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1 Orfandade Mental Alicia Beatriz Dorado de Lisondo (Coord.) * Ana Maria Queiroz Guimarães Protti ** Clícia Assumpção Martarello de Conti Elizabeth Gnatos Lombardi Garbellini *** Leila Gnatos Lombardi *** Nelson José Nazaré Rocha *** Introdução O Centro Corsini é uma Organização Não Governamental que tem por objetivo atender à população infectada pelo vírus HIV e seus familiares. Entre suas diversas atividades, o Centro mantém a Unidade de Abrigo Infantil “Vila das Pipas” que abriga crianças e adolescentes ligados à área de atuação do Centro Corsini. Somos membros da Equipe do Serviço de Psicologia Psicanalítica do Centro Corsini e temos, no presente, como foco primordial de nosso trabalho, a referida Unidade de Abrigo Infantil (UAI). Nosso leque de ação procura ser o mais abrangente possível. Arrolaremos de maneira sucinta nossas frentes de ação: observação de bebês pelo método de Esther Bick; Avaliação psicanalítica de crianças e adolescentes; Psicoterapia psicanalítica de crianças e adolescentes; Intervenção precoce; Grupo operativo com os funcionários do abrigo; Serviço de acompanhantes terapêuticos para as crianças e adolescentes que estão em psicoterapia; Grupo de pais; Intervenção psicanalítica nos processos de adoção. Nosso objetivo neste trabalho é verificar a estruturação da subjetividade quando há uma orfandade mental pela falta do objeto real, ou seja, quando os pais biológicos não podem exercer a função materna e paterna a tal ponto que exija o abrigo dessas crianças em uma instituição, que passa a cumprir essas funções. Denominamos orfandade mental quando a privação das funções materna e paterna é um estigma no destino da criança desde o útero mental materno, quando a sua vida é marcada pelo sinistro, isto é, quando o infans é privado do bom contato psíquico com a mãe e/ou pai durante a gravidez e após o nascimento. Temos como hipótese que a orfandade mental das crianças institucionalizadas leva a uma configuração psíquica na qual se destacam: falha na estruturação da identidade primária o ser; falha na regulação narcísica auto-estima; depressão essencial; sobreadaptação; e outros fatores a investigar nesta configuração. A orfandade mental é paradigma epistemológico para nosso trabalho; segundo Freud há um desamparo estruturante para a pessoa humana. Assim como há diferentes depressões, há também diferentes solidões que necessitam ser precisadas. Talvez o específico dessa orfandade mental seja o desencontro fundamental que leva ao inominável e ao impensável do homem diante do sinistro. A orfandade, que pressupomos estar na raiz de uma forma particular de sobreadaptação, dificulta a identificação projetiva, pela falta da disponibilidade de um objeto continente que possa recebê-la. A orfandade mental real pode tomar dois destinos diferentes: a deterioração mental, que leva à atuação da dor, ou aos enclaves autistas; ou, tomar o caminho da construção da subjetividade, através da dor transformada. Entendemos que a orfandade mental é uma metáfora da privação primária das funções materna e paterna, pela falta real do objeto. Através da avaliação psicanalítica de crianças e adolescentes e da observação de bebês pelo método de Esther Bick 1 , pretendemos estudar nossa hipótese, que é oriunda da clínica. Com José, Cássia e Carlos, enfocamos a singularidade, na especificidade do trabalho no setting analítico. A posteriori, com os recortes destas tragédias existenciais, nos debruçamos para nelas pensar, tentando encontrar o que elas podem apresentar como hipóteses teóricas em comum: a orfandade mental. * Membro Efetivo, Analista Didata e Analista de Crianças e Adolescentes da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo ** Membro Associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo *** Do Instituto de Psicanálise Durval Marcondes da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo 1 O relato clínico, bem como as discussões clínicas encontram-se nos anexos, no final deste trabalho.

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Page 1: ** Clícia Assumpção Martarello de Conti Elizabeth Gnatos ... · a tal ponto que exija o abrigo dessas crianças em uma instituição, que passa a cumprir essas funções. ... aceitá-lo

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Orfandade Mental

Alicia Beatriz Dorado de Lisondo (Coord.)*

Ana Maria Queiroz Guimarães Protti**

Clícia Assumpção Martarello de Conti

Elizabeth Gnatos Lombardi Garbellini***

Leila Gnatos Lombardi*** Nelson José Nazaré Rocha***

Introdução

O Centro Corsini é uma Organização Não Governamental que tem por objetivo atender à população

infectada pelo vírus HIV e seus familiares. Entre suas diversas atividades, o Centro mantém a Unidade de

Abrigo Infantil “Vila das Pipas” que abriga crianças e adolescentes ligados à área de atuação do Centro

Corsini.

Somos membros da Equipe do Serviço de Psicologia Psicanalítica do Centro Corsini e temos, no presente,

como foco primordial de nosso trabalho, a referida Unidade de Abrigo Infantil (UAI). Nosso leque de

ação procura ser o mais abrangente possível. Arrolaremos de maneira sucinta nossas frentes de ação:

observação de bebês pelo método de Esther Bick; Avaliação psicanalítica de crianças e adolescentes;

Psicoterapia psicanalítica de crianças e adolescentes; Intervenção precoce; Grupo operativo com os

funcionários do abrigo; Serviço de acompanhantes terapêuticos para as crianças e adolescentes que estão

em psicoterapia; Grupo de pais; Intervenção psicanalítica nos processos de adoção.

Nosso objetivo neste trabalho é verificar a estruturação da subjetividade quando há uma orfandade mental

pela falta do objeto real, ou seja, quando os pais biológicos não podem exercer a função materna e paterna

a tal ponto que exija o abrigo dessas crianças em uma instituição, que passa a cumprir essas funções.

Denominamos orfandade mental quando a privação das funções materna e paterna é um estigma no

destino da criança desde o útero mental materno, quando a sua vida é marcada pelo sinistro, isto é,

quando o infans é privado do bom contato psíquico com a mãe e/ou pai durante a gravidez e após o

nascimento.

Temos como hipótese que a orfandade mental das crianças institucionalizadas leva a uma configuração

psíquica na qual se destacam: falha na estruturação da identidade primária o ser; falha na regulação

narcísica auto-estima; depressão essencial; sobreadaptação; e outros fatores a investigar nesta

configuração.

A orfandade mental é paradigma epistemológico para nosso trabalho; segundo Freud há um desamparo

estruturante para a pessoa humana. Assim como há diferentes depressões, há também diferentes solidões

que necessitam ser precisadas. Talvez o específico dessa orfandade mental seja o desencontro

fundamental que leva ao inominável e ao impensável do homem diante do sinistro. A orfandade, que

pressupomos estar na raiz de uma forma particular de sobreadaptação, dificulta a identificação projetiva,

pela falta da disponibilidade de um objeto continente que possa recebê-la. A orfandade mental real pode

tomar dois destinos diferentes: a deterioração mental, que leva à atuação da dor, ou aos enclaves autistas;

ou, tomar o caminho da construção da subjetividade, através da dor transformada. Entendemos que a

orfandade mental é uma metáfora da privação primária das funções materna e paterna, pela falta real do

objeto.

Através da avaliação psicanalítica de crianças e adolescentes e da observação de bebês pelo método de

Esther Bick1, pretendemos estudar nossa hipótese, que é oriunda da clínica. Com José, Cássia e Carlos,

enfocamos a singularidade, na especificidade do trabalho no setting analítico. A posteriori, com os

recortes destas tragédias existenciais, nos debruçamos para nelas pensar, tentando encontrar o que elas

podem apresentar como hipóteses teóricas em comum: a orfandade mental.

* Membro Efetivo, Analista Didata e Analista de Crianças e Adolescentes da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo ** Membro Associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo *** Do Instituto de Psicanálise Durval Marcondes da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

1 O relato clínico, bem como as discussões clínicas encontram-se nos anexos, no final deste trabalho.

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Patologias Do Vazio

Vários autores pós-freudianos ofereceram contribuições ao drama dos pacientes muito perturbados,

(Bleger, 1975; Green, 1986; Tustin, 1987; Meltzer, 1973; Anzieu, 1987; Lutenberg, 2001, entre outros).

A mente não está constituída como continente para acolher conteúdos, há uma alteração da relação

continente-contido (Bion, 1970). Os pacientes com vazio mental passam da angústia sinal (Freud, 1926)

ao terror sem nome (Bion, 1967).

Isto indica a fragilidade narcísica de suas identificações estruturantes. A identificação é um processo e

uma estrutura, é o núcleo sobre o qual se estrutura o Ego e o Superego. A fragilidade na coesão narcísica

provoca a vulnerabilidade. Após Freud, a frustração é o ponto de partida que exige elaboração do

aparelho psíquico. A frustração é não realização, espera, expectativa, ao contrário da privação, que é a

falta do básico para vir a ser, a falta daquilo que nunca se teve, o déficit.

