static.fnac-static.com · deixavam-me orar durante mais de duas horas após o ... morte de santo...

18

Upload: ngotram

Post on 11-Feb-2019

213 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Título original To Že Byl Život?© 2018, Tomáš Halík

Tradução © 2018, Paulinas EditoraTradutora Anna Nemcova de Almeida

Capa © Daniel ŠormFoto de capa © Jana Jabůrková

Pré-impressão Paulinas Editora – Prior VelhoImpressão e acabamentos Artipol – Artes Tipográficas, Lda. – Águeda

Depósito legal n.º 446 792/18ISBN 978-989-673-662-0

(edição original 978-80-7422-642-7)

© Outubro 2018, Inst. Miss. Filhas de São PauloRua Francisco Salgado Zenha, 11 2685-332 Prior VelhoTel. 219 405 640 – Fax 219 405 [email protected]

SEM VALOR COMERCIAL

A presente publicação foi realizada com o apoio do Ministério da Cultura da República Checa.

3

Com a sua história de vida, Tomáš Halíkleva-nos a muitos lugares inusitados

e a diferentes situações da vida. Ele descreve a sua infância no estalinismo, a sua conversão ao cristianismo, a «Primaverade Praga» e a ocupação soviética em 1968, a sua secreta ordenação sa cerdotal e o seu trabalho na «Igreja clandestina». Narra ainda o seu envolvimento na «Revoluçãode Veludo», em 1989, e as mudanças ocorridasdurante a construção da democracia. Ao fazê-lo,ele não apenas documenta o seu processo de maturidade intelectual e espiritual, mas tam bém fala, abertamente, das suas crisese conflitos internos. Tomáš Halík está, assim, na tradição de Santo Agostinho, que criou um novo género literário com suas Confissões: a combinação da autobiografia com considerações teológicas e filosóficas.

SUMÁRIO

1. No início dos caminhos2. O caminho para a fé3. O caminho da primavera4. O caminho para o sacerdócio5. O caminho da Igreja clandestina6. O caminho do despertar7. O caminho da catarse8. O caminho da transição9. O caminho da fundação

10. O caminho da noite11. Pelo caminho da política?12. Os caminhos pelo mundo13. O caminho para o silêncio eterno

4

Já nos tempos de escola, sempre me atraíram as figu-ras dos opositores, dos «dissidentes» que iam contra a

multidão, contra a maioria e o poder, contra os preconcei-tos, a «opinião pública» e as ideologias oficiais. Foi talvezassim, nos anos da minha mocidade, a minha perceção deJoão Huss, mais tarde, de Masaryk na sua luta contra oantissemitismo durante o «caso Hilsner» (o paralelo checoao processo de Dreyfus) e de Karel Čapek nos tempos dofinal da sua vida, em que ficou exposto ao «linchamento»da gentalha da rua e da imprensa da direita nacionalista ecatólica. É possível que uma das primeiras fontes daminha conversão tenha sido também o filme inglêsBecket, o favorito do rei, no qual me cativou a personagemdo bispo que se opôs com coragem ao rei, aos magnatasbárbaros e ao clero colaboracionista e oportunista. Sempredetestei a injustiça e, na escola, soube tomar o partido dosinjustiçados, e os professores chamavam-me «o advogadodos pobres».

5

6

Na véspera do Ano Novo de 1984, como em todas asúltimas noites do ano, cheguei à Catedral de São Vito paraen cerrar o ano diante do Senhor e suplicar pela sua bên -ção para o ano vindouro. Os sacristãos já me conheciam edeixavam-me orar durante mais de duas horas após oencerramento do templo, enquanto limpavam toda a cate-dral. Naquela noite, concentrei-me com muita dificuldade.E, depois, aconteceu que caí em oração como uma pedranum poço fundo. E das profundezas surgiram pensamen-tos que nunca me tinham ocorrido antes. O milénio damorte de Santo Adalberto estava a aproximar-se e eranecessário que não apenas a Igreja, mas toda a nação esti-vesse preparada para esse momento. Era necessária umapreparação sistemática, como foi a «Grande Novena» dacristianização da Polónia, pela qual rezou o cardeal Wys -zinsky no seu enclausuramento. Era necessário apelar atodas as pessoas de boa vontade, era necessário curar etransformar as mentes e os corações porque vinham aítempos novos...

Nunca antes pensara nisso, mas, quando estava a sairtodo gelado da catedral escura, essa ideia ardia dentro demim. Só em casa fui ver quando é que tinha morrido exa-tamente o Santo Adalberto e descobri que ainda haviavários anos para a preparação. Depois, a «grande novena»poderia começar. A primeira pessoa com quem abordeiesta ideia, ainda inacabada, foi o meu confessor de então,

Petr Piťha; e eis que ele também tinha pensado em coisasse melhantes, e os nossos pensamentos em muito se com-plementavam como duas partes de um anel partido.

