontes específicas, permitiram descrever uma atividade comercial exe-cutada por estrangeiros, além de estruturar seus ramos de atividade e, em alguns casos, identificar itens que constituíam a especificidade desse comércio. Caracteriza-se uma atividade mercada pela presença de bens vindos de fora dos limites da província e mesmo do Império, e a concentração de atividades que se fundamentavam nos limites da jurisdição dos Estados, como o contrabando.30

Os autos jurídicos pertencentes aos Inventários Post-Mortem, fundamentaram a descrição das relações com o rio Uruguai, a partir do envolvimento em dívidas ativas e/ou passivas dos comer-ciantes com pessoas dedicadas ao comércio de cabotagem que se instalava na fronteira, justificando a presença de itens e artigos de origem estrangeira.31

29 Mesa de Rendas de Itaqui. Listas de Alfândega. AHERGS. Porto Alegre. 2º semestre de 1857-185830 Ações Ordinárias. Cível e Crime. APERGS. Porto Alegre. Nº: do auto: 414. maço: 17. Ano: 1870.31 Inventários Post-Mortem. APERGS. Porto Alegre. N: 131. maço: 5. ano: 1864.

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3 Considerações finais

A análise mais detalhada, com base em fontes primárias, de determinadas conjunturas econômicas e sociais revelam especificidades de áreas fortemente delineadas pelas condições geo-gráficas, condicionando as mais diversas maneiras dos ajuntamentos humanos desenvolverem suas formas de vida e simultaneamente moldar o espaço onde vivem.

A existência de uma fronteira aberta, a ineficiência na fiscalização, a demanda por produtos manufaturados europeus e conseqüentemente o fluxo de gêneros primários como couros, erva-mate, fumo e açúcar contribuíram para a descrição de uma atividade capaz de estruturar um mercado de múltiplas nacionalidades. Ingleses, franceses, norte-americanos e espanhóis, além dos luso-brasilei-ros mantinham as bases de um comércio capaz de ignorar as fronteiras propostas pelas autoridades alfandegárias do próprio Estado.

Esse é o caso da província do Rio Grande de São Pedro, de tardia ocupação, considerada por muito tempo e por diversas e incontáveis vezes um simples apêndice das estruturas orientadas para as produções de exportação. Mas outros tipos de atividades se desenvolveram junto às povoações que ocupavam principalmente as regiões de fronteira, estruturando novas formas de vida e atividades de subsistência, uma delas o comércio, que ganhou destaque ao longo desse trabalho.

Alguns fatores passam a ganhar importância primordial nesse processo como: a condição de livre transitoriedade da fronteira, a proximidade com o rio Uruguai e com os países do Prata, condições que favoreceram uma ascendente atividade mercantil desenvolvida lícita ou ilicitamente, utilizando-se dos portos e do comércio de cabotagem entre as cidades da fronteira.

Destacam-se nesse comércio produtos como: o fumo, o açúcar e demais gêneros primários32

que tinham no porto a base para o processo de acumulação endógena de capitais pelos comerciantes, que podiam dispor de mercados consumidores em condições de absorver as ofertas de produtos de uma indústria em incipiente expansão.

Um comércio que envolvia um intenso movimento de gêneros, discernindo produtos de base primária orientados para a região do Prata, por volta da década de 50 dos oitocentos, compre-endendo chalupas, lanchões, vapores, com destino ao Salto, no Uruguai, Federação (Argentina),33 compostos por levas de mercadorias de origem lícita e ilícita.34

As fontes primárias expuseram um mercado dominado pelo capital estrangeiro envolvendo

32 Mesa de Rendas de Itaqui. Listas de Alfândega. 2º semestre do biênio 1857-185833 Mesa de Rendas de Itaqui. Listas de Alfândega. Relação dos passes da Presidência expedidos pela Mesa de Rendas de

Itaqui no mês de maio de 1861.34 RODRIGUES, M. A. O Comércio na Paróquia de São Patrício de Itaqui, nas décadas de 60 e 70, do século XIX.

Trabalho final de Graduação. 2006. p. 18-19.

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italianos, franceses, alemães e portugueses que se apossaram de atividades como o comércio de secos e molhados, de têxteis e itens diversos de rouparia que determinavam a amplitude de um mercado, que mesmo no interior foi capaz de envolver camisas importadas de Gênova35 que se salientaram ao longo dos inventários.

O fato de se localizar em uma região de fronteira aberta atraía os fluxos de comerciantes dedicados ao comércio de erva-mate, atividade que se aproveitou da precariedade da fiscalização do rio Uruguai para estabelecer volumes que entravam na Província provenientes de regiões fora das posses do Império, caracterizando a região como um importante centro de comercialização de bens.

A via fluvial de comunicação, o rio Uruguai, revela a sua relevância no comércio da região quando se tem as descrições dos Ofícios (ativa) da Mesa de Rendas, por meio do depoimento de seus funcionários que salientam o crescente movimento no porto da Paróquia,36 quando os mapas demonstrativos revelaram uma descrição dos itens que visam os mercados do Prata, distinguindo-se a erva-mate, o fumo, o açúcar, no biênio 1857-1858.37

Comércio dedicado ao contato com os países do Prata, portanto de caráter exógeno, repre-sentado uma totalidade nos contatos com os territórios da até então Federação ‘Argentina’, algumas províncias do atual Uruguai,38 e territórios do próprio Império brasileiro.39

O intenso movimento de embarcações de pequeno porte como lanchões, chalupas e palha-botes, embora as fontes revelem uma atividade quase que rudimentar, proporcionou o surgimento de uma atividade que se opõe aos fluxos e dinâmicas ditados pela economia de exportação de itens como a monocultura de café, refletindo-se na capacidade de prover a região de um incipiente comér-cio de manufaturados, em geral ingleses.

Outro ponto que merece destaque é o papel da inovação, capaz de diminuir as distâncias e conseqüentemente incidir sobre o preço dos bens, a partir da introdução do navio a vapor na navegação do rio Uruguai a partir de Antônio Eugênio de Freitas Guimarães. A tecnologia dos transportes favorece a ampliação dos mercados às populações interioranas, ampliando a demanda e conseqüentemente diminuindo o preço dos bens.

Nos mapas que descrevem as relações dos passes liberados pela Mesa de Rendas de Itaqui, distinguimos a ação da família Veppo e da família Rodrigues. Os Veppo atendiam apenas o mercado da Constituição no Uruguai, mais heterogêneo apresentando um grande número de comerciantes,

35 Inventário Post-Mortem, Cartório de órfãos e Ausentes. APERGS (Porto Alegre). Doc: 231, maço:8, ano: 1874.36 Mesa de Rendas de Itaqui, 22 de maio de 1855, Ofícios (ativa).37 Mesa de Rendas de Itaqui, Mapa Demonstrativo de gêneros nacionais exportados pela Mesa de Rendas de Itaqui no 2º

semestre de 1857-1858.38 Na época descrito pelos autos como: Estado Oriental39 Comércio praticado entre as províncias era considerado como exportação.

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que mantinham relações com esse mercado, em comparação com a Federação que se mantinha como um mercado cativo apresentando um pequeno número de agentes comerciais.

A presença de um fluxo mais constante de comercialização pode ser manifestada pela inten-sa navegação no rio Uruguai do vapor de mesmo nome “Uruguai” que respondia pelos contatos com a Constituição, mercado explorado por Antônio Eugênio de Freitas Guimarães.40

A sociedade que se instalou nessa região limítrofe ao Prata, apresentou as bases para a ca-racterização do processo de formação e organização de formas de desenvolvimento material que negam a normatização e racionalização do espaço propostas pelo Estado, em benefício de atividades de subsistência costumeiras. Ou seja, como os ajuntamentos humanos utilizam-se de elementos específicos, num intenso processo de criação e recriação para mobilizar novos recursos.

Comércio de escravos, manufaturados, geralmente de origem estrangeira, terras, fumo, cou-ro, perfaziam constantemente os fluxos entre a província do Rio Grande de São Pedro em suas fronteiras: a Paróquia de São Patrício de Itaqui, São Borja, Uruguaiana, para delinear novas formas de tratamento e caracterização de nossa sociedade, independendo-se dos elementos norteadores da história tradicional.

Pode-se considerar que a falta ou ineficiência da fiscalização em Instituições de um Estado em formação, contribuiriam para romper a jurisdição e a tributação destas áreas, reféns do contra-bando e da transgressão das leis, rompendo tributos de alfândega, taxas, e desenvolvendo o comércio de couros, geralmente de origem desconhecida.

A análise dos pequenos ajuntamentos populacionais e sua relação de reciprocidade com uma área de fronteira aberta, sob a influência de condições naturais e a presença de uma via fluvial de cir-culação, favoreceram o contato entre populações interioranas com as novas formas de sociabilidade promovidas pela industrialização e o comércio.

Por meio dos avanços nos meios de produção aliados ao desenvolvimento tecnológico dá-se a prevalência de novas atividades econômicas a partir do comércio que criam e recriam os espaços de sociabilidade, quebram monopólios e reorientam a ação da coletividade na ordenação do espaço.

40 Mesa de Rendas de Itaqui. Listas de Alfândega. AHERGS. Porto Alegre. Maio de 1861.

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ANAÍS M. PASSOS, CAMILLA CORÁ E IGOR C.AMAZARRAY1

Discurso, prática e poder: o Brasil na Liga das Nações

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Resumo

O presente artigo aborda a participação do Brasil na Liga das Nações, contextualizando internamente e internacionalmente as razões da formulação da busca de um assento permanente como linha definidora da política externa do período, bem como os motivos do fracasso dessa pretensão. A política ex-terna brasileira é orientada por uma busca de coesão social face à instabilidade interna política. O fortalecimento dos EUA, a reconversão econômica européia pós-1ª Guerra e o fracasso dos ideais wilsonianos, por outro lado, colaboram para a manutenção do status periférico brasileiro e a não-obtenção do assento desejado. A situação remete à atual atuação brasileira em relação ao Conselho de Segurança da ONU, hoje um ator regional e internacional relevante.

Palavras-chave: Política externa, Política Interna, Pós-Guerra, Liga das Nações

Abstract

This article analyses the internal and external reasons for which Bra-zil pursued a permanent seat in the League of Nations, as well as the factor that led this enterprise to failure. Brazilian foreign policy aimed to promo-te social cohesion and internal stability. On the other hand, the rise of the United States, the failure of wilsonism and the economic changes related to the post-War period contributed to Brazil staying as a peripheral coun-try, without having its claim of a permanent seat accepted. One can make a comparison of this situation with the present Brazilian ambition towards a permanent seat in the United Nations Security Council.

Keywords: Internal Policy, Foreign Policy, Post-War, League of Nations

1 Introdução

Parece ser um consenso entre a historiografia sobre o período que a atuação brasileira na Liga das Nações foi preenchida por contradições. A busca por um assento permanente no Conselho da Liga, o veto brasileiro à

1 Discentes do quinto semestre de Relações Internacionais na UFRGS. Contato: [email protected], [email protected], [email protected].

“(...) é essencial apreender os elementos sociais, econômicos e políticos internacionais que contribuíram para o fracasso dessa pretensão nacional”.

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entrada da Alemanha no mesmo, bem como a retirada do Brasil da Liga, têm causado controvérsias quanto às suas possíveis motivações, tendo em vista a relativa falta de interesses substanciais do país no fórum multilateral europeu. Ao mesmo tempo, a incapacidade da Liga das Nações em ser um instrumento eficaz de garantia da ordem igualitária e pacífica entre as nações, tal como visado pelos ideais wilsonianos, contribui para o não-entendimento da incisiva busca brasileira em participar do órgão. Assim, misturam-se fatores internos e externos na tentativa de explicação desse momento da diplomacia brasileira, muitas vezes visto como uma conseqüência da “ilusão” acerca do seu poder e importância efetivos no cenário internacional (CERVO & BUENO, 2006; GARCIA, 2001).

A ação efetiva, o discurso proferido e o poder controlado pelo país são faces freqüentemente conflitantes da participação do Brasil na Liga das Nações. Nesse sentido, o objetivo do presente tra-balho é proceder à contextualização dos fatores determinantes da atuação brasileira, tanto no plano interno como no externo, na procura de uma melhor compreensão acerca das contradições daí de-correntes. Incluem-se nesse escopo os motivos pelos quais o Brasil ingressou na organização e, mais tarde, procurou ativamente obter um assento permanente no seu Conselho, atitude definida por Garcia (2001) como “vencer ou não perder”. Ao mesmo tempo, é essencial apreender os elementos sociais, econômicos e políticos internacionais que contribuíram para o fracasso dessa pretensão nacional.

Outro aspecto significativo da busca por esclarecimentos quanto a esse momento da política exterior brasileira se refere à possibilidade de se traçar um paralelo com o momento atual da mesma, ou seja, a tentativa brasileira de ser contemplado com um assento permanente na Organização das Nações Unidas. Guardadas as proporções, o elemento de prestígio internacional que o Brasil tenta obter com a sua diplomacia atual pode ser traçado até o período em foco neste trabalho, bem como alguns dos aspectos da atuação do país nesses dois fóruns, como será visto adiante.

2 Desenvolvimento

2.1 A criação da Liga das Nações

A criação da Liga das Nações ocorre no conjunto de negociações ocorridas na Conferência de Paz de Paris, de janeiro a abril de 1919. Woodrow Wilson, presidente dos Estados Unidos e diretor da Comissão da Redação do Pacto, em mensagem endereçada ao Congresso americano, propôs 14 pontos que ambicionavam mudar o comportamento das nações a fim de promover a paz. Dentre os princípios mais relevantes enunciados estavam: renúncia à diplomacia secreta, liberdade econômica e de navega-ção, direito à autodeterminação dos povos, respeito ao princípio das nacionalidades e criação de um órgão internacional que serviria de espaço de diálogo entre os países, a Liga das Nações. Implícita era a defesa da permanência e universalidade da paz, minimizando as rivalidades européias.

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No plano original, o órgão decisório seria uma Assembléia Geral onde todos os países esta-riam representados. Por pressões principalmente da Grã-Bretanha, defensora de uma Liga milita-rista que defendesse os resultados da guerra, foi criado um Conselho no qual as cinco potências com “interesses gerais” teriam assento permanente, e outros quatro países com “interesses específicos” tinham direito a assento temporário (RODRIGUES & SEINTENFUS, 1995, p. 282). O princípio da igualdade jurídica entre os Estados foi mantido somente na Assembléia Geral, onde todos os países tinham direito a um voto. Dessa forma, o organismo passa a funcionar de maneira bicameral, aos moldes da Conferência Pan-Americana.

A não-ratificação do texto da Liga das Nações pelo Congresso estadunidense em dezem-bro de 1919 e a conseqüente ausência dos Estados Unidos é o primeiro golpe em uma série de adversidades que atingiriam a Liga e comprometeriam a sua efetividade. Como apontam Ricardo Seintenfus e José Honório (1995, p. 287):

(...) o Pacto que cria a Liga das Nações não cria a Sociedade Internacional,

mas uma associação de caráter jurídico privado, pois ela é incapaz de impor-se

aos Estados que não desejam integrá-la. Por outro lado, ela exclui os países

derrotados na guerra e, sendo parte integrante do Tratado de Versalhes, o

Pacto é antes de mais nada uma aliança, inclusive militar, entre os vencedores,

com o objetivo de impor uma situação aos vencidos. Nota-se, então, a dico-

tomia entre o princípio da construção de um novo sistema internacional e a

prática da excludência – oriunda da visão conservadora do acordo.

Após diversas alterações no texto original, a Liga entra oficialmente em funcionamento em 10 de janeiro de 1920,2 com a entrada em vigor do Tratado de Versalhes. A busca pelo assento permanente nesse órgão será uma das linhas definidoras da política externa brasileira nos anos 20.

2.2 O contexto interno brasileiro

A década de 20 no Brasil reflete a instabilidade política e social que o país enfrenta e a crise do seu sistema oligárquico. A expansão dos setores médios e urbanos, a ascensão do tenentismo e

2 Outra alteração foi em relação ao mandato de segurança coletiva. No texto original, criava-se um mecanismo de segurança coletiva (artigo 16), que seria ativado caso a integridade territorial de um de seus membros fosse ameaçada. Por pressões dos Estados Unidos, temeroso de que seria solicitado a intervir em demasia, esse item foi modificado por uma orientação para que a Liga fizesse a mobilização de meios para o cumprimento de suas decisões. Além disso, por insistência das potências européias, o texto final frisava a necessidade de ser mantido o status quo territorial. Além da necessidade de institucionalizar os ganhos territoriais advindos da Guerra, havia a preocupação de manter legítimos os domínios extra-territoriais europeus, num momento de enfraquecimento do eurocentrismo.

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a própria diversificação dos interesses da elite econômica são fatores-chave no realinhamento da política brasileira, que culminaria na revolução de 1930.

Durante o governo Epitácio Pessoa veio à tona o movimento de oposição à hegemonia de Minas Gerais e de São Paulo na cena política do país. Esse descontentamento marcou as eleições de 1922, na qual de um lado aparecia Artur Bernardes, como candidato de situação, e de outro, Nilo Peçanha, representando a oposição da Reação Republicana. Esta é interpretada pela historiografia contemporânea (FERREIRA & PINTO, 2006, p. 395), “não como uma proposta de ruptura com o modelo oligárquico em vigor, mas como uma tentativa de construção de um eixo alternativo de poder que ampliasse a participação das chamadas oligarquias de segunda grandeza no jogo do fe-deralismo do período”.

No ano de 1922, ocorreram diversos fatos marcantes que assinalam o contexto interno do governo Arthur Bernardes. Este é o ano da fundação do Partido Comunista do Brasil, da Revolta do Forte de Copacabana e da Semana de Arte Moderna de São Paulo.

Mesmo em meio a um ambiente hostil, Artur Bernardes elege-se em 1922. Entretanto, o novo presidente tomava posse já em Estado de Sítio, visto que medidas extremas foram tomadas por Epitá-cio Pessoa para conter levantes oposicionistas, dentre eles de militares e niilistas. Além disso, Bernardes empreendeu uma violenta reação aos seus opositores, a fim de garantir a consolidação de seu poder.

Para tanto, o governo central também interveio no Rio de Janeiro (1923), destituindo o go-vernador eleito. No Rio Grande do Sul, na impossibilidade de confrontar Borges de Medeiros direta-mente, pacificou a região por meio do Acordo de Pedras Altas. Ainda nesse sentido, foi suspensa uma série de garantias constitucionais e foi aprovada a Lei de Imprensa, a qual estabeleceu o controle dos meios de comunicações.

Contudo, tal autoritarismo fez inflar novas rebeliões civis e militares. Em 1924, eclodiu a revolução em São Paulo e, em 1925, inicia-se a Coluna Prestes.

O centro das relações exteriores brasileiras começa a mudar a partir do final da Primeira República. Nas últimas décadas do século XIX, os EUA foram os principais compradores dos três principais itens de exportação brasileiros (café, cacau e borracha). Em 1912, os EUA compravam 36% das exportações brasileiras, ao passo que o segundo mercado, a Grã-Bretanha, representava apenas 15% (BURNS, p. 387). Além dos interesses econômicos, havia interesses políticos nessa aproximação. A aliança não-escrita com Washington servia para afastar quaisquer intervenções ex-ternas européias e favorecia o exercício do poder brasileiro na América do Sul. Era, portanto, um mecanismo para defender os interesses próprios brasileiros (DORATIOTTO, 2006, p.43; LIMA, 2006, p. 29; BURNS, p.381). Posteriormente, como será abordado, percebe-se que esse alinhamento

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com o país favorece a ausência de apoio da candidatura brasileira como representante dos interesses americanos na Liga das Nações.

Não obstante, a parceria não evita a instabilidade interna do país. Esta faz com que o governo adote a defesa do assento permanente com tal incisão como uma forma de, através de um horizonte externo em comum, manter a coesão interna (GARCIA, 2001). No entanto, a falta de adesão popular à pauta impede que esse objetivo tenha resultados concretos. Em verdade, o maior grau de comoção nacional em torno da pauta ocorre em certa medida relacionado à saída do Brasil da Liga das Nações, considerado uma questão de “orgulho nacional” (idem).

O governo Bernardes deu continuidade à campanha iniciada no governo de Epitácio Pessoa por um assento permanente no Conselho da Liga, objetivo aos quais todos os esforços da chancelaria foram submetidos. Nesse sentido, a diferença entre os dois governos estava no fato de que o primeiro contentava-se com o espaço apagado conquistado pelo Brasil após a Primeira Guerra Mundial, como sócio menor dos aliados, enquanto o segundo buscava um patamar superior no cenário internacional, apesar das debilidades internas e das prováveis resistências externas a esse projeto. A esses fatores inter-nos, somam-se fatores externos para explicar a pretensão brasileira e seu o posterior fracasso.

2.3 O cenário internacional

As conseqüências da Primeira Guerra Mundial foram devastadoras, contabilizando oito mi-lhões de soldados e nove milhões de civis mortos. O continente europeu foi profundamente afetado e os países comprometeram seus orçamentos: a Inglaterra gastou 35% de sua riqueza nacional; a Ale-manha, 24%; e a França, o Império Austro-Húngaro e a Itália, 20% cada (VIZENTINI, 2003, p.53).

A ascendência econômica, social, política e cultural da Europa cedeu lugar para a ascensão estadunidense. Desde 1870, o país apresentava uma taxa de crescimento quase duas vezes superior à da Grã Bretanha, apesar de ter uma economia voltada para dentro – as exportações representavam apenas 7% do produto nacional (MADDISON, 1994, p. 28-37). Após o conflito, os Estados Unidos passa a ser o maior produtor industrial e o maior credor do mundo: entre 1920 e 1924, o estoque de ouro dos EUA aumenta em 57%, passando de 30 para 40% da porção mundial (DROZ &ROLEY, 1988, p.45). O mundo claramente não era mais eurocêntrico.

Uma idéia chave no período é a reorganização dos países com base na idéia democrática (DROZ & ROLEY, 1988). Exemplos disso são o fim do Império Autro-Húngaro, a reconversão democrática alemã e a instauração de democracias nos novos países criados (Romênia, Iugoslávia, Polônia, Estados Bálticos, Finlândia e Checoslováquia). A defesa dos ideais democráticos está im-plícita na criação da Liga das Nações, que institucionaliza uma ordem jurídica consensual, exercida

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de baixo para cima através da igualdade jurídica entre as nações – ainda que, na prática, esse meca-nismo encontre diversas limitações, como será abordado posteriormente.

Os anos de 1922 e 1925, em especial, são de alta inflação e, mesmo com a o crescimento de 1926 a 1929, a Europa conta com mais de 4 milhões de desempregados (DROZ, ROLEY, 1988, p. 78). A solidariedade internacional é preterida pela adoção de práticas protecionistas: em 1921, os Estados Unidos elevam seus direitos alfandegários a 22 % e a Grã-Bretanha, em 1923, a 33 %. (ibid, 1988, p.64-63). Além disso, a deterioração dos termos de troca com a desvalorização dos produtos primários contribui para fortalecer a assimetria interestatal. Esse cenário irá favorecer o surgimento de governos autoritários e solapar a proposta da Liga das Nações de manter a estabilidade entre os países, favorecendo o egoísmo estatal das grandes potências.

A atuação do Brasil na Liga ocorre, portanto, num contexto de transição hegemônica e prevalecimento da práxis das grandes potências, excluindo do rol decisório os países menores. As preocupações centram-se na reconversão das economias, afetadas pelo conflito mundial, e no apazi-guamento dos ânimos revolucionários, influenciados pela recém-surgida URSS.

Nesse sentido, a importância efetiva do país enquanto nação periférica agroexportadora para as grandes potências era mínima. O seu interesse, no contexto internacional, era num momento de aparente reestruturação do sistema internacional ocupar um lugar mais privilegiado.