Nas defesas simbióticas o objetivo é anular a dor psíquica produzida pela perda. Há substituição objetal e

fusão com o objeto substituído. Há regiões da mente sincréticas, que efetuam vínculos simbióticos por

toda a vida (Bleger, 1975). Há uma compensação do terror e uma paralisia do tempo. O vínculo sincrético

leva à indiscriminação. A intervenção da cuidadora ao qualificar José como tímido, no início da primeira

hora de avaliação, é reveladora. A presença de um vínculo simbiótico é testemunha de situações

traumáticas precoces. A simbiose secundária é uma defesa contra o vazio e o terror, perpetuando os

vínculos eternamente sincréticos. José é surpreendido pelo lugar que o setting lhe oferece. Às perdas

objetais, há substituições e não lutos.

Distintas cisões estruturais egóicas estão presentes no sujeito, sem o menor contato entre elas e também

sem a possibilidade de síntese. Os abortos psíquicos padecidos na história pessoal cavam o vazio e o

terror mental. As rupturas simbióticas acentuam o tédio vital, um aborrecimento vazio. O vazio mental é

uma estrutura presente nos vínculos simbióticos secundários.

Em 1920 Freud postula a existência de repetições além e aquém do Princípio do Prazer. A pulsão de

morte, muda, é geradora de desuniões, do trabalho do negativo ( Green, 1993). A Reação Terapêutica

Negativa é compreendida como uma compulsão à repetição, que está além do Princípio do Prazer, na qual

busca-se a carga que instaure a inscrição psíquica faltante, em vez da descarga. Em 1926, Freud coloca a

angústia em primeiro lugar; também conceitua as resistências, entre elas, a do Id. A compulsão à

repetição está ligada à esta última. É trabalho terapêutico fazer com que Eros amorteça o trabalho de

Tânatos. O núcleo do processo são as identificações estruturantes no Ego e no Superego. Nos pacientes

severamente perturbados, a parte psicótica da personalidade (Bion, 1957) impulsiona as quantidades de

energia para o exterior, como se não houvesse frustração a limitar o desejo. É construída uma nova

realidade que descarta o ‘não’, aceitá-lo provocará um desmoronamento narcísico de todo o Ego. Outros

setores egóicos, juntamente com o Id, estão unidos oceanicamente ao mundo circundante, formando um

contínuo indiscriminado (Freud, 1930)

O bebê nasce com um Id com múltiplas protofantasias e disposições a serem desenvolvidas. Para Bion

(1976) a angústia e o pânico podem ser experimentados pelo ser humano, antes da vivência extra-uterina.

Para Winnicott (1982), as vivências de terror pertencem às vivências muito primitivas de break-down e

vazio, que são temidas no futuro. O vazio para ele corresponde a estágios muito primitivos de não-

integração.

Com Bion (1962), o vazio mental se entende através da identificação projetiva maciça: quando o paciente

tenta pensar, produz-se um esvaziamento mental com a expulsão dos elementos beta. Estes elementos são

evacuados junto com a emoção a ser eliminada, com o registro desta emoção, e com a capacidade para

pensar. A eliminação progressiva destes elementos gera o empobrecimento mental. Com estes pacientes

somos testemunhas, na transferência, da orfandade mental.

A violência da identificação projetiva maciça pode evacuar seus componentes num espaço exterior,

criando o objeto bizarro (Bion, 1957), que é colocado no lugar da ausência. O objeto bizarro condensa as

qualidades originais do objeto e lhe acrescenta múltiplas funções provenientes da parte psicótica da

personalidade. Ocupa o lugar que deveria ocupar a ausência como pensamento.

O desafio técnico destas patologias é a edição transferencial, em vez de analisar as resistências para

levantar a repressão, como Freud nos aponta na neurose. Na segunda tópica freudiana, o Id se transforma

em Ego, a partir da percepção; simultaneamente, há uma identificação com o objeto (Freud, 1923). Por

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isso, na edição transferencial, o Ego e o Superego estarão sendo criados. A tarefa é a reconstrução da

mente como continente. Um verdadeiro nascimento psíquico. O trabalho é de restauração e criação de

funções mentais. É tarefa analítica representar psiquicamente conteúdos sem representação inconsciente

(Freud, 1915c). O terror é vivido, mas como não tem registro, não pode ser recordado. Com dimensões

teóricas diferentes, Freud, Bion, Winnicott e Meltzer postulam que quem registra o terror é a mãe. Uma

interpretação deve ser aberta, permitindo a ampliação da rede de significação na transferência com o

analista, que é um catalisador semântico, onde a linguagem se faz história (Ver desenho de Cássia, no

desenho 2). José nos revela o interjogo entre o editado e o inédito, que é o verdadeiro interesse por ele.

Do interjogo transferência-contratransferência depende que o futuro não seja repetição, que reedita uma

história, e sim uma edição criativa. Os pensamentos inéditos, pensamentos sem pensador paridos no

processo, exigem outra postura técnica do analista. A edição (Lutenberg, 2001) constitui-se por uma

gramática especial: os sonhos, as associações livres e corporais, a gramática e a semântica das atuações, a

contratransferência, o sentido do setting. Como criar uma edição sem repetição é o desafio.

A Construção Da Subjetividade Na Intersubjetividade

Os níveis mais primitivos da mente em seu estado proto-mental, o pré-natal, o somapsicótico estão pouco

diferenciados do corporal (Bion, 1976; Rascovsky, 1977; Bianchedi, 1997). Estes níveis perduram na

personalidade nascida, mantendo entre si uma relação conflituosa, na qual não há comunicação. Bion

(1976) conceitua essas formações arcaicas, que perduram na personalidade, como vestígios de fenômenos

pré-natais e denomina as proto-emoções como ‘terror sub-talâmico’. O medo de auto-agressão, que leva

ao ataque ou fuga, não está controlado pelos níveis superiores da mente e, portanto, não tem significado

mental. A personalidade total para Bianchedi (1997) inclui os aspectos pré-natais do bebê, da criança, do

latente, do adolescente e do adulto. O corpo, as identificações no Ego corporal (Haag, 1991) e os aspectos

primitivos da mente coexistem. Estes aspectos primitivos podem também ser fonte da criação e

originalidade.

O bebê intruso, não desejado, não sonhado e não nomeado está, como todo bebê, gerando em seu corpo

um Ego corporal e um psiquismo primitivo. Este Ego gesta relações objetais primitivas no útero (Aray,

1985). Neste nível primitivo, o Ego (Meltzer, 1984) não pode realizar representações mentais das

experiências emocionais, mas as traduz, reagindo a elas com estados corporais. O corpo é o cenário onde

explodem as angústias psicóticas avassaladoras, que a mente não pode elaborar.

Desde o útero materno, as experiências somáticas são vivenciadas como emoções cruas, que deixam suas

marcas no caráter do bebê. Esse tempo tem o poder da gênese.

A hipótese é de que há no infans, já ao nascer, maior vulnerabilidade e fragilidade psíquicas.

O trauma do nascimento é uma vivência arquetípica, que gera respostas atávicas, fonte primordial de

angústia (Freud, 1926). O infans abandonado sofre, com isso, uma situação traumática cumulativa (Kahn,

1963). A perda do ventre materno, paraíso inóspito para o infans não desejado, não é suficientemente

compensada. A privação é a falta do objeto, diferentemente da frustração, que é uma não realização

(Green, 1988). O infans também precisa adaptar-se aos desconhecidos e estranhos (Freud, 1919)

cuidadores. A criança, além da perda e separação de um corpo para dois (McDougall, 1987), sede do

psiquismo pré-natal durante a vida intra-uterina, perde, às vezes para sempre, o corpo familiar da mãe

biológica. Com o corte do cordão umbilical, pode instaurar-se a sangrenta ferida narcísica ao ser separado

das relações humanas sem o apego (Bowlby, 2001) a figuras confiáveis, que acalmem a angústia de

separação. O momento do nascimento está muito próximo ao momento da morte.

O abandono não é o dado anacrônico de uma história passada, ele se encarna nas dificuldades para

estruturar a subjetividade do bebê, num reconhecimento simbólico (Geffray, 1990).

Há fatores na história de um sujeito, que sem serem traumáticos em si mesmos, podem precipitar um

transbordamento de angústia, devido a uma maior sensibilidade ou predisposição. As respostas à situação

traumática podem se perpetuar se o bebê estiver exposto à repetição da situação.

Para Freud o sentimento de impotência, desvalimento (helflosigkeit), é algo tão central no

desenvolvimento de toda pessoa, que a partir dela pode-se explicar a emergência das formas particulares

de angústia. O desamparo estrutural se potencializa quando a criança abrigada carece da presença do

outro. A falta do objeto externo gera desamparo, que é material, no caso de perigo realista; e é psíquico,

no caso de perigo pulsional. O infans, por si só, não é capaz de sair da exigência pulsional.

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O Id, como núcleo central inato, requer seu desenvolvimento. A energia não está limitada àquilo que teve

nas origens, mas requer um outro para incorporar dele a pulsão, a emocionalidade, a vitalidade, o prazer

das distintas formas de sexualidade.