Assim nasceu a iniciativa do «Decénio da RenovaçãoEspiritual da Nação». Esta iniciativa devia ser uma prepa-ração não só para o milénio de Santo Adalberto, mas tam -bém para a entrada no novo milénio. Devia ser uma espé-cie de laboratório de um novo estilo de vida para o terceiromilénio que se aproximava. Devia ser um grande exercí-cio comum, um reflexo da tradição, mas acima de tudouma redescoberta dos valores que poderiam ser incorpo-rados nos fundamentos de uma sociedade futura. Senti -mos a proximidade das grandes mudanças na sociedadee não queríamos que se limitassem a uma mera peres-troika de Gorbatchov. Sabíamos que, se quiséssemos umarenovação radical (ou seja, até às raízes) da sociedade, elanão devia ficar-se apenas pela transformação das rela-ções externas, mudanças nas estruturas políticas e econó -micas, mas devia ser uma «revolução nas cabeças e noscorações», ou melhor, uma cultivação da atmosfera morale geral da sociedade.

Sim, a maioria dos crentes, incluindo os sacerdotes,passa, provavelmente, pelo menos uma vez na vida, poruma grande crise espiritual.

Esta pode ser despoletada por algum conflito interpes-

7

8

soal ou por uma frustração causada pelo comportamentohu mano na Igreja, podendo assumir a forma de uma crisegeral de confiança para com a instituição Igreja ou umadeterminada comunidade. No caso dos sacerdotes, podeser uma crise da vida celibatária ou um abalo da própriaidentidade sacerdotal ou religiosa. A crise pode ser cau-sada pelo esgotamento e sobrecarga total e, mesmo entreos sacerdotes, a síndrome de burnout [esgotamento] é fre-quente. Às vezes, falamos sobre a «acédia, o demónio domeio-dia», que é o estado de uma crise súbita e um abati-mento na meia-idade. Pode ser a «síndrome da porta fe -chada» quando o homem sente que está a envelhecer eque o horizonte das suas expectativas de vida e a sua mo -ti vação estão a mudar. E pode ser uma crise de fé, quando,devido a alguns acontecimentos estressantes e súplicasde satendidas, a atual imagem de Deus escurece e o ho -mem põe em dúvida a sua bondade, a sua proximidade e,às vezes, até mesmo a sua existência. Às vezes, o homemsente mesmo uma aversão a tudo aquilo que é religioso eespiritual, incluindo a oração, mesmo que antes esta sig-nificasse muito para ele. Quem é que consegue distinguiros níveis, geralmente entrelaçados de forma complicada,do sofrimento espiritual, psíquico, físico ou interpessoal?

Há uma vasta gama de formas infelizes de lidar comestas crises. No caso de sacerdotes e clérigos, tenho vistovárias reações típicas. Alguns de facto «perderam a fé»sem serem capazes de admiti-lo, tornando a religião umofício. Outros tentaram adormecer e compensar essa

«perda de fé» não assumida. Entre esses encontra-se amaioria dos defensores fanáticos da ortodoxia, que proje-tam as suas próprias dúvidas nos outros, perseguindo-osfervorosamente e punindo-se assim inconscientemente asi próprios. Outra compensação comum costuma ser umadevoção forçada, uma atividade entusiasta em vários mo -vimentos da Igreja e um aumento da atividade missioná-ria e pastoral. No entanto, são bem conhecidas outras rea-ções, tais como alcoolismo, fixação na carreira ou nasposses (transfigurada, por exemplo, em vários tipos de«colecionismo»), abandono do ministério sacerdotal ouuma relação sexual secreta. E não esqueçamos tambémos zelosos do campo oposto. Muitos combatentes pela re -n ovação da Igreja, muitos críticos incansáveis da «hierar-quia de Roma», muitos combatentes entusiastas pela abo-lição do celibato e pelo sacerdócio das mulheres e muitoslutadores contra os «fundamentalistas» encontram-se, àsvezes, entre aqueles que com tais atividades abafam aosgritos a «perda da fé», aquela fé que inadmitidamenteinvejam aos «fundamentalistas».

Ao longo dos anos, a Paróquia Académica de Pragatornou-se um importante lugar de diálogo ecuménico einter-religioso. Recebemos entre nós o Dalai Lama tibe-tano, vários rabinos de diferentes países, monges budistasdo Tibete e do Japão, um imã do Iraque, o sumo sacerdote

9

10

do santuário xintoísta imperial japonês e muitos outros.Depois de uma meditação conjunta e de um debate com oDalai Lama tibetano, alguns sacerdotes reprimiram-mepor espalhar entre os jovens o «indiferentismo religioso».Não é verdade. Vi que muitas vezes acontece que os estu-dantes que tinham recebido do seu catequista os habi-tuais clichês esquemáticos sobre o Budismo e outras reli-giões, mais tarde, como é hoje costume, nas suas viagensao estrangeiro realmente encontraram-se, ao contrário doseu catequista, com os budistas e com os seguidores deoutras religiões. Perceberam que aquilo que tinham ou -vido sobre as outras religiões no meio católico era umcon junto de preconceitos, manifestação de ignorância efalta de vontade de compreender, o que, às vezes, os levoua perder a confiança não só no sacerdote que lhes tinhaapresentado esses pontos de vista, mas também na credi-bilidade da Igreja católica e nos seus ensinamentos. Eusempre tentei mostrar aos alunos as outras religiões comoelas realmente são, se possível, «em primeira mão», apon-tando que, para sermos filhos fiéis da Igreja, não precisa-mos de rebaixar e de denegrir as outras religiões.