Obviamente, como aponta Eugênio Vargas Garcia (2005, p. 43), a defesa do igualitarismo entre as nações, mais do que uma sincera motivação ideológica, é o mecanismo pelo qual o país tenta legitimar a sua pretensão a ter um assento permanente na Liga. Tanto que, na prática, irá defender o sistema assimétrico de participação com a expectativa de que seja incluído nele:

Quanto ao discurso em prol dos direitos das potências menores, cristalizado

no princípio da igualdade dos Estados (idealismo), o Brasil terminou por

negá-lo na prática aceitando o princípio inverso, o da classificação das potên-

cias (realismo), expresso na Constituição do Conselho da Liga, que concedia

unicamente às grandes potências o privilégio de ali permanecerem ad infini-

tum. Em outras palavras, enquanto sua própria participação nas decisões da

Conferência era limitada pelo controle das grandes potências, o Brasil se uniu

ao coro de protesto dos pequenos Estados, mas diante de um fato consumado

que lhe foi dado pela dinâmica internacional, com a possibilidade de ver per-

tencer ao órgão da cúpula da Liga, o Brasil se rendeu à aspiração de grandeza

e aceitou de bom grado uma posição diferenciada no concerto das nações.

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2.4 A participação brasileira na Liga

O Brasil foi o único país sul-americano a participar da Primeira Guerra Mundial, declaran-do guerra à Alemanha em 1917 após um período de neutralidade. A entrada do Brasil no conflito ao lado dos aliados teria sido uma atitude condizente com a crescente amizade com os Estados Unidos e a chamada “solidariedade continental” (GARCIA, 2000, p. 27). Não se pode negligenciar, contudo, o interesse brasileiro em participar da conferência de paz que se seguiria, a fim de assegurar os seus interesses com relação às questões dos navios requisitados aos alemães e do dinheiro do café comprado pelos mesmos.

O primeiro problema se referia a uma requisição de vários navios feita pelo Brasil, em 1917, em represália à destruição de tonelagens pela Alemanha, ainda antes da deflagração de guerra entre os dois países. Como a apreensão foi feita ainda em momento de neutralidade, e os navios não fo-ram posteriormente tornados propriedade brasileira durante a guerra,3 a questão se tornou de difícil solução durante as negociações de paz. Contudo, conseguiu-se atingir uma solução favorável ao Brasil no artigo 297 do Tratado de Versalhes, segundo o qual o Brasil teve reconhecido seu direito de propriedade dos navios mediante indenização à Alemanha (valor que era inferior às reparações de guerra que a mesma devia ao Brasil).

A questão do café, por sua vez, se referia a um depósito que o Brasil vendeu e depositou a importância correspondente em uma casa bancária de Berlim, ainda antes do início da guerra. Essa questão foi de resolução mais fácil, sendo o Brasil citado nominalmente no artigo 263 do Tratado de Versalhes, segundo o qual

a Alemanha garante ao Governo Brasileiro que todas as somas referentes à ven-

da de café pertencentes ao Estado de São Paulo [...] serão reembolsadas[...]. A

Alemanha [...] também garante que o reembolso será efetivado de acordo com

a taxa de juros do dia do depósito. (Tratado de Versalhes, artigo 263)

Já na preparação da Conferência de Paz, na qual o Brasil se fez representar pelo deputado de Minas Gerais João Pandiá Calógeras, começou a se evidenciar uma discrepância freqüente entre discurso e prática por parte do Brasil no contexto da Liga. Calógeras discursou contra a tendência que se ensaiava de dividir os países entre os de “interesses gerais” e os de “interesses limitados”, pro-

3 Os navios passaram a ser propriedade do Brasil no momento de beligerância, mas só se tornariam permanentemente brasileiros se o caso fosse submetido ao Tribunal de Presas. Como não o foi, o direito brasileiro aos navios terminou com o fim da guerra (CERVO & BUENO, 2006).

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clamando a igualdade de todas as nações perante o direito, mas não conseguia esconder a intenção e a esperança de que o Brasil fosse reconhecido em meio às grandes potências do cenário internacio-nal (GARCIA, 2001, p. 33). O princípio da classificação das potências, contudo, como se viu, acabou por ser consagrar no artigo primeiro do regulamento da Conferência.

Uma vez estabelecida a Liga, o Brasil foi contemplado com um assento temporário no Con-selho, para os quais seria reeleito em 1920, 1921 e 1922, beneficiando-se da falta de regulamentos com relação à reeleição desses assentos. Esse fato foi estabelecido pelo artigo 4º do Pacto de Versa-lhes, o qual afirma que

o Conselho será composto por representantes das Principais Potências

Aliadas e Associadas, bem como representantes de quatro outros Membros

da Liga. (...) Até a primeira designação pela Assembléia, os representantes

da Bélgica, do Brasil, da Espanha e da Grécia serão Membros do Conselho.

O primeiro abalo da Liga das Nações ocorrera já em março de 1920, quando o Senado norte-americano não aprovou a ratificação do Tratado de Versalhes, determinando que o país não fizesse parte da Liga. O Brasil, apesar de estar cada vez mais alinhado à potência emergente, decide permanecer na Liga. Na 2ª Assembléia, realizada em 1921, o Chile anuncia sua sugestão de que sejam adicionados dois novos membros permanentes ao Conselho, sendo estes o Brasil e a Espanha, deixando inclusive o Brasil surpreendido (AHI 274/2/1, 1921, apud GARCIA, 2001).

Apesar disso, o Brasil defende a proposta e inicia a retórica de que estaria representando não só a si mesmo, mas também a toda a América, e, logo, não poderia ser excluído do Conselho. A proposta, contudo, é rechaçada e a questão, adiada para o ano seguinte.

Em 1922, observando as dificuldades crescentes para a reeleição do Brasil como membro temporário do Conselho, nasce a proposta de promover ativamente perante as chancelarias a admis-são do país como membro permanente do mesmo. Note-se que esse é o último ano da presidência de Epitácio Pessoa, considerada como um período de “satisfação” do Brasil com relação às suas ambições territoriais e com a divisão internacional do trabalho (CERVO & BUENO, 1992, p. 203).

Em 1923, o Brasil passa a defender a fórmula Brasil-Espanha, segundo a qual os dois paí-ses deveriam ganhar um assento permanente no Conselho, de forma a representar os “dois grupos étnicos ibero-americanos” (AHI 274/2/4, 1923 apud GARCIA, 2001). Com a recusa britânica em aumentar o número de membros permanentes, o Brasil passa a defender a suplência do lugar dos Estados Unidos, ainda sob o discurso de que estaria representando a América como um todo. Essa

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opção seria satisfatória, segundo o governo brasileiro, na medida em que, segundo o próprio Pacto, a América deveria estar representada no Conselho, e o Brasil, devido às duas dimensões em território, população e contribuição à Liga, seria naturalmente o país mais indicado para assumir o posto de membro interino do Conselho, enquanto os Estados Unidos não participassem do mesmo.

No mesmo ano, fortes resistências surgiam na América até mesmo em relação à renova-ção do mandato temporário. Isso ocorre porque os países ambicionam também um assento e não legitimavam o país enquanto representante regional do continente- como fica claro através das correspondências enviadas às representações européias defendendo o país. As tentativas brasileiras de buscar apoio são encontradas com posições amenas e pouca receptividade durante a quarta as-sembléia. Como coloca José Rodrigues e Ricardo Seintenfus (1995, p. 303-304):

Torna-se evidente a oposição entre os argumentos defendidos pelos países

hispano-americanos e os do Brasil. No entanto, esta contradição é incon-

tornável quando a diplomacia brasileira, ao advogar sua causa, ressalta que o

Brasil deve ser o representante da América no Conselho. Ora, nós preten-

demos representar alguém ou um grupo de países que não reconhece nossa

representatividade.

A ambigüidade da diplomacia brasileira em relação à América Latina, através da Aliança não-escrita com Washington, e seu afastamento em relação à Argentina, ligada à Grã-Bretanha, contribuem para fomentar a tradicional desconfiança que os países latino-americanos tinham em relação ao Brasil. A integração através do Pacto do ABC (cooperação entre Argentina Brasil e Chi-le), parcialmente implementada por Lauro Muller, era distante (SILVA & GONÇALVES, 2009, p. 159). A postura do país era classificada por muitos de sub-imperialista e a visão de que o Brasil representaria os interesses dos países latino-americanos não convencia.

Dessa forma, o mandato temporário foi atingido novamente, mas não houve ressonância quanto ao assento permanente. Também do ponto de vista internacional, a aproximação diplomá-tica brasileira era desprovida de meios que pudessem reforçar o posicionamento retórico: apesar de se defender como um grande contribuinte do orçamento da Liga, país de população numerosa e de vasta extensão territorial, o Brasil estava afastado do teatro de operações europeu, tendo pouca representatividade junto aos países do velho continente

No ano de 1924, o Brasil estabelece uma Delegação Permanente para atuação na Liga das Nações com status de embaixada em uma tentativa de aumentar sua presença junto às potências

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européias. Com a Delegação o Brasil pretendia “mostrar serviço” aos países membros e ver reconhe-cido o seu merecimento do assento permanente. Apesar de ter atuado de maneira notável, não foi recebida a recompensa aguardada.

Já em 1925, na sexta assembléia, novamente a questão referente à composição dos assentos permanentes é deixada de lado e há um movimento mais forte por parte dos países da América Latina para que o Brasil aceite o rodízio para o ano seguinte. Por parte dos países europeus, princi-palmente a Grã-Bretanha, havia medo de que a efetividade da Liga das Nações fosse comprometida com a ampliação do Conselho.

Nas Américas os conflitos e omissões impossibilitaram que houvesse unanimidade de po-sições e coesão de ação. O Brasil chega a buscar apoio junto aos Estados Unidos, mas a recepção é fraca. Em especial, Argentina e Chile não concordam com a ascensão do Brasil. Este também dese-java um assento no Conselho, enquanto aquela considera a candidatura brasileira como um fator de desequilíbrio para a América do Sul (GARCIA, 2000).

Não obstante, o Brasil mantinha sua candidatura. O país aguardou apoio dos países latino-americanos até o dia 16 de março de 1926, quando o governo brasileiro recebeu pedido por escrito de reconsideração da posição quanto ao assento permanente.

A retórica de representação do continente americano começara a perder o sentido quando, em 1925, o grupo de países latino-americanos da Liga se reuniu para discutir o revezamento do assento temporário que o Brasil ocupara até então no Conselho. O princípio do rodízio foi definido para começar no ano seguinte, demonstrando que os outros países latino-americanos não se sen-tiam, de fato, representados pelo país. Ainda em 1925 foram assinados os Acordos de Locarno, que determinavam o reconhecimento mútuo das fronteiras entre França, Bélgica e Alemanha e adotava organismos de arbitragem para quaisquer disputas que pudessem ocorrer entre esses países. Além disso, ficou garantido que a Alemanha não seria reocupada pelos Aliados, com a contrapartida da aceitação alemã de manter desmilitarizada a região da Renânia. Esse “espírito de Locarno”, que ex-primia uma vontade de negociação, e não mais de imposição, com a Alemanha passou a simbolizar o fortalecimento das relações no âmbito da Liga das Nações.

Graças aos Tratados, é permitido à Alemanha ingressar na Liga, e um assento permanente para o país passa a ser objeto de discussão. Contudo, no ano seguinte, o anúncio da Polônia de que também se candidatava a um assento permanente no Conselho desestabiliza a situação até então encorajadora, tornada pior pela noção brasileira de que o país estaria sendo ludibriado com as constantes promessas de que a sua entrada permanente no Conselho seria discutida quando do debate sobre o ingresso alemão. A Alemanha, por sua vez, apoiada pela Grã-Bretanha, não aceitava

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o ingresso de outro país concomitantemente ao seu no Conselho. O desprestígio a que o governo brasileiro se considerou submetido, e, para alguns autores, a própria personalidade do Presidente Artur Bernardes, levaram o país a afirmar categoricamente que votaria contra o ingresso da Ale-manha, determinando que a votação fosse adiada para o ano seguinte.4 Em 1926, o Brasil se retira do Conselho e posteriormente da Liga, não aceitando retornar quando convidado dois anos depois, apesar de permanecer em constante cooperação com o órgão (CERVO & BUENO, 2006).

O Brasil argumentava que era necessário ambientar Locarno à Liga das Nações, e não o con-trário (GARCIA, 2000). Mas, como fica ainda mais claro com o veto à Alemanha, o próprio Brasil não pensava no melhor funcionamento da Liga, mantendo-se mais preocupado com questões de prestígio internacional revertido em apreço político para seu cenário interno. O veto à Alemanha, seguido da retirada, acaba por trazer uma considerável perda de prestígio e credibilidade ao Brasil, cuja imagem já estava prejudicada, em virtude da sua insistência em algo que os outros países não legitimavam.

2.5 O Brasil no Conselho de Segurança

A presente busca por um assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Uni-das remonta à atuação brasileira no Conselho da Liga das Nações, nos permitindo realizar compa-rações quanto às convergências e divergências da atuação brasileira. A aspiração hoje é viabilizada pelo incremento das capacidades efetivas brasileiras e pela diferença de abordagem diplomática. A questão é defendida pelo Itamaraty não como uma forma de representar a América Latina, mas sim como um mecanismo de tornar o Conselho mais representativo. Ou seja, o Brasil não se coloca mais enquanto representante dos seus vizinhos latino-americanos; ele coloca-se enquanto uma nação representativa do continente e em nenhum momento visa substituí-los.

O detalhamento das ações recentes da diplomacia brasileira em busca de um assento per-manente no Conselho da ONU foge do escopo deste artigo. É interessante, contudo, ressaltar o projeto de resolução apresentado em conjunto com Alemanha e Índia na 60ª Assembléia Geral da Organização, que prevê a criação de dez novos assentos no Conselho, dos quais seis são permanentes e quatro não-permanentes, e afirma que a “efetividade, credibilidade e legitimidade do Conselho de Segurança serão reforçados pela melhora do seu caráter representativo” (A/60/L.46, 2006).

A atuação na crise entre Equador e Colômbia em 2008, a presença em diversas missões de paz5 e a celebração de acordos internacionais como o acertado entre Brasil, Irã e Turquia em 2010

4 O sistema de votação do Conselho da Liga era por unanimidade. Assim, todos os países, mesmo os de assento temporário, possuíam, na prática, poder de veto.

5 Notadamente a MINUSTAH, desde 2004.

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também exemplificam a nova orientação diplomática brasileira. Essas atividades, apesar de serem reminiscentes da política dos “serviços prestados” adotada em relação à Liga, colocam o país no foco das ações de repercussão internacional e tornam mais legítimas as reivindicações brasileiras de re-formulação do Conselho de Segurança. Dessa forma, a atuação da política externa permite ao Brasil estar mais próximo não somente da posição de liderança regional aspirado na década de 1920, mas também de ator global relevante.

3 Considerações finais

As contradições que marcam a atuação do Brasil na Liga das Nações refletem a dicotomia existente entre a busca do país em ser um protagonista internacional e as efetivas capacidades para efetivar essa posição. A política externa brasileira é orientada, no plano interno, por uma busca de coesão social face à instabilidade interna política. No plano externo, a perspectiva de reestruturação do sistema pós-guerra, com a ascensão estadunidense, sinalizou para o país perspectivas de um papel de maior peso no sistema internacional. Entretanto, as prioridades da reconversão européia pós-1ª Guerra face à instabilidade econômica e a permanência da hierarquia entre as nações leva ao fracasso dos ideais wilsonianos, colaborando para a manutenção do status periférico brasileiro. Esse cenário somado ao alinhamento – ainda que não automático - em relação aos Estados Unidos e a falta de atenção brasileira para a formulação de uma política regional contribui para consolidar a visão de que o país não era legítimo enquanto portador de interesses gerais ou mesmo enquanto representan-te de interesses regionais latino-americanos. Todos esses fatores levam a não-obtenção do assento desejado brasileiro no rol das grandes potências. A atual conjuntura, no entanto, nos permite analisar com maior otimismo a atuação brasileira no Conselho de Segurança.

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GUILHERME ZIEBELL DE OLIVEIRA1 JOÃO MARCELO CONTE CORNETET2 JULIEN MARCEL DEMEULEMEESTER3 ROBERTO JACOB FLECK4

A Questão do Acre: internacionalização dos interesses sobre a contenda acreana

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Resumo

A Questão Acreana aparentava ser apenas uma contenda bilateral entre Bolívia e Brasil, entretanto constituiu-se em um impasse imerso nos entremeios de um tabuleiro estratégico muito mais complexo, moldando a nova balança de poder e de interesses que se configurava na América do Sul. Neste contexto, a Bolívia estava em situação de clara desvantagem, ameaçada territorialmente pelo Brasil no Acre, pelo Chile no Pacífico, pelo Peru no Titicaca e pela Argentina no Atacama. Para garantir a continuidade de sua existência, o país andino ape-lou para a concessão de parte de seu território legal a uma companhia de capi-tais essencialmente norte-americanos, o Bolivian Syndicate, acreditando que assim conseguiria o apoio político dos Estados Unidos nos litígios territoriais que vinha enfrentando. A busca do apoio estadunidense não foi fortuita; pelo contrário, foi fruto de um projeto meticulosamente orquestrado por bolivianos e americanos, visando atender os projetos imperialistas deste e garantir a seguran-ça territorial daquele. Com o surgimento da possibilidade de instalação de uma companhia essencialmente norte-americana na região, o Brasil e outros Estados sul-americanos vêem a sua soberania territorial, bem como seus interesses eco-nômicos, ameaçados pela expansão imperialista estadunidense que se alastrava pelo continente. Desta maneira, em meio ao complexo jogo político que en-volveu a questão acreana surgiriam impasses diplomáticos entre os principais players da América do Sul e Europa, moldando os rumos políticos e econômicos do continente sul-americano em fins do século XIX e início do século XX.

Palavras-Chave: Questão do Acre, Bolivian Syndicate, Tratado de Petrópolis

Abstract

The Acrean Question, which at first seemed a simple bilateral disa-greement between Brazil and Bolivia, can nevertheless be considered a con-

1 Graduando em Relações Internacionais na UFRGS e BIC do Núcleo de Estratégia e Rela-ções Internacionais (NERINT) da mesma universidade. E-mail: [email protected].

2 Graduando em Relações Internacionais na UFRGS. E-mail: [email protected] Graduando em Relações Internacionais na UFRGS. E-mail: [email protected] Graduando em Relações Internacionais na UFRGS. E-mail: [email protected]

“(...) com tanta margem para questiona-mentos quanto à legitimida-de de cada Estado em cada região, alimenta-se um grande jogo de poder internacional (...)”

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flict positioned at the heart of a much more multifaceted arena, contributing for the establishment of the new balance of power and interests in South America. In such context, Bolivia was in clear detrimental position, territorially threatened by Brazil in Acre, by Chile in the Pacific, by Peru in Titicaca and by Argentina in the Atacama. In order to guarantee its very existence, the Andean country called on the granting of part of its legal territory to a mainly American possessed com-pany, the Bolivian Syndicate, willing to achieve political support from the United States of America for the territorial disputes it faced. Such pursuit of American support was not accidental; it rather was a project carefully orchestrated by Bolivians and Americans, aiming on collaborating with the imperialist projects of USA and guaranteeing the territorial security of Bolivia. With the likely setting of a mainly American company in the region, Brazil and other South American States saw their national sovereignty – as well as their economical interests – threatened by the American im-perialist expansion on course throughout the continent. Thus, surrounded by this complex political game, diplomatic clashes arose among the South American and European main players, molding the political and economic future of the South American continent in the closing stages of the XIX century and beginning of the XX century.

Key Words: The Acrean Question, Bolivian Syndicate, Petropolis Treaty

1 Introdução

Os acontecimentos da política internacional no continente sul-americano durante o sécu-lo XIX, quando os países atingiam e consolidavam suas independências das metrópoles européias, por ocorrerem em um ambiente de relativa anarquia, são de uma complexidade ímpar, abrindo margem para interpretações muito divergentes por parte de analistas das Relações Internacionais. Dentre eles, a controvérsia do litígio territorial entre a Bolívia e o Brasil acerca do território acreano, episódio consagrado pela historiografia como A Questão do Acre, ocasiona até hoje controvérsias teórico-acadêmicas ligadas às suas reais causas, ao seu desfecho e ao contexto geral em que ocorre.

Assim, propomos, com a elaboração deste artigo, analisar a produção acadêmica já existente sobre o tema, levantando os pontos mais coerentes propostos por cada autor, a fim de desvendar as verdadeiras variáveis políticas, econômicas e sociais envolvidas no processo e, desta forma, desen-volver de forma sucinta uma análise abrangente sobre a questão. A linha de análise que seguimos abrange a retomada histórica geral, a contextualização diplomática do conflito mediante a análise da Revolução Acreana e as divergências em torno do Bolivian Syndicate, que causou a internacio-

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nalização dos interesses envolvidos na contenda. Após a exposição dessas informações, concluímos re-evocando os pontos-chave propostos.

2 Desenvolvimento

2.1 Retomada Histórica

O final do século XIX se mostrou bastante conturbado para o Brasil, que além dos proble-mas com Argentina, Uruguai e Paraguai, enfrentou um conflito de fronteiras com a Bolívia e com o Peru. A Questão Acreana se estendeu até a primeira década do século XX, e só foi resolvida graças à habilidade diplomática do então Ministro das Relações Exteriores brasileiro, José Maria da Silva Paranhos, o Barão de Rio Branco. O Tratado de Petrópolis, juntamente com o Tratado do Rio de Janeiro, desempenha papel fundamental na definição das atuais fronteiras do território brasileiro.

O interesse boliviano no território que hoje caracteriza o Acre era fruto de uma demanda não declarada explicitamente. Em tendo acesso apenas ao Oceano Pacífico (através do Chile e do Peru), os bolivianos almejavam alcançar o Atlântico e o Caribe, através do acesso ao Rio Amazo-nas. O Brasil, renitente à abertura do Rio Amazonas à navegação de outras nações se viu, à época da Guerra do Paraguai, compelido a ceder às reivindicações bolivianas, pois temia que a Bolívia se associasse ao Paraguai na guerra. Nesse contexto, em 1866 o Brasil assina o Tratado de Ayacucho, que reconhecia o território do Acre como boliviano.

No período de 1877-79, a grande seca que assolou o nordeste brasileiro intensificou a mi-gração e o processo de ocupação do território acreano, fazendo com que muitos dos habitantes da região quisessem vê-la transformada em estado da Federação brasileira. Em 1899, entretanto, é fundado, à margem esquerda do Rio Acre, com o consentimento e apoio do governo brasileiro, o povoado de Puerto Alonso, junto ao qual foi fundado um posto alfandegário. Essa oficialização da soberania boliviana na região promoveu o que se configurou como a primeira insurreição acreana. Em abril do mesmo ano, um grupo de cerca de quinze mil brasileiros, comandados por José Car-valho e apoiados pelo governo do Amazonas, expulsou os bolivianos da região e trocou o nome do povoado para Porto Acre, proclamando, em 14 de julho do mesmo ano, a República Acreana Independente. O governo brasileiro, entretanto, em respeito ao Tratado de Ayacucho de 1866, re-conheceu o território como sendo pertencente à Bolívia e enviou uma flotilha da Marinha, que deu fim à “República do Acre”.