Se o objeto externo se apresenta, exercendo sua função continente de rêverie, pode conter a angústia e os

terrores da criança, dando-lhes significado e sentido, a fim de que se tornem pensáveis e simbolizáveis.

A presença do objeto externo identificado com o infans, dosando e apaziguando o que lhe é tolerável,

permitirá que se inscreva no psiquismo o sentimento de que o sofrimento não é infinito. Favorece ainda a

criação do continente interno (Bick, 1968), como condição estruturante para que não emane a angústia de

não integração, a angústia catastrófica (Meltzer, 1975), angústia de precipitação (Houzel, 1991), angústia

de liquefação (Athanassiou, 1982).

Todavia, o mal-estar persiste se o outro não sabe como tranqüilizar, ou ainda, se provocar mal-estar

reagindo com ira, com violência. A angústia diante do perigo por despertar o sofrimento do outro, diminui

a auto-estima, intensificando o sentimento de culpa e o horror ao sinistro. Instala-se uma experiência

desorganizadora, potencializando-se o desamparo, a orfandade mental.

Assim, é função do objeto externo: promover holding, (Winnicott, 1965); ser modelo de identificação,

formador do Superego e dos ideais do Ego (Freud, 1923); transformar a angústia automática em angústia

sinal (Freud, 1926); acalmar o sofrimento físico ou psíquico para garantir a continuidade da existência do

psicossoma, na esteira da ilusão e da onipotência (Winnicott, 1949). É poder usar rêverie, tolerando

dosadamente a frustração no contato com a realidade, transformando as emoções primitivas em

sentimentos, pensamentos, sonhos e símbolos. Assim, o psiquismo se cria na intersubjetividade (Lisondo,

1992).

Regulação Narcísica E Auto-Estima

Em 1930, Freud, ao referir-se ao narcisismo primário, fala de “um começo em que o Ego inclui tudo, logo

desprende de si um mundo exterior”(pg. 99). Esta frase de Freud registra, segundo Aragonés (1999), três

diferentes momentos evolutivos do Ego e do objeto, que são: 1) o tempo do Ego que inclui tudo; 2) o

tempo dos desprendimentos e 3) o tempo das formações resultantes.

Ao falar do Ego que inclui tudo, falamos do Ego oceânico, ou Ego cósmico, que inclui e se inclui em um

sistema planetário de objetos que são sujeitos.

O que caracteriza o narcisismo primário é a instabilidade de uma estrutura em trânsito, em busca do

narcisismo secundário, que se fará a partir das identificações, incluindo, portanto, a presença e a

discriminação do outro.

No narcisismo primário, Ego, objeto e auto-erotismo constituem uma unidade: o Ego objeto auto-erótico.

O instinto sexual, ao fazer-se auto-erótico, humaniza-se e, a pulsão sexual, no sentido que lhe dá a

Psicanálise, é narcísica. O desejo é originalmente narcísico, desejo de completude. A matriz do Ego, de

onde emerge o objeto, é a libido narcísica e “a auto-estima depende intimamente da libido narcísica”

(Freud, 1914, pg. 96).

Podemos considerar como narcisismo primário todas as formações que não passaram pelos

desprendimentos. Os desprendimentos do Ego criam espaços simbólicos, neuróticos, perversos, psicóticos

ou borderline, dependendo da elaboração da perda, se é cindida ou reprimida, dando lugar aos sintomas.

A criança não pode, por si mesma, satisfazer à exigência pulsional, acalmar-se das angústias e fantasias

aterrorizantes e lidar com a dor.

O ser humano nasce entre objetos que contêm o outro, o sujeito, um sujeito que pode objetivar-se e

fusionar-se, ou pode subjetivar-se e diferenciar-se. Aragonés (1999) denomina vínculo narcísico a esta

obrigatória imersão nesta rede, que aguarda e aparta bruscamente o indivíduo da natureza.

Esta relação é intersubjetiva e está centralizada na mãe, na função materna, sendo que todos os objetos

que rodeiam o bebê são objetos-mãe e são parte dele. Os objetos se subjetivarão e a presença do outro

será insinuada no tom da voz, nas carícias, no contato pele a pele. As perdas dão origem aos objetos e ao

mundo externo, cuja realidade se organiza com as perdas.

Há inicialmente sustentação egóica do bebê pela mãe (holding), para haver desprendimento e inserção na

realidade da castração, que culmina no Édipo, levando o indivíduo do auto-erotismo à heterossexualidade,

passando pelo narcisismo e pela homossexualidade.

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Todo indivíduo se coloca diante de outro com a esperança de ser aceito e amado com suas qualidades, em

que o anseio de receber reconhecimento é central. Fica marcado no inconsciente como uma cena

fantasiada, o desejo de ser alguém para o outro, de ser desejado.

A mãe, através do canal do rêverie (Bion, 1962), pode comunicar a paixão, mas pode também comunicar

o ódio, o desprezo, os seus elementos beta que potencializam os do bebê, em vez de transformá-los,

levando à exigência de sobreadaptação e ao rêverie maligno (Sor e Senet, 2001; Ribeiro,1997).

A auto-estima exige a participação inadiável do objeto externo, sendo sempre uma criação do meio

externo, que tem papel decisivo. O outro cria uma ilusão e um projeto identificatório, que pode

possibilitar o aparecimento de funções, que se supõe que o infans possua, no inconsciente, como

potencialidades a serem desenvolvidas.

O infans identifica-se com a imagem de si que lhe chega de fora. Se o sujeito constitui-se sob a

representação básica de que ele não pode realizar os desejos, ou enfrentar os perigos que o ameaçam,

desenvolve-se a impotência estrutural, expressa como ‘não sei’, ‘não posso’ ou ‘sou doente’.

Através do processo de introjeção constrói-se um olhar, que, de dentro, contemple o sujeito com

admiração. Quem não tem essa forma de regulação da auto-estima põe em evidência a falha do objeto

externo em contribuir com o desenvolvimento da função auto-especular.

Observamos na instituição, que o outro indiferenciado, representante da instituição, leva a criança a

acreditar que é incapaz, quando superprotege, nega a realidade e exige a sobreadaptação. A partir daí, a

fantasia inconsciente de impotência, base de certas depressões narcísicas, é metabolizada num código

narcísico, que se caracteriza por ‘se eu não posso eu não tenho valor’. Há então, um fenômeno de

articulação do sentimento de impotência com as estruturas do narcisismo e com angústias persecutórias,

quando o sentimento de impotência sofre uma transformação generalizadora, em que ‘não posso isto’,

passa a ser ‘não posso nada’.

Bleichmar (1981) considera que o narcisismo intervém na estruturação do indivíduo e pode ser

considerado um eixo, ao redor do qual, se organiza um setor da psicopatologia. Descreve falhas no

processo de narcisação, sendo uma delas a desqualificação primária, que se caracteriza pelo olhar crítico e

pelo desprazer do outro significativo, desde o começo da vida da criança, podendo levar à identificação

com esta atitude. Os registros mnêmicos destas experiências de rejeição passam a integrar a representação

do sujeito, com a qual se carrega com algo que não é simplesmente a ausência de catexia narcísica, mas

um vazio, com a presença viva de seu oposto, a rejeição.

Se há uma indiferença total dos pais em relação ao seu filho, ficará um vazio neste, a menos que um outro

substituto significativo venha a desempenhar a função falida. A falta nos pais, de um código que narcise

uma função, originará um déficit primário.

O narcisismo é o alimento das funções, já que provoca o anseio de repetição; e a subnutrição de

gratificação narcísica, a que estão expostos alguns indivíduos, pode conduzir a uma mutilação funcional.

A narcisação resulta então, de um encontro entre o olhar que se dirige a alguém e o olhar deste, que o

aceita. Entre um indivíduo que busca admiração e outro que o satisfaz. O movimento de encontro pode se

iniciar em qualquer um dos dois.

Para haver desenvolvimento humano é preciso que no amor esteja em ação a energia disponível de Eros.

A libido, Eros, força do vínculo, ligará o mundo interior através da relação com o objeto situado no

mundo exterior, mas que constitui-se pela incorporação do mundo interno. O mundo interno ligará o

objeto na sua unidade e religará o Ego e o objeto até os efeitos de intervenção do Superego, que imporá

limites a esta ligação, querendo-a legítima e preservadora da organização psíquica e social, religando

também, as histórias entre as gerações (Green, 2000).

Depressão

A depressão pertence à psicopatologia, podendo ser severa e incapacitante, ou um estado passageiro

(Winnicott,1963).Solicita uma visão de conjunto, considerando a psicopatologia e a clínica terapêutica.

No campo da Psicanálise, o orgânico e o psicológico se combinam e o interesse reside em pensar a

depressão dentro de uma teoria do afeto depressão ou um proto-afeto, e não como uma doença (Fédida,

2002).

Abraham (1911) e Freud (1926), forneceram elementos para pensarmos que a angústia e a depressão

abrigam dentro de si as marcas do trauma do nascimento, nos vestígios do desamparo infantil. Refere-se a

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uma perda do objeto e a uma reivindicação pela restituição mítica com o corpo materno destacando o

narcisismo primário em direta associação com o estado depressivo, colocando o desamparo ao centro de

suas reflexões.