Depois tive outro pensamento: que o que João da Cruzdiz sobre a situação de uma alma individual pode ser apli-cado a épocas culturais inteiras. Porventura não será aépoca que muitos caracterizam e realmente vivem como

a época da «morte de Deus» também apenas uma «noiteescura do espírito»? Não será o ateísmo do nosso tempo, ecom isto quero dizer o ateísmo existencial dos testemu-nhos de Nietzsche, Heidegger e Sartre, não um «ateísmoin tuitivo», superficial, daqueles que não colocam a si pró-prios quaisquer perguntas espirituais, mas também umaespécie de experiência religiosa?

Quando voltei para a Faculdade de Letras, comecei adedicar-me intensamente à história do ateísmo filosóficomo derno, especialmente ao tema da morte de Deus emHegel, Nietzsche e outros. À luz do meu encontro com omisticismo cristão, tive a ideia de que tudo aquilo de queesses escritores falam, seja denominado de perda, eclipse,silêncio ou morte de Deus, pode não ser algo «exterior» àhistória e à experiência da fé. Porventura não pertencerá a«noite escura» ao caminho para Deus? Então, pela pri-meira vez, pensei: não será o ateísmo, ou pelo menos umasua forma concreta, em vez de uma «não verdade», apenasuma «parte da verdade»?

Já andei por muitos caminhos e vivi muitas experiên-cias, e ainda não estou no fim. Ainda tenho muito queaprender, muito que amadurecer, muito que expiar emuito que agradecer. Eu provavelmente ainda não cumpria tarefa que me foi confiada, e talvez ainda não a tenhaen tendido adequadamente.

11

12

Saint-Exupéry diz no Principezinho: «O mais impor-tante é invisível aos olhos.» Raramente percebemos comoDeus opera nas nossas vidas. Imagino que seja como étecido um tapete oriental. Se olharmos para a parte de trásde um tapete, tudo o que vemos é um labirinto bastantefeio de fios e nós. Quando o tapete finalmente é acabado ere virado, ficamos surpreendidos pelo seu anverso com osseus ornamentos simétricos e cores vivas. Esta esperançadeu-me força nos períodos muito enredados da minhavida.

Quando voltei à minha experiência dramática na An -tár tida, lembrei-me da cena dos Evangelhos quando osdiscípulos começaram a entrar em pânico no tempes-tuoso mar da Galileia, enquanto Jesus dormia pacifica-mente no meio deles. Jesus prega por meio do seu sono.Ocorre-me, até para mim, que o seu sono nessa cena éuma revelação da sua missão, com uma maior profundezado que o milagre subsequente, que é forçado a executarpor causa da falta de fé dos discípulos. Jesus não chegaem nome de algum deus ex machina, um deus nos basti-dores, que, se nos portarmos bem e fizermos isto ouaquilo, elimina todas as tempestades e organiza as nossasvidas de acordo com os nossos desejos. Jesus nega um talDeus que estaria para lá dos limites do nosso mundo,alguém que poderia ser puxado para o mundo através documprimento da Lei, dos sacrifícios, da fé em opiniõesdoutrinárias corretas, ou outros comportamentos religio-sos. Por estar entre nós e as nossas tempestades como um

13

homem livre do medo, Jesus é capaz de nos infetar com asua calma. Esta não é a calma de um sábio estoico ou deum herói que pode garantir um final feliz de cada crise,graças à sua inteligência ou força. É a paz daquele dequem a esperança e a confiança irradiam. O Deus deJesus não é um «deus nos bastidores», é o fundamento e apro fundidade do nosso ser. Distanciamo-nos dele atravésdo medo que naturalmente assume o controlo de nós,quando pensamos em nós mesmos no meio de redemoi-nhos e tempestades, mas entramos em contato com Elequando deixamos um espaço livre dentro de nós mesmos,embora silencioso e adormecido. Sim, Deus sabe estarsilencioso e também nos ensina o silêncio.

Um teólogo, especialista religioso e sacerdote, tem defalar sobre Deus. É ainda mais importante que tambémseja capaz de permanecer em silêncio sobre Deus e deouvir o silêncio de Deus. Se aqueles de nós que falam deDeus «profissionalmente» não devem ser blasfemos imo-destos, devemos também cultivar a comunicação silen-ciosa com o inexprimível mistério, a comunicação que sechama vida espiritual. As nossas palavras devem provirdo silêncio e fluir para ele.

de novo em Portugal20-22 de novembro

DA IGREJA CLANDESTINA

AO L ABIRINTO DA LIBERDADE