No início do século XX, receoso em relação à situação das terras consideradas acreanas pelos brasileiros, o presidente boliviano, Gen. José Manuel Pando, assina um contrato de arrendamento do território para uma chartered company majoritariamente inglesa e estadunidense, constituindo assim o

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Bolivian Syndicate. Este contrato previa que o grupo assumiria, por um período de trinta anos, o con-trole sobre a região, sendo responsável tanto pelas movimentações alfandegárias quanto militares. O governo brasileiro, entretanto, se mostrou significativamente descontente com o contrato e temeroso em relação à sua soberania territorial. Nesse contexto tenso, começou a ganhar força uma nova revolta. Comandado por Plácido de Castro, com o apoio dos proprietários de seringais amazonenses e dos seringueiros, o levante que ficou conhecido como “A Revolução Acreana” tomou a atual região do Acre e proclamou ali a Terceira República do Acre, desta vez com o apoio do Presidente Rodrigues Alves.

Em 1902, no contexto do acirramento da Questão Acreana, José Maria da Silva Paranhos, o Barão do Rio Branco, foi convidado pelo Presidente Rodrigues Alves a assumir o Ministério das Relações Exteriores. Diferentemente do tratamento que vinha sendo dado à questão, Rio Branco adotou uma abordagem política da contenda, admitindo que aquela era uma questão litigiosa entre Brasil e Bolívia, e buscou a negociação de um tratado que resolvesse a situação. Utilizando-se da defesa de que o Brasil havia feito, ao longo dos anos, uma interpretação errônea do Tratado de Aya-cucho visando a favorecer a Bolívia, o Barão do Rio Branco propôs um acordo ao Bolivian Syndicate, com a intermediação dos Rothschild, agentes financeiros do Brasil na Grã-Bretanha, no qual ficava disposto que o consórcio renunciava a qualquer direito, mediante o pagamento de uma indenização no valor de 110 mil libras esterlinas pelo Governo brasileiro. Paralelamente, ordenou a ocupação do território acreano pelos brasileiros e determinou que fossem enviadas tropas e embarcações militares para a região, no intuito de dissuadir quaisquer iniciativas de retaliação por parte da Bolívia.

Depois de alguns meses de negociações, foi elaborado o Tratado de Petrópolis, em que ficava acordado o compromisso brasileiro de construir a estrada de ferro Madeira-Mamoré, que facilitaria o escoamento da produção boliviana; a garantia de trânsito pelos rios da região; a cessão da região meridional do Acre, por parte da Bolívia, ao Brasil; e o recebimento de compensações territoriais por parte do governo boliviano que, não sendo equitativas, resultaram no pagamento de uma inde-nização de dois milhões de libras esterlinas ao governo boliviano por parte do governo brasileiro. O Bolivian Syndicate, percebendo que seria impraticável atuar na região, aceitou um acordo de rescisão contratual, mediante uma compensação financeira. O Tratado de Petrópolis foi assinado em dezem-bro de 1903 pelo governo boliviano e, depois de aprovado pela Bolívia, foi submetido ao congresso brasileiro, que o aprovou em janeiro de 1904, encerrando a questão fronteiriça entre Brasil e Bolívia.

2.2 Período anterior aos conflitos (de 1850 a 1899): A Balança de Poder como Condi-

cionante Diplomática

No século XIX, as independências das antigas colônias ibéricas na América Latina, tendo

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consistido em movimentos dispersos e republicanos na América espanhola e movimento centraliza-do e monárquico na América portuguesa, produziram um novo contexto geopolítico no continente, com Estados autônomos novos, países nascentes com interesses particulares. Neste novo tabuleiro continental, os novos jogadores (os Estados, se alçarmos mão a uma análise realista das Relações Internacionais) apresentavam-se com interesses muitas vezes divergentes, como nos inúmeros lití-gios territoriais que ocorreram entre praticamente a totalidade dos países limítrofes. Buenos Aires e Sucre (capital da Bolívia) disputavam a região de Tarija; o deserto do Atacama era disputado entre Perú, Chile e Bolívia; a zona do Prata era disputada entre Brasil, Uruguai e Argentina, entre outros muitos exemplos.

Assim, com tanta margem para questionamentos quanto à legitimidade de cada Estado em cada região, alimenta-se um grande jogo de poder internacional, no qual as potências regionais (mais marcadamente a Argentina e o Brasil), os demais Estados-jogadores do continente e as potências externas, com interesse e alcance globais (notadamente a Inglaterra e os Estados Unidos), lutavam para alcançar os interesses de seus poderes da maneira como podiam. Neste ínterim litigioso, cre-mos que o conceito de equilíbrio explica parte notável dos fatos e eventos, valendo lembrar a frase de Kenneth Waltz (1988) de que se existe alguma teoria claramente política da política internacional, esta é a do equilíbrio do poder. Através de sua teoria de 1979, de aplicação prática (ainda que restri-ta), George Liska sustenta que os Estados criam e sancionam um equilíbrio nos sistemas em que estão inseridos, distribuindo, de maneira harmônica, “segurança, bem-estar e prestígio, dentro das pré-condições existentes de equilíbrio institucional, político-militar e socioeconômico”. Há que se ressaltar, contudo, que se este processo de ajuste ao equilíbrio de fato essencialmente ocorre, ele não acontece de maneira tão rápida e harmônica, dado a anarquia do sistema em questão.

Na América do Sul, todavia, as consequências da característica anárquica supracitada foram recorrentemente ofuscadas pela dependência que os países nascentes tinham com a Europa e com os Estados Unidos, dependência essa que provavelmente impediu certos conflitos de serem deflagra-dos, uma vez que não possuíam, salvo exceções, o aval dessas potências para ocorrer, e uma vez que a capacidade dos países de promover guerras era sempre restrita, já que o aparato militar dos mesmos era recorrentemente rústico e de efetividade baixa, aumentando os custos econômicos e políticos para solucionar os litígios pelo uso da força. Assim, a frequência acentuada com que os Estados recorreram a arbitragens internacionais para resolver controvérsias ilustra na prática este ponto.

Com esta noção realista da forma com a qual os Estados se relacionam, temos um escopo teórico prático e adequado para compreender a anarquia das relações internacionais sul-americanas entre a segunda metade do século XIX e início do século XX. Basicamente, o equilíbrio pode ser

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dado de muitas formas, podendo representar qualquer distribuição de poder, a assimetria em favor de um país mais poderoso, a constituição de um contrapeso de poder ou, ainda, a política consciente de impedir um poder hegemônico. Assim, era neste panorama geral geopolítico que os Estados recém nascidos da república boliviana e do império brasileiro lutavam para consolidar suas inde-pendências e regimes, além de maximizar seus poderes, estendendo ad maximus o alcance de seus controles sobre territórios e recursos.

2.3 A Revolução Acreana e a Relação Brasil-Bolívia

A partir do ano de 1899, as tensões em torno da posse e ocupação do Acre se intensificam e tomam proporções conflituosas entre a população acreana, o governo boliviano e o governo brasilei-ro. O interregno compreendido nos dois seguintes anos é marcado pelo avanço de forças bolivianas em território acreano e sua respectiva defesa pelos reacionários brasileiros que lá habitavam, estes apoiados pelo governo do Amazonas, que, por sua vez, tinha interesse em expandir suas fronteiras na região. Neste contexto, o governo federal brasileiro se posiciona em apoio às forças bolivianas e em repressão aos revolucionários acreanos, contrariando o princípio de utis possidetis, que há um século e meio era predominantemente adotado pela diplomacia brasileira no que tange a questões fronteiriças.

A geografia, mais que a geopolítica, explica por que os bolivianos jamais conseguiram ocupar o Acre. Os caminhos que separavam La Paz desse território eram longos, demorados e onerosos, exigindo dar uma volta quase completa ao continente ( JÚNIOR, 2003). O crescimento da demanda internacional por borracha e a necessidade de uma saída ao Atlântico pelo Rio Amazonas empenha-ram o Governo Boliviano a mudar de atitude frente à ocupação brasileira no local. Em janeiro de 1899, José Paravicini - Ministro Plenipotenciário da Bolívia no Rio de Janeiro - decide oficializar a posse do território boliviano ao criar o município de Puerto Alonso5 e instalando nesta localidade um posto alfandegário, previamente autorizado pelo Itamaraty, além de abrir, por decreto, diversos rios à navegação estrangeira, negligenciando o fato de alguns trechos destes percorrerem território brasileiro (ALVES, 2005).

Em contrapartida, o Governo Brasileiro insiste em reconhecer que, pelo Tratado de Ayacu-cho, aquelas terras eram incontestavelmente bolivianas e acata as decisões de Paravicini, levando ao estopim de um período de tensões entre 15 mil6 acreanos, apoiados pelo Governo de Manaus, e os

5 Desde a época denominado Porto Acre pela população brasileira.6 Segundo Alves (2005), este é o número de insurgentes que se unem a José Carvalho na primeira insurreição acreana. À

época, conforme Bandeira (2000) sessenta mil brasileiros habitavam a região do Acre.

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governos federais brasileiro e boliviano. Após seis meses de ocupação estrangeira desde a chegada de Paravicini, não havia como conter a revolta dos espoliados. A divulgação de um acordo diplo-mático entre Estados Unidos e Bolívia, no qual constava que o primeiro apoiaria militarmente o segundo em caso de conflito com o Brasil, levou a uma nova insurreição em julho deste mesmo ano, capitaneada por Luiz Galvez Rodrigues de Arias, que proclama, à 14 de julho de 1899, o Estado Independente do Acre (RICARDO, 1954).

A atitude das autoridades brasileiras em apoiar os avanços bolivianos contra o Acre e a insis-tência em conceber razão à nação vizinha pela posse do território é objeto de surpresa e indignação por parte de alguns autores. Como escrevem José de Andrade e Danilo Limoeiro:

“Surpreendentemente, o Governo brasileiro autorizou, em protocolo de

setembro de 1898, a Bolívia a instalar postos alfandegários na região, tida

como litigiosa. (...) Surpreendentemente, mais uma vez, tentou sufocar a

insurreição dos brasileiros que exigiam a posse do território acreano. Enviou,

o Brasil, flotilhas para apoiar o restabelecimento da soberania boliviana na

região, o que foi logrado com a rendição dos insurgentes”. Após uma nova

tentativa de reação ser derrotada, “o Governo Federal cooperou com o esfor-

ço de pacificação, ao criar um consulado no Acre, reconhecendo a soberania

do país vizinho sobre aquela região.” (ANDRADE/LIMOEIRO, 2003)

De fato, o que levou o governo brasileiro a adotar tamanha contraposição a sua herança

política e diplomática, a ponto de remeter forças nacionais e financiar um avanço de tropas estran-geiras contra brasileiros, que há três décadas conquistaram e se estabeleceram naquele território? O período diplomático que se inicia com a Proclamação da República, em 1889, é caracterizado por uma aproximação política e econômica aos Estados Unidos, em detrimento das relações voltadas à Inglaterra praticadas durante o Brasil Império. Quanto às disputas pelo Acre, o Governo Americano já havia, no entanto, declarado sua aliança com a Bolívia caso um conflito entre as duas nações sul-americanas eclodisse. Desta forma, um enfrentamento militar contra as tropas bolivianas (cuja ocu-pação era juridicamente correta, pois o território lhes era posse legal) levaria inevitavelmente a um conflito diplomático contra os americanos, prejudicando o processo de substituição de dependência econômico-financeira brasileira que se desencadeava, de Londres para Washington.

Os EUA, por sua vez, possuíam, em um embate entre Bolívia e Brasil, um excelente pretexto para sua inserção no próspero mercado da borracha. Estavam cientes de que os lucros oriundos da

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exploração de látex seriam mais acessíveis no caso de vitória da nação não estabelecida no local, a qual lhe garantiria oportunidades de exploração na região, visto que não possuíam meios eficazes de fazê-la em grande escala. Uma vitória brasileira (caso o governo houvesse apoiado seus nacionais) tornaria o acesso à matéria-prima desejada muito menos provável, pois haveria de se desmantelar todo um complexo produtivo pertencente aos habitantes locais. Em discurso parlamentar de 19 de setembro de 1900, Rui Barbosa demonstra perfeita visão dos interesses americanos:

“São conhecidas as aspirações da nossa estimável irmã da América do Norte

a respeito da borracha; é notório seu apreço pelo torrão maravilhoso possu-

ído pelo Brasil nas margens amazônicas; são bem conhecidas as transações

ultimamente efetuadas no estrangeiro a respeito de grandes trechos daque-

les vastos e ferocíssimos territórios; e, mais cedo ou mais tarde, dentro de

pouco tempo, talvez fiquemos privados daquelas zonas, as vejamos em mãos

estrangeiras” (Obras Completas de Rui Barbosa, 1951).

No âmbito interno, as oligarquias do Sudeste brasileiro viam na ascensão de grupos produ-tivos no Acre e da borracha na participação econômica do país uma concorrência preocupante. A participação da borracha no conjunto das exportações brasileiras, que era de 10% em 1890, passou a 20% em 1900 e chegou a 40% em 1910. A borracha rivalizava, assim, com o café, cuja participação caíra de 68%, em 1890, para 57%, em 1900, e não passava de 41%, em 1910 (SANTOS, 1980). A estrutura política oligárquica da República Velha pressionaria o Governo Federal a sustentar os in-teresses dos cafeicultores, enquanto o Governo de Manaus e os acreanos atuavam em um ambiente à parte, política e economicamente isolado do resto do país. As aspirações do Governo Federal ao controle dos lucros provenientes da exploração de látex não se concretizariam caso os “barões da borracha” mantivessem tamanha autoridade na região. Além disso, os cafeicultores temiam pela perda de sua influência político-administrativa frente aos detentores da produção de borracha, cuja crescente participação na renda brasileira poderia se refletir em mudanças no cenário político do país (ALVES, 2005).

O governo Brasileiro estava ciente de que os bolivianos tinham poucas condições de con-trolar, manter e desenvolver o território acreano. A Bolívia, por sua vez, enfrentava dificuldades em conter os revoltosos com as próprias forças, o que acarretava em grande ônus militar e econômico, levando-a a aceitar prontamente o apoio estrangeiro. O final do século XIX foi marcado na história brasileira por conturbações sociais em diversos pontos do país, notadamente a Revolução Federalista

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(1893-1895) e a Guerra de Canudos (1893-1897). Ora, uma nova revolta trazia ao Governo Federal reminiscências de conflitos sangrentos e por vezes autonomistas (conquistada na 2ª insurgência acreana), cuja repressão se fazia necessária em prol da unidade política do país. De fato, quando Galvez hasteia a bandeira acreana e proclama a criação do Estado Independente do Acre, tão logo as autoridades brasileiras respondem com o envio de flotilhas à região ( JÚNIOR, 2003).

A repressão das autoridades brasileiras contra a Revolução Acreana, desencadeada em 1899 devido à ocupação autorizada e instalação de Puerto Alonso em território acreano, já era motivo de indignação à época, sendo um de seus principais críticos Rui Barbosa, o qual defendia a opinião de que a ocupação boliviana equivalia a uma invasão ao território nacional brasileiro, argumento re-forçado pela doutrina utis possidetis. Para ele, nunca o governo brasileiro havia tomado uma posição tão contrária à defesa de suas próprias terras, de suas fronteiras e de sua população. Havia, portanto, uma troca de papéis: “É a nação que despreza o seu território à usurpação estrangeira, enquanto as localidades o reivindicam” (OCRB, 1975). A união de fatores como um contexto diplomático de aproximação aos Estados Unidos e a possibilidade de um confronto direto com este país; o isolacio-nismo da região acreana em relação ao centro econômico e político brasileiro; um sistema político baseado no poder da cafeicultura e seu temor frente às revoltas regionais que seguidamente eclodiam no país, fornecem uma base para a compreensão da posição adotada pelo Governo Federal contra a Revolução Acreana.

2.4 O Bolivian Syndicate e a Internacionalização dos Interesses acerca da Questão

do Acre

A questão do Acre aparentemente constituía-se apenas em uma contenda bilateral entre a Bolívia e o Brasil, entretanto, este impasse estava imerso nos entremeios de um tabuleiro estraté-gico muito mais complexo, moldando a nova balança de poder e de interesses que se configurava na América do Sul. Neste contexto, a Bolívia estava em situação de clara desvantagem, ameaçada territorialmente pelo Brasil no Acre, pelo Chile no Pacífico, pelo Peru no Titicaca e pela Argentina no Atacama. Para garantir a continuidade de sua existência, o país andino apelou para a conces-são de parte de seu território legal a uma companhia de capitais essencialmente norte-americanos, acreditando que assim conseguiria o apoio político dos Estados Unidos nos litígios territoriais que enfrentava. A busca do apoio estadunidense não foi fortuita; pelo contrário, foi fruto de um projeto meticulosamente orquestrado por bolivianos e americanos, que visava atender os projetos imperia-listas deste e garantir a segurança territorial daquele.

Neste contexto, em 1901, foi assinado em Londres, o protocolo pelo qual o Acre passaria,

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pelo prazo de 30 anos, à administração do Bolivian Syndicate, uma espécie de companhia colonial privilegiada ou chartered company. Segundo o tratado, seria transferida a plenitude da soberania do Acre ao sindicato, que gozaria de amplos poderes sobre a região, dentre os quais, destacam-se:

1. Direito de explorar economicamente e administrar quaisquer negócios dentro dos limites territoriais do Acre;2. Direito de manter força armada para a conservação da ordem interna;3. Direito de manter força naval para a defesa dos rios;4. Direito exclusivo de comprar, vender e regularizar propriedades na região;5. Direito de navegar livremente nas águas da região concedida. O arrendamento do Acre a uma companhia de capitais essencialmente norte-americanos

preocupou o Brasil e toda a porção sul do continente, em um momento em que ambos estavam des-confortáveis com a expansão imperialista estadunidense na América do Sul. Dentro deste contexto, percebia-se o interesse do presidente Theodore Roosevelt em expandir a sua área de influência para a porção meridional das Américas e em instituir nestes países uma condição de dependência em relação aos Estados Unidos, utilizando as famosas políticas do Big Stick e da Diplomacia do Dólar, como corolário da Doutrina Roosevelt. Contar com autonomia sobre o Acre se constituía em mais um importante passo da diplomacia estadunidense rumo aos seus objetivos imperialistas na região, que ainda presenciaria interferências yankees na Nicarágua, Panamá, Colômbia, Cuba e Porto Rico. Além disso, havia esperanças de que a dominação do Acre poderia vir a facilitar a obtenção da livre-navegação no Rio Amazonas, abrindo-o ao comércio e à exploração, o que já vinha sendo tentado há décadas, porém, sem sucesso (VERA, 2008).

Assim sendo, a diplomacia brasileira, levando em conta a configuração geopolítica da época, interpretou a concessão como uma ameaça à soberania nacional e aos seus interesses na região. Como forma de retaliação, tão logo soube do arrendamento, o Ministério das Relações Exteriores proibiu a navegação de embarcações estrangeiras no Rio Amazonas, inviabilizando qualquer operação do Bolivian Syndicate. Tal episódio gerou protestos na Bolívia, Estados Unidos, Inglaterra, Alemanha e em outros países detentores de capitais da companhia. O Chile acabou mostrando simpatia ao Brasil, já que ambos disputavam territórios com a Bolívia e sabiam que a presença americana na re-gião seria prejudicial aos seus interesses. Em meio à situação de turbulências diplomáticas, a luta no Acre reacendeu-se com um novo levante armado comandado pelo gaúcho José Plácido de Castro.

Dentro deste contexto, em que a questão do Acre atingia o seu clímax, foi que o Barão de Rio Branco assumiu, em 1902, o Ministério das Relações Exteriores. O novo chanceler brasileiro, devido à instabilidade da conjuntura e do episódio de concessão do território, propôs uma nova

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interpretação do Tratado de Ayacucho, modificando imediatamente a orientação até então seguida pelo Brasil, que agora passa a considerar o Acre como uma região brasileira e a negociar em vis-ta de sua incorporação oficial ao território nacional. Assim sendo, a posse de Rio Branco, aliada ao episódio do sindicato, contribuiu para que a diplomacia brasileira mudasse seu ponto de vista, posicionando-se de maneira mais favorável à causa dos insurgentes acreanos, em detrimento da causa boliviana. No momento em que Rio Branco passou e reivindicar aquela região para o Brasil, as instabilidades político-diplomáticas estouraram e o conflito afigurou-se inevitável e iminente (ANDRADE & LIMOEIRO, 2003).

Depois de seis meses de presença militar brasileira, com alguns conflitos neste interlúdio, a Bolívia percebeu que não contaria com o auxílio direto dos EUA e que, portanto, não teria chances contra o Brasil no campo de batalhas. O Bolivian Syndicate também intuíra a impossibilidade de levar adiante o arrendamento do território. Desta forma, percebendo a vantagem brasileira no litígio, a Bolívia, os EUA e a Grã-Bretanha uniram-se e utilizaram da confluência de seus interesses para pressionar o Brasil a aceitar que o impasse fosse levado à arbitragem internacional. Estes países acreditavam que conseguiriam alcançar um resultado mais favorável para si caso fosse utilizado o arbitramento. Rio Branco, por outro lado, também suspeitava que o Brasil seria prejudicado com a arbitragem, já que durante 36 anos o governo brasileiro reconheceu o Acre como sendo boliviano. Em vista disso, a diplomacia brasileira agiu com coerência e evitou o arbitramento, com a finalidade de negociar o litígio de maneira independente e bilateral, primeiramente com o Syndicate e depois com a Bolívia, por acreditar que assim alcançaria os resultados mais favoráveis ( JÚNIOR, 2003). E foi exatamente utilizando esta estratégia que Rio Branco teve o grande mérito de transferir o confronto de um possível campo de batalhas para a mesa de negociações, mérito esse que culminou no Tratado de Petrópolis.

Nesta época, o Bolivian Syndicate percebera que provavelmente jamais conseguiria iniciar as suas atividades e que a Bolívia tampouco poderia indenizar-lhes pela rescisão do contrato, portanto, o sindicato começa a negociar diretamente com o Brasil e a reclamar uma indenização de US$ 1 milhão. Com o passar do tempo, a posição do sindicato foi se enfraquecendo, já que perceberam que jamais conseguiriam efetivar o empreendimento e que as forças militares de Plácido de Castro não seriam vencidas pelo precário exército boliviano. Assim, o sindicato reduziu pela metade a sua pretensão financeira e Rio Branco aquiesceu em pagar US$ 550.000 para os sócios da companhia. A indenização brasileira, apesar de não ser estritamente necessária, já que o contrato era boliviano e que o Syndicate nem estava mais ativo, constitui-se em uma decisão diplomática de grande sucesso. Tal iniciativa mostrou a moralidade do Brasil e sua boa vontade diplomática, causando uma imagem

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positiva perante os governos dos EUA e da Europa. Além disso, e ainda mais importante para o desfecho final do episódio, a indenização tirou de vez os players norte-americanos e europeus do tabuleiro estratégico do litígio acreano, deixando livre o caminho para uma negociação direta entre o Brasil e a Bolívia. Assim, o a diplomacia brasileira atingiu o primeiro de seus objetivos traçados e agora caminharia rumo ao segundo passo – as negociação com a Bolívia (VERA, 2008).