O estado de desamparo resulta de duas tendências dinâmicas opostas. Uma de vitalidade e expansão,

criada pelas necessidades pulsionais e pelo universo humano, e outra de retraimento e inércia, regida pelo

impulso de morte. Cria-se um estado de tensão e desamparo, constituindo a origem e o molde primário do

espaço que caracteriza o psíquico, levando à formação do traço mnêmico. (Delouya, 2001).

A construção e a expansão do psiquismo têm na depressão uma importância central em conduzir à

integração e à diferenciação, fundamentais em qualquer acontecimento psíquico.

Spitz (1969) investiga cientificamente as condições de privação afetiva parcial e total, que criam a

Depressão Anaclítica. No contato com as crianças abrigadas na UAI, notamos certas manifestações que

fazem lembrar as descrições de Spitz.

Notamos também uma depressão crônica causada por um déficit primário de valorização por parte dos

cuidadores, na manutenção do sentimento da criança sentir-se um ser inferior. Eles oferecem um modelo

falho, pois eles mesmos sentem-se desvalorizados. A falta do sentimento de segurança ou de confiança

básica se enraíza neste déficit primário (Sandler, 1987).

Bowlby (1980), ressaltou a necessidade de distinguir a depressão enquanto estado afetivo, devido à

conseqüência da perda do objeto libidinal primário. A criança passa por uma série de fases que

denominou: protesto, desesperança, retraimento e desapego emocional

Podemos pensar em quatro linhas epistemológicas: a depressão conseqüente ao luto pela perda do objeto

(Freud, 1917); a depressão como conseqüência dos impulsos agressivos (Klein); a depressão narcísica,

por falta do investimento erótico materno e paterno sobre o sentido da vida do infans (Marty, 1995); e, a

depressão no nível da estrutura do desejo, que corresponde a uma condição, a privação do objeto, e

constitui um estado em que se perde a função desejante, por ser permanentemente irrealizável (Bleichmar,

1983). No presente trabalho estamos norteados pelas duas últimas abordagens.

Depois de todas essas considerações, vemos que a depressão, antes de tudo, é um estado de privação, uma

perda de amor de um objeto externo ou interno (Greenson, 1982). Os estados dolorosos de anseio pelas

tentativas de restituir o objeto perdido são para evitar o horror do vazio, a queda no escuro abismo e a

morte psíquica.

Sobreadaptação

A observação psicanalítica leva-nos a supor, à luz do conceito de sobreadaptação de Liberman (1982),

que a criança abrigada responde a uma ideologia definida pela instituição, que sustenta as inibições de

área corporais e funcionais, instauradas por uma determinada qualidade de vínculo.

No lugar de um holding, encontra-se op que parece ser um colete inibidor, evidenciado pela limitação nas

áreas do brincar e da fantasia, indicadores de uma redução do espaço psíquico.

A imposição de um modelo imaginário prévio e a prematuridade são configurações que se inscrevem no

vínculo (Freud, 1896), marcando o caminho de um tipo particular de sobreadaptação e de pseudo-

identidade, que significa não poder ser senão aquilo que for a expectativa dos ideais dos cuidadores da

instituição. Isto se constitui no aborto da paixão, (Bion, 1966), pela não aceitação do ódio, tomado como

destrutividade. A tentativa de anular o ódio pretende congelar a ambivalência estruturante do ser humano.

Para sobreviver, a criança tem que manter em uma parte da sua mente, a idéia delirante de cuidadores

bons e a promessa delirante de que todo terror, dor e ódio transformar-se-ão em amor (Shengold, 1979).

A criança vale-se dessa imagem mental do cuidador para enfrentar a aterrorizante intensidade do temor e

da raiva decorrentes da experiência de não poder ser.

A intolerância às expressões agressivas resulta numa imposição do modelo sobre a criança abrigada,

marcando uma patologia básica no processo de diferenciação entre o eu e o objeto, por não permitir o uso

da agressão como instrumento de diferenciação (Freud, 1915). Na indiscriminação com o objeto, o

próprio corpo passa a ser o estranho, e o corpo do outro é que passa a ser atendido peremptoriamente

(Marucco, 1998). Subjaz uma confusão de papéis (Ferro, 1995), na qual os cuidadores querem ser

cuidados pela criança institucionalizada, esperando que elas atendam suas exigências e idealizações. De

acordo com Sor (1993), na vertente do dogma, aquilo que tem que se cumprir implica na impossibilidade

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de transformação e elaboração, porque transborda a capacidade de continência do aparelho psíquico em

formação.

A instituição, por não tolerar as mudanças catastróficas (Bion, 1965) do desenvolvimento, identifica-se

narcisicamente com uma meta ideal (Chasseguet-Smirgel, 1975). Há um impedimento em aprender com a

experiência emocional (Sor, 1991), que implica em desenvolver paciência e tolerância à frustração, à

dúvida, ao aleatório e ao infinito. O cuidador, em vez de ser escudo protetor (Mahler, 1975), ou de

exercer a função de barreira de para-excitação dos estímulos (Freud, 1920), faz com que a própria criança

cumpra com essa função. O efeito disso é que ela passa a ‘não dar trabalho’ protegendo dessa forma a

instituição.

Spitz (1965), que observa o nexo entre a solicitude materna, seu exagero e as cólicas dos bebês nos

primeiros meses como um indicador primitivo dos distúrbios das relações objetais, chama a atenção para

o fato de que crianças criadas em instituições e privadas das atenções maternais comuns não apresentem

tais cólicas. Neste contexto, a proposição de um tipo particular de sobreadaptação, na raiz da orfandade

psíquica, surge como um corolário, onde o alimento psíquico parece estar separado da materialidade do

alimento recebido por essas crianças, e, por conseguinte, a inscrição do vínculo com o cuidador,

esvaziada de sentido. Pela lente de Winnicott (1960), temos handling sem holding. Pela de Bion (1962), o

splitting forçado.

A precocidade é uma das exigências da instituição, uma vez que a dimensão do infantil não pode ser

tolerada. Essa aparente precocidade tem como efeito a impossibilidade de desenvolvimento do sentido de

apropriação e reconhecimento de aspectos da própria identidade. No desenvolvimento da personificação,

Klein (1929) propõe o quanto é fundamental um processo de compromisso do eu, pois só assim as

identificações podem ser estruturais (Lutenberg, 1999), ao contrário das imitações. É como se cada

conquista evolutiva não pudesse ser vivida como uma conquista própria, nascida do mundo interno, e

ainda, segundo Fairbairn (1943), é como se a criança fizesse uma auto-lavagem cerebral para preservar o

vínculo com o objeto externo. Não se pode exercer o vínculo de conhecimento manipulando e

investigando a realidade.

Neste sentido seria insuficiente um ambiente facilitador, ele precisa também ser provedor, ou seja,

inscrever o que não está inscrito no inconsciente, despertar o que não está ativado: o desejo de desejar

(Bleichmar, 1997). A diferença entre o meio facilitador e o meio provedor fundamenta-se teoricamente

em definições de diferentes autores que abordam o surgimento e a sustentação da função desejante.

A discussão de diferentes escolas epistemológicas traz à baila a seguinte questão: é suficiente um meio

facilitador, que não coloque obstáculos a uma programação assegurada pelo interno do sujeito; ou

importa-nos, na patologia da orfandade mental, que os cuidadores constituam um meio provedor, que

permita aos abrigados tornarem-se seres desejantes e interpretantes?2

O Id é algo sem gênese nem história, fonte originária de energia. O outro humano ativa e desenvolve

estados pulsionais, que sem a sua participação estruturante não existiriam no sujeito. Laplanche (1992)

reformula a metapsicologia freudiana para incluir o poder do outro na constituição da pulsão do ser

humano. A vitalidade do contato corporal, a carícia que erotiza, o olhar que revitaliza, os braços que

suplicam, a linguagem que evoca, não só reestruturam a história anterior, mas ao descrever com

entusiasmo a realidade, despertam o desejo e a esperança.

Importa discriminar o necessário limite entre, de um lado, a onipotência; a capacidade de lidar com a

frustração; a lei estruturante, que proíbe o incesto, a destrutividade e o parricídio; e, do outro lado, o

dogmatismo e o narcisismo, que impossibilitam o respeito pela alteridade. A submissão mata

possibilidades existenciais. Os cuidadores podem transmitir, em vez da vitalidade e do direito de desejar,

a proibição do exercício do verbo diante de qualquer predicado. Localizamos, portanto, a limitação da

teoria que concebe um ser desejante auto-engendrado, e consideramos que o meio facilitador de

Winnicott, que destaca que o externo não perturbe o que é dado como potencialidade do sujeito, deve ser

complementado com a idéia de meio provedor, que se refere à função de contribuição do objeto externo.

As funções materna e paterna precisam dar aquilo que o sujeito não pode produzir por si mesmo.

Por outro lado, a superproteção, que infantiliza a criança e parte do pressuposto de que ela é incapaz,

produz a seu tempo, inibições das funções mentais. A instituição falha no encorajamento tanto da

2 Em nosso Serviço, esta função é exercida pelos Acompanhantes Terapêuticos.

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capacidade de vencer as situações de temor, como as tendências da regressão. Isso é o fundamento do

orgulho, da autoconfiança e do sentimento de apropriação de si mesmo, alicerces para que a criança não

incorpore funções antes de vivenciar o desejo.

Na dinâmica do desejo não vivenciado não há possibilidade de conquistas criativas, e sim o que

entendemos como cópias imitativas e estereotipadas do objeto, impostas à pseudo-identidade (Gaddini-

1969).

Imposição e prematuridade implicam em interferências no desenvolvimento da noção de privacidade, ao

mesmo tempo em que desvalorizam o que emana da interioridade da criança. Pela exigência superegóica

do cumprimento às normas e ao modelo, desenvolve-se um self ambiental, que sufoca o self verdadeiro,

inibindo o desenvolvimento de funções criativas, imaginativas e intelectuais. Essa dinâmica promove uma

desconexão com o mundo interno e fuga para tentar resolver as questões emocionais na realidade. Como

há uma evitação da exploração do mundo emocional e das raízes internas motivadoras da ansiedade, as

crianças não conseguem realizar autênticas transformações do afeto, restando eventos desmantelados de

sentidos, nos quais, segundo Meltzer (1975), não há integração, mas aglomeração e superposição dos

mesmos.

Na busca de uma precisão conceitual, que tem em vista a especificidade epistemológica de escolas de

pensamentos diferentes, Winnicott (1960) dá origem aos conceitos de verdadeiro e falso selves,

considerando a dissociação, que incide sobre a separação entre soma e psique, patente nas estruturas

psicossomáticas, nas quais a psique se converte no lugar do falso self, separado das experiências

corporais. Bion (1962), por sua vez, com seu conceito de splitting forçado, postula que a materialidade da

experiência corporal é que fica separada do sentido dessa experiência. Destacamos, portanto, que se

fenomenologicamente ambos os conceitos de falso self e sobreadaptação podem descrever o mesmo

fenômeno, estes não são sinônimos, pois para Winnicott, o desenvolvimento hipertrófico do falso self em

detrimento do verdadeiro self leva à amputação do sentimento de existir, considerando que isso se

organiza como uma defesa extrema da criança contra a parte doente da mãe. Liberman (1982), seguindo

Bion, enfatiza o empobrecimento do mundo interno, a falta da formação do continente que leva às

patologias do vazio, conforme descreve Lutemberg (1999).

Considerações Finais

O presente trabalho envolveu-nos em um contato profundo com áreas turbulentas da mente humana e com

situações impostas pela vida, nas quais o único caminho possível para o desenvolvimento mental é aquele

em que estão presentes as forças de vida, mobilizadas pela presença viva, esperançosa e estimulante do

outro. Em todas as funções que atuamos nesta instituição, temos procurado ser esse outro.

Os temas escolhidos para investigação se evidenciam em todas as sessões analíticas. O contato com isso

tem despertado novas indagações, especialmente em relação ao estudo da contratransferência. Esta é

marcada pela presença de uma avalanche de atos falhos cometidos por nós, que entendemos ser da ordem

do inominável. Aparecem também, na contratransferência, sentimentos de impotência, consciência de um

trabalho nos limites da analisabilidade, questionamentos constantes sobre o método, e sobre o que é

transformável e pode ser ressignificado. A contratransferência tem como pano de fundo, as constantes

interferências da instituição, como parte do setting analítico. O referencial teórico, que desenvolvemos no

presente trabalho, representa os pontos-chave selecionados para a discussão de nossa hipótese sobre

orfandade mental, pela falta real do objeto primário.

Outra indagação refere-se à possibilidade de ocorrer identificação projetiva e introjetiva, considerando-se

a privação do objeto real primário.

Queremos destacar que os abrigos são um mal necessário e que as questões levantadas nesse trabalho

estão longe de uma intenção crítica a este abrigo específico. Trata-se de revelar com hipóteses genéticas,

históricas e metapsicológicas a realidade psíquica da orfandade mental.

No atual contexto da instituição, vimos que as funções materna e paterna estão absolutamente

prejudicadas, detendo o processo de humanização. Com isso, as crianças abrigadas tornam-se

psiquicamente vulneráveis às patologias do vazio e às patologias psicossomáticas.

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Resumo

Através da observação de bebês pelo método de Esther Bick e da avaliação psicanalítica de crianças e

adolescentes, órfãos abrigados, pretendemos discutir a orfandade mental como um paradigma

epistemológico e metapsicológico.

Definimos a orfandade mental como uma metáfora da falta das funções materna e paterna, que leva ao

inominável e ao impensável do homem diante do sinistro, estigma original do inconsciente.

Para adequarmos nossas investigações a uma metodologia clínico-qualitativa, restringimos o vasto

universo das experiências que temos vivenciado, correlacionando-o com alguns conceitos da teoria

psicanalítica, para transpô-lo a um outro nível de compreensão e veiculação, no domínio das ciências

humanas.

Discutimos nossa hipótese a partir de um referencial teórico, que sumarizamos em cinco pontos

principais: as patologias do vazio; a construção da subjetividade na intersubjetividade; a regulação

narcísica e auto-estima; depressão; e, a sobreadaptação.

Os temas escolhidos para investigação se evidenciam em todas as sessões analíticas. O contato com isso

despertou novas indagações, especialmente em relação ao estudo da contratransferência. Esta é marcada

pela presença de uma avalanche de atos falhos cometidos por nós, que entendemos ser da ordem do

inominável. Aparecem também, na contratransferência: sentimentos de impotência, consciência de um

trabalho nos limites da analisabilidade, questionamentos constantes sobre o método, e sobre o que é

transformável e pode ser ressignificado. A contratransferência tem como pano de fundo, as constantes

interferências da instituição, como parte do setting analítico.

Concluímos com outra indagação, referente à possibilidade de ocorrer identificação projetiva e

introjetiva, considerando-se a privação do objeto real primário.

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ANEXO 1

JOSÉ – 8 anos – Avaliação Psicanalítica – 1ª Hora de Observação

José chega ao consultório vinte minutos antes do horário, acompanhado de uma cuidadora.

Apresento-me ao José e à cuidadora na sala de espera. Ela diz que está à disposição, se eu precisar de

alguma coisa, ou quiser falar com ela. Eu lhe agradeço e peço-lhe que aguarde na sala de espera.

- É que no começo ele fica tímido, diz a cuidadora.

José acompanha-me lentamente, parando e olhando em volta, mostrando-se curioso e assustado.

- José, eu marquei esse encontro com você aqui para te conhecer. Você pode usar esses brinquedos, se

quiser, para me contar o que te acontece.

José vai até a pia, olha cada um dos brinquedos; pega em cada um, deixando-os em seguida. Retorna à

mesa onde estava disposto o material gráfico. Estou sentada numa poltrona próxima a essa mesa.

José examina a caixa de lápis, olha para mim, examina os pincéis, a cola, olha para mim, examina a tinta

guache e pergunta:

- É, é cola colorida?

- Não, José, é tinta guache.

Pega uma folha de sulfite e arruma sobre a mesa. Traz um banco bem próximo de mim, onde senta-se.

Aponta o lápis grafite sem tirar os olhos de mim. Depois de um tempo dá um grande sorriso. Eu também

sorrio para ele.

Permanece longo tempo com um ar sonhador, de vez em quando dá um grande sorriso aberto.

- Eu tô pensando...

- Em que é que você está pensando?

Continua a sorrir.

- Nem sei em que estou pensando... Eu tô pensando.

- Eu me interesso pelo que você tá pensando, quando você quiser me contar.

Sorri e pega o giz de cera, examinando cada cor.

- Está com poeira. Referindo-se a um esbranquiçado que recobre o giz de cera.

- Você vai trazer mais brinquedos?

- Que brinquedo você gostaria?

- Eu gosto daqueles hominhos pequenos.

Olha para o chão e percebe alguns cisquinhos do lápis apontado.

- Não tem problema cair um pouco no chão?

- Não tem não.

Fala meio cantado:

- Me diz o que é que eu faço.

Respondo também cantado:

- Você pode escolher o que quiser.

Ele ri.

Vai olhando o giz de cera e desenhando, faz lentamente a cabeça de um urso e deixa sobre as caixas de

lápis, sem terminar.

- Você quer me contar algo do seu desenho?

- Não, está feio. Eu não sei desenhar.

Pega a bolinha e diz: - Está jogando dentro do cestinho de lixo.

Pega a vaca e coloca dentro da bacia.

- Ela vai nadar.

- Pode pegar água?

Vai em direção à pia e enche a bacia com água, joga o jacaré e a vaca. Fica encantado e me mostra o

movimento em círculo da água. De repente descobre a tampinha da pia e fica fascinado com isso. Enche a

pia e faz um cumprimento para ele mesmo no espelho. Coloca todos os bichos dentro da água e diz que é

uma cachoeira e todos vão nadar. Comenta que seria bom se tivesse um buraco na parte superior da pia,

para a água escoar.