Levando em conta a nova disposição geopolítica do litígio, o presidente boliviano viu-se compelido a aceitar as condições brasileiras. A decisão em acatar a proposta brasileira deu-se levan-do em conta uma confluência de agravantes que, em maior ou menor grau, enfraqueceram a posição boliviana e induziram o governo na sua tomada de decisão. Cabe destacar os seguintes fatores:

1. A Bolívia não conseguiria manter sua soberania sobre a região do Acre, especialmente no momento em que os norte-americanos saíram de cena e as tropas de Plácido de Castro dominavam o heartland da região;2. O Acre nunca foi um território de grande importância para a Bolívia; seus grandes centros populacionais ficavam distantes da região acreana e o ônus para mantê-la seria por demais elevado, especialmente porque conflitos futuros poderiam vir a surgir;3. A Bolívia estava sofrendo ameaças em outros territórios que eram de maior importância estratégica a longo prazo, como a saída para o Pacífico por Antofagasta e a região de Santa Cruz de la Sierra;4. O Brasil estava disposto a negociar diplomaticamente a aquisição do Acre e oferecer uma série de compensações em troca da incorporação do território. De certa maneira, a proposta pode ter soado interessante já que, na prática, a Bolívia detinha uma soberania questionável sob a região.Dadas estas pré-condições, a diplomacia boliviana inclinou-se para um acordo com o Brasil

e, em 1903, o Barão de Rio Branco conduziu as negociações visando alcançar uma solução definitiva. No mesmo ano, Brasil e Bolívia celebraram o Tratado de Petrópolis, mediante o qual o Brasil ficou com a quase totalidade dos territórios da região acreana. Como contrapartida, foi oferecida uma indenização de 2 milhões de libras esterlinas, uma pequena faixa territorial do Mato Grosso e o compromisso de construção da Ferrovia Madeira-Mamoré. O Brasil honrou com todos os compro-missos que adquirira no Tratado de Petrópolis e o desfecho final acabou sendo positivo para ambos os países (ANDRADE & LIMOEIRO, 2003).

A questão do Acre, contudo, ainda continuaria ativa. Ao longo das negociações do Tratado de Petrópolis, o Governo peruano manifestava suas pretensões de participar nos debates e de recla-mar territórios para si. O Barão de Rio Branco, evitando lutar em duas frentes e temeroso de que um

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impasse com o Peru levasse a questão à arbitragem, se comprometeu em resolver posteriormente a questão peruana. Somente depois da assinatura do Tratado de Petrópolis, o ministro se voltou para as demandas do Governo de Lima, que reclamava territórios cedidos pela Bolívia ao Brasil ainda no Tratado de Ayacucho. O governo peruano enviou tropas para os territórios demandados, recebendo a recusa peremptória de negociação por parte do Barão de Rio Branco enquanto as tropas peruanas se mantivessem na região. Dessa forma, por ordens do Presidente Rodrigues Alves, foram deslo-cadas tropas para a região ocupada com ordens de atacar, caso as tropas peruanas não se retirassem (VERA, 2008).

O governo peruano, entre 1907 e 1908, se mostrou disposto a dar fim à querela, solicitando reparação financeira ao Brasil, assim como havia sido feito em relação à Bolívia. O pedido foi ne-gado por Rio Branco, ao declarar que, diferentemente da Bolívia, os peruanos não possuíam títulos de terra e não haviam firmado com o Brasil nenhum acordo que lhes concedesse quaisquer direitos sobre o território acreano. O Ministro brasileiro estabeleceu, assim, uma proposta de cessão ao Peru de uma área triangular formada pelos rios Curanja, Santa Rosa e Purus (ALVES, 2005). Finalmente, em setembro de 1909, o Ministro das Relações Exteriores do Peru, Hernán Velarde assinou com o Barão de Rio Branco, sigilosamente, o Tratado do Rio de Janeiro, que cedeu ao Peru uma área de 40.000 km² e permitiu ao Brasil a ampliação definitiva do seu território em 152.000 km², encerran-do, finalmente, a Questão do Acre.

3 Considerações finais

A Questão Acreana, que aparentava ser apenas uma contenda bilateral entre Bolívia e Brasil, era, entretanto, um impasse imerso nos entremeios de um tabuleiro estratégico muito mais comple-xo, moldando a nova balança de poder e de interesses que se configurava na América do Sul. Neste contexto, a Bolívia estava em situação de clara desvantagem, ameaçada territorialmente pelo Brasil no Acre, pelo Chile no Pacífico, pelo Peru no Titicaca e pela Argentina no Atacama.

No que tange aos conflitos entre o Governo Federal brasileiro e os insurgentes acreanos nos anos de 1899 e 1900, nota-se uma série de fatores que levaram o primeiro a assumir posição de apoio à Bolívia e repressão contra seus nacionais. O contexto externo indica uma aproximação aos Esta-dos Unidos, declaradamente aliados à Bolívia nesta questão, e que haviam identificado na próspera região uma forma de inserção no rentável mercado da borracha. No âmbito interno, o isolacionismo político do Acre, frente a um sistema de poder oligárquico baseado na produção de café e ao tu-multuado ambiente revolucionário do país no final do século XIX, levou as autoridades brasileiras a prontamente repreender a nova insurgência. Para garantir a continuidade de sua existência, a Bolívia

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apelou para a concessão de parte de seu território legal a uma companhia de capitais essencialmente norte-americanos, acreditando que assim conseguiria o apoio político dos Estados Unidos nos lití-gios territoriais que enfrentava. A busca do apoio estadunidense não foi fortuita; pelo contrário, foi fruto de um projeto meticulosamente orquestrado por bolivianos e americanos, que visava atender os projetos imperialistas deste e garantir a segurança territorial daquele.

Fica claro, portanto, que a Questão Acreana além de ter sido fundamental para a ampliação e configuração atual do território brasileiro, fruto do brilhantismo político e diplomático do Barão de Rio Branco e de Rui Barbosa, foi marcada por uma inflexão da posição brasileira em relação ao território acreano com a criação do Bolivian Syndicate. Antes do surgimento desta companhia o Bra-sil interpretava a região acreana como sendo parte legal do território soberano de Sucre, pressionado ainda pelo contexto político interno e externo. Com o surgimento da possibilidade de instalação de uma companhia essencialmente norte-americana na região, o Brasil vê a sua soberania territorial, bem como seus interesses econômicos, ameaçados pela expansão imperialista estadunidense que se alastrava pelo continente. É nesse momento, portanto, que o Governo brasileiro altera suas consi-derações acerca do território em disputa, firmemente reivindicando sua posse legal nas negociações internacionais.

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Referências

ALVES, Flávia Lima. “O Tratado de Petrópolis: Interiorização do conflito de fronteiras”. www.buscalegis.ufsc.br/revistas/index.php/buscalegis/article/viewFile/22127/21691 (Consultado em 14-22/05/2010).

ANDRADE, José & LIMOEIRO, Danilo. (2003). “Rui Barbosa e a Política Externa Brasileira: Considerações Sobre a Questão Acreana e o Tratado de Petrópolis (1903)”. In: Revista Brasileira de Política Internacional, nº 001.

BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz (2000). “O Barão de Rothschild e a questão do Acre”. In: Revista Brasileira de Política Internacional, nº 002.

JÚNIOR, Geraldo Mesquita. “O Tratado de Petrópolis e o Congresso Nacional”. http://www.senado.gov.br/web/senador/geraldomesquita/Textos/trat.pdf. (Consultado em 12-30/05/2010).

BARBOSA, Rui (1975). Obras Completas de Rui Barbosa. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura/Fundação Casa de Rui Barbosa.

RICARDO, Cassiano (1954). O Tratado de Petrópolis. vols. I e II. Rio de Janeiro: Ministério das Relações Exteriores.

SANTOS, Roberto (1980). O. História econômica da Amazônia: 1800-1920. São Paulo: T. A. Queiroz.

TURNER, Frederick Jackson (1996). The frontier in American History. New York: Dover Publications.

VERA, Cristián Garay (2008). “El Acre y los Asuntos del Pacífico: Bolivia, Brasil, Chile y Estados Unidos, 1898-1909”. In: Historiano, vol. 41..

VERA, Loreto Correa & VERA, Cristián Garay (2007). “Bolivia en dos frentes: las negociaciones de los tratados de acre y de límites con Chile”. In: Revista Universum, vol. 1.

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KLEBER ANTONIO GALERANI1

Política Externa do governo Juscelino Kubitschek: a Operação Pan-Americana

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Resumo

O artigo aborda a Operação Pan-Americana (OPA) no contexto da política externa brasileira (PEB) do governo de Juscelino Kubitschek ( JK). Inicialmente, faz-se um resumo dos antecedentes da OPA, de seu desenvolvi-mento e de seus resultados. Posteriormente, analisa-se a operação para apon-tar suas limitações e contribuições, mostrando como nesse período se deu o aprofundamento de um dos princípios norteadores da PEB contemporânea: o multilateralismo.

Palavras-chave: Operação Pan-Americana. Política Externa Brasilei-ra. Multilateralismo.

Abstract

This article presents Operation Pan America (OPA) in the context of the Brazilian foreign policy of Juscelino Kubitschek´s government. Initially, it is summarized the history, the development and the results of this operation. Subsequently, we analyze the operation to discuss their limitations and con-tributions, showing how was the deepening process of developing one of the guiding principles of Brazilian contemporary foreign policy: multilateralism.

Keywords: Operation Pan America. Brazilian Foreign Policy. Mul-tilateralism.

1 Introdução

A política externa do governo Juscelino Kubitschek (1956-1961) pode ser dividida em dois períodos. De 1956 a 1958, no qual há a predominância do alinhamento automático aos EUA; e de 1958 a 1961, no qual, com o lançamento da OPA, há a revisão desse alinhamento (CALDAS, 1996:187). Nesse artigo será analisado o segundo período, mais especificamente a OPA e seus resultados.

No contexto da política externa brasileira (PEB), a OPA sinalizou o

1 Mestrando em Relações Internacionais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e graduado na mesma área pela Universidade Estadual Paulista (UNESP) – [email protected].

“Dois temores afligiam os setores internos que resistiam à OPA”.

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aprofundamento de um dos principais princípios que norteiam a atuação contemporânea do Brasil nas relações internacionais: o multilateralismo. Entretanto, apesar da importância histórica desse período constata-se que há uma parca bibliografia analítica sobre esse ele. A despeito da expansão da área de Relações Internacionais no Brasil, ocorrida nas duas últimas décadas, a política externa de JK e, mais especificamente, a OPA, foram pouco exploradas pela academia.

Para atingir o objetivo proposto o artigo está estruturado em três partes. No primeiro, serão abordados os antecedentes conjunturais e estruturais da OPA. No segundo, tratar-se-á do lança-mento, dos princípios e da recepção interna da operação. Por fim, discorrer-se-á sobre o seu desen-volvimento, os obstáculos enfrentados e os seus resultados.

1.1 Os antecedentes da formação de uma conjuntura favorável

O lançamento da OPA em 1958 é resultado da criação de uma conjuntura interna e externa favorável. No âmbito interno, JK assumiu a presidência em 1956 e buscou acelerar o desenvolvimen-to do país por meio do Plano de Metas. Devido ao ambicioso objetivo de crescer economicamente “cinqüenta anos em cinco”, a política externa de JK esteve a serviço do desenvolvimento interno. No âmbito externo, gestava-se a deterioração das relações entre EUA e América Latina. A situação chegou ao seu auge após a desgastante visita do vice-presidente norte americano Richard Nixon a região. Após esse acontecimento, JK propôs a revisão da relação EUA – América Latina.

Quando JK assumiu a presidência, em 1956, lançou uma política econômica conhecida como nacional-desenvolvimentista. Essa expressão sintetiza uma combinação entre Estado, empresa privada nacional e capital estrangeiro para a promoção do desenvolvimento (FAUSTO, 2009:427). Devido à forte influência das idéias dos teóricos da Comissão Econômica para América Latina (CEPAL), entendia-se que o desenvolvimento seria atingido após se completar o ciclo do processo de substituição de importações.

Juscelino utilizou-se da política externa para lograr o objetivo desenvolvimentista interno. Duas tendências foram marcantes desde o início da política externa de JK: a reformulação do ideal pan-americanista, dando-lhe uma conotação econômica; e a atuação preferencialmente pelos órgãos multilaterais (CALDAS, 1996:191), uma vez que as relações bilaterais com EUA não geravam os resultados esperados.

Nos fóruns hemisféricos2 de 1956 e 1957, o governo brasileiro atuou em defesa da tese de que era necessário o desenvolvimento econômico da América Latina para se atingir a segurança.

2 Tome-se como exemplo as reuniões do Conselho Interamericano de Representantes Presidenciais (CIRP), ocorridas em 1956 e 1957; e na Conferência Econômica de 1957.

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Nesse sentido, reivindicou a criação de um organismo multilateral “para evitar as bruscas oscilações a que estavam submetidos preços das matérias-primas exportadas pela América Latina” (CALDAS, 1996:191)3 e de “uma agência latino-americana para financiar com capital público norte-americano a industrialização latino-americana” (IBIDEM). O governo norte-americano, entretanto, resistiu às propostas brasileiras.

Após o fim do Plano Marshall, em 1951, os governos latino-americanos esperavam por algu-ma forma de apoio norte-americano ao desenvolvimento da região, no entanto a prioridade dos EUA continuou a ser a Europa e a Ásia. A América Latina possuía um papel secundário na política externa estadunidense, tanto no campo estratégico, quanto no campo econômico (SILVA, 1992:212).

A partir do segundo mandato do presidente norte-americano Eisenhower (1957-1961), iniciou-se uma mudança de conjuntura. No contexto global, iniciou-se a política de coexistência pacífica entre a URSS e os EUA. A competição estratégico-militar foi gradualmente substituída pela econômico-tecnológica, contribuindo para enfraquecer a legitimidade da estratégia político-militar dos EUA entre os países da América Latina. No contexto interno, a rigidez política e eco-nômica com que os EUA tratavam os Estados latino-americanos preocupava alguns setores da administração Eisenhower. Esses defendiam uma maior flexibilização e um maior compromisso do governo norte-americano com o desenvolvimento latino-americano, já que os incentivos da URSS aumentaram após a criação de um programa de ajuda econômica aos países subdesenvolvidos. No contexto latino-americano, o apoio norte-americano aos governos ditatoriais, que foram posterior-mente derrubados pelo processo de redemocratização, contribuiu substancialmente para desgastar a imagem da administração Eisenhower. (SILVA, 1992:216-7)

Um acontecimento-chave contribuiu para formar a conjuntura propícia para Juscelino pro-por a revisão da relação EUA – América Latina. Em 1958, durante a viagem que o vice-presidente norte-americano Richard Nixon fez à América Latina, ficou claro o grau de deterioração da relação entre os EUA e os demais países da região. Nixon enfrentou contundentes manifestações populares no Peru e na Venezuela. O incidente gerou grande repercussão nos EUA, bem como nos demais países latino-americanos. A conjuntura favorável às demandas brasileiras estava formada. Criou-se a oportunidade para o governo Juscelino pleitear a revisão da relação com os EUA e da política interna de alinhamento automático a superpotência norte-americana, desenvolvida desde o fim da 2ª Guerra Mundial.

3 Destaca-se o trabalho dos teóricos cepalinos que demonstraram matematicamente o perverso mecanismo de deterioração dos termos de troca, que reduzia as receitas de exportação e, conseqüentemente, a capacidade dos Estados latino-americanos impor-tarem máquinas e bens de capital, essenciais para uma perspectiva de desenvolvimento baseada na industrialização.

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2 Desenvolvimento

2.1 O lançamento da operação, os princípios e a recepção interna

A OPA foi lançada após uma troca de cartas entre JK e Eisenhower. Em maio de 1958, aprovei-tando-se da conjuntura favorável, JK enviou uma carta à Eisenhower em que lamentou os acontecimen-tos ocorridos na visita de Nixon e sugeriu a revisão das relações interamericanas e do pan-americanismo. Na correspondência, JK disse que ainda não elaborara um “plano detalhado para esse objetivo, mas idéias que, posteriormente, pode[ria] expor”, se houvesse ocasião (CHDD, 2007:211). A resposta de Eise-nhower, apesar de cautelosa, não desestimulou Juscelino a elaborar o detalhamento de suas idéias num discurso aos embaixadores de todos os Estados americanos em junho do mesmo ano. Nele JK lançava oficialmente a OPA (SILVA, 1992:219). O objetivo central da operação era o combate ao subdesenvol-vimento econômico dos países latino-americanos, por isso a ênfase na necessidade de revisão das relações entre os EUA e a América Latina.

Em detrimento de um pan-americanismo que fora desde a Doutrina Monroe um instrumento de hegemonia dos EUA, por meio da OPA Juscelino advogava por um movimento pan-americanista que servisse de instrumento para superação do subdesenvolvimento pelos países sul-americanos. Segundo as palavras de JK era necessário “transformar o pan-americanismo em realidade viva, numa política de ardente fraternidade e de indestrutível unidade continental” (CHDD, 2007:215).

Para lutar contra o subdesenvolvimento, o governo JK buscou a vinculação entre desenvolvimen-to econômico e seguridade hemisférica. A tese do governo brasileiro era que o subdesenvolvimento lati-no-americano propiciava o avanço e o fortalecimento do socialismo. Dessa forma, era necessário, assim como foi feito na Europa, um investimento maciço de capitais para a superação do subdesenvolvimento.

Destaca-se que a OPA foi uma iniciativa pessoal de Juscelino e de sua equipe, sem consulta ao MRE (SILVA, 1992:221). Por essa característica enfrentou forte resistência de alguns setores do Itamaraty, principalmente do chanceler José Carlos Macedo Soares, que acabou sendo substituído por Francisco Negrão de Lima. A forma como a OPA foi gestada e lançada rompeu com o proto-colo, ainda que a Presidência afirmasse não ter existido qualquer transgressão “dos procedimentos consagrados pela chancelaria brasileira”. Juscelino e sua equipe chegaram a afirmar que

“se algo foi violado... esse algo foi a rotina e a inércia, que se apoderam

de qualquer organismo através da repetição dos mesmos esquemas, o con-

formismo na maneira de sentir, pensar e agir, que ocasionam a perda de

contato com a realidade e dificultam uma pronta e adequada adaptação a

contingências novas”. (CHDD, 2007:259)

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Dois temores afligiam os setores internos que resistiam à OPA. Por um lado havia o receio de que as relações bilaterais com os EUA fossem prejudicadas e, por outro, o de que a operação fosse interpretada pelos demais Estados latino-americanos como um projeto de pretensão de liderança ou hegemonia do Brasil (SILVA, 1992:221). Percebe-se, então, que os setores tradicionalistas resistiam tanto à transição do bilateralismo para o multilateralismo, como à revisão da política de alinhamento automático aos EUA, vigente desde o pós-Segunda Guerra Mundial.

2.2 O desenvolvimento, os obstáculos e os resultados da OPA.

A OPA pode ser dividida em três fases. A primeira, que se inicia em maio e se encerra em setembro de 1958, é caracterizada pela direção pessoal de Juscelino e pela diligência do Brasil em comunicar aos embaixadores e aos presidentes dos demais países latino-americanos as motiva-ções e os objetivos da operação, tanto bilateralmente quanto multilateralmente (SOUZA E SILVA, 1960:50). A segunda fase se inicia com a reunião em que ficou decidida a criação do Comitê dos 21 e se encerra com a Revolução Cubana. A terceira e última fase se inicia com a Revolução Cubana e se encerra com a Ata de Bogotá.

Na primeira fase, algumas mudanças de posicionamento dos EUA foram apresentadas pelo Brasil como conquistas da OPA. As principais delas foram o apoio à criação de uma instituição fi-nanceira para o desenvolvimento econômico; a não oposição à política de estabilização de preços dos produtos primários e à formação de mercados regionais latino-americanos; e o aumento do volume de empréstimos públicos, por meio de instituições como o Eximbank e o Banco Internacional para a Reconstrução e o Desenvolvimento (BIRD) (SILVA, 1992:222).

A segunda fase se caracteriza pela transição da atuação individual brasileira para o multila-teralismo do Comitê dos 21. No final do ano de 1958, o governo norte-americano convocou uma reunião informal com os chanceleres das repúblicas americanas. O Brasil utilizou essa oportunidade para propor aos EUA e aos demais países à criação da Comissão Especial do Conselho da OEA para a Formulação de Novas Medidas de Cooperação Econômica, mais conhecida como Comitê das 21 Repúblicas Americanas. A criação do organismo foi aceita pelos EUA, entretanto não da forma que o Brasil requisitou: desvinculado da OEA.4 Os demais países também apoiaram a idéia brasileira e a comissão foi constituída (SILVA, 1992:223)

Nas reuniões do Comitê dos 21 realizadas em Washington, entre novembro e dezembro de 1958, e em Buenos Aires, em maio de 1959, as divergências entre a delegação brasileira e norte-

4 No entendimento do governo brasileiro, a desvinculação traria maior flexibilidade e autonomia ao órgão, já que ele não estaria sob a tutela direta da burocracia institucional da OEA, cuja liderança era norte-americana.

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americana se acirraram. O Brasil, assim como fizera desde o lançamento da OPA, lutava por um programa de desenvolvimento de longo prazo, com a fixação de uma agenda mínima para as reuni-ões e o estabelecimento de metas quantitativas. Entretanto, os EUA minavam a iniciativa multila-teralista brasileira por meio da proposição de soluções bilaterais e imediatistas, considerando cada problema individualmente (Idem, 224).

Além da intransigência norte-americana, a falta de unidade dos países latino-americanos contribuiu para a escassez de resultados no período. Conforme aponta o relatório elaborado pelo Brasil sobre as reuniões, os países latino-americanos pareciam não compreender os “verdadeiros objetivos da Operação Pan-Americana e o seu alcance; [tinham] receio de que o Brasil estivesse, no fundo, em busca de prestígio internacional, sob o pretexto de consolidar o pan-americanismo” (SILVA, 1992:224). A despeito das divergências entre Brasil e EUA, havia a suspeita de que a OPA “fosse, na realidade, um conchavo entre os dois maiores países do continente, para atenuar as conseqüências do incidente Nixon e salvar a face do pan-americanismo” (Ibidem). Assim, diante de todos esses obstáculos, o único resultado tangível do período foi a criação do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).

A Revolução Cubana marca o início da terceira fase, pois foi um ponto de inflexão no relacionamento entre os EUA e os países latino-americanos. Cuba representava a ameaça socialista dentro do continente. Assim, a tese brasileira era coerente: o subdesenvolvimento poderia levar à penetração das idéias socialistas na América Latina. Como bem observou um analista da época “a voz do ‘fidelismo’ e o que ele representa[va] em reformas sociais e na instigação à revolução social apresenta[va] aos povos uma alternativa atraente àquilo que eles não possu[íam]” (UPTON, 1961:50). Dessa forma, urgia a necessidade de mudança da política norte-americana para a Amé-rica Latina.

Diante da nova conjuntura favorável, o Brasil conseguiu que as reuniões do Comitê dos 21 fossem retomadas. O governo brasileiro aproveitou a visita de Eisenhower ao país, no início de 1960, para propor a retomada dos trabalhos. Os EUA não só aceitaram prontamente a proposta brasileira, como também trabalharam para diminuir os antagonismos na relação bilateral entre os dois países.

Em face da nova conjuntura e da ascensão do candidato John Kennedy nas pesquisas à pre-sidência dos EUA,5 os sinais de flexibilização do governo Eisenhower eram crescentes. No mesmo ano, em uma reunião da OEA, os EUA anunciaram a intenção de criação de um fundo de US$ 600 milhões para projetos de desenvolvimento social na América Latina.

5 A revisão do relacionamento entre EUA e América Latina era uma das propostas da campanha de Kennedy.

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A reunião do Comitê dos 21 na cidade de Bogotá, em setembro de 1960, foi marcada pela expressiva atuação reivindicatória das delegações brasileira e cubana. O governo brasileiro levou uma pauta ampla, com objetivo de vincular os EUA a se comprometerem com o desenvolvimento latino-americano. A delegação cubana exerceu uma forte pressão discursiva na reunião. Schmidt, o chefe da delegação brasileira, apesar das diferenças ideológicas, agradeceu o ministro das relações exteriores cubano pela atuação de seu país (ALVES, 1960:4).

Na ata final da reunião, conhecida como Ata de Bogotá, as principais propostas brasileiras foram aprovadas, contemplando os objetivos de desenvolvimento econômico numa perspectiva de longo prazo e o estabelecimento de metas quantitativas. A ata também compreendeu as iniciativas norte-americanas de inclusão do tema do desenvolvimento social na agenda latino-americana (SIL-VA, 1992:228).