Vai até a mesa pega o bebê e chega bem perto de mim. Põe o bebê no rosto e diz: - Bonitinho, não.

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Põe o bebê na mesa novamente volta para a pia e diz: - Tá faltando um leão aqui. Quero jogar um jogo

com você.

- Então vamos ver como é esse jogo.

- É assim, você joga essa bolinha na bacia, se fizer cesta você tem que vir e fechar o olho para escolher

uma cor. Se pegar um desse grupo ganha um ponto e se pegar do outro grupo perde pontos. Ele separou

alguns dos gizes de cera em dois grupos, aparentemente de forma aleatória. O grupo de cores que ganha

pontos é formado primordialmente pelas cores primárias, enquanto o que perde pontos é constituído por

cores escuras secundárias. Algumas cores foram excluídas, entre elas o azul e o rosa.

Eu jogo, depois ele joga e vibra muito, quando fecha o olho para pegar a cor.

Encerro a sessão e José fica surpreso: - Já acabou, e quando eu volto? É só você aqui?Não tem mais

ninguém?

- Sou só eu.

Combino o retorno dele na próxima semana e nos despedimos.

Acho importante ressaltar que José estabelece um clima muito amistoso e estimula em mim um desejo de

atender aos pedidos dele. Há também grande expectativa dele em relação a mim e isso acompanha toda a

entrevista.

Discussão

Trazido pela cuidadora, José é inicialmente apresentado pelo negativo, ele é visto como tendo um certo

defeito. A suposta timidez seria a justificativa para que a cuidadora se autorize a entrar na sessão com ele.

As dificuldades para lidar com os sentimentos de exclusão e a curiosidade ante a peculiar situação são

atuadas através da identificação projetiva. Esta forma de ser interpretado pelo objeto externo deixa suas

marcas. Na sessão ele desvaloriza sua obra. Também se desqualifica como quem não sabe desenhar. Ele

expressa e põe em cena a fantasia originária do coito parental no encontro do jacaré com a vaca na pia,

que espantosamente tem tampa; é um continente. Ele a enche de água e faz a água girar. Lamenta a falta

de um buraco para a água poder escoar e evitar transbordamentos. Parece que ele assinala um caminho

terapêutico: como dosar a sua angústia para evitar inundações?

O paciente entra assustado e muito curioso.

José expressa surpresa ante uma relação de singularidade e de intimidade.

Ele ausculta na analista o seu direito de ser e existir. O momento primordial é quando ele pode então se

permitir ser diante da resposta sorridente da analista, que o interpreta silenciosamente como ser sonhante,

e se oferece para o encontro além do espelho, na profundidade das almas.

Ele responde a este momento poético ao confidenciar que ele é capaz de pensar. Quando a analista revela

o seu legítimo interesse pelos pensamentos do paciente, ele denuncia a poeira-sujeira em cada um dos

bastões de giz de cera. Na realidade ele transforma em poeira o nome da marca do giz. Que sujeira

ancestral marca o nome paterno que herda? Que sujeira está inscrita nestes bastões? A poeira pode estar

sob seu controle, pode ser limpa. Talvez assim ele defenda-se da impotência da contaminação, sujeira que

ainda não pôde se limpar do sangue. Talvez ele sinta-se responsável e culpado pela sujeira-doença que

matou a sua mãe . Visita nossas mentes a história narrada pelo pai sobre as pneumonias recorrentes deste

filho, que denunciaram a contaminação materna. Ele preocupa-se com a sujeira do lápis no chão. Ele tem

que atender a um ideal para ser aceito, e não lhe é permitido ser imperfeito, nem sujar, ou usar o que está

a seu alcance.

O que podemos observar é que José, marcado pela orfandade psíquica, não pôde realizar o encontro da

pré-concepção com o objeto compreensivo: o seio metafórico – função materna – que sempre pressupõe a

função paterna, na triangulação edípica.

Ele parece não ter vivenciado a apresentação do objeto subjetivo, portanto não pode fazer uso do objeto

disponível. O momento primordial é quando ele se reconhece como um ser pensante, após a analista tê-lo

reconhecido como ser sonhante. José então, revela a capacidade de contato psíquico consigo próprio e sua

vitalidade no encontro com o objeto.

Olha para o material e para a analista, muito interessado em conhecê-la, em descobrir o que lhe é

permitido ou proibido e quais as expectativas que ele deve cumprir.

Ele quer cola, adesividade. Em nível transferencial podemos expressar sua fantasia de cura desta forma:

“Eu quero me colar à você para poder estruturar aqui a simbiose amputada; e, ter a oportunidade de

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vivenciar transferencialmente a continuidade da existência, na experiência fusional.” Isto pressupõe a

importância da edição além de reedição, para dar figurabilidade e inscrever aquilo que no Inconsciente

não tem registro. Põe em evidência para a analista que os pensamentos nascem antes do pensador e que

ele sente-se capaz de pensar quando está numa profunda relação emocional. Ele é capaz de pensar porque

há espaço mental como revela seu funcionamento tridimensional. Tem mente e vitalidade, que o fazem ir

à procura do objeto. Nele há predomínio de Eros.

Será que ao querer “hominhos” ele não deseja encontrar um objeto que lhe permita a personificação

(Klein, 1929) e um modelo de identidade masculina?

“Já que sempre fui interpretado como vítima do destino eu não sei se posso criar, desenhar, sujar, brincar

com água, voltar... ”. Ele copia o desenho do urso que está no giz fazendo uma apresentação de si: feio,

marrom, inacabado e apagado, que entendemos como a dificuldade de ser e aparecer. Podemos interpretar

que ele traz no ursinho as fantasias do contato sinistro primitivo.

O jacaré e a vaca podem ser interpretados como representantes do masculino e do feminino. A percepção

inconsciente que José tem de seus pais biológicos caracteriza-se por uma marcante disparidade, como a

revelada entre duas espécies tão diferentes, que impede a união criativa e a transcendência na filiação

simbólica. Mistura, a seguir todos os bichos na pia, acabando com a presença do casal. Na confusão não

há assimetria nem triângulo possível formado. Ele junta todos os bichos, e, magistralmente, ao final da

sessão, queixa-se da falta do leão, o guardião da selva de emoções. Ele reencontra o self infantil no bebê

José, que quer ter um espaço mental único: ser só ele para a analista .

A água da cachoeira é a força das pulsões que precisa ter por onde escoar, pois ele teme o descontrole. O

bebê dentro dele pode vir a ser bonito se encontrar o outro, o objeto continente, capaz de reconhecer a sua

beleza.

No último movimento da sessão, através do jogo que propõe, José traz uma reflexão muito profunda:

você pode acertar pela sua competência, mas de nada adianta, porque há forças superiores arbitrárias que

decidem a vida, que decidem quem é ganhador ou perdedor. Observamos que o grupo de cores primárias

e mais vivas determina o veredicto positivo, enquanto que o grupo de cores secundárias – onde o preto é

sempre presente na mistura – marca na negatividade a fatídica perda. Este é o último movimento da

sessão. Ele não tem o controle sobre o destino. Não basta limpar, reparar, atender os ideais. No jogo da

vida está presente o arbitrário e o azar, que o levam ao reconhecimento de sua impotência, desamparo e

orfandade mental.

As fantasias de cura aparecem quando, no encontro com a analista, um bebê pode pedir um intenso e

significativo contato. A analista com função materna e paterna tanto compreende seu desespero e tece o

sonho na esperança, quanto coloca os necessários limites na instauração do setting analítico, como parte

desta continência.

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ANEXO 2

CÁSSIA – 17anos e 11 meses – Avaliação Psicanalítica – 1ª Hora de Observação

Quando Cássia chegou, estava acompanhada de sua irmã mais velha, que ficou aguardando na sala de

espera. Ao entrar na sala de análise, Cássia olhava ao seu redor e fazia comentários mostrando-se curiosa

e deslumbrada com a situação analítica que se iniciava.

Perguntou-me em qual cadeira poderia sentar-se, me olhou, sorriu e sentou-se. Expliquei-lhe sobre a

conversa livre que teríamos, através das palavras e também de uma outra forma de comunicação,

utilizando-se do material gráfico, que estava na caixa especialmente montada para ela.

Ela olhou fixamente para a caixa, abaixou a cabeça, dizendo que queria pintar com lápis de cor. Pediu-me

para pegá-los para ela.

A – Você mesma pode abrir e escolher o que você quiser.

C – Eu prefiro que você, a senhora, abra...

A – Eu posso abrir, mas porque você não abre?

C – Estou com vergonha.

Atendi seu pedido, abrindo a tampa da caixa. Ela sentou-se mais à frente, olhando para dentro da caixa e

perguntou-me se ali teria um livro com desenhos prontos para ela pintar.

A – Tem folhas em branco para você desenhar. Mas por que você quer já desenhado?

C – É que eu tenho medo de desenhar algo feio.

A – Aqui não é como na aula que tem certo/errado ou feio/bonito. O que você fizer, será algo muito bom

porque surgiu aqui, e será uma criação autêntica sua.

C – É que lápis de cor não apaga!

A – Tem um lápis grafite com borracha, se você preferir.

Cássia manuseou alguns objetos dentro da caixa, separou o que lhe interessava e dirigiu-se até a mesa.

Perguntou-me se eu também iria desenhar e colocou uma folha para mim. Disse-lhe que ficaria ao seu

lado vendo o que ela iria fazer, e Cássia perguntou-me se poderia desenhar uma natureza.

Falei que ela poderia desenhar o que quisesse. Depois de me convidar para desenhar mais uma vez,

começou utilizando-se do lápis grafite. Parecendo estar concentrada, iniciou o desenho (desenho 1),

lentamente pelo sol, fazendo em seguida as nuvens, a árvore, as flores e a grama. Terminado o desenho,

começou a pintar pelo sol, dizendo que tinha ficado torto. Depois as nuvens; fez alguns passarinhos. Disse

que o E. era seu professor de pintura no Núcleo e ensinou-a a fazer o passarinho de um outro jeito,

mostrando-me no desenho o passarinho que está sobre a árvore, comentando sorridente que ele iria entrar

nela.

Ela disse que o E. (professor de pintura) montou uma exposição com todos os desenhos das crianças, e

também fez seu retrato, mostrando-me como era a pose.

Eu lhe disse que ela estava se sentindo muito valorizada ali comigo. Comentou então, que gostava de

todas as pessoas, que sentiu saudades quando estava no hospital, mas havia uma de quem ela gostava

mais, a F. (cuidadora). Falei-lhe que eu a entendia, os sentimentos não são os mesmos para todos.

Ela começou a me contar que não gosta da B., sua outra irmã, filha verdadeira da mãe dela, porque ela é a

protegida. (Enquanto isso pintava a árvore e a grama lentamente).

C – Eu já gostei muito da minha mãe até a B. nascer, porque depois ela só passou a querer a filha

legítima. Hoje ela nem encosta em mim, não me abraça. Acho que você não está entendendo, vou te

explicar sobre minha família.

Quando eu tinha sete meses e minha irmã M. um ano e meio, minha mãe, que já tinha sido prostituta,

falou para meu pai que ia comprar fraldas e bolachas, e sumiu. Nunca mais voltou. Meu pai casou-se

com essa outra mãe, que também era prostituta; até meus oito anos, nós quatro fomos muito felizes. Eu

gostava dela e, quando meu pai bebia e queria bater nela, eu a defendia. Cheguei até a fingir que tinha

desmaiado para ele parar; e deu certo!

Depois ela teve a B., tudo mudou, para pior.

Ela teve mais dois filhos e eu gosto muito deles. A mãe dela, que eu chamo de “Vó”, faz aborto, tira

criança da barriga de outras mulheres e também é prostituta, acho que nem usa camisinha. Ela não

larga dessa vida, porque não quer mesmo. E eu não gosto disso, não quero morar lá.

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Quero um dia me casar, ter meus filhos e formar uma família feliz. Eu sei o que é felicidade; e, morar

com eles, não dá para ser feliz. Quem sabe uma boa família também me leva com eles, se descobrirem

que eu só quero bem, que eu sei amar.

Avisei-a sobre o final da sessão, ela ajudou a guardar as coisas espontaneamente. Saímos e ela entrou no

banheiro, ofereci para ela usar o banheiro, mas disse que não, que só queria ver melhor. Parou em frente a

sala de adultos, entrou, disse que tinha muitos livros, perguntando-me se os pacientes os levavam para ler

em casa. Respondi-lhe que são apenas para meu uso, que eu estou sempre precisando deles. Nos

despedimos e ela me agradeceu com sinceridade.

Discussão

Diante do contato com a analista, a pré-concepção da função psicanalítica da personalidade (Bion, 1962)

da paciente parece despertar, fazendo viver a esperança de renascimento psíquico, fantasia que ela

confirma ao encontrar na analista um objeto humano e pensante (Alvarez, 1992) e um objeto provedor

(Bleichmar, 1997).

Ela não se sente no direito de escolher o lugar, aguardando que este lhe seja oferecido. Começamos a

tecer a hipótese da sobreadaptação.

Mostra o desejo de usar o lápis de cor, mas não se permite ser sujeito de seu desejo, solicitando que a

analista ocupe esse lugar. Com o assinalamento da analista, ela é colocada no lugar de um ser capaz de

desejar e de escolher; setores de seu inconsciente que parecem ter sido desativados. Ela traz o sentimento

de vergonha, revelador da desvalorização de seu self diante da caixa-mente que é convidada a abrir na

sessão.

Ela quer um livro com desenhos prontos para pintar, o que revela a dificuldade para dar figurabilidade ao

seu mundo interno. Sente-se incapaz de produzir como se precisasse apenas corresponder ao que lhe é

imposto; ela não pode ser autora

Volta a desvalorizar sua produção, diante da impossibilidade de alterar sua criação (“lápis de cor não

apaga”). Que marcas indeléveis são aquelas inscritas no seu inconsciente, incapazes de transformação?

Mais uma vez a analista a autoriza a ser e a expressar o que quiser. Parece revelar, na comunicação

gráfica, o que caracteriza a natureza de sua condição humana. Embora o desenho produza o efeito de uma

beleza estética, Cássia conta a história sinistra de sua vida, destacando-se a impossibilidade de dar

inteligibilidade ao horror. Há ainda no desenho, aspectos depressivos – as folhas como lágrimas caindo, o

sol torto e apertado – e uma agressividade contida, na origem de sua vida, base do desenho: o chão

dentado, revelando as potencialidades a serem desenvolvidas se ela encontrar um modelo vivo disponível.

O desenho oferece-nos uma oportunidade de abstrairmos, tomando o mito do Jardim do Éden como

modelo, o crime sexual cometido por não considerar a interdição do fruto da árvore do conhecimento, que

é comido. O Bem e o Mal são revelados, acarretando um sentimento de culpa e a expulsão do paraíso

terrestre.

Desamparada em sua orfandade, Cássia encontra-se agora diante de uma penosa encruzilhada: deverá

empreender a busca do conhecimento da verdade, ou será punida por sua curiosidade primitiva, relativa

ao mistério do nascimento e da cena primária. Como disse Ovídio em “Metamorfosis”, “Narciso

morreria se viesse conhecer-se?”

Cabe destacar que enquanto ela pinta a árvore e a grama ela associa que sua irmã B., é filha verdadeira e,

portanto, legítima da mãe. Entendemos isso como pano de fundo da representação da falta de amor que

ela sente, e que produz a fúria narcísica e a depressão essencial. O manifesto no desenho parece servir

como uma recusa do sinistro da história desde a origem de sua vida. A história, que ela consegue

compartilhar com a analista, transborda as possibilidades humanas de figurabilidade, pensabilidade e

inteligibilidade. O impacto contratransferencial na analista é de perplexidade e de enorme sobrecarga

diante do desafio apresentado. A analista sente que a paciente abre-lhe as portas do inferno de Dante,

desafiando-a a conter e a dar sentido à tragédia de sua vida: mãe biológica, mãe adotiva e avó são

prostitutas; a mãe, que mente e abandona a família, some; a avó é aborteira.

O projeto da paciente é casar-se, ter filhos e formar uma família diferente e feliz; ela diz que sabe o que é

a felicidade. Para tanto, ela precisa de uma família diferente, que a adote, talvez na transferência, a

analista e o professor de artes. Para que isso aconteça, ela tem que ser muito boa e ser capaz só de amar.

Esta é a idéia realizada na sessão, o passarinho encontrando seu ninho na árvore. Ela investiga a

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interioridade da analista, percorrendo o seu consultório, reconhecendo nela a sabedoria e a continência

para acolher os aspectos denegridos de sua personalidade, que na geografia mental de Meltzer (1992) são

os excrementos e secreções das partes baixas do corpo. Nela o sangue da menstruação pode vir a ser o

veículo maldito da contaminação.

Ao reconhecer o potencial intelectual da analista, identifica-se com essa função, que interpretamos como

significativa mudança durante a hora de observação, se comparamos com a desqualificação existencial do

início da sessão.

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ANEXO 3

CARLOS – 1 ano e 8 meses – Observação de bebês – Discussão da 9ª observação

Logo que chego à Vila das Pipas vejo um movimento dentro da casa, bato palmas e R vem abrir o portão,

sempre sorrindo.

Ao entrarmos na sala, encontro sentados no chão Maria e Carlos, que segurava um carrinho na mão.

Carlos pára, me olhando fixamente, provocando comentários e risos em Maria Também está na sala Tina,

ao lado de Laura, que abre e fecha uma gaveta do móvel do telefone e a Coordenadora que me

cumprimenta e pergunta se conhecia Tina.

Maria ensina Carlos a abrir as perninhas no chão, em continuação às suas pernas, e a fazer um vaivém

com o carrinho; riam muito.