A Ata de Bogotá é considerada o ponto de máximo alcance da OPA. Ante a posição norte-americana de expandir a agenda brasileira ao conjugar o tema do desenvolvimento econômico ao desenvolvimento social, as relações entre EUA e a América Latina chegaram a um novo estágio. A Ata era um prelúdio da Aliança para o Progresso, que seria lançada após a vitória de Kennedy nas eleições presidenciais (SILVA, 1992:229).

Além de ter aberto caminho para o lançamento da Aliança para o Progresso, a criação da Associação Latino-Americana de Livre Comércio (ALALC) também é um resultado indireto da OPA. O novo enfoque multilateralista da política externa do governo Juscelino possibilitou a apro-ximação dos três maiores países latino-americanos: a Argentina, o Brasil e o México. Dessa apro-ximação nasceram iniciativas para estudar a possibilidade de criação de um organismo econômico multilateral para superar as limitações impostas pelos reduzidos mercados nacionais. Assim, em fe-vereiro de 1960 foi criada a ALALC, cujo objetivo principal era avançar no processo de substituição de importações, estimulado por um mercado regional ampliado (CALDAS, 1996:193).

3 Considerações finais

A política externa de JK alterou significativamente a inserção internacional do Brasil. Afir-mou o multilateralismo como uma importante forma de atuação internacional do país; rompeu, após o lançamento da OPA, com o alinhamento automático aos EUA, vigente desde o fim da 2ª Guerra Mundial (CALDAS, 1996:200); e consagrou JK como o estadista que soube aproveitar a conjuntura favorável para propor a revisão da relação EUA – América Latina.

Ao formular e implantar a OPA, o governo de JK trouxe uma nova perspectiva de inserção para o Brasil. Num contexto de Guerra Fria em que o conflito Leste-Oeste dominava a agenda, o

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governo de Juscelino chamou a atenção para uma situação que prejudicava diretamente os países subdesenvolvidos: o conflito Norte-Sul. Nesse sentido a política externa de JK foi a precursora da Política Externa Independente.6 Apesar de muito criticado pelos poucos resultados práticos da OPA, o governo de JK teve o mérito de rever o alinhamento com EUA e consolidar o multilatera-lismo como uma nova forma de atuação da política externa brasileira.

6 Desenvolvida entre 1961 e 1964, nos governos de Jânio Quadros e João Goulart, a PEI possuía um caráter pragmatista, pois buscava os interesses do país sem preconceitos ideológicos, ou seja, afirmava que o Brasil não estava preso ao conflito Leste-Oeste (CERVO & BUENO, 1992:278-320).

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Referências Bibliográficas

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CERVO, Amado Luiz & BUENO, Clodoaldo (1992). História da Política Exterior do Brasil. São Paulo: Editora Ática.

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RAMPINELLI, Waldir José (2007). “A política internacional de JK e suas relações perigosas com o colonialismo português”. In: Revista Lutas Sociais, v.17/18, pp.3-98.

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SOUZA E SILVA, Celso A. de (1960). “Operação Pan-Americana: antecedentes e perspectivas”. In: Revista Brasileira de Política Internacional, ano 3, nº 10, pp.1-58.

TORRES, Garrido (1960). “Operação Pan-Americana: uma política a formular”. In: Revista Brasileira de Política Internacional, ano 3, nº 10, pp.3-50.

UPTON, T. Graydon (1961). “Operação Pan-americana – o catalisador oculto?” In: Revista Brasileira de Política Internacional, ano 4, nº 14, pp.8-69.

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UALLACE MOREIRA LIMA1

Inserção externa e crescimento econômico: quais os argumentos anti-liberais?

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Resumo

O artigo analisa a importância conferida aos ramos industriais de alta tecnologia no processo de crescimento econômico, em sua relação com o comércio internacional. Abordando de início os argumentos liberais que desconsideram a especialização produtiva e comercial como causa de desen-volvimento econômico desigual, o artigo recupera a seguir alguns argumentos institucionalistas e evolucionistas que, desde List, afirmam que a especializa-ção em alta tecnologia importa para o ritmo de crescimento da produtividade e para a superação de restrições externas ao crescimento.

Palavras-chave: Comércio Exterior, Bens de Capital, Desenvolvi-mento Econômico, Teorias do Comércio Internacional.

Abstract

The paper analyzes the importance accorded to the high technology in-dustry sector in the process of economic growth, in its relation to international trade. Considering at first liberal arguments that disregard productive and com-mercial specialization as a cause of unequal economic development, the paper discusses then some institutionalist and evolutionist arguments which, since List, stress that high technology specialization matters for the rate of increase of pro-ductivity and for the surmount for foreign exchange restrictions to growth.

Word-keys: Trade, Capital Goods, Economic Development, Theo-ries of International Trade.

1 Doutorando em Desenvolvimento Econômico – Área de concentração em História Econômi-ca - pelo Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (IE/UNICAMP). Mestre em Desen-volvimento Econômico pelo Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (IE/Unicamp). Bacharel em Ciências Econômicas pela Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal da Bahia (FCE/UFBA).

Artigos completos publicados em periódicos:1. LIMA, Uallace M.; OLIVEIRA, I. T. M. . O relativo otimismo acerca da conjuntura econômica internacional e a continuidade dos excelentes resultados das exportações brasileiras no pri-meiro semestre de 2005.. Conjuntura & Planejamento, Salvador - BA, v. n. 135, p. 06-12, 2005. 2. LIMA, Uallace M.; MOURA, A. P. Entre escolhos e marés, prossegue o ritmo de recupera-ção da atividade industrial brasileira. Conjuntura & Planejamento, Salvador - BA, v. n. 125, p. 18-23, 2004. 3. LIMA, Uallace M. Globalização FinanceiraxDemocracia. revista eletrônica www.economia-br.net, 2003. E-mail: [email protected]

“A idéia de um país se especializar na produção do bem que ele tem maior dotação fatorial faz com que um país rico em terra produza alimentos, de modo que ele vai ser designado como terra-intensivo”.

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1 Introdução

O artigo tem como objetivo analisar a importância conferida aos ramos industriais de alta tecnologia no processo de crescimento econômico, em sua relação com o comércio internacional. Em linhas gerais, há dois modos oposto de relacionar crescimento econômico e especialização pro-dutiva e comercial. De um lado, a tradição liberal utiliza diversos argumentos e instrumentos analí-ticos para alcançar uma mesma conclusão: que o livre-comércio induz agentes econômicos a alocar recursos de modo a especializar países de acordo com perfis de eficiência produtiva desiguais mas complementares, levando-os a maximizar a riqueza das nações (ou o benefício dos consumidores), dados os recursos e capacitações existentes.

De outro lado, autores de diversas tradições anti-liberais alegam que a existência de espe-cializações produtivas diferenciadas tende a provocar interações comerciais assimétricas, com efeito desigual sobre a capacidade de geração de riqueza e acumulação de capacitações produtivas entre os países. Por isto, políticas de Estado vieram e devem vir a influenciar a alocação de investimentos de modo a buscar modificar a especialização produtiva e comercial legada por recursos e capacitações pré-existentes. Neste sentido, as políticas vieram e devem especialmente buscar desenvolver ramos industriais de alta tecnologia, ou pelo menos elevar o grau de intensidade tecnológica da especializa-ção produtiva nacional, propiciando ganhos de produtividade e competitividade que não resultariam espontaneamente do livre-comércio.

O primeiro item, a seguir, discute argumentos típicos da tradição liberal. O segundo item aborda argumentos institucionalistas e evolucionistas que criticam teoricamente e procuram refutar empiricamente o liberalismo econômico, e o último item faz considerações finais.

1.1 Os pressupostos liberais

A teoria liberal do comércio internacional nasceu com o elogio da divisão do trabalho e a crítica do protecionismo feitos por Adam Smith em A Riqueza das Nações, de 1776. Segundo ele, quanto mais desenvolvida fosse a divisão do trabalho, mais especializado e eficiente seria o trabalho, e mais rica a nação. Como o aprofundamento da divisão do trabalho dependeria da extensão dos mercados, quanto mais abertos os mercados nacionais, mais ricas seriam as nações integradas pelo comércio. No célebre cap. II do livro IV d´ A Riqueza das Nações, Smith alega que os indivíduos buscariam continuamente a aplicação mais vantajosa de seu capital (ou de seu trabalho), e teriam melhores condições do que estadistas ou legisladores de julgar por si mesmos qual o tipo de ativida-de nacional desenvolver. Outorgar o monopólio do mercado interno em qualquer ofício equivaleria a orientar pessoas particulares sobre como empregar seus capitais. Se o preço do produto nacional for

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mais elevado do que o importado, a norma seria necessariamente prejudicial: se um país estrangeiro estiver em condições de fornecer uma mercadoria a um preço mais baixo do que o da mercadoria fabricada internamente, seria melhor comprá-la com uma parcela da produção da própria atividade local, empregada de forma em que se aufira alguma vantagem. De nada interessaria se as vantagens que um país leva sobre outro sejam naturais ou adquiridas, pois a atividade da sociedade só poderia aumentar na proporção em que aumenta seu capital, e este só aumentaria na proporção em que se puder aumentar o que se poupa gradualmente de sua renda. Como o efeito imediato de todas as restrições às importações seria diminuir a renda do país, o que diminui essa renda não aumentaria o capital da sociedade mais rapidamente do que teria aumentado espontaneamente, caso se tivesse deixado o capital e a atividade encontrarem seus empregos naturais.2

Especializações determinadas por vantagens de custo de produção; livre concorrência alo-cando da melhor forma os recursos; complementaridade e harmonia na distribuição dos ganhos do comércio, independentemente do teor da especialização nacional: os grandes temas anunciados por Smith foram reelaborados mas nunca rejeitados pela tradição liberal que fundou. Já no início do século XIX, David Ricardo alegaria que as relações comerciais entre nações ocorreriam segundo o princípio das vantagens comparativas, e não absolutas: os países exportariam (importariam) bens produzidos onde trabalho fosse relativamente mais (menos) eficiente, de modo que o comércio seria favorável mesmo para um país que fosse mais (menos) eficiente em todas as linhas de produção.3

A rejeição da doutrina do valor trabalho pela revolução marginalista não questionou o cerne da teoria das vantagens comparativas. A teoria neoclássica do comércio internacional foi desen-volvida por Eli F. Heckscher e aprimorada por Bertil G. Ohlin.4 A idéia central é que o comércio internacional é explicado pelas diferenças de dotação de fatores de produção entre os países, isto é, os países tendem a exportar (importar) bens cuja produção dependa da abundância (escassez) de terra, trabalho e capital. A crítica dos autores suecos ao modelo clássico de Ricardo era a de que não bastava explicar a troca internacional pela lei dos custos comparativos, era necessário explicar porque os custos comparativos existiam. Para isto, seria necessário integrar ao fator trabalho os fatores terra e capital combinados em cada linha de produção: dadas as diferenças fatoriais entre os países, o co-mércio ocorreria até que o preço marginal dos fatores de produção fosse equalizado. Simplificando a apresentação com recurso a apenas dois fatores (terra e trabalho), dois produtos e dois países, o

2 SMITH, Adam. “An Inquiry Into The Nature And Causes Of The Wealth of Nations”. 1776.3 RICARDO, David. “On The Principles of Politicas Economy And Taxacion”. Third Edition, 1821. 4 HECKSCHER, Elin F. The Effect of Foreign Trade Theory of International Trade. In: ELLIS, H. S.; METZLER, L. A. (Eds) Rea-

dings on The Theory of International Trade. Londres: George Allen and Unwin Ltd, 1950, p. 272-300 (1919); OHLIN, Bertil G. Interregional and International Trade. Boston: Harvard University Press, 1933.

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conjunto de supostos para legitimar o livre-comércio tornou-se formalmente mais rigoroso: a) o modelo é baseado em uma estrutura de mercado de concorrência perfeita nos mercados de bens e de fatores de produção; b) as funções de produção são similares entre as nações envolvidas no comércio internacional, diferentes entre os setores produtivos e apresentam rendimentos constantes de escala (isso implica em que a variação na produção é exatamente igual à variação na utilização de todos os insumos); c) há livre mobilidade dos fatores de produção entre os setores produtivos, mas entre os países não existe livre mobilidade, com os preços totalmente flexíveis; d) os produtos e os fatores são homogêneos em ambos os países.

A idéia de um país se especializar na produção do bem que ele tem maior dotação fatorial faz com que um país rico em terra produza alimentos, de modo que ele vai ser designado como terra-intensivo. Em contrapartida, um país rico em trabalho irá se especializar na produção de tecidos e será caracterizado como trabalho-intensivo. Essa classificação distingue bem o padrão de comércio internacional estabelecido pela teoria de Heckscher-Ohlin. Vale apenas ressaltar que quando se re-fere ao termo abundância de fatores, está-se falando em termos relativos, de tal forma que nenhum país será abundante em todos os fatores de produção. Neste sentido, o intercâmbio de mercadorias é uma troca indireta de fatores de produção, até que o preço destes fatores seja equalizado.

O que podemos observar é que mantidas as hipóteses fundamentais da ortodoxia clássica e neoclássicas - concorrência perfeita, pleno emprego, funções de produção estáveis e iguais entre empresas/países (difusão livre e imediata de tecnologia) e retornos constantes de escala – os padrões de especialização relativa de cada país conformam-se através de ajustamentos em preços e quan-tidades, sem alterar o nível setorial ou global de utilização de recursos – ou melhor, sem alterar o nível da renda. Isso significa dizer que o comércio internacional interfere na alocação intersetorial de recursos, quantidades e preços, sem afetar o nível da atividade econômica, acarretando ganhos de comércio para todos os participantes.

Mais recentemente, propuseram-se abordagens dos impactos das economias de escalas e da concorrência imperfeita no comércio mundial, com a mesma conclusão favorável à liberaliza-ção comercial. Um dos autores mais conhecidos dessa linha de pensamento é o economista norte-americano Paul Krugman. A idéia básica é a de que geralmente as indústrias são caracterizadas por operarem em economia de escala ou com rendimentos crescentes e que as economias de escalas podem ser internas (dependendo do tamanho da firma) ou externas (dependendo do tamanho da indústria). Além do mais, segundo essa teoria, o comércio não necessita ser resultado das diferenças das vantagens comparativas (KRUGMAN; OBSTFELD, 2001). De certo modo, este argumento restaura a defesa smithiana das vantagens do livre comércio, graças à relação entre a divisão do

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trabalho e a extensão dos mercados. A integração comercial permitiria a ampliação dos mercados, das escalas de produção e da divisão do trabalho, permitindo o aprofundamento complementar de especializações eficazes internacionalmente, ainda que iniciadas “aleatoriamente”.

Os pressupostos utilizados na teoria de economia de escala são basicamente os mesmos trabalhados no modelo neoclássico, onde há uma relação 2x2x2, isto é, dois fatores de produção (capital e trabalho), dois países e dois produtos comercializados. No entanto, segundo esse modelo, a diferença em relação ao modelo neoclássico reside no fato de que a estrutura de mercado teoriza-da é diferente. A estrutura de mercado era antes considerada como em concorrência perfeita, que trabalha com rendimentos constantes, já no modelo de economia de escala, a estrutura de mercado predominante é a concorrência imperfeita que opera com rendimentos crescentes de escala. A idéia é a de que em uma estrutura de mercado em que as firmas apresentam economia de escala, pode existir economia de escala externa (que ocorre quando o custo por unidade produzida depende do tamanho da indústria, e não necessariamente do tamanho de qualquer firma) e economia de escala interna (quando o custo por unidade produzida depende do tamanho de uma firma individual, e não precisamente de toda a indústria.

A conseqüência da economia de escala é o colapso da concorrência perfeita, de modo que o modelo mais adequado para analisar o comércio é o mercado de concorrência imperfeita. Krugman e Obstfeld mostram que segundo a idéia das economias de escala, cada país deve concentrar-se na produção de um número limitado de bens, pois com os países produzindo uma quantidade reduzida de produtos, cada um poderá produzir em uma escala maior do que se tentasse produzir uma maior variedade de bens. Sendo assim, o comércio internacional possibilita que cada país produza uma variedade restrita de bens que proporcione a obtenção de vantagens de economia de escala sem sacrificar a variedade de consumo, de tal forma que o comércio internacional amplia a variedades dos bens disponíveis no mercado. A análise do modelo de concorrência monopolística deixa em evi-dência que as empresas ao se inserirem no comércio internacional, ampliando o mercado mundial, proporcionarão maiores ganhos de escala e uma maior variedade de produtos ofertados no comércio, com um equilíbrio de preços no longo prazo mais benéfico ao consumidor. Logo, a conclusão básica do modelo de economia de escala é a de que o comércio internacional é positivo para o desenvol-vimento econômico das nações na medida em que ele amplia e integra o mercado, proporcionando ganhos para todos os países envolvidos.

Em suma, independentemente das versões do argumento liberal ou da “nova teoria do co-mércio internacional” com o pressuposto de economias de escalas e da concorrência imperfeita no comércio mundial, alega-se que as diferenças internacionais não implicariam em assimetrias mas

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em complementaridades mutuamente vantajosas: os ganhos de comércio resultantes seriam distri-buídos em um jogo de soma positiva, de forma que os ganhos de uns não seriam feitos (na ausência de externalidades) às custas das perdas de outros. Mesmo aqueles deslocados pela concorrência com importados poderiam se especializar, a maior ou menor prazo, em linhas de produção e exportação mais vantajosas que antes. A longo prazo, portanto, o comércio internacional não afetaria o nível de emprego de recursos entre os países, mas apenas sua alocação inter-setorial, aumentando a renda real graças aos ganhos de especialização.

2 Desenvolvimento

2.1 Argumentos anti-liberais na análise do comércio internacional

A despeito da coerência lógica do argumento liberal, vários estudos refutaram empiricamen-te a assertiva de que o perfil da estrutura produtiva e a especialização comercial não contam substan-cialmente para o desempenho econômico relativo, exigindo que questionemos as suposições teóricas do liberalismo econômico. Se quisermos entender o modo como as diferentes formas de especiali-zação produtiva e inserção comercial influenciam o desempenho econômico relativo dos países, é necessário contrapor à visão liberal a constatação de que o comércio não afeta apenas a alocação de recursos, mas também os diferenciais internacionais de crescimento da renda. E explicar porque a diversidade de especializações e/ou de competitividade nas mesmas especializações “conta” para ex-plicarem diferenciais de crescimento e, ademais, porque as políticas dos Estados nacionais “contam” para definir a distribuição dos ganhos e perdas envolvidas nas interações econômicas internacionais.

Sendo assim, tirante considerações doutrinárias, é necessário reconhecer que o padrão de comércio internacional é marcado por assimetrias, não apenas herdadas mas também construídas ao longo do tempo. Uma linha teórica que tem apresentado e ganhado demasiada consistência na análise do comércio internacional, tendo como um das principais questões analisar os impactos das mudanças tecnológicas no comércio internacional é a chamada teoria evolucionária ou institucional.

Após a Segunda Guerra Mundial, a economia mundial passou por grandes transformações de ordem estrutural, principalmente em relação à indústria – com relevantes conseqüências para o setor de alta tecnologia - momento este em que as mudanças tecnológicas implicaram em uma profunda necessidade de um novo paradigma teórico para uma maior compreensão do comércio internacional, pois ficava em evidência que o mercado é um locus de confronto e de rivalidade entre agentes, onde se exerce relações de poder, poder este conferido pela apropriação (privada) de vanta-gens absolutas de custo e/ou qualidade, onde a fonte de dinamismo do sistema econômico capitalista é a constante criação e recriação de assimetrias entre as unidades econômicas, assimetrias resultantes

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da apropriação de vantagens absolutas (de custo e /ou qualidade). Logo, a força motriz básica da ge-ração de vantagens absolutas no processo concorrencial (e, portanto, da criação de assimetrias entre os agentes) é a inovação. Mediante essas transformações, ficavam nítidas as deficiências teóricas dos modelos clássicos, neoclássicos e da nova teoria do comércio internacional de economia de escala e concorrência imperfeita, já que seus pressupostos básicos não respondiam aos desafios e mudanças que o mundo real estava atravessando.

Nos inúmeros trabalhos de autores da corrente teórica institucionalista, como Archibugi e Michie (1997) e (1998), Dosi et alli (1990), os autores citam a importância do trabalho do eco-nomista alemão Friedrich List, o qual elaborou fortes críticas ao pensamento clássico já no século XIX, levando em consideração as assimetrias que predominavam no comércio internacional, prin-cipalmente com relação as diferenças tecnológicas entre as nações. Para o economista alemão, a economia clássica, deixando de levar em consideração os interesses nacionais conflitantes, ignora completamente o caráter hierárquico do comércio internacional, ao defender que o livre comércio seria o melhor caminho para levar todos os países ao mesmo estado de natureza de bem estar. O autor afirmava que “enquanto outras nações continuarem a subordinar os interesses da humanidade como um todo aos seus interesses nacionais, é loucura falar de livre concorrência entre indivíduos de nações diferentes” (LIST, 1983, p. 120).

Ainda segundo o autor, a divisão do trabalho reflete a atividade humana que produz bens materiais ou valor de troca que proporciona aumento do capital material de uma nação. No entanto, as forças produtivas têm como base o trabalho intelectual, a produção do conhecimento humano como variável de caráter produtivo, o que implica na teoria das forças produtivas elaborada por List, a qual está relacionada a todo desenvolvimento de descobertas, invenções e progresso tecnológico, dando ao conhecimento grande importância para promover o desenvolvimento econômico das na-ções, fato este que se contrapõe ao pensamento clássico que considera o trabalho meramente físico como a única força produtiva. Logo, segundo o autor, o atual estado das nações é o resultado do acúmulo de todas as descobertas, invenções, melhorias, aperfeiçoamento e atividades de todas as gerações passadas.

De acordo com o autor acima mencionado, o mais importante em reconhecer a importância das forças produtivas como variável chave no desenvolvimento econômico das nações, é que ela implica em uma forte atuação do Estado na economia no sentido de promover fortes investimentos na infra-estrutura do país, com o objetivo de desenvolver o setor manufatureiro (no período o setor de alta intensidade tecnológica), de modo que ele possa se inserir no comércio internacional de forma mais competitiva. Veja que a teoria das forças produtivas está estritamente relacionada com o

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surgimento e fortalecimento da industrialização, fazendo uma clara distinção entre o poder que um país com o domínio do setor manufatureiro tem no comércio internacional em relação a um país concentrado na produção de produtos primários, evidenciando a importância da industrialização para um país alcançar maior autonomia nas relações internacionais. Além do mais, conforme o autor citado, a economia política internacional deve reconhecer a relevância das políticas e do poder político nas relações entre as nações, e não tentar negar como fazia a teoria clássica, pois isso é de fundamental importância para a compreensão do papel exercido pelas forças produtivas nas relações do comércio exterior.

Com a idéia de forças produtivas, List deixa claro que o livre comércio não proporciona o desenvolvimento das nações sem a formulação de políticas públicas no sentido de proteger a indústria nascente, setor este essencial para um país alcançar uma melhor inserção externa. Deste modo, para o autor, a industrialização era um fator fundamental para que as economias lograssem uma maturação econômica, de tal modo que para as nações, ainda em estágios menos avançados, uma política protecionista seria um instrumento necessário para os países expandirem suas forças produtivas com o desenvolvimento da manufatura. O autor deixava claro que não reconhecer a im-portância das forças produtivas como mecanismo fundamental para o desenvolvimento econômico, em detrimento da crença na teoria dos valores de troca dos clássicos, seria não reconhecer o poder das manufaturas numa economia. Sendo assim, List afirmava que “uma nação que troca produtos agrícolas por artigos manufaturados estrangeiros é um indivíduo com um braço só, sustentado por um braço estrangeiro” (LIST, 1983, p.113).5

A análise do comércio mundial, segundo a teoria da economia política internacional mo-derna, deixa claro que as relações entre as nações são baseadas em um sistema internacional onde as situações de conflito permanente entre os países provocam uma situação de equilíbrio instável, essa situação de conflito é provocada pelo interesse das nações em ter maior poder econômico e político no cenário mundial. Isso deixa claro a fragilidade do modelo clássico, no qual a divisão internacional do trabalho se assenta em um mercado de concorrência perfeita e livre circulação dos fatores de pro-dução e não intervenção do Estado, tendo em vista que o Estado sempre exerceu papel fundamental no desenvolvimento econômico das nações.

Outra observação plausível é perceber que a forma como os modelos clássicos e neoclássicos

5 É importante observar que as idéias de List durante o século XIX, representam um grande avanço para a discussão sobre comércio internacional, na medida em que ele defende uma política de proteção para a indústria nascente com forte presença do Estado na economia, em contraposição à idéia de livre concorrência e não interferência do Estado apresentada pelos modelos clássico e neo-clássico. Outra contribuição relevante é o reconhecimento das perdas no comércio sofridas pelos países que produzem bens primários e trocam por produtos manufaturados (mais tarde denominada como deterioração dos termos de troca).

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são apresentados parece implicar em uma naturalização das relações do comércio internacional, isto é, o país quando inserido no comércio exterior, especializado na produção de um determinado bem, não teria condições de transformação ou mudança em sua posição estabelecida pelo padrão de co-mércio internacional quando orientado pela teoria das vantagens comparativas e de dotação fatorial. Na verdade, o que fica em evidência é uma relação estática das relações do comércio internacional segundo os dois modelos apresentados.

Para Dosi, Pavitt e Soete, (1990), uma das principais deficiências da teórica clássica e ne-oclássica reside no fato de considerar as mudanças tecnológicas como uma variável exógena ao sistema econômico e com isso não compreender que as transformações tecnológicas e inovações são propriedades inerentes ao processo econômico. Para estes autores, o relaxamento (ainda que parcial) das hipóteses menos realistas, quais sejam: concorrência perfeita, retornos constantes de escala, mobilidade de fatores, difusão livre e imediata de tecnologia e funções de produção, em mo-delos de extração neoclássica, implica em indeterminações relativas à direção e volume do comércio internacional. Este parece ser o dilema das tentativas de relaxamento de modelos de ortodoxos: uma vez introduzidas alterações em seus pressupostos básicos - na tentativa de incorporar contribuições teóricas da heterodoxia econômica (menos afeita a construções axiomáticas puras e mais preocupada com a aderência de suas hipóteses ao mundo real, ainda que com perda da elegância formal) -, estes modelos perdem sua consistência e, ao fazê-lo, também seu poder explicativo.

Para Dosi et alli (1998), os modelos clássicos e neoclássicos estão assentados em pressupostos teóricos heróicos, como a redução dos indivíduos ao conceito de agente econômico racional repre-sentativo, as diferenças tecnológicas entre os países podendo ser adequadamente representadas por uma função de produção e uma estrutura de mercado de concorrência perfeita regida pelo laissez faire, a qual sempre tende a um equilíbrio econômico de Walras, através da mão invisível do mercado. Segundo os autores, esses pressupostos são marcados por fortes inconsistências teóricas por não levar em consideração que as expectativas racionais não podem ser vistas como estacionárias em um sistema econômico que está em constantes transformações. As mudanças dos padrões tecnológicos e institu-cionais exigem um modelo teórico que propicie a compreensão de um comércio internacional marcado pelas assimetrias de natureza tecnológica, inovações, ambiente competitivo e organizacional entre os países, fatores estes que tem como conseqüência um ambiente dinâmico e, concomitantemente, incerto para os agentes econômicos. A tecnologia não pode ser reduzida a livre informação gratuita disponível no mercado, pelo contrário, cada paradigma tecnológico tem sua forma específica, ordenado, cumula-tivo e são padrões de mudanças técnicas irreversíveis, com cada país tendo sua especificidade (fato este que origina fortes diferenciações de inserção entre os países no comércio internacional).

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Kaldor (1972), (1977) e (1981) elabora sua crítica à ortodoxia econômica, no campo do comércio internacional, concentrando-se basicamente em três de suas hipóteses fundamentais, quais sejam: existência de funções de produção iguais e conhecidas para todos os agentes, ou seja, a tec-nologia e a eficiência na sua exploração são iguais; concorrência perfeita; e retornos constantes de escala - funções de produção são lineares e homogêneas para todos os processos de produção. O autor defende duas hipóteses fundamentais: 1. a existência de diferenciais nas elasticidades-renda da demanda entre vários produtos/setores, às quais se associam capacidades distintas de geração de renda e emprego; 2. a existência de retornos crescentes de escala (associados a economias de escala estáticas e dinâmicas).

Em relação à primeira hipótese, Kaldor (1972), (1977) e (1981) estabelece uma relação causal entre inserção setorial de cada economia e seu potencial de geração de renda e emprego recu-perando a versão dinamizadora do multiplicador de comércio exterior de Harrod, que associa a taxa de crescimento da renda àquela das exportações (componente autônomo da demanda), dividida pela elasticidade de renda das mesmas. Neste sentido, e através da operação dos efeitos multiplicador e acelerador neo-keynesiano, a elasticidade de renda das exportações aparece, neste referencial teórico, como a variável-chave que vincula a demanda (neste caso, o seu componente externo), à geração da renda. Da mesma forma, a condição de equilíbrio de comércio exterior envolve não somente as elas-ticidades-renda associadas às exportações efetuadas mas também aquelas às importações realizadas.

Assim, e dado que se postulam, de um lado, a relativa estabilidade das cestas de consumo (e baixas elasticidades de substituição entre produtos) e, de outro, a heterogeneidade das elasticidades-renda da demanda dos diferentes produtos que vão compor as pautas de exportação e importação, a variável de ajuste entre as importações e exportações de cada economia é o seu nível de renda e emprego e não os preços e a quantidade. Neste sentido, Kaldor (1972), (1977) e (1981) enfatiza duas proposições básicas: 1. a dependência das variações das importações relativamente às variações da renda real; e 2. a elasticidade-renda das exportações como elemento fundamental na explica-ção do crescimento das exportações e a habilidade inovativa como fator básico na definição destas elasticidades-renda.

Para Kaldor (1972), (1977) e (1981), a crítica primordial que deve ser formulada é em re-lação à hipótese de concorrência perfeita, só sustentável a partir da premissa de retornos constantes de escala. As implicações dinâmicas do abandono desta hipótese – o que conduz, adicionalmente, ao abandono da hipótese de igualdade das funções de produção – são bastante exploradas na chamada literatura institucionalista. As assimetrias entre os agentes como móvel de mudança (endógena ao sistema) é, de fato, uma proposição fundamental comum a todos estes autores.

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As hipóteses e críticas elaboradas por Kaldor são formas de apresentar e evidenciar melhor o argumento cepalino (de grande relevância para os países da América Latina) sobre a restrição exter-na dos países latino-americanos na época do crescimento primário-exportador, dado que predomina uma relativa inelasticidade-renda das exportações periféricas de bens primários e, simultaneamente, alta elasticidade-renda de suas importações de manufaturados.

Os trabalhos da Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (CEPAL), tendo como dos principais representantes Raul Prebisch, tem como uma das maiores contribuições a iden-tificação da existência de deterioração nos termos de troca entre os países centrais e os periféricos, o que tornava evidente que o comércio mundial não estava sendo favorável ao desenvolvimento dos países da periferia da América Latina. A solução, portanto, seria um profundo processo de industria-lização dos países da periferia através do processo de substituição de importações .

Prebisch (2000) identifica nas relações internacionais entre os países do centro e da periferia uma desigualdade de produtividade nas trocas comerciais, de tal forma que ficava evidente a não distribuição eqüitativa dos frutos do progresso técnico. Segundo Prebisch (2000), com a elevação da produtividade na indústria através do progresso técnico, deveria haver uma redução dos preços dos produtos manufaturados mais do que proporcional aos preços dos produtos primários, já que a elevação da produtividade reduz os custos de produção. Caso isso acontecesse, as teorias clássica e neoclássica estariam corretas e os benefícios do comércio internacional atingiriam todas as nações de forma eqüitativa. No entanto, não foi isso que ocorreu, pois se observa que a elevação da pro-dutividade nos países centrais não teve como contrapartida a redução dos preços relativos dos bens manufaturados, pelo contrário, se elevaram proporcionando maiores ganhos para os países mais desenvolvidos e aumentando a renda dos empresários e dos fatores produtivos dessas nações.

Para Prebisch(2000), um dos motivos para a natureza do desequilíbrio no comércio interna-cional reside no fato de que o progresso técnico reduziu a proporção em que os produtos primários intervêm nos valores dos produtos finais e isso teve como conseqüência uma redução da demanda global por produtos primários. Por outro lado, a demanda por produtos industrializados tem uma forte tendência a aumentar. O autor afirmava que as importações de produtos primários tendem a crescer menos proporcionalmente do que a renda real, o que demonstra que a elasticidade renda da demanda dos produtos primários é menor do que 1, ou seja, na medida em que a renda aumentar, a demanda por produtos primários tende a crescer menos que proporcionalmente. O contrário ocorre com os produtos industrializados, pois a elasticidade renda da demanda é maior do que 1, de tal forma que na medida em que a renda aumentar haverá um aumento mais que proporcional da demanda por estes bens. Isso tem fortes implicações para os países da periferia da América Latina,

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que tem sua produção concentrada em produtos primários e uma pauta importadora baseada em bens industrializados.

Segundo o autor, isso ocasionava uma deterioração dos termos de troca entre os países de tal forma que provocava um desequilíbrio de renda entre o centro e a periferia, pois os países periféricos sofriam uma profunda desigualdade nos termos de troca na medida em que tinham que importar produtos industriais e, por outro lado, exportava fundamentalmente produtos agrícolas. Portanto, Prebisch afirmava que as exportações dos países periféricos se mostravam insuficientes para suprir as suas necessidades de importações, as quais vinham crescendo cada vez mais (PREBISCH, 2000, p. 73). O Autor defende a industrialização substitutiva dos países periféricos como um mecanismo de mudar a composição da pauta de importações e exportações e, conseqüentemente, elevar a sua renda através da dinâmica do progresso técnico. Desta forma, o desequilíbrio do balanço de pagamentos agravado pela deterioração dos termos de troca nas relações comerciais seria atenuado, diminuindo a vulnerabilidade externa dos países periféricos.

A apresentação das teorias do comércio internacional deixa em evidência que as relações intra-estatal e interestatal não são marcadas pela perfeita harmonia, mas sim em relações de poder e dominação, além de se constatar que na economia mundial predominam estruturas de mercado al-tamente concentradas, com as inovações e a P&D exercendo forte influência nas formas de inserção externa de cada nação. Para Nelson (1993), as mudanças estruturais ocorridas na economia mundial estão estritamente relacionadas com a elaboração de Sistemas Nacionais de Informações que são específicos para cada países, levando em consideração as suas peculiaridades, mas sempre com o objetivo comum de avançar no progresso tecnológico e inovações que propiciem uma melhor inser-ção no comércio exterior. O autor afirma que há um novo espírito de “Techno-Nationalism”, onde há uma forte crença nas capacidades tecnológicas das empresas nacionais como aspecto chave para lograr poder de competitividade, aliada com a convicção de que os recursos necessários estão en-volvidos em um sentimento nacional que podem ser construídos por ações nacionais. Dois aspectos chaves desse novo espírito é o fato de que na economia moderna mais tecnologias estão associadas a diferentes áreas das ciências que os iluminam e orientam, oferecendo inestimável entendimento e técnica aos esforços para avançar na tecnologia. Concomitantemente, os esforços de inovação quase sempre envolvem um grande elemento de tentativa e erro no processo de aprendizagem.

Para Ostry e Nelson (1995), as instalações de P&D, formadas por equipes de cientistas, universitários e engenheiros, interligados a empresas, universidades e/ou agências governamentais são os principais veículos e atores institucionais que proporcionam a emersão de novos produtos originados do avanço tecnológico. Essa constatação de Ostry e Nelson apenas confirma a idéia de

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que as vantagens competitivas das nações no comércio internacional são criadas e não herdadas. A afirmação acima fica mais clara ainda quando observamos Archibugi e Michie (1997)

apontando para o fato de que os sistemas de tecnologia são também definidos por elevado nível de concentração industrial, barreira à entrada, alta intensidade de P&D industrial e constantes métodos utilizados para garantir os retornos das inovações. Nesse sentido, é primordial notar a existência de assimetrias entre as nações no comércio internacional, na medida em que a literatura consultada evidencia que as vantagens competitivas são construídas e cumulativas.

É importante salientar aqui – para uma melhor compreensão da natureza da construção e acumulação de vantagens competitivas - quais são as características dos setores de alta tecnologia e quais suas implicações, como bem lembram Archibugi e Michie (1998). Os grupos de produtos de alta tecnologia estão relacionados naqueles que incorporam, diretamente, ou indiretamente, através dos bens intermediários utilizados na sua produção, relativa intensidade em Pesquisa e Desenvol-vimento (P&D) em seus insumos. Outras características comuns são igualmente importantes na definição das vantagens competitivas das empresas na produção e comércio de produtos de alta tecnologia: i) o efeito cumulativo de vantagem inovadora, caracterizada por íngremes curvas de aprendizagem com significativa dinâmica das economias de escala, ii) a capacidade de Geração de economias externas positivas, em termos de hard-to-appropriate com repercussões de uma atividade para outra; iii) ambiente das estratégias oligopolistas , em um número pequeno de grandes empresas interdependentes concorrem através do comércio e do investimento transnacional.

Nas indústrias com estas características, a vantagem relativa de um país vis-à-vis outros países, resulta não só das diferenças nacionais em relação às vantagens de dotação fatorial, mas como a teoria e a evidência empírica sugerem e confirmam, é também uma função do diferencial tecno-lógico, conhecimento e capacidade, que são criados e reproduzidos através do tempo. Nas últimas décadas, indústrias de alta tecnologia tem sido o foco de preocupação especial para os governos de todos os grandes países. Uma variedade de razões econômicas está por trás dessa preocupação: i) as indústrias de alta-tecnologia são responsáveis por grandes e crescentes ações de comércio e investimento nos setores industrializados; ii) as indústrias de alta-tecnologia estão muitas vezes na origem de importantes inovações tecnológicas, com os prováveis benefícios de transbordamento das inovações limitando-se aos níveis do comércio intra-indústria e inter-indústria; iii), a maioria das empresas de alta-tecnologia são de indústrias de alta produtividade e pagam salários mais elevados do que outros setores produtivos.

Quando Dosi et alli (1989) analisam a história da industrialização japonesa, afirmando que o desenvolvimento econômico é fundamentalmente fruto das mudanças e do progresso tecnológico

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(progresso tecnológico que é uma variável endógena ao sistema capitalista e não exógena como pressupõe a teoria clássica e neoclássica), o autor associa necessariamente o desenvolvimento tecno-lógico ao conhecimento, o qual é cumulativo e uma variável que gera fortes ganhos nas vantagens competitivas entre as nações. O autor chama atenção para o fato de que uma parte importante do conhecimento tecnológico desenvolvido não escoa facilmente para outras nações, pois tais conheci-mentos são acumulados por empresas e/ou nações sob a forma de trabalhadores qualificados e direi-tos de patentes que dificultam a cópia de Know-How. O resultado desse quadro é que a elaboração de estratégias no direcionamento da política tecnológica e de inovações, com reflexos nos conflitos comerciais entre países, dado que existem assimetrias entre as nações, não se limitam apenas a re-sultados de perdas e ganhos em um determinado período curto de tempo, o que está em jogo são futuros ganhos e perdas de potencial dinâmico de crescimento e vantagens futuras nas mudanças tecnológicas e no comércio internacional.

Um fato primordial no processo de internacionalização da alta tecnologia, com alta con-centração nos países desenvolvidos é a importância das empresas multinacionais nas atividades tecnológicas e no jogo do comércio internacional. Umas das principais estratégias das empresas multinacionais é a cooperação empreendida com governos e comunidades científicas, com o objetivo de ampliar de forma substancial as atividades em P&D e registro de patentes para lograr maiores degraus no processo de inovações e progresso tecnológico. Archibugi e Pianta (1992) constatam que a internacionalização da tecnologia e do crescimento da especialização setorial dos países e das grandes empresas tem conduzido, ao longo da década de 1980, a um novo modelo de cooperação em atividades inovadoras tanto através das fronteiras como também entre diferentes instituições – tais como centros de pesquisa de ciência e tecnologia, indústria e agências governamentais. Os três principais aspectos da estratégia cooperativa são: 1) a cooperação internacional entre as empresas; 2) o desenvolvimento de programas de alta tecnologia combinando os esforços dos diferentes agentes; e 3) uma maior colaboração internacional entre os cientistas.

A evidência empírica parece sugerir que as mudanças em termos de competitividade no comércio de alta tecnologia constituem em tendências de longo prazo. Tais mudanças ultrapassam os limites das políticas macroeconômica e/ou flutuações cambiais, cabendo aos fatores estruturais um forte papel. Obviamente que em uma economia mundial marcada pelo comércio de alta tecno-logia, cabe aos governos nacionais um papel relevante, com novas formas de intervenção pública na tentativa de corrigir as assimetrias que preponderam no comércio internacional.

As atividades da comunidade científica, as empresas e as agências governamentais propi-ciam a emersão de um conjunto específico de instituições e regulamentações técnicas que regula-

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mentam e direcionam a natureza e a direção das constantes mudanças nos padrões tecnológicos. Em alguns países, o governo financiou instituições, laboratórios públicos e universidades que cooperam com o setor empresarial; em outros países, as empresas criam sua própria rede para compartilhar know-how e as informações técnicas. O montante dos recursos mobilizados, os setores industriais escolhidos para se tornarem os campeões nacionais são aqueles direcionados à inovação, a importân-cia do setor militar, o tipo de instituição envolvida, bem como os critérios de seleção de inovações (custo, desempenho, qualidade, etc) são todos fatores críticos na definição do desempenho nacional e tecnológico do estilo.

Portanto, a nação não é um fator irrelevante nesse processo de internacionalização da tec-nologia, de modo que o Estado ainda exerce papel crucial na atividade econômica através da imple-mentação de política de inovações, incluindo política industrial, programa de alta tecnologia, polícia de comércio exterior, em síntese, elaboração de um Sistema Nacional de Inovações que tenha como objetivo primordial propiciar aos países grandes avanços no progresso tecnológico para acompanhar as mudanças constantes que ocorrem na internacionalização da tecnologia.

Independentemente dos posicionamentos pró ou contra as intervenções do Estado na eco-nomia, um fato inquestionável é a importância que o setor de bens de capital tem no desenvolvimen-to tecnológico e nas inovações, de tal forma que se torna um dos ramos industriais mais importantes na estrutura industrial de qualquer país, principalmente quando se observa sua relevância para pro-piciar uma melhor inserção no comércio exterior. Fajnzylber (1983) afirma que para se compreender o crescimento e a internacionalização do progresso técnico e das inovações, é demasiadamente im-portante analisar a dinâmica da indústria de bens de capital.

O autor afirma que a magnitude e a estrutura interna do setor de bens de capital é um fator de muita importância para a análise da dinâmica industrial, pois a sua condição de portador do pro-gresso técnico exerce influência nas modificações que experimenta a produtividade da mão-de-obra e dos investimentos, em conseqüência, da competitividade internacional das economias nacionais. O funcionamento do setor produtor de bens de capital exerce influência nos fatores institucionais, tais como nas relações entre o setor público e o setor privado, assim como na internacionalização do setor industrial. Em boa medida, a indústria de bens de capital constitui no fio condutor para a reflexão sobre a especificidade que adotam o sistema industrial nacional. Particularmente, a magni-tude da sua presença e comportamento marca uma das diferenças fundamentais entre as economias industriais avançadas e as semi-industrializadas, em especial nos países da América Latina. Além do mais, a indústria de bens de capital produz um efeito multiplicador relevante que se tem efeito de difusão para todos os níveis da economia, tais como na qualificação de mão-de-obra e elevação da

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produtividade em todo o resto dos setores industriais e, por conseqüência, ganho de competitividade no comércio internacional.

3 Considerações finais

A discussão elaborada chama a atenção para os seguintes pontos:a) há ramos cujas exportações crescem ao longo do tempo a uma taxa maior que o comércio

internacional, enquanto em outros o inverso é verdadeiro: ceteris paribus, os países especializados em ramos mais dinâmicos desfrutam de melhores perspectivas de crescimento da renda que outros, estimulados pelo multiplicador do gasto e relativamente menos vulneráveis a restrições cambiais;

b) outra maneira de distinguir as perspectivas de crescimento é avaliar a elasticidade-renda das exportações e importações: países especializados na exportação de bens de demanda fortemente elástica e na importação de bens de demanda relativamente inelástica têm melhores perspectivas de crescimento, e vice-versa;

c) em especial nos ramos de exportações industriais líderes do crescimento comercial mun-dial, as vantagens competitivas são construídas por economias de escala estáticas e/ou dinâmicas (aprendizado e inovação); as especializações resultam da construção de vantagens absolutas, e as barreiras à entrada de novos concorrentes tendem a ser cumulativas e crescentes, pelo menos até que novas oportunidades de diferenciação de produto e processo esgotem-se e transfiram-se para novos ramos; esta característica fortemente construída e cumulativa da competitividade difere da exploração de vantagens comparativas “estáticas” dependentes de recursos naturais e baixos salários, em sub-setores (industriais ou não) cujo crescimento em valor ao longo do tempo é menor que o do comércio internacional;

d) a característica fortemente construída da competitividade nos ramos industriais articula as condições de demanda e de oferta, à medida que a elasticidade-renda das exportações depende de economias de escala e de inovatividade de produto/processo; com isto, a polarização internacio-nal entre países exportadores de bens de alta elasticidade-renda e os demais associa-se a perfis de liderança inovativa construída e cumulativa que, uma vez iniciada, é dificilmente reversível em um quadro de livre comércio;

e) a característica construída e polarizada dos efeitos distributivos dos padrões de compe-titividade e especialização e sua tendência à cumulatividade é uma justificativa (e não apenas uma explicação) para a virtual ubiqüidade da intervenção de Estados na competição comercial interna-cional, através de políticas comerciais, industriais e tecnológicas ativas e, às vezes, reestruturantes; de fato, se as políticas de Estado podem constituir-se em uma vantagem competitiva nacional em

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condições em que estas vantagens não são simplesmente herdadas mas construídas e reconstruídas, a competição econômica internacional tende a confundir-se, em parte, com a competição inter-estatal voltada a influenciar os termos e resultados do comércio internacional — inclusive através de pres-sões diplomáticas; desta maneira, a capacidade diferencial dos Estados em favorecer as exportações locais na disputa por parcelas de mercado e promover especializações prospectivamente vantajosas é outra fonte de assimetrias. Neste sentido, o que importa é saber quais tipos de orientações, insti-tuições e articulações políticas favorecem a expansão de market shares e especializações produtivas internacionalmente virtuosas e quais as desfavorecem — ao invés de verificar quais “respeitam” e quais “desrespeitam” os critérios liberais de eficácia inferidos de uma presumida dotação estática/natural de fatores;

f ) finalmente, como resultado do padrão diferenciado e assimétrico de competitividade e especialização internacional, do montante e composição da participação dos países nos fluxos de comércio, se distribuiriam limites/estímulos ao crescimento: ao longo do tempo, restrições cambiais ao crescimento são, ceteris paribus, mais esperadas em países cujas exportações perdem parcelas de mercado para concorrentes e/ou que importam bens de maior elasticidade-renda que suas exporta-ções (e vice-versa).

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BRUNO GOMES GUIMARÃES1

BRUNO MAGNO2

MARCELO KANTER3

RAONI FONSECA DUARTE4

SÍLVIA C. SEBBEN5

Os países centro-asiáticos e as grandes potências mundiais: um estudo das relações exteriores desde as suas independências

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Resumo

A região da Ásia Central configura-se como sendo de grande impor-tância estratégica para as relações internacionais de diversos países. Tendo estado sob a influência russa durante os anos de existência da União Soviética, os países centro-asiáticos passaram por uma série de mudanças desde a queda do regime soviético, sendo influenciado tanto por potências ocidentais, como os Estados Unidos e a União Europeia, quanto por potências vizinhas, como a China e a própria Rússia. O objetivo do presente artigo é o de observar como a influência de tais potências estrangeiras na Ásia Central mudou desde o fim da União Soviética em busca de um padrão que ajude a periodizar as relações exteriores dos países centro-asiáticos com relação a essas potências estrangeiras.

Palavras-chave: Ásia Central; China; Rússia; OTAN.

Abstract

The Central Asian region is a place of great strategic importance for the international relations of many countries. Having been under Russian influence during the years of existence of the Soviet Union, the Central Asian countries have been through a series of changes since the fall of the soviet re-gime, being influenced by Western powers, such as the United States and the European Union, and by neighbor powers, such as China and Russia itself. The goal of this article is to observe how the influence of these foreign powers in Central Asia has changed since the end of the Soviet Union in search of a pattern that helps timing the external relations of Central Asian countries with relation to these foreign powers.

Keywords: Central Asia; China; Russia; NATO.

A pesquisa para o artigo foi realizada com o apoio do UFRGS Model United Nations 2010.1 Graduando do 7º semestre do curso de Relações Internacionais, UFRGS2 Graduando do 5º semestre do curso de Relações Internacionais, UFRGS3 Graduando do 3º semestre do curso de Relações Internacionais, UFRGS4 Graduando do 5º semestre do curso de Relações Internacionais, UFRGS5 Graduando do 7º semestre do curso de Relações Internacionais, UFRGS

“(...) aqueles países que mostravam mais compromisso para com os objetivos americanos, tais como Quirguistão e Cazaquistão, aprofundaram suas relações com os EUA”.

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1 Introdução

A grande região conhecida como Ásia Central, que atualmente compreende Cazaquistão, Quir-guistão, Tadjiquistão, Turcomenistão e Uzbequistão, ao longo da história jogou um importante papel nas relações internacionais e na manutenção, ou desequilíbrio, de um modelo de sistema internacional. Essa região teve um papel de protagonismo nas relações internacionais desde a antiguidade como uma das rotas de comércio mais lucrativas do mundo, ligando o Extremo Oriente à Europa.

Por este motivo inúmeros impérios através dos séculos em algum momento já tomaram posse ou exerceram grande influência sobre este território. Persas, turcos e mongóis tinham a região da Ásia Central como parte integrante de seus vastos impérios, os quais, por muitas vezes, ameaçaram avançar em direção ao continente europeu.

Este foi um padrão recorrente no continente Eurasiático, culminando no que ficou conhecido como o “Grande Jogo”, ou seja, a disputa entre Grã-Bretanha e o Império Russo pelo domínio da Ásia Central ( JORNADA, 2008). O “Grande Jogo” ocorreu principalmente na segunda metade do século XIX, mas, em tal momento, a disputa não se limitava mais apenas ao controle de lucrativas rotas comer-ciais, e sim no controle de pontos estratégicos para a segurança e para a defesa dos impérios em questão. Além disso, neste ponto da história a região centro-asiática começou a ser visada também pelos vastos recursos energéticos nela disponíveis.

Desta forma, Halford Mackinder (1861-1947), grande geógrafo inglês, analisando o histórico de conflitos e disputas nessa região desenvolveu sua teoria do Heartland. Segundo essa teoria, a região da Ásia Central seria parte integrante do Heartland, e a conquista desta região, nas palavras de Mackinder, seria “o Trampolim para a conquista do continente Eurasático e, dessa forma, do mundo” (MACKIN-DER, 1942). Esse pensamento ainda se encontra presente, em certo grau, em geoestrategistas contem-porâneos como Brzezinski e Mearsheimer.

Deste modo, tendo em vista a grande importância que a região centro-asiática teve e ainda tem sobre as relações internacionais e sobre o equilíbrio do sistema internacional, este artigo propõe-se a analisar as relações exteriores dos países da Ásia Central para com as grandes potências que possuem in-teresses na região (nomeadamente EUA e OTAN, China e Rússia). E, através desta análise, que abarcará o período da queda da URSS até os dias de hoje, encontrar alguns padrões que auxiliem na compreensão das forças que se encontram em disputa na região, seja na forma econômica, diplomática ou militar.

2 Desenvolvimento

2.1 Relações com as potências ocidentais da OTAN

Assim que os países centro-asiáticos se separaram da União Soviética, em 1991, os Estados

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Unidos os reconheceram como Estados independentes e, já no ano seguinte, instalaram embaixadas neles. Do mesmo modo o fizeram os países europeus, que rapidamente seguiram os EUA no estabe-lecimento de vínculos com aquela região, a qual estivera isolada por quase um século.

A aproximação americana com esses cinco países se deu de forma intensa nos três anos seguintes à dissolução da URSS. Houve várias visitas de alto-nível tanto por parte dos EUA quanto por parte dos centro-asiáticos. Os Estados Unidos estavam buscando na região processos de de-mocratização, estabilidade e abertura econômica, mas, acima de tudo, o bloqueio da “propagação da influência de regimes radicais existentes e a prevenção da criação de novos [regimes radicais]” (ARAS, 1997). Dessa forma, aqueles países que mostravam mais compromisso para com os objeti-vos americanos, tais como Quirguistão e Cazaquistão, aprofundaram suas relações com os EUA. Já com os outros três – Tadjiquistão, Turcomenistão e Uzbequistão - que não demonstraram nenhum avanço nesse sentido, os Estados Unidos foram mais cautelosos, não estabelecendo uma relação tão profunda; em relação a isso, é importante mencionar que o Tadjiquistão, que passou por uma guerra civil com muitas violações dos direitos humanos entre 1992 e 1997, era o país que tinha o pior rela-cionamento com Washington.

Os países europeus em geral perseguiam, na Ásia Central, os mesmos objetivos que os EUA, mas também defendiam boa governança, reformas no judiciário e nos serviços públicos e aumento da segurança alimentar, do padrão de vida e da proteção social. Além disso, através da União Euro-peia (mas não limitada a ela), procuraram aumentar sua influência na região, visto que mais de 200 milhões de euros foram destinados aos países da Ásia Central entre 1991 e 2001. Ainda no escopo da UE, o Cazaquistão foi o país que mais de beneficiou, uma vez que tinha um módulo específico de cooperação, o PCA (Partnership and Cooperation Agreement), que foi assinado em 1995.

Ainda em meados da década de 1990, a OTAN, que se encontrava em uma onda de expan-são em direção aos países do leste europeu que outrora estiveram sob influência soviética, começou paulatinamente a criar laços com os países centro-asiáticos. Em 1995, sob sua égide, Quirguistão, Cazaquistão e Uzbequistão criaram um batalhão (CENTRASBAT) para as forças de paz da ONU, que durou pouco tempo (WEITZ, 2008, p. 38). Em 1997, foi criado o Euro-Atlantic Partnership Council (EAPC), um fórum multilateral que visava à melhoria das relações entre a OTAN e países não aliados, o qual rapidamente foi aderido pelos cinco países da Ásia Central. O EAPC abrange também os programas de parcerias individuais com a OTAN por parte de não aliados, os Partner-ship for Peace (PfP), de que os países da Ásia Central começaram a participar já no final do anos 90.

Em 2001, os interesses europeus e americanos convergiram e se manifestaram por intermé-dio da OTAN. Com os ataques de 11 de setembro e a posterior invasão do Afeganistão, aos inte-

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resses já citados foram acrescidos os de combate ao terrorismo e a questão da segurança energética (AZARKAN, 2009). A OTAN foi apoiada por todos os países da Ásia Central em suas operações antiterrorismo. Quirguistão, Uzbequistão e Tadjiquistão ofereceram bases em seus territórios — as bases uzbeque e quirguiz foram aceitas e a tadjique seria utilizada em caso de emergências. Além disso, o espaço aéreo desses cinco países estaria liberado para apoio logístico às operações em solo afegão. Com a sua presença direta na região, as potências ocidentais puderam aumentar exponen-cialmente a sua influência nos anos subsequentes aos atentados nos EUA. Todos os países desen-volveram PfP em conjunto com a OTAN. Muitos investimentos foram feitos na Ásia Central, fomentando desenvolvimento e estabilidade.

Contudo, em maio de 2005, diante da crise de Andijan no Uzbequistão, na qual muitos civis foram mortos por forças uzbeques, a resposta da OTAN não foi bem recebida pelos países da região. A organização condenou veementemente as ações uzbeques, pediu comprometimento na defesa de direitos humanos e de liberdades básicas, além do estabelecimento de um inquérito independente sobre os eventos de Andijan (NATO, 2005). Através da Organização para Cooperação de Shanghai (OCS), os países centro-asiáticos responderam a essa postura exigindo um prazo para a retirada das tropas ocidentais em bases na Ásia Central, uma vez que consideravam por terminada a campanha antiterrorista no Afeganistão (AZARKAN, 2009). De fato, do território do Uzbequistão as forças da OTAN foram expulsas, com exceção das alemãs. Porém, mediante um aumento do preço do aluguel, a base no Quirguistão pôde ser mantida.

Desde 2005, então, as relações entre as potências da OTAN e os países da Ásia Central foram encaradas com muito receio entre ambas as partes. O estranhamento lentamente está se esva-ecendo. Em 2006, o Cazaquistão conquistou investimentos da União Europeia para o setor de óleo e uso pacífico de energia nuclear, também regularizando comércio de materiais nucleares. Em 2007, a UE adotou um plano estratégico próprio para a Ásia Central, sendo que o Cazaquistão ocupa papel central em tal estratégia ( JANE’S, 2009).

2.2 Relações com a República Popular da China

Da mesma forma que as potências ocidentais, a China rapidamente reconheceu as inde-pendências das cinco repúblicas centro-asiáticas ainda em 1991. A influência e a presença chinesas puderam voltar a ser sentidas na Ásia Central, região que sempre estivera sob a esfera de influência da civilização chinesa, mas que fora contida com a incorporação daquele território ao Império Russo e posteriormente à União Soviética.

Entretanto, por toda a década de 1990, o interesse chinês na região se fundou apenas em

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questões práticas. A principal delas, que norteou as relações da China para com três dos novos países centro-asiáticos – Cazaquistão, Quirguistão e Tadjiquistão –, era a respeito dos limites terri-toriais. A China, que tivera sérios problemas fronteiriços com a URSS, percebeu que eles herdaram diversos desses problemas tanto entre si quanto consigo. Visto que teria mais poder de barganha para negociar e resolver as questões fronteiriças com as novas repúblicas do que tivera com a União Soviética, a China devotou seus esforços diplomáticos para a delimitação das fronteiras. Com esse intuito, foi criado o grupo Shanghai 5, composto por China, Rússia, Cazaquistão, Quirguistão e Tadjiquistão, que também visava a medidas de construção da confiança e de desarmamento. As fronteiras foram exitosamente delimitadas, da mesma forma que se firmaram acordos militares; porém, algumas disputas permaneceram sem solução e ficaram para ser solucionadas na década seguinte (WEITZ, 2008).

Em 2001, quando o Uzbequistão se juntou ao grupo Shanghai 5, este foi renomeado para Organização para a Cooperação de Shanghai (OCS). Os objetivos principais da OCS são os de combater o terrorismo e o separatismo dentro dos territórios de seus países-membros. O primeiro é um problema que aflige todos os seis países, mas separatismo tem maior presença na Rússia e na China.6 De modo geral, a organização foi criada para manter a estabilidade na Ásia Central.

Além disso, houve o aumento da influência chinesa na Ásia Central dentro do próprio esco-po da OCS, na qual, desde sua criação, afirma que os Estados centro-asiáticos têm direito a criar suas próprias organizações internacionais. Essa é uma perspectiva que vai de encontro às ideias da Rússia em relação à OCS, que vê a organização como um meio para a diminuição da presença ocidental na Ásia Central (MARAT, 2008). No entanto, agrada também os países da região, os quais desejam um maior espaço para a sua atuação no sistema internacional, sem preponderância russa, o que leva o discurso chinês na OCS a ser louvado por eles.

Ainda em 2001, uma vez que a intervenção da OTAN no Afeganistão visava o combate ao terrorismo, a China a aprovou, já que o regime do Talibã supostamente ajudava os rebeldes separa-tistas uigures da província de Xinjiang (FULLER; STARR, 2003). Entretanto, essas operações de-veriam ser breves, visto que a presença ocidental, principalmente a dos Estados Unidos, em um país fronteiriço não seria bem-vinda, fossem outras as condições. Portanto, em 2005, quando a OTAN recriminou as ações do governo uzbeque na crise de Andijan, o governo chinês, por sua vez, decidiu apoiar o Uzbequistão dentro da OCS, a qual exigiu a retirada das tropas da OTAN das bases em países da Ásia Central.

6 No caso da China, há grupos separatistas que buscam a independência da região de Xinjiang. No caso da Rússia, as regi-ões da Chechênia e da Ossétia são os movimentos separatistas mais conhecidos atualmente (MARAT, 2008).

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Entretanto, é importante destacar que os interesses chineses na Ásia Central vão além da simples segurança militar. A atuação da China na região centro-asiática desde 2001 se tornou bas-tante notável. Através de tratados de comércio e relacionados a questões energéticas, bem como com a construção de infraestrutura interligando a região oeste da China a alguns países centro-asiáticos, a sua presença cresceu exponencialmente. Ademais, economicamente a China também tem grande interesse nos recursos naturais da Ásia Central, tidos como vitais.

Em 2005, a PetroKazakhstan, empresa extratora de petróleo do Cazaquistão, foi adquirida pela China National Petroleum Corporation, principal empresa chinesa em termos de aquisição de energia estrangeira. Esse é um exemplo do grande interesse que a China tem nos recursos energé-ticos centro-asiáticos. Além disso, exemplifica a expansão dos investimentos externos chineses para fora de suas fronteiras, pois esta foi a primeira aquisição de uma empresa energética estrangeira feita por uma empresa petrolífera chinesa. (AZARKAN, 2009). Também é importante mencionar o fato de que vários projetos de oleodutos e gasodutos desenvolvidos em anos recentes conectam os países centro-asiáticos, tais como o Cazaquistão e o Turcomenistão, diretamente à China, sendo que alguns foram inaugurados recentemente. As fontes energéticas da Ásia Central são de suma importância para a segurança energética chinesa, tendo em vista o aumento expressivo de sua demanda por energia em função do grande crescimento econômico das últimas décadas (WILKINSON, 2002; CUTLER, 2009).

Outro front de atuação da atual presença chinesa na Ásia Central que se relaciona a recursos naturais é a da segurança alimentar. Em função do tamanho da sua população e da falta de terras férteis, o fornecimento de alimentos – especialmente grãos – é uma preocupação que começa a afetar a China. Desta forma, uma solução que o governo chinês vem praticando é o investimento na expansão da produção dos países centro-asiáticos a fim de garantir seu suprimento necessário. Tal atuação está principalmente direcionada ao Cazaquistão, que possui vastos territórios férteis, mas que são pouco utilizados. A fim de tornar produtivas essas terras aráveis, em 2009 o governo chinês demonstrou interesse em alugá-las para que chineses as cultivassem, uma vez que elas têm o potencial de garantir um fornecimento ideal de alimentos para as necessidades atuais chinesas, com a vantagem de serem terras de um país limítrofe (PANNIER, 2009).

Finalmente, a fim de prevenir a ocorrência de levantes civis na província Xinjiang, é neces-sário que a China coopere com seus países vizinhos da Ásia Central (notadamente com os quais faz fronteira, quais sejam, Cazaquistão, Quirguistão e Tadjiquistão) a fim de impedir que as minorias islâmicas uigures (presentes na região de Xinjiang) criem ou aumentem movimentos terroristas transfronteiriços (FULLER; STARR, 2003). Por causa disso, muitos investimentos chineses foram

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realizados nessa região como forma de desenvolvê-la. O foco se dá em setores que a própria China pode aproveitar, tais como de infraestrutura, principalmente a de transportes, e de energia. Assim, os interesses e a influência da China na Ásia Central vêm aumentando de forma significativa nos últi-mos anos. O início dessa política se deu em 2001 de forma rápida com a criação da OCS, mas a par-tir de 2005 adquiriu um caráter mais amplo com uma busca incessante de seus interesses na região.

2.3 Relações com a Rússia

Por parte da Rússia, é importante mencionar o fato de que houve um certo desinteresse em relação aos países da região após o desmembramento da URSS. Isso se deveu principalmente ao fato de o governo russo estar mais preocupado com a resolução de problemas econômicos internos, oriundos da queda do comunismo e de sua súbita inserção no capitalismo.

Com esse mesmo intuito de não desestruturar totalmente a sua economia, a Rússia, na década de 1990, procurou manter unidos economicamente os países que fizeram parte da União Soviética através da Comunidade dos Estados Independentes (CEI). A CEI, entretanto, teve um alcance muito limitado, até mesmo infrutífero, muitas vezes por causa da própria Rússia, que se posicionava intransigente contra propostas dos países da Ásia Central. Por causa disso, a influência russa foi bastante limitada nesse âmbito econômico.

Fora o aspecto econômico da CEI, essa organização também possuía uma faceta militar: o Tratado de Segurança Coletiva (TSC), assinado em 1992. Com ele, Moscou assegurava sua presen-ça militar nas ex-repúblicas soviéticas centro-asiáticas, exceto no Turcomenistão, tal qual era durante a época da URSS. Só que, com o desinteresse da Rússia na região, os projetos do tratado ou não foram implementados ou não foram bem sucedidos (WEITZ, 2008).

Os únicos assuntos cujos diálogos de fato evoluíram nos anos 90 foram os fronteiriços. No âmbito do grupo Shanghai 5, a Rússia conseguiu resolver um bom número de querelas com a China e com o Cazaquistão. Como dito anteriormente, esse grupo evoluiu para a OCS em 2001. Para a Rússia, a criação da OCS é uma tentativa de aproximação militar com a China, na busca pelo estabelecimento de uma ordem mundial caracterizada pela multipolaridade, em oposição à unipola-ridade americana. Além disso, também é uma maneira de acompanhar o crescimento da influência chinesa na região e assim fazer a sua própria crescer junto.

Em 2002, o Tratado de Segurança Coletiva foi revisto a pedido da Rússia, e a Organização do Tratado de Segurança Coletiva (OTSC) foi criada, sendo uma forma de Moscou poder exercer sua influência sobre a Ásia Central, mas sem haver a interferência chinesa. Em vez de ser um acordo de defesa mútua coletiva, como era o TSC, a OTSC também trataria de ameaças internacionais à

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paz e à segurança da Ásia Central, de acordo com a vontade russa de que fosse uma organização mais forte. Embora ela tenha obtido grandes sucessos onde o TSC não conseguira, destarte aumen-tando a influência de Moscou na região, os principais esforços russos de manter a Ásia Central em sua esfera de influência têm se concentrado na OCS, porque através dela os avanços chineses são controláveis. Um exemplo disso é a posição russa a favor do Uzbequistão na crise de Andijan que foi manifestada na e pela SCO, ao invés da CSTO. Ademais, os próprios países centro-asiáticos receiam a CSTO como uma ferramenta de perpetuação da presença russa na região (FROST, 2009).

Por sua vez, a Eurasec, criada em 2000 também com o patrocínio russo, tem por função principal garantir um estreitamento dos laços econômicos e comerciais entre os países da ex-União Soviética que fazem parte da mesma.7 Ela foi criada após ficar comprovado o fracasso da CEI em garantir um progresso econômico adequado às ex-repúblicas soviéticas, bem como a promoção da integração econômica entre elas (WEITZ, 2008). Devido ao bom desempenho da economia russa na década de 2000 e à boa-vontade por parte do governo desse país, a Eurasec se desenvolveu bas-tante em contraste à CEI, recuperando muitos laços com a Ásia Central que a Rússia havia perdido na década anterior.

Por fim, no presente momento, existem vários gasodutos e oleodutos cruzando a Ásia Cen-tral, conectando-a à Europa através da Rússia, estruturas essas que foram herdadas da URSS e que atualmente garantem um quase monopsônio russo dos recursos energéticos centro-asiáticos. Por causa disso, outros estão sendo projetados evitando-se cruzar o território russo, sendo o Nabucco o principal deles. Por desejar manter a Europa dependente de seu petróleo e gás natural, além de obter privilégios em fontes energéticas da Ásia Central, como alternativa a esses projetos, a Rússia plane-jou outros. Turcomenistão e Cazaquistão, os países com maior quantidade de recursos energéticos na região, demonstraram fortes interesses nos projetos russos, posto que sejam economicamente mais viáveis do que os defendidos pelos países ocidentais.

3 Considerações finais

Através desta análise das relações dos países da Ásia Central com a China, com a Rússia e com as potências ocidentais, é possível delimitar três momentos distintos que facilitam a compreen-são das relações internacionais daqueles países desde a sua independência. O primeiro vai de 1991 a 2001. O segundo de 2001 a 2005, e o último de 2005 até agora.

O priemiro período é caracterizado por uma rápida queda da influência russa e, em con-

7 São membros da Eurasec Belarus, Cazaquistão, Quirguistão, Rússia e Tadjiquistão; o Uzbequistão atualmente se encontra suspenso da organização.

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traste, pelo surgimento da norte-americana e da europeia na região. Tanto a Rússia quanto a China foram pragmáticas em suas relações com os cinco países, tratando apenas de matérias muito especí-ficas advindas da independência daqueles. A China, porque estivera ausente, teve sua presença au-mentada, mas não de froma significativa. Já a Rússia não se interessou em manter a preponderância que detinha a ex-URSS, praticamente abandonando os governos centro-asiáticos. Enquanto isso, as potências ocidentais procuraram preencher o vácuo deixado, o que conseguiram gradualmente fazer desde 1991. Tudo isso aconteceu, parece claro, com a vontade dos governos centro-asiáticos, que não desejavam mais ser dependentes da Rússia e queriam abrir um leque de possibilidades para suas relações exteriores.

A partir de 2001, entretanto, a situação mudou. A influência das potências da OTAN cres-ceu vertiginosamente com a sua presença direta na região após os ataques terroristas de 11 de setem-bro. Não obstante, pelos mesmos motivos que levaram a uma maior preocupação da OTAN, a China e a Rússia voltaram suas atenções à Ásia Central, aumentando as respectivas influências na região principalmente a partir da criação, em 2001, da Organização de Cooperação de Shanghai. Portanto, esse é um período em que a região cresceu em importância, com todas as grandes potências procu-rando a defesa de seus interesses e ganhar influência. Com isso, os cinco países adquiriram maior espaço de manobra entre elas e tiveram seus interesses atendidos com certa facilidade.

No entanto, 2005 representa um ponto de virada nas relações dos países da Ásia Central. A partir desse ano se iniciou o terceiro e atual período, em que as potências da OTAN perderam influência, pois ficou evidenciada a diferença entre as políticas externas dos países ocidentais e dos centro-asiáticos. Os primeiros buscam democratização e defesa dos direitos humanos, enquanto que os últimos estão mais interessados em segurança interna e estabilidade. Não que estes objetivos não estejam na pauta dos países ocidentais, mas a sua defesa apresenta as pré-condições de democracia e liberdades civis. Enquanto isso, a China começou a ocupar o espaço deixado vago pela OTAN, pois, além dos seus interesses primordialmente energéticos, segurança interna e estabilidade na Ásia Central são de suma importância para a situação interna da província de Xinjiang. Já a Rússia acompanha os movimentos chineses através da OCS, procurando reconquistar a influência perdida na década de 1990. Com todo esse panorama, os países centro-asiáticos têm dado uma preferência maior para as suas relações com a China do que com a Rússia ou com a OTAN.

O que se pode dizer, por fim, é que um novo “Grande Jogo” está emergindo, no qual os prin-cipais “jogadores” são Rússia, China e Estados Unidos (através da OTAN). Nesse “Novo Grande Jogo”, a primeira rodada foi de preponderância das relações com o Ocidente. A terceira de relações privilegiadas da Ásia Central com a China. Já a segunda rodada representa um momento de transi-

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ção no qual as relações com o Ocidente encontram o seu ápice e as com a Rússia e, principalmente, com a China deixam de ser pragmáticas e começam a crescer e entrar em outras esferas.

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LEANDRO PIGNATARI SILVA1

A Vitória do Realismo Defensivo na Nova Doutrina de Política Externa Russa

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Resumo

Finda a Guerra Fria, a questão do (re)posicionamento internacional coloca-se de forma indiscutível à Rússia, herdeira jurídica da União Soviética. Neste ajuste ao novo cenário que se configura no sistema internacional, cabe à nova nação definir não só sua política externa, mas também sua própria identidade. Neste artigo são discutidas as influências dos desdobramentos da política interna e dos novos desenvolvimentos do sistema internacional na configuração da política externa russa no novo século.

Palavras chave: Rússia, política externa.

Abstract

Once finished the Cold War, the issue of international (re)positio-ning is unarguably due to Russia, which legally sustains the Soviet Union heritage. In this adjustment to the new scenario that has being developed in the international system, it is utterly important for the new nation not only to define its foreign policy but also to define its own identity. In this article, there will be analyzed the influences of Russian domestic policy’s drivers as well as those of the international system’s new developments to Russian fo-reign policy configuration in the new century.

Keywords: Russia, foreign policy.

1 Introdução

Após a queda do Muro de Berlim em 1989, o realismo,2 corrente teórica que orientou a ação das grandes potências ao longo de toda a Guerra

1 Graduando em Relações Internacionais – Universidade de São Paulo (USP)2 O realismo, assim como o institucionalismo, parte da premissa de que os Estados são atores

racionais. Na estrutura anárquica do sistema internacional, os atores, motivados pela preocupação com a sobrevivência, buscam o equilíbrio de poder, agindo por meio de ações estratégicas. De fato, no realismo, os determinantes na orientação do Estado têm origem sistêmica, enquanto as organizações e regimes internacionais têm importância diminuída, uma vez que são frutos da vontade do Estado. Da mesma forma, no que toca ao Direito Internacional os realistas se aliam aos voluntaristas, ou seja, os Estados, para eles, são vinculados por aquilo com que assentem. No cálculo racional, a preocupação é com os ganhos relativos, o que ressalta o espírito competitivo do sistema. Para um debate sobre o realismo no pós-Guerra Fria cf. WALTZ, Kenneth. “Structural Realism after the Cold War”. International Security. Vol.25, N.1, 2000. pp. 5-41.

“(...) Esta visão é um exemplo claro de aplicação da teoria da escolha racional (...)”

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Fria, deixou de ocupar o espaço central na agenda dos policy makers, ao menos na então União Soviética. Com o governo do presidente Mikhail Gorbatchev, a União Soviética passou por uma reestruturação que não se restringiu ao âmbito interno. Além da Perestroika e da Glasnost, que já indicavam maior abertura do regime socialista ao Ocidente, o novo presidente adotou uma política exterior de cunho mais liberalista, buscando a aproximação com os países a oeste da Cortina de Ferro, em especial os Estados Unidos.

A Perestroika foi concebida para modernizar o sistema de produção soviético, baseado no planejamento central do Gosplan (Comitê de Planejamento), o qual determinava os planos eco-nômicos, divididos entre os ministérios e distribuídos, por sua vez, em forma de quotas para as empresas, constituindo, destarte, um sistema de metas quantitativas. Ultrapassado pelas novas téc-nicas da Revolução Científico-Tecnológica e pela flexibilização da produção, o sistema mostrava-se incapaz de suprir satisfatoriamente a população. Destarte, buscou-se inicialmente a uskoriene, isto é, a aceleração da economia, cujo fraco desempenho levou, em seguida, à implantação da Glasnost, partindo da premissa de que seria impossível flexibilizar o sistema produtivo e manter o controle político sobre a sociedade (Segrillo, 2000).

Com a economia deteriorada após décadas de corrida armamentista, o país empreendeu a abertura comercial a fim de retomar a competitividade da indústria nacional , adotando, com este mesmo intuito, postura mais favorável à aproximação com os Estados Unidos e abandonando a política estrita de segurança nacional. Esta situação reverte-se novamente em 1993, quando a Rússia assume posição mais assertiva no tocante aos seus interesses e retoma a preocupação com a segurança, precipuamente no que concerne aos países que constituíram sua esfera de influência, ou foram, mesmo, integrantes da União Soviética.

A abertura realizada por Gorbatchev, entretanto, teve efeitos mais duradouros do que os nota-dos imediatamente. Com o afrouxamento da repressão político-ideológica, tornou-se possível, e essen-cial, a discussão acerca de diversos temas, entre eles a reconstrução da identidade russa e a formulação de sua política externa (TSYCANKOV, 1997). A grande questão levantada com os eventos que se sucederam ao final do século XX aborda o cerne da identidade russa, qual seja, o papel desempenhado pelo país no sistema internacional após o fim do Império Russo e da União Soviética, sendo a resolu-ção deste dilema imprescindível para a definição precisa de uma nova política externa.

2 Desenvolvimento

2.1 A nova política externa russa

Nesta conjuntura, o posicionamento da Rússia oscilou ao longo da década de 90 e inícios

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dos anos 2000, conforme novos elementos, internos e externos, surgiram no cenário político-econô-mico. O primeiro destes foi o debate intenso entre quatro correntes de política externa, quais sejam: international institutionalism (“institucionalismo”), realismo defensivo e ofensivo e, expansionismo revolucionário. Cada uma destas correntes possui distintas visões acerca do papel russo no cenário internacional e, consequentemente, das atitudes e posicionamentos a serem seguidos pelo governo.

O institucionalismo compreende a Rússia como uma potência entre várias, uma cultura ocidental que deve valer-se da cooperação nos âmbitos econômico e militar. Nesta corrente, os inte-resses russos estão no Ocidente e sua postura é majoritariamente amigável, mesmo com os antigos países soviéticos. Em plena contraposição, o expansionismo entende a ex-União Soviética como uma superpotência em um mundo bipolar. Tratar-se-ia de uma cultura oriental, oposta à americana em todos os sentidos, sendo os Estados Unidos vistos como conspiradores e culpados pela atual de-cadência do antigo Império Russo. Nesta visão, a Rússia é um grande império, em constante proces-so de expansão, de tal forma que seu posicionamento com os demais países é, de forma geral, hostil, especialmente no que tange aos países que fizeram parte da União Soviética, os quais deveriam ser anexados brevemente (TSYCANKOV, 1997).

Estas duas correntes não agregam muitos adeptos, sobretudo o expansionismo, estando este último desacreditado na sociedade russa, mormente após os resultados da política liberalista de Gorbatchev. Destarte, o debate concentrou-se, a partir de 1993, entre as duas vertentes realistas , inclinando-se fortemente para o realismo defensivo em 2008. Entrementes, como mencionado anteriormente, fatores endógenos e exógenos configuravam a política externa russa.

Em primeiro lugar, deve-se mencionar o relacionamento com os Estados Unidos, relação dividida entre as necessidades econômico-estratégicas e a derrota na Guerra Fria. A economia so-viética estava em frangalhos quando Gorbatchev lançou seu programa de modernização; o modelo de produção socialista e fordista estava ultrapassado frente às técnicas inovadoras do toyotismo, fato agravado pelo atraso da chegada da 3ª Revolução Industrial no país. As grandes somas investidas na indústria bélica tornaram-se contraproducentes ao longo do tempo e, ao final do regime, a economia soviética estava à beira do colapso. Sob esta ótica, as relações estreitas com os Estados Unidos e com a Europa eram consideradas essenciais para o restabelecimento econômico do país. De fato, a adoção do modelo liberal, com a abertura comercial e privatizações, apresentou bons resultados (ASLUND, 2001). Mais do que efeitos econômicos, o ingresso da Rússia no Fundo Monetário Internacional e a aproximação com o Ocidente propiciaram a Yeltsin o suporte necessário para promover as re-formas necessárias em direção à democracia e à economia de mercado . Também, com o colapso da União Soviética, o antigo bloco socialista foi desfeito, pondo fim, deste modo, às alianças estratégicas

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pré-existentes, a exemplo do Pacto de Varsóvia. Neste sentido, além de reestruturar sua economia, Moscou precisava de novas alianças a fim de não ser isolada politicamente, deixando a Rússia em posição ainda mais frágil.

Por outro lado, as relações não poderiam deixar de apresentar certa tensão, uma vez que o relacionamento entre vencedor e perdedor em uma guerra é, no mínimo, problemático, como coloca o pai da teoria política internacional moderna norte-americana, Hans Morgenthau: “a permanência do status de subordinação dos países derrotados numa guerra pode facilmente produzir a vontade destes países desfazerem a derrota e jogarem por terra o novo status quo internacional criado pelos vitoriosos, retomando seu antigo lugar na hierarquia do poder mundial. Ou seja, a política imperia-lista dos países vitoriosos tende a provocar uma política imperialista igual e contrária da parte dos derrotados. E se o derrotado não tiver sido arruinado para sempre, ele quererá retomar os territórios que perdeu, e se possível, ganhar ainda mais do que perdeu, na última guerra” (MORGENTHAU, 1993). Nesta ótica, a Rússia é um país instável, aguardando a oportunidade para expandir-se, talvez mais do que anteriormente. Esta é, deveras, uma das características da vertente ofensiva do realismo, presente no debate político russo.

Esta visão realista, ademais, considera o ambiente externo majoritariamente hostil, espe-cialmente os Estados Unidos, o qual buscaria oportunidades de enfraquecer a Rússia, em posição coerente com o pensamento de Morgenthau. Neste sentido, os realistas ofensivos se opuseram à po-lítica de Gorbatchev e de Yeltsin, afirmando ser melhor assumir uma política de deterrence, tal como durante o período da Guerra Fria. Igualmente, a economia russa seria auto-suficiente, sua civilização autárquica e independente do restante do mundo; deste modo, o primeiro argumento da necessidade econômica não se aplicaria (TSYCANKOV, 1997). Ademais, a Rússia se mantinha como uma das potências com poder de veto na Organização das Nações Unidas, e seu arsenal nuclear não fora destruído, de forma que a adoção de uma posição subserviente não se configuraria como necessária .

O oposto ocorre em relação aos realistas defensivos, os quais, embora acreditem na necessi-dade de restabelecimento do poder russo à semelhança do período soviético, não percebem o cenário internacional como hostil, conquanto tampouco o vejam como amigável. Esta visão é um exemplo claro de aplicação da teoria da escolha racional, na qual a conjuntura internacional oferece oportuni-dades pragmáticas de cooperação com o Ocidente, baseada nos interesses russos, das quais o governo desfrutará depois de realizados os cálculos racionais. Contrariamente aos ofensivos, os realistas de-fensivos não veem como melhor opção a força para o restabelecimento do poder soviético, embora julguem imprescindível a manutenção do poder militar a fim de desempenhar seu papel no sistema internacional, qual seja, atuar como uma barreira entre as civilizações europeia e não-europeia, isto

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é, ser a responsável pelo equilíbrio na Eurásia (TSYCANKOV, 1997).No início do novo século e no reajuste da inserção internacional russa, dois temas estão entre

os mais polêmicos na formulação da política externa russa: a expansão da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) e o posicionamento com relação ao Near Abroad.

2.1.1 OTAN

Nesta primeira questão, a principal problemática encontra-se no isolamento estratégico-mi-litar da Rússia pelo ingresso de países da Europa Oriental e caucasiana, notadamente ex-soviéticos, na aliança militar liderada e, na visão realista, mantida pelos Estados Unidos.

A Organização mantém-se aberta à Rússia, disposta a dialogar e vem tentando mostrar-se como amistosa. Não obstante, observa-se um problema sério no tocante à construção de confiança entre as duas partes, que vem sendo trabalhado pela OTAN nas últimas rodadas de expansão. Um exemplo deste esforço é o estabelecimento de numerosos critérios, tais como democracia, suprema-cia civil sobre militar e resolução das questões fronteiriças, para a admissão na organização, o que significaria uma disposição real de construção de uma organização sólida, coesa, sem o intuito único de cercar a antiga potência soviética e isolá-la do Ocidente (KYDD, 2001).

Não há dúvida de que os temores despertados pela Rússia fizeram com que muitos países antes membros da União Soviética buscassem a proteção estadunidense, ou ainda que, durante o colapso russo no início e final da década de 90, os europeus aproveitaram a leve “distração” russa para expandir as fronteiras da aliança a fim de aumentar sua margem de segurança. Tais movimen-tos, indiscutivelmente, criaram receios no governo russo acerca das intenções da Organização, uma aliança criada em um contexto que deixara de existir e que, não obstante, expandia sua área direta de atuação. Em adição às incertezas quanto aos objetivos da OTAN, as tensões surgem à medida que esta se afirma como mantenedora de uma área na qual a guerra não acontece, aumentando os receios dos países que não a integram (KYDD, 2001).

Deve-se notar, porém, que estas discussões e preocupações não se restringem ao âmbito go-vernamental russo, mas se apresentam fortemente nos pensadores da expansão da OTAN. Estes compreendem que a integração de países do Leste Europeu contribui para a expansão da estabilidade regional à medida que diminui os riscos de conflito entre estes países. Neste sentido, a expansão da OTAN é responsável pela socialização destes países em uma comunidade que compartilha valores como democracia, liberdade e rule of law (KYDD, 2001). Por outro lado, compreende-se o desagrado russo frente à expansão , e que este pode, em última instância, induzi-la ao isolacionismo e a restrição das relações com o Ocidente, assim como o aprofundamento de seu nacionalismo (KYDD, 2001).

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Uma ilustração desta situação, no início do século XXI, foi a adesão dos países bálticos à OTAN. Nas palavras de Vladimir Putin, então presidente russo, havia um senso comum em Moscou de que os países bálticos deveriam permanecer na “esfera de influência” russa, enquanto para estes Estados, integrar-se à Organização era uma maneira de se garantir, no longo prazo, contra uma virada “para o pior” em Moscou (KRAMER, 2002). Hodiernamente, a insatisfação russa diante da expansão européia e norte-americana sobre sua esfera de influência, foi demonstrada pela invasão da Geórgia e o apoio ao separatismo da Ossétia do Sul, logo após a invasão do governo de Tblisi do território rebelde. Tratou-se, em realidade, de uma demonstração de poder face à aproximação do governo georgiano dos Estados Unidos e sua manifestação de interesse em aderir à OTAN, mani-festação esta, que foi acolhida com entusiasmo pela Organização.

2.1.2 Near Abroad

Observa-se, diante do descrito acima, uma atuação incisiva do governo russo na defesa de seus interesses vitais, como são considerados os países que compunham a União Soviética, o chama-do “exterior próximo”, por ambas as vertentes realistas. A ação militar contra a Geórgia, portanto, pode ser vista como uma combinação das visões realistas: a tomada dos países periféricos pela força, a defesa dos interesses nacionais mediante exercício do poder militar e, inobstante ter relevado qualquer tipo de sanção por parte de alguma Organização Internacional, o governo não ter avan-çado sua expansão ao território além das províncias rebeldes, onde manteve suas tropas a título de mantenedoras da segurança. A invasão, no entanto, fez com que a sociedade internacional se voltasse para a região e para a instabilidade da situação, levando à substituição das forças russas por forças internacionais de peacekeeping.

Este evento é, também, exemplo da preocupação russa com a Eurásia, em especial os países com que faz fronteira e seu posicionamento diante da ameaça a seus interesses na região. O senti-mento eurasianista pode ser derivado do pan-eslavismo do século XIX que esteve sempre presente nas mentes da sociedade russa, segundo o qual, seria o “destino manifesto” da Rússia, recuperar os territórios que fizeram parte da União Soviética, e anteriormente, do Império Russo (SMITH, 1999). Neste sentido as distinções entre as duas vertentes realistas se manifestam claramente. Em-bora ambas reconheçam a importância da região e concordem com a necessidade de se abandonar a política externa adotada desde a década de 90, os meios e o posicionamento a serem adotados diferem sensivelmente.

O governo Putin exemplifica, em certa medida, as divergências, por oscilar entre as duas vertentes ao longo de seu mandato. Algumas características do realismo ofensivo estão presentes,

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tais como a desconfiança com relação aos Estados Unidos e o uso da força na manutenção dos inte-resses russos no “exterior próximo”. Principalmente em seu segundo mandato, a Rússia afastou-se do sistema Ocidental, tentando o estabelecimento de um novo sistema no qual o centro fosse Moscou. Neste sentido, o governo russo não apoiou a guerra no Iraque, não aprovou sanções contra o Irã, manteve seu apoio aos palestinos quando os Estados Unidos e a Europa o cortaram, e aproximou-se de Pequim. Nas relações com os ex-satélites soviéticos uma postura mais dura foi adotada, sendo utilizada a barganha energética nas negociações. Esta, aliás, não se restringiu ao “exterior próximo”, mas foi aplicada a toda Europa, sendo, também, uma das responsáveis pela maior autonomia russa, na medida em que, com o aumento dos preços do petróleo e gás natural, as reservas externas russas aumentaram significativamente, constituindo em 2006, a terceira maior reserva do mundo (TRE-NIN, 2006).

Concomitantemente, entretanto, o governo adotou políticas pragmáticas (SMITH, 1999), mantendo um relacionamento com o Ocidente, mas baseado em seus interesses, isto é, valendo-se do pragmatismo em seu sentido mais profundo, qual seja, relevar ideologias e valores divergentes a fim de promover os interesses do Estado. Moscou consolidou durante este período, sua autonomia com relação aos Estados Unidos e à Europa, não significando isto, uma oposição intrínseca ou ofen-siva ao Ocidente, conformando-se, neste ponto, com o realismo defensivo.

Somente após o evento na Geórgia, em agosto de 2008, pelo qual a Rússia foi duramente criticada por Estados Unidos e Europa, o presidente russo, Dmitri Medvedev, anunciou cinco princípios que orientariam a política externa doravante, definindo-a claramente, em oposição às oscilações das décadas anteriores. São os princípios: respeito à legislação internacional, identifica-ção de um mundo multipolar, não-isolamento, proteção de seus cidadãos e proteção de sua esfera de influência.

O primeiro princípio, o respeito ao Direito Internacional Público é, definitivamente, contro-verso e não transmite muita confiança à comunidade internacional, dado que o país já o desrespeitou uma vez e não teria razões para não fazê-lo novamente. Ou seja, o respeito às instituições legais inter-nacionais dar-se-iam apenas enquanto se conformassem com os interesses nacionais; a partir de então, a consecução destes teria primazia. A defesa da legalidade, no entanto, serve à Rússia em casos específicos, nos quais esta faz questão de invocá-lo: é o caso da independência kosovar. Esta é, claramente, a posição defendida pelo realismo defensivo: seguir os interesses nacionais, não as instituições internacionais.

O segundo princípio, a constatação de um mundo multipolar, expressa a visão da Rússia defendida pelos realistas defensivos, uma potência atualmente em crise que não aceita viver em uma ordem mundial unipolar. Dado que não lhe é possível alcançar o status de superpotência novamente,

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ninguém deve possuí-lo, pois o mundo não pode viver em um ordenamento no qual apenas um país ou uma coalizão decidem por todos.

O terceiro princípio é o não-isolamento, que de acordo com vertente defensiva é essencial para a recuperação russa de sua antiga posição como potência. Manifesta-se, neste ponto, a primor-dial defesa do interesse nacional e a noção de que as relações com o Ocidente devem pautar-se por esta, não por valores, em comum .

O quarto princípio é a proteção dos cidadãos russos onde estes se encontrarem, justificando, assim, uma possível intervenção russa em vários países fronteiriços nos quais esta comunidade é numerosa, como é o caso da Ucrânia, que, temendo algo similar, busca integrar-se à OTAN. Fi-nalmente, o último princípio, manifesta a preocupação russa com a manutenção de sua esfera de influência, esta não se restringindo aos ex-membros da União Soviética, na qual os interesses russos não devem ser colocados em perigo.

3 Considerações finais

Pela nova doutrina de política externa, revela-se que, embora fortemente influenciado por Vladimir Putin, agora primeiro-ministro, o presidente Medvedev adotou uma posição mais mode-rada, conquanto não menos nacionalista, correspondente à proposta pelo realismo defensivo. Sendo assim, a Rússia se insere no cenário internacional como uma potência em reconstrução, cujos inte-resses devem ser respeitados, e cujas demandas devem ser consideradas seriamente.

Contra o argumento de que o arsenal russo e sua capacidade militar em geral estariam de-fasados, a rápida ação na Geórgia mostrou que a Rússia é capaz de atuar rápida e incisivamente na defesa de seus interesses nacionais. Esta, entretanto, não é a política “first best”; o antigo baluarte soviético está disposto a negociar e aprofundar suas relações com o Ocidente, mas este relaciona-mento, embora pragmático, deve basear-se em premissas distintas das utilizadas após a década de 90.

As relações com os Estados Unidos, particularmente, devem pautar-se em novos pressupos-tos, diferentes dos empregados pelo governo George W. Bush. Durante seus oito anos de mandato, coincidentes, em grande medida, com os mandatos de Vladimir Putin, as relações russo-americanas se deterioraram, afirmando o atual presidente Medvedev, que não há confiança nas relações entre os dois países (Council on Foreign Relations, 2008), situação que deve ser modificada. Ainda, o presi-dente afirmou não terem sido comuns os pontos de concordância entre os dois governos ao longo da década, lamentando o fato e expressando seu desejo de reversão do quadro atual.

As características da nova política externa, portanto, percebidas nas declarações dos novos princípios norteadores da conduta exterior do governo e nas manifestações do Chefe de Estado

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russo, conformam-se ao realismo defensivo, isto é, propõem-se claramente à defesa dos interesses nacionais, buscando nova forma de inserção internacional do país, evitando o isolacionismo, aproxi-mando-se do Ocidente - à medida que assim o permitam as conjunturas internacional e interna de cada país – e reivindicando sua hegemonia sobre o “exterior próximo”, sem, entretanto, valer-se da força militar, da política de poder pura, na consecução destes objetivos.

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FormataçãoDIREÇÃO DE ARTE: André Luis

DESIGNER RESPONSÁVEL: Mariana ZagoCAPA: André Luis

PAPEL: Couchê 250gACABAMENTO: Laminação fosca

MIOLO: André Luis e Mariana ZagoMEDIDAS: 16 x 23cm

TIPOLOGIA: Adobe Caslon ProISSN 2178-1842

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Interação / Universidade Federal de Santa Maria. Centro de Ciências Sociais e Humanas. Departamento de Ciências Econômicas – Vol. 1, n. 1 (jul/dez. 2010)- . – Santa Maria, 2010-

Semestral. ISSN: 2178-1842 Vol. 1, n. 1 (jul/dez 2010). CDU 327

Ficha catalográfica elaborada por Maristela Eckhardt - CRB-10/737Biblioteca Central da UFSM