Laura faz sons enquanto brinca (penso que é enriquecedor a singularidade de cada criança). Há

comentários e risos entre as duas cuidadoras. Ana chega na sala e também junta-se a elas, dirigindo-me

comentários sobre Carlos. Sento-me ao lado.

Carlos se levanta, pega o carrinho e Ana o abraça calorosamente. Maria convida-o novamente e ele se

afasta segurando o carrinho apertado com as duas mãos, mas logo volta a sentar-se e repetem a

brincadeira. Ele sorri enquanto empurra o carrinho, observa Maria e mexe muito as pernas. Num dos

vaivéns o carrinho sai pela lateral; Carlos levanta-se para pegá-lo e Ana brinca de pegar Carlos. Quando

se afasta, ele sai atrás dela e assim se inicia um longo e divertido jogo.

Quando Carlos corre atrás de Ana, ao encontrá-la, ela o agarra, ele estremece e ambos riem muito; daí ele

corre olhando para trás, ela o segue falando com ele e ele corre, esbarrando na parede e dando gritinhos

de prazer. Ela me olha falando dele comigo e com ele, agarrando-o novamente, levantando-o e beijando-

o. Depois entra, vai se escondendo, ele a procura correndo e rindo e ficamos assim durante uns quinze

minutos nessa brincadeira de esconde-esconde pela casa. Há um clima de puro prazer, de muita excitação,

alegria e um delicioso cansaço de ambos. Carlos tem as faces afogueadas e respira forte.

Ana é chamada; segura forte Carlos e entramos na área interna de brinquedo onde Laura está num

chiqueirinho e Maria ao lado. Carlos empurra uma motinho e Laura faz muitos sons. Tina entra e leva

Laura. Carlos entra no chiqueirinho e o empurra para frente e para trás. Maria, sentada no chão, aonde eu

também me sento, vai mexendo com ele; ele empurra o chiqueirinho em sua direção, se afasta, mantendo

o olhar sobre Maria. Ele faz movimentos com a boca fazendo bolinhas de cuspe e ela rindo diz “ –

Bobo”, falando para ele não fazer assim e me diz que não sabe por que ele tem mania de fazer isso pois

sabe que ela não gosta.

Tina entra com Laura e Maria comenta que vira Hugo*, pois sua mãe é vizinha dele; diz que ele está

ótimo. Laura vem e pede colo para todos, enquanto Carlos, segurando firmemente no chiqueirinho,

continua seu vaivém.

Maria levanta-se dizendo que precisa ir ao banheiro, comentando que tem dor de cabeça (observara que

tinha um ar de cansaço embora estivesse rindo e brincando). Tina se retira com Laura e fico sozinha com

Carlos. Ele desce do chiqueirinho e aponta a cozinha com o dedinho levantado, sobe e desce do brinquedo

usando suas mãozinhas sólidas e fortes; vem em minha direção, me olha firme, põe o dedinho primeiro

apontando, depois tocando minha mão, com a pontinha do dedo indicador e fazendo sons muito suaves e

delicados com a boca batendo os lábios um no outro. Nesse momento Maria volta, senta-se no chão ao

meu lado e diz: “ – Por que será que ele fala ‘papa’ se ele nunca teve um?”. Carlos continua dizendo: “

– pa-pa, pa-pa, ma-ma” (sinto-me muito emocionada, minha pele fica arrepiada, meu peito e meus olhos

ardem, preciso tensionar o corpo para me conter. Tenho vontade de romper a observação e conversar com

ela.).

Carlos vira o chiqueirinho até ela, sorri e se movimenta novamente. Maria volta a me dizer, muito

pensativa: “ – Por que será que ele ficou melhor depois que Hugo foi embora?” Eu digo: “ – Ficou ?”

Ela diz: “ – Ele era tão arteiro!”. Eu: “ – Hum...”. Ela continua: “ – Sim, ele não parava, batia nos

maiores; está mais calmo”.

Tina, com Laura no colo, aparece na porta e todos viramos para trás. Cássia passa e mexe com Laura

dizendo: “ – Linda”.

* Menino criado no abrigo até os dois anos, recém adotado.

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Há um chamado da cozinha e Maria retira Carlos do chiqueirinho levando-o para lavar as mãos. Ele põe

as mãozinhas sob a água expressando prazer; ao mesmo tempo, automaticamente estica as mãos quando

Maria pega a toalha.

Maria senta-se ao lado de Carlos e, com o braço atrás de sua cadeira, vai-lhe dando comida e comenta que

ele já está fechando a boca para comer. A cozinheira comenta que também está falando e canta uma

música, que faz Carlos sorrir e repetir (“dá-dá-dá...”). Há risadas.

Discussão

A observadora é bem recebida na casa. Carlos reconhece sua função. Maria parece aprovar a

receptividade de Carlos à observadora. Podemos entender a brincadeira de Laura de abrir e fechar a

gaveta como a procura de um continente e a elaboração da alternância entre encontro e separação.

Na brincadeira de Maria com Carlos, ambos constroem um espaço comum no chão, um losango, contorno

do continente de um caminho para um movimento de vaivém entre os dois. Carlos interrompe a

brincadeira antes de sofrer a interrupção, levando-nos a supor sua falta de confiança na constância da

experiência interpessoal, abrindo mão do contato. Há um corte em sua livre expressão, quando Ana

coloca-se no seu caminho. Carlos refugia-se no carrinho e mais uma vez evita o contato.

A excitação maníaca de Carlos entra num crescente, fazendo com que ele procure, na concretude, o

continente mental. Por não encontrá-lo, vai a uma procura corporal onde atua essa excitação. A saída do

carrinho do continente-losango pode ser entendida como uma forma de interromper a excitação, levando-

nos a pensar, que esse jogo poderia estar representando perigosas fantasias reveladoras de cena primária;

o que pode ser confirmado pela aceitação da nova brincadeira, proposta pelo novo objeto, Ana.

Nesta nova brincadeira de esconde-esconde e pega-pega, testa o interesse do objeto em encontrá-lo,

mostrando-se também ativo na procura do objeto. Demonstra ainda sua excitação, pela turbulência que

essa situação provoca, buscando nas paredes, um limite para ela.

Na mudança de cena, quando Ana é chamada, a observadora comete um lapso, ao chamar de

“chiqueirinho” o andador onde Laura estava. Interpretamos esse lapso como revelador da intuição de que

Carlos primeiro precisa construir um continente, para poder abrigar o crescimento mental, através da

vivência significativa das experiências emocionais, que permitem a aprendizagem.

Carlos ocupa o andador, assim que se dá conta que ele está vazio, apropriando-se do lugar de Laura.*

Confirmam-se nossas hipóteses de que ele necessita de um continente mais adequado à sua condição

psíquica. Este lugar é uma metáfora viva que condensa todas as atenções.

Carlos repete na tridimensionalidade, na representação espacial, o jogo de ida e volta do carrinho. Mostra

sua produção oral, apresentando criativamente os conteúdos de seu corpo. O gesto espontâneo é recebido

com ambivalência. Ao invés de ser afirmado em sua potência criadora, é desqualificado ao ser

interpretado como bobo pela cuidadora. Cabe ressaltar, que o mesmo se repete na escrita da observadora,

quando esta transforma o que seriam bolhas de saliva em cuspe.

Entendemos que, quando a cuidadora toca no assunto da criança que fora adotada, está reconhecendo a

função do Serviço de Psicologia Psicanalítica na instituição.

Quando Maria faz referência a outra criança, interrompendo o contato com Carlos e referindo-se à dor de

cabeça, parece que enfatiza nossa hipótese sobre a impossibilidade de Carlos fazer bolhas. Nesta hora, ele

desce do andador e aponta a cozinha como se precisasse ser alimentado diante da angústia de separação,

provocada pela ameaça de perda do objeto. Vai à procura da observadora, atraindo-a com olhar firme,

mais uma vez mostrando a necessidade da concretude, tocando-a.

Ele faz sons suaves e delicados, provavelmente testando se desta vez será aceito. Maria volta, senta-se ao

lado da observadora, e faz a pergunta reveladora, ontológica e transcendente; a observadora emociona-se

profundamente ao perceber que ele está falando “papá” e a seguir “mamá”. Assistimos a um momento

poético, condensado na palavra que pode ser anunciada, quando encontra o continente compreensivo à

criação da linguagem. Ele fala para a observadora que com a sua postura psicanalítica, o interpreta e

compreende.

* Laura é uma menina doente, acabando de chegar de uma longa internação hospitalar, tendo, em função disso, recebido

cuidados mais individualizados na instituição.

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Com relação ao comentário da cuidadora sobre a melhora de Carlos após a saída da criança adotada, nos

perguntamos se a depressão não está sendo interpretada como melhoria, em função dos ideais

institucionais, reiterando e reforçando a sobreadaptação.

Dentro do contexto da observação, nos é plausível deduzir, que a entrega automática das mãos para serem

enxugadas, é requisito da sobreadaptação, no lugar do gesto plástico e espontâneo da aprendizagem

através da experiência emocional.

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DESENHO 1

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DESENHO